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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) O precário na publicidade: um estudo sobre o processo de ressignificação do passado no comércio informal 1 Sthael Fiabane 2 Universidade Federal de Pernambuco Resumo Com base em registros fotográficos, esta pesquisa aborda mercadorias, suportes que midiatizam marcas e anúncios publicitários que perderam a validade no comércio informal e adota como campo de estudo as adjacências do Mercado São José em Recife Pernambuco. Ao aludir questões sobre como essas publicidades são readaptadas a partir de seus usos e funções iniciais pelo comércio popular, identificamos que é predominante nos casos analisados a dimensão utilitária dos objetos, que resiste e tem ligação com o precário nesse ambiente. Seguindo as referências de David Lowenthal (2006), em especial sobre como respondemos a vestígios tangíveis do passado, nosso objeto de análise, apresentamos reflexões do autor no livro “The Past is a Foreign Country”. Sob a premissa de que a função primária da memória não é preservar o passado, mas adaptar ele para enriquecer e manipular o presente, que compreendemos a utilização das relíquias pelos comerciantes informais. Palavras-chave: Consumo; Memória; Passado; Precário; Comércio Informal. Introdução O passado está em todo lugar. Adotando as reflexões de Lowenthal (2006), entendemos que ao nosso redor sempre veremos surgir elementos e características que têm ligação com antecedentes que remontam, resgatam e alteram nossa memória a partir do momento em que reconhecemos estes de forma consciente e interessada. Esse processo de lembrança e convívio com o passado é inerente à experiência humana e sensível. 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, consumo e memória: cenas culturais e midiáticas, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco sob orientação do Professor Doutor Rogério Covaleski. Participante do Grupo de Pesquisa: publicidade nas novas mídias e narrativas do consumo (PPGCOM-UFPE). E-mail: [email protected]

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)

O precário na publicidade: um estudo sobre o processo de

ressignificação do passado no comércio informal1

Sthael Fiabane2

Universidade Federal de Pernambuco

Resumo

Com base em registros fotográficos, esta pesquisa aborda mercadorias, suportes que midiatizam

marcas e anúncios publicitários que perderam a validade no comércio informal e adota como

campo de estudo as adjacências do Mercado São José em Recife – Pernambuco. Ao aludir

questões sobre como essas publicidades são readaptadas a partir de seus usos e funções iniciais

pelo comércio popular, identificamos que é predominante nos casos analisados a dimensão

utilitária dos objetos, que resiste e tem ligação com o precário nesse ambiente. Seguindo as

referências de David Lowenthal (2006), em especial sobre como respondemos a vestígios

tangíveis do passado, nosso objeto de análise, apresentamos reflexões do autor no livro “The

Past is a Foreign Country”. Sob a premissa de que a função primária da memória não é preservar

o passado, mas adaptar ele para enriquecer e manipular o presente, que compreendemos a

utilização das relíquias pelos comerciantes informais.

Palavras-chave: Consumo; Memória; Passado; Precário; Comércio Informal.

Introdução

O passado está em todo lugar. Adotando as reflexões de Lowenthal (2006),

entendemos que ao nosso redor sempre veremos surgir elementos e características que

têm ligação com antecedentes que remontam, resgatam e alteram nossa memória a

partir do momento em que reconhecemos estes de forma consciente e interessada. Esse

processo de lembrança e convívio com o passado é inerente à experiência humana e

sensível.

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, consumo e memória: cenas culturais e

midiáticas, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco

sob orientação do Professor Doutor Rogério Covaleski. Participante do Grupo de Pesquisa: publicidade

nas novas mídias e narrativas do consumo (PPGCOM-UFPE). E-mail: [email protected]

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O fator cultural também é expressivo nessa abordagem, já que aliado a

circunstâncias e diferentes contextos, este molda o valor do passado. O olhar que

lançamos a objetos ou paisagens antigas, seja de rejeição ou celebração, está

intimamente ligado a valores que carregamos, inclusive referências históricas e

ideológicas.

Na contemporaneidade, onde a obsolescência dos objetos guia muitas das ações

e percepções humanas, é natural que o que é referente ou pertencente a épocas

anteriores seja cada vez mais escasso, perdido, esquecido e, sobretudo, rejeitado.

Entretanto, também é provável que se crie aversão à redução da vida útil dos objetos,

em que o resgate do valor do antigo surge como uma resposta à cultura do obsoleto.

Como nos fala Timothy Cantell em “Why care about old buildings?3” referenciado por

Lowenthal (2006): “In a world of concrete, Concorde and computers, it is vital that we

preserve what remains of individuality. If everything were modern, everywhere would

look pretty much the same”4.

No comércio informal, mercado que, em diversos fatores ainda resiste à cultura

contemporânea midiática, de hedonismo e obsolescência por meio do consumo,

percebemos um movimento oposto e de resistência em relação à limitação da vida útil

dos objetos. Nas bancas de venda do comércio popular identificamos a “afirmação” e

disposição de artefatos do passado que se dão pelo uso contínuo destes.

A falta de recursos financeiros para substituir alguns desses objetos pelo novo

é marcante na informalidade, assim, a precariedade é que faz com que o antigo e,

naturalmente, desgastado pelo tempo, resista no comércio popular. Nossas

investigações neste trabalho também incluem o questionamento sobre de que maneira

essa resistência do passado pode influenciar no consumo de produtos nas bancas,

botequins e fiteiros pesquisados de forma até a reverberar em outros contextos que não

o da informalidade.

3 Por que se importar com antigos edifícios? 4 Em um mundo de concreto, Concorde e computadores, é vital que preservemos o que resta de

individualidade. Se tudo fosse moderno, todo lugar pareceria praticamente o mesmo.

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Nestes espaços, estão presentes produtos e campanhas publicitárias que

perderam a validade: garrafas de aguardente que não são mais vendidas pelo mercado,

cartazes indicando produtos que a banca não comercializa mais, suportes produzidos

por marcas que não mais distribuem o produto indicado, entre outros. A identificação

na mudança da logomarca dos produtos e/ou a não comercialização destes pelas

empresas, constituem-se em relevantes indícios e parâmetros para que possamos atestar

a perda da validade dos objetos em questão.

Ornamentando esses estabelecimentos e cumprindo com suas funções iniciais

de publicização e comercialização dos produtos ou não – questões que vamos investigar

ao longo deste trabalho, acreditamos que os elementos postos nesse comércio conferem

uma identidade aos ambientes analisados. Segundo Lowenthal (2006) “The past is

integral to our sense of identity; the sureness of “I was” is a necessary component of

the sureness of “I am”. Ability to recall and identify with our own past gives existence

meaning, purpose, and value”5.

Nesse sentido, os elementos do passado compõem e constroem a identidade das

bancas e fiteiros, assim como também dão significado aos transeuntes, clientes do

comércio informal e, especialmente, aos comerciantes. Para os vendedores, quando os

objetos não têm uma função exclusivamente utilitária, estes artigos ganham um sentido

de coleção, onde identificamos a questão da identidade muito ligada ao que se quer

preservar do ponto de vista de “quem se é” a partir do que se viveu em meio a essas

matérias.

Já o público em geral – transeuntes e clientes, quando em contato com elementos

publicitários do passado, relembra campanhas e associa estas a momentos específicos

de suas vidas, o que se vivia naquele período, trazendo a ideia de nostalgia: não

lembram exatamente das campanhas ou marcas e produtos, mas lembram de como se

sentiam vendo ou experimentando estes. Assim, essas bancas podem proporcionar uma

5 O passado é integrante do nosso senso de identidade; a certeza do “eu fui” é um componente necessário

da certeza do “eu sou”. Habilidade para lembrar e nos identificar com nosso próprio passado dá à

existência significado, propósito e valor.

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experiência sensível ao público que, por sua vez, também pode atribuir – por meio de

uma percepção única e pessoal, uma identidade aos estabelecimentos a partir do que os

comerciantes confirmam e negam por meio dos objetos expostos.

Nossas relações com o passado

Segundo Lowenthal (2006), respondemos a relíquias como objetos de interesse

ou beleza como evidência de eventos passados e talismãs de continuidade. O que quer

dizer, segundo o autor, que vestígios nas paisagens e na memória refletem inúmeros

detalhes do que nós e nossos antecessores fizeram e sentiram. O que nos dá também a

certeza que o passado realmente aconteceu, “its traces and memories reflect undeniable

scenes and acts”6.

Assim, essas evidências reais do passado também se tornam objeto de interesse

uma vez que o passado não pode ser confirmado: o autor questiona se a história que

nos é contada de fato existiu e de que forma ela foi adaptada, como se manifesta sobre

o olhar dos historiadores - condicionado por questões do presente e do futuro, podendo

gerar distorções.

A partir do Renascimento, conta Lowenthal (2006), que os eruditos, cientes das

adulterações e falsificações de textos, voltaram-se para as relíquias como testemunhas

mais confiáveis do passado: “Embora hoje seja evidente que os artefatos são

modificados tão facilmente quanto as crônicas, a crença em sua veracidade ainda

perdura; uma relíquia tangível parece ipso facto verdadeira”. Existindo uma predileção

dos historiadores pelo extraordinário, grandioso ou precioso, as relíquias seguem uma

dinâmica de oposição a essa preferência, uma vez que, segundo o autor, vestígios

palpáveis são considerados mais característicos da vida cotidiana.

Não intencionamos nos prolongar nessa questão, contudo destacamos que a

partir dessas incertezas com relação ao antecedente, o valor dos vestígios e resíduos

físicos surge como forma de comprovação do passado:

6 Seus traços e memórias refletem incontestáveis cenas e atos.

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Memory and history both derive and gain emphasis from physical remains.

Tangible survivals provide a vivid immediacy that helps to assure us there

really was a past. Physical remains have their limitations of informants, to be

sure: they are themselves mute, requiring interpretation; their continual but

differential erosion and demolition skews the record; and their substantial

survival conjures up a past more static than could have been the case. But

however depleted by time and use, relics remain essential bridges between then

and now. They confirm or deny what we think of it, symbolize or memorialize

communal links over time, and provide archaeological metaphors that illumine

the process of history and memory. (LOWENTHAL, 2006, p. xxiii)7

Assim, por maiores que sejam as limitações em interpretar um resíduo físico do

passado, fica evidente o papel essencial dessas relíquias em estabelecer ligações do

passado com o presente. Como nos mostra Lowenthal (2006): “To gain assurance that

yesterday was as substantial as today we saturate ourselves with bygone reliquary

details, reaffirming memory and history in tangible form”8.

Os vestígios físicos, no caso do nosso estudo, as publicidades e produtos que

perderam a validade, ganham a atenção e o interesse do público por consistirem em

evidências de eventos passados e talismãs de continuidade, como já comentamos.

Assim, falamos sobre olhar o antigo e confirmar sua existência, identificar suas

características, relembrar como eram as campanhas ou produtos há alguns anos atrás e

comparar com o que é produzido hoje.

Entendemos dessa maneira, as limitações dos vestígios físicos com relação à

informação, já que são mudos e exigem interpretação, fazendo parte dos nossos estudos

buscar os significados presentes nas publicidades decorridas, no comércio informal.

Contudo, fazemos a ressalva de que essas podem variar de indivíduo para indivíduo, de

7 Memória e história ambas derivam e ganham destaque a partir de vestígios físicos.

Sobrevivências tangíveis fornecem um imediatismo vívido que ajuda a nos garantir que realmente

houve um passado. Resíduos físicos têm suas limitações de informantes, para ter certeza: eles próprios

são mudos, exigindo interpretação; sua contínua, mas diferencial erosão e demolição distorcem o

registro; e sua sobrevivência substancial evoca um passado mais estático do que poderia ter sido o

caso. Mas, por mais empobrecidas pelo tempo e pelo uso, relíquias permanecem pontes essenciais

entre o antes e o agora. Elas confirmam ou negam o que pensamos sobre

isso, simbolizam ou decoram ligações comuns ao longo do tempo, e

fornecem metáforas arqueológicas que iluminam o processo da história e memória.

8 Para ganhar confiança que ontem foi tão substancial quanto hoje nós saturamos nós mesmos com

detalhes de relicários passados, reafirmando memória e história em forma tangível.

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momento para momento. Dessa forma, intencionamos marcar nossas impressões sobre

essas relíquias e investigar seus usos pelos comerciantes informais, quais são as suas

motivações para tal e como os mercadores dão novo sentido a essas campanhas e

produtos. Essa ressignificação se dá a medida que, anteriormente essas publicidades

tinham outra acepção e relevância, diferentes das que possuem hoje. Assim, o passado

não pode ser alterado, mas renovado.

O processo de ressignificação parte da necessidade de acomodar essas

lembranças às necessidades do presente, como expressa Lowenthal (2006): “The need

to use and reuse memorial knowledge, and to forget as well as to recall, force us to

select, distil, distort, and transform the past”9. Assim, como reforça o autor, a função

primária da memória não é preservar o passado, mas adaptar ele para enriquecer e

manipular o presente e dessa forma compreendemos a utilização das relíquias pelos

comerciantes informais ao adereçar seus estabelecimentos, seja para ainda cumprirem

sua função inicial e/ou utilitária de estimularem as vendas dos produtos em questão ou

para construir a identidade do local sendo, neste caso, parte de um processo

inconsciente, intuitivo e espontâneo.

Figura 1 – Garrafas da aguardente Pitú Figura 2 – Suporte produzido pela marca Ala

Na primeira imagem apresentada, o produto ainda cumpre com sua função útil

e inicial de comercialização, as garrafas continuam lacradas e a bebida intacta, sendo

vendida a um preço maior que o da garrafa hoje comercializada pela Pitú: a garrafa

atual custa sete reais na banca enquanto que a mais antiga e bastante desgastada (lado

9 A necessidade de usar e reusar o conhecimento memorial, e esquecer assim como lembrar, força-nos a

selecionar, refinar, distorcer, e transformar o passado.

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esquerdo) é precificada à cinquenta reais. Já pela aguardente ao lado direito, também

anterior ao produto atual, mas um pouco mais recente, é cobrado o valor de dezessete

reais.

O comerciante de aguardente mantém a venda do produto mais recente da

marca, mas empenha-se em encontrar essas relíquias e comercializá-las a um preço

maior, reconhecendo o valor do produto antigo e seu potencial de lucro. Nesse caso,

lembramos do que nos fala Lowenthal (1998): “Como o passado parece afastar-se de

nós, procuramos evocá-lo também preservando e reabilitando suas relíquias”.

É interessante também notar que as garrafas antigas da aguardente estão

expostas em meio a dois produtos de circulação constante no mercado: o Whisky White

Horse e a cachaça Sagatiba e assim, atentamos para a convivência do passado com o

presente.

Já na segunda imagem (Figura 2), um suporte da marca de sabão em pó Ala é

usado para dispor os produtos da banca que, curiosamente, nada têm a ver com o

segmento de produtos de limpeza. São vendidos no estabelecimento: copos

descartáveis, pratos descartáveis, canudos, guardanapos, panos de prato, entre outros.

O comerciante explica que o suporte é muito antigo, mas ainda não encontrou um

substituto de melhor qualidade e mais adequado para expor os produtos. Neste caso,

reafirmamos a questão do precário, em atenção a nos ficar evidente que, tendo recursos

financeiros, o comerciante adquiriria outro suporte, não sendo o material raro e difícil

de se encontrar.

De toda forma, a marca não exerce no local a função de publicização do sabão

em pó, uma vez que o produto divulgado (Novo Ala com Branco Ativo Total) não é

mais comercializado pela empresa, havendo também a inadequação da publicidade com

o que é ofertado no estabelecimento. O que queremos dizer é que, em outro contexto,

se na banca fossem vendidos produtos do segmento ou de segmentos complementares

ao produto Ala, apenas a lembrança da marca do sabão em pó, ainda que com design,

slogan e produto anteriores, poderia cumprir com uma função publicitária. Tanto as

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marcas da Pitú quanto da Ala já passaram por várias reformulações, dando o caráter de

relíquia ao produto e ao suporte indicados.

Figura 3 – Porta-guardanapos Figuras 4 e 5 – Embalagem Tudo Pede (MercadoLivre)

O porta-guardanapos do Guaraná Antarctica também possui uma função

exclusivamente utilitária para o botequim localizado nos arredores do Mercado São

José indicado na Figura 3. Seria difícil pensar ou figurar a função de publicização a fim

de estimular as vendas do produto ou apenas de recordação da marca por meio de um

objeto em que a marca estampada no objeto perde a nitidez, é referente a uma campanha

de quinze anos atrás e está danificado. Novamente confirmamos o precário nessa

relação com o passado no comércio popular, uma vez que havendo capital, os recursos

seriam direcionados para a troca de materiais que estivessem nas mesmas condições do

porta-guardanapos.

Como um dado curioso, as Figuras 4 e 5 apresentam uma lata da mesma

campanha (Tudo Pede), ofertada no MercadoLivre10 com o aviso de produto já usado

(não havendo mais guaraná no recipiente), em que o usuário publica a data de validade

do produto confirmando que tanto o produto quanto a campanha datam do ano de 2000

e precifica a mercadoria no valor de cinco reais, valor este superior ao que é cobrado

por refrigerantes em lata “atuais”.

10 O MercadoLivre é uma empresa de tecnologia que oferece soluções de comércio eletrônico para que

pessoas e empresas possam comprar, vender, pagar, anunciar e enviar produtos por meio da internet.

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Passado e presente

Seguindo as reflexões de Lowenthal (2006), entendemos que em termos de

natureza temporal, os objetos possuem uma dinâmica diferente dos pensamentos e

palavras, já que a história escrita faz a demarcação entre passado e presente e o tempo

do verbo distingue o agora do então. Contudo, como aponta o autor, os artefatos são

simultaneamente passado e presente: suas conotações históricas coincidem com seus

papéis modernos, misturando os e às vezes confundindo-os.

O passado tangível por meio dos artefatos está mudando, envelhecendo,

renovando e interagindo com o presente em fluxo contínuo e o referido autor, nos fala

que é necessário sentir o passado como parte do presente e também separado deste.

Dando prosseguimento a nossas ponderações sobre as relíquias, destacamos que

segundo Lowenthal (2006), nenhum objeto físico é um guia autônomo para tempos

passados, ele acende o passado somente quando nós já sabemos que o artigo é

pertencente a outra época, sendo necessário um esforço consciente. Quando falamos de

uma identificação do passado inconsciente, falamos de algo irrefletido, que passa

despercebido, que não é observado; esse comportamento é muito comum, dado que o

passado se mescla com o presente no nosso cotidiano e com atividades cada vez mais

automatizadas e menos contemplativas.

Por outro lado, as relíquias expostas ao público são potencialmente visíveis a

qualquer observador, dando impressões do passado que dispensam intermediários,

havendo aí a vantagem da acessibilidade dos remanescentes tangíveis em comparação

com ler a respeito desses, o que requer um envolvimento maior. Dessa forma, observar

a história no local, ainda que de forma consciente, é um processo menos ativo do que

ler sobre tal, exigindo menos “esforço”, como expressa Lowenthal (2006), “os

fragmentos físicos permanecem diretamente ao alcance de nossos sentidos”.

É por meio da definição do autor de que relíquias tangíveis sobrevivem na forma

de características naturais e artefatos humanos, que incluímos as publicidades que

perderam a validade nessa demarcação, por serem produtos do homem. A propensão

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para detectar antecedentes, ligando o que existe agora com tempos anteriores, também

determina como percebemos coisas como relíquias.

De acordo com Lowenthal (2006), as relíquias sucumbem ao desgaste de

significado como também de importância. O autor também expressa que memórias

recentes e remotas frequentemente sobrevivem com impressões do presente, mas para

artefatos o novo deve substituir o velho e percebemos essa tendência no que se refere

às publicidades desgastadas e desatualizadas, que se deve ao fato destas fazerem parte

apenas do universo periférico da cidade e resistirem nos centros de comércio popular.

Três processos distintos nos alertam de que as coisas provêm do passado ou

estão relacionadas com ele: o envelhecimento, a ornamentação e o

anacronismo. O primeiro, a deterioração e o desgaste atribuídos ao

envelhecimento; o segundo, a ornamentação que celebram ou então chamam a

atenção para alguns aspectos do passado; o terceiro, a distância histórica,

transforma as relíquias em emanações de uma era anterior. As coisas

"antiquadas" - tirantes de carruagens, xícaras com proteção para bigode, carros

antigos, frontões clássicos - exibem ou ecoam formas ou estilos antiquados.

Algumas ainda são utilizáveis, outras obsoletas; algumas encontram-se em

sucatas, outras em museus. O que todas têm em comum é que parecem vir de

uma época anterior: são anacrônicas. A consciência de que as coisas são

anacrônicas propicia a percepção histórica. (LOWENTHAL, 1998, p. 154)

Figura 6 – Letreiro Leite Floral Figura 7 – Letreiro Minhoto Os letreiros apresentados nas Figuras 6 e 7 compõem as chamadas áreas

históricas – incluindo prédios tombados pelo patrimônio histórico, nesses espaços

podemos ter a sensação que o tempo parou ou que os objetos “morreram”. Lowenthal

(2006) expressa que, “quando muito sobrevive de uma época, pouco pode ter ocorrido

desde então; caso contrário, a maioria das coisas antigas já teria sido substituída”.

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É por meio desta questão que entendemos a presença desses elementos no

comércio informal e áreas precárias da cidade, onde a modernidade parece não ter

chegado ainda. Assim, essa “aura” de antiguidade, não implica em vitalidade histórica,

mas sim em privação de energia inovadora posterior – como revela o autor.

Para falar das relíquias apresentadas precisamos lembrar que estas são estáticas

e mudas, exigem interpretação para exprimir sua função de relíquia. Assim, o passado

contado pode transmitir um sentido mais claro de passagem pelo tempo, ao contrário

das relíquias tangíveis que exibem apenas momentos “suspensos no tempo”, como

pronuncia Lowenthal (2006):

O quanto apreendemos do passado por meio de suas relíquias remanescentes

varia segundo diversas circunstâncias. Uma delas refere-se à manifesta

antiguidade de coisas ao nosso redor. Determinados locais, cidades, casas,

mobiliários refletem nitidamente o passado - áreas inteiramente ocupadas por

ruínas de cidades, escavações pré-históricas, memoriais aos mortos, salas

repletas de antiguidades, mementos, lembranças, velhas fotos de família.

Outros locais, novos, recentes ou provisórios sugerem menos antiguidade.

Regiões há pouco habitadas, obviamente, não exibem os monumentos e

construções antigas, os sótãos, baús e museus, que conferem às mais antigas

um passado humano palpável. (LOWENTHAL, 1998, p. 156)

Os letreiros luminosos (que não são mais acendidos) nas Figuras 6 e 7, refletem

o passado por terem sido uma das primeiras formas de mídia exterior e por

constituírem-se em “formatos” não mais utilizados pelo mercado. Hoje, figuram mais

como parte dos prédios em que estão postos e consequentemente da paisagem da

cidade, do que como publicidade de fato. A partir disso, identificamos e retomamos o

desgaste de significado como também de importância dessas mídias como estratégia

publicitária. É possível pensar em apenas um desdobramento da publicidade dos

letreiros indicados: a lembrança da marca – podendo ser carregada do sentimento de

nostalgia, assim como a referência dos produtos então postos como sinônimo de

tradição.

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Atualmente, o uso de letreiros em geral, se dá pela sinalização de lojas e

estabelecimentos in loco. Não há mais a prática de dispor letreiros de determinadas

marcas de forma “aleatória” no espaço público para a publicização destas.

Figura 8 – Adesivo Produtos Bic Figura 9 – Sinalizador Cerveja Antarctica Na Figura 8, o adesivo que anuncia os produtos da marca Bic foi esquecido pelo

dono de uma tabacaria, local em que essas mercadorias não chegam mais para a venda.

O mesmo processo de esquecimento e deterioração dos objetos ocorre na imagem

apresentada na Figura 9, o indicador da Cerveja Antarctica no botequim, que não possui

mais a forma e pintura iniciais, assim como não mantém sua disposição por estar solto

da parede e pendendo, prestes a cair.

Ambas as imagens nos lembram a afirmação de Lowenthal (2006) sobre um

passado cheio de sombras: “is colourless, distorted, frozen; its meaning escapes me”11.

Não há relação de utilidade para que esses objetos ainda se mantenham nos locais

mostrados, apenas mostram sombras do que se foi e compõem a identidade do lugar a

partir do que se é quando se conserva determinados elementos, ainda que de forma

irrefletida. A interpretação de cada um com relação a essas imagens pode variar, mas o

que sabemos é que essas matérias foram “abandonadas”, não passaram por qualquer

manutenção ou manipulação e tem forte ligação com o precário.

Assim, o processo que nos torna cientes de um passado que coexiste e difere do

presente nos faz pensar em nossas memórias, nossa história e na idade das coisas ao

nosso redor. Nessa dinâmica tanto individual como coletiva, o passado pode ser

11 É descolorido, distorcido, congelado; seu significado escapa a mim.

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mudado apenas por fazer parte de um ato de reconhecimento, por acaso ou por escolha,

como fala Lowenthal (2006), “simplesmente apreciar ou proteger uma relíquia afeta

sua forma ou nossas impressões”.

Enfim, enfatizamos essa outra forma de transformação do passado, que não

remete às condições físicas dos vestígios, é indireta, se dá por “como os objetos são

vistos, explicados, ilustrados e apreciados”, Lowenthal (2006).

Considerações Finais

Entendemos o estudo de vestígios físicos do passado como uma forma de

resgate, a fim de conferir a estes devida importância em razão de estarmos tratando de

cenas cotidianas no centro da cidade do Recife e, naturalmente, na memória das

pessoas; mas que permanecem no limbo, esquecidos, despercebidos.

De acordo com Lowenthal (2006), “relíquias outrora esquecidas ou

abandonadas podem tornar-se mais preciosas do que aquelas em uso contínuo; a

descontinuidade em sua história atrai a atenção para elas, particularmente se a escassez

ou fragilidade as ameaçarem de iminente extinção”. Ainda que as relíquias a que nos

referimos estejam em uso contínuo, por não serem percebidas, podem ganhar a aura de

preciosidades quando “resgatadas” ou trazidas à tona.

Por serem ubíquas, as relíquias sofrem desgaste maior do que as lembranças

ou histórias. Enquanto a história impressa e memórias gravadas em teipe

podem ser disseminadas de modo irrestrito tornando-se, assim, potencialmente

imortais, as relíquias físicas sofrem desgaste constante. Embora ainda haja

muitos vestígios a serem encontrados, ressuscitados e decifrados, o passado

tangível é, em última instância, uma fonte finita e não renovável, exceto quando

o tempo engendra novas relíquias. (LOWENTHAL, 1998, p. 150)

Dada a condição finita e não renovável das relíquias físicas, nos propusemos a

estudar o que ainda é remanescente em termos de produtos e publicidades no mercado

informal. Em virtude dos motivos apresentados, compreendemos ao longo do trabalho

porque as peças publicitárias expostas por nós ainda estão nesse ambiente e como o

comércio popular dá novo sentido aos elementos indicados.

Neste trabalho, percebemos que essa forma de ligação com o passado se dá

através de algumas manifestações que Le Goff (2003) descreve: “a moda retrô, o gosto

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pela história e pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia,

criadora de memórias e recordações, o prestígio da noção de patrimônio”. No caso desta

pesquisa, acreditamos que muitos desses fatores foram fundamentais e estão marcados

no presente estudo, especialmente a atenção pelo folclórico, tradições e manifestações,

sobretudo comunicativas e estéticas do comércio informal e dos comerciantes que

atuam nesse mercado, a importância do patrimônio e as publicidades antigas colocadas

como parte deste, assim como o entusiasmo pela fotografia como criadora de memórias

e recordações, sendo nossa escolha metodológica para registrar nosso objeto de

pesquisa.

Por fim, ressaltamos que a interpretação das relíquias no comércio informal é

individual e também coletiva e referenciamos Le Goff (2003) quando o mesmo destaca

que o que sobrevive da memória coletiva são escolhas e não o conjunto daquilo que

existiu no passado. Evidenciando assim, nosso “poder” no que se nega e se afirma do

passado.

Diferentes grupos da sociedade constroem suas memórias coletivas a partir das

quais são montadas práticas, ritos, celebrações, comemorações e monumentos. E

demonstrando a relevância deste estudo, afirmamos que sendo a memória coletiva uma

construção social, torna-se importante, como o autor já citado afirma, conhecer os

“processos e os atores que intervêm no trabalho de constituição e formalização das

memórias”.

Referências

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. São Paulo: Projeto História, 1998.

LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. United Kingdom: Cambridge

University Press, 2006.