o pretÉrito do futuro É imperfeito? análise da fusão...

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI HENRIQUE MARCELINO DOS SANTOS O PRETÉRITO DO FUTURO É IMPERFEITO? Análise da fusão do futuro no presente em Minority Report a Nova LeiSÃO PAULO 2013

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

HENRIQUE MARCELINO DOS SANTOS

O PRETÉRITO DO FUTURO É IMPERFEITO?

Análise da fusão do futuro no presente em ―Minority Report – a Nova Lei‖

SÃO PAULO 2013

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HENRIQUE MARCELINO DOS SANTOS

O PRETÉRITO DO FUTURO É IMPERFEITO?

Análise da fusão do futuro no presente em ―Minority Report – a Nova Lei‖

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Audiovisual, da Universidade Anhembi Morumbi, Laureate International Universities, sob a orientação da Profa. Dra. Bernadette Lyra.

SÃO PAULO 2013

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HENRIQUE MARCELINO DOS SANTOS

O PRETÉRITO DO FUTURO É IMPERFEITO?

Análise da fusão do futuro no presente em ―Minority Report – a Nova Lei‖

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Audiovisual, da Universidade Anhembi Morumbi, Laureate International Universities, sob a orientação da Profa. Dra. Bernadette Lyra.

Aprovado em _____/_____/_____

______________________________________________ Profª Dra. Bernadette Lyra

______________________________________________ Profª Dra. Laura Loguercio Cánepa

______________________________________________ Prof. Dr. Alfredo Luiz Suppia

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Aos meus pais, irmãos e familiares que sempre

estarão ao meu lado.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que nunca deixaram de apoiar minha incessante busca pelo

conhecimento e pelo aprendizado.

Aos meus irmãos, sempre presentes, que me inspiram e me permite inspirá-los.

Aos meus mais diversos familiares, pelos momentos de lazer e prazer diários.

A todos os colegas de Ensino Médio, Ensino Superior, Pós-Graduação e Mestrado,

que tanto adicionaram à minha vivência e experiência profissionais e acadêmicas.

A todos os colegas de trabalho, das empresas que tive o prazer de ter sido e/ou de

ser, atualmente, o colaborador.

À Dayana, minha musa inspiradora.

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SANTOS, H. M. O pretérito do futuro é imperfeito? Análise da fusão do futuro no presente em ―Minority Report – a Nova Lei‖. Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, 2013.

RESUMO

A presente pesquisa toma como objeto de estudo a obra cinematográfica ―Minority Report – A Nova Lei‖, dirigida por Steven Spielberg e baseada na obra literária ―The Minority Report‖, escrita pelo mestre da ficção-científica Philip K. Dick, analisando-a através das significações dos conceitos de ―passado‖, ―presente‖ e ―futuro‖ à atual sociedade para, então, buscar compreender a hibridização dos gêneros da ficção científica, ação e film noir ocorrida neste filme, e entender o fenômeno da fusão do presente e do futuro no comportamento contemporâneo através do imaginário tecnológico. Palavras-chave: Análise fílmica. Gênero cinematográfico. Hibridização de gêneros. Cultura pop. Imaginário tecnológico.

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SANTOS, H. M. Is the future’s past imperfect? An analysis of the fusion of future into the present in Minority Report. University Anhembi Morumbi. São Paulo, 2013.

ABSTRACT

This study has as object of study the cinematographic work ―Minority Report‖, directed by Steven Spielberg and based on the literary work ―The Minority Report‖, written by the Science Fiction master Philip K. Dick, analyzing it through the significances of ―past‖, ―present‖ and ―future‖ concepts for the nowadays society, in order to try to understand the hybridization of sci-fi, action and film noir genres occurred in this movie, and understand the present-future fusion phenomenon within the contemporary behavior through the technological imaginary. Keywords: Filmic analysis. Cinema genre. Genre hybridization. Pop culture. Technological imaginary.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Angelus Novus, Paul Klee, 1920 ............................................................... 16

Figura 2. John Anderton operando sua máquina ...................................................... 31

Figura 3. Esferas à frente que incriminam John Anderton ........................................ 32

Figura 4. Dra. Hineman ............................................................................................ 33

Figura 5. Cirurgia de troca de globos oculares ......................................................... 33

Figura 6. Agatha, a Precog ....................................................................................... 34

Figura 7. Anderton encontra Leo Crowe ................................................................... 35

Figura 8. Lamar Burgess e Anne Lively .................................................................... 35

Figura 9. Investigação do ambiente do futuro crime ................................................. 40

Figura 10. Flashback holográfico com filho de Anderton .......................................... 42

Figura 11. Publicidade contextual interativa em shopping ........................................ 44

Figura 12. Capa de game Minority Report – Everybody Runs à esquerda

e capa do conto original The Minority Report, de Philip K. Dick ................................ 51

Figura 13. Agente Danny Witwer em discussão com Anderton ................................ 53

Figura 14. Edição de Fantastic Universe com The Minority Report .......................... 59

Figura 15. Cena de ação em Minority Report ........................................................... 69

Figura 16. Precogs em ―Minority Report – A Nova Lei‖ ............................................ 73

Figura 17. ―Em terra de cego, quem tem um olho é rei‖ ........................................... 74

Figura 18. Entrada da loja Gap ................................................................................. 79

Figura 19. Foco da cena através do halo ................................................................. 80

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

1 MODERNIDADE DO EXTENSO PRESENTE ........................................................ 12

1.1 PERCEPÇÃO TRADICIONAL DE PASSADO, PRESENTE E FUTURO ........ 12

1.2 REESCRITURA DO PRESENTE FRENTE À INOVAÇÃO TECNOLÓGICA .. 15

1.3 FUSÃO TEMPORAL PRESENTE-FUTURO ................................................... 17

2 IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO DO EXTENSO PRESENTE RETRATADO EM

―MINORITY REPORT – A NOVA LEI‖ ..................................................................... 21

2.1 O ESPECTADOR FRAGMENTADO NA CULTURA POP ............................... 21

2.2 ANÁLISE FÍLMICA DE ―MINORITY REPORT – A NOVA LEI‖ ....................... 25

2.2.1 Dimensão 1.................................................................................... 27

2.2.2 Dimensão 2.................................................................................... 58

2.2.3 Dimensão 3.................................................................................... 66

2.2.4 Dimensão 4.................................................................................... 80

2.3 EXTENSO PRESENTE DA FICÇÃO REFLETIDO NA REALIDADE .............. 83

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 87

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 89

ANEXO A – CONTO ORIGINAL THE MINORITY REPORT .................................... 94

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INTRODUÇÃO

Já estamos no futuro? Uma pergunta aparentemente sem coerência temporal é a

força-motriz da presente pesquisa, que representa o esforço do pesquisador em

analisar profundamente a obra cinematográfica ―Minority Report – a Nova Lei‖, de

Steven Spielberg, em busca de elementos e fatos que auxiliassem na reflexão sobre

a existência de um presente extenso, de funcionamento contrastante com os

convencionados presente e futuro no imaginário humano, através de uma vasta

gama de teóricos das mais diversas áreas, cuja contribuição variou de simples

frases repletas de insights até tratados acadêmicos inteiros que nortearam as

análises do pesquisador. Entretanto, esta pesquisa não trilha em profundidade pelos

caminhos da Antropologia, Sociologia ou Filosofia, mas usa tais referências para

embasar a análise de uma obra audiovisual que auxiliasse neste apontamento.

Sendo assim, autores selecionados são empregados a partir de suas áreas de

conhecimento, sob a restrição de a análise ocorrer sobre o produto audiovisual e

não sobre a abrangente realidade contemporânea.

Entre tantas opções dos mais diferentes períodos, diretores e estilos, a obra

cinematográfica escolhida apresenta elementos e detalhes muito curiosos e capazes

de suscitar discussões muito produtivas. A começar pelo fato de ser uma adaptação

de uma das diversas obras literárias de ficção científica do norte-americano Philip K.

Dick, atualmente um grande ícone do gênero da ficção científica literária em todo o

mundo, infelizmente reconhecido apenas muito perto de seu falecimento, em 1982.

Entre outras obras cinematográficas que levam a reflexões sobre temas altamente

atrativos como predestinação, existencialismo, pós-industrialismo e muitos outros

temas, estão filmes como o clássico ―Blade Runner – O Caçador de Andróides‖, o

frenético ―Vingador do Futuro‖ (em ambas as versões) e o recente ―Agentes do

Destino‖. Muitos outros filmes fazem parte da filmografia baseada na genialidade

das obras dickianas, mas ―Minority Report – A Nova Lei‖, apresenta um cenário

inquietantemente próximo à atualidade em que vivemos, de maneira que os

elementos diegéticos e o contexto em si facilitam a análise sobre a percepção de

presente e, principalmente, futuro por parte dos personagens da narrativa.

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Detectada no primeiro capítulo desta pesquisa, a misteriosa fusão temporal do

presente com o futuro sentida nos produtos audiovisuais contemporâneos é o

primeiro ponto de elevação da discussão, trazendo a expressão ―presente extenso‖

de Gumbrecht (2005) como elemento fundamental e expressão sintética eficaz para

representar a tal fusão temporal. A tentativa de compreensão do presente extenso

vem acompanhada de levantamentos sobre a posição do indivíduo pós-moderno

sobre seu próprio presente em constante reescritura, o veemente afastamento do

passado com relação à própria linha histórica, e o fenômeno da atração do futuro de

maneira a permitir que frases de cunho comercial e publicitário como ―o futuro está

aqui‖ sejam facilmente compreendidas e aceitas.

Em seguida, no segundo capítulo, é analisada a natureza fragmentada do indivíduo

dividido entre as esmagadoras forças do passado, presente e futuro sobre seu

imaginário, de forma que a cultura pop, massificada, tenha a superficialidade

necessária ao espectador que não mais se vincula à memória, e sim aos pontos de

interconexão entre os mais variados produtos culturais. A partir desta observação

inicial sobre o espectador fragmentado, o restante do capítulo analisa

minuciosamente a obra ―Minority Report – A Nova Lei‖ sob a metodologia de Lyra

(2011), a qual está construída organicamente em aula através das contribuições e

opiniões dos colegas mestrandos e a maestria e experiência da professora em

coletar o melhor das discussões para a consolidação desta ―versão beta‖ da

metodologia usada como trilha para análise do filme em questão. O pesquisador

teve o imenso privilégio de tê-la como orientadora da presente pesquisa,

comprovando, assim, a eficácia da metodologia na prática.

Ao aprofundar no filme e analisar minuciosamente cada detalhe referente à

diegese1, aos elementos da produção cinematográfica e até mesmo dos contextos

socioculturais e econômicos que possivelmente influenciaram na produção de

―Minority Report – A Nova Lei‖, é possível trazer à tona os elementos diegéticos e

extra-diegéticos que nos permitem refletir sobre a influência da tecnologia sobre o

imaginário humano, imaginário este que se manifesta na forma dos mais diversos

produtos culturais como o filme tomado como objeto de estudo para a presente

pesquisa.

1 O significado de diegese, segundo Goliot-Lété & Vanoye (2012, p. 38) é ―a história e seus circuitos,

a história e o universo fictício que pressupõe (ou ‗pós-supõe‘), em todo caso, que lhe é associado‖.

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Assim, mesmo uma obra ficcional contém em si a essência dos anseios da

sociedade vigente no momento de sua criação, o que desperta discussões sobre a

aproximação da ficção à realidade e, no caso de ―Minority Report – A Nova Lei‖,

discussões sobre a possibilidade do espectador do filme ter a diegese do filme como

uma realidade plausível, discussão esta que permeará o segundo capítulo da

pesquisa.

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1 MODERNIDADE DO EXTENSO PRESENTE

1.1 PERCEPÇÃO TRADICIONAL DE PASSADO, PRESENTE E FUTURO

Por décadas, ou séculos, a percepção do homem quanto à passagem do tempo se

mostrou sempre linear, como uma cadeia inflexível de eventos que, quando já

tinham ocorrido, estavam no tempo passado; quando ainda em ação, no tempo

presente; e quando ainda nem tinham acontecido, no tempo futuro. Arendt (1997, p.

37) clarifica a passagem destes tempos a partir da inserção do homem, de maneira

que

(...) apenas porque o homem se insere no tempo, e apenas na medida em que defende seu território, o fluxo indiferente do tempo parte-se em passado, presente e futuro; é essa inserção (...) que cinde o contínuo temporal em forças que, então, por se focalizarem sobre a partícula ou corpo que lhes dá direção, começam a lutar entre si e a agir sobre o homem.

Esta clara separação dos tempos gerava no imaginário humano suas análises sobre

o que passou, para auxiliar em decisões do presente e, então, permitir especulações

sobre o futuro. Em outras palavras, ―apostávamos na possibilidade de adaptar ao

respectivo presente de tal modo as experiências extraídas do passado que elas se

tornavam pontos de orientação para a escolha do futuro‖ (GUMBRECHT, 2005).

Gumbrecht (2005) complementa seu próprio pensamento quando levanta a questão

de que o passado, ou experiência histórica, apresenta eventos e fenômenos que se

conformam no presente e, assim, permitem estimar o futuro.

Dentro desta definição de Gumbrecht (2005), Groys (2010, p. 120) traz à tona um

importante dado:

(...) o presente como tal era visto no contexto da modernidade em geral como algo negativo, como algo que deveria ser superado em nome do futuro, algo que desacelera a realização dos nossos projetos, algo que atrasa a chegada do futuro.

Mariuzzo (2010, p. 1) reitera ao afirmar que a Modernidade

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(...) associa tradição com atraso. Abrir as portas da Modernidade significava destruir as marcas do passado, suas igrejas e seus museus em um processo de destronamento de toda tradição. Era como se a história tivesse que ser emancipada de si mesma. O moderno deve se livrar das amarras do passado.

Assim, temos um tempo presente que fere o progresso por atrasar a realização dos

projetos voltados ao futuro, e este futuro como um tempo de concretização – estar

no presente é estar constantemente defasado e incompleto.

Uma metáfora capaz de explicar sucintamente a percepção do homem da

Modernidade em luta contra seu passado e seu futuro está em uma das obras de

Kafka, que Arendt (1997, p. 36) relaciona à passagem do tempo histórico:

A cena é um campo de batalha, no qual se digladiam as forças do passado e do futuro; entre elas encontramos o homem que Kafka chama de ―ele‖, que, para se manter em seu território, deve combater ambas. Há, portanto, duas ou mesmo três lutas transcorrendo simultaneamente: a luta de ―seus‖ adversários entre si e a luta do homem com cada um deles. Contudo, o fato de chegar a haver alguma luta parece dever-se exclusivamente à presença do homem, sem o qual ―suspeita-se‖ – as forças do passado e do futuro ter-se-iam de há muito neutralizado ou destruído mutuamente.

Neste contexto da Modernidade é que os ―prisioneiros do presente‖ elaboram os

vanguardistas manifestos, materializações do que se percebe como insatisfatório e

incompleto – ―é a natureza ‗não-construída‘ ou em construção do futuro que guia os

manifestos‖ (OBRIST, 2011). Sob esta égide ideológica, os manifestos declaram sua

ansiedade pelo progresso e pela evolução, reservando unicamente ao futuro

(inatingível aos indivíduos presos ao presente) a efetivação de seus objetivos,

embora sob a ciência de que o tempo vindouro será sempre incerto:

(...) o problema de quaisquer escrituras sobre o futuro (é que) ele é desconhecido. Sabemos do que não gostamos sobre o presente e o porquê, por isso todos os manifestos são os melhores em denúncias. Quanto ao futuro, só temos a certeza que o que fizermos terá consequências imprevistas (HOBSBAWM, 2008 apud OBRIST, 2010, s.p.).

Enquanto a Modernidade supracitada tinha o presente como um estágio negativo na

realização dos projetos, a Pós-Modernidade traz o antagonismo a esta percepção –

agora, o dogma funda-se em uma ―retórica da ruptura radical com o passado e da

novidade absoluta‖ (FELINTO, 2011, p. 43).

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Este novo pensamento torna o presente não mais um ponto negativo, mas sim o

verdadeiro espaço onde ocorrem as revoluções e as experiências, sem um

necessário passado que seja objeto de ponderação para as decisões do presente, e

sem um futuro onde os projetos do presente se consolidam. Em outras palavras:

(...) enquanto na Modernidade o mundo melhor que se buscava era sempre outro mundo – do futuro, da revolução, do romantismo – hoje, esse idealismo projetado para fora do mundo que conhecemos foi abandonado (MARIUZZO, 2010, p. 1).

Porém, ―desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do

homem vagueia em trevas‖ (TOCQUEVILLE, 1956 apud ARENDT, 1997, p. 32), de

forma que Felinto (2011, p. 44) aponta esta ruptura com o passado principalmente

quando cita a ainda misteriosa cibercultura, que ―apresenta também uma forte

tendência ao apagamento de sua dimensão histórica‖. Para este teórico, a

cibercultura se mostra como um evento sem precedentes ou causas, tendo surgido

puramente do momento tecnocultural em que a humanidade se encontra – assim

como nos discursos da cibercultura, ―os discursos da inovação tecnológica (...)

partem frequentemente de uma ‗tábula rasa‘ do tempo. Nada existia antes do novo e

nada existirá depois, senão ele mesmo‖ (FELINTO, 2011, p. 44).

Desta maneira, percebe-se uma massiva percepção de que não há mais uma

ligação inseparável entre os três tempos, e que apenas o presente é importante para

o desenvolvimento e a experiência humana, o que Felinto (2011, p. 46) declara

como um ―decidido repúdio do tempo‖, enquanto Arendt (1997, p. 31) diagnostica

que

(...) parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo e, portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem.

A partir desta nova noção do tempo e da frágil ligação do passado e do futuro ao

presente, até mesmo os discursos ideológicos se modificam – os famosos

manifestos da Modernidade poderiam ser encarados como um acessório démodé de

um passado que não sabia viver a plenitude e as ininterruptas novidades do

presente –, de forma que ―esse sentido de inovação permanente repousa numa

percepção de que o modernismo estaria agora completo, e nossas sensibilidades

temporais familiares, próximas de seu fim‖ (FELINTO, 2011, p. 51).

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1.2 REESCRITURA DO PRESENTE FRENTE À INOVAÇÃO TECNOLÓGICA

Com o Pós-Modernismo, a percepção do tempo se modifica na forma de

(...) um tempo fracionado pelo advento de uma era digital que representa e simboliza um tempo descontínuo, que resulta em uma percepção de que agora ele passa aos saltos diante de nós, despedaçado, como nos relógios digitais e nos tantos outros aparatos resultantes das novas tecnologias da informação (VOGT, 2010, p. 2)

Revisando o significado da contemporaneidade que, nas palavras de Vogt (2010, p.

2) é um conceito agora ―ligado à velocidade da inovação tecnológica desenvolvida

também de forma acelerada, para manter a sociedade consumindo‖, Mariuzzo

(2010, p. 2) cita que ―o (indivíduo) pós-moderno não acredita na ideia de progresso

inexorável ou na evolução para um mundo melhor e inaugura o tempo do presente

plano, contínuo, da eterna repetição e da monotonia‖.

Uma vez que ―o confinamento no presente resulta do eclipsamento do futuro, da

ideia de promessa‖ (MATOS apud MARIUZZO, 2010, p. 2), não é necessário e nem

possível rumar ao futuro para inovar, revolucionar e despedaçar paradigmas, e

então, os olhos pós-modernos se voltam à sobreposição e anulação do recente, com

indivíduos que realizam suas (r)evoluções sem saírem de seu próprio presente. Nas

palavras de Obrist (2011, s.p.) ―ser contemporâneo significa retornar a um presente

onde nunca estivemos, resistir à homogeneização do tempo através de rupturas e

descontinuidades‖. Benjamin (1994, p. 226) usa a obra ―Angelus Novus‖ (Figura 1),

de Paul Klee (1920), em uma forte metáfora para este fenômeno:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

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Figura 1. Angelus Novus, de Paul Klee (1920). Pintura realizada com aquarela ácida e ponta seca de pincel. Fonte: Benjamin (1994).

Dentro desta tempestade de progresso, os efeitos das tecnologias que

continuamente se sobrepõem a outras tecnologias causam fortes mudanças no já

mencionado imaginário tecnológico. Felinto (2011, p. 49) afirma que:

(...) num movimento que encurta progressivamente o tempo, a dinâmica tecnológica cumpre uma função fetichista: é como se os objetos técnicos tivessem magicamente surgido do nada, sem precursores, sem antecedentes, sem história.

As origens da técnica e do conhecimento humano se diluem em discursos

messiânicos da mais nova novidade, que pouco tempo depois é eliminada na

próxima mais nova novidade, enquanto o passado se obscurece junto a um futuro

que não precisa mais chegar para realizar sonhos e projetos.

Em resumo, pode-se dizer que ―a atual representação pós-moderna do fim da

história se diferencia da moderna apenas através da convicção de que já não é

preciso esperar pela chegada definitiva do novo, pois ele já está aqui‖ (GROYS,

1992 apud FELINTO, 2011, p. 46) – definitivamente, discursos e obras ficcionais não

mais precisam assombrar pelas tecnologias futurísticas, uma vez que o assombro é

cultivado constantemente no presente.

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1.3 FUSÃO TEMPORAL PRESENTE-FUTURO

Este novo tempo presente, em que o assombro pelas novidades tecnológicas toma

conta do imaginário humano, demonstra que ―o mundo no sentido do velho ‗tempo

histórico‘ se transforma ‗mais velozmente do que em qualquer época anterior‘,

acelerando cada vez mais o ritmo da sua transformação‖ (GUMBRECHT, 2005),

sendo que ―na Pós-Modernidade a aceleração chegou ao seu limite‖ (MARIUZZO,

2010, p. 1). As transformações e revoluções são tragadas para acontecerem no

presente e não mais estarem reservadas ao misterioso futuro – todo esforço deve ter

seus frutos colhidos ainda no presente. Groys (2010, p. 121) concorda com

Gumbrecht (2005) quando atesta que o

(...) futuro infinito que conserva os resultados de nosso trabalho perdeu sua plausibilidade (...). O futuro é sempre planejado de novo e de novo – a mudança permanente das tendências culturais e modas torna improvável qualquer promessa de um futuro estável para uma obra de arte ou para um projeto político. E o passado também é permanentemente reescrito – nomes e eventos aparecem, desaparecem, reaparecem e desaparecem outra vez.

Neste sentido, Carvalho (2012, s.p.) diagnostica, em tom pessimista, que

(...) tudo é para ontem, esta antecipação não nos surge na ordem da fantasia, pois o passado tornou-se virtual e o futuro vivido antecipadamente no presente. Não temos a certeza do passado e o futuro determina o presente, descaracterizando-se como futuro a ser imaginado. Sendo assim, tudo o que se tem é o presente.

Gumbrecht (2005, s.p.) adiciona a constatação de que ―não vivenciamos mais o

futuro como ‗aberto‘, não mais como dimensão temporal das visões otimistas e

mesmo das utopias. O nosso futuro coletivo afigura-se bloqueado‖. Por bloqueado,

Gumbrecht (2005) remete à desobrigação do futuro em ser o resultado da mais

recente inovação tecnológica – meses, dias ou até horas depois da anunciação da

nova tecnologia supostamente revolucionária, pode ser lançada uma nova

tecnologia que supera supremamente a tecnologia anterior ou, nas palavras de Vogt

(2010, p. 2), a sociedade pós-moderna é ―movida pela permanente criação de

produtos tecnologicamente mais avançados, com novas funcionalidades, que

rapidamente são descartados para serem repostos pelo último lançamento‖ –, de

modo que o futuro continua incerto, mas menos importante de se compreender do

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que o próprio presente continuamente mutante. O presente, então, ―deixou de ser

um ponto de transição do passado para o futuro, tornando-se, em vez disso, um

lugar de permanente reescritura tanto do passado quanto do futuro‖ (GROYS, 2010,

p.122).

Nosso presente pós-moderno parece ter quebrado seu vínculo com o passado e

invadido o território do futuro,

(...) se expandindo num extenso presente (...) no qual o mundo não sofre uma transformação profunda. Esse presente é a inovação central em meio a uma forma alterada do tempo, que parece ter tomado o lugar do ―tempo histórico‖ (GUMBRECHT, 2005, s.p.).

Rezende (2011, s.p.) descreve este presente expandido de forma muito sinistra:

(...) viver neste presente, neste novo século, significa até o momento empreender uma viagem sem destino em um navio fantasma cujos motores são ativados pela nostalgia. (...) Os viajantes se sentem (ou se acreditam) felizes, tudo parece divertido e livre, em um ambiente pretensamente controlado, cientificamente confortável e futurista.

A partir da afirmação feita por Gumbrecht (2005), Groys (2010, p. 122) concorda e

também apresenta seu veredicto pouco otimista quando estabelece que ―estamos

empacados no presente, na medida em que ele se reproduz, sem levar a futuro

nenhum‖, reflexo dos já mencionados discursos pós-modernistas do imaginário

tecnológico, que devoram os planos vindouros para mantê-los como realizados já no

presente, através dos anúncios pretensamente messiânicos de novas tecnologias e

também das produções culturais que amansam os anseios humanos pelo futuro, ao

tornarem a constante releitura do presente mais interessante e premente que os

vislumbres do futuro.

Especialmente com relação a tais produtos culturais, ocorre sensível alteração

quanto ao modo como passaram a ser consumidos e sua contextualização no

imaginário tecnológico, trocando papéis com as discussões teóricas sobre tecnologia

e sociedade – ―enquanto que a reflexão teórica assume ares de narrativa ficcional e

fomentadora da absoluta liberdade do leitor, os produtos da cultura (romances,

filmes, obras de arte) tornam-se cada vez mais auto-reflexivos e teóricos‖ (FELINTO,

2005, p. 125).

A incompreensão das forças tecnológicas que influenciam o imaginário social e a

mitologização de suas características abre espaço para que a narratividade se torne

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necessária ao elucubrar sobre a tecnologia, e por isso, Felinto (2005, p. 125) chega

a dizer que ―não deve surpreender que certas obras de ficção (...) sejam tomadas

como autênticas peças de reflexão sobre a cibercultura‖. Por estas razões, os

discursos ciberculturais e tecnológicos assumem narrativas espantosas de afirmação

de sua natureza revolucionária e nova – embora o ―novo‖ se desmanche com a

mesma facilidade com que é apoderado pela próxima inovação. É importante,

contudo, deixar clara a forma como o ―novo‖ é referenciado na presente pesquisa.

De acordo com Vogt (2010, p. 2), a demanda pelo novo tem raízes advindas do

suposto fracasso da Modernidade e o desejo da contemporaneidade, levando o

indivíduo pós-moderno a um novo modus vivendi:

A velocidade das transformações do mundo e as novas tecnologias tornam o desejo de ser contemporâneo imperioso, inadiável. E é esse desejo que está ligado ao consumo, à permanente atração que se criou nos consumidores pela constante atualização de seus objetos, que tudo tem a ver com a aceleração, as angústias, as marcas materiais que diferenciam os indivíduos. (...) O consumo dos produtos da tecnologia é constantemente alimentado pela busca de novidades, por parte dos mesmos consumidores: é o mesmo consumindo o diferente, o novo.

Dentro deste contexto de consumo do diferente e do novo como forma de

acompanhar a fugaz sensação de contemporaneidade, o foco se mantém muito

específico, de maneira que ―o novo que se busca é o novo tecnológico, sem que isso

signifique nada além. Busca-se o novo não como uma promessa de futuro, mas

como uma desilusão em relação a um futuro melhor‖ (MARTINS apud MARIUZZO,

2010, p. 2). Como característica dos produtos intrinsecamente capitalistas, é fácil

concluir que

(...) com a ajuda da mídia, esse poderoso apelo para o consumo da novidade continua alargando o número de consumidores, mas agora com base em um princípio de organização que não privilegia mais a quantidade de consumidores, mas sim a capacidade de o mesmo consumidor consumir mais. Assim, há os consumidores da tecnologia e há os consumidores da sobra da tecnologia (VOGT, 2010, p. 2).

Entretanto, Felinto (2011, p. 52) declara que ―em uma afirmação constante do novo

– em uma narrativa do progresso linear sem descontinuidades – nada pode ser

verdadeiramente novo‖ (2011, p. 52), esvaziando, então, o sentido do ―novo‖ e

gerando no ser humano uma estranha sensação de que aquela suposta inovação

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seja irreal, embora ―uma ‗sensação do fictício de tudo que nos cerca‘ vem se dando

em todos os séculos, de uma maneira ou de outra‖ (SCHÄFFAUER, 2011, p. 228).

Schäffauer (2011, p. 228) complementa que ―no nosso tempo, porém, essa

sensação se modifica‖, atingindo o indivíduo pós-moderno com impacto muito mais

intenso que outrora e confundindo sua percepção de realidade e ficção a ponto de

não mais ter certeza do que é plausível e do que não é na tecnologia – afinal, é

possível que a fusão homem-máquina, viagens no tempo, clonagem humana,

construção de bases interplanetárias, mapeamento do pensamento e outras obras

da ficção científica já estariam ao alcance de quem pudesse pagar por tais

revoluções tecnológicas, ou já em uso experimental militar, como é comum

acontecer com lançamentos tecnológicos ao público.

Como exemplo e objeto de estudo desta pesquisa, a obra cinematográfica ―Minority

Report – A Nova Lei‖, de Steven Spielberg (2002), apresenta inovações tecnológicas

e conjunturas socioculturais facilmente aceitáveis na realidade em que nos

encontramos, embora apresente elementos formais que o posicionam como um

filme de ficção científica (como se discutirá no capítulo posterior). Pode-se concluir,

portanto, que a forma como este filme foi produzido mostrou-se eficaz ao induzir o

espectador a repensar se está assistindo a uma diegese futurística, puramente

imaginária, ou a uma leitura de seu mais provável futuro.

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2 IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO DO EXTENSO PRESENTE

RETRATADO EM ―MINORITY REPORT – A NOVA LEI‖

2.1 O ESPECTADOR FRAGMENTADO NA CULTURA POP

Diversos autores que estudam a sociedade contemporânea convencionaram que

vivemos em meio a uma cultura pop que influencia no comportamento do ser

humano e dos produtos culturais desenvolvidos, ao apresentar elementos

fragmentados e híbridos nestes produtos, como ocorre também em ―Minority Report

– A Nova Lei‖, elementos estes analisados e destacados ao longo da presente

pesquisa. Por esta razão, antes de analisar este filme, é fundamental deixar clara a

definição de cultura pop a ser utilizada como referência ao projeto. Segundo Sato

(2007, p. 12), ―a cultura pop é diferente da cultura popular e foi criada no século XX,

sendo, então, um fenômeno muito recente na cultura humana (...) a diferença básica

entre cultura pop e folclore está no uso da mídia e na criação e divulgação de novos

ícones e novos contos‖.

De certa forma ligada ao conceito frankfurtiano de ―indústria cultural‖, a cultura pop é

produzida pensando-se no consumo que terá, e não na simples expressão social, de

forma que ―quantidade ao invés de qualidade acaba sendo um elemento

característico do pop‖ (SATO, 2007, p. 12), com a definição complementar de Duprat

& Prysthon (2007, p. 8), de que esta cultura pop ―responde a uma demanda de um

público (...), operando a partir de um sistema regulado pelo mercado, que por sua

vez está sujeito à conformação da cultura como moda‖.

É de suma importância contextualizar a existência desta fragmentação que surge

nos desejos dos espectadores e, consequentemente, nos produtos culturais criados

para seu consumo. De acordo com Lozano (2009, p. 12),

(...) a demanda audiovisual (do atual espectador) iniciou um acelerado processo de fragmentação, em que cada vez mais são desenvolvidos produtos que não se imaginavam aptos a audiências entendidas como majoritárias e relativamente homogêneas,

suprindo preferências e imaginários tidos como coletivos, de nichos e também individuais em um mesmo produto cultural.

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Porém, esta fragmentação inerente aos produtos da cultura pop promove

(...) o desmonte das grandes narrativas e a suspensão da historicidade nas representações que saturam os meios de comunicação. Essa linguagem composta de uma série de puros presentes remonta à ruptura na cadeia dos significantes que (...) cerca a condição do esquizofrênico, onde a incapacidade de unificar passado, presente e futuro da sentença remete à incapacidade de associar passado, presente e futuro da vida psíquica (FRIDMAN, 1999, s.p.).

Mesmo sob ponderações potencialmente pessimistas – ―O que pode o sujeito

fragmentado? Apenas padecer? A própria ação é simulacro, flutuação permanente

cujo resultado é o éter da desintegração e do sofrimento vão?‖ (FRIDMAN, 1999,

s.p.) – dentro do raciocínio de Fridman (1999), este estilo pop elimina a antiga

percepção histórica presente nos produtos culturais e a substitui pelas narrativas

fragmentadas de uma cultura eminentemente visual, (onde) a singularidade se

constitui no emaranhado das emanações midiáticas que desfazem trajetos

historicamente encadeados – este emaranhado desloca do espectador enquanto lhe

fornece todos os elementos que sua mente, então fragmentada, demanda.

Por sua natureza comercial, conceitos mercadológicos parecem mais confiáveis para

se analisar um produto da cultura pop do que conceitos puramente antropológicos –

recall (a memória do consumidor para um produto, mesmo um produto cultural) e

target (o público-alvo de um produto lançado) seriam facilmente aplicáveis para a

análise de um produto da cultura pop, como reforçado por Duprat & Prysthon (2007,

p. 4) quando explicitam que ―o inconsciente foi colonizado pela natureza do

mercado, pelas imagens ready-made, o prazer pronto para usar‖.

Sato (2007, p. 12) reitera este olhar comercial quando afirma que

(...) a memória popular e a durabilidade do impacto causado por estes artistas ou produtos acabam servindo de filtro daquilo que ocorreu de extraordinário, num mundo onde a mediocridade é a regra.

Vale deixar claro que

(...) o importante é que aquilo que se integra à cultura pop é necessariamente algo que tem ou teve grande identificação popular, seja por razões positivas ou negativas, e permaneceu na memória geral tornando-se referência comum, pois aquilo que não atraiu grande atenção popular cai nas brumas do esquecimento sem gerar referência relevante (SATO, 2007, p. 12).

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Não apenas com relação ao consumo, a cultura pop também é definida com relação

à sua produção, aos artistas que criam seus produtos. Na cultura pop, a reciclagem

e a releitura do que já foi produzido são as regras, tendo-se como ponto fundamental

o fato de o artista não criar produto algum a partir do nada e ―num movimento ad

infinitum de auto-referenciação, a cultura pós-moderna lança mão do outro para

construir a si mesma‖ (DUPRAT & PRYSTHON, 2007, p. 7). Tudo o que um artista

pop produz ―é fruto de referências, absorção e considerações pessoais baseadas

em um material que já existia e, por isso, não pode ser analisado fora de seu

contexto social, histórico e até mesmo geográfico‖ (BIIHRER, 2010, p. 37).

(...) toda música, filme, livro ou qualquer outra obra, a própria construção do discurso, a manipulação da linguagem e, portanto, o próprio pensamento linguístico, são concebidos através de um processo de reapropriação, de influências, de intertextualidade, de recombinação – a dinâmica da remixabilidade (BIIHRER, 2010, p. 37).

É fundamental explanar mais o conceito da remixabilidade, utilizado por Biihrer

(2010) em sua tese de graduação, que define com muita precisão a dinâmica da

produção pop. Para este autor, a própria remixabilidade é a ―dinâmica cultural

necessária da construção do discurso dentro de uma sociedade midiatizada‖

(BIIHRER, 2010, p. 39) cuja

(...) estetização do cotidiano (re)inventou um certo viver social e fez, segundo Maffesoli (1994), desse caleidoscópio de figuras cambiantes e matizadas, o ambiente geral de uma época em que nada é mais verdadeiramente importante, o que faz com que tudo adquira importância. Em particular, todos os detalhes, os fragmentos, as pequenas coisas (apud DUPRAT & PRYSTHON, 2007, p. 5).

Assim, já esperando que algo produzido possua fragmentos que tragam alguma

lembrança, mesmo que vaga, de algo que já se assistiu, leu ou ouviu, o velho é

constantemente renovado sob nova roupagem e linguagem ou através da visitação

de expansões paralelas de suas narrativas – como filmes que contam origens ou

tramas secundárias produzidas como itens paralelos (filmes, jogos, histórias em

quadrinhos, livros, desenhos animados, seriados etc.).

A origem do termo remixabilidade é remix, que Biihrer (2010, p. 48) define como

―uma colagem. Mas uma colagem multimidiática, com layers sonoros, visuais e

verbais. Sua prática está próxima da construção de um texto através da ‗citação‘‖.

Conclui-se, portanto, que toda produção pop é, automaticamente, fruto da

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remixabilidade, nada mais que um novo ―nó‖ de referências amarrado com mais ou

menos maestria pelos produtores (esta capacidade de reutilizar referências de forma

original acaba por indicar a qualidade de um produtor).

Dentro da dinâmica da remixabilidade, pode-se enxergar um filme como o resultado

de inúmeras referências costuradas sob uma nova diegese e novas tendências

mercadológicas. Não apenas o contexto mercadológico influencia a cultura pop, mas

também os avanços tecnológicos – especialmente a cibercultura, com a

predisposição ao compartilhamento e à participação – que tornou cada indivíduo

(...) um nódulo de convergência dentro de uma estrutura rizomática de troca de conteúdo, podendo acessar material disposto em qualquer ponto, a partir de qualquer outro ponto. Toda essa mudança traz impactos não só na nossa vivência comunicacional midiática, mas também altera toda nossa visão de mundo e nossa relação com a cultura (BIIHRER, 2010, p. 26).

Sendo assim, cada indivíduo mostra-se como um ―pacote de preferências‖, algumas

extremamente individualizadas e outras mais coletivas, preferências estas que

funcionam como pontos comuns entre colegas, amigos e companheiros na hora de

selecionar um produto cultural para consumir. Em outras palavras, um produto pop

nunca será massificado e capaz de atingir todos os grupos e subgrupos sociais, pois

uma obra na cultura pop ―não é homogênea, e sim baseada em nichos de interesse,

ou seja, deixa de estabelecer uma integração baseada na unificação do discurso e

passa a ser baseada na sua fragmentação e especificação‖ (BIIHRER, 2010, p. 33),

refletindo, portanto, o fato de que ―como uma colcha de retalhos, a pós-modernidade

é feita de um conjunto de elementos totalmente diversos que estabelecem entre si

interações constantes‖ (MAFFESOLI, 1994 apud DUPRAT & PRYSTHON, 2007, p.

3).

Devido às preferências e repertório individuais, é possível a Biihrer (2010, p. 37)

afirmar que ―ao ouvir uma música, assistir a um filme, observar uma imagem ou ler

um livro, existe um momento de interpretação e tradução pessoal que faz com que a

percepção do que foi consumido seja diferente para cada pessoa‖. O autor completa

que ―o entendimento de um discurso sempre passa por uma filtragem e uma

adaptação por parte do receptor, de acordo com sua realidade, experiências

pessoais, sua forma particular de interpretar o mundo‖ (BIIHRER, 2010, p. 37).

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A partir das ponderações de Biihrer (2010), torna-se mais fácil compreender a razão

pela qual certos produtos culturais são produzidos com relativo excesso de

referências a outros produtos do pop e, nas palavras de Duprat & Prysthon (2007, p.

9), ainda assim serem capazes de ―transitar sempre em duas (ou mais) direções,

tateando em uma trilha cada vez mais fragmentada, intertextual, multimidiática‖ –

quanto mais referências, maior a probabilidade de qualquer indivíduo se identificar

com o produto cultural, satisfazer-se ao consumi-lo e lembrar-se dele por mais

tempo, garantindo mais lucro ao produtor, inclusive pelo consumo aumentado pelas

indicações de espectadores satisfeitos e dispostos a divulgar seus gostos. Nas

palavras de Biihrer (2010, p. 20), assim como aconteceu ao teatro com a vinda do

cinema, da mesma forma ―o cinema ganhou novos processos e regras na era

televisiva (...) baseadas em novos engajamentos e laços intermidiáticos‖.

Esta grande quantidade de elementos referenciais, em um filme, pode vir com o uso

de certos atores, trilhas e efeitos sonoros, cenas, efeitos especiais, personagens,

cenários e diversos outros detalhes – no caso de ―Minority Report – A Nova Lei‖, foi

inserida uma pluralidade de gêneros para que cada nicho possa se identificar com

um estilo narrativo diferente sem precisar consumir outro produto – este filme pode

ser assistido sob diversos ângulos, segundo a preferência e o repertório do

espectador.

2.2 ANÁLISE FÍLMICA DE ―MINORITY REPORT – A NOVA LEI‖

A análise de uma produção audiovisual é complexa e repleta de alternativas para os

procedimentos de tal ação, cujo objetivo é, segundo Penafria (2009, p. 1),

―explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma

interpretação‖, embora a mesma autora afirme que ―analisar um filme na sua

totalidade afigura-se uma tarefa quase interminável‖ (PENAFRIA, 2009, p. 5) devido

às mais diversas alternativas para isso, como mencionado anteriormente.

Penafria (2009, p. 1-2) deixa claro que

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(...) é comum aceitar que analisar implica duas etapas importantes: em primeiro lugar, decompor, ou seja, descrever, e em seguida, estabelecer e compreender as relações entre esses elementos decompostos, ou seja, interpretar2, sendo que o filme é o ponto de partida para a sua decomposição e é, também, o ponto de chegada na etapa de reconstrução do filme.

formando, então o importante binômio decomposição-reconstrução que se mostra a

força-motriz da análise fílmica – a vantagem da decomposição fílmica é ―de fato,

estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme for realmente rico, usufruí-lo

melhor‖ (GOLIOT-LÉTÉ & VANOYE, 2012, p. 12).

A partir de tais postulações de Penafria (2009, p. 2), nota-se a equivalência entre a

decomposição-reconstrução e a análise-interpretação, o que a autora corrobora ao

afirmar que, nesta segunda fase de ambos os binômios,

(...) trata-se de fazer uma reconstrução para perceber de que modo esses elementos foram associados num determinado filme e este segundo movimento em direção ao (ponto de chegada do) filme evita cair em interpretações/observações despropositadas ou pouco pertinentes.

Contudo, partindo-se do pressuposto de que ―as condições materiais de exame

técnico do filme (auxílio, frequência, tempo, possibilidade de parar o desfile, de parar

a imagem, voltas e avanços rápidos etc.) condicionam a análise‖ (GOLIOT-LÉTÉ &

VANOYE, 2012, p. 11), Penafria (2009, p. 7) mantém explícito o fato de que

(...) cada tipo de análise instaura a sua própria metodologia, no entanto, parece-nos que ao optar por apenas um tipo de análise, poderá o analista ficar com a sensação de dever cumprido mas, também, com a sensação de que muito terá ficado por dizer acerca de um determinado filme (...)

demandando ao pesquisador a definição de uma metodologia que pareça ser a mais

completa, apesar de quaisquer limitações que pareçam existir em tal metodologia e

a absoluta consciência de que

(...) essa reconstrução não apresenta qualquer ponto em comum com a realização concreta de um filme. É uma ―criação‖ totalmente assumida pelo analista, é uma espécie de ficção, enquanto a realização continua sendo uma realidade (GOLIOT-LÉTÉ & VANOYE, 2012, p. 15).

2 Na presente dissertação, o termo ―interpretação‖ é empregado sob a definição de ―avaliação de

possíveis sentidos para elementos retirados para estudo‖, o que torna cada interpretação realizada como uma possibilidade e não uma verdade incontestável.

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A análise fílmica, a seguir, tem como base todas as lições e exercícios realizados

durante as aulas da disciplina de Metodologias de Análises em Imagem e Som,

ministrada por Lyra (2011). Um dos dados mais marcantes apreendidos em aula

sobre a análise fílmica é o fato de não haver nenhuma metodologia que possa ser

considerada mais exata ou mesmo definitiva para a análise de produtos audiovisuais

– cada metodologia apresenta pontos fortes e fracos, adequando-se melhor ou pior

a cada obra audiovisual e ao melhor uso por parte do analista do filme. Assim, a

análise fílmica como especialidade de análise mostra-se consideravelmente difícil de

ser realizada devido a esta miríade de opções de metodologias e os diferentes

estilos de quem realiza a análise fílmica.

Para o autor desta dissertação, a metodologia das Quatro Dimensões, elaborada em

conjunto pelos colegas de classe sob a orientação de Lyra (2011), foi selecionada

como a metodologia mais adequada para o filme ―Minority Report – A Nova Lei‖,

dentro dos objetivos da presente dissertação, de maneira que outras metodologias

podem ser consideradas como mais eficazes, sem alterar ou diminuir o valor da

presente análise.

2.2.1 Dimensão 1

Usando como bússola a metodologia das Quatro Dimensões, de Lyra (2011), inicia-

se a análise de uma obra audiovisual (na verdade, de qualquer obra artística), a

partir da Dimensão 1, que é voltada estritamente à observação dos elementos

fílmicos a partir da desconstrução do filme.

A desconstrução do filme pressupõe consciência dos elementos que compõem este

produto audiovisual e também ―um saber adquirido‖ (ESQUENAZI, 2008, p. 122) por

quem os interpreta, quando vislumbrados isoladamente ou em seu contexto.

Segundo Esquenazi (2008, p. 121), ―nossa visão é condicionada pela interpretação

que a acompanha; ou talvez seja melhor dizer que ambas formam um processo

único de visão-interpretação‖, um conceito muito útil para a análise de um filme,

embora a audição seja tão impor ante quanto a visão.

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Como mencionado anteriormente, a interpretação se dá tanto pelo elemento isolado

como por ele ser também integrante ao contexto – esta dupla observação é

necessária porque ―as características específicas da imagem, as suas formas,

relações de cor etc., são por si mesmas incapazes de nos dizerem como interpretar

essa imagem‖ (ESQUENAZI, 2008, p. 121).

Esquenazi (2008) não se mostra totalmente correto nesta afirmação segundo o autor

desta dissertação, uma vez que tais características específicas da imagem ainda

ofereçam índices e referenciais capazes de gerar possíveis interpretações. Para

Esquenazi (208, p. 122), a interpretação de um filme é uma dupla relação entre ―por

um lado, proposições que ela contém e, por outro, a intenção de interpretação de um

espectador‖ – no caso desta dissertação, o espectador é o próprio pesquisador.

Porém, antes de desconstruir e apontar todos os elementos que se destacam na

análise fílmica segundo os intuitos do pesquisador, é importante que se estabeleça

um acordo sobre o termo ―linguagem cinematográfica‖. Odin (2008, p. 148) define a

linguagem como ―um instrumento intencional de comunicação e de expressão‖. Toda

arte apresenta o que poderia ser chamado, então, de linguagem, que indicaria como

―ler‖ uma obra. Ainda segundo Odin (2008, p. 148), ―parece impensável excluir da

linguagem fenômenos sociais tão importantes como o cinema, a televisão, a pintura,

a história em quadrinhos etc.‖. Com a definição de linguagem, é possível chegar à

compreensão dos códigos e da combinação dos mesmos que compõem uma

linguagem.

Para Odin (2008, p. 152-153):

(...) compreender um filme implica conhecer os códigos específicos a uma cultura que ele integra (código dos símbolos, dos gestos etc.) e os condicionalismos (criados pela linguagem cinematográfica) vêm das regras de gênero e das regras ligadas aos espaços de recepção. As regras de gramaticalidade das línguas naturais são substituídas por regras de aceitabilidade.

Assim, o filme deve ser encarado como um produto não apenas de representação

artística, mas também voltado ao consumo e às expectativas de um público

espectador, exigindo de qualquer um que analise uma obra cinematográfica o que

Odin (2008, p. 153) considera como uma

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(...) posição pragmática, ou seja, a pôr no posto de comando da análise as determinações externas ao texto: são elas que regem o modo de leitura que o espectador utilizará, ou seja, a forma como dará sentido às imagens; assim, conforme o contexto de leitura, é um texto diferente, apoiado em elementos diferentes da imagem, que será construído.

O sentido das imagens e da linguagem que lhe serve de intenção de exposição é,

então, um produto voltado às expectativas de um público dentro do repertório que

este terá para consumir a obra, de maneira que ―o que se deve analisar não é tanto

o sentido das imagens enquanto tal, mas de que forma o sentido adere às imagens

num determinado contexto, numa determinada situação de comunicação‖ (ODIN,

2008, p. 153). Por estar tão ligada ao comportamento do espectador, a linguagem

―tem também funções sociais. Um filme aplica ‗atos de linguagem‘ que visam

modelar a nossa relação com o mundo‖ (ODIN, 2008, p. 154).

Tendo determinadas as conceituações de termos como linguagem e código, é

finalmente possível definir a estética como ―uma coleção de posturas, de atitudes e

procedimentos‖ (JULLIER, 2008, p. 159) que, ―na sua vertente analítica, ambiciona

menos explicar o que determinado filme significa ou quer dizer, do que explicar o

que pode dizer‖ (JULLIER, 2008, p. 163) – ou seja, a estética será utilizada na

presente análise fílmica como um indexador de possíveis intenções do diretor da

obra cinematográfica ao expor planos, ângulos e detalhes sem, em momento algum,

determinar que tal interpretação realmente tenha sido proposital por parte do diretor

– de forma a estarem declarados os termos nos quais o pesquisador estará

amparado para realizar sua análise fílmica.

2.2.1.1 Informações

Título: Minority Report – A Nova Lei

Título Original: Minority Report

Ano: 2002

País: EUA

Gênero: Ação, Policial, Noir, Ficção Científica

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Duração: 145 minutos

Ficha técnica: Twentieth Century Fox, DreamWorks Pictures, Cruise/Wagner

Productions e Amblin Entertainment (produtoras), Steven Spielberg (diretor), Philip

K. Dick (conto original), Scott Frank e Jon Cohen (roteiristas), Jan De Bont e Bonnie

Curtis (produtores), Alex McDowell (design de produção), Tom Cruise (John

Anderton), Max Von Sydow (Lamar Burgess), Neal McDonough (Fletcher), Colin

Farrell (Danny Witwer), Samantha Morton (Agatha)

Sinopse: Policial de divisão especial de combate ao crime antes mesmo de sua

ocorrência é incriminado pelo mesmo sistema que defende com convicção, levando-

o a fugir de seus companheiros e buscar a verdade por trás do sistema Pré-Crime e

de seus idealizadores.

2.2.1.2 Narrativa

A estrutura narrativa pode ser dividida facilmente dentro da Jornada do Escritor, de

Christopher Vogler – intrinsecamente ligado ao Monomito de Joseph Campbell.

Caso analisado a fundo, o conto de Philip K. Dick, junto à sua adaptação

cinematográfica, revelará detalhes do herói John Anderton (Figura 2), que o ligará a

diversos personagens mitológicos e até mesmo de contos de fadas, embora numa

versão menos complexa, porque ―quando a civilização passa de um ponto de vista

mitológico para um ponto de vista secular (como é o caso de uma obra

cinematográfica), as velhas imagens já não são sentidas ou muito aprovadas‖

(CAMPBELL, 2007, p. 244).

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Figura 2. John Anderton operando sua máquina Fonte: Spielberg (2002).

Mundo Comum: É mostrado o cotidiano da Divisão Pré-Crime, ―orquestrada‖ por

John Anderton, assim como cada fase do emprego da justiça, desde a detecção por

parte dos Precogs até o aprisionamento do suposto criminoso, incluindo detalhes

como o ―eco‖ precognitivo.

Chamado à Aventura: A Precog, chamada Agatha, alerta John Anderton sobre uma

morte por afogamento e depois o próprio John Anderton é incriminado pelos

Precogs, como um assassino de Leo Crowe (Figura 3), um homem que ele nunca

viu, o que lhe mostra que há algo a ser perseguido em busca pela verdade – assim,

―o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da

sociedade para uma região desconhecida‖ (CAMPBELL, 2007, p. 66).

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Figura 3. Esferas à frente que incriminam John Anderton Fonte: Spielberg (2002).

Recusa do Chamado: Inicialmente, John Anderton refuta a previsão e foge de seus

companheiros policiais, buscando amparo em seu mentor, o diretor da Divisão Pré-

Crime Lamar Burgess. Em conversa com Lamar, John Anderton revela a

possibilidade de ter sido alvo de uma conspiração pelo agente federal Danny Witwer,

descobrindo detalhes a mais sobre os Precogs e sobre a existência da Dra. Iris

Hineman, que idealizou o projeto Pré-Crime junto a Lamar Burgess.

Encontro com o Mentor: Ao encontrar a Dra. Hineman (Figura 4), aparentemente

enlouquecida pelos estudos e ações desumanas que realizou enquanto a Divisão

Pré-Crime era idealizada, Anderton descobre, sobre os Registros Dissonantes

(Minority Reports) produzidos pelos Precogs, a origem destes Precogs e o poder da

Precog Agatha. Analisando sua função como reveladora de detalhes sobre os

Precogs e assumindo parte da responsabilidade pela criação da Divisão Pré-Crime e

os experimentos, a Dra. Hineman adquire o papel arquetípico da Mãe Primordial,

embora ―a mãe da vida é, ao mesmo tempo, a mãe da morte; ela se mascara como

a horrenda deusa da fome e da enfermidade‖ (CAMPBELL, 2007, p. 295), de forma

que, portando informações que guiam a aventura do herói John Anderton, também

demonstra comportamento sinistro, disposto a ferir e se ferir sem remorso e sendo,

mesmo que indiretamente, responsável pelas atribulações e morte de Anne Lively.

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Figura 4. Dra. Hineman Fonte: Spielberg (2002).

Travessia do Primeiro Limiar: Percebendo a gravidade da atuação da Divisão Pré-

Crime sobre a sociedade, Anderton decide ir a fundo, mas precisa antes se imunizar

contra o sistema de vigilância biométrica da sociedade em que vive, para não ser

reconhecido. Abordando um médico ―açougueiro‖ do submundo, Anderton substitui

seus globos oculares pelos de um desconhecido (Figura 5) e se livra dos policiais

que o buscam no complexo habitacional onde se refugiou.

Figura 5. Cirurgia de troca de globos oculares Fonte: Spielberg (2002).

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Testes, aliados e inimigos: Anderton invade a própria Divisão Pré-Crime, tem a ajuda

relutante de Wally (responsável pelos cuidados com os três Precogs) e recebe como

aliada a Precog Agatha (Figura 6), após invadir o Templo – Agatha, ―a encarnação

da promessa de perfeição; a garantia concedida à alma de que, ao final do exílio

num mundo de inadequações organizadas, a benção antes conhecida voltará a sê-

lo‖ (CAMPBELL, 2007, p. 112). Em uma loja da marca Gap, Anderton tem nova

confirmação de sua identidade trocada devido ao transplante de globo ocular. Com o

auxílio de Rufus Riley, ciberpirata e técnico em equipamento de captura e

manipulação perceptiva, Anderton recupera novos detalhes sobre o suposto crime

que cometerá contra Leo Crowe e sobre o assassinato de Anne Lively. Após fugir do

estabelecimento de Rufus Riley, Anderton é beneficiado pelos poderes precognitivos

de Agatha para se manterem ocultos dos policiais que os perseguem.

Figura 6. Agatha, a Precog Fonte: Spielberg (2002).

Aproximação da Caverna Oculta: Enquanto fogem, Anderton percebe estar muito

próximo do local onde ele estaria fadado a cometer o assassinato de Leo Crowe,

então, vai até o apartamento de sua suposta vítima enfrentar de uma vez por todas a

preocupação sobre o assassinato.

Provação suprema: Face a face com Leo Crowe (Figura 7), Anderton tem a chance

de completar o destino previsto pelos Precogs ou rejeitá-lo, anulando a infalibilidade

da Divisão Pré-Crime. Porém, descobre ser vítima de uma conspiração que

pretendia incriminar Leo Crowe como o sequestrador de Sean, o filho desaparecido

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de John Anderton, exatamente para forçá-lo a cometer o assassinato. Crowe força a

arma de Anderton contra si, sendo morto pelo disparo involuntário, cumprindo a

previsão dos Precogs.

Figura 7. Anderton encontra Leo Crowe Fonte: Spielberg (2002).

Recompensa: Fugindo do apartamento de Leo Crowe, Anderton e Agatha vão à

casa de Lara, ex-esposa de Anderton. Em conversa com a ex-esposa, Anderton

chega à conclusão de que Anne Lively (Figura 8) é mãe de Agatha, e que toda a

conspiração tem como intuito eliminar Anderton e deixar o assassinato de Anne

Lively como caso resolvido.

Figura 8. Lamar Burgess e Anne Lively Fonte: Spielberg (2002).

Caminho de Volta: Em posse do conhecimento que poderia acabar com a Divisão

Pré-Crime e impedir sua expansão nacional, Anderton é preso no mesmo local onde

ele mesmo prendera diversos outros supostos assassinos através das visões dos

Precogs.

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Ressurreição: Após conversa com Lamar Burgess, Lara percebe a atuação obscura

do diretor da Divisão Pré-Crime e se vê em perigo. Utilizando a arma do ex-marido,

Lara solta Anderton e pede um último favor a Jad (ex-companheiro de Anderton) em

nome do ex-marido – nesta libertação do herói, ―ressurgindo das trevas que

constituem a fonte das formas visíveis, traz o conhecimento do segredo do triste

destino do tirano‖ (CAMPBELL, 2007, p. 324). Desmascarado e exposto como o

assassino de Anne Lively, Lamar persegue Anderton, ao mesmo tempo em que os

Precogs preveem o assassinato de Anderton pelas mãos de Lamar. No fim, Lamar

acaba cometendo suicídio, invalidando a eficácia e a idoneidade da Divisão Pré-

Crime e inocentando Anderton.

Retorno com o Elixir: O herói John Anderton reata seu casamento com Lara,

engravidando-a, enquanto os três Precogs recolhem-se em paz em uma idílica casa

de campo, isolada de outros seres humanos que afetariam seus poderes

premonitórios. Anderton cumpre sua função de herói da estória por destruir um

aparato tecnocrático que poderia ser manipulado para o mal por Burgess e outros

com acesso aos Precogs, e por esta mesma razão torna-se importante ressaltar a

fuga de seu destino, precedida da separação de seu tempo histórico esperado (vida

familiar com Lara e filhos), para ao final retomar seu tempo histórico e ―anular‖ seu

período como oficial da Divisão Pré-Crime. Campbell (2007, p. 324) explicita muito

bem esta relação de heroísmo em eliminar o opressor beneficiado por seu passado,

e não de zelar por este passado,

(...) pois o herói mitológico (e suas versões contemporâneas) não é patrono das coisas que se tornaram, mas das coisas em processo de tornar-se; o dragão a ser morto por ele é precisamente o monstro da situação vigente: Gancho, aquele que mantém o passado (no caso, Lamar Burgess, que luta para manter a Divisão sob seu controle). Da obscuridade, emerge o herói, mas o inimigo é poderoso e conspícuo na sede de poder; é inimigo, dragão, tirano, porque faz reverter em seu próprio benefício a autoridade que sua posição lhe oferece. Ele não é Gancho por conservar ―o passado‖, mas por ―conservar‖.

Frente à eficaz adequação das cenas do filme ―Jornada do Escritor‖, de Vogler,

entende-se a obra cinematográfica e sua inspiração literária de Dick como

manifestações modernas de mitos muito antigos; nas palavras de Campbell (2007,

p. 251), ―através dos contos maravilhosos (...) é dada uma expressão simbólica aos

desejos, temores e tensões inconscientes que se acham subjacentes aos padrões

conscientes do comportamento humano‖.

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2.2.1.3 Planos, enquadramentos e montagens

O início da desconstrução fílmica se dá no apontamento de todos os possíveis

elementos contidos no filme, embora neste momento apenas os elementos ligados à

produção e técnicas de filmagem e montagem serão utilizados como parâmetros.

Nenhuma desconstrução pode ser realizada isoladamente, uma vez que ―um

elemento só tem valor de unidade em referência a um dado eixo de leitura‖

(GARDIES, 2008, p. 19). Gardies (2008, p. 20) deixa claro, ainda, que entre as

inúmeras partículas de um filme, ―a construção dramática, o ritmo de uma sequência,

uma figura de montagem e até a obra de um cineasta podem ser objetos virtuais de

análise‖.

Ao observar uma cena, há ações obrigatórias a quem realiza a análise, sendo

algumas delas, de acordo com Gardies (2008, p. 33), ―o olhar, as entradas e saídas

de campo e o som‖. Considerando-se uma cena como um evento que acontece

através de um espaço e um tempo ficcional, o pesquisador ―tem de lidar, por

natureza, com a duração, que, por seu lado, é um fenômeno de percepção

eminentemente subjetivo‖ (GARDIES, 2008, p. 33). Ainda sobre a duração, um fato

interessante a se ressaltar é que o momento histórico de produção do filme possui

um espectador com certos hábitos culturais e expectativas coletivas que ocasionam

―normas de época ou de gênero que implicam uma evolução permanente na

apreensão da duração‖ (GARDIES, 2008, p. 33).

Tratando-se de uma obra situada em um ambiente futurista, é importante que

também sejam observados os elementos presentes nas cenas e até mesmo os sons

utilizados para, então, apontar o funcionamento da sociedade e dos personagens

neste mundo. Gardies (2008, p. 23) expõe a importância destes elementos que

geram indícios do lugar e da época ao afirmar que

o cenário, a iluminação e a cor constituem sinais diegéticos, narrativos e estilísticos que remetem (...) para vários níveis de interpretação: época e meios representados, elementos significativos da ação, intenções ou valores de uma personagem, gênero etc.

A análise fílmica inclui a análise do plano, que pode ser definido como ―uma unidade

técnica de tomada de vista e de montagem‖ (GARDIES, 2008, p. 17), sob o ponto de

vista técnico, ou ―um fragmento espaço-temporal homogêneo‖ (GARDIES, 2008, p.

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17), sob o ponto de vista narrativo. Os planos utilizados no filme ressaltam a

sensação de perseguição e corrida contra o tempo, com rápidas mudanças de

planos, principalmente através do travelling, fornecendo ainda mais dinamismo.

Porém, nenhum plano específico dentro do filme será tomado como referência, uma

vez que, como Gardies (2008, p. 19) deixa claro, ―é sobretudo no âmbito da análise

fílmica que se deve evitar ver o plano enquanto unidade única do filme, como levaria

a crer a sua realidade técnica‖.

Segundo a definição de Amiel (2008, p. 36), a planificação consiste em ―modificar os

pontos de vista, os ângulos de visão, separar elementos, reunir outros e, contudo,

dar a sensação de uma continuidade‖, funções perfeitamente realizadas em

―Minority Report – A Nova Lei‖, de maneira a garantir a ordenação dos elementos de

importância e o envolvimento do espectador com cada informação relevante ao

prosseguimento da história narrada.

A composição de cenas em ―Minority Report – A Nova Lei‖, pode indicar o interesse

do diretor em expor a ação que envolve o protagonista e deixar como elementos

secundários os aparatos tecnológicos e toda a estrutura social, principalmente em

cenas que não tenham relação direta com os conflitos pelos quais o protagonista

passa durante o filme. O relacionamento entre os elementos que aparecem na tela

(campo) e os que estão além dos limites da tela (fora-de-campo) também faz parte

da análise da composição, uma vez que expõem ou deixam de expor elementos

menos importantes para a continuidade da narrativa, da descrição de cenário ou a

pura valorização das sensações sendo projetadas ao espectador. Gardies (2008, p.

32) define estes elementos:

O campo fílmico remete para um espaço não visível, o ―fora-de-campo‖, que lhe é imaginariamente contíguo e que só existe pela sua relação com o campo. Mais do que ele próprio, é a sua natureza viva que interessa à análise: a dinâmica ―campo-fora-de-campo‖ que nasce das relações entre o visto e o sugerido.

Através de uma técnica chamada bleach-bypass, diversas cenas tiveram sua paleta

cromática ―desbotada‖, de maneira a embranquecer rostos e dar mais frieza e maior

contraste de luz e sombra às cenas. Esta manipulação em favor do personagem

vem alicerçada pela definição de composição de Gardies (2008, p. 29), que afirma:

―aquilo a que se chama composição, no sentido pictórico do termo, implica a

disposição das formas e das cores no interior de um quadro em função do sujeito

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representado‖. Porém, tratando-se de um filme misto de ação, ficção científica e film

noir, a composição se readequa ao principal interesse da cena:

No cinema, a noção de composição deve, portanto, ser entendida como uma realidade ―essencialmente e sempre móvel‖. É uma forma dramática e plástica apanhada num processo incessante de transformação, porque não pára de se compor, decompor e recompor, passando continuamente de um equilíbrio para outro, através do desequilíbrio da dinâmica do movimento (GARDIES, 2008, p. 32).

A montagem, cuja função primária definida por Amiel (2008, p. 35) é de ―fornecer um

suplemento de sentido às imagens, cujo mero conteúdo não poderia dar esse

sentido‖, mantém uma linha cronológica quase inteiramente linear, situando o

espectador na sequência de eventos, sem a chance de suscitar a sensação de

deslocamento com relação à história, uma vez que, ―para que haja consciência da

narrativa, é preciso que o espectador esteja em presença de uma continuidade‖

(AMIEL, 2008, p. 37). Para este autor, ―é a primeira característica (...) de uma

montagem clássica: estabelecer essas continuidades de espaço, tempo e

sensações‖ (AMIEL, 2008, p. 37).

Em ―Minority Report – A Nova Lei‖, contudo, a montagem recebe um tratamento

especial, principalmente quando se tratam das visões dos três precognitivos; para

compreender de quê forma ocorre este tratamento especial, é necessário, antes,

entender como descrever esta montagem com relação ao senso de continuidade:

A continuidade de espaço é dada, em primeiro lugar, pelo trabalho conjunto do pró-fílmico e da montagem: é preciso não só que os cenários, a luz, os movimentos dos figurantes, sejam os mesmos de um plano para outro, mas também que o espectador os sinta como pertencendo a uma mesma unidade (um mesmo lugar, uma mesma realidade) (AMIEL, 2008, p. 37).

A partir desta definição, torna-se mais fácil especificar como a montagem é feita

para as visões dos precognitivos: na diegese de ―Minority Report – A Nova Lei‖,

cada precognitivo cria uma visão, que é, então, recombinada como um conjunto

único formado pelas visões dos três precognitivos. Porém, seus pontos de vista para

uma dada cena vislumbrada podem se alterar sutilmente, gerando o que poderia ser

encarado pelo espectador como pequenos desvios de continuidade. É interessante

observar que estes desvios fazem parte exatamente da função do detetive John

Anderton, o protagonista: analisar o conjunto de visões para gerar um relatório de

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informações unificadas e mais detalhadas, e até mesmo obter dados

complementares à solução de um crime. Esta situação ocorre, por exemplo, nos

primeiros minutos do filme, quando o protagonista detecta um desvio entre as visões

com relação à posição de uma criança alguns metros atrás de um indivíduo-chave

da visão (Figura 9); ora aparecendo à esquerda, ora à direita, a posição da criança

levou o detetive a concluir que ela estava em um brinquedo de parque, levando-o a

localizar com mais eficiência o paradeiro do criminoso e das vítimas do primeiro

assassinato mostrado no filme, tornando o protagonista não apenas um ator

diegético que soluciona crimes, mas também um fator extra-diegético que auxilia o

espectador a enxergar a realidade sob o ponto de vista da Divisão Pré-Crime. Tal

―jogo‖ com o espectador é definido quando, ―uma vez estabelecido na mente do

espectador que os elementos do filme podem fundar uma unidade, a montagem é a

alavanca que permite criar a descontinuidade, as rupturas narrativas‖ (AMIEL, 2008,

p. 40).

Figura 9. Investigação do ambiente do futuro crime Fonte: Spielberg (2002).

Amiel (2008, p. 39) também define como uma função muito importante da montagem

a de dar ―coerência às sensações. Virtude muito mais sutil da montagem, que joga

com um ritmo, o tempo de um movimento de câmera, o tom de uma frase ou de uma

pose do ator‖. Percebe-se, no decorrer do filme, os rompantes emocionais do

protagonista em busca da verdade enquanto foge do sistema que ele próprio ajudou

a estabelecer, chegando ao ponto alto de seu desespero o exato momento em que

descobre o passado compartilhado de Agatha e Anne Lively, bem quando é preso

pela polícia e se vê na pior situação de todas: a de ter a verdade em mãos e estar

incapacitado de empregá-la – seu abraço final na esposa, em sequência à conversa

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com Agatha, mostra um reatamento do protagonista com sua vida antes dos eventos

mostrados na linha temporal do filme.

A passagem do tempo diegético é um elemento de suma importância para o

espectador ter em mente, para que ele sinta verossimilhança com a passagem do

tempo real e não se perca sem saber quantos dias ou horas se passaram na

diegese. Amiel (2008, p. 43) afirma que:

A organização de um filme assenta com muita frequência (...) numa trama temporal determinável. Significa que é necessário sugerir ao espectador a noção de um tempo que decorre, e que decorre segundo uma lógica linear, bem como a ideia de uma arquitetura

geral desse tempo, chegando sincronizar uma contagem regressiva que acontece dentro da diegese e a que marca quanto tempo do filme ainda resta para se chegar ao final: logo após John Anderton fugir com Agatha, Danny Witwer pergunta ao agente Fletcher quanto tempo falta para que Anderton cometa o assassinato de Leo Crowe, ao que Fletcher responde faltarem 51 minutos e 30 segundos, exatamente o tempo que o filme ainda levará até chegar ao seu fim.

Além do uso do tempo dentro da continuidade linear, o cinema ainda permite a visão

de cenas no futuro ou no passado do momento da trama, pois

(...) é na base de uma unidade de desenvolvimento temporal que se podem compreender as deslocações diegéticas ao longo de uma linha contínua: se ―voltarmos‖ atrás, ou se podemos nos ―projetar‖ no futuro, é porque aceitamos a diegese como estrutura temporal determinável e organizada (AMIEL, 2008, p. 43).

Os deslocamentos de tempo ocorreram de três formas dentro da história de ―Minority

Report – A Nova Lei‖. Os primeiros momentos do filme já representam o primeiro

deslocamento de um tempo em sentido futuro: tratam-se das visões precognitivas

dos três Precogs antevendo crimes de assassinato, e tais usos de flash-forward são

marcados, como dito anteriormente na questão da montagem, por cruzamentos de

imagens, por vezes alinhadas, e outras vezes contraditórias.

O segundo uso de deslocamento da linha cronológica diegética é durante o uso dos

hologramas, quando John Anderton revisita uma ida a um lago com o filho falecido e

também um momento íntimo com a esposa, mas ambos só ocorrem depois que se

sabe da morte do filho do detetive e da separação com a esposa, pois só depois de

imposta a continuidade das cenas é que podemos nos aventurar a fazer um

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flashback: ―com efeito, o recuo no tempo só é inteligível se a evidência dos

momentos presentes for indiscutível‖ (AMIEL, 2008, p. 43).

O terceiro deslocamento de tempo, e em flashback como o exemplo anterior, é a

forma mais tradicional de vislumbre de um momento passado: logo após a cirurgia

de troca de globos oculares, John Anderton precisa repousar para se recuperar da

cirurgia, momento em que adormece e relembra os últimos momentos com o filho

em uma piscina. Amiel (2008, p. 43) relembra que, nas produções recentes, ―os

desvios temporais são pouco ou nada marcados e a incerteza que daí nasce torna-

se um dos elementos constitutivos das deslocações temporais‖; porém, a já sabida

ausência do filho serve de indicador para que tal cena seja um flashback (Figura 10).

Outra técnica interessante para mostrar ao espectador que este flashback trata de

um passado menos sombrio do protagonista consistiu em não utilizar o efeito de

bleach-bypass, mantendo cores mais vivas e melhor iluminadas no cenário,

contrastando com o clima sombrio e azulado de quase todo o filme.

Figura 10. Flashback holográfico com filho de Anderton Fonte: Spielberg (2002).

2.2.1.3.1 Pontos de vista

A questão dos pontos de vista está estritamente ligada ao que o diretor quer que o

espectador enxergue e, tão importante quanto o quê enxergar, é entender quem

estaria enxergando sob tal ângulo. Por se tratar de um filme de ação, em muitos

momentos a câmera se posiciona em ângulos e distâncias impossíveis a seres

humanos, o que já indica a intenção do diretor em mostrar a emoção de uma

perseguição ou luta, ou não ideologias dos personagens partícipes do filme.

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Jullier (2008, p. 66) comenta sobre os pontos de vista utilizados em filmes de ação,

afirmando que diretores deste gênero ―adquiriram o hábito de propor pontos de vista

eufóricos, vertiginosos ou encantatórios, que não pertencem a nenhuma entidade

diegética no filme‖. No entanto, certas cenas de interação de personagens mostram

ângulos que podem mostrar a natureza angelical de Agatha (envolta em luz na casa

de campo de Lara, enquanto a Precog narra um possível futuro do filho de John

Anderton), o lado sombrio de Lamar Burgess (na cerimônia de expansão da Divisão

Pré-Crime, seu rosto é apresentado em primeiro plano, com uma sombra sobre sua

metade direita, envolto por pessoas o parabenizando) ou mesmo para explicar uma

piada (quando John Anderton compra a droga de um traficante que lhe diz que ―em

terra de cego, quem tem um olho é rei‖ – o traficante mostra seus globos oculares

vazios, enquanto uma densa sombra cobre o rosto de John Anderton, de forma a

mostrar apenas um olho seu), todas estas variações de pontos de vista usados para

jogar com a proximidade e com o afastamento da personagem relativamente ao

espectador. ―O fenômeno da identificação parcial permite que o espectador,

geralmente sem o seu conhecimento, se identifique com uma figura que ele poderia

rejeitar na vida real‖ (VANOYE, 2008, p. 183).

Pouco utilizado no filme, o plano subjetivo está melhor identificado na última

conversa entre John Anderton e seu mentor Lamar Burgess, quando os ângulos por

cima de seus ombros concentram o olhar do espectador na tensão do encontro entre

o herói e seu antagonista.

2.2.1.3.2 Som fílmico

Sendo as atuais obras cinematográficas produtos audiovisuais, a análise sonora do

filme passa a ser tão relevante quanto a da imagem, especialmente porque ambas

se complementam na projeção de sensações e de narrativa ao espectador. Barnier

(2008, p. 47) ressalta este vínculo indissociável quando lembra que

desde a generalização do cinema sonoro, em finais dos anos 20, o cinema surge ligado automaticamente ao som, som este que o próprio autor divide em diálogos, músicas e ruídos.

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Por fim, Barnier (2008, p. 47) ainda ressalta que ―observar as fontes sonoras e os

jogos de localização revela o enorme trabalho das equipes de som no cinema‖.

Como o uso da visão é uma prática mais comumente desenvolvida no ser humano,

poucas observações bastam para que muitos elementos visuais sejam perfeitamente

identificados e analisados. A audição, no entanto, exige mais concentração e

capacidade de discernimento de elementos sonoros para uma análise eficaz.

Neste caso, Barnier (2008, p. 55) afirma ser necessário proceder a numerosas

audições:

(...) as audições causais (qual a causa de cada som?), as audições veladas (ouvir todos os sons sem ver as imagens), de forma repetida, permitindo obter uma descrição precisa dos sons de uma sequência, sendo que após audições repetidas de uma sequência de um filme, e após a descrição rigorosa do conteúdo sonoro, pode-se desenvolver uma análise que colocará em relação os sons e as imagens.

Certamente, a análise sonora de ―Minority Report – A Nova Lei‖ exige atenção e

concentração, por estar de acordo com a afirmação de Barnier (2008, p. 49) de que

―as grandes produções permitem um som com muitas nuances, criado com pesquisa

e inovações (misturas de sons de animais para fazer o som das naves espaciais, por

exemplo)‖.

Um exemplo desta situação acontece no corredor da publicidade contextual, por

onde John Anderton passa: cada anúncio que aborda verbalmente o detetive é

falado no exato momento de sua passagem, o que faz com que diversos anúncios

interativos aconteçam ao mesmo tempo, criando um mar de ruído que

provavelmente os moradores diegéticos da cidade aprenderam a ignorar ao

passarem pelo local. Mesmo assim, a cacofonia de anúncios ainda é capaz de

entregar algumas mensagens relevantes à narrativa; uma das mensagens é ―Get

away, John Anderton‖ (―Escape, John Anderton‖), falado em um dos anúncios,

enfatizando a fuga do detetive (Figura 11).

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Figura 11. Publicidade contextual interativa em shopping Fonte: Spielberg (2002).

Para Barnier (2008, p. 51), tudo começa com ―de onde vem o som?‖. Esta é uma

das primeiras questões que permitem a análise do som num filme. Este autor define

claramente esta questão da origem e natureza fílmica do som, ao afirmar que

―quando a fonte sonora é diretamente visível na tela, falamos de um ‗som in‘; quando

a fonte não é visualizada, mas pode sê-lo se a câmera se mover, falamos de ‗som

fora-de-campo‘‖ (BARNIER, 2008, p. 51). Como exemplo de ―som in‖, qualquer dos

vários sons emitidos por máquinas durante o filme, além dos diálogos, se encaixam

nesta categoria. Um ―som fora-de-campo‖ muito importante ocorre quando o

personagem Lamar Burgess avisa ao agente Danny Witwer sobre a ausência dos

policiais e sua então impunidade ao assassinar Witwer: depois do primeiro tiro no

peito de Witwer, Burgess dá um segundo tiro, cujo som é ouvido, mas não se

enxerga nem a origem do tiro (a arma), nem onde Witwer foi atingido (supostamente

sua cabeça).

Além destas manifestações sonoras, ainda há o ―som ambiente‖, que Barnier (2008,

p. 51) explica: ―se ouvimos pássaros, sem os ver, supomos que estão nas árvores

presentes na imagem. Não estão fora-de-campo, nem in, nem over. Estão na

fronteira destes três conjuntos que se justapõem. Fazem parte do ‗som ambiente‘‖.

Em ―Minority Report – A Nova Lei‖, os exemplos de ―som ambiente‖ são inúmeros:

desde a música clássica (Sinfonia nº 8 de Franz Schubert), que John Anderton

prefere quando opera o computador da Divisão Pré-Crime ou quando chega à noite

em seu apartamento, os sons de buzinas que indicam ser um subúrbio, onde mora o

personagem Howard Marks (primeiro suposto assassino a aparecer no filme), o som

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de multidão à beira da piscina, na cena da lembrança de John Anderton e também

durante a cerimônia em homenagem a Lamar Burgess, os sons bucólicos na região

externa à residência da Dra. Hineman, na casa de campo de John e Lara e na

habitação inóspita onde vivem os três Precogs ao final do filme, e as músicas de

ambiente na estufa da Dra. Hineman (Pathétique, de Tchaikovsky), na loja da Gap,

no cyber parlor de Rufus T. Riley e no shopping center.

A utilização de músicas, instrumentais ou cantadas, também adiciona muitos

elementos de importância à narrativa. Para Barnier (2008, p. 51), ―se a fonte da

música estiver situada no lugar e no tempo da ação, falaremos de ‗música de tela‘ e,

no caso contrário, de ‗música de fosso‘ (por alusão ao fosso da orquestra)‖. A

música sacra que o próprio personagem Gideon toca em seu órgão (o que,

automaticamente, torna a música uma ―música de tela‖), mantém a sacralidade do

trabalho da Divisão Pré-Crime, com seus profetas Precogs e os agentes que,

durante o filme, admitem-se mais como clérigos do que como agentes da lei. Uma

―música de tela‖ interessante é Bad Boys, da banda de reggae Inner Circle: ela é

tocada enquanto John Anderton se recupera da cirurgia de troca de globos oculares,

quando esta canção toca na tela atrás do personagem, mostrando ser o programa

Cops do canal de TV Fox. Esta música tem, no filme, a função extra-diegética de

anunciar a chegada da polícia ao conjunto habitacional onde ele se encontra. O

trecho mais marcante desta música é ―Bad boys, bad boys, what you gonna do?

What you gonna do when they come for you?‖ (Homens maus, homens maus, o que

vocês farão? O que vocês farão quando eles vierem atrás de vocês?).

Curiosamente, o personagem John Anderton pergunta várias vezes ao vilão

(portanto, um bad boy) Lamar Burgess o que ele fará (―What you gonna do?‖).

No caso das ―músicas de fosso‖, incluem-se quase toda a trilha instrumental que

acompanha o filme, somada ao leitmotif de Sean (com notas mais agudas e a

presença de harpa e piano, talvez denotando inocência), além do leitmotif da morte

de Anne Lively (com um instrumental e vocal de tons dramático e tenso para retratar

com mais intensidade a morte brutal da personagem). Outras ―músicas de fosso‖

marcantes no filme são na cena da fuga de John Anderton pelos automóveis

magnéticos (cuja combinação do instrumental com os ruídos eletrônicos e dos

motores magnéticos lembra muito uma batalha entre astronaves ou uma corrida de

pod racers, ambas as situações de ―Guerra nas Estrelas‖ (1977, George Lucas),

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que, por curiosidade, foram sonoramente compostas por John Williams, compositor

de ―Minority Report – A Nova Lei‖), ou na cena de ação na linha de montagem de

automóveis, quando John Anderton se revela vivo dentro de um veículo finalizado e,

então, a música cresce, recebendo a adição de tambores orientais à la ―O Tigre e o

Dragão‖ (2000, Ang Lee), com um final intenso digno da vitória do protagonista

sobre seus perseguidores. Ainda sobre o automóvel magnético, a equipe

responsável pelo sound design explica que veículos magnéticos seriam silenciosos,

levando-os a buscar fontes diferentes para representar com mais dramaticidade a

atuação dos automóveis: pelo site IMDB (2002), ―de acordo com o sound designer

Gary Rydstrom, os sons do sistema automotivo Mag-Lev (Magnetic Levitation, ou

Levitação Magnética) foram feitos a partir dos sons de sua própria máquina de

lavar‖.

Ainda sobre os automóveis magnéticos, toda a sonorização da tecnologia contida no

cenário de ―Minority Report – A Nova Lei‖ foi pensada para ser memorável, sem

roubar a cena. A viatura hovercraft teve seus sons captados de veículos hovercraft

reais, que a equipe de produção analisou sob permissão das Forças Aéreas dos

EUA. Outros sons foram pensados para serem mais sutis, segundo entrevistas com

a equipe de produção: o computador de John Anderton e as spyders (aranhas

robóticas) emitem sons característicos, mas que não atrapalham os outros sons na

cena. O único som aparentemente incômodo (a um ouvido atento) parece ser o da

projeção 3D, com um zunido intenso, embora em volume muito baixo.

Certos sons e momentos das músicas foram utilizados no filme como forma de

enfatizar o que tenha acabado de ser dito por algum dos personagens ou para

fornecer maior dramaticidade a um ato realizado, como exemplificado anteriormente

no caso da fuga de Anderton, dentro do veículo finalizado na fábrica. Logo no início

do filme, quando o casal de amantes troca frases íntimas e fecha uma porta

espelhada, no reflexo aparece o marido traído e a ―música de fosso‖ sofre uma

crescente – mesmo efeito ocorre quando a Dra. Hineman revela a existência dos

Registros Dissonantes (Minority Reports), e o ―som ambiente‖ de música clássica

some para entrar uma ―música de fosso‖ instrumental pesada e dramática, composta

por sinos graves (a mesma música com sinos se repete no momento em que o

agente Witwer é baleado por Lamar Burgess – talvez uma intenção de ligar a

explicação da Dra. Hineman sobre os Registros Dissonantes ao perpetuador da

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manipulação destes mesmos Registros). Outro momento em que um som confere

mais dramaticidade à cena se dá quando Anderton compra a droga do traficante e

escuta o provérbio: a dramaticidade é conferida através de um trovão ao final da

última frase do traficante, permanecendo o trovão, enquanto a sombra se mantém

sobre o rosto de Anderton e o revela como a ―pessoa de um olho na terra de cegos‖.

Outro som de grande dramaticidade ocorre na cena em que Lara invade a área de

contenção de Gideon, quando ele questiona como ela teria sido capaz de entrar no

local sem autorização, no que ela responde simplesmente, sem pronunciar uma

palavra, mas deixando o olho do marido sobre algumas teclas do órgão, emitindo um

som grave e dramático do instrumento. Barnier (2008, p. 51) admite possíveis

interações entre uma ―música de fosso‖ e uma ―música de tela‖: ―uma música de tela

pode ser in ou fora-de-campo, por exemplo, e, depois, tornar-se uma música de

fosso e reciprocamente‖, como pode ter sido o som do órgão neste momento.

Por fim, as falas, ou a maneira de falar de alguns personagens, conferem muito mais

elementos de relevância para o entendimento da história. Por exemplo, durante a

apresentação do personagem Danny Witwer e sua postura de desdém quanto à

eficácia da Divisão Pré-Crime, percebe-se que suas falas são atrapalhadas pelo

chiclete que masca, demonstrando ainda mais o seu descrédito para com o

programa. Mesmo as canções infantis de Greta Van Eyck, assistente do Dr.

Solomon Eddie (cirurgião que realizou a troca de globos oculares de John Anderton),

fornecem um tom sinistro que liga seu rosto de bruxa icônica (velha, com grande

verruga no rosto) à sensação de dependência de John Anderton.

Segundo o IMDB (2002),

(...) no início, Steven Spielberg queria que Greta (assistente do Dr. Eddie) cantasse algo do ABBA, mas Peter Stormare sugeriu que ela cantasse outra coisa, para tornar a cena mais absurda. A canção infantil ―må grodorna‖ (Os Sapinhos) foi escolhida por Stormare. Esta música é, geralmente, cantada em festas de verão.

Uma situação interessante se dá quando são escutadas as vozes e os sons das

visões dos precognitivos. Muitas vezes, as vozes parecem ecoar, como de produtos

dos sonhos dos três indivíduos paranormais. Porém, no caso de Anne Lively,

especialmente quando a visão vem de Agatha, as vozes e os sons são mesclados a

borbulhas e abafados, como se fossem ouvidos dentro da água, talvez como um

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indicativo da forte ligação de Agatha com a mãe. Estes sons diferenciados para os

ouvidos de determinados personagens são explicados por Jullier (2008, p. 67) como

(...) sons que podem ser selecionados ou sofrer deformações relacionadas com o estado, o caráter ou os pensamentos de uma personagem, sem que essas modificações impeçam o espectador de acreditar que ―ouve pelos ouvidos‖ dessa personagem.

2.2.1.3.3 Narratividade

A partir de todas as informações visuais e sonoras analisadas anteriormente, é

possível entender como cada elemento audiovisual foi inserido no filme, de forma a

compor uma narrativa alinhada, como afirma Jullier (2008, p. 70):

(...) os pontos de vista óticos e acústicos que o cinema faz sucederem-se orientam, propositadamente, a nossa apreensão da história contada – o ―como‖, quer queiramos quer não, contém sempre um pouco de ―o quê‖.

A análise de ―como‖ a história é contada é, também, de suma importância à análise

fílmica pois, nas palavras de Gardies (2008, p. 75), ―o cinema comercial deve

essencialmente a sua fortuna, artística e econômica, ao domínio da arte de narrar‖.

Porém, é bastante complexo destacar certos elementos narrativos de uma obra

cinematográfica e estabelecer o que o filme busca enunciar. Gardies (2008, p. 89)

busca explicar a enunciação como

(...) o ato que consiste em produzir um enunciado, seja qual for a matéria de linguagem em que este toma forma (fala-se tanto de enunciado fílmico como verbal ou escrito) e independentemente do tipo de discurso (um enunciado pode ser argumentativo, narrativo ou descritivo).

A própria complexidade em explicar a enunciação denota o esforço e conhecimento

necessários para apreender as enunciações de um filme, sendo que, ―com a

imagem, a questão é problemática porque, ao contrário da língua, não possui

marcadores de enunciação como os dêiticos, por exemplo‖ (GARDIES, 2008, p. 89).

Em outras palavras, é difícil que todo espectador capte as mesmas enunciações de

um filme, especialmente porque os indicadores de quem emite a mensagem e,

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inclusive indicadores de qual é a mensagem, ficam ocultos dentro de uma narrativa

que pode ser encarada como voltada a puro entretenimento. Para Gardies (2008, p.

75), há dois níveis específicos para a análise narrativa em um filme:

(...) quer como uma entidade independente da linguagem que dela se ocupa (a ―mesma‖ narrativa pode circular do romance para a história em quadrinhos, passando pelo cinema e pela televisão), quer como uma instância que funciona de modo diferente segundo as linguagens que a atualizam (a questão do ―ponto de vista‖, por exemplo, recebe respostas específicas em função dos meios que dela se ocupam)

exigindo, portanto, discernimento de quais elementos narrativos poderiam fazer

parte de outra linguagem e quais são intrínsecos ao cinema. É perfeitamente

possível, por exemplo, que ―Minority Report – A Nova Lei‖ possa ser feito em forma

de videogame (como, inclusive, foi no game ―Minority Report – Everybody Runs‖ –

Figura 12), HQ, conto literário (como já explicado, o filme ―Minority Report – A Nova

Lei‖ é uma releitura do conto original ―The Minority Report‖) e qualquer outra

linguagem, embora cada uma permita maior ou menor apreensão de elementos

narrativos relevantes. Gardies (2008, p. 75) complementa dizendo que

atualmente, pode-se acrescentar um terceiro nível de análise: o que leva em conta o meio em que se materializa a narrativa (o meio e não apenas a linguagem) e examinar os condicionamentos narrativos específicos.

Um bom exemplo deste terceiro nível de análise seria no caso de um diretor decidir

por um remake deste filme, mas em formato made-for-tv, influenciando fortemente o

uso de planos e ritmo narrativo para ser melhor comportado aos intervalos

comerciais. De qualquer forma, a obra original e esta hipotética versão made-for-tv

ainda seriam produtos audiovisuais, porém, cada uma com um conjunto de

parâmetros característicos. De forma alguma, a obra cinematográfica seria mais rica

ou detentora de linguagem mais envolvente, da mesma forma que

a diegese não é específica do cinema (toda a narrativa, seja qual for a sua linguagem, elabora um universo diegético), mas a maneira como implica o espectador tem características consequentes (GARDIES, 2008, p. 79),

exigindo que o próprio espectador defina quais meios e linguagens mais lhe

envolvem.

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Figura 12. Capa de game Minority Report – Everybody Runs, à esquerda, e capa do conto original The Minority Report, de Philip K. Dick, à direita. Fonte: Buscas Amazon (2002).

Antes de construir a malha narrativa e a diegese que compõem o filme ―Minority

Report – A Nova Lei‖, é importante que se compreenda o funcionamento mais basal

da narração, verificando se ―seria possível descobrir as características do que fosse

uma narrativa, uma narrativa mínima, espécie de célula na base de toda a vida

narrativa‖ (GARDIES, 2008, p. 76).

Gardies (2008, p. 76) define esta unidade indivisível da narração como:

na sequência de um acontecimento, um mundo, até então estável, fica desequilibrado. Depois, tenta recuperar a estabilidade, quer pela instauração de um novo equilíbrio, quer pelo regresso ao primeiro equilíbrio.

A partir desta definição, pode-se definir os principais momentos de ―Minority Report

– A Nova Lei‖, como sendo: John Anderton, como oficial da Divisão Pré-Crime no

mundo estável; acusação de assassinato sobre John Anderton e questionamento

sobre a verdade por trás da força policial, como o desequilíbrio do mundo;

sequências de perseguição e interação com personagens-chave, como a tentativa

de recuperação da estabilidade; fim da Divisão Pré-Crime e restauração do equilíbrio

do mundo a partir da instauração de uma nova ordem.

Utilizando esta unidade básica da narração de ―Minority Report – A Nova Lei‖ como

referência, expande-se a malha narrativa através do apontamento de ―duas grandes

categorias de elementos: as funções e os indícios. Às primeiras, cabe a tarefa de

fazer avançar a narrativa, os segundos devem enriquecê-la‖ (GARDIES, 2008, p.

77).

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Há inúmeras funções e indícios em toda a duração do filme, mas alguns valem a

menção por representarem elementos importantes a esta análise fílmica.

Considerando que ―as funções trabalham no eixo sintagmático, encontram a sua

justificação, mais tarde, na narrativa e abrem uma alternativa‖ (GARDIES, 2008, p.

77), um exemplo sutil é o provérbio que o traficante cego conta a John Anderton –

ele diz que ―quem tem um olho é rei‖, citando, pelo plano seguinte, a exposição de

um só olho do detetive, ressaltando sua importância à história, além de indicar que,

de posse de seu globo ocular restante, foi possível a ele e sua esposa Lara

invadirem a sede da Divisão Pré-Crime e levarem a história adiante. Por outro lado,

―os indícios recebem uma sanção paradigmática, o seu sentido lê-se relativamente a

saberes ‗fora de texto‘‖ (GARDIES, 2008, p. 77), como a descoberta de que o dono

original dos novos globos oculares de John Anderton tinha como sobrenome

Yakamoto, e já era cliente cadastrado na loja Gap – estes fatos em nada levaram a

narração a um ponto mais avançado, mas delinearam com riqueza esta cena,

tornando a diegese mais plausível. É importante que cada um destes elementos faça

parte da narração, uma vez que

o caráter específico da diegese é constituir-se num mundo singular, com as suas próprias leis e povoado de objetos (humanos, animais e objetos propriamente ditos), na maioria dos casos à imagem do mundo real, mas não necessariamente (GARDIES, 2008, p. 79).

Acrescenta-se que estes objetos é que dão volume à diegese, através da exposição

destes objetos nas funções e nos indícios.

Com a diegese construída nas unidades narrativas apontadas, torna-se viável

compreender o papel de outro elemento de extrema importância e componente

fundamental à narração: o personagem, que ―embora viva tão bem no romance

quanto na HQ ou nos videogames, oferece particularidades profundamente

enraizadas no material fílmico‖ (GARDIES, 2008, p. 80).

Gardies (2008, p. 81) explana sobre o personagem de uma obra cinematográfica da

seguinte forma:

Entre o argumento, o realizador e o ator, mas também o sonoplasta, o operador ou o designer de figurino (...), instaura-se um verdadeiro trabalho de negociações que, lentamente, faz emergir a figura fílmica da personagem. Neste sentido, deve-se conceber sempre a personagem como o resultado de um conjunto complexo de transações.

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A começar pelo protagonista, John Anderton é o herói trágico, cuja participação na

diegese vem de um passado sofrido com a perda do filho e o fim de seu casamento,

e depois durante a narração, quando se vê incriminado por um ato que ele se dedica

todos os dias a combater. Interagindo com todos os outros personagens-chave da

trama, ele monta o quebra-cabeça que revela toda a verdade sobre a Divisão Pré-

Crime e a origem dos três precognitivos, também levando ao fim do antagonista e ao

retorno da estabilidade no mundo diegético – Gardies (2008, p. 80) ressalta que, ―ao

longo de todo o filme, o seu sentido está constantemente a evoluir, a construir-se e a

desconstruir-se‖.

Após o protagonista, o antagonista: Lamar Burgess, um dos fundadores da Divisão

Pré-Crime e indivíduo sem nenhum escrúpulo para eliminar pessoas que interferem

em seu sonho de tornar nacional a atuação da Divisão Pré-Crime, inclusive matando

a mãe de Agatha e o agente Danny Witwer, e incriminando John Anderton. A relação

entre Anderton e Burgess também é importante para que qualquer suspeita da

vilania de Burgess fosse revelada quando não houvesse mais alternativa. Um

idealista distorcido, Burgess tem a boa intenção de instaurar um sistema de justiça

baseado na alteração do destino antes do crime, mas não vê saída, a não ser

empregar meios criminosos para atingir esta intenção. Finalizando a tríade, há o

agente Danny Witwer (Figura 13), que realiza uma auditoria sobre a Divisão Pré-

Crime e, por este fato, gera a suspeita de ser o antagonista até perceber, aos

poucos e devido às ações de John Anderton, forças ocultas atuando dentro da

Divisão Pré-Crime. Comandando uma equipe de ―homens de preto‖, e até mesmo

usando um automóvel com design retrô, Witwer mostra uma adição misteriosa que

reforça o gênero film noir presente no filme.

Figura 13. Agente Danny Witwer em discussão com Anderton Fonte: Spielberg (2002).

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A Dra. Iris Hineman é a personagem que revela ao protagonista a existência dos

Relatórios Dissonantes e lhe mostra os possíveis cursos a seguir, em busca da

verdade. Enlouquecida pelas consequências de seus experimentos com mães

viciadas em drogas, Hineman é uma figura de sabedoria e de mágoa, recolhendo-se

à sua estufa de plantas mutantes para não mais interagir com o mundo.

Agatha, a precognitiva mais poderosa, é também a única capaz de gerar Relatórios

Dissonantes, como explicado pela Dra. Hineman. Ao abordar John Anderton sobre

suas visões quanto à morte de Anne Lively, Agatha se torna parceira do herói,

auxiliando-o na busca pela verdade da morte de Anne Lively, a existência dos

Relatórios Dissonantes e a origem dos Precogs e da Divisão Pré-Crime. Seu nome é

inspirado na famosa escritora de romances policiais Agatha Christie.

Anne Lively, mãe da Precog Agatha, está fora do trecho cronológico onde acontece

o filme, mas possui extrema importância na narrativa, por ser uma prova da

existência dos Relatórios Dissonantes. Através das visões de Agatha, esta

personagem impulsiona os atos de John Anderton em busca da verdade por trás da

Divisão Pré-Crime, atuando como a força impulsionadora da missão heroica do

protagonista.

Gideon, o Dr. Solomon Eddie, Rufus T. Riley e mesmo Leo Crowe e Lara Clarke são

personagens que representam aliados à descoberta da verdade, dando-lhe acesso

ao ―mundo inferior‖ dos prisioneiros, aos ―itens mágicos‖ (novos olhos), às consultas

oraculares (no cyber parlor), à informação da existência de uma figura que deseja a

queda do herói e ao abrigo para a constatação da verdade. Personagens como

Wally (o guardião dos precognitivos), os agentes Fletcher, Jad, Knott e Evanna, a

Srta. Greta Van Eyck e o traficante cego servem apenas como personificações de

figuras de baixa expressividade, atuando como indícios de narrativa. Curiosamente,

os precognitivos Arthur e Dashiell (que receberam nomes dos famosos escritores de

romances policiais Arthur Conan Doyle e Dashiell Hammett) ficam durante quase

todo o filme inconscientes, aparecendo livres e como pessoas normais apenas nos

minutos finais do filme.

Gardies (2008, p. 80) expande ainda mais sua explicação sobre as mudanças pelas

quais todos os personagens da diegese podem passar ao longo da narração:

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Esta operação de atribuição, familiar porque remete para o trabalho empírico de todos, é simples no seu princípio: na medida em que a ação evolui, diversas características são atribuídas à personagem. Dizem respeito tanto ao seu físico como ao seu caráter, à sua gestualidade como às suas roupas, aos seus objetos emblemáticos (...) como aos sinais de reconhecimento (...). Os ruídos, a música e os elementos verbais são também portadores destas informações no eixo temporal: não é indiferente que determinada característica intervenha no princípio ou no meio do filme.

Entre as mudanças mais marcantes dentro de ―Minority Report – A Nova Lei‖, está a

troca de globos oculares de John Anderton (de olhos verdes para olhos castanhos) e

sua mudança de aparência, após ser capturado e preso na área de confinamento da

Divisão Pré-Crime. Ao se livrar do aprisionamento, Anderton aparece nas cenas

seguintes com roupa negra e capuz que lhe cobre um dos olhos (remetendo ao

provérbio dito no início do filme), mas trazendo a queda do vilão – ou seja, como a

figura arquetípica da Morte. Porém, no decorrer da última conversa com Burgess, o

capuz é removido e, careca, John Anderton se mostra mais sábio, talvez pelo longo

tempo dividido com a Precog Agatha. Esta aparência de ―monge budista‖ (antes

reservada aos três Precogs apenas) pode ser um indicativo de quais personagens

descobrem a verdade. Outra mudança, também ligada aos cabelos, está nos três

Precogs, que após serem liberados do confinamento na Divisão Pré-Crime, deixam

o cabelo crescer e passam a viver isolados no campo, utilizando roupas normais no

lugar dos trajes ―embrionários‖ que utilizaram durante quase todo o filme – esta

aparência mais comum indica que o mundo voltou à sua normalidade.

Conhecendo os personagens e as mudanças pelas quais passam em consequência

de seus atos, é analisado, então, o espaço-tempo diegético, que ―contribui para a

elaboração do mundo diegético: neste sentido, responde a uma das primeiras

questões de qualquer narrativa: onde se passa a história?‖ (GARDIES, 2008, p. 82).

Desde o início do filme, e durante vários trechos, é enfatizado que toda a ação se

passa durante 2054, na cidade de Washington, capital dos EUA, mas que os

eventos lá ocorridos poderiam atingir proporções nacionais com uma votação pela

expansão da Divisão Pré-Crime para todo o país. Gardies (2008, p. 82) ainda afirma

que ―é a partir dos lugares (...) que podemos aceder à compreensão do espaço,

sobretudo na sua funcionalidade narrativa‖, sendo importante não apenas saber que

o filme se passa em tal cidade, mas também compreender quais localidades desta

cidade serão importantes à narrativa.

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Como ponto convergente a quase todas as ações está a sede da Divisão Pré-Crime,

palco de algumas interações entre a tríade Anderton-Burgess-Witwer, local de

importância porque ―entre a personagem e o espaço negocia-se, constantemente,

uma relação associativa, feita de disjunção e de conjunção‖ (GARDIES, 2008, p. 84).

O acesso autorizado, ou não, à sede, é um fator capaz de descrever em qual

momento da narração o protagonista está, por exemplo.

A história, em grande parte seguindo uma sequência linear de eventos, apresenta

retomadas ao passado ou ao futuro para auxiliar no andamento da narrativa, e

Gardies (2008, p. 85) defende estes acessos momentâneos a outros momentos,

quando afirma que ―se os acontecimentos têm o seu próprio eixo temporal (a

cronologia), nada obriga a que sejam relatados segundo essa ordem. Abre-se,

então, o domínio dos anacronismos, em especial o flash-back e o flash-forward‖,

como o sonho de Anderton, na última vez em que esteve com o filho antes de seu

desaparecimento, a lembrança de Agatha sobre a morte da mãe ou a força-motriz

de Anderton: a visão do assassinato de Leo Crowe por suas mãos. Sobre o uso de

flashbacks ou flash-forwards, ―a frequência postula que, se um acontecimento ocorre

apenas uma vez, nada obriga a que seja relatado apenas uma vez. Qualquer

narrativa pode incidir sempre no mesmo fato‖ (GARDIES, 2008, p. 85) – o que leva à

relevância de se repetir a visão da morte de Anne Lively tantas vezes durante o

filme. A existência do narrador é importante também na análise fílmica, pois indica

como enxergar toda a diegese como unidade, mesmo que não haja um narrador

formal (em ―voz over‖). Esquenazi (2008, p. 123) exemplifica a narrativa sem

narrador formal ao citar ―Guerra nas Estrelas‖:

O narrador de ―Guerra nas Estrelas‖ não é George Lucas, produtor da série e realizador do primeiro episódio, mas o seu representante ficcional, sempre presente onde algo acontece no mundo da guerra das estrelas.

Assim como no caso de ―Guerra nas Estrelas‖, ―Minority Report – A Nova Lei‖

também não apresenta narrador formalizado, aproveitando a tendência que

Esquenazi (2008, p. 122) traz à tona:

(...) as narrativas que usam as tecnologias da imagem têm com menos frequência narradores explícitos que sejam também personagens. No entanto, devemos supor que há ―alguém‖ perfeitamente introduzido no mundo onde se situa a narrativa, que nos faz ver o que se passa.

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Tendo em mente que o narrador apresenta a história na ordem de eventos e na

ênfase de personagens como lhe convém, tal fato leva a uma interessante hipótese:

o narrador estaria narrando a história de Agatha, e não de John Anderton. A primeira

cena (do assassinato pelas mãos de Howard Marks) ocorre a partir dos olhos

abertos de Agatha; John Anderton só se torna o herói da narrativa ao interagir com

ela; Agatha seria a principal interessada na vingança pela morte de Anne Lively; e o

filme termina mostrando a paz de Agatha após a paz de John Anderton, deixando

claro qual das pazes fecharia efetivamente a história. Esta hipótese é uma possível

resposta à importante questão ―Que posição adota o narrador relativamente às

personagens?‖ (GARDIES, 2008, p. 86), no processo de análise fílmica.

Curiosamente, a obra cinematográfica ―Minority Report – A Nova Lei‖ poderia ser

encarada como a narrativa da libertação de Agatha, através das ações do agente

John Anderton.

A finalização da análise narrativa de uma obra cinematográfica ocorre através da

verificação da passagem de fatos e informações diegéticas ao espectador, explicada

por Gardies (2008, p. 87): ―a análise dos processos pelos quais cada filme gere o

acesso ao saber diegético revela-se particularmente enriquecedora quando nos faz

tomar mais consciência da dimensão lúdica implicada em toda a recepção fílmica‖,

para que possamos entender a expectativa da obra para com seu público, chamada

pelo autor de polarização, fator que ―gere as questões do saber, nomeadamente a

partir da relação triádica entre o enunciador, a personagem e o espectador‖

(GARDIES, 2008, p. 87). Este mesmo autor afirma que:

Três situações-tipo (...) são, então, referenciáveis: a polarização-personagem, a polarização-espectador e a polarização-enunciador. Com a primeira, estou em igualdade de saber com a personagem; com a segunda, estou em posição de onisciência (como se tudo no filme fosse feito para me dar a sensação de saber absoluto); com a terceira, pelo contrário, tenho a sensação de saber pouco, como se o enunciador guardasse as cartas para si (GARDIES, 2008, p. 87).

Por se tratar de um filme de mistério e clima de film noir, percebe-se que o saber

sobre quem é aliado e quem é inimigo do herói é bastante desafiador, com

pouquíssimas pistas ao longo do filme que possam revelar, de antemão, estas

informações, o que levaria à conclusão de que ―Minority Report – A Nova Lei‖

baseia-se no uso da polarização-enunciador. No entanto, o momento em que o

espectador descobre ser Lamar Burgess o conspirador da trama, durante o

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momento em que ele assassina Danny Witwer, vem antes da descoberta de John

Anderton, que presume-se ter acontecido através de sua libertação da área de

confinamento pela ex-esposa, o que denota, então, ser uma situação de

polarização-espectador, por ser um filme em que o espectador sabe mais do que o

protagonista.

2.2.2 Dimensão 2

2.2.2.1 Contexto In

2.2.2.1.1 Histórico do autor original

O conto original The Minority Report, escrito por Philip K. Dick, em 1956 (quando o

escritor tinha apenas 28 anos), é apenas um, entre diversas outras obras escritas

por este novelista, ao longo de sua vida. Segundo informações do website

(http://www.philipkdick.com/) criado em sua homenagem, seu passado é conturbado

devido à perda da irmã gêmea Jane, seis semanas após o nascimento, e também

pelo relacionamento com os pais, divorciados desde seus cinco anos de idade.

Segundo o website, estas conjunturas lhe fizeram constantemente questionar o que

é real e o que é ser humano. Durante a adolescência, o autor passou a sofrer surtos

esquizofrênicos, fato que influenciou certos personagens de seus contos, que

perdem a consciência do que é real e o que é ilusório.

Com 28 anos, Philip já estava em seu terceiro casamento e já era um escritor de

ficção científica razoavelmente conhecido em seu meio, momento quando seu conto

The Minority Report foi publicado na revista de estórias de ficção científica Fantastic

Universe (Figura 14), periódico que já teve a participação de outros grandes

escritores, como Arthur C. Clarke, Ray Bradbury e Isaac Asimov.

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Figura 14. Edição de Fantastic Universe, com The Minority Report Fonte: Google (2013).

Após uma sequência de outros grandes contos publicados nos anos seguintes,

Philip K. Dick passa a sofrer experiências supostamente espirituais a partir de 1974,

quando ele já tem 46 anos. Em 1982, Philip falece devido a um novo surto mental

acompanhado de insuficiência cardíaca, sem ter a oportunidade de assistir à

primeira adaptação de um conto seu para o cinema, Blade Runner – O Caçador de

Andróides (1982, Ridley Scott), lançado no mesmo ano de sua morte. Mesmo após

esta primeira adaptação de um conto seu ao cinema,

(...) até hoje, a ficção psicodélica e transcendente de Philip K. Dick inspira adaptações para o cinema (até agora - o ano de 2007 – fora os projetos abortados: Blade Runner, dirigido por Ridley Scott, EUA, 1982; Total Recall, com direção de Paul Verhoeven, 1990; Screamers, dirigido por Christian Duguay, 1995; Impostor, com direção de Gary Fleder, 2002; Minority Report, dirigido por Steven Spielberg, EUA, 2002; Paycheck, dirigido por John Woo, EUA, 2003, e O Homem Duplo, com direção de Richard Linklater, EUA, 2006) (SUPPIA, 2007, p. 18).

Suppia (2007) ressalta a importância de Philip K. Dick ao cinema de ficção científica

quando, em sua tese de doutorado, narra a historiografia da ficção científica no

cinema e acaba sua linha do tempo afirmando que

(...) surgem, também no início do século XXI, mais adaptações de autores consagrados, como O Pagamento (Paycheck, 2003, dirigido por John Woo), adaptação de conto homônimo de Phillip K. Dick (...). No período, parece ter sido redescoberta a obra de Dick como fonte criativa para o cinema, haja vista a multiplicação de adaptações da obra do escritor, como Impostor (Imposter, 2002), de Gary Fleder, ou O Homem Duplo (A Scanner Darkly, 2006) (SUPPIA, 2007, p. 82).

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2.2.2.1.2 Momento da obra original

A década de 50 foi especialmente importante ao gênero de ficção científica, que viu

uma explosão de obras literárias e cinematográficas – a proliferação dos filmes de

ficção científica nessa década foi um verdadeiro fenômeno. Insetos gigantes,

monstros marinhos, robôs e forças de outros mundos subitamente encontraram um

nicho no cinema americano, acompanhados por temas de invasão, histeria em

massa e as consequências sombrias dos avanços na ciência.

Em meio a esta moda, Philip K. Dick se inspirou em eventos de sua própria vida e

também nas conjunturas sociais que observava em seu país, que ainda se

recuperava dos investimentos e traumas da Segunda Guerra Mundial e resistia à

expansão do Socialismo em nível global, principalmente com a instauração do Pacto

de Varsóvia entre oito grandes nações socialistas (incluindo a URSS). A Segunda

Guerra Mundial ainda estava ―fresca‖ no imaginário da população mundial, e a

exploração de qualquer tipo de medo interno era exatamente o que estes tipos de

filmes almejavam.

Além da exploração destes medos e inseguranças da sociedade anticomunista

norte-americana da década de 50, Philip K. Dick ainda observou a corrida

armamentista inescrupulosa que acompanhava este medo, inspirando-se no

momento de escrever a obra The Minority Report.

Quando tudo está dito e feito, militares e agentes do FBI são os heróis que

restauram a paz e a ordem dos filmes de ficção científica dos anos 50: a solução

final para um conflito dentro da diegese raramente é mais complexa do que um

míssil ou bomba bem-mirados por um soldado. No caminho contrário, Philip criou um

personagem antagonista ao herói do conto, exatamente como um militar

armamentista que deseja eliminar os Precogs para receber os recursos antes

destinados à força de justiça precognitiva.

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2.2.2.1.3 Fase do diretor

Steven Spielberg utilizou o roteiro de Jon Cohen para dirigir ―Minority Report – A

Nova Lei‖, dando ele, também, sua própria visão baseada tanto no roteiro como na

obra original de Philip K. Dick, porém, a forma como sua direção foi executada está

vinculada ao momento profissional de Spielberg. Depois de grandes blockbusters

nas décadas de 70 e 80, o diretor começou (ainda na década de 80) a mudar a

temática dos filmes que dirigiu, com ―A Cor Púrpura‖ (1985, Steven Spielberg),

―Império do Sol‖ (1987, Steven Spielberg) e ―Além da Eternidade‖ (1989, Steven

Spielberg).

Com ―A Lista de Schindler‖ (1993, Steven Spielberg), Spielberg buscou suas raízes

étnicas ao retratar os judeus no Holocausto, obtendo ótimas bilheterias, sem que

fosse um filme de seu tradicional estilo de blockbusters hollywoodianos, mostrando-

lhe novas oportunidades para arriscar formatos e temáticas diferentes. Após dirigir

Amistad (1997, Steven Spielberg), ―O Resgate do Soldado Ryan‖ (1998, Steven

Spielberg) e ―Inteligência Artificial‖ (2001, Steven Spielberg), Spielberg decide com

Tom Cruise dirigir ―Minority Report – A Nova Lei‖, que, segundo o IMDB (2002), o

próprio diretor declara como seu ―filme mais feio e sujo‖, referindo-se à fotografia

que quis empregar para retratar uma realidade sombria e distópica. Suppia (2007, p.

82) complementa que

(...) após os consagrados filmes de ficção científica dirigidos por Spielberg, ele continua dirigindo filmes de ficção científica importantes como Minority Report (2002), outra adaptação de conto de Phillip K. Dick (talvez a segunda melhor de todas até agora, depois de Blade Runner), sobre futuro no qual a polícia dispõe de um sistema de previsão de crimes.

Esquenazi (2008, p. 122) afirma que ―um dos elementos decisivos desta relação

(entre a imagem e seu espectador) é o papel que o espectador atribui ao autor da

imagem‖, de forma que a marca de Spielberg está no tom sentimental que sempre

leva a seus filmes e ao emprego monumental de efeitos visuais como em seus

famosos blockbusters, mas com fotografia e cenografia muito diferentes de seu

padrão, mostrando sua fase de experimentação e, ainda dentro de seu histórico de

filmes, ―vale a pena destacar em filmes como esses (Minority Report, ‗Guerra dos

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Mundos‘ e ‗Inteligência Artificial‘) o imaginário spielbergiano de futuro, cada vez mais

sombrio e interessante‖ (SUPPIA, 2007, p. 82).

2.2.2.2 Contexto Out

O Contexto Out comporta todas as forças externas ao objeto de estudo e à relação

da indústria cinematográfica com este objeto. Trata-se do conjunto de conjunturas

sociais, históricas, culturais, econômicas, tecnológicas e até mesmo políticas, porque

―o filme continua a ser considerado um ‗texto‘, em torno do qual gravitam em órbita

geoestacionária a produção, mais longe, a recepção e, ainda mais longe, a cultura‖

(BARNIER, 2008, p. 52), este último termo agregando todas as conjunturas

supracitadas.

Desta forma, a análise fílmica permite que, segundo Lagny (2008, p. 91), sejam

observadas duas perspectivas históricas que se encontram numa obra audiovisual:

a de uma história do cinema, que nos permitiria, tal como uma história da arte, compreender a evolução de uma forma cultural; e a de uma história geral, que confere a cada obra produzida num dado contexto, um significado correspondente a um projeto particular.

Porém, esta história que acompanha a cultura tende a vir oculta, ou pouco

perceptível, simplesmente porque o filme

tal como uma ópera ou uma peça de teatro ou um romance, não tem por função, salvo em casos especiais (notícias, filmes de propaganda ou filmes ativistas), prestar testemunho. Na maioria dos casos, trata-se de construir um espetáculo, que pode ser tão sério quanto divertido, mas que obedece também a regras históricas e contextuais na sua relação com toda a cultura (LAGNY, 2008, p. 92).

O desafio deste âmbito na análise fílmica torna-se exatamente seguir o rastro desta

migração de imagens e temas: ―(...) não só necessita de um bom conhecimento do

cinema, como também de uma sensibilidade aos ecos culturais emitidos pelos

filmes‖ (LAGNY, 2008, p. 94), desde um simples evento político ou econômico na

época, até um assunto muito debatido ou uma mudança cultural que conflite com

uma tradicional estabilidade sociocultural.

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Não basta apenas saber quais são estas conjunturas, mas também é necessário

haver ―uma reflexão sobre a função social do cinema e, ao mesmo tempo, de uma

compreensão das realidades a que ele está sujeito (políticas, técnicas, artísticas,

econômicas) e da variação dos usos que dele se fazem no espaço e no tempo‖

(LAGNY, 2008, p. 95). Ainda segundo Lagny (2008, p. 103), ―o cinema funciona num

contexto cultural que é certamente preciso, local, datado, mas também enraizado em

tradições longínquas, frequentemente sugeridas por referências às vezes vagas‖,

levando um indivíduo que analisa um filme a buscar quaisquer dados que possam

auxiliar a ter uma ideia do contexto Out, no qual o filme se situa, pois ―o cinema tem

muito a ver com o imaginário social e com as coerências socioculturais‖ (LAGNY,

2008, p. 107).

2.2.2.2.1 Contexto sociocultural

A observação do contexto sociocultural depende, primeiramente, de uma estrita

definição geotemporal: de onde e de quando é a sociedade que consumirá a obra

cinematográfica. Obviamente, sendo um filme hollywoodiano, tende-se a imaginar

que o ―onde‖ é o mundo inteiro, mas esta constatação é passível de erro, uma vez

que a tradicional indústria cinematográfica norte-americana se foca em expor e

defender seus valores sociais, o American Way of Life. Sendo assim, a sociedade

norte-americana dos últimos anos da década de 90 e primeiros anos do século XXI é

o grupo social que provavelmente influenciou o filme ―Minority Report – A Nova Lei‖.

Esquenazi (2008, p. 145) expõe uma breve explicação de alguns fatores a serem

observados:

A arte, a família, o divertimento, o comércio, a informação, a ciência, cada domínio à sua maneira induz diversas e variadas práticas da imagem, que utilizam todas as tecnologias icônicas disponíveis, sem contar com as da escrita e da fala, e produzem objetos sempre novos.

Na trama, John Anderton se tornou um agente da Divisão Pré-Crime para que não

acontecesse com outras famílias o que aconteceu na dele: desaparecimento e

suposta morte do filho, divórcio etc., questões estas muito fortes e que atraem a

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reflexão do público devido aos atuais debates de formatação familiar. As

observações destas questões familiares e outros fatores socioeconômicos

permitem tentar avaliar aquilo que, num dado contexto socioeconômico-histórico, determina o visível e o passível de ser escrito das produções audiovisuais. O que é, em certas épocas, dado a ver? O que é excluído das imagens? O que é que o espectador aceita? Como se modificam os limites do representável, quer se trate de violência, sexualidade, miséria, corrupção ou qualquer outra forma de abuso? (VANOYE, 2008, p. 175).

Este comportamento do público pode ser o fator que levou o filme a apresentar os

Precogs como pessoas mental e fisicamente saudáveis, enquanto o conto original

de Philip K. Dick retratava os Precogs como mutantes, com cabeças exageradas,

corpos frágeis demais e deficiências mentais que os impediam de interagir

normalmente com outras pessoas. Vanoye (2008, p. 176) salienta, ainda, que

se nos situarmos numa perspectiva mais comercial, a análise (fílmica) incidirá sobre a forma de satisfazer as expectativas presumíveis do espectador-cliente, geralmente definidas segundo critérios etários e de pertença socioeconômica-cultural.

Outra questão importante à dissertação é relativa ao relacionamento entre indivíduos

e a publicidade. O filme retrata uma realidade interativa onde o indivíduo não

consegue fugir da comunicação direcionada e onde os anunciantes recorrem à

biometria da organização política para impactar seu público-alvo. Após o filme,

diversas discussões surgiram sobre a privacidade, a publicidade contextual e a

permissividade do indivíduo com relação às marcas, de maneira que o espectador

foi capaz de ―desempenhar um papel ativo, quer para contribuir para a extensão dos

limites da tolerância, quer, pelo contrário, para os reduzir‖ (VANOYE, 2008, p. 176).

Com certeza, este filme teve papel sociocultural importante para trazer à tona estas

questões sobre publicidade, que guiarão os objetivos e atuações de estudiosos da

publicidade e da tecnologia que envolve a comunicação.

A produção do filme foi iniciada em 22 de março de 2001, em Los Angeles, mas as

conversas entre Steven Spielberg e Tom Cruise vinham de épocas anteriores quanto

à produção deste filme. Mesmo assim, Spielberg organizou um think tank com

especialistas na futurologia de diversas áreas, como tecnologia, meio ambiente,

combate ao crime, medicina, saúde, serviços sociais, transporte, computação etc.

Segundo o IMDB (2002),

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três anos antes do início da produção, Steven Spielberg reuniu um time de dezesseis experts em future, em Santa Mônica, para um brainstorm sobre o ano de 2054. Este time incluiu: Neil Gershenfeld, professor do Media Lab no MIT; Shaun Jones, diretor de pesquisa biomedical da DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency); William Mitchell, reitor da escola de arquitetura do MIT; Peter Calthorpe, evangelista do Novo Urbanismo; Jaron Lanier, um dos inventores da tecnologia de realidade virtual; Douglas Coupland, autor e comentador; Stewart Brand, autor, cientista e cocriador da comunidade online The Well; Kevin Kelly, fundador da Revista Wired; Harald Belker, designer de automóveis e John Underkoffler, o conselheiro em ciência e tecnologia para o filme.

A Futurologia é tanto um exercício de previsão de tendências ao futuro, como

também um apontamento preciso do que acontece na atualidade e que se fortalece

para se tornar tendência ao futuro, razão essa que levou Spielberg ao think tank

como especialista de futurologia: abordar o futuro para compreender o presente.

2.2.2.2.2 Contexto político-legal

Segundo Jean-Michel Valantin (2003), o relacionamento entre Hollywood e a política

norte-americana sempre foi muito intenso, de maneira que Hollywood é um

conhecido doador de recursos para campanhas políticas, atraindo candidatos às

causas do cinema norte-americano. Valantin (2003) também deixa claro que não

apenas Hollywood encanta Washington com os recursos financeiros e o glamour,

mas Washington, por sua vez, também influencia Hollywood. O sistema político

norte-americano, assim como todo sistema político de qualquer país, utiliza o padrão

de consumo da população para apreender oportunidades e suscitar debates que

apoiem suas plataformas de governo. Porém, não é toda obra cinematográfica que

levanta debates de auxílio à atuação de políticos. Segundo Esquenazi (2008, p.

138),

um filme destinado ao grande público não é, desde logo, uma intervenção num debate cultural. Para que seja considerado como tal, é necessário (...) que se preencham duas condições. A primeira, diz respeito ao contexto da recepção: esta deve ser particularmente sensível à questão que vai criar o debate. A segunda, tem a ver com o próprio filme, que deve permitir que se desenvolvam interpretações conflituais.

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A questão de uma força policial que aprisiona cidadãos por crimes que eles nem

chegaram a cometer podem, ou não, ter influenciado a opinião pública e a atuação

política no ano de lançamento do filme (2002) e no ano seguinte. Porém, é sabido

que em 2002 foi instaurado o Departamento de Segurança Interna dos Estados

Unidos, em reação aos atos terroristas de 11 de setembro do ano anterior, apoiado

pelo Patriot Act do mesmo ano do atentado, que permite a invasão de lares, a

espionagem sobre cidadãos, a condução de interrogatórios e até mesmo a tortura de

possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a defesa ou

julgamento, coincidentemente retirando direitos do cidadão, da mesma forma como

a atuação da Divisão Pré-Crime faz no filme. Em 2003, o Partido Republicano se

torna maioria no Congresso dos EUA e dá apoio à Invasão do Iraque, não por ações

que Saddam Hussein estaria fazendo, mas para simplesmente impedi-lo de realizar

novas ações desumanas no futuro. Sendo assim, pode-se afirmar que, direta ou

indiretamente, a atuação da Divisão Pré-Crime no filme ―Minority Report – A Nova

Lei‖ foi um possível elemento para debate público sobre a condução do então

presidente George W. Bush quanto à defesa dos EUA e sua política externa.

2.2.3 Dimensão 3

2.2.3.1 Gêneros cinematográficos e hibridização

Sendo um misto de ação, ficção científica e film noir, o filme ―Minority Report – A

Nova Lei‖ exige que antes seja exposta a definição de gênero cinematográfico de

modo a auxiliar o entendimento sobre a razão destes três gêneros serem base para

a obra cinematográfica. Vanoye (2008, p. 187) faz a seguinte definição de gênero:

Os gêneros cinematográficos ou televisivos podem ser assim abordados:

- em função do seu impacto comercial na ótica da estandardização ligada à cultura de massas;

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- como modos de consumo ritual de formas e conteúdos estereotipados correspondentes às expectativas (representações, aspirações, crenças) e às necessidades dos espectadores (distrair-se, exorcizar medos, transmitir valores, justificar ou ratificar uma ordem social) num dado contexto;

- como variantes de mitos, que tendem a oferecer representações dos conflitos e das tensões e que participam na elaboração de uma identidade coletiva (...), na celebração dos valores de uma comunidade e na sua defesa (...);

- como lugar onde se joga a dialética do previsível e do inesperado, em que o espectador exige reencontrar o prazer do conhecido e já apreciado e, ao mesmo tempo, a surpresa do novo, ligado à variação ou à invocação.

A pluralidade de gêneros vista em ―Minority Report – A Nova Lei‖ indica o interesse

em atingir diversos públicos através de temas paralelos, cumprindo a ―profecia‖ de

Biihrer (2010, p. 79) quando o próprio especulou que ―novas formas de interação e

individualização do filme são caminhos que o novo cinema tende a tomar, como por

exemplo, (...) a possibilidade de constituições narrativas modulares‖. Biihrer (2010)

não foi o único a vislumbrar tais rumos. Badovinac (2009, p. 4) confirma que ―quando

falamos de uma nova narrativa que seria mais adequada ao presente e à situação

global, nós só podemos falar de narrativas no plural‖. Afortunadamente, o próprio

―Minority Report – A Nova Lei‖ foi citado por Carreiro (2003, s.p.) dentro deste tema

da pluralidade: ―‗Minority Report‘ tem um trunfo que, automaticamente, lhe dá um

papel de amplo destaque na filmografia norte-americana contemporânea: uma

multidimensionalidade palpável, verdadeira, muito rara no cinema atual‖.

Para entrar em detalhes sobre cada camada narrativa e seus respectivos gêneros

cinematográficos, é primordial deixar clara a definição escolhida para o uso do termo

―narrativa‖: ―qualquer ordenação específica no cinema, seja de um filme ficcional ou

não ficcional, relacionada a um determinado objeto ou objetivo que se quer

representificar, corresponde ao contexto de uma linguagem, de uma narratividade‖

(SHOO, 2007). Ou seja, uma narrativa é uma linha coerente de eventos (em

qualquer produto cultural, desde um filme ou livro até videogames e histórias em

quadrinhos) que induzem o espectador a refletir sobre temas intrinsecamente

vinculados a esta linha de evento.

De forma sintética, pode-se apontar três camadas narrativas compondo este filme: a

narrativa de ação, a viagem fantástica pelo mundo na ficção científica e a discussão

histórico-filosófica de certos temas contidos no filme, através de elementos do film

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noir. Contudo, quando se tratam se gêneros cinematográficos, Nogueira (2010, p. 3)

diz ser ―difícil atingir um consenso definitivo sobre os critérios e as fronteiras que

permitem identificar e balizar cada gênero‖.

Apesar da relativa dificuldade em apontar características intrínsecas a cada gênero

cinematográfico, há três informações sobre a instituição de gênero a um filme que

podem auxiliar este projeto:

(...) virtualmente, a partilha de uma dada característica implica a pertença de um filme a um gênero; (...) toda a obra pode, em princípio, ser integrada num determinado gênero; e (...) uma obra pode exibir sinais ou elementos de diversos gêneros (NOGUEIRA, 2010, p. 3),

auxiliando no fato de que ―Minority Report – A Nova Lei‖ é fruto da hibridização

destes três gêneros clássicos apontados, mais influências de outros gêneros e

subgêneros, como o policial e até o suspense. Nogueira (2010, p. 4) explica mais

sobre o gênero ao afirmar que

se aplicarmos (...) critérios de ordem essencialmente narrativa na categorização genérica das obras cinematográficas, podemos identificar aquilo que designamos por gêneros clássicos (...), cujos elementos se manifestam recorrentemente e nos permitem um fácil reconhecimento das características da história (o que se conta) e do enredo (o modo como se conta): as situações e padrões narrativos, a tipologia e perfil das personagens, a morfologia e semiótica dos locais, os temas abordados, a época dos acontecimentos, a iconografia e a simbologia dos adereços e objetos, bem como opções estilísticas convencionais ao nível da música, da montagem ou da fotografia, são aspectos essenciais dessa caracterização.

Na obra cinematográfica, ―os gêneros permitem jogar com um repertório de

elementos testados e instituídos que criam familiaridade nas expectativas do

espectador‖ (NOGUEIRA, 2010, p. 7), garantindo relativo sucesso com base no

sucesso de outras produções de mesmo gênero. Desta forma, uma obra de gênero

misto como ―Minority Report – A Nova Lei‖ consegue atingir vários públicos de uma

só vez através destes elementos. Estes elementos consolidados são também alvo

de modificações dos diretores para que insiram sua própria marca no gênero e

revelem novos formatos para abordar tal gênero, sendo que em tempos mais

recentes, realizadores como Steven Spielberg exibiram a sua capacidade criativa

nos mais diversos gêneros ―(...) ganhando notoriedade, precisamente pela invenção

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formal ou a abordagem pessoal de temas e situações recorrentes e reconhecíveis

nos diversos gêneros‖ (NOGUEIRA, 2010, p. 10).

―Minority Report – A Nova Lei‖ poderia ser encarado, principalmente, como um filme

de ação devido às cenas e ao ritmo agitados e uso de efeitos visuais (Figura 15).

Nogueira (2010, p. 18) lista nos filmes de ação

um ritmo trepidante da montagem que serve, sobretudo, ao rápido desenvolvimento da ação e à intensificação dos picos dramáticos, uma planificação estilisticamente clássica e segura que reserva para cada plano uma função narrativa e dramática, bem específica e inequívoca, uma utilização da música que sublinha, emocionalmente, o tom de uma situação ou o estado de uma personagem e um uso da fotografia, sempre ao serviço da fácil decodificação da narrativa.

Figura 15. Cena de ação em Minority Report Fonte: Spielberg (2002).

Todos estes elementos constam em ―Minority Report – A Nova Lei‖, talvez com o

último elemento, a fotografia, um pouco diferenciada do padrão de filmes de ação,

uma vez que, segundo a citação acima de Nogueira (2010), este elemento está

sempre submetido à fácil decodificação da narrativa. Entretanto, a ação do filme se

torna apenas um apoio para os elementos narrativos de importância, que envolvem

a questão da Divisão Pré-Crime e também toda a conspiração que envolve a morte

de Anne Lively e a incriminação de John Anderton.

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O conto original escrito por Philip K. Dick não apresentava todo o ritmo de tiroteios,

perseguições e lutas, como sua adaptação para o cinema apresenta, levando à

conclusão que

a narrativa de ação foi inserida por ser o gênero cinematográfico mais comum, de maior apelo popular, de maior sucesso comercial e, simultaneamente, de maior desdém crítico, certamente em função da tendência para a rotina e estereotipização narrativas e formais que exibe, bem como da ligeireza e maniqueísmo com que os temas são abordados (NOGUEIRA, 2010, p. 18).

Tais características certamente foram levadas em consideração para aumentar as

chances de o filme impactar o maior número possível de espectadores.

O protagonista do filme, John Anderton, passa quase todo o filme perseguindo ou

sendo perseguido, passando de um local a outro rapidamente, mas não sem que o

espectador tenha tempo de observar os elementos tecnológicos que existem na

diegese de ―Minority Report – A Nova Lei‖, tornando Anderton um ―guia turístico‖ que

conduz o espectador a uma fantástica viagem às tecnologias futurísticas e ao poder

sobrenatural dos três Precogs, situando o filme no gênero da fantasia (apenas

quando se trata do poder inexplicável dos Precogs) e da ficção científica (quando a

tecnologia é abordada).

O gênero da fantasia (ou da narrativa fantástica) pode ser definido de um modo suficientemente convincente, apesar das contaminações em que convive com outros gêneros (...), das múltiplas gêneses das suas personagens (religiosas, tecnológicas, sobrenaturais) ou da morfologia e ontologia plural dos seus universos (passados ou futuros, próximos ou distantes, mentais ou físicos) (NOGUEIRA, 2010, p. 26).

Já a ficção científica que compõe o mundo diegético do filme se torna relevante

como gênero cinematográfico ―que fabula ou especula sobre mundos e

acontecimentos possíveis, a partir de hipóteses logicamente verossímeis‖

(NOGUEIRA, 2010, p. 29). Como dito, o filme acontece a partir da observação sobre

a confiabilidade de um sistema misterioso e as consequências sociais e judiciárias

de sua implantação, ―um questionamento das consequências, dos avanços

tecnológicos e científicos sobre o destino da humanidade. (...) Que tipo de mundo

podemos esperar? Que condições de existência podemos aguardar?‖ (NOGUEIRA,

2010, p. 29).

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Segundo Nogueira (2010, p. 30), as sociedades dos filmes de ficção científica são

―retratadas, muitas vezes, naquilo que comumente se designa por distopias, isto é,

uma visão pessimista e agressiva daquilo que espera a humanidade‖. Carreiro

(2003, s.p.) relembra a natureza especulativa da ficção científica ao descrever o

processo criativo de Spielberg com especialistas, nas mais diferentes áreas do

conhecimento, para elaborarem um futuro plausível:

Os resultados (da reunião de futurólogos com Spielberg antes das filmagens), segundo Spielberg, foram bastante diversos, mas um ponto em comum emergiu do brainstorm: todos achavam que as liberdades individuais seriam reduzidas. A perda de privacidade ganhou, assim, ainda mais destaque do que o conto que inspirou o filme. As dezenas de pequenas invenções tecnológicas que preenchem os cenários secundários foram todas pensadas, tendo em vista esse poder totalitário. Dessa maneira, as embalagens de alimentos são interativas, os outdoors perseguem as janelas dos edifícios e leitores de íris monitoram todos os passos dos cidadãos.

Uma definição interessante de Suppia (2007, p. 408) é de que ―em linhas gerais e

grosseiras, ficção científica é toda a ficção que utiliza, de forma privilegiada,

fragmentos de conhecimento científico na constituição de uma narrativa‖, o que

retira a necessidade de uma visão quase sempre distópica, como afirmado por

Nogueira (2010) e passa a focar-se na linha científica e lógica do contexto técnico-

cultural do autor da ficção científica, ao que se soma uma descrição ainda mais

extensa em que,

segundo declaração de ―um grupo de aficcionados da ficção científica‖, em 1930, a ficção científica é a descrição dos resultados da ação de um invento ou fenômeno científico não conhecido, mas que é possível, no sentido de que não pode ser provada sua impossibilidade (SUPPIA, 2007, p. 410),

e vem a se direcionar na forma de um item ou evento científico, quando se afirma

que

sempre que um discurso científico e/ou um procedimento/artefato tecnológico forem elementos centrais da narrativa, bem como influentes no desenvolvimento da estória, nas motivações e nos conflitos entre os personagens, teremos um filme de ficção científica (SUPPIA, 2007, p. 9).

Junto a todas estas definições que auxiliam na compreensão do gênero da ficção

científica, um dado extremamente interessante e inovador ao entendimento do que é

ficção científica vem na forma do termo novum: ―a ficção científica se distingue pela

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dominância narrativa ou hegemonia de um ‗novum‘ (novidade, inovação) ficcional,

validado pela lógica cognitiva‖ (SUVIN, 1980 apud SUPPIA, 2007, p. 418).

Suppia (2007, p. 418) se aprofunda na questão do novum em sua tese, observando

que

de acordo com Suvin (1980), o novum pode ser qualquer aparelho, engenhoca, técnica, fenômeno, localidade espaço-temporal, agente(s) ou personagem(ns) que venha(m) a introduzir algo novo ou desconhecido no ambiente empírico, tanto do autor quanto do leitor implícito,

e relendo novamente a definição de novum com o apontamento de que

o novum seria aquele elemento especial, seja um artefato técnico, um alienígena ou uma cidade inteira, que promove a ―descontinuidade‖ na concepção de mundo por parte do fruidor de uma obra de ficção científica, detonando a ―sensação de maravilhamento‖ (sense of wonder), porém o novum não tem de ser necessariamente um locus, um personagem ou um artefato técnico, tal como a Enterprise de ―Jornada nas Estrelas‖ (dir. Robert Wise, 1966) ou o T-800 de ―O Exterminador do Futuro‖ (dir. James Cameron, 1984); uma nova organização social, como em ―1984" (dir. Michael Radford, 1984), ou apenas uma ideia ousada, como em ―Pi‖ (dir. Darren Aronofsky, 1998), também podem ser tidos como novum (SUPPIA, 2007, p. 426).

Suppia (2007, p. 426) ressalta o valor fundamental do novum para a narrativa de

ficção científica, porque o novum acaba atuando na diegese como ―uma espécie de

‗gatilho‘ que avisa ao leitor que ele está diante de uma narrativa que não reproduz

exatamente o mundo em que vivemos‖.

De forma muito clara e finalizando a análise sobre o gênero da ficção científica,

Suppia (2007, p. 441) sintetiza toda a descrição do gênero com a explicação de que

ficção científica é:

1. um gênero gestado na modernidade, herdeiro do racionalismo ou cientificismo do século XIX;

2. um gênero que, embora traga ―científico‖ no nome, não trata realmente de ciência, e sim da ―estética da ciência‖;

3. baseada no ―estranhamento cognitivo‖, induzido por um novum ―cognitivamente validado‖, e privilegia a lógica mais que a veracidade;

4. uma crítica da realidade presente, num movimento que articula dois vetores, o fantástico e o realista, orquestrados por uma lógica interna operante nos moldes do silogismo aristotélico.

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Na ficção científica, há um interessante ponto comum com a fantasia, no papel

assumido pelos elementos que fogem da realidade do espectador,

daí que se compreenda a forma como a magia e a religião surgem, constantemente, como motivo e como contexto destas narrativas (de modo equivalente, a tecnologia e a ciência hão de cumprir papéis semelhantes para a ficção científica) (NOGUEIRA, 2010, p. 27).

Suppia (2007, p. 430) complementa este ponto de conexão entre ficção científica e a

narrativa fantástica ao explicar que ―não é reproduzindo ou mimetizando um discurso

científico específico que a ficção científica opera, mas sim importando um modelo do

discurso científico em geral‖. Noutras palavras, ―a ficção científica não é sobre

ciência, mas sim sobre a ideia que fazemos da ciência. E tanto faz se ‗os nova da

ficção científica se assemelham à mágica‘‖ (SUPPIA, 2007, p. 430), de forma que os

poderes clarividentes dos três precogs de ―Minority Report – A Nova Lei‖ (Figura 16)

não precisam sair do âmbito sobrenatural inexplicável, mas a origem dos poderes

possui sua lógica científica, mesmo que inexistente na realidade.

Figura 16. Precogs em ―Minority Report – A Nova Lei‖ Fonte: Spielberg (2002).

Já o terceiro principal gênero onde ―Minority Report – A Nova Lei‖ se situa, o film

noir, possui uma definição ―longe de ser consensual‖ (NOGUEIRA, 2010, p. 31),

embora suas informações mais primárias já forneçam subsídios para a verificação

de como o objeto de estudo pode ser considerado como deste gênero. Nogueira

(2010, p. 32) destaca os principais elementos do film noir:

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(...) visualmente, um aspecto se torna imediatamente perceptível (no film noir): a fotografia a preto e branco, altamente contrastada, com nítidas influências do expressionismo alemão (...). Este tipo de fotografia cria fortes oposições de claro e escuro na iluminação dos espaços, essencialmente urbanos, onde os acontecimentos decorrem, contribuindo, desse modo, para o sublinhado dramático dos próprios eventos. Essas zonas de penumbra funcionam, de algum modo, como uma metáfora do universo social e moral que caracterizava estas histórias: a traição, o crime, o cinismo, o pessimismo, a fatalidade, o ciúme, a tragédia são alguns dos temas recorrentes nestas narrativas de enredo (...).

Todos estes temas delicados que o film noir ajuda a abordar combinam com a

trajetória do protagonista de ―Minority Report – A Nova Lei‖, por mesclar no filme

―elementos de ficção científica, ética, investigação criminal, direito penal. Ao

descrever a sociedade meio século no futuro, Minority Report alude ao totalitarismo

estatal e ao esvaziamento de garantias individuais‖ (TASCA, 2010), tema

controverso e intensificado através das características do film noir.

Figura 17. ―Em terra de cego, quem tem um olho é rei‖ Fonte: Spielberg (2002).

Como enfatizado por Nogueira (2010), o forte contraste entre luz e sombra é uma

marca do film noir. Através da técnica de bleach-bypass, Spielberg retirou a

vivacidade das cores filmadas, deixando a ambientação mais sombria e em tom

azulado (Figura 17), situando a diegese de ―Minority Report – A Nova Lei‖

perfeitamente no gênero do film noir. Este gênero pressupõe personagens de índole

misteriosa, que podem ora ajudar, ora atrapalhar o protagonista (sempre confuso

sobre quem é confiável e sobre a retidão de seus atos).

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Esta complexidade dos personagens é característica do film noir, cujo lado sombrio de todos os personagens torna-se, ironicamente, através deste jogo de penumbras, o seu lado mais exposto e, paradoxalmente, transparente. Alguns arquétipos que neste gênero podemos encontrar são o herói (ou, melhor dito, o anti-herói, indeciso entre o bem e o mal), atormentado por uma culpa devoradora, em busca de redenção, mas enredado numa qualquer trama que só aguça o seu cinismo, a sua solidão, o seu desencanto e, nas mais das vezes, a sua perdição (...) (NOGUEIRA, 2010, p. 33).

Esta ambientação sombria e preocupante que o film noir gera torna-se muito

funcional para ressaltar os temas históricos e filosóficos que já existiam no conto

original e que foram transportados sob releitura para a obra cinematográfica. Para

Carreiro (2003, s.p.), ―essa trama (de ‗Minority Report – A Nova Lei‘) já introduz o

espectador num debate ético-filosófico‖. Seria admissível prender alguém que, em

teoria, não é ainda um criminoso? enquanto Rowlands (2005, p. 119) reduz o filme a

uma linha fundamental ao afirmar que ―determinismo, na verdade, é o assunto

principal de Minority Report‖.

Um agente da lei que percebe que seus métodos de eliminação de homicídios

possuem falhas capazes de punir inocentes e de serem burladas por quem entenda

a dinâmica do sistema, torna-se ele próprio um homicida predestinado pelo sistema,

tendo de lidar com a dúvida sobre acreditar ou não na liberdade de suas escolhas e

no destino – este é um resumo simplório das principais discussões do filme,

mostrando-se claro que ―ideias filosóficas complexas dão e sobram aqui. Mais

importante, ele oferece uma boa investigação do problema da liberdade ou, como os

filósofos gostam de colocar, o problema do livre-arbítrio‖ (ROWLANDS, 2005, p.

113).

Com os três gêneros (ação, ficção científica e film noir) tidos indicadores de ―Minority

Report – A Nova Lei‖ na presente pesquisa, é possível afirmar que estes gêneros

são capazes de influenciar as estratégias de divulgação, pois

podem revelar-se de grande utilidade a vários níveis: no discurso midiático – dos livros aos pôsteres, dos trailers ao merchandising, é frequentemente em torno do gênero que se constrói a visibilidade e a notoriedade de um filme; no trabalho de programação – quer ao nível das cinematecas quer dos cineclubes, quer das grades televisivas ou das bases de dados digitais, as operações são bastante facilitadas pela organização genérica da informação (NOGUEIRA, 2010, p. 8).

Porém, no caso desta obra cinematográfica específica, há um entrecruzamento dos

gêneros de modo que todos fluam com um mínimo de (senão nenhuma)

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interferência que atrapalhe um dos gêneros. Segundo Nogueira (2010, p. 31), filmes

de ação e de ficção científica já compartilham de características semelhantes,

principalmente ―a coincidência de situações narrativas (perseguições, explosões,

crescentes dramáticas, clímaxes apocalípticos etc.) entre ambos os gêneros, nos

mais diversos títulos‖, e tais pontos comuns permitem uma aderência melhor aceita

pelo público quando assiste um filme com estes dois gêneros. Entretanto, ―Minority

Report – A Nova Lei‖ vai além de uma simples mistura de dois gêneros que

Nogueira (2010) acredita serem mais facilmente integrados.

Spielberg consegue inserir o film noir com perfeita simbiose aos outros gêneros para

então criar a atmosfera, narratividade e montagem desejadas. Apresenta-se,

portanto, um importante fator para a admiração com relação ao objeto de estudo: a

hibridização harmônica dos elementos dos três gêneros citados em uma narrativa

envolvente e cadenciada por cenas características a cada gênero. Como cita

Nogueira (2010, p. 7),

(...) é no equilíbrio entre o domínio das convenções e a ruptura das mesmas que um criador se pode evidenciar como um autor – no sentido mais nobre e prestigiado do termo – no contexto dos gêneros.

Através de Spielberg, um filme conseguiu ser tão ação quanto ficção científica ou

noir, sem que se note um peso maior a gênero algum.

2.2.3.2 Produção

Vanoye (2008, p. 186) descreve a existência de modos de produção instituídos por

Roger Odin, pelos quais os filmes buscam os efeitos específicos sobre o espectador:

modo espetacular (acento posto no espetáculo visual), modo ficcional (acento posto na participação da vivência das personagens), modo energético (centrado nos ritmos visuais e sonoros), modo privado (filme de família), modo documentário (centrado na informação, no real), modo argumentativo (filmes didáticos, propagandísticos), modo estético (centrado no trabalho das formas visuais e sonoras).

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O filme ―Minority Report – A Nova Lei‖ parece se focar nos modos espetacular,

ficcional e energético, os três modos valorizando o ritmo ininterrupto de mudança de

cenas e de revelações, além de um foco muito forte no estado emocional do

protagonista e dos personagens diretamente envolvidos a ele.

Enquanto o modo de produção estipula uma ótica diferente de se enxergar a

intencionalidade do filme com relação ao seu público, o resultado final pode gerar

boa receptividade ou rejeição, refletindo ou não na forma como a própria indústria

cinematográfica pode passar a enxergar esta obra audiovisual. Segundo Jullier

(2008, p. 167), há vezes em que

a Instituição artística atribui valor a um filme por razões alheias às ―impressões particulares‖ que pode transmitir, porque inaugura alguma inovação artística, por defender uma causa nobre ou por anunciar (...) acontecimentos que ocorrerão mais tarde.

No caso de ―Minority Report – A Nova Lei‖, alguns dos prêmios conquistados podem

denotar a qualidade da produção em certos aspectos. No mesmo ano de seu

lançamento, esta obra recebeu o título de ―Filme do Ano em Hollywood‖ (Hollywood

Movie of The Year) e na Alemanha (Bogey Award), além de Melhor Design de

Produção (SDFCS Award).

Em 2003, entre três prêmios de melhor diretor (Saturn Award, Critics Choice Award e

Empire Award UK), melhor conteúdo extra de DVD (Golden Satellite Award) e três

prêmios pela atuação da atriz Samantha Morton (Saturn Award, OFCS Award e

Empire Award UK) e pela atuação de Tom Cruise (Empire Award UK), o filme ainda

foi considerado pelos jurados do Saturn Award como o ―Melhor Filme de Ficção

Científica‖ e filme com ―Melhor Roteiro‖.

A participação de John Williams na criação das trilhas sonoras rendeu mais o prêmio

de melhor música no BMI Film Music Award e ainda lhe deu o título de ―Melhor

Compositor‖ no Critics Choice Award. Até mesmo a cena de ação de Tom Cruise

com os policiais de hoverpack voando no beco garantiu o prêmio de ―Melhor

Trabalho na Altura‖ pelo Taurus Award.

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2.2.3.3 Estilo autoral

O estilo do diretor, geralmente, interfere de modo direto no código estabelecido pelo

gênero cinematográfico estabelecido para a obra, para que sua marca seja notada

em meio a convenções tidas como emblemáticas e facilmente reconhecíveis pelo

espectador. Nogueira (2010, p. 9) compara a dicotomia do gênero e do estilo ao

detalhar que

de algum modo, podemos dizer que onde a concepção do cinema como entretenimento tende a tomar o gênero como fator de avaliação de uma obra, a concepção do cinema como arte tende a tomar o estilo como critério de valorização do autor.

A obra ―Minority Report – A Nova Lei‖ apresenta a participação marcante de John

Williams na produção das trilhas sonoras e de Janusz Kaminski na direção de

fotografia, em parcerias de muitos anos com Spielberg, embora estas parcerias não

sejam um indicador do estilo de direção de Steven Spielberg. Ao analisar o estilo

autoral de um diretor de cinema, o presente pesquisador sugere uma divisão em três

vertentes: estilo narrativo, estilo estético e estilo técnico. O estilo narrativo se refere

às preferências do diretor da obra cinematográfica em conduzir seus filmes por

caminhos narrativos semelhantes, seja estas preferências ligadas a um trecho

específico da narrativa ou na linha narrativa integral de um filme. Já o estilo estético

se refere às preferências de inserção ou supressão de elementos físicos, sons, luz

ou outros fatores que garantem uma percepção diferenciada das cenas, do ponto de

vista estético cinematográfico. Em terceiro lugar, vem o estilo técnico, referente ao

uso de câmeras ou lentes específicas, movimentos de câmera, edição de cenas e

outras decisões que afetam diretamente o momento da produção cinematográfica.

A partir desta divisão, pode-se começar a análise do estilo autoral spielbergiano pelo

estilo narrativo deste diretor: a presença de fortes sentimentos empregada em todas

as suas produções cinematográficas é um forte traço de Spielberg, o objeto de

estudo não sendo exceção a isso. Por mais sombria que tenha sido a fase de

Spielberg quando dirigiu ―Minority Report – A Nova Lei‖, sua predisposição pelos

happy endings se mantém neste filme, a despeito do final aberto e menos otimista

do conto original de Philip K. Dick.

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Com relação ao estilo estético, há algumas características que marcam o estilo de

Spielberg de posicionar a câmera, movimentá-la e exibir os elementos da cena. Uma

forma muito comum de uso de close-ups se dá com a aproximação do personagem

em frente à câmera, terminando em um close-up geralmente em momento dramático

(embora este momento não seja, necessariamente, uma obrigação para seu uso por

parte de Spielberg) – duas situações onde isso ocorre em ―Minority Report – A Nova

Lei‖ como exemplo são o momento em que John Anderton passeia pelo corredor da

publicidade contextual (Figura 11), ou logo quando o protagonista entra na loja da

Gap (Figura 18).

Figura 18. Entrada da loja Gap Fonte: Spielberg (2002).

Outra característica de destaque no estilo estético de Spielberg é o enquadramento

da cena ou o destaque de uma área dentro da cena a partir dos objetos presentes –

um ótimo exemplo visto em ―Minority Report – A Nova Lei‖ é o uso do ―halo‖ que a

Divisão Pré-Crime utiliza como imobilizador na cena do rendimento de Howard

Marks (Figura 19). Spielberg utiliza paredes, cadeiras, halos, laterais de um barco,

ou até mesmo os ombros de um personagem de costas para gerar estes focos de

destaque dentro de uma cena, como ocorre, algumas vezes, com o personagem

Lamar Burgess, enquanto conversa com o agente Witwer e com Lara Clarke.

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Figura 19. Foco da cena através do halo Fonte: Spielberg (2002).

Quanto ao estilo técnico spielbergiano, há poucos traços marcantes, embora alguns

indícios possam ser descritos. Um destes indícios é o uso de lentes amplas, uma

vez que, de acordo com Nolfo (2011, s.p.):

Steven Spielberg adora lentes amplas, e ele as usa para tomadas em movimento, over-the-shoulder, close-ups e qualquer outra tomada em que ele quiser fazer o objeto em primeiro plano sobrepujar o fundo da cena. Ele consegue ser muito ousado neste uso das lentes, muito mais do que outros cineastas, o que é (...), uma vez que ele é tão frequentemente (e injustamente) acusado de sempre trabalhar dentro da margem de segurança.

2.2.4 Dimensão 4

2.2.4.1 Percepções do pesquisador

Sendo a Dimensão 4 a síntese das três dimensões anteriores somada às

percepções pessoais do realizador da análise fílmica, a primeira afirmação que se

pode fazer é de que ―existem tantas experiências-filmes quanto espectadores‖

(BARNIER, 2008, p. 52), ou seja, as três primeiras dimensões até podem ser muito

semelhantes se o mesmo filme for analisado por pessoas diferentes, mas a quarta

dimensão será sempre um produto único e original.

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Segundo Jullier (2008, p. 165), ―o caráter artístico de uma imagem animada está no

‗olhar do espectador‘ – (...) Marcel Duchamp dizia que ‗são os observadores que

fazem os quadros‘‖, de maneira que todo o deslumbre sentido pelo pesquisador ao

analisar cada detalhe da obra cinematográfica, pode simplesmente não ter sido a

intenção de nenhum membro da equipe de produção, e mesmo assim ter atingido o

pesquisador de forma única, que talvez não atinja mais nenhum outro espectador.

Um exemplo é a cena da fuga de John Anderton de seu próprio veículo até cair no

apartamento dos contorcionistas. Esta cena, embora muito bem-produzida e

realizada tanto em questão de feito físico como de efeito visual, marcou o

pesquisador não visualmente, mas acusticamente: durante a ―sessão cega‖

realizada (tela desligada e apenas as caixas de som exibindo o filme) para detectar

elementos sonoros de relevância, esta cena específica fez o pesquisador devanear

cenas de batalhas galácticas e corridas de pod racer de ―Guerra nas Estrelas‖,

remetendo a lembranças de cenas e sensações que não resgatava desde a última

vez em que assistiu a algum dos filmes de ―Guerra nas Estrelas‖.

Porém, como pesquisador, há uma responsabilidade em passar percepções de

coerência para qualquer indivíduo que venha a ler esta dissertação, tornando o

pesquisador não um espectador comum, mas um espectador singular. De acordo

com Vanoye (2008, p. 188), espectadores singulares são aqueles que

de uma maneira ou de outra, descrevem as suas experiências de espectador. Seja para contar e comentar, seja para produzir um discurso crítico, analítico ou teórico sobre as imagens.

Sendo assim, simplesmente descrever como uma cena específica arremete a

lembranças de infância não adicionaria todo o potencial de informação que o

pesquisador pretende com esta dissertação, de modo que a metodologia de quatro

dimensões auxiliou enormemente esta análise fílmica.

Para ressaltar o grau de importância que uma análise fílmica representa em todas as

suas quatro dimensões, Vanoye (2008, p. 189) considera as seguintes funções:

- a análise retoma, prolonga, relança e enriquece o prazer do espectador. A prática da análise confirma a influência da imagem sobre o espectador-analista (...). O olhar do espectador é por ela modificado;

- a análise permite desfrutar de outro modo da imagem, apropriá-la, manipular as suas formas e significações, desviá-la. A imagem – tal como qualquer outro objeto de análise – permite que o analista

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(vertente narcisista) desfrute das suas capacidades de analista ou (vertente sádica) use o seu poder de desconstrução;

- como os lados direito e esquerdo do cérebro funcionam em simultâneo, a atividade de análise não exclui necessariamente que se viva sentimentos ou emoções, e reciprocamente. Nesta perspectiva, o analista é um espectador como os outros, levado a gerir atividades racionais com sensações e emergências de afetos e de imagens, insto num contexto e segundo um objetivo evidentemente específico.

Desde a primeira vez que entrou em contato, o pesquisador se viu fascinado pela

mitologia comparada dos povos e a narrativa semelhante que todas as culturas

utilizam na ordenação de seus costumes, lendas e tradições. A leitura de trabalhos

de Joseph Campbell (2007) e de Christopher Vogler (2006) apenas reforçou este

gosto, incentivando este pesquisador a analisar toda e qualquer narrativa dentro dos

arquétipos e da jornada do herói, até mesmo passando a elaborar ele próprio alguns

contos, estruturando-os a partir destes tópicos estabelecidos por Vogler (2006). A

partir da constatação de que a estrutura narrativa de ―Minority Report – A Nova Lei‖

se encaixa perfeitamente na Jornada do Herói, a sensação do pesquisador foi de

sublimação e satisfação, encaixando mais esta narrativa audiovisual entre as tantas

outras que seguem a estrutura de Vogler (2006).

A análise das duas cenas específicas do corredor de publicidade contextual e da

atendente virtual da loja Gap foi realizada devido ao vínculo direto do pesquisador

ao mercado publicitário, além do monitoramento ininterrupto de tendências

comportamentais e de consumo na sociedade, uma vez que ―a natureza da relação

do analista com ‗seu‘ filme determina em parte a riqueza da própria análise‖

(GOLIOT-LÉTÉ & VANOYE, 2012, p. 17) e este foco em comunicação publicitária e

marketing é a adição pessoal que o pesquisador espera contribuir para a análise do

filme tido como objeto da pesquisa. Realmente, foi muito satisfatório assistir a um

filme que apresentasse um possível cenário do funcionamento da publicidade

interativa em ambiente aberto, além do atendimento robótico personalizado, ambos

de acordo com dados pessoais, provavelmente gerenciados pelo governo. A

satisfação não está na formatação da publicidade, mas sim no simples interesse em

expor como poderia ser, embora tal cenário com manipulação de dados particulares,

em nome de demandas mercadológicas e corporativas, repudie o pesquisador.

Este gosto pelo filme ―Minority Report – A Nova Lei‖ é descrito por Jullier (2008, p.

167) como duas ―coisas‖ que compõem o amor pelo cinema: ―uma coisa é analisar

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um grande clássico para lhe descobrir, encantado, a mecânica de relojoaria, outra é

ficar deslumbrado pelas suas imagens ou por aquilo que ele conta‖. Este

pesquisador garante que seu amor por este filme inclui ambas as coisas.

2.3 EXTENSO PRESENTE DA FICÇÃO REFLETIDO NA REALIDADE

Um estudo sobre a percepção temporal relativa à obra cinematográfica ―Minority

Report – A Nova Lei‖ exige a observação do próprio significado dos tempos

passado, presente e futuro, de acordo com a visão pós-moderna em que este filme

se situa, observação esta feita no primeiro capítulo, ao que se chegou ao conceito

de presente extenso definido por Gumbrecht (2005). No entanto, a conclusão da

existência desta mutação da percepção temporal sobre presente e futuro ainda

exige um ponto de ligação com a própria obra utilizada como objeto de estudo,

iniciando-se pela adequação do filme em questão de gênero cinematográfico e o

papel do protagonista dentro das três camadas narrativas detectadas, cada camada

ligada a um gênero: ação, ficção científica e film noir, levando à constatação de que

John Anderton, o protagonista da obra, percorre simultaneamente as três camadas

e, desta forma, entretém o espectador pós-moderno em suas necessidades de

consumo fragmentado. Outra constatação advinda da análise dos gêneros

cinematográficos presentes no filme está ligada à observação do gênero da ficção

científica e sua importância na apresentação de qualquer novum presente na

diegese, para despertar no espectador a ciência de que está assistindo a qualquer

obra que contenha uma narrativa de ficção científica, ponto crucial que vem a

levantar a dúvida sobre a possível sutilização do discurso futurista contido em

―Minority Report – A Nova Lei‖.

Segundo a análise de Suppia (2007, p. 433) sobre filmes de ficção científica, o autor

afirma que muitos filmes que se encaixam neste gênero cinematográfico ―partem de

razoável embasamento científico e documental, num claro esforço de afiançar ainda

mais um discurso que, já de início, goza da impressão de realidade do cinema‖, o

que leva ao entendimento de que, sem um referencial do presente, uma diegese

situada no futuro não seria plausível ao espectador, mesmo sabendo-se do ―papel

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do movimento na impressão de realidade produzida pelo cinema‖ (SUPPIA, 2007, p.

434) – o recurso audiovisual auxilia enormemente no convencimento de que tal

cenário possa vir a existir, mesmo que absolutamente insólito à realidade do

espectador, uma vez que este gênero ―recorre ao efeito de estranhamento ou

‗maravilhamento‘, encetando um universo ficcional razoavelmente diverso de nossa

experiência ordinária‖ (SUPPIA, 2007, p. 431).

Posta esta incrível capacidade do gênero de ficção científica em convencer a

plausibilidade de mundos impossíveis, é fundamental ressaltar o já citado referencial

do espectador, cujo imaginário é usado no filme sob novos ângulos e funções,

reapresentando com os nova diversos anseios e expectativas do espectador

contemporâneo à obra, através desta roupagem de lógica científica. Em outras

palavras, este gênero ―nos dá uma visão única da abordagem simbolista, onde o

símbolo é esvaziado de aura transcendental ou metafísica e realocado de volta ao

mundo material‖ (ROBERTS, 2006 apud SUPPIA, 2007, p. 432), de maneira que,

nesta citação, a palavra ―símbolo‖ representa as expectativas e conceitos abstratos

do espectador, o que vem a questionar a natureza da narrativa de ficção científica

sob o âmbito da relação ficção-realidade:

Para Todorov e outros autores, a ficção científica pertenceria às categorias do maravilhoso e do romance, enquanto que para Suvin, a ficção científica estaria mais ligada ao realismo, em função de seu cognitivismo e pluritemporalidade (SUPPIA, 2007, p. 435).

Aprofundando a questão da natureza deste gênero, ―deve julgar-se a ficção científica

pela densidade e riqueza dos objetos e agentes descritos no microcosmo do texto,

parecendo-se nisso com a maioria da narrativa naturalista ou ‗realista‘‖ (SUVIN,

1980 apud SUPPIA, 2007, p. 433), no que Suppia (2007, p. 433) reforça que ―a

vocação realista da obra de ficção científica funciona como elemento de suporte,

valorizando o novum‖ e, portanto, ao aproximar a banalidade de situações e

personagens a um novum, os elementos de maravilhamento da narrativa são muito

melhor absorvidos pelo espectador.

―Na Ficção Científica, é patente o enredo entre as forças realista e fantástica no

engenho de uma narrativa própria, cientificcionalizada‖ (SUPPIA, 2007, p. 438). O

imaginário tecnológico que inspira os produtos da cultura pós-moderna se vê

constantemente debatido sobre a presença do real e do ficcional em suas narrativas,

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o que não é diferente ao analisar ―Minority Report – A Nova Lei‖, com todos os

aparatos tecnológicos expostos no decorrer do filme, mas sem o espectador ter a

certeza de quais tecnologias fazem parte do puramente ficcional e do apenas

incomum de sua realidade.

Dentro deste raciocínio, ―a ficção científica articula duas vocações, a realista e a

fantástica, de maneira interdependente‖ (SUPPIA, 2007, p. 437), afirmação

reforçada por Schäffauer (2011, p. 225), que se inspira nos estudos de Vilém Flusser

para analisar a dicotomia realidade-ficção e chega a concluir, da mesma forma, que

ambos os conceitos não passam de lados de uma mesma moeda, afirmando

categoricamente que ambos ―se determinam mutuamente, de modo que não se

pode pensar um conceito sem implicar o respectivo conceito contrário‖. É

fundamental que se entenda que o imaginário do ser humano é pautado por sua

própria percepção do real, percepção esta que é acessada ―apenas através da

mediação dos discursos; todo discurso elabora ficções aproximativas à realidade,

portanto, todo discurso funda-se pela ficção; logo, todo discurso é ficcional‖

(BERNARDO, 2010 apud SCHÄFFAUER, 2011, p. 226).

Contudo, Schäffauer (2011, p. 231) lembra que

(...) se somente temos acesso a ficções, mas estamos dispostos a olhar para algumas ficções como realidade, então a realidade é o resultado de uma determinação convencional em ocultar a ficcionalidade da ficção.

No caso de ―Minority Report – A Nova Lei‖, por exemplo, a ficcionalidade das

inovações tecnológicas mostradas no filme é obscurecida até o mundo ficcional ser

quase aceitável como possível no mundo atual, fenômeno reforçado pela afirmação

de que

justamente nos atos de percepção e comunicação (como é o caso das narrativas de obras cinematográficas), essa interação prática do que é pessoalmente visto, interpretado e organizado e o que pode ser socialmente reconhecido, sabido e formado é rica e sutilmente manifesto (WILLIAMS, 1971apud SUPPIA, 2007, p. 437).

Schäffauer (2011, p. 221) critica antigas posturas teóricas que rejeitavam a

ficcionalização ao questionar ―por que os pesquisadores devem diferenciar

rigorosamente ficção e realidade, se os artistas fazem exatamente o contrário, isto é:

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apagam ou confundem os limites entre ambas as áreas?‖, como Suppia (2007, p.

437) eficientemente clarifica em sua postulação de que

o fantástico nos filmes de ficção científica nada mais é que um instrumento de choque, dispersão ou deslocamento que catalisa a crítica ao contemporâneo. Por sua vez, o realismo dos filmes de ficção científica funciona como um artifício, uma ilusão para o pleno assentamento de uma poesia que se conjectura sobre determinado novum.

A partir destas afirmações de Schäffauer (2011) e Suppia (2007), chega-se ao fato

de que o artifício dos gêneros de ação e film noir mesclados à ―ficção científica‖, que

já era a essência da obra desde sua versão literária, suprimiu o choque do

espectador quanto aos nova expostos ao filme e, portanto, tornaram a diegese

plausível e a participação de cada novum sutil o suficiente para que o filme seja

assistido como uma obra de ação ou até film noir, sem que sua riqueza de

elementos seja ignorada, tornando menos óbvio ao espectador que se trata de uma

ficção de elementos futurísticos.

De qualquer modo, ―este (indivíduo pós-moderno) já não precisará distinguir entre

ficção e realidade‖ (SCHÄFFAUER, 2011, p. 236), devido à volatilidade da mediação

sobre os discursos – enquanto o indivíduo pós-moderno continuar imerso em um

tempo histórico de extenso presente, seu imaginário tecnológico continuará

materializando o mito e a ficção na realidade da cibercultura e projetando seu

futurismo incerto em produtos culturais cada vez menos capazes de impressionar,

ao mostrar os nova tecnológicos em suas diegeses.

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CONCLUSÃO

Uma pergunta que pode parecer ter sido feita por uma criança, ―estamos no

presente ou já é o futuro?‖, possui em seu cerne questões e implicações muito mais

complexas do que se pode imaginar, sendo este cerne da relação presente-futuro o

que conduziu toda a presente pesquisa, através da obra cinematográfica

spielbergiana ―Minority Report – A Nova Lei‖. Teóricos que vão da Antropologia à

Filosofia, da Sociologia à Psicologia, buscam indícios que auxiliem na verdadeira

compreensão da forma como o imaginário dos indivíduos moderno e pós-moderno

percebe e reage aos conceitos de passado, presente e futuro, tanto em questão de

esperanças e expectativas, como em relação ao sentimento de execução de

objetivos e alcance destes mesmos objetivos, de maneira a separar os elementos

que definem cada um dos tempos e como são empregados no pensamento humano.

Em meio a este esforço do pesquisador em compreender as percepções temporais

dos indivíduos permeando todo o primeiro capítulo, surge o termo ―presente

extenso‖, a partir de postulações de Gumbrecht (2005), gerando, assim, um desafio

ainda mais complexo: como compreender um mundo pós-moderno que não se

aceita como puramente no presente, ao passo que atrai os elementos que definem o

futuro para o tempo em que ainda se encontram, segregando fatos e

acontecimentos indesejados ao passado histórico e reescrevendo seu presente para

uma definição de futuro que nunca chega – e, mesmo assim, proporcionando o

cenário ideal para discursos de que o futuro já chegou, principalmente pela indústria

cultural.

A partir de tais constatações, mostrou-se necessário iniciar o segundo capítulo com

a análise desta mentalidade pós-moderna para compreender suas expectativas e

preferências quanto aos produtos culturais. O primeiro conceito levantado é o do

―espectador fragmentado na cultura pop‖, interessante termo que reflete uma nova

forma de consumir produtos culturais não através de seu valor individual, mas sim

dos pontos de conexão que tais produtos possuem com outros produtos culturais de

características semelhantes, criando, desta forma, uma intrincada rede semântica de

referências e releituras que fortalecem, simultaneamente, todos os produtos culturais

que compartilham de tal ponto de conexão. Em seguida, o termo ―remixabilidade‖ é

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trazido à tona para melhor analisar a questão das releituras e da formação de

referências nos diversos produtos culturais pós-modernos, que são produzidos já

com uma característica validade para a fraca memória do espectador da cultura pop

massificada.

Este segundo capítulo apresenta, ainda, a profunda análise fílmica de ―Minority

Report – A Nova Lei‖ sob a metodologia de Lyra (2011), cujo apontamento de

diversos elementos diegéticos e extra-diegéticos auxiliou na verificação da forma

como os gêneros cinematográficos da ação, ficção científica e film noir se mesclam

com perfeição frente às expectativas dos espectadores fragmentados e, ainda, na

observação de que a diegese futurista funciona nesta obra como uma plausível linha

temporal futura de nossa realidade contemporânea. Por fim, chega-se à conclusão

obtida na presente pesquisa: ficção e realidade estão tão próximas que um discurso

ou narrativa futurista mostra-se facilmente plausível frente ao imaginário tecnológico

pós-moderno, entorpecido pelos discursos de que o futuro já chegou e que o

presente é reescrito infinitamente, não levando a futuro algum.

O pesquisador espera que seu gosto acadêmico e pessoal pela obra

cinematográfica ―Minority Report – A Nova Lei‖ inspire o leitor da presente pesquisa

a assistir com novos olhos este filme e saiba mais sobre a genialidade literária de

Philip K. Dick, que construiu um conto sobre a previsão de crimes através de

criaturas precognitivas frutos da Ciência, sem imaginar todo o sucesso que tal conto

faria através de um filme que nos faz questionar sobre o principal ponto da presente

dissertação: como se portar frente a uma realidade presente que assume ares de

futuro a todo momento?

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ANEXO A – CONTO ORIGINAL THE MINORITY REPORT

I

O PRIMEIRO PENSAMENTO que ocorreu a Anderton quando viu o rapaz foi: ―Estou ficando careca. Careca, gordo e velho”. Mas não disse isso em voz alta. Pelo contrário, afastou a cadeira, pôs-se de pé, e deu a volta na mesa, com a mão direita firmemente estendida. Sorrindo com uma amabilidade forçada, apertou as mãos do rapaz.

— Witwer? — perguntou, conseguindo soar simpático.

— Isso mesmo — respondeu o rapaz. — Mas Ed para você, é claro. Quer dizer, se partilhar da minha aversão pela formalidade desnecessária. — A expressão em seu rosto louro, francamente confiante, mostrava que considerava o assunto encerrado. Seriam Ed e John: tudo seria agradavelmente cooperativo desde o começo.

— Teve dificuldades em encontrar o edifício? — perguntou Anderton reservadamente, ignorando a apresentação excessivamente amigável. ―Cristo, ele tinha de se segurar em alguma coisa‖. O medo abalou-o, e começou a transpirar. Witwer andava pelo escritório como se já fosse o seu dono — como se estivesse medindo o seu tamanho. Será que não podia esperar alguns dias, um intervalo decente?

— Nenhuma — respondeu Witwer com júbilo, as mãos nos bolsos. Com ansiedade, examinou os arquivos volumosos que ocupavam a parede. — Não estou vindo no escuro à sua agência, você sabe. Tenho algumas ideias pessoais sobre como a Pré-Crime é dirigida.

Nervoso, Anderton acendeu seu cachimbo.

— Como é dirigida? Eu gostaria de saber.

— Nada mal — disse Witwer. — Na verdade, muito bem. Anderton olhou-o fixamente.

— É a sua opinião particular? Ou simplesmente um jargão? – Witwer encarou-o francamente.

— Particular e pública. O Senado está satisfeito com o seu trabalho. De fato, estão entusiasmados — acrescentou ele. —Tão entusiasmados quanto homens muito velhos podem ficar.

Anderton estremeceu, mas, externamente, permaneceu impassível. No entanto, custou-lhe um esforço. Perguntou a si mesmo o que Witwer ―realmente‖ achava. O que se passava, de fato, naquela cabeça com o cabelo à escovinha. Os olhos do rapaz eram azuis, brilhantes — e perturbadoramente inteligentes. Witwer não era nenhum bobo. E, obviamente, tinha um bocado de ambição.

— Pelo que entendi — disse Anderton com cautela —, você será o meu assistente até eu me aposentar.

— Foi o que eu entendi também — replicou o outro sem hesitar nem por um instante.

— O que pode acontecer este ano ou no próximo. Ou daqui a dez anos. — O cachimbo na mão de Anderton tremia. — Não estou sendo pressionado a me aposentar. Fundei a Pré-Crime e vou permanecer aqui o tempo que quiser. É uma decisão ―minha‖, exclusivamente.

Witwer anuiu com a cabeça, a expressão ainda franca.

— É claro.

Com esforço, Anderton acalmou-se um pouco.

— Só quis deixar as coisas claras.

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— Desde o começo — concordou Witwer. — Você é o chefe. Você manda. — Demonstrando sinceridade, perguntou: — Importa-se de me mostrar a organização? Gostaria de me familiarizar com a rotina o quanto antes.

Ao passarem pelas salas cheias e sobrecarregadas de trabalho, com a sua iluminação amarelada, Anderton disse:

— Você está a par da teoria da prevenção do crime, é claro. Suponho que isto seja ponto pacífico.

— A informação que tenho é a que está disponível publicamente — replicou Witwer. — Com a ajuda de seus mutantes precognitivos, você conseguiu, audaciosamente, abolir o sistema punitivo pós-crime de cadeias e multas. Como todos sabemos, a punição nunca foi um grande impedimento, e provavelmente nunca ofereceu conforto à vítima já morta.

Tinham chegado ao elevador. Enquanto este os levava rapidamente para baixo, Anderton disse:

— Deve ter percebido o inconveniente legal básico da metodologia Pré-Crime. Prendemos indivíduos que nunca infringiram a lei.

— Mas que certamente infringirão — afirmou Witwer com convicção.

— Felizmente, ―não‖. Nós os pegamos primeiro, antes que cometam qualquer ato de violência. Desse modo, a comissão do crime, em si mesma, é uma metafísica absoluta. Alegamos que são culpados. Eles, por sua vez, afirmam eternamente ser inocentes. E, de certa maneira, ―são‖ inocentes.

O elevador parou e, mais uma vez, eles atravessaram, compassos regulares, um corredor amarelo.

— Em nossa sociedade, não há crimes maiores — prosseguiu Anderton —, mas temos um campo de detenção cheio de supostos criminosos.

Portas abriram-se e fecharam-se, e eles se encontraram na ala analítica. À frente, erguia-se uma série impressionante de equipamentos — receptores de dados e mecanismos de computação que examinavam e reestruturavam o material que chegava. Além da maquinaria, os três precognitivos, quase indistintos no labirinto da fiação elétrica.

— Lá estão eles — disse Anderton, com uma certa ironia. — O que acha?

Na semiobscuridade, os três idiotas tagarelavam. Todo pronunciamento incoerente, toda sílaba casual eram analisados, comparados, reagrupada na forma de símbolos visuais, transcritos sobre cartões perfurados e ejetados em diversas ranhuras codificadas. Os idiotas tagarelavam o dia inteiro, aprisionados em suas cadeiras especiais, de espaldar alto, mantidos em uma posição rígida por ligaduras de metal e vários fios, e grampos. Suas necessidades físicas eram assistidas automaticamente. Não tinham necessidades espirituais. Semelhantes a vegetais, murmuravam, cochilavam e existiam. Suas mentes eram obtusas, confusas, perdidas nas sombras.

Mas não as sombras de hoje. As três criaturas tagarelas, desajeitadas, com suas cabeças alargadas e corpos raquíticos, contemplavam o futuro. A maquinaria analítica registrava profecias e, enquanto os três precognitivos falavam, a maquinaria escutava atentamente.

Pela primeira vez, Witwer perdeu sua confiança jovial. Uma expressão desgostosa, consternada, insinuou-se em seus olhos, uma mistura de dó e choque moral.

— Não é nada... agradável — murmurou ele. — Não fazia ideia de que fossem... — Procurou a palavra certa, gesticulando.— Tão deformados.

— Deformados e retardados — concordou Anderton instantaneamente. — Especialmente aquela garota ali. Donna tem quarenta e cinco anos. Mas parece ter dez. O

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talento absorve tudo; o lóbulo especial atrofia o equilíbrio da área frontal. Mas o que importa? Temos as suas profecias. Eles transmitem o que precisamos. Não entendem nada disso, mas nós entendemos.

Subjugado, Witwer atravessou a sala até a maquinaria. De uma ranhura, pegou um maço de cartões.

— São os nomes que aparecem? — perguntou ele.

— É óbvio que — com o cenho franzido, Anderton pegou o maço — não tive oportunidade de examiná-los — explicou, ocultando, com impaciência, o seu aborrecimento.

Fascinado, Witwer observou a maquinaria ejetar um novo cartão na ranhura vazia. Foi seguido por um segundo — e um terceiro. Dos discos, que rangiam regular e constantemente, surgia um cartão atrás do outro.

— Os precognitivos devem ver longe no futuro — exclamou Witwer.

— Vêem um espaço de tempo limitado — informou-lhe Anderton. — Uma ou duas semanas adiante, no máximo. Grande parte dos dados não tem valor para nós. Simplesmente não são relevantes para o nosso ramo de atividade. Nós os passamos para as agências apropriadas. E elas, por sua vez, permutam dados conosco. Cada birô importante tem seu porão de ―macacos‖ entesourados.

— Macacos? — Witwer olhou-o intrigado. — Ah, sim, entendo, nada ver, nada falar, etc. Muito divertido.

— Muito ―conveniente‖. — Automaticamente, Anderton coletou os novos cartões que haviam sido virados pela maquinaria giratória. — Alguns desses nomes serão totalmente descartados. A maior parte do restante registra crimes triviais: furtos, sonegação de imposto de renda, assalto, extorsão. Estou certo que sabe que a Pré-Crime reduziu os delitos graves em noventa e nove ponto oito por cento. Raramente temos um assassinato ou traição de verdade. Afinal, o acusado sabe que o confinaremos no campo de detenção uma semana antes de ele ter chance de cometer o crime.

— Quando foi a última vez que um assassinato de verdade foi cometido? — perguntou Witwer.

— Cinco anos atrás — respondeu Anderton, seu tom de voz denotando orgulho.

— Como aconteceu?

— O criminoso escapou das nossas equipes. Tínhamos o seu nome. De fato, tínhamos todos os detalhes do crime, inclusive o nome da vítima. Sabíamos o momento exato, a locação do ato de violência planejado. Mas, apesar disso, ele conseguiu executá-lo. — Anderton deu de ombros. — Enfim, não podemos pegar todos eles. — Embaralhou os cartões. — Mas realmente pegamos a maioria.

— Um assassinato em cinco anos. — A confiança de Witwer estava voltando. — Um registro impressionante... algo de que se orgulhar.

Anderton disse tranquilamente:

— Eu ―me‖ orgulho. Há trinta anos elaborei a teoria. No tempo em que aqueles que só agiam em vantagem própria estavam pensando em ataques surpresa à Bolsa. Eu vi algo legítimo num futuro próximo, algo de um tremendo valor social.

Jogou o maço de cartões para Wally Page, seu subordinado encarregado do bloco dos macacos.

— Veja quais nos interessam — disse. — Faça o seu próprio julgamento.

Quando Page desapareceu com os cartões, Witwer disse circunspecto:

— É uma grande responsabilidade.

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— Sim, é — concordou Anderton. — Se deixarmos um criminoso escapar, como deixamos há cinco anos, teremos uma morte na consciência. Somos os únicos responsáveis. Se falhamos, alguém morre. — Com amargura, puxou mais três cartões da ranhura. — É uma responsabilidade pública.

— Já se sentiu tentado a — Witwer hesitou. — Quer dizer, alguns dos homens que você pegou devem ter-lhe oferecido muito.

— Não iria adiantar. Uma duplicata do arquivo de cartões é ejetada no Quartel General do Exército. Têm o total controle sobre nós. Podem nos vigiar constantemente, o quanto quiserem. — Anderton relanceou os olhos para o cartão de cima. — Portanto, mesmo que quiséssemos aceitar uma...

Interrompeu-se, apertou os lábios.

— O que foi? — perguntou Witwer, curioso.

Com cuidado, Anderton dobrou o cartão e o pôs no bolso.

— Nada — murmurou ele. — Não foi nada. A rispidez em sua voz fez Witwer corar.

— Você realmente não gosta de mim — observou ele.

— É verdade — admitiu Anderton. — Não gosto. Mas... – Não acreditava que desgostasse tanto assim do rapaz. Não parecia possível: ―não era‖ possível. Alguma coisa estava errada. Atordoado, tentou acalmar a sua mente agitada.

No cartão estava o seu nome. Linha um — já acusado futuro assassino! Segundo as perfurações no cartão, o comissário da Pré-Crime John A. Anderton ia matar um homem — e na próxima semana.

Com total convicção, uma convicção inabalável, ele não acreditou.

II

Na antessala do escritório, conversando com Page, estava a jovem, esguia e atraente esposa de Anderton, Lisa. Ela estava envolvida em uma discussão animada de política, e mal ergueu os olhos quando Witwer e seu marido entraram.

— Olá, querida — disse Anderton.

Witwer permaneceu em silêncio. Mas seus olhos claros piscaram ligeiramente ao pousarem sobre a mulher de cabelo castanho, usando uma farda impecável da polícia. Lisa era agora uma oficial executiva da Pré-Crime, mas, antes, Witwer sabia, tinha sido secretária de Anderton.

Percebendo o interesse no rosto de Witwer, Anderton fez uma pausa e refletiu. Plantar o cartão nas máquinas requeria um cúmplice de dentro — alguém intimamente relacionado à Pré-Crime e com acesso ao equipamento analítico. Lisa era um elemento improvável. Mas a possibilidade existia.

Evidentemente, a conspiração podia ser em grande escala e elaborada, envolvendo muito mais do que um cartão ―plantado‖ em alguma parte ao longo da linha. Os dados originais podiam ter sido, eles próprios, falsificados. Na verdade, era impossível saber até quando a alteração remontava. Um calafrio percorreu-lhe quando começou a ponderar as possibilidades. Seu impulso original — abrir as máquinas e remover todos os dados — era inutilmente primitivo. Provavelmente, as fitas concordavam com o cartão: ele só faria se incriminar ainda mais.

Tinha, aproximadamente, vinte e quatro horas. Então, o pessoal do exército verificaria os cartões e descobriria a discrepância. Encontrariam em seus arquivos uma duplicata do cartão de que ele tinha se apropriado. Estava somente com uma das duas

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cópias, o que significava que o cartão dobrado em seu bolso podia também estar na mesa de Page, à vista de todos.

Do lado de fora do edifício chegava o ruído monótono dos carros de polícia dando partida para a detenção rotineira de suspeitos. Quantas horas até um deles estacionar em frente de ―sua‖ casa?

— O que houve, querido? — perguntou Lisa preocupada. — Parece que viu um fantasma. Você está bem?

— Estou bem — tranquilizou-a.

Lisa, de súbito, pareceu tomar consciência do exame atento e admirado de Ed Witwer.

— Este cavalheiro é o seu novo colaborador, querido? —perguntou ela.

Com cautela, Anderton apresentou seu novo parceiro. Lisa saudou-o com um sorriso cordial. Algum entendimento secreto se passara entre eles? Não tinha como afirmar. Meu Deus, estava começando a desconfiar de todo mundo — não somente de sua esposa e de Witwer, mas de uma dezena de membros de sua equipe.

— É de Nova York? — perguntou Lisa.

— Não — respondeu Witwer. — Passei a maior parte da minha vida em Chicago. Estou em um hotel. Um dos hotéis grandes no centro. Espere... tenho o nome escrito em um cartão que guardei em algum lugar.

Enquanto ele procurava nos bolsos, Lisa propôs:

— Quem sabe não gostaria de jantar conosco? Vamos trabalhar em íntima colaboração e realmente acho que deveríamos nos conhecer melhor.

Surpreso, Anderton recuou. Quais eram as chances de a cordialidade de sua esposa ser benigna, acidental? Witwer participaria da intimidade da noite em sua residência particular, e, então, teria uma desculpa para aparecer sem ser convidado. Profundamente perturbado, virou-se, impulsivamente, e dirigiu-se à porta.

— Aonde vai? — perguntou Lisa, admirada.

— De volta ao bloco dos macacos — respondeu ele. —Quero checar algumas fitas antes que o exército as veja. — Ele já estava no corredor antes de ela poder pensar em uma razão plausível para detê-lo.

Dirigiu-se, rapidamente, à rampa no final do corredor. Descia a passos largos as escadas externas que levavam à calçada, quando Lisa apareceu ofegante atrás dele.

— O que diabos está acontecendo com você? — Segurando seu braço, ela se pôs rapidamente na frente dele. — Eu ―sabia‖ que você estava saindo — exclamou ela, bloqueando a sua passagem. — Qual é o problema? Todos acham que você — ela hesitou —, bem, que está agindo de maneira um tanto excêntrica.

Pessoas passavam por eles — a multidão vespertina usual. Ignorando-as, Anderton forçou os dedos de sua mulher a soltarem seu braço.

— Estou indo embora — disse ele. — Enquanto há tempo.

— Mas... ―por quê‖?

— Estou sendo incriminado. De maneira deliberada e maliciosa. Essa criatura veio tomar o meu lugar. O Senado está me envolvendo ―através‖ dele.

Lisa olhou-o, confusa.

— Mas ele parece ser um bom rapaz.

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— Tão bom quanto uma cobra venenosa.

A aflição de Lisa transformou-se em descrença.

— Não acredito. Querido, você tem sofrido toda essa tensão... — Sorrindo hesitante, ela balbuciou: — Não faz sentido que Ed Witwer esteja tentando incriminá-lo. Como poderia, mesmo que quisesse? Certamente Ed não...

— Ed?

— É o seu nome, não é?

Seus olhos castanhos lampejaram, surpresos e incrédulos, em um protesto.

— Deus do céu, está desconfiado de todo mundo. Você acha realmente que estou metida nisso de alguma maneira, não acha?

Ele pensou por um instante.

— Não tenho certeza.

Ela aproximou-se dele, seu olhar acusando-o.

— Não é verdade. Você realmente acha isso. Talvez você ―devesse‖ se afastar por algumas semanas. Está precisando urgentemente de descanso. Toda essa tensão e trauma, um homem mais jovem sendo introduzido. Está agindo como um paranoico. Não percebe? Pessoas tramando contra você. Diga-me, tem alguma prova real?

Anderton pegou a sua carteira e tirou o cartão dobrado.

— Examine-o atentamente — disse, entregando-o a ela.

A cor abandonou o seu rosto e sua respiração tornou-se entrecortada.

— O esquema é muito óbvio — disse Anderton, da maneira mais equilibrada possível. — Isso dará a Witwer um pretexto legal para me remover neste instante. Não vai ter de esperar até eu renunciar. — Acrescentou firme: — Eles sabem que ainda posso ficar por mais alguns anos.

— Mas...

— O sistema de controle vai ser encerrado. A Pré-Crime vai deixar de ser uma agência independente. O Senado vai controlar a polícia e, depois — seus lábios apertaram-se —, vai absorver também o exército. Bem, é bastante lógico. ―É claro que‖ sinto hostilidade e ressentimento em relação a Witwer. ―É claro que‖ tenho motivo para isso.

— Ninguém gosta de ser substituído por um homem mais jovem, e ser afastado por velhice — prosseguiu ele. — Tudo isso é plausível... exceto que não tenho a mais remota intenção de matar Witwer. Mas não tenho como prová-lo. Então, o que posso fazer?

Com a voz engasgada, o rosto muito pálido, ela disse:

— Eu... não sei. Querido se, pelo menos...

— Neste instante — disse Anderton abruptamente. — Vou para casa, fazer as malas. Não consigo planejar nada além disso.

— Vai mesmo tentar... se esconder?

— Vou. Tão longe quanto nos planetas colônias de Centauro, se necessário. Já foi conseguido antes, e tenho vinte e quatro horas. — Virou-se resolutamente. — Volte lá para dentro. Não há razão para que venha comigo.

— Você achou que eu iria? — perguntou Lisa, o tom rouco.

Surpreso, Anderton encarou-a.

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— Não iria? — Em seguida, murmurou perplexo: — Não, vejo que não acredita em mim. Ainda acha que estou imaginando tudo isso. — Bateu com fúria no cartão. — Mesmo com esta evidência, continua sem se convencer.

— Não — Lisa concordou rapidamente —, não estou convencida. Não o examinou com atenção suficiente, querido. O nome de Ed Witwer não está nele.

Incrédulo, Anderton pegou o cartão da mão dela.

— Ninguém afirma que você vai matar Ed Witwer — prosseguiu Lisa, rapidamente, com a voz fraca. — O cartão ―deve‖ ser genuíno, entende? E não tem nada a ver com Ed. Ele não está tramando contra você nem ninguém mais está.

Confuso demais para responder, Anderton examinou o cartão. Ela tinha razão. Ed Witwer não estava listado como vítima. Na linha cinco, a máquina havia estampado nitidamente outro nome.

LEOPOLD KAPLAN

Apático, guardou o cartão no bolso. Nunca, na sua vida, ouvira falar desse homem.

III

A casa estava fria e deserta e, quase imediatamente, Anderton deu início aos preparativos para a sua viagem. Enquanto fazia as malas, pensamentos frenéticos passavam por sua cabeça.

Possivelmente se enganara em relação a Witwer, mas como poderia ter certeza? De qualquer maneira, a conspiração contra ele era muito mais complexa do que tinha se dado conta. Witwer, na cena geral, talvez fosse apenas um fantoche insignificante manipulado por alguém mais — por uma figura distante, indistinta, apenas visível vagamente no fundo.

Tinha sido um erro mostrar o cartão a Lisa. Sem dúvida, ela o descreveria em detalhes a Witwer. Ele nunca deixaria a Terra, nunca teria oportunidade de descobrir como seria a vida em um planeta de fronteira.

Enquanto estava absorto nesses pensamentos, uma tábua rangeu às suas costas. Virou-se, segurando um paletó esporte de inverno já gasto, e se deparou com o cano de uma pistola gray-blue A.

— Não esperaram muito — disse ele, encarando com amargura o homem troncudo, de lábios apertados, em um sobretudo marrom que apontava a arma em sua mão enluvada. — Ela nem mesmo hesitou?

O rosto do intruso não registrou nenhuma resposta.

— Não sei do que está falando — disse ele —Venha comigo. Perplexo, Anderton largou o paletó.

— Você não é da minha agência? Não é oficial da polícia?

Perplexo e protestando, foi empurrado para fora de casa, para uma limusine que aguardava. No mesmo instante, três homens fortemente armados aproximaram-se por trás dele. A porta bateu e o carro partiu estrada abaixo, afastando-se da cidade. Impassíveis e remotas, as faces à sua volta sacudiam-se com o movimento da velocidade do veículo, enquanto campos abertos, escuros e melancólicos, passavam rápido. Anderton tentava, em vão, compreender as implicações do que tinha acontecido, quando o carro tomou uma estrada lateral sulcada, e desceu para uma garagem escura, subterrânea. Alguém gritou uma ordem. O pesado cadeado de metal rangeu, trancando-se e, acima, luzes tremeluziram. O motorista desligou o motor do carro.

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— Vão se arrepender disso — avisou Anderton, com a voz rouca, quando o arrastaram para fora do carro. — Têm ideia de quem sou?

— Temos — disse o homem de sobretudo marrom.

Com uma arma apontada para ele, Anderton subiu do silêncio frio da garagem para um corredor atapetado. Aparentemente, estava em uma residência particular luxuosa, localizada na área rural devastada pela guerra. Era possível divisar, no extremo do corredor, uma sala — um gabinete forrado de livros, mobiliado com simplicidade, mas com bom gosto. Em um círculo de luz, formado pelo abajur, o rosto parcialmente na sombra, um homem que ele nunca vira o aguardava.

Quando Anderton se aproximou, o homem, nervoso, guardou os óculos sem armação em seu estojo, fechou-o, e umedeceu os lábios ressequidos. Era idoso, talvez setenta anos ou mais, e, sob seu braço, havia uma bengala de prata. Seu corpo era magro, mas forte, a sua atitude curiosamente rígida. O pouco cabelo que lhe restava era castanho acinzentado — um lustro suave de cor neutra sobre seu crânio pálido, ossudo. Somente seus olhos pareciam realmente alertas.

— Este é Anderton? — perguntou lamuriosamente, virando-se para o homem de sobretudo marrom. — Onde o pegaram?

— Em sua casa — replicou o outro. — Estava fazendo as malas, como esperávamos.

O homem à mesa estremeceu visivelmente.

— Fazendo as malas. — Retirou os óculos e, abruptamente, tornou a pô-los no estojo.

— O que há — disse rudemente a Anderton —, o que deu em você? Ficou louco? Como pode matar um homem que nunca viu?

O velho, Anderton percebeu de súbito, era Leopold Kaplan.

— Em primeiro lugar, vou fazer uma pergunta — contrapôs Anderton imediatamente. — Você se dá conta do que fez? Sou comissário da polícia. Posso mandar prendê-lo por vinte anos.

Ia dizer mais, porém um pensamento o interrompeu.

— Como você ―descobriu‖? — perguntou. Involuntariamente, a sua mão foi ao seu bolso, onde o cartão estava escondido. — Não será para outro...

— Não fui notificado por sua agência — interrompeu Kaplan, com uma impaciência irritada. — O fato de nunca ter ouvido falar em mim não me surpreende tanto. Leopold Kaplan, general do Exército da Aliança Federada do Bloco Ocidental, a AFBO. —Acrescentou, de má vontade: — Reformado, desde o fim da Guerra Anglo-Chinesa, e a abolição da AFBO.

Fazia sentido. Anderton já desconfiava que o exército processava seus cartões duplicatas imediatamente, para a sua própria proteção. Relaxando, de certa forma, perguntou:

— Então? Você me trouxe para cá. E agora?

— Evidentemente — disse Kaplan —, não vou mandar matá-lo, ou isso teria sido revelado em um desses cartões miseráveis. Estou curioso a seu respeito. Pareceu-me incrível que um homem da sua estatura seja capaz de cogitar assassinar a sangue frio um estranho. Deve haver algo mais. Francamente, estou intrigado. Se isso representasse algum tipo de estratégia da polícia — balançou seus ombros magros —, certamente não teria permitido que a duplicata do cartão chegasse até nós.

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— A menos — sugeriu um de seus homens — que tenha sido plantado deliberadamente.

Kaplan ergueu os olhos brilhantes, semelhantes aos de um pássaro, e examinou Anderton.

— O que tem a dizer?

— É exatamente isso — disse Anderton, percebendo logo a vantagem de falar francamente o que acreditava ser a verdade pura e simples. — A predição no cartão foi fabricada deliberadamente por uma panelinha dentro da agência de polícia. O cartão é plantado e eu sou capturado. E perco a minha autoridade automaticamente. O meu assistente intervém e alega que impediu o assassinato da maneira eficiente de sempre da Pré-Crime. Não é preciso dizer que não existe assassinato nem intenção de assassinato.

— Concordo com você que não haverá assassinato nenhum — afirmou Kaplan, sombriamente. — Você estará sob a custódia da polícia. Pretendo garantir isso.

Horrorizado, Anderton protestou:

— Vai me levar de volta para lá? Se eu ficar sob custódia nunca vou poder provar...

— Não me importa o que vai provar ou não — interrompeu Kaplan. — Tudo o que me interessa é ter você fora do caminho. — Acrescentou, frigidamente: — Para a minha própria proteção.

— Ele estava pronto para partir — declarou um dos homens.

— Está bem — disse Anderton, suando. — Assim que puserem as mãos em mim, serei confinado no campo de detenção. Witwer assumirá, tudo. — Sua face tornou-se sombria. — E a minha mulher. Estão agindo de comum acordo, aparentemente.

Por um momento, Kaplan pareceu hesitar.

— É possível — admitiu, olhando fixamente para Anderton. Então, balançou a cabeça. — Não posso correr o risco. Se há uma armação contra você, eu lamento. Mas simplesmente não é da minha conta. — Sorriu ligeiramente. — No entanto, desejo-lhe sorte. — Aos homens, ele disse: — Levem-no ao prédio da polícia e o entreguem à autoridade máxima. — Ele mencionou o nome do comissário interino e esperou a reação de Anderton.

— Witwer! — ecoou Anderton, incrédulo.

Ainda com um sorriso ligeiro, Kaplan virou-se e ligou o rádio no gabinete.

— Witwer já assumiu o posto. Obviamente, vai fazer um grande alarde com isso.

Ouviu-se um ruído breve da estática e, então, abruptamente, o rádio ressoou alto na sala — uma voz profissional ruidosa lia um comunicado. ―(...) todos os cidadãos estão alertados para não abrigar ou ajudar ou assistir, da maneira que for, esse indivíduo marginal perigoso. A circunstância extraordinária de um criminoso fugitivo em liberdade e em posição de cometer um ato de violência é única nos tempos atuais. Todos os cidadãos estão, por meio deste, notificados que os estatutos legais ainda em vigor implicam todas as pessoas que não cooperarem inteiramente com a polícia na tarefa de capturar John Allison Anderton. Repetindo: a Agência Pré-Crime do Governo Federal do Bloco Ocidental está no processo de localizar e neutralizar o seu antigo comissário, John Allison Anderton, que, através da metodologia do sistema Pré-Crime, é declarado assassino potencial e, como tal, perde seus direitos à liberdade e todos os seus privilégios‖.

— Ele não precisou esperar muito tempo — murmurou Anderton, estarrecido. Kaplan desligou o rádio e a voz desapareceu.

— Lisa deve ter ido diretamente a ele — Anderton especulou com amargura.

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— Por que ela esperaria? — perguntou Kaplan. — Você deixou as suas intenções claras.

Fez um sinal com a cabeça aos seus homens.

— Levem-no de volta à cidade. Sinto-me inquieto com ele tão perto. Nesse ponto, concordo com o comissário Witwer. Quero-o neutralizado logo que possível.

IV

A chuva fria e fina batia contra o pavimento enquanto o carro atravessava as ruas escuras da cidade de Nova York, em direção ao edifício da polícia.

— Você pode entendê-lo — um dos homens disse a Anderton. — Se estivesse no lugar dele, agiria com a mesma determinação.

Soturno e ressentido, Anderton olhava fixamente à frente.

— De qualquer maneira — prosseguiu o homem —, você é apenas um em vários. Milhares de pessoas foram para esse campo de detenção. Você não estará sozinho. Na verdade, talvez não queira sair de lá.

Desesperançado, Anderton observava os pedestres apressando-se nas calçadas molhadas pela chuva. Não sentia nenhuma emoção forte. Estava ciente somente de um cansaço esmagador.

Apaticamente, conferia os números das ruas: estavam se aproximando da delegacia.

— Esse Witwer parece saber como tirar vantagem de uma oportunidade — um dos homens comentou a título de conversa.

— Não o conheceu?

— Brevemente — respondeu Anderton.

— Ele queria o seu posto, então implicou você. Tem certeza disso?

Anderton fez uma careta. — E isso tem importância?

— Era só curiosidade.— O homem olhou-o langorosamente.

— Então, você é o ex-comissário da polícia. As pessoas no campo ficarão felizes ao vê-lo. Vão se lembrar de você.

— Sem dúvida — concordou Anderton.

— Witwer não perdeu tempo, realmente. Sorte de Kaplan ter um funcionário desse tipo no cargo. — O homem olhava para Anderton quase em súplica. — Está mesmo convencido de que é uma conspiração?

— É claro.

— Você não tocaria em um fio do cabelo de Kaplan? Pela primeira vez na história, a Pré-Crime se enganou? Um homem inocente é inculpado falsamente por um daqueles cartões. Talvez tenha havido outras pessoas inocentes, certo?

— É bem possível — admitiu Anderton indiferente.

— Talvez o sistema todo seja falho. Certamente você não vai cometer um assassinato. Talvez, nenhum deles cometesse. Por isso você disse a Kaplan que queria ficar do lado de fora? Estava esperando provar que o sistema está errado? Tenho a mente aberta, se quiser falar sobre isso.

Outro homem inclinou-se e perguntou:

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— Só entre nós dois, tem algum fundamento essa história de conspiração? Você está realmente sendo acusado falsamente?

Anderton deu um suspiro. A essa altura nem ele mesmo tinha mais certeza. Talvez tivesse caído em um círculo de tempo, fechado e sem sentido, sem motivo e sem começo. De fato, estava quase disposto a admitir que era vítima de uma fantasia neurótica e tediosa, provocada por uma insegurança cada vez maior. Sem lutar, estava disposto a desistir. Um grande peso de exaustão assentava-se sobre ele. Estava lutando contra o impossível — e todas as cartas estavam contra ele.

V

O cantar agudo dos pneus despertou-o. Freneticamente, o motorista lutava para controlar o carro, puxando o volante e batendo nos freios, quando um caminhão se assomou da neblina e atravessou a faixa diretamente à frente. Se ele tivesse acelerado, talvez estivesse salvo. Mas percebeu seu erro tarde demais. O carro derrapou, deu uma guinada, hesitou por um breve instante, e, então, bateu de frente contra o caminhão.

Debaixo de Anderton, o banco ergueu-se e o lançou de cara contra a porta. A dor repentina, intolerável, pareceu estourar o seu cérebro, enquanto ofegava e tentava, sem forças, pôr-se de joelhos. Em algum lugar, o estalar do fogo ecoou melancolicamente, um pedaço de brilho sibilante cintilou no remoinho de névoa que adentrava a massa retorcida do carro.

Mãos de fora do carro estenderam-se até ele. Lentamente, foi tomando consciência de que estava sendo arrastado pela fenda que antes havia sido a porta. O pesado estofamento do banco foi empurrado bruscamente para o lado, e, imediatamente, ele se viu em pé, apoiando-se pesadamente sobre uma forma escura, e sendo guiado nas sombras de um beco à pequena distância do carro.

À distância, apitavam as sirenes da polícia.

— Você vai viver — uma voz chiou em seu ouvido, baixa e urgente. Era uma voz que nunca escutara antes, tão desconhecida e áspera quanto a chuva batendo em seu rosto. — Está ouvindo o que estou dizendo?

— Estou — Anderton reconheceu. Puxou a esmo a manga rasgada de sua camisa. Um corte na face começou a latejar. Confuso, tentou se orientar. — Você não é...

— Pare de falar e ouça — O homem era troncudo, quase gordo. Agora, as suas grandes mãos seguravam Anderton apoiado contra o muro de tijolos do edifício, fora da chuva e da luz bruxuleante do carro em chamas. — Tivemos de fazer dessa maneira — disse ele. — Era a única alternativa. Não tínhamos muito tempo. Achamos que Kaplan o manteria em sua casa por mais tempo.

— Quem é você? — Anderton conseguiu perguntar.

A face molhada, raiada de chuva, contorceu-se em um sorriso largo e forçado.

— Meu nome é Fleming. Vai me ver de novo. Temos aproximadamente cinco minutos até a polícia chegar. Então voltamos aonde começamos. — Um envelope foi colocado nas mãos de Anderton. — Esse saque é suficiente para que siga em frente. Contém a papelada completa de identificação. Entraremos em contato com você esporadicamente. — Seu sorriso forçado tornou-se um riso astuto. — Até que prove o seu argumento.

Anderton admirou-se.

— Então foi uma armação?

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— É claro. — O homem afirmou bruscamente. — Quer dizer que tinham conseguido fazê-lo acreditar nisso também?

— Achei que... — Anderton sentiu dificuldade em falar, um de seus dentes da frente parecia estar mole. — Hostilidade em relação a Witwer... substituído, minha mulher e um homem mais jovem, ressentimento natural...

— Não se engane — disse o outro.— Você sabe perfeitamente. Esse negócio todo foi elaborado cuidadosamente. Tinham cada fase sob controle. O cartão foi preparado para ser rejeitado no dia em que Witwer apareceu. Já encerraram a primeira parte. Witwer é comissário, e você é procurado como criminoso.

— Quem está por trás disso?

— A sua mulher.

A cabeça de Anderton girou.

— Tem certeza? – O homem riu.

— Pode apostar a sua vida — relanceou os olhos à sua volta.

— A polícia chegou. Vá por essa viela. Pegue um ônibus, vá para o setor de favelas, alugue um quarto e compre uma pilha de revistas para se manter ocupado. Consiga outras roupas. Você é inteligente o bastante para cuidar de si mesmo. Não tente deixar a Terra. Todos os transportes intersistemas estão sendo controlados. Se conseguir ficar aqui por uma semana, estará salvo.

— Quem é você? — perguntou Anderton.

Fleming soltou-o. Com cautela, dirigiu-se à entrada da viela e espiou. O primeiro carro de polícia acabava de chegar, deslizando sobre o pavimento molhado, o motor ressoando metalicamente, aproximou-se, com desconfiança, da ruína carbonizada que tinha sido o carro de Kaplan. No interior do destroço, a brigada de homens começava, com muito esforço, a arrastar-se, pelo emaranhado de aço e plástico, para fora, para a chuva fria.

— Considere-nos uma sociedade protetora — disse Fleming, baixinho, seu rosto rechonchudo, inexpressivo, brilhando com a umidade. — Uma espécie de força policial que vigia a polícia. Para que — acrescentou ele — fique tudo equilibrado.

A sua mão grossa foi estendida. Cambaleando, Anderton foi empurrado para avançar, quase caindo no escuro e nos escombros úmidos que se espalhavam pelo beco.

— Não pare — disse-lhe Fleming abruptamente. — E não largue o envelope. — Enquanto Anderton, hesitante, abria caminho rumo ao outro extremo da viela, lhe chegaram as últimas palavras do homem: — Examine-o atentamente e talvez sobreviva.

O cartão de identidade descrevia-o como Ernest Temple, eletricista desempregado, recebendo uma subsistência semanal do estado de Nova York, com uma esposa e quatro filhos em Buffalo e menos de cem dólares de patrimônio. Um green card autorizava-o a viajar e a não manter endereço fixo. Um homem que procura trabalho tem de viajar. Talvez tivesse de percorrer um longo caminho.

Enquanto atravessava a cidade em um ônibus praticamente vazio, Anderton estudou a descrição de Ernest Temple. Obviamente, os cartões haviam sido elaborados com ele em mente, pois todas as medidas se ajustavam. Depois de algum tempo, se perguntou sobre as impressões digitais e o padrão de onda cerebral. Possivelmente, não resistiriam a uma comparação. A carteira cheia de cartões permitiria que passasse somente por uma verificação superficial.

Mas já era alguma coisa. E com a carteira de identidade, estavam dez mil dólares em papel-moeda. Pôs no bolso os cartões e o dinheiro e, então, voltou-se para a mensagem digitada que os envolvia.

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De início, não fez o menor sentido. Estudou-a por muito tempo, perplexo. A existência de uma maioria implica, logicamente, uma minoria correspondente.

O ônibus tinha entrado na vasta região das favelas, passando, aos solavancos, por milhares de hotéis baratos e casas de cômodos arruinados que tinham surgido depois da destruição em massa da guerra. Reduziu a marcha ao se aproximar de um ponto e Anderton levantou-se. Alguns passageiros observaram preguiçosamente o corte em seu rosto e a roupa rasgada. Ignorando-os, ele desceu para o meio-fio molhado pela chuva.

Além de receber o dinheiro, o funcionário do hotel não estava interessado em mais nada. Anderton subiu a escada para o segundo andar e entrou no cômodo estreito, cheirando a mofo, que agora lhe pertencia. Grato, ele trancou a porta e baixou as persianas. O quarto era pequeno, mas limpo. Cama, cômoda, calendário com paisagens, cadeira, abajur, um rádio com uma ranhura para a inserção de moedas.

Introduziu uma moeda e deixou-se cair pesadamente na cama. Todas as principais estações transmitiam o boletim da polícia. Era inusitado, excitante, algo desconhecido para a geração atual. Um criminoso fugitivo! O público estava avidamente interessado.

―(...) esse homem aproveitou-se de sua alta posição para realizar uma fuga", o locutor dizia, com uma indignação profissional. ―O seu alto cargo lhe dava acesso aos dados antecipadamente, e a confiança de que gozava permitiu que escapasse do processo normal de detenção e de sua localização. Durante a sua gestão, exerceu a autoridade para enviar inúmeros culpados em potencial ao confinamento apropriado, poupando, desse modo, a vida de vítimas inocentes. Esse homem, John Allison Anderton, foi fundamental para a criação do sistema da Pré-Crime, a pré-detenção profilática de criminosos por meio do uso engenhoso de mutantes precognitivos, capazes de prever eventos futuros e transferir oralmente os dados à maquinaria analítica. Esses três precognitivos, em sua função vital (...)‖.

A voz calou-se gradualmente quando ele saiu do quarto e entrou no banheiro minúsculo. Ali, tirou o casaco, a camisa, e abriu a torneira de água quente da pia. Começou a lavar o corte na maçã do rosto. Na drogaria da esquina, tinha comprado iodo e band-aids, lâmina de barbear, pente, escova de dentes, e outras pequenas coisas de que precisaria. Na manhã seguinte, procuraria uma loja de roupas usadas e compraria algo mais adequado. Afinal, ele, agora, era um eletricista desempregado, e não um comissário da polícia acidentado.

No quarto, o rádio ressoava estridente. Mas ele só o percebia subconscientemente, em pé diante do espelho, examinando um dente quebrado.

―(...) o sistema dos três precognitivos tem sua origem nos computadores de meados deste século. Como os resultados de um computador eletrônico são verificados? Introduzindo os dados em um segundo computador de design idêntico. Mas dois computadores não são suficientes. Se cada um deles chegar a uma resposta diferente, é impossível afirmar a priori qual está certo. A solução, com base em um estudo cuidadoso do método estatístico, é utilizar um terceiro computador para checar os resultados dos dois primeiros. Dessa maneira, é obtido um relatório, chamado relatório da maioria. Pode-se supor com probabilidade total que a concordância de dois em três computadores indica qual dos resultados alternativos é exato. É improvável que dois computadores cheguem a soluções incorretas idênticas (...)‖.

Anderton largou a toalha que segurava e correu para o quarto. Tremendo, curvou-se para escutar as palavras estridentes do rádio.

―(...) a unanimidade dos três precognitivos é um fenômeno esperado, mas raro, explica o comissário interino Witwer. É muito mais comum obter um relatório em conjunto da maioria de dois precognitivos, mais um relatório da minoria, com alguma ligeira variação, geralmente com referência a tempo e lugar, do terceiro mutante. Isso é explicado pela teoria de ‗futuros múltiplos‘. Se existisse somente uma trajetória para o tempo, a informação

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precognitiva não teria nenhuma importância, na medida em que não haveria nenhuma possibilidade, ao se possuir essa informação, de alterar o futuro. No trabalho da Agência Pré-Crime, devemos, antes de mais nada, supor que (...)‖.

Freneticamente, Anderton ficou de lá para cá no quarto exíguo. Relatório da maioria – somente dois dos precognitivos haviam concordado sobre o material que fundamentava o cartão.

Esse era o significado da mensagem no pacote. O relatório do terceiro precognitivo, o relatório da minoria, tinha, de certa forma, importância.

Por quê?

Seu relógio informou-lhe que passava da meia-noite. Page deveria estar de folga. Não retornaria ao bloco dos macacos até a tarde seguinte. Era uma chance remota, mas valia a pena tentar. Page talvez o protegesse, talvez não. Ele teria de correr o risco.

Ele tinha de ver o relatório da minoria.

VI

Entre meio-dia e uma da tarde, as ruas cobertas de lixo ficavam cheias de gente. Optou por essa hora, a mais movimentada do dia, para fazer a ligação. Escolhendo uma cabine em uma grande drogaria, apinhada de clientes, discou o número familiar da polícia e esperou com o telefone ao ouvido. Deliberadamente, selecionou a linha áudio e não a de vídeo: apesar de suas roupas surradas e a aparência esmolambado, não barbeado, podia ser reconhecido.

O recepcionista era novo. Com cautela, passou para o ramal de Page. Se Witwer estava removendo a equipe regular e colocando seus satélites, ele poderia se pegar falando com alguém totalmente estranho.

— Alô? — ouviu a voz rouca de Page.

Aliviado, Anderton relanceou os olhos em volta. Ninguém estava lhe prestando a mínima atenção. Os fregueses perambulavam com mercadorias, ocupando-se de sua rotina diária.

— Pode falar? — perguntou ele. — Ou está ocupado?

Houve um momento de silêncio. Ele imaginou a cara conciliatória de Page dilacerada pela dúvida, enquanto tentava desesperadamente decidir o que fazer. Por fim, falou com hesitação.

— Por que... ligou para cá?

Ignorando a pergunta, Anderton disse:

— Não reconheci o recepcionista. Pessoal novo?

— Novinho em folha — concordou Page, com a voz sumida, abafada. — Muita rotatividade de pessoal, agora.

— Foi o que eu soube. — Tenso, Anderton perguntou: — E o seu emprego? Está seguro?

— Espere um minuto. — O fone foi abaixado, e Anderton escutou o som abafado de passos. Foi seguido pelo ruído rápido de uma porta sendo fechada apressadamente. Page retornou. — Agora, podemos falar melhor — disse com a voz rouca.

— Bem melhor?

— Não muito. Onde está?

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— Dando um giro pelo Central Park — disse Anderton. — Aproveitando o sol. — Até onde sabia, Page tinha ido se certificar de que a fita da linha estava no lugar. Nesse exato momento, uma equipe da polícia estava, provavelmente, sendo transportada por um avião. Mas ele tinha de correr o risco. — Estou em outro campo — disse laconicamente. — Agora sou eletricista.

— Ahan? — replicou Page desconcertado.

— Achei que talvez tivesse trabalho para mim. Se isso puder ser arranjado, gostaria de passar por aí e examinar o seu equipamento de computação. Principalmente os bancos dedados no bloco dos macacos.

Depois de uma pausa, Page disse:

— Pode... ser arranjado. Se for realmente importante.

— É — garantiu Anderton. — Quando é melhor para você?

— Bem — disse Page, vacilante — Estou esperando uma equipe da manutenção que virá examinar o equipamento do sistema de intercomunicação. O comissário interino quer aprimorá-lo, para que ele possa operá-lo com mais rapidez. Você pode entrar com eles.

— Farei isso. Por volta de que horas?

— Digamos às quatro. Entrada B, nível 6. Eu... vou encontrá-lo.

— Ótimo — concordou Anderton, antes de desligar. — Espero que ainda esteja no cargo quando eu chegar.

Desligou e deixou a cabine rapidamente. Um momento depois, tentava passar por uma massa densa de pessoas que apinhava a cafeteria do lado. Ninguém o localizaria ali.

Tinha de esperar três horas e meia. E seria um tempo bastante longo. Revelou-se a espera mais longa de sua vida, até que, finalmente, encontrou Page como combinado.

A primeira coisa que Page disse foi:

— Você perdeu o juízo. Por que diabos voltou?

— Não voltei por muito tempo — Tenso, Anderton entrou pelo bloco dos macacos, fechando, sistematicamente, uma porta atrás da outra. — Não deixe ninguém entrar. Não posso me arriscar.

— Você devia ter-se demitido quando ainda era o chefe. — Agoniado de apreensão, Page seguiu atrás dele. — Witwer está se aproveitando da situação, não perde tempo. Vai pôr o país todo gritando por seu sangue.

Ignorando-o, Anderton abriu o principal banco de controle da maquinaria analítica.

— Qual dos três macacos fez o relatório da minoria?

— Não me pergunte. Estou caindo fora. — A caminho da porta, Page parou por um breve momento, apontou a figura do meio e desapareceu em seguida. A porta foi fechada. Anderton ficou sozinho.

O do meio. Ele o conhecia bem. A figura anã e corcunda estava enterrada nessa fiação e relés há 15 anos. Quando Anderton se aproximou, a criatura não ergueu os olhos. Seus olhos vidrados e perplexos contemplavam um mundo que ainda não existia, cego à realidade física à sua volta.

―Jerry‖ tinha 24 anos. Originalmente, havia sido classificado como um idiota hidrocéfalo, mas ao completar a idade de seis anos, os testes psicológicos identificaram o talento precognitivo, soterrado sob camadas de tecido decomposto. Colocado em uma escola de treinamento operada pelo governo, o talento latente foi cultivado. Quando tinha

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nove anos, o talento já avançara a um estágio útil. ―Jerry‖, no entanto, permaneceu no caos, sem objetivo, na idiotia; a faculdade que se desenvolvia rapidamente tinha absorvido a totalidade de sua personalidade.

Acocorado, Anderton começou a desmontar as placas protetoras dos rolos de fitas armazenados na maquinaria analítica. Usando os esquemas, seguiu o curso dos estágios finais dos computadores integrados até o ponto em que o equipamento individual de ―Jerry‖ se ramificava. Em minutos, retirava, trêmulo, duas fitas de meia hora: dados recentes rejeitados que não se coadunavam com os relatórios da maioria. Consultando a carta de códigos, selecionou a seção de fitas que se referiam a esse cartão em particular.

Um scanner de fitas estava montado do lado. Prendendo a respiração, ele inseriu a fita, ativou o transporte, e escutou. Só levou um segundo. Desde a primeira declaração do relatório ficou claro o que tinha acontecido. Tinha o que queria; podia parar de buscar.

A visão de ―Jerry‖ estava na fase errada. Por causa da natureza errática da precognição, ele estava examinando uma área de tempo um pouco diferente da de seus companheiros. Para ele, o registro de que Anderton cometeria um assassinato era um evento a ser integrado com todo o resto. Essa afirmação — e a reação de Anderton — era mais um dado.

Obviamente, o relatório de ―Jerry‖ invalidava o relatório da maioria. Tendo sido informado de que cometeria um assassinato, Anderton mudaria de ideia e não o cometeria. A antevisão do assassinato tinha cancelado o crime; a profilaxia tinha ocorrido simplesmente no ato de ter sido informado. Um novo curso de tempo já havia sido criado. Mas ―Jerry‖ tinha sido minoria.

Trêmulo, Anderton retrocedeu a fita e clicou na cabeça gravadora. Fez uma cópia, em alta velocidade, do relatório, restaurou o original , e removeu a duplicata do transporte. Ali estava a prova de que o cartão era inválido: ―obsoleto‖. Tudo que tinha a fazer era mostrá-la a Witwer...

A sua própria estupidez o surpreendeu. Sem dúvida, Witwer tinha visto o relatório; e, apesar disso, havia assumido o cargo de comissário, e afastado as equipes da polícia. Witwer não tinha a intenção de se retirar; ele não estava preocupado com a inocência de Anderton.

O que, então, podia fazer? Quem mais estaria?

— Seu idiota! — uma voz irritada atrás dele ecoou, com fúria. Virou-se, rapidamente. A sua mulher estava em uma das portas, na sua farda de polícia, os olhos frenéticos de aflição.

— Não se preocupe — disse-lhe brevemente, mostrando afita. — Estou de saída.

O rosto de Lisa contorceu-se, e ela precipitou-se para ele.

— Page disse que estava aqui, mas não acreditei. Não devia tê-lo deixado entrar. Ele simplesmente não entende quem você é.

— Quem eu sou? — perguntou Anderton sarcasticamente. — Antes de responder, talvez fosse melhor que escutasse esta fita.

— Não quero escutá-la! Só quero que saia daqui já! Ed Witwer sabe que tem alguém aqui. Page está tentando mantê-lo ocupado, mas — interrompeu-se, a cabeça virou-se rigidamente para o lado. — Ele está aqui agora! Vai forçar a entrada!

— Você não tem influência? Seja graciosa e sedutora. Provavelmente ele se esquecerá de mim.

Lisa olhou para ele com reprovação.

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— Tem uma nave pousada no terraço. Se quiser fugir... — A sua voz engasgou e, por um instante, ficou em silêncio. Então, ela disse: — Vou decolar em um minuto. Se quiser vir...

— Vou — disse Anderton. Ele não tinha escolha. Havia assegurado a fita, a sua prova, mas não havia elaborado nenhum método para partir. Contente, apressou-se atrás da figura esguia de sua mulher, enquanto ela saía do bloco por uma porta lateral e atravessava um corredor, os saltos dos sapatos batendo alto na escuridão deserta.

— É uma boa nave, e veloz — disse-lhe por sobre o ombro. — Está abastecida para emergência, pronta para decolar. Eu estava indo supervisionar algumas das equipes.

VII

Atrás do manche do cruzador da polícia, Anderton descreveu, em linhas gerais, o conteúdo da fita do relatório da minoria. Lisa escutou sem comentar, a expressão atormentada, tensa, as mãos apertadas no colo. Abaixo da nave, a região rural devastada pela guerra espalhava-se como um mapa de relevos, as regiões vazias, entre as cidades, eram agora crateras abertas e pontilhadas das ruínas das fazendas e pequenas indústrias.

— Eu me pergunto — disse ela, quando ele terminou — quantas vezes isso aconteceu antes.

— Um relatório da minoria? Muitas vezes.

— Quero dizer, um precognitivo estar em fase diferente. Usando o relatório dos outros como dados, invalidando-os. — Com o olhar sombrio e grave acrescentou: — Talvez muitos nos campos sejam como você.

— Não — insistiu Anderton. Mas começava também a se sentir inquieto em relação a isso. — Eu estava em posição de ver o cartão, de dar uma olhada no relatório. Foi isso que me convenceu.

— Mas — Lisa interrompeu-o com um gesto. — Talvez todos tenham reagido dessa maneira. Poderíamos ter-lhes dito a verdade.

— Teria sido um risco grande demais — respondeu ele, obstinadamente.

De súbito, Lisa deu uma risada.

— Risco? Chance? Incerteza? Com precognitivos à volta? – Anderton concentrou-se em conduzir a pequena nave.

— Este é um caso único — repetiu ele. — E temos um problema imediato. Podemos tratar do aspecto teórico depois. Tenho de levar esta fita às pessoas interessadas, antes de seu jovem e brilhante amigo destruí-la.

— Vai levá-la para Kaplan?

— Certamente. — Tateou o rolo de fita no assento entre eles.

— Ele vai estar interessado. A prova de que a sua vida não está em perigo deve ser de importância vital para ele.

Nervosa, Lisa tirou de sua bolsa a cigarreira.

— E acha que ele vai ajudar você?

— Pode ajudar ou não. É um risco que vale a pena correr.

— Como conseguiu se tornar clandestino tão rapidamente? — perguntou Lisa. — É difícil obter um disfarce completamente eficiente.

— Tudo o que é preciso é dinheiro — respondeu ele evasivamente.

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Enquanto fumava, Lisa ponderou:

— Provavelmente Kaplan vai protegê-lo — disse ela. — Ele é muito poderoso.

— Pensei que fosse um general da reserva.

— Tecnicamente, é isso o que ele é. Mas Witwer divulgou o dossiê sobre ele. Kaplan chefia um tipo incomum de organização de veteranos. Na verdade, é uma espécie de clube, com alguns membros exclusivos. Somente oficiais de alta patente. Uma classe internacional composta dos dois lados da guerra. Aqui, em Nova York, eles mantêm uma espécie de palácio da prefeitura, três publicações de produção luxuosa e uma cobertura ocasional na TV que lhes custa uma pequena fortuna.

— O que está querendo dizer?

— Apenas isso. Você me convenceu de que é inocente. Quer dizer, é óbvio que não vai cometer um assassinato. Mas, agora, tem de se dar conta de que o relatório original, o relatório da maioria, ―não é uma falsificação‖. Ninguém o falsificou. Ed Witwer não o criou. Não existe conspiração contra você, nem nunca existiu. Se aceitar esse relatório da minoria como genuíno, terá de aceitar o da maioria também.

Com relutância, ele concordou.

— Acho que sim.

— Ed Witwer — prosseguiu Lisa — está agindo de boa-fé. Ele realmente acredita que você é um criminoso em potencial. E por que não? Ele tem o relatório da maioria em sua mesa, mas você tem esse cartão dobrado no bolso.

— Eu o destruí — disse Anderton calmamente. Lisa inclinou-se, séria, em sua direção.

— Ed Witwer não é motivado por nenhum desejo de ter o seu cargo — disse ela. — É motivado pelo mesmo desejo que sempre motivou você. Ele acredita na Pré-Crime. Ele quer que o sistema se mantenha. Conversei com ele e estou convencida de que está falando a verdade.

Anderton perguntou:

— Quer que eu leve esta fita a Witwer? Se eu fizer isso, ele vai destruí-la.

— Bobagem — retorquiu Lisa — As originais estão em suas mãos desde o começo. Poderia tê-las destruído quando quisesse.

— É verdade — admitiu Anderton — Possivelmente ele não sabia.

— É claro que não. Veja dessa maneira. Se Kaplan tomar posse desta fita, a polícia ficará desacreditada. Percebe por quê? Provaria que o relatório da maioria estava errado. Ed Witwer está absolutamente certo. Você precisa ser preso. Se a Pré-Crime tiver de sobreviver. Você está pensando em sua própria segurança. Mas pense, por um momento, no sistema. — Curvando-se, apagou o cigarro e remexeu na bolsa buscando outro. — O que significa mais para você: a sua segurança pessoal ou a existência do sistema?

— A minha segurança — respondeu Anderton, sem hesitar.

— Tem certeza?

— Se o sistema só consegue sobreviver aprisionando inocentes, então merece ser destruído. A minha segurança pessoal é importante porque sou um ser humano. E, além disso...

Lisa tirou da bolsa uma pistola incrivelmente minúscula.

— Acho — disse-lhe, a garganta seca — que o meu dedo está no gatilho. Nunca usei uma arma como esta antes, mas estou disposta a experimentar.

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Depois de uma pausa, Anderton perguntou:

— Quer que eu dê a volta? É isso?

— Sim, que retorne ao edifício da polícia. Lamento. Se pudesse colocar o bem do sistema acima de seu egoísmo...

— Poupe o sermão — disse Anderton — Vou levar a nave de volta. Mas não vou ouvir a sua defesa de uma norma de comportamento que nenhum homem inteligente seria capaz de aprovar.

Os lábios de Lisa apertaram-se formando uma linha tênue, exangue. Segurando firme a pistola, sentou-se de frente para ele, os olhos atentamente fixos em sua manobra, enquanto ele traçava um arco amplo com a nave. Alguns objetos soltos chocalharam no porta-luvas quando a pequena aeronave girou em uma manobra radical, uma asa ascendendo majestosamente até apontar diretamente para cima.

Anderton e sua mulher estavam seguros pelos braços metálicos de seus assentos. Mas o terceiro membro do grupo não.

Pelo canto do olho, Anderton percebeu um movimento repentino. Um som ressoou simultaneamente, o esforço para se segurar de um homem grande, quando, abruptamente, perdeu o equilíbrio e foi jogado contra a parede reforçada da nave. O que se seguiu aconteceu rapidamente. Fleming pôs-se imediatamente de pé, cambaleando e cauteloso, um braço atacando violentamente a pistola da mulher. Anderton estava surpreso demais para gritar. Lisa virou-se, viu o homem, e gritou. Fleming conseguiu fazê-la largar a arma, que caiu no chão com estardalhaço.

Resmungando, Fleming empurrou-a e recuperou a arma.

— Desculpe — disse ofegando, aprumando o corpo o melhor que pôde. — Achei que ela falaria mais. Por isso esperei.

— Você estava aqui quando — começou Anderton, e se calou. Era óbvio que Fleming e seus homens o mantinham sob vigilância. A existência da nave de Lisa tinha sido devidamente notada e analisada, e enquanto Lisa discutia se seria melhor levá-lo a um local seguro, ele tinha se introduzido furtivamente no compartimento de carga.

— Talvez — disse Fleming — fosse melhor me dar a fita. —Seus dedos úmidos e desajeitados tatearam buscando-a. — Você tem razão, Witwer teria lhe dado sumiço.

— Kaplan também? — perguntou Anderton, entorpecido, ainda atordoado com a aparição do homem.

— Kaplan está trabalhando diretamente com Witwer. Por isso o seu nome apareceu na linha cinco do cartão. Qual dos dois é o verdadeiro chefe, não sabemos. Possivelmente, nenhum dos dois. — Fleming se desfez da pistola pequenina e pegou a sua própria arma militar pesada. — Foi um grande erro voar com essa mulher. Eu tinha lhe dito que ela estava por trás disso tudo.

— Não acredito — protestou Anderton. — Se ela...

— Você não entendeu. Esta nave foi preparada por ordem de Witwer. Queriam tirá-lo do prédio, de modo que não conseguíssemos chegar a você. Sozinho, separado de nós, você não teria nenhuma chance.

Uma expressão estranha atravessou as feições perplexas de Lisa.

— Não é verdade — sussurrou ela.— Witwer nunca viu esta nave. Eu ia supervisionar...

— Você quase conseguiu escapar — Fleming interrompeu inexorável. — Teremos sorte se uma nave do patrulhamento da polícia não estiver nos aguardando. Não houve tempo para checar — Agachou-se enquanto falava, diretamente atrás da cadeira da mulher.

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— A primeira coisa é tirar esta mulher do caminho. Teremos de tirá-lo desta área. Page deu o serviço a Witwer sobre o seu novo disfarce, e pode estar certo de que já foi amplamente divulgado.

Ainda agachado, Fleming agarrou Lisa. Jogando a sua arma pesada para Anderton, ergueu, habilmente, o queixo dela até sua têmpora ser empurrada de encontro ao banco. Lisa agarrou-se freneticamente a ele; um gemido fraco, aterrorizado, soltou-se de sua garganta. Ignorando-a, Fleming fechou suas grandes mãos em volta de seu pescoço e começou a apertar implacavelmente.

— Nenhum ferimento de bala — explicou ele, ofegando. — Ela cairá. Um acidente natural. Acontece o tempo todo. Mas, neste caso, o seu pescoço será ―primeiro‖ quebrado.

Parecia estranho que Anderton esperasse tanto tempo. Os dedos grossos de Fleming estavam cruelmente cravados na pele pálida da mulher quando ele ergueu a coronha da pistola pesada e abaixou-a na parte de trás do crânio de Fleming. As mãos monstruosas relaxaram. Fleming, vacilou para a frente e caiu contra a parede da nave. Na tentativa de se recompor, começou a arrastar o corpo para cima. Anderton atingiu-o de novo, dessa vez acima do olho esquerdo. Ele caiu para trás e ficou imóvel.

Respirando com dificuldades, Lisa permaneceu, por um momento, encolhida, o corpo oscilando para frente e para trás. Então, gradativamente, a cor retornou ao seu rosto.

— Pode assumir o controle da nave? — perguntou Anderton, sacudindo-a, a voz urgente.

— Posso, acho que posso. — Quase mecanicamente; ela alcançou o manche. — Vou ficar bem. Não se preocupe comigo.

— Esta pistola — disse Anderton — pertence ao exército. Mas não é do tempo da guerra. É uma das novas que estão desenvolvendo. Eu posso estar enganado, mas há uma chance...

Ele voltou para onde Fleming estava estirado. Tentando não tocar na cabeça do homem, abriu o seu casaco e revistou seus bolsos. Um momento depois, a carteira de Fleming, empapada de suor, estava em suas mãos.

Tod Fleming, segundo sua identidade, era um major do exército, ligado ao Departamento de Inteligência de Informação Militar. Entre os diversos documentos, havia um documento, assinado pelo general Leopold Kaplan, declarando que Fleming estava sob a proteção especial de seu grupo — a Liga Internacional dos Veteranos.

Fleming e seus homens estavam operando sob as ordens de Kaplan. O caminhão, o acidente, tudo havia sido armado deliberadamente.

Isso significava que Kaplan o havia mantido longe das mãos da polícia intencionalmente. O plano iniciara com o contato original em sua casa, quando seus homens o pegaram quando arrumava as malas. Incrédulo, se deu conta do que realmente tinha acontecido. Mesmo então, estavam se assegurando de que o teriam antes da polícia. Desde o começo, havia sido uma estratégia elaborada para impedir que Witwer o prendesse.

— Você estava dizendo a verdade — disse Anderton à sua mulher, ao voltar a se sentar. — Podemos entrar em contato com Witwer?

Ela disse que sim com um movimento da cabeça. Apontando o circuito de comunicações do painel, ela perguntou:

— O que... descobriu?

— Entre em contato com Witwer. Quero falar com ele o mais rápido possível. É muito urgente.

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Aos solavancos, ela discou, conseguiu o circuito mecânico do canal fechado, e contatou o quartel-general da polícia em Nova York. Um panorama visual de funcionários da polícia de menor importância passou rapidamente antes de uma réplica das feições de Ed Witwer aparecer na tela.

— Lembra-se de mim? — perguntou Anderton. Witwer empalideceu.

— Meu Deus, o que aconteceu? Lisa, você está trazendo ele de volta? — Abruptamente, seus olhos fixaram-se na arma nas mãos de Anderton. — Ouça — disse ele impetuosamente —, não faça nada a ela. O que quer que ache, ela não é responsável.

— Eu já descobri isso — respondeu Anderton. — Pode nos localizar e acompanhar? Talvez precisemos de proteção ao retornar.

— ―Retornar!‖— Witwer encarou-o sem acreditar. — Você está voltando? Está se entregando?

— Estou, sim. — Falando rapidamente, com urgência, Anderton acrescentou: — Tem uma coisa que você deve fazer imediatamente. Feche o bloco dos macacos. Assegure-se de que ninguém entre. Nem Page nem ninguém. ―Especialmente o pessoal do exército‖.

— Kaplan — disse a imagem em miniatura.

— O que tem ele?

— Esteve aqui. Acabou de sair. O coração de Anderton parou.

— O que ele foi fazer?

— Coletar dados. Transcreveu duplicatas dos relatórios dos precognitivos sobre você. Ele insistiu que os queria exclusivamente para a sua própria proteção.

— Então, ele já os tem — disse Anderton. — É tarde demais. Alarmado, Witwer quase gritou.

— O que quer dizer exatamente? O que está acontecendo?

— Vou lhe contar — disse Anderton energicamente — quando chegar ao meu escritório.

VIII

Witwer encontrou-o no terraço do edifício da polícia. Quando a pequena aeronave aterrissou, várias naves de escolta mergulharam seus estabilizadores verticais e partiram em velocidade. Anderton aproximou-se imediatamente do rapaz louro.

— Você conseguiu o que queria — disse. — Pode me prender, me mandar para o campo de detenção. Mas isso não vai ser o suficiente.

Os olhos azuis de Witwer estavam pálidos na incerteza.

— Acho que não estou entendendo...

— A culpa não é minha. Eu não devia ter deixado o prédio da polícia. Onde está Wally Page?

— Já está sob controle — respondeu Witwer. — Não vai nos dar mais trabalho.

A expressão de Anderton tornou-se soturna.

— Você o prendeu pelo motivo errado — disse ele. — Deixar eu entrar no bloco dos macacos não foi crime nenhum. Mas passar informações para o exército é. Você tem uma rede de espionagem do exército plantada aqui. — Corrigiu-se, não muito convincentemente: — Quer dizer, eu tenho.

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— Eu retirei a sua ordem de captura. Agora as equipes estão atrás de Kaplan.

— Tiveram sorte?

— Ele saiu daqui em uma caminhonete do exército. Nós o seguimos, mas a caminhonete entrou no quartel militar. Eles têm um grande tanque de guerra R-3 bloqueando a rua. Seria provocar a guerra civil tirá-lo do caminho.

Devagar, com hesitação, Lisa avançou. Ela ainda estava pálida e abalada, e uma feia mancha roxa formava-se em sua garganta.

— O que aconteceu com você? — perguntou Witwer. Então, ele viu a forma inerte de Fleming estirada lá dentro. Encarando Anderton, ele disse: — Finalmente parou de achar que era uma conspiração minha.

— Sim.

— Não acha que eu estou — fez uma expressão de repulsa — ―tramando‖ pegar o seu posto.

— É claro que está. Todo mundo é culpado desse tipo de coisa. Eu estou tramando mantê-lo. Mas isso é diferente, e você não é o responsável.

— Por que afirma — perguntou Witwer — que é tarde demais para se entregar? Meu Deus, vamos colocá-lo em um campo. A semana vai passar e Kaplan continuará vivo.

— Ele estará vivo, sim — admitiu Anderton.— Mas ele pode provar que também estaria vivo se eu estivesse solto pelas ruas. Ele tem a informação que mostra que o relatório da maioria está obsoleto. Ele pode quebrar o sistema da Pré-Crime. — Concluiu: — Independente de dar cara ou coroa, ele vai vencer. E nós vamos perder. O exército vai nos desmoralizar. A estratégia deles terá êxito.

— Mas por que correm um risco tão grande? O que querem exatamente?

— Depois da guerra anglo-chinesa, o exército perdeu. Não foi mais o que era na época áurea da AFBO. Eles dirigiam o show, tanto militar quanto doméstico. E faziam o seu próprio trabalho de polícia.

— Como Fleming — disse Lisa com a voz fraca.

— Depois da guerra, o Bloco Ocidental foi desmilitarizado. Oficiais, como Kaplan, foram reformados e descartados. Ninguém gosta disso — Anderton fez uma careta. — Posso entendê-lo. Ele não é o único. Mas não podíamos continuar dirigindo as coisas dessa maneira. Tivemos de dividir a autoridade.

— Está dizendo que Kaplan venceu — disse Witwer. — Não há nada que possamos fazer?

— Eu não vou matá-lo. Eu sei disso e ele sabe disso. Provavelmente ele irá aparecer e nos oferecer algum tipo de acordo. Vamos continuar a funcionar, mas o Senado irá abolir a nossa influência. Você não gostaria disso, gostaria?

— Eu diria que não — respondeu Witwer enfaticamente. — Qualquer dia desses, estarei dirigindo esta agência. — Enrubesceu. — Não imediatamente, é claro.

A expressão de Anderton era sombria.

— Foi péssimo você divulgar o relatório da maioria. Se o tivesse mantido secreto, poderíamos recuperá-lo. Mas todo mundo soube dele. Não podemos dá-lo como não dito.

— Acho que não — admitiu Witwer, sem graça. — Talvez eu... não consiga esse posto tão facilmente como imaginei.

— Conseguirá, com o tempo. Será um bom oficial de polícia. Você acredita no status quo. Mas aprenda a ir com calma. — Anderton afastou-se deles. — Vou examinar as fitas

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dos dados do relatório da maioria. Quero descobrir exatamente como eu supostamente mataria Kaplan. — Pensativamente, concluiu: — Talvez me dê algumas ideias.

As fitas dos dados dos precognitivos ―Donna‖ e ―Mike‖ foram armazenadas separadamente. Escolhendo a maquinaria responsável pela análise de "Donna", ele abriu a plaqueta protetora e expôs o conteúdo. Como antes, o código informou-lhe que rolos eram relevantes e, em um instante, o mecanismo de transporte de fita estava em operação.

Era mais ou menos o que ele tinha suspeitado. Esse era o material utilizado por ―Jerry‖ — o curso de tempo relegado. Nele, os agentes da Inteligência Militar de Kaplan sequestravam Anderton quando ele ia para casa depois do trabalho. Era levado à mansão de Kaplan, o Quartel-General da organização da Liga Internacional dos Veteranos. Anderton recebia um ultimato: desmembrar voluntariamente o sistema Pré-Crime ou enfrentar a hostilidade franca do exército.

No curso de tempo rejeitado, Anderton, como comissário da polícia, tinha recorrido ao Senado para pedir apoio. Nenhum apoio tinha sido dado. Para evitar a guerra civil, o Senado tinha ratificado o desmembramento do sistema de polícia e decretado o retorno à lei militar ―de lidar com a emergência‖. Utilizando uma unidade fanática da polícia, Anderton localizara Kaplan, e outros oficiais da Liga dos Veteranos, e atirara nele. Somente Kaplan tinha morrido. Os outros haviam sido apaziguados. E o golpe tinha sido bem-sucedido.

Esse era ―Donna‖. Ele voltou a fita e examinou o material antevisto por "Mike". Era idêntico; os dois precognitivos haviam combinado apresentar um quadro unificado. "Mike" começava como "Donna" tinha começado: Anderton tomava consciência da conspiração de Kaplan contra a polícia. Mas alguma coisa estava errada. Intrigado, ele voltou a fita até o início. Incompreensivelmente, o que escutara não batia. Escutou de novo, atentamente, a fita.

O relatório ―Mike‖ era muito diferente do relatório ―Donna‖.

Uma hora depois, tinha terminado a investigação, guardou as fitas e deixou o bloco dos macacos. Assim que saiu, Witwer perguntou:

— O que houve? Dá para ver que há alguma coisa errada.

— Não — respondeu Anderton lentamente, ainda absorto em pensamentos. — Não exatamente errada. — Um som chegou aos seus ouvidos. Dirigiu-se à janela, ainda um pouco perplexo, e olhou para fora.

A rua estava lotada de gente. Descendo a faixa central, soldados fardados em quatro colunas. Rifles, capacetes... soldados avançando em suas fardas encardidas, do tempo de guerra, carregando as flâmulas amadas da AFBO que adejavam ao vento frio da tarde.

— Um reagrupamento do exército — explicou Witwer, frio e desanimado. — Eu estava enganado. Eles não farão um acordo conosco. Por que fariam? Kaplan tornará público.

Anderton não ficou surpreso.

— Ele vai ler o relatório da minoria?

— Aparentemente sim. Vão pedir ao Senado que nos disperse, e tirar a nossa autoridade. Vão alegar que prendemos homens inocentes, realizamos batidas policiais noturnas, esse tipo de coisa. Governo pelo terror.

— Acha que o Senado vai ceder? Witwer hesitou. — Eu não tenho palpite.

— Eu tenho — disse Anderton. — Vai ceder. Esse negócio ajusta-se ao que aprendi lá embaixo. Estamos confinados e só há uma direção em que podemos seguir. Querendo ou não, teremos de segui-la. — Seus olhos refletiram um lampejo frio.

Com apreensão, Witwer perguntou:

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— E qual é ela?

— Depois que eu disser, você vai se perguntar por que não pensou nisso. Obviamente, terei de cumprir o relatório divulgado. Terei de matar Kaplan. É a única maneira de impedi-los de nos desautorizar.

— Mas — disse Witwer, atônito — o relatório da maioria foi invalidado.

— Eu posso fazer isso — informou Anderton —, mas tem um preço. Você está familiarizado com os estatutos que regem assassinato em primeiro grau?

— Prisão perpétua.

— No mínimo. Provavelmente, você pode puxar alguns fios e substituí-la por exílio. Eu poderia ser enviado a um dos planetas colônias, a velha fronteira.

— Você... prefere isso?

— Diabos, não — replicou Anderton enfático. — Mas vai ser o menor de dois males. E tem de ser feito.

— Não vejo como poderá matar Kaplan.

Anderton mostrou a arma militar que Fleming tinha lhe jogado.

— Vou usar isso.

— Eles não vão deter você?

— Por que o fariam? Eles conhecem o relatório da minoria que diz que mudei de ideia.

— Então o relatório da minoria é incorreto?

— Não — respondeu Anderton — está absolutamente certo. Mas vou matar Kaplan de qualquer maneira.

IX

Ele nunca tinha matado um homem. Nunca tinha nem mesmo visto um homem assassinado. E tinha sido comissário da polícia durante 30 anos. Para essa geração, o assassinato deliberado tinha sido extinto. Simplesmente não acontecia.

Um carro da polícia levou-o para o interior de um bloco do reagrupamento do exército. Ali, oculto no banco traseiro, ele examinou minuciosamente a pistola que Fleming lhe fornecera. Parecia intacta. Na verdade, não havia dúvida do resultado. Tinha certeza absoluta do que aconteceria em meia hora. Tornando a guardar a arma, abriu a porta do carro estacionado e saltou cautelosamente.

Ninguém prestou a menor atenção nele. A massa de pessoas, que aumentava, avançava, empurrando-se com ansiedade, tentando ficar a uma distância que lhe permitisse escutar a marcha. As fardas do exército predominavam e, no perímetro da área evacuada, estava exposta uma fila de tanques e armamentos — armamento intimidador ainda sendo produzido.

O exército tinha erigido uma plataforma para o alto-falante. Atrás da plataforma, pendia a grande bandeira da AFBO, emblema das forças combinadas que combateram na guerra. Por um curioso desgaste do tempo, a Liga de Veteranos da AFBO incluía oficiais inimigos no tempo da guerra. Mas um general era um general e tais distinções haviam desaparecido ao longo dos anos.

Ocupando a primeira fila de assentos estavam as altas patentes do comando da AFBO. Atrás deles, vinham os oficiais de patente inferior. Bandeiras dos regimentos esvoaçavam em uma variedade de cores e símbolos. De fato, a ocasião havia assumido o

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aspecto de um desfile festivo. Na plataforma elevada, estavam os dignitários, de expressão severa, da Liga dos Veteranos, todos tensos com a expectativa. Nos limites extremos, quase desapercebidos, aguardavam algumas unidades policiais, ostensivamente para manter a ordem. Na verdade, eram informantes fazendo observações. Se a ordem era para ser mantida, o exército a manteria.

O vento do fim da tarde transportava o ruído abafado de muita gente amontoada. Quando Anderton atravessou a multidão, foi tragado pela presença sólida da humanidade. Um senso ávido de antecipação mantinha todo mundo rígido. A multidão parecia sentir que algo espetacular estava para acontecer. Com dificuldades, Anderton abriu caminho pelas filas de assentos e alcançou o núcleo dos oficiais do exército na borda da plataforma.

Kaplan estava entre eles. Mas agora, ele era o general Kaplan.

O colete, o relógio de bolso de ouro, a bengala, o terno conservador, tudo havia desaparecido. Para esse evento, Kaplan usava a sua velha farda cheirando a naftalina. Ereto e imponente, estava cercado pelo que deveria ter sido seu estado-maior. Estava usando galões, medalhas, botas, o espadim ornamental, e o quepe. Era surpreendente como um homem calvo se transformava sob a potência de um quepe de oficial.

Ao notar Anderton, o general Kaplan separou-se do grupo e dirigiu-se onde o homem mais jovem estava. A expressão em sua fisionomia delgada, volúvel, demonstrava incredulidade e alegria ao ver o comissário de polícia.

— É uma surpresa — disse a Anderton, estendendo sua mão enluvada de cinza. — Pensei que tivesse sido preso pelo comissário interino.

— Ainda estou livre — replicou Anderton rispidamente, apertando sua mão. — Afinal, Witwer tem essa mesma fita. — Indicou o pacote que Kaplan segurava e cruzou com segurança o olhar do homem.

Apesar de nervoso, o general Kaplan estava de bom humor.

— Esta é uma grande ocasião para o exército — revelou ele. — Ficará contente em saber que tornarei público todo o relato da acusação espúria contra você.

— Ótimo — Anderton respondeu evasivamente.

— Ficará claro que você foi acusado injustamente. — O general Kaplan tentava descobrir o que Anderton sabia. — Fleming teve oportunidade de pô-lo a par da situação?

— Até um certo ponto — replicou Anderton. — Vai ler somente o relatório da minoria? Foi tudo que conseguiu?

— Vou compará-lo com o relatório da maioria. — O general Kaplan fez um sinal ao ajudante-de-ordens e uma pasta de couro foi trazida. — Está tudo aqui. Tudo que precisamos — disse ele. — Não se importa de ser um exemplo, importa-se? O seu caso simboliza as prisões injustas de inúmeros indivíduos. — Com gravidade, o general Kaplan consultou seu relógio de pulso. — Tenho de começar. Gostaria de se juntar a mim na plataforma?

— Por quê?

Friamente, mas com uma espécie de veemência reprimida, o general Kaplan disse:

— Para que vejam a prova ao vivo. Você e eu juntos: o assassino e sua vítima. Lado a lado, expondo toda a fraude sinistra que a polícia tem operado.

— Com prazer — concordou Anderton. — O que estamos esperando?

Desconcertado, o general Kaplan dirigiu-se à plataforma. Mais uma vez, relanceou os olhos, inquieto, a Anderton, visivelmente se perguntando por que ele tinha aparecido e o que ele realmente sabia. A sua incerteza aumentou quando Anderton, de bom grado, subiu os degraus da plataforma e sentou-se bem ao lado do pódio do alto-falante.

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— Compreendeu bem o que vou dizer? — perguntou o general Kaplan. — A exposição terá uma repercussão considerável. Talvez faça o Senado reconsiderar a validade básica do sistema Pré-Crime.

— Compreendo — respondeu Anderton, os braços cruzados.— Vamos.

Um silêncio se impôs sobre a multidão. Mas houve uma agitação, uma inquietação, quando o general Kaplan recebeu a pasta e começou a dispor o material diante de si.

— O homem sentado do meu lado — começou, com a voz clara, falando rápido — é conhecido de todos vocês. Talvez estejam surpresos com a sua presença, pois até recentemente ele foi descrito pela polícia como um assassino perigoso.

Os olhos da multidão fixaram-se em Anderton. Avidamente, examinavam o único assassino potencial que tinham o privilégio de ver de perto.

— Nas últimas horas, entretanto — prosseguiu o general Kaplan —, a polícia ordenou o cancelamento de sua prisão. Foi porque o ex-comissário Anderton se entregou? Não, isso não é exato. Ele está sentado aqui. Ele não se entregou, mas a polícia não está mais interessada nele. John Allison Anderton é inocente de qualquer crime no passado, presente e futuro. As alegações contra ele foram fraudes patentes, distorções diabólicas de um sistema penal contaminado, fundamentado na premissa falsa. Uma máquina de destruição ampla, impessoal, condenando homens e mulheres.

Fascinada, a multidão olhava de Kaplan para Anderton. Todos estavam familiarizados com a situação básica.

— Vários homens foram detidos e aprisionados sob a chamada estrutura profilática Pré-Crime — continuou o general Kaplan, o tom de voz cada vez mais emotivo e veemente. — Acusados não de crimes que cometeram, ―mas de crimes que cometeriam‖. Afirmou-se que esses homens, se ficassem livres, em algum tempo futuro cometeriam crimes.

— Mas não existe nenhum conhecimento válido em relação ao futuro. Assim que a informação precognitiva é obtida, ―ela é cancelada por si mesma‖. A afirmação de que este homem cometeria um crime futuro é paradoxal. O próprio ato de possuir esses dados torna a acusação espúria. Em todo caso, sem exceção, o relatório dos três precognitivos da polícia invalidou seus próprios dados. Se nenhuma prisão tivesse sido feita, da mesma maneira nenhum crime teria sido cometido.

Anderton escutava preguiçosamente, só ouvindo as palavras pela metade. A multidão, no entanto, escutava com grande interesse. O general Kaplan estava agora reunindo um sumário do relatório da minoria. Explicou o que era e como tinha sido realizado.

Do bolso de seu casaco, Anderton tirou a arma e a pôs no colo. Kaplan já tinha separado o relatório da minoria, o material precognitivo obtido de ―Jerry‖. Seus dedos finos e ossudos procuraram o sumário do primeiro, ―Donna‖, e, depois, ―Mike‖.

— Este foi o relatório da maioria — explicou ele. — A afirmação, feita pelos dois primeiros precognitivos, de que Anderton cometeria um assassinato. Agora, aqui está o material automaticamente invalidado. Vou lê-lo para vocês. — Pegou os óculos sem armação, ajustou-os sobre o nariz e começou a ler devagar.

Uma expressão estranha formou-se em sua face. Ele parou, gaguejou e, abruptamente, se calou. Os papéis caíram de suas mãos. Como um animal acuado, ele girou, curvou-se e afastou-se do pódio.

Por um instante, seu rosto contorcido viu Anderton de relance. Agora em pé, Anderton ergueu a arma, avançou rapidamente e disparou. Emaranhado na série de pés que se projetavam das cadeiras que ocupavam a plataforma, Kaplan soltou um único grito estridente de agonia e pavor. Como um pássaro alvejado, ele tropeçou, rodopiou, caindo da plataforma. Anderton dirigiu-se ao parapeito, mas já havia terminado.

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Kaplan, como o relatório da maioria tinha afirmado, estava morto. Seu peito estreito era uma cavidade enfumaçada de escuridão, cinzas esfaceladas que se soltavam enquanto o corpo se contraía.

Nauseado, Anderton virou-se e passou rapidamente por entre as figuras dos oficiais do exército atordoados. A arma, que ainda empunhava, garantiu que não interferissem. Ele saltou da plataforma e penetrou na massa caótica de pessoas embaixo. Perturbadas, horrorizadas, tentavam ver e entender o que tinha acontecido. O incidente, ocorrendo diante de seus olhos, era incompreensível. Seria preciso algum tempo para a aceitação substituir o terror cego.

Na periferia da multidão, Anderton foi capturado pela polícia que aguardava.

— Tem sorte de conseguir sair — sussurrou um deles enquanto o carro avançava com cautela.

— Acho que sim — replicou Anderton, distante. Tentou relaxar e se recompor. Estava tremendo e tonto. Abruptamente, curvou-se à frente e sentiu-se extremamente nauseado.

— Pobre diabo — murmurou um dos policiais com simpatia. Infeliz e nauseado, Anderton não sabia se o policial havia se referido a Kaplan ou a ele.

X

Quatro policiais corpulentos assistiram Lisa e John Anderton na preparação das malas e no empacotamento de seus bens. Em 50 anos, o ex-comissário de polícia tinha acumulado uma grande coleção de bens materiais. Sombrio e pensativo, ele ficou olhando a procissão de caixotes a caminho dos caminhões que aguardavam.

Iriam de caminhão diretamente ao campo e, de lá, para Centauro X por transporte intersistema. Uma longa viagem para um homem velho. Mas não teria de fazer a viagem de volta.

— Ali vai o penúltimo caixote — declarou Lisa, absorta pela tarefa. De suéter e calças compridas, entrou pelos cômodos vazios, verificando os detalhes de última hora. — Acho que não vamos usar os novos aparelhos atrônicos. Ainda usam eletricidade em Centten.

— Espero que não se importe — disse Anderton.

— A gente acaba se acostumando — replicou Lisa, e lhe deu um sorriso fugaz. — Não é?

— Espero que sim. Tem certeza de que não vai se arrepender? Se eu achasse...

— Sem arrependimento — Lisa garantiu. — Agora, podia me ajudar com este caixote.

Quando subiram no caminhão que seguiria à frente, Witwer chegou em um carro da polícia. Soltou e foi rápido até eles, estranhamente abatido.

— Antes de partir — disse a Anderton —, tem de me fazer um resumo da situação com os precognitivos. Vou ser interrogado pelo Senado. Querem descobrir se o relatório do meio, a retratação, foi um erro ou o quê. — Confuso, concluiu: — Ainda não consigo explicá-lo. O relatório da minoria estava errado, não estava?

— Que relatório da minoria? — inquiriu Anderton, divertido. Witwer ficou perplexo.

— Então é isso. Eu devia ter sabido.

Sentado no caminhão, Anderton pegou seu cachimbo e pôs o tabaco. Com o isqueiro de Lisa, acendeu-o. Ela voltara a casa para se certificar de que estava tudo em ordem.

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— Havia três relatórios da minoria — disse a Witwer, deleitando-se com a confusão do rapaz. Um dia, Witwer aprenderia a não investir em situações que não compreendia completamente. A satisfação foi a emoção final de Anderton. Velho e cansado como estava, havia sido o único a perceber a verdadeira natureza do problema. — Os três relatórios foram consecutivos — explicou ele. — O primeiro foi ―Donna‖. Nesse curso de tempo, Kaplan contou-me a conspiração e eu matei-o imediatamente. ―Jerry‖ foi um pouco mais à frente que ―Donna‖ e usou o relatório dela como dado. Ele fatorou o meu conhecimento do relatório. Nesse, o segundo curso do tempo, tudo o que eu queria era manter meu emprego. Eu não queria matar Kaplan. Eu só estava interessado em meu cargo e minha vida.

— E ―Mike‖ foi o terceiro relatório? Veio depois do relatório da minoria? — Witwer corrigiu-se. — Quer dizer, veio por último?

— Sim, ―Mike‖ foi o último dos três. Diante do conhecimento do primeiro relatório, eu tinha decidido não matar Kaplan. Isso produziu o relatório dois. Mas diante desse relatório, mudei de opinião de novo. O relatório dois, a situação dois, era a situação que Kaplan queria criar. Favoreceria a polícia recriar a posição um. E, nesse tempo, eu pensava na polícia. Eu percebia o que Kaplan estava fazendo. O terceiro relatório invalidava o segundo da mesma maneira que o segundo invalidava o primeiro. Isso nos levava aonde tínhamos começado.

Lisa apareceu, sem fôlego, ofegando.

— Vamos. Já fizemos tudo aqui. — Flexível e ágil, subiu os degraus para a cabine do caminhão e se comprimiu entre seu marido e o motorista. Este, obedientemente, deu a partida e os outros o seguiram.

— Cada relatório era diferente — concluiu Anderton. — Cada um era exclusivo. Mas dois deles concordavam em um ponto. Se eu ficasse livre, eu mataria Kaplan. Isso criou a ilusão de um relatório da maioria. Na verdade, foi isso: uma ilusão. ―Donna‖ e ―Mike‖ previram o mesmo evento, mas em dois cursos de tempo totalmente diferentes, ocorrendo em situações completamente diferentes. ―Donna‖ e ―Jerry‖, o chamado relatório da minoria e metade do relatório da maioria, estavam incorretos. Dos três, ―Mike‖ estava correto, já que nenhum relatório apareceu depois do dele para invalidá-lo. Isso resume tudo.

Ansiosamente, Witwer corria do lado do caminhão, sua face lisa e loura vincada de preocupação.

— Vai acontecer de novo? Devemos revisar a configuração?

— Pode acontecer em uma única circunstância — disse Anderton. — O meu caso foi exclusivo, na medida em que eu tive acesso aos dados. ―Poderia‖ acontecer de novo, mas somente com o próximo comissário de polícia. Por isso, cuidado por onde pisa. — Sorriu largo por um breve momento, não dando nenhum conforto à expressão tensa de Witwer. Do seu lado, os lábios vermelhos de Lisa se contorceram e sua mão fechou-se sobre a dele.

— É melhor manter os olhos abertos — disse ao jovem Witwer. — Pode acontecer com você a qualquer momento.