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    O princpio da realidade nega o revisionismo?O exemplo de anlises revisionistas

    da vida e obra de frei Caneca

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG

    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 238

    O princpio da realidade nega o revisionismo?O exemplo de anlises revisionistas

    da vida e obra de frei CanecaLiliane Gonalves de Souza Carrijo

    Mestranda em Histria Social pelo PPGHIS/[email protected]

    RESUMO: O artigo que se segue prope uma reflexo sobre o debate entre relativismo eprincpio da realidade em histria este ltimo, defendido por Carlo Ginzburg em uma srie deensaios publicados pelo autor. Realizamos uma anlise que busca mostrar que relativismo eacesso ao real no se excluem e, para isso, abordamos algumas revises historiogrficas em tornodo pensamento e da vida de frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca (1779-1825), um

    importante pensador poltico do perodo da independncia do Brasil.

    PALAVRAS-CHAVE:Princpio da realidade, Relativismo, Historiografia.

    ABSTRACT: This following article proposes a reflection about the debate between therelativism and the principle of reality in the historical disciplinethis last one, defended by CarloGinzburg in his essays. We make an analyses that wants to show that relativism and access toreality do not exclude each other and, to do it, we deal with some historiographical reviewsaround thought and life of friar Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca (1779-1825), animportant political thinker from the period of independence of Brazil.

    KEY-WORDS:Principle of reality, Relativism, Historiography.

    A insistncia actual sobre a dimenso narrativa da historiografia (de qualquerhistoriografia, embora em graus diferentes) associa-se (...) a atitudes relativistas quetendem a anular de facto qualquer distino entre fiction e history, entre narraes

    fantsticas e narraes pretensamente verdicas.1

    A epgrafe foi escrita na dcada de 1980, entretanto, o debate sobre a realidade ou a

    verdade em histria mostra-se, ainda, relevante. Indicam isso, por exemplo, os questionamentos

    feitos, recentemente, proposta realista de Carlo Ginzburg, por Durval Muniz de Albuquerque

    Jnior2

    , um dos principais historiadores brasileiros a refutar as propostas terico-metodolgicas

    1 GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis. In:GINZBURG, Carlo; CASTELNUEVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-histria e outros ensaios: memria e sociedade. Riode Janeiro; Lisboa: Bertrand Brasil; Difel, 1989; p. 196.2 ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. O caador de bruxas: Carlo Ginzburg e a anlise historiogrfica comoinquisio e suspeio do outro. SaeculumRevista de Histria, Joo Pessoa, n. 21, p. 45-63, jul/dez 2009.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    do autor3; ou a prpria atualidade do tema, amplamente discutido em recentes artigos por

    Ginzburg.4

    Alguns dos debates que aproximaram histria e fico ganharam espao na segunda

    metade do sculo XX. Nesse perodo desenvolveu-se, especialmente a partir do fim da dcada de

    1960, um cenrio de afirmao de perspectivas cticas, que influenciou o campo das cincias

    humanas. De l para c, o posicionamento de Ginzburg foi sempre o de reforar que o

    argumento de que a historiografia possui uma dimenso narrativa, til s propostas relativistas,

    no pode igualar o conhecimento histrico fico, pois o historiador, diferentemente do

    ficcionista, trabalha com pressupostos de realidade amparados em seus mtodos, reflexes

    tericas, epistemolgicas, e nas evidncias do passado. E sem dvida, o debate histria versus

    fico ainda encontra-se presente em muitos dos textos produzidos pelo autor.

    Considerando esse cenrio, analisaremos nesse artigo, inicialmente, a ideia do princpio

    da realidade, defendida por Ginzburg, compreendendo-a em seu contexto de formao. Depois

    abordaremos a temtica revisionista, da qual partiu toda a discusso ginzburgiana em defesa do

    real em histria. Procuraremos pensar em como levar a cabo o exerccio revisionista sem

    transformar a narrativa historiogrfica em um puro e simples documento ideolgico 5, o que

    desenvolveremos examinando algumas das releituras interpretativas do pensamento e da vida de

    frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca6, a saber: das ideias de ptria e nao do carmelitae de sua participao na Revoluo Pernambucana, de 1817. Alm disso, tentaremos refletir sobre

    as contribuies das abordagens revisionistas construo do conhecimento historiogrfico.

    O contexto, o princpio da realidade e a subjetividade do historiador

    Difusor da micro-histria e detentor de grande erudio, uma marca de seus textos e

    reflexes, o italiano Carlo Ginzburg figura, na atualidade, como importante historiador sem

    dvida, bastante lido e conhecido no Brasil. Segundo Carlos Eduardo de Almeida Ogawa,

    Ginzburg apresenta um trao marcante em sua produo historiogrfica: foi inicialmente

    conhecido por seus trabalhos monogrficos de temticas relacionadas cultura popular,

    3A nosso ver, o debate estabelecido por Albuquerque Jnior em relao s propostas de Ginzburg mostra-se comoindcio da atual pertinncia do assunto. Albuquerque Jnior questiona, especialmente, o princpio da realidade,defendido por Carlo Ginzburg.4Lembramos a atualidade de seu livro O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictcio, de 2006 (traduzido para o portugus em2007), no qual Ginzburg reflete sobre os desdobramentos do debate ctico em histria e afirma que as dificuldadessurgidas dessa discusso, e as tentativas de resolv-las, permanecem. In: GINZBURG, C. O fio e os rastros: verdadeiro,falso, fictcio.So Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 9.5GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, p. 195.6 Importante personagem poltico na histria do Brasil. Abordaremos uma breve biografia do carmelita, mais frente.

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    especialmente ligada bruxaria, ou cultura erudita, mas passou a uma produo ensastica 7, na

    qual debateu ideias de cunho terico e metodolgico. Apesar da ampla verificao desse aspecto,

    no podemos deixar de observar que as discusses terico-metodolgicas j perpassavam os

    trabalhos monogrficos do autor. Um exemplo encontra-se no livro O queijo e os vermes: o cotidiano e

    as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio, no qual ele refutou anlises cujos recortes temticos

    privilegiaram o estudo da mentalidade, considerando-os generalistas8, e discutiu o que denominou

    circularidade cultural, inspirado no crtico literrio russo, Mikhail Bakhtin. Por meio do conceito

    de circularidade, Ginzburg conseguiu perceber e analisar a convergncia entre as posies de um

    desconhecido moleiro friulano [o Mennocchio] e as de grupos intelectuais dos mais refinados e

    conhecedores de seu tempo9, mostrando, desse modo, a complexidade dos processos de

    interao e apropriaes culturais no campo da experincia vivida.

    No obstante a grande produo historiogrfica de Ginzburg, nos deteremos neste

    trabalho, principalmente, em trs de seus ensaios: Provas e possibilidade margem de Il ritorno de

    Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis10, de 1984; O extermnio dos judeus e o princpio da realidade,

    publicado em 2006, na coletnea organizada pelo historiador brasileiro Jurandir Malerba11; e

    Checking the Evidence: The Judge and the Historian12,de 1991. Abordaremos suas reflexes sobre o

    princpio da realidade e os embates que travou no campo historiogrfico contra o ceticismo

    cientificista; e as questes da subjetividade do historiador e do estatuto da prova. Contudo, faz-senecessrio antes verificarmos o contexto em que todo esse debate surgiu.

    A partir do fim da dcada de 1960, (...) as posies cticas (...) tornaram-se cada vez

    mais influentes nas cincias humanas13. Mas, j no fim da dcada de 1940, desenvolveu-se um

    cenrio negacionista e relativista, em relao ao holocausto, principalmente na Frana, na

    7OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. Histria, retrica, potica, prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retrica de Aristteles.139 f. Dissertao (Mestrado em Histria)Universidade de So Paulo, Programa de Ps-Graduao em HistriaSocial, So Paulo, 2010, p. 22.8GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela inquisio. So Paulo:Companhia das Letras, 2006, p. 23-25.9______. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela inquisio, p. 19.10A referncia completa do ensaio GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidade margem de Il ritorno de Martin Guerre,de Natalie Zemon Davis. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUEVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-histria e outrosensaios: memria e sociedade. Rio de Janeiro; Lisboa: Bertrand Brasil; Difel, 1989, p. 179-202. O livro de 1989, mas oensaio, propriamente, de 1984.11GINZBURG, Carlo. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade. In: MALERBA, J. (Org.).A histria escrita: teoria ehistria da historiografia.So Paulo: Contexto, 2006, p. 211-232. O texto foi tambm publicado no livro O fio e os rastros:verdadeiro, falso, fictcio, de Carlo Ginzburg, edio brasileira de 2007, mas sob o ttulo Unus testis: o extermnio dos judeus eo princpio da realidade.12______. Checking the Evidence: The Judge and the Historian.Critical Inquiry, Chicago, v. 18, n. 1, p. 79-92, 1991.13______. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela inquisio, p. 224.

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    Alemanha e nos Estados Unidos14. Carlos Ogawa indica alguns nomes representativos do cenrio

    negacionista francs: um deles, Maurice Bardche, cujo livro Nuremberg ou a terra prometida (1948)

    colocou em dvida os documentos comprobatrios da poltica de extermnio dos judeus no

    Terceiro Reich e negou a existncia de cmaras de gs15; e outro, Paul Rassinier, cujos textos

    desqualificavam os testemunhos das vtimas do regime nazista. J para o caso norte-americano o

    autor destaca nomes como Harry Elmer Barnes, importante colaborador na difuso do

    negacionismo nos Estados Unidos; e Arthur Butz, autor do livro The hoax of the twentieth century, de

    1976, e fundador do Institute for Historical Review, de 1978, por meio do qual se visava propagar a

    negao do holocausto utilizando-se de linguagem acadmica, confivel atitude reforada, a

    partir da dcada de 1990, pelo Committe on Open Debate on the Holocaust, fundado por Bradley Smith

    e Mark Weber16

    .

    O debate revisionista estadunidense teve lugar, principalmente, na Califrnia, onde

    Ginzburg lecionou alguns anos.17Enquanto ele lecionava na UCLA, o Intitute for Historical Review,

    localizado no mesmo estado da universidade californiana, publicava livros, peridicos, sediava

    conferncias, todas de contedo anti-semita e o Committe on Open Debate on the Holocaust

    procurava espalhar esse iderio nas universidades do pas afora, buscando, entre os alunos,

    novos adeptos18. possvel perceber, com alguma clareza, que Ginzburg tinha conhecimento

    desse cenrio, bem como reprovava-o. Na introduo do livro Relaes de fora19

    , ele afirma terparticipado de um congresso

    (...) numa universidade americana, [no qual] um conhecido pesquisador [HaydenWhite] apresentou sua tese favorita segundo a qual impossvel traar uma distinorigorosa entre narrativas histricas e narrativas imaginrias (fictional).20

    O congresso citado, The extermination of jews and the limits of representation, ocorreu na

    UCLA, em 1990. Nele, Ginzburg apresentou sua conferncia Just one witness, depois traduzida e

    publicada sob o ttulo O extermnio dos judeus e o princpio da realidade. Em sua exposio, o autor

    14 OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. Histria, retrica, potica, prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retrica deAristteles, p. 65-70.15 Deborah Lipstadt apud OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. Histria, retrica, potica, prova: a leitura de CarloGinzburg da retrica de Aristteles,p. 65.16Para maiores esclarecimentos sobre o desenvolvimento do cenrio negacionista/relativista, ver OGAWA, CarlosEduardo de Almeida. Histria, retrica, potica, prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retrica de Aristteles,p. 65-70.17Por duas dcadas, a partir de 1988.18 OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. Histria, retrica, potica, prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retrica deAristteles, p. 70.19GINZBURG, Carlo. Relaes de fora: histria, retrica, prova. So Paulo: Cia. das Letras, 2002.20Carlo Ginzburg apudOGAWA, Carlos Eduardo de Almeida, Histria, retrica, potica, prova: a leitura de Carlo Ginzburgda retrica de Aristteles, p. 70.

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    refutou teses relativistas, como a de Robert Faurisson ao negar a existncia dos campos de

    concentrao nazistas21, bem como o relativismo histrico do americano Hayden White.

    No texto O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, Ginzburg procura tanto mostrar a

    filiao intelectual de H. White, a qual associa ao neo-idealismo italiano22, quanto indicar a

    insustentabilidade das perspectivas absolutamente relativistas. E nesse aspecto, ele refuta a ideia

    whiteneana segundo a qual existiria uma total liberdade interpretativa por parte do historiador em

    relao s fontes com as quais trabalha liberdade esta, que viabilizaria qualquer anlise

    historiogrfica, independentemente de posies ticas.

    O pressuposto da total liberdade interpretativa expresso por H. White quando o

    mesmo afirma que

    devemos tomar cuidado (...) com os sentimentalismos que nos levariam a rejeitar umaconcepo da histria simplesmente porque foi associada s ideologias fascistas. (...)na documentao histrica no encontramos nenhum elemento que (...) induza aconstruir o significado em um sentido ao invs de outro. 23

    Mas para Ginzburg, tal afirmao impensvel. Concluir que quaisquer interpretaes

    sejam vlidas equivale a sustentar a verdade como eficciaum tipo de explicao amplamente

    determinada pelas demandas de quem produz.24Dessa perspectiva, conforme explicita Ginzburg,

    White pode at considerar eficaz a interpretao histrica judaica do holocausto, mas,

    analogamente, conclui-se que se a narrao de Faurisson [ao negar a existncia dos campos de

    concentrao nazistas] tivesse de algum modo resultado eficaz, ele no hesitaria em consider-la

    [tambm] verdadeira25. Ou seja, White no hesitaria em afirmar a inexistncia do holocausto

    uma interpretao que compromete, substancialmente, para Ginzburg, a dimenso tica que deve

    estar presente no trabalho do historiador.

    O que Carlo Ginzburg critica na postura relativista de H. White no se refere

    aproximao feita entre as dimenses da histria e da narrativa literria. Afinal, na concepo

    ginzburgiana, a literatura, ainda no sculo XIX, assinalou muitas questes que mereciam serconsideradas na historiografia. Delas so exemplos, a ampliao das temticas de estudo e da

    concepo de fonte documental; a necessidade do melhor uso das fontes; a considerao da

    21Carlo Ginzburg indica que Robert Faurisson o fez na seguinte obra: FAURISSON, Robert. Mmoire em dfense: contreceux qui maccusent de falsifier lhistoire La question ds chambre gaz, prefaciado por Noam Chomsky, Paris, 1980.22GINZBURG, Carlo. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 216-222.23Hayden White apudGINZBURG, Carlo. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 222.24GINZBURG, Carlo. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 221.25______. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 223, grifo do autor.

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    microdimenso na pesquisa.26O problema das reflexes whiteneanas est em quando se iguala as

    narrativas histrica e literria no plano da arte e no no da cincia 27, promovendo-se anlises

    relativistas e cticas. Portanto, o cerne da questo est no fato de a historiografia, quando

    diretamente ligada narrativa literria, implicar na relativizao absoluta da realidade.

    importante salientar que a crtica de Ginzburg ao relativismo no corresponde

    rejeio da subjetividade do historiador. Esta subjetividade pode ser encontrada em quaisquer dos

    momentos da pesquisa, e assumi-la no exclui o princpio da realidade. Seguindo Momigliano, ele

    afirma que

    princpio de realidade e ideologia, controlo filolgico e projeco no passado dosproblemas do presente se entrelaam, condicionando-se reciprocamente, em todos osmomentos do trabalho historiogrficodesde a identificao do objeto at selecodos documentos, aos mtodos da pesquisa, aos critrios de prova, apresentaoliterria. [E, assim,] a reduo unilateral de to complexo entrelaado aco, isenta deatritos, do imaginrio historiogrfico, proposta por White (...), revela-seempobrecedora e, no fim das contas, improdutiva.28

    As evidncias do passado, as fontes documentais, sem as quais no se produz

    conhecimento histrico, encontram-se em destaque na prtica historiogrfica e nas discusses

    terico-metodolgicas de Ginzburgtanto que ganham o status de prova.

    Para tratar da noo de prova, Ginzburg examina, temporalmente, o espao que ela

    ocupou no trabalho do historiador e do jurista. Atravs de sua anlise, ele consegue mostrar apreponderncia histrica das provas, dos documentos, tanto no campo historiogrfico, quanto no

    jurdico29. Entretanto, apesar da constatao, Ginzburg indica que a ao de comparar o

    historiador a um juiz que define a validade dos vrios testemunhos30, encontra-se fora de moda,

    assim como o uso da palavra prova feito com certo embarao por historiadores. Contudo,

    para ele, essa conexo entre prova, verdade e histria (...) no pode ser colocada facilmente de

    lado31. Os diferentes tipos de testemunhos e narrativas possuem uma relao altamente

    problemtica com a realidade [sem, entretanto, neg-la] (...) [, pois] a realidade (a coisa em si)

    existe32. E para aceder realidade passada fazem-se imprescindveis as provas. por meio delas

    26GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, p. 193.27______. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, p. 194.28______. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, p. 196.29______. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis,p. 180-183; GINBURG,Carlo. Checking the Evidence: The Judge and the Historian, p. 79-92; GINZBURG, Carlo. O extermnio dos judeus e o princpioda realidade,p. 214-215.30______. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 215.31______. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 215.32______. O extermnio dos judeus e o princpio da realidade, p. 226.

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    que o historiador acessa o tempo decorrido, seus acontecimentos, e constri o conhecimento

    histrico.

    Sem negar a narrativa historiogrfica, mas tambm afirmando a existncia da realidade

    em histria, Ginzburg mostra a indispensabilidade das evidncias, dos documentos. , portanto,

    pelo princpio da realidade, associado ao suporte terico-metodolgico e documental do

    historiador, que o acesso ao passado torna-se possvelo que no implica, de modo algum, em

    que seja total. Por esses aspectos diferenciam-se histria e fico.

    Feitas essas consideraes, importa-nos refletir sobre como tratar a questo revisionista

    na historiografia diante do princpio da realidade. possvel um revisionismo que no transforme

    o conhecimento histrico num puro e simples documento ideolgico? Sobre tal aspecto se

    ocupar nossa anlise a seguir.

    O revisionismo e o princpio da realidade: vida e obra de frei Caneca

    O revisionismo fundamental produo historiogrfica. A possibilidade de revisar

    permite que muitos temas e textos histricos, dados como analiticamente esgotados, sejam

    revisitados por pesquisadores. Mas, uma anlise revisionista implica, necessariamente, em negar a

    realidade? sobre essa questo que buscaremos refletir. Para isso, abordaremos, inicialmente, as

    revises historiogrficas realizadas em torno de alguns aspectos da vida e da obra de frei Caneca.Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca nasceu em Recife/PE, em 1779. Ele foi

    um importante pensador poltico, cujas reflexes tiveram lugar nos anos iniciais da dcada de

    1820, no perodo da independncia do Brasil. De tradio familiar carmelita, ele tomou o habito

    de novio no Convento do Carmo recifense, em 1796, ordenando-se em 1801. Caneca diplomou-

    se no Seminrio de Olinda33, onde obteve, alm da formao letrada que o habilitou para o

    exerccio do magistrio, o contato com homens de futuro relevo poltico de sua poca34.

    Frei Caneca viveu em um contexto politicamente dinmico e presenciou doismovimentos revolucionrios em Pernambuco. Um deles foi a Revoluo Pernambucana de

    33O Seminrio de Nossa Senhora da Graa de Olinda, criado em 1796 e instalado em 1800, representava, poca, oideal modernizador portugus iniciado por Marqus de Pombal, no sculo XVIII, e continuado/revitalizado por d.Rodrigo de Souza Coutinho. Conforme mostrou Maria de Lourdes Vianna Lyra, a instituio atendia ao objetivo deformarquadros administrao do imprioque atendessem aos ideais modernizadores portugueses. In: LYRA,Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso imprio: Portugal e Brasil: bastidores da poltica, 1798-1822. Rio deJaneiro: Sette Letras, 1994, p. 89. Sobre o Seminrio, ver: NEVES, Guilherme Pereira das. O Seminrio de Olinda:educao, poder e cultura nos temos modernos. 602 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade FederalFluminense, Programa de Ps-Graduao em Histria, Niteri, 1984, 2v.34 SILVA, Sandra Vieira da. A dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822. 90 f. Dissertao

    (Mestrado em Histria e Historiografia das Ideias) Universidade de Braslia, Programa de Ps-Graduao emHistria, 2004.

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    1817.35O conhecido movimento autonomista ocorreu entre maro e maio do referido ano, em

    resposta s medidas tomadas pela Coroa portuguesa tidas como centralizadoras, pelos

    revoltosos. Essa revolta levou priso do carmelita nos crceres baianos, onde permaneceu preso

    por quatro anos. Solto em fevereiro de 1821, no contexto da Revoluo Vintista portuguesa,

    Caneca voltou para Pernambuco, onde passou a se destacar por seus escritos polticos36.

    Para alm das ideias, frei Caneca atuou na Confederao do Equador 37, outro

    movimento autonomista ocorrido em Pernambuco, entre julho e novembro de 1824, o que lhe

    rendeu a condenao morte natural por enforcamento. A sentena foi cumprida em 13 de

    janeiro de 1825. Entretanto, ao invs de enforcado, foi fuzilado devido recusa de algozes em

    cumprir a determinao sentencial.

    Com uma trajetria de destaque regional e desfecho trgico, Caneca tornou-se figura

    representativa na memria dos pernambucanos e seu pensamento foi tema bastante explorado na

    historiografia brasileira38. Muitos dos trabalhos que se dedicaram a refletir sobre as ideias polticas

    do frei privilegiaram recortes analticos que valorizaram a perspectiva da formao do Estado-

    35 Sobre a Revoluo Pernambucana ver, LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1817: estrutura e comportamentossociais. Recife: Fundao Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1988; MELLO, Evaldo Cabral de. A outraindependncia: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. So Paulo: Ed. 34, 2004; QUINTAS, Amaro. A agi taorepublicana no nordeste. In: HOLANDA, Srgio Buarque de. (Dir.). Histria geral da civilizao brasileira. Tomo 2. v. 1. 9ed.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 207-262.36Dentre seus escritos, datados de 1822 a 1824, destacam-se a Dissertao sobre o que deve entender por ptria do cidado edeveres deste para com a mesma ptria, o Sermo de aclamao a d. Pedro, uma srie de folhetos, seu peridico TyphisPernambucano e seu voto quando ao juramento do projeto de Constituio oferecido por d. Pedro I. Neles, o freirefletiu sobre vrios acontecimentos polticos de sua poca marcados, de modo geral, pelo contexto daindependncia. Pensou a respeito de um imprio luso-brasileiro, em propostas de organizao poltica para o pasindependente, refletiu sobre a Assembleia Constituinte, seu fechamento, sobre o papel da Constituio, sobre suaoutorga em 1824; sempre considerando Pernambuco nessas reflexes. Os textos de frei Caneca encontram-sepublicados em CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Obras Politicas e Litterarias. t. 1. Organizao: AntonioJoaquim de Mello.Recife: Assemblia Legislativa, 1979.37 Sobre a Confederao do Equador ver, LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco: 1824. Recife: Massangana, 1989;MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independncia: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824; QUINTAS, Amaro. Aagitao republicana no nordeste.38 Algumas obras: ALARCO, Janine Pereira de Sousa. O saber o e o fazer: Repblica, Federalismo e Separatismo naConfederao do Equador. 109 f. Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade de Braslia, Programa dePs-Graduao em Histria, 2006; BERNARDES, Denis Antnio de Mendona. A idia do pacto social e oconstitucionalismo em Frei Caneca. Disponvel em: .Acesso em: 08 jan 2008; BRITO, Jos Gabriel de Lemos.A Gloriosa Sotaina do Primeiro Imperio (Frei Caneca). So Paulo:Companhia Editora Nacional, 1937; LEITE, Glacyra Lazzari. Organizao do Estado Nacional Brasileiro:o pensamentode Frei Caneca. Captado em: . Acesso em: 03 fev. 2008; LIMA,Kelly Cristina de Azevedo. Frei Caneca: entre a liberdade dos antigos e a igualdade dos modernos. CAOSRevistaEletrnica de Cincias Sociais, Joo Pessoa, n. 12, p. 126-196, set. 2008; LYRA, Maria de Lourdes Viana. Ptria docidado: A concepo de ptria/nao em Frei Caneca. RevistaBrasileira de Histria, So Paulo, v. 18, n. 36, 1998;MOREL, Morel. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria. Rio de Janeiro: FGV, 2000; NEVES, Guilherme Pereira das.Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a idia de imprio luso-brasileiro em Pernambuco(1800-1820). Ler Histria, Lisboa, n. 39, p. 35-58, 2000; RODRIGUES, Jos Honrio. Frei Caneca: a luz gloriosa do

    martrio. In: RODRIGUES, Jos Honrio. Histria: corpo do tempo. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 119-132;SILVA, Sandra Vieira da.A dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822.

    http://www.iea.usp.br/iea/artigos/bernardesfreicaneca.pdfhttp://www.iea.usp.br/iea/artigos/bernardesfreicaneca.pdfhttp://www.fig.br/artigos/dir/n2/lglacyra.dochttp://www.fig.br/artigos/dir/n2/lglacyra.dochttp://www.iea.usp.br/iea/artigos/bernardesfreicaneca.pdf
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    nao brasileiro39. E deste ponto de vista, o carmelita teve sua imagem amplamente identificada

    com a de um heri poltico do perodo da independncia, um heri da nao. Entretanto, tais

    trabalhos no se reduzem totalidade das anlises sobre frei Caneca. Existem estudos de

    perspectivas diversas.

    Dentre as muitas anlises que examinaram esse personagem, nos ocuparemos de apenas

    algumas delas, a saber: Ptria do cidado: A concepo de ptria/nao em Frei Caneca, de Maria de

    Lourdes Viana Lyra;Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a ideia do imprio luso-

    brasileiro em Pernambuco (1800-1822), de Guilherme Pereira das Neves; Frei Caneca: entre Marlia e a

    Ptria, de Marco Morel; eA dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822, de

    Sandra Vieira da Silva. Buscaremos, sobremaneira, abordar as releituras empreendidas em torno

    das ideias canecianas de ptria e nao (que tanto serviram a uma historiografia nacionalista que

    consolidou a heroica imagem de Caneca) e sobre sua participao no movimento pernambucano

    de 1817.

    Tornou-se lugar comum reconhecer frei Caneca como um heri nacional. Isso se deveu,

    em muito, ao modo como a linguagem de seus textos, repleta de termos como nao, liberdade,

    ptria e patriotismo, foi lida pelos historiadores. Nessa linha de anlise encontramos, por

    exemplo, o conhecido artigo de Maria de Lourdes Viana Lyra: Ptria do cidado: a concepo de

    ptria/nao em Frei Caneca, de 1998. Nele a autora buscou examinar a ideia de ptria concebidapor Caneca em sua Dissertao sobre o que se deve entender por ptria do cidado e deveres deste para com a

    mesma ptria. Em seu exame, a ptria de Caneca foi igualada ideia moderna de nao, no sentido

    de unidade polticao que para a autora estaria em consonncia com o contexto da poca, que

    registrou uma passagem da identidade nacional portuguesa, para a identidade nacional brasileira40.

    De sua perspectiva, Caneca foi compreendido como um precursor da independncia, que

    pensava e agia, j no incio de 1822, visando defender o Brasil enquanto nao.

    Entretanto, diferentemente de Viana Lyra, Guilherme Pereira das Neves buscou fazeruma releitura da noo de ptria defendida por frei Caneca. O autor tambm examinou a

    Dissertaodo frei, todavia, com uma abordagem renovada, indicou que a defesa da ptria, levada

    a efeito por Caneca, no correspondia a uma defesa da nao brasileira, mas sim, e antes de tudo,

    da ptria pernambucana e da nao portuguesa, em consonncia com o ideal do imprio luso-

    39A ttulo de exemplo, destacamos dois destes trabalhos: LYRA, Maria de Lourdes Viana. Ptria do cidado: Aconcepo de ptria/nao em Frei Caneca.RevistaBrasileira de Histria, So Paulo, v. 18, n. 36, 1998; RODRIGUES,Jos Honrio. Frei Caneca: a luz gloriosa do martrio. In: RODRIGUES, Jos Honrio. Histria: corpo do tempo.

    So Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 119-132.40LYRA, Maria de Lourdes Viana. Ptria do cidado: A concepo de ptria/nao em Frei Caneca.

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    brasileiro difundido poca. Caneca criticava a rivalidade entre luso-brasileiros e luso-europeus,

    duas ramificaes de um mesmo tronco41e concebia como soluo para essa rivalidade a unio

    dos cidados residentes em Pernambuco, l nascidos ou estabelecidos, visando o bem comum.

    Segundo Guilherme Neves, a argumentao de que Caneca j assimilava, no incio de

    1822, a ideia de Brasil como ptria e, em especial, uma noo moderna de nao 42, pode ser

    questionada. Pois, embora Caneca abordasse em sua Dissertaoas desavenas entre as colnias

    inglesa e espanholas e suas metrpoles, desavenas estas que levaram aos processos de

    independncia anglo e hispano-americanos, ele o fez de modo a alertar para que o mesmo no

    ocorresse a Pernambuco e Amrica portuguesa. Desse modo, o que visou foi superar os

    conflitos entre luso-brasileiros e luso-europeus e no refor-los. Neves indica que, ao criticar os

    referidos conflitos, Caneca elogiava os liberais e isentos de prejuzo que faziam os esforos

    para incentivar os cidados de Pernambuco, nascidos ou no na provncia, a darem-se (...) as

    mos recprocas e (...) reuniremas foras para o bem geral e comum43. Assim, para Neves, a concepo

    de ptria caneciana, expressa enquanto

    uma famlia de irmos legais, como constituda de cidados de um mesmo foro edireito, suger[ia] uma acepo antiga e tradicional, bastante prxima daquela em vigorno Antigo Regime, e (...) no se distingu[ia], em sua essncia, da proposta de Rodrigode Souza Coutinho, em 1797 ou 1798, de que o Portugus nascido nas quatro partesdo mundo se julgue somente portugus e no se lembre seno da glria e grandeza damonarquia a que tem a fortuna de pertencer. 44

    Tal concepo de ptria em nada se assemelha moderna concepo de nao sugerida

    por Viana Lyra.

    Outro aspecto revisitado por historiadores, no que concerne aos estudos sobre a vida e

    obra de frei Caneca, remete sua participao no movimento revolucionrio pernambucano de

    1817. O envolvimento do frei com a Revoluo Pernambucana foi afirmado, repetidas vezes, por

    muitos historiadores45. Todavia, foi questionado por Marco Morel, historiador e bigrafo do

    frei46, e por Sandra Vieira da Silva, em recente dissertao acadmica47.

    41Frei Caneca apudNEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: aidia de imprio luso-brasileiro em Pernambuco (1800-1820). Ler Histria, Lisboa, n. 39, p. 35-58, 2000 p. 45.42NEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a idia de imprioluso-brasileiro em Pernambuco (1800-1820), p. 53.43Frei Caneca apudNEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a idia deimprio luso-brasileiro em Pernambuco (1800-1820), p. 54-55, grifo do autor.44NEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a idia de imprio luso-brasileiroem Pernambuco (1800-1820), p. 55.45Ver algumas obras:BERNARDES, Denis Antnio de Mendona.A idia do pacto social e o constitucionalismo em Frei

    Caneca; QUINTAS, Amaro. A agitao republicana no Nordeste; LIMA, Kelly Cristina de Azevedo. Frei Caneca: entre aliberdade dos antigos e a igualdade do modernos; MELLO, Evaldo Cabral de.A outra independncia: o federalismo pernambucano

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    Segundo Morel, ao contrrio do que afirmam muitos historiadores, Caneca no

    participou do movimento de 1817, em Pernambuco, embora tenha sido um dos homens punidos

    e enviados priso aps a derrocada da revolta. O historiador assinala que, de acordo com os

    documentos e testemunhos da poca conhecidos, no h nenhuma informao de que ele tenha

    participado de reunio, redigido texto ou tomado publicamente posio ao lado dos rebeldes 48.

    E, portanto, os autores que afirmaram o envolvimento do frei na rebelio em geral (...)

    [repetiram] informaes anteriores, mas sem checar as fontes documentais 49. Para ele, pistas

    deixadas por contemporneos de Caneca podem confirmar o fato.

    Uma das importantes pistas a serem consideradas a do cronista francs, L. F. de

    Tollenare, estabelecido em Pernambuco poca do movimento de 1817. Ele presenciou os

    acontecimentos revolucionrios e os relatou, mas nunca citou o nome de Caneca. A outra pista

    a de Francisco Muniz Tavares. Ele participou da rebelio, foi preso, como Caneca, e mais tarde

    escreveu seu conhecido livro Histria da Revoluo de Pernambuco em 181750,no qual, sem assinalar a

    participao de Caneca no movimento, somente repetiu as acusaes imputadas ao carmelita nos

    autos da devassa da revoluo, nos quais se registrava que Caneca tinha sido o capelo de uma

    tropa rebelde51.

    A fim de mostrar a debilidade das anlises que sustentam a efetiva participao do frei

    na revolta de 1817, Marco Morel tambm enfatiza o fato de que o movimento frustrou os planosde Caneca de assumir o cargo de lente de geometria nas Aulas Rgias, em Pernambuco. poca,

    enquanto ocupava o cargo de lente de geometria em Alagoas, o frei aguardava sua nomeao na

    provncia pernambucana algo quase certo, pois contava com o aval do ento governador de

    Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda e Montenegro52. Participar do movimento de 1817 seria,

    do ponto de vista de Morel, um contrassenso, pois tal ao impediria Caneca de tomar posse do

    cargo pblico pelo qual aguardava.

    de 1817 a 1824; RODRIGUES, Jos Honrio. Frei Caneca: a luz gloriosa do martrio ; RODRIGUES, Jos Honrio.Independncia: revoluo e contra-revoluo: a liderana nacional.V. 4. Rio de Janeiro; Livraria Francisco Alves Editora/USPEditora, 1975.46MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 45-49. Vale ressaltar que MarcoMorel um dos bigrafos de frei Caneca, mas no foi o primeiro. Esse foi Antonio Joaquim de Mello, que, alm debigrafo do frei, reuniu os textos do carmelita em obra publicada (CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. ObrasPoliticas e Litterarias).47SILVA, Sandra Vieira da.A dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822, p. 17-19.48MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria, p. 45.49______. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria,p. 45.50TAVARES, Francisco Muniz. Histria da Revoluo de Pernambuco em 1817. 3 Ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917.51MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria, p. 46.52MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria, p. 46.

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    E, por ltimo, ainda visando corroborar sua tese de que Caneca no participou,

    efetivamente, da Revoluo Pernambucana, Morel faz aluso a duas cartas escritas pelo carmelita

    durante sua priso na Bahia. Atravs delas, Caneca escreveu a d. Joo VI e a frei Inocncio

    Antnio das Neves Portugal, seu amigo e irmo de Villa Nova Portugal, ministro de d. Joo

    poca, alegando inocncia e explicando as razes de ter sido implicado no levante53.

    Sandra Silva endossa a argumentao de Marco Morel assinalando que, mesmo sendo

    comum a alegao de inocncia por parte dos presos, na esperana de que fossem absolvidos de

    suas acusaes, no caso de frei Caneca inexistiam testemunhas que confirmassem sua ligao

    com as atividades polticas da poca54. Alm disso, para ela, significativo considerar-se que

    (...) em todos os outros movimentos polticos nos quais se envolveu a partir de 1822, (...)

    [Caneca] assumiu (...) sua participao e fez sua prpria defesa55.

    Questionando o envolvimento do carmelita na Revoluo Pernambucana, Sandra Silva

    destaca, por fim, o testemunho de Francisco Muniz Tavares, em sua obra citada, Histria da

    Revoluo de Pernambuco em 1817. Segundo a autora, Muniz Tavares afirma no livro que parte dos

    presos em decorrncia do movimento de 1817 no se envolvera com o levante (...), e, para ela,

    Caneca, provavelmente, figurou entre eles56.

    Feitos os apontamentos relativos s propostas de reviso historiogrfica no que

    concerne vida e ao pensamento de frei Caneca, cabe, ento, examin-las em relao ao

    pressuposto do princpio da realidadereflexo central, a qual se dedica nosso trabalho.

    Algumas consideraes de Reinhart Koselleck tm muito a contribuir em relao ao

    dilema verdade e relativismo em histria. Isso porque o autor no ignora a questo do ponto de

    vista na produo do conhecimento histrico. Ele busca ali-lo a uma reflexo sobre a verdade,

    tornando o debate sobre realidade e perspectivismo menos dualista, e faz, nessa medida, uma

    constatao bastante honesta sobre a posio do historiador frente pesquisa57: a cincia

    histrica atual se encontra (...) sob duas exigncias mutuamente excludentes: fazer afirmaes

    verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar o relativismo delas58. Essa colocao, a nosso

    ver, longe de reforar um relativismo absoluto, lana luz sobre algo fundamental: o historiador

    53______. Frei Caneca: entre Marlia e a Ptria, p. 47-49.54SILVA, Sandra Vieira da.A dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822, p. 18.55______.A dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822, p. 18.56______.A dissertao de frei Caneca: esforo para uma definio de ptria em 1822, p. 18-19.57O livro de 1979, mas foi traduzido e publicado no Brasil somente em 2006.58 KOSELLECK, Reinhart. Ponto de vista, perspectiva e temporalidade contribuio apreenso historiogrfica da histria. In:

    KOSELLECK, Reinhart Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto;Editora PUC Rio, 2011, p. 161.

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    mantm seu compromisso com a verdade, mesmo que no a considere absoluta. E, nesse sentido,

    possvel encarar a possibilidade de uma perspectiva revisionista sem negar o princpio da

    realidade.

    De modo semelhante a Ginzburg, o historiador alemo, Reinhart Koselleck, tambm

    indica que a histria associa-se narrativa esta, abordada por Koselleck sob o vis do que

    denomina, em seu trabalho, como premissas tericas apropriadas na prtica hist oriogrfica. A

    partir dessas premissas que o historiador formula as perguntas sem as quais no desenvolveria

    sua pesquisa. Koselleck assinala, e neste ponto queremos nos deter, que afirmar a existncia de

    premissas tericas que permitam a formulao de mltiplas interpretaes, ou de uma

    interpretao em detrimento de outras, mesmo trabalhando-se com documentos iguais, no

    corresponde a afirmar a existncia de um relativismo absoluto. No se defende que a investigao

    terica tenha carta branca para formular uma narrativa que sustente qualquer hiptese, pois,

    segundo o autor, a crtica das fontes conserva sua funo inamovvel59. Segundo Koselleck,

    uma fonte no pode dizer nada daquilo que cabe a ns [historiadores] dizer.No entanto, ela nos impede de fazer afirmaes que no poderamos fazer. Asfontes tm poder de veto. Elas nos probem de arriscar ou admitirinterpretaes as quais, sob a perspectiva da investigao de fontes, podem serconsideradas simplesmente falsas ou inadmissveis (...).60

    As ideias do historiador alemo no diferem muito das de Ginzburg. Ambos assinalam apreponderncia das fontes documentais. E, como Koselleck, Ginzburg reflete sobre

    possibilidades historicamente determinadas que so realidades possveis, no absolutas,

    embasadas na anlise das fontes e da conjuntura em que elas se inserem. Para Carlo Ginzburg,

    essas possibilidades, diferem da fonte em si e se apresentam acompanhadas de expresses como

    talvez, tiveram de, pode-se presumir, certamente (que em linguagem historiogrfica costumam

    significar muito provavelmente)61.

    Retomando as propostas de anlise revisionistas sobre a vida e a obra de frei Caneca,aqui abordadas, cabe destacar: nenhuma delas dedica-se a especulaes ou afirmaes no

    documentadas e, portanto, no comprometem a ideia da existncia da realidade. Em vrias

    passagens dos textos os autores citados trazem lembrana a necessidade e centralidade dos

    testemunhos do passado e da historicizao dos fatos e ideias apresentadas. Assim, Guilherme

    Neves localiza o escrito de Caneca no contexto do imprio luso-brasileiro e da ilustrao

    59______. Ponto de vista, perspectiva e temporalidadecontribuio apreenso historiogrfica da histria, p. 187.60______. Ponto de vista, perspectiva e temporalidadecontribuio apreenso historiogrfica da histria, p. 188.61GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de MartinGuerre, de Natalie Zemon Davis, p. 182-183.

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    portuguesa, recorrendo sempre Dissertaodo frei, por ele analisada. Do mesmo modo, Morel e

    Silva reivindicam uma ateno maior aos testemunhos da poca, que quando negligenciados

    comprometem o entendimento de questes do passado e a produo do conhecimento histrico.

    Observa-se, nesse sentido, que o compromisso com uma realidade, embora no explicitado, faz-

    se presente. Todos os questionamentos formulados, todas as diferentes possibilidades

    interpretativas, decorrem de um apelo ateno s fontes documentais e linguagem dos

    testemunhos do passado.

    Torna-se evidente, portanto, que levar a efeito propostas de reviso, de releitura do

    passado, no implica, necessariamente, em negar-se a realidade. Com o devido rigor terico-

    metodolgico e a necessria ateno aos registros do passado, s fontes, sua historicidade,

    possvel, e relevante, revisar sem negar a existncia da realidade histrica e o acesso mesma.

    Consideraes finais

    Em um de seus ensaios, Carlo Ginzburg assinalou que hoje, palavras como verdade

    ou realidade tornaram-se impronunciveis para alguns, a no ser que sejam enquadradas por

    aspas escritas ou representadas por um gesto62. Temas como os da veracidade do conhecimento

    histrico, do acesso realidade, ou da narrativa em histria, esto circunscritos no debate

    enunciado atravs desse fragmento. E foi sobre esse debate, genericamente expresso por meio do

    dualismo verdade/relativismo, que tentamos refletir ao longo de nosso trabalho. Mais

    especificamente, procuramos examinar se o revisionismo historiogrfico , por si s, capaz de

    negar a existncia da realidade ou da verdade em histria.

    Analisando os embates de Ginzburg com autores e pressupostos tidos, por ele, como

    demasiado relativistas, pudemos perceber o compromisso tico e histrico que o mobilizou. Seu

    esforo em responder s posturas cticas em relao histria deu-se quando ele percebeu as

    implicaes morais e polticas, alm de cognitivas, da tese ceticista que na sua essncia suprimia

    a distino entre narraes histricas e narraes ficcionais63. E, assim, seu posicionamento

    contra as anlises que negavam a existncia do holocausto associou-se crtica s teorias

    relativistas, que tendiam a no diferenciar histria e fico e comprometiam a possibilidade de um

    conhecimento histrico.

    As perspectivas cticas foram vistas por Ginzburg como uma espcie de desservio

    histria, pois se embasaram em abstraes desvinculadas da realidade da pesquisa. E, desse ponto

    62GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictcio, p. 17.63______. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictcio,p. 8.

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    de vista, ele assinalou que reflexes de nvel terico, que discutem sobre a narrativa histrica, a

    realidade e a verdade, por exemplo, devem estar conectadas ao campo da prtica historiogrfica,

    pois a que adquirem sentido64. Fora desse mbito podem conduzir, no limite, ao niilismo.

    Outro aspecto importante que pudemos perceber foi que o princpio da realidade, tal

    como defende Ginzburg, no coincide com a ideia de total objetividade no desenvolvimento da

    pesquisa. O autor no ignora a subjetividade do historiador na construo de suas anlises, mas

    tambm no nega o seu compromisso com a verdade. De sua perspectiva o verdadeiro um

    ponto de chegada e no de partida, pois, por exemplo, se produz histria a partir documentos

    falsos ou verdadeiros, mas com vistas a um compromisso com a verdade, sendo indispensvel

    que se estabelea a falsidade ou a autenticidade do documento analisado65. Tomam, assim, lugar

    central na pesquisa as evidncias do passado. So os documentos e o modo como o historiador

    os trabalha que diferenciam histria e fico. Relembrando Koselleck, no h como questionar

    que as fontes tenham poder de veto66, ainda que o conhecimento histrico produzido seja algo

    distinto da fonte em si, como mostra o autor. , primeiramente, a fonte que permite ou

    desautoriza um estudo. E, nesse sentido, o pressuposto do relativismo no exclui, diretamente,

    qualquer princpio de realidade.

    Cabe salientar que muitas releituras historiogrficas reivindicam uma ateno maior s

    fontes e rigor ao trat-las. O comprometimento por parte do historiador com a produo de umconhecimento verdadeiro continua fazendo parte de sua tarefa.

    Feitas todas essas consideraes chegamos a um ponto sob o qual nos parece

    importante refletir: um dos maiores crticos de Carlo Ginzburg no Brasil, no que se refere ao

    princpio da realidade, como j apontamos anteriormente, Durval Muniz de Albuquerque

    Jnior. As crticas do autor ao pressuposto da realidade ginzburgiano deram-se, principalmente,

    pelo fato de que para Albuquerque Jnior, distintamente do que concebe Ginzburg, realidade e

    verdade so discursos. De sua perspectiva, para alm de uma simples negao da realidade ou daverdade, o que se faz, portanto, perceb-las diferentemente do historiador italiano. Assim, vale

    pena observar que, mesmo enquanto discursivas, para Albuquerque Jnior, no se admite que

    realidade ou verdade em histria sejam completamente relativas, pois os discursos so

    constructos scioculturais e esto, portanto, inseridos num dado tempo e espao e so, por esse

    64GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades margem de Il ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis, p. 187-188.65______.O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictcio,p. 13-14.66 KOSELLECK, Reinhart. Ponto de vista, perspectiva e temporalidade contribuio apreenso historiogrfica da histria, p.188.

  • 8/13/2019 O princpio da realidade nega o revisionismo? O exemplo de anlises revisionistas da vida e obra de frei Caneca -

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    O princpio da realidade nega o revisionismo?O exemplo de anlises revisionistas

    da vida e obra de frei Caneca

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG

    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 253

    tempo e espao, limitados. No queremos sustentar que Ginzburg e Albuquerque Jnior

    abordem um nico conceito de realidade, mas sim que, mesmo na distino, a presena de

    alguma ideia de realidade faz-se constante na abordagem de ambos os historiadores e na

    historiografia como um todo. Assim, mesmo entre as discordncias quanto s concepes de

    realidade, na prtica historiogrfica ela no negada. Isto se torna, na via do que viemos

    refletindo at aqui, um indcio de que no h como se negar a realidade. E para isso, para no

    neg-la, assumem papel fundamental os campos da pesquisa e produo do conhecimento

    histrico. considerando esses mbitos que temos a possibilidade de sair das negaes

    demasiado abstratas e infrutferas.

    Acreditamos sim ser possvel um exerccio revisionista, que relativize o que j foi

    produzido em histria, que no negue o princpio da realidade. As revises, resultantes da

    pluralidade de perspectivas analticas, so vlidas e necessrias para a ampliao das reflexes

    sobre um dado tema. Como mostramos em relao s releituras feitas sobre aspectos ligados

    vida e obra de frei Caneca, as revises historiogrficas so produtivas quando atreladas a

    procedimentos tericos, metodolgicos e investigao de fontes de pesquisa. Negar, portanto, o

    relativismo, por si s, em favor de levar a efeito a defesa da realidade parece-nos infundado, e

    com alguma certeza, em nossa concepo, no foi essa a proposta de Ginzburg.

    Recebido em: 24/07/2012Aprovado em: 21/12/2012