histÓria, mÚsica e trabalho: o estatuto precÁrio do
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HISTÓRIA, MÚSICA E TRABALHO: O ESTATUTO PRECÁRIO DO
ARTISTA-TRABALHADOR
Breno Ampáro1
APRESENTAÇÃO
A complexa evolução do sistema do capital a partir dos impulsos irrefreáveis
de seus constituintes capitalistas internos impôs uma ordem de reprodução e controle
sociometabólica contraditoriamente incontrolável. Movido pela determinação originária
de sua própria necessidade histórica de subordinação das necessidades essencialmente
humanas - tanto materiais quanto espirituais - ao imperativo do valor de troca, esse
sistema redimensionou as dinâmicas sociais num moto-contínuo de alienações e
reificações, nas quais não só os produtores são alijados dos meios e recursos para a própria
produção, como além de não deterem a propriedade do que produzem, não se reconhecem
efetivamente como forças de trabalho essencialmente subordinadas a uma dinâmica
radicalmente exploratória2.
A tendência expansiva dessa modalidade histórica de metabolismo social é
uma característica que não se limita objetivamente na esfera produtiva, mas transforma
todo o sistema relacional entre produção, distribuição, circulação e consumo de
mercadorias, submetendo basicamente a totalidade das atividades humanas a regência da
lógica de mercado. Como já assinalado, se por um lado o modo de funcionamento desse
sistema submete todas as forças internas que a determinam a uma dinâmica regida por
intercâmbios sociais abstratos controlados por uma equação onde o tempo é a variável
decisiva para determinação do valor, por outro, o complexo contraditório contribui para
o completo ocultamento dos elos constituintes – humanos – na cadeia das relações
produtivas, frente a aparência de mercadoria resultante do trabalho.
O breve prolegômenos acima se apresenta à guisa de introduzir os elementos
estruturais do debate que ora se pretende realizar. O objetivo da presente comunicação é
1 Doutorando pelo Programa de Estudos Pós Graduados em História da PUC – SP. Bolsista CAPES. E-
mail: [email protected] 2 Cf. MÉSZÁROS, István. A ordem da reprodução sociometabólica do capital. In. Para além do capital:
Rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011, pp.94-133.
o exame das situações preliminares e mais gerais de inserção e trabalho dos músicos de
orquestra na dinâmica do capital. Busca, portanto, apontar possíveis linhas de
interpretação a partir da análise crítica de fragmentos literários apresentados em
empreendimentos científicos que versam sobre as condições de trabalho dos músicos de
orquestra na forma da particularidade histórica de controle sociometabólico do capital3.
MÚSICOS DE ORQUESTRA E O DILEMA DA CLASSE QUE NÃO SE
EFETIVOU
A página inicial do site da Associação dos Profissionais da Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo (APOSESP) apresenta o seguinte fragmento no texto
de sua apresentação na seção Quem Somos:
A Associação dos Profissionais da Orquestra Sinfônica do Estado de
São Paulo - APOSESP, foi criada em 1987 e congrega todos os músicos
titulares da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), seus
convidados e aposentados. Com estatuto e personalidade jurídica
próprios, sempre atuou oferecendo todo apoio e subsídio necessários
aos mantenedores da OSESP no intuito de elevar à excelência a música
sinfônica no Brasil. Desde 2005 nossa associação coopera com a
Fundação OSESP, não se tratando, em absoluto, de uma instituição
sindical ou órgão de classe.4(grifo meu)
A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo é uma entidade atuante desde
meados de 1953. Hoje, uma referência latino-americana nos quesitos de excelência
artística e proeminente organismo da esfera global no cenário da música clássica, sua
estrutura contempla condições de trabalho diferenciadas em relação ao panorama
nacional do segmento orquestral. Força de trabalho formalmente empregada, os contratos
de trabalho são (ainda) regidos pelo regime da consolidação das leis trabalhistas, o que
3 Mais precisamente, toma-se como referência basilar para o referido debate as seguintes obras:
ELIAS, Norbet. Mozart: A sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
MENGER, Pierre-Michel. Retrato do Artista enquanto trabalhador: Metamorfose do Capitalismo.
Lisboa: Roma Editora, 2005.
BLANNING, Tim. O triunfo da música: a ascensão dos compositores, músicos e de sua arte. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. 4 Disponível em http://aposesp.mus.br/.
permite que o trabalhador disponha de descanso remunerado, férias e 13º salário.5 Não
cabe aqui um mergulho em sua história institucional, em que pese o risco da ausência e
ocultamento de mediações e determinações específicas para a presente exposição.
No entanto, não se pode deixar de observar um dado significativo da citação
apresentada anteriormente. A existência de uma associação de profissionais da entidade
– conforme sinalizado, a APOSESP – pode suscitar alguns questionamentos referentes a
necessidade do associativismo dentro de uma unidade de trabalho específica (associação
de profissionais da referida orquestra)6. Salta aos olhos, porém, que o grupo lança mão de
uma explicação, esquivando-se de qualquer associação com a ideia de organização
classista ou sindical7, tendo como mote a cooperação com a fundação responsável pela
gestão administrativa do grupo.
O quadro ilustrado evidencia uma situação específica dentro da esfera
organizativa dos músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. No entanto, a
não identificação desses profissionais como trabalhadores organizados, inseridos numa
lógica de controle sociometabólico não é fortuita, nem tampouco um caso singular. Ainda
que carente de mediações, a situação apresentada pode ser interpretada como um sintoma
estrutural, caracterizado a partir dos quais a debilidade organizativa da classe expressa a
míope percepção do grau de alienação e estranhamento dos trabalhadores de orquestra e
sua realidade. Dito de outra forma, pode-se dizer que as determinações históricas que
condicionaram o caráter associativo em questão, foram centrais para que a organização
5 Cf. TEPERMAN, Ricardo I. Concerto e desconcerto: um estudo antropológico sobre a OSESP e a
inauguração da Sala São Paulo. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Universidade de São Paulo, 2016 6 Ainda que não se detenha aqui no potencial analítico da referida citação, questionamentos tais como “quais
os motivos da necessidade de uma organização/associação de músicos de uma única orquestra?”; “em torno
de quais objetivos esses profissionais se agrupam/associam?”; “ por que se associam ?”; são ainda
desdobramentos carentes de investigação sistematizada. 7 A história do associativismo classista e sindicalismo no Brasil não pode ser subjugada. Formas
heterogêneas de organização e associação entre artes e ofícios e posteriormente de unidades de classe se
expressaram na particularidade histórica brasileira desde os tempos de colônia. De irmandades a sindicatos
o espectro do perfil das experiências de congregação de trabalhadores é deveras amplo. Para o tema ver:
BOSCHI, Caio C. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São
Paulo: Editora Ática, 1986.
GOMES, Angela de Castro. Burguesia e trabalho: Política e legislação social no Brasil (1917-1937). Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2014.
ANTUNES, Ricardo. Classe operária, sindicatos e partido no Brasil: da revolução de 30 até a Aliança
Nacional Libertadora. São Paulo: Cortez, 1982.
MATOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
se mantivesse dentro dos limites de uma consciência imediata no papel de colaboradora
com os determinantes do capital8.
A FORMA “ORQUESTRA” DO TRABALHO MUSICAL
Historicamente o debate acerca da arte apresentou-se muitas vezes com
inclinação investigativa ao problema da estética9. A centralidade do trabalho e seu jaez
criador na objetivação do ser social expressam um momento decisivo para a humanidade.
O trabalho artístico expressa, nesse sentido, um momento preponderante, posto que a
particularidade metodológica desse trabalho expressa uma síntese operativa entre o grau
de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção relacionando-se com
o grau da efetivação das forças essenciais do próprio artista, que o possibilita a
apropriação do mundo em que vive.
O desenvolvimento particular de cada manifestação artística responde
especificamente ao grau de efetivação da potência humana expresso por meio das forças
essenciais – sentidos humanos – em relação direta com as determinações históricas de sua
época correspondente. Lukács lembra que
Nem a ciência, (...) nem a arte, possuem uma história autônoma
imanente, que resulte exclusivamente da sua dialética interior. A
evolução de todos esses campos é determinada pelo curso de toda a
história da produção social, em seu conjunto; e só com base neste curso
é que podem ser esclarecidos de maneira verdadeiramente científica os
desenvolvimentos e as transformações que ocorrem em cada campo
singularmente considerado. (LUKÁCS, 2010, p.12)
Ainda que não seja foco do texto discutir pormenorizadamente a ontogênese
do mecanismo orquestral, é fundamental reter que a problemática das relações sociais na
esfera artística, mais precisamente, a forma de inserção do músico trabalhador como elo
frágil característico da particularidade metabólica do capital, expressa uma condição
8 Como referências para o debate da consciência de classes ver:
MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo: Boitempo, 2017.
LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Pulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2018. 9 Destaque para Lukács que aprofundou o debate para uma estética marxista. Considerar também os
trabalhos de Adolfo Sanchez Vázques e István Mészáros.
histórica particular, consequência do incremento dos complexos do capital na esfera das
artes, potencializando e efetivando contradições entre desenvolvimento das forças
produtivas e o modo de produção específico da música.
A orquestra é um mecanismo artístico que expressa historicamente um certo
grau de desenvolvimento das forças produtivas artísticas, coordenando uma variada gama
de especialidades instrumentais a um tipo específico de trabalho coletivo que tem como
atividade finalística a execução de uma obra musical. Tomando o referido quadro como
uma abstração razoável10, o tipo orquestral tomado como referência para esta investigação
trata de uma formação musical histórica que assumiu sua forma acabada, enquanto
estrutura coletiva de músicos instrumentistas11 e regente – que também é músico – em
meados do século XVIII europeu em plena articulação com o estágio de desenvolvimento
das forças produtivas do sistema sociometabólico do capital, ainda que fortemente
subvencionada pelos mecanismos residuais do feudalismo12.
Pierre-Michel Menger, em sua obra Retrato do Artista enquanto trabalhador:
Metamorfoses do Capitalismo, afirma que uma das principais características que o
capitalismo imputou na condição do trabalho artístico é a aguda fragmentação de
especialidades. Assim, um alto grau de especialização passou a ser demandando para
etapas mais cada vez mais fragmentadas do fazer artístico. Em outras palavras, pode se
dizer que uma das consequências dos desdobramentos do capital, foi constituição de elos
de relativa especificidade técnica, a partir de uma intensa e ininterrupta divisão do
trabalho. Nas palavras do autor,
(...) a divisão vertical do trabalho instaura as relações de controle, de
supervisão, de autoridade e de subordinação. A organização do trabalho
10 A razoabilidade de uma abstração se manifesta, pois, quando retém e destaca aspectos reais, comuns às
formas temporais de entificação dos complexos fenomênicos considerados. A razoabilidade está no registro
ou na constatação adequado, ‘através da comparação’, do que pertence a todos ou a muitos sob diversos
modos de existência. Trata-se, pois, de algo geral extraído das formações concretas, posto à luz pela força
da abstração, mas não produzido por um volteio autônomo da mesma, pois seu mérito é operar subsumia à
comparação dos objetos que investiga. CHASIN, José. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução
Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009, p.124. 11 A estrutura coletiva de músicos instrumentistas em orquestras, pode ser composta em diversos formatos
e quantidades de profissionais. Para efeitos práticos, em geral, pensa-se em uma estrutura heterogênea de
instrumentistas agrupadas por naipes – ou famílias de instrumentos – designados em cordas, sopros
(madeiras/metais) e percussão. 12 Ver: BLANNING, Tim. O Triunfo da música: a ascensão dos compositores, dos músicos e de sua arte.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
no interior de uma orquestra, companhia de teatro, equipe de cinema,
estação de televisão ou editora funda-se na diferenciação por linhas
hierarquizadas de especialidades profissionais sob a autoridade de um
mestre responsável pela obra. Quando a organização assim formada é
permanente e estável, como é o caso de uma orquestra, a divisão do
trabalho exprime-se através de uma cotação graduada dos postos de
trabalho, das tarefas, das qualidades e das competências, e através de
uma hierarquia de funções, desde a concepção e o enquadramento até a
execução. (MENGER,2005, p.65) grifo meu.
O estágio da divisão social do trabalho artístico, tomado pela perspectiva da
particularidade do trabalho orquestral, expressa a forma resultante das determinações
históricas específicas do sociometabolismo do capital até aqui. A força de trabalho
condiciona-se a partir de uma dinâmica entre um alto nível de qualificação e relativo grau
de diferenciação técnica, de forma que as funções dentro do organismo demandem
saberes específicos e domínio técnico do instrumento.
O nível de desenvolvimento técnico subordinado às condições nas quais se
estruturam a peculiaridade da forma do respectivo trabalho no capital, exige do
trabalhador a dedicação exclusiva ao aperfeiçoamento técnico de um único instrumento.
Precisamente por essa via é que se expressa o potencial da divisão hierárquica do grupo.
Os trabalhadores que tem seu desenvolvimento técnico (habilidade social e técnica do
instrumento em relação ao grupo e em relação a obra de arte) mais alinhados às
expectativas do escopo estabelecido pela estrutura de comando da organização,
acumulam funções (não apenas como executantes que seria uma espécie de função
primária, mas também da chefia de seu respectivo grupo de instrumentos)13. Ressalta-se,
nesse sentido, que apesar do caráter coletivo em sua forma organizativa, existem
mediações que explicitam a hierarquização de funções dentro do organismo.
Em artigo publicado no ano de 1996, intitulado Vida e trabalho em orquestras
sinfônicas14 uma equipe multidisciplinar de pesquisadores rastreou condições gerais e
13 Regente, spalla, chefes de naipe. 14 ALLMENDIGER, J. ,HACKMAN, J. RICHARD, LEHMAN, E. V. Life and Work in Symphony
Orchestras. The Musical Quartely, Vol 80, No. 2, Orchestra Issue (Summer, 1996), pp. 194-219. Apesar
dos quase trinta anos passados após o estudo realizado, alguns aspectos continuam válidos enquanto
pressupostos básicos da análise feita. A sugestão de mediação para quebra de alguns paradigmas
contemporâneos relativos ao mundo do trabalho orquestral encontram sugestões satisfatórias do ponto de
vista da profissionalização de músicos e orquestras, por exemplo. O estudo privilegiou apenas orquestras
profissionais, as definiu como a) aquelas em que a missão primária seria a performance pública dos
particulares do trabalho de músicos em orquestras, a partir do paradoxo de que os
membros de uma orquestra – em geral, são profissionais altamente qualificados
caracterizados principalmente pelas suas singularidades, mas a forma de realização de
suas atividades profissionais requer a submissão de todo o potencial individual a estrutura
coletiva que por sua vez é submetida a supervisão artística de um regente. O estudo que
contou com um espectro amostral de 78 orquestras dispersas ao longo de três nações
distintas (Alemanha – para a base amostral o estudo ainda separou República Federal da
Alemanha e República Democrática Alemã/ Reino Unido/Estados Unidos).
A despeito da abordagem centrada em características motivacionais dos
desafios profissionais no trabalho orquestral, a pesquisa identificou padrões de
comportamento da força de trabalho em relação a carreira; remuneração; oportunidades;
formação profissional artística; composição do grupo (quanto a diversificação de gênero);
formas de gestão da orquestra ( mediação entre Estado e gestores – formas mais ou menos
democráticas de políticas internas). Sem negligenciar os aspectos das questões relativas
às particularidades nacionais das respectivas classes trabalhadoras, o estudo diagnosticou
que o alto nível de performance depende invariavelmente de sua capacidade financeira.
Pouco conclusivo nesse sentido, questiona-se aqui, os mecanismos que suportam uma
orquestra financeiramente.
As formas de subvenção e financiamento do aparato orquestral devem ser
problematizadas à luz das suas condições sociais e geopolíticas. Posto de forma mais
clara, não basta constatar a presença/ausência de mediação do próprio Estado como
organismo provedor da iniciativa orquestral. É preciso analisar atentamente os elementos
que possam expressar de forma mais evidente as diferenças e particularidades de um
mecanismo de gestão e recursos materiais definidas por uma entidade privada, de um
organismo que goze a gestão mediada diretamente pelo Estado. Ainda, deve-se buscar
compreender o grau e a forma de inserção do próprio Estado na dinâmica do controle
sociometabólico do capital.
O PROBLEMA DA PRODUÇÃO DO VALOR NA ESFERA MUSICAL
trabalhos em geral considerados para orquestras sinfônicas; b) aquelas em que os membros são
reconhecidos de forma ‘não trivial’ pelos seus serviços.
Como já comentado anteriormente, a condição histórica do modo de controle
sociometabólico do capital é a subversão da razão social de valores de uso – comuns aos
sistemas sociais autossuficientes – como determinante elo do intercâmbio entre as formas
de produção, distribuição e consumo sociais, para uma lógica abstrata, não mais regida
pela perspectiva da necessidade, do intercâmbio social mediado pelo valor social da troca.
Essa operação abstrata não encontra nenhum tipo de força contingente na
forma histórica particular de expressão do capital submetendo, portanto, todas as formas
de produção social. O problema da arte, mais precisamente do artista, está
indissociavelmente vinculado a esse processo. Norbert Elias em seu livro Mozart:
Sociologia de um Gênio captou nuances das contradições vividas por músicos
compositores.
Elegendo Mozart como protagonista de um impulso societal que viria se
articular com os desdobramentos do capital, Elias antevê uma questão central entre a
garantia dos meios de subsistência e autonomia para comercializar a própria mercadoria.
A decisão de Mozart de largar o emprego em Salzburgo significou, na
verdade, o seguinte: ao invés de ser o empregado permanente de um
patrono, ele desejava ganhar a vida, daí por diante, como “artista
autônomo”, vendendo seu talento como músico e suas obras no
mercado livre. (ELIAS, 1995, p. 32)
A contradição historicamente posta residia no limite de que enquanto fosse
membro da corte, o artista não detinha o direito de propriedade sobre a sua produção. Os
impulsos irrefreáveis do sistema mercantil global, em seu alvorecer, colocaram uma
alternativa viável para os artistas de uma maneira geral – comercializar sua arte de forma
autônoma. Parte desse processo pode ser apreendido em dois sentidos. Se por um lado,
“durante grande parte da história houve uma forte discrepância entre a posição da música
e o prestígio dos músicos” (BLANNING, 2011, p.21), por outro, comercializar a arte
possibilitava condições de trabalho e vida aparentemente mais favoráveis para os
músicos15.
15 Cf. BLANNING, Tim. Prestígio. In: O triunfo da música: a ascensão dos compositores, músicos e de
sua arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 21 -86
O quadro histórico indicado posiciona uma questão central nesse processo de
autonomização do músico em relação às cortes que são as particularidades da
determinação do valor da mercadoria da arte a partir da produção do valor pela força de
trabalho artística. Para tanto, ainda de modo geral, é preciso que se entenda mais
especificamente do que se trata a mercadoria da música propriamente.
Nesse sentido, tomando as reflexões de Fábio Crocco a partir da letra
marxiana, pode-se afirmar que o jaez definidor da mercadoria artística e em particular a
musical é sua condição imaterial.
Essa pode ser dividida em duas espécies: a que resulta em mercadoria
autônoma separada dos produtores e consumidores (...) e a produção
que é inseparável do ato de produzir. (...) Portanto, pode-se dividi-las
entre produção imaterial do trabalho separada do trabalhador, na qual
sua essência é materializável e tangível e, diferentemente, produção
imaterial do trabalho inseparável do trabalhador, na qual sua essência
é etérea e intangível. (CROCCO, 2015, p.2) grifo meu.
Para efeito expositivo, desconsidera-se aqui todo o aparato mercadológico
que rege a produção artística imaterial do trabalho separada do trabalhador (música
gravada e distribuída por meio de discos, cd’s, aplicativos de streaming). A presente
investigação, no intento de desnudar ainda mais profundamente as contradições impostas
ao trabalhador de orquestra, visa o efeito da produção imaterial do trabalho inseparável
do trabalhador, nesse caso o efeito da música ao vivo, da performance imediata, que
depende da ação do trabalhador em tempo real.
A despeito da questão da imaterialidade, o que se torna decisivo do ponto de
vista do valor é a forma produtiva ou improdutiva em que se concebe a mercadoria. Para
Marx, o que se faz determinante da condição produtiva da mercadoria, é a justeza de que
o trabalho convertido em mercadoria seja produtor de mais-valor. Dito de outra forma, o
que torna um trabalho produtivo não é o coeficiente de sua materialidade ou
imaterialidade, mas sim a forma com que se articula na esfera da produção. Nas palavras
do próprio Marx,
Do simples ponto de vista do processo de trabalho em geral,
apresentava-se-nos como produtivo o trabalho que se realiza em um
produto, mais concretamente em mercadoria. Do ponto de vista do
processo capitalista de produção, acrescenta-se a determinação mais
precisa: de que é produtivo o trabalho que valoriza diretamente o
capital, o que produz mais-valia, ou seja, que se realiza (...) em mais-
valia, representada por um subproduto, ou seja, um incremento
excedente de mercadoria para o monopolizador dos meios de trabalho,
para o capitalista. (MARX, 1978, pp. 70 e 71)
Equacionar a particularidade do trabalho artístico na ótica do sentido
produtivo/improdutivo é uma operação que deve ser buscada no caráter relacional da
atividade, sua dinâmica de produção articulada com as esferas de distribuição, troca e
consumo. Como abstração geral, pode-se dizer que, segundo Crocco,
O trabalho artístico somente enquanto produtor de valores de uso que
satisfazem as necessidades humanas estéticas é improdutivo. O trabalho
artístico produtivo é aquele, que por meio de sua lógica, transforma o
trabalho estético e o valor de uso em mais valor, representado pelo valor
de troca presente na mercadoria. (CROCCO, 2015, p. 3)
Aproximando a operacionalidade interpretativa da característica musical,
Marx opera uma síntese esclarecedora, evidenciando que a categoria estética na
particularidade histórica do capital é subordinada ao jogo da produção do valor e que
portanto, no limite, o que define o valor da obra de arte, não é seu valor de uso mas sua
forma abstrata enquanto mercadoria negociada.
Uma cantora que entoa como um pássaro é um trabalhador improdutivo.
Na medida em que vende seu canto, é assalariada ou comerciante. Mas
a mesma cantora, contratada por um empresário que a faz cantar para
ganhar dinheiro, é um trabalhador produtivo, já que produz diretamente
capital. (MARX,1978, p. 79)
Operando uma analogia entre o papel da cantora ilustrado acima e um
trabalhador de orquestra, é possível captar as diferentes faces em que o trabalho musical
se expressa diante da complexa sistemática sociometabólica vigente do capital. Veja-se
que o elo formal que estabelece a mediação e qualifica o trabalho na esfera produtiva do
valor e mais precisamente a dinâmica entre o artista e o empresário, forja-se a partir de
uma relação contratual. Nesse sentido, mais do que expressão de uma relação jurídica, o
contrato, em certa medida, é o elemento que define o tipo de inserção da força de trabalho
na dinâmica comercial, se improdutiva posto que efetiva sua força de trabalho fora das
dimensões regidas pelo capital, se como prestadora de serviço – comercializando a
efetivação de suas habilidades musicais para uma situação específica, ou como força de
trabalho que produz valor, produzindo, por meio de uma relação formal, para o capital.
A MORFOLOGIA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES TRABALHISTAS MUSICAIS
– A FORMA LEGAL DA PRECARIZAÇÃO
As relações de trabalho entre trabalhadores da música e seus empregadores
mediadas por contratos merecem uma investigação que seja capaz de captar de forma
mais detalhada as determinações mais gerais do capital e sua articulação específica com
os desdobramentos formais das relações trabalhistas. Tal consideração deriva
principalmente do quesito histórico da morfologia jurídica de concepção da força de
trabalho musical – nas sociedades de corte, o músico era um servo, posteriormente, com
as transformações impostas pelo modo de produção do capital na sociedade burguesa por
vezes se confundiu como o artífice autônomo e o burguês que comercializava a sua arte,
até na contemporaneidade que luta pela formalização da condição de trabalho num
cenário regido pela precarização das suas formas de atuação.16
Por precarização, entende-se a ausência de vínculos jurídicos que evidenciem
a flexível forma de venda e consumo da mercadoria força de trabalho na relação entre o
comprador e o vendedor, estratégia que confere ao contratante o benefício do não
recolhimento da carga tributária referente ao consumo da mercadoria que tem como uma
de suas consequências o cerceamento aos direitos sociais garantidos em lei por parte do
vendedor da força de trabalho, o próprio trabalhador. Em termos mais específicos da
particularidade do trabalho musical, Luciana Requião propôs que,
A precarização das condições de trabalho do músico passa não só pelas
relações flexíveis de contrato e pela informalidade, como também pelo
trabalho não pago que é o trabalho realizado preliminarmente para que
determinado show, gravação ou evento possa se realizar. Nesse trabalho
podem ser contabilizadas as horas de estudo para a aprendizagem de
uma peça musical e as horas e os recursos gastos em ensaios, por
16 Cf. BLANNING, Tim. O triunfo da música: a ascensão dos compositores, músicos e de sua arte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
exemplo. No caso das apresentações ao vivo ainda é preciso considerar
a chamada “passagem de som”, momento em que o músico fica a
disposição do técnico que irá operar o equipamento de som, e, no caso
das gravações, as horas em que o músico fica disponível até que toda a
parte técnica do estúdio esteja pronta para a gravação. Todo esse
processo de trabalho vem sendo desconsiderado, o que significa horas
de trabalho não remuneradas (REQUIÃO, 2015, p.3 apud REQUIÃO,
2010, p.178).
Em que pesem as diferenças particulares entre os tipos de trabalho em
performance musical – músicos de orquestra; músicos de bandas; músicos solos – é
possível notar algumas características que fomentam a ordem precária da condição de
trabalho do músico em geral. Começando pela quantidade de trabalho não remunerado na
jornada profissional – sejam pelas horas de estudo fora do horário de ensaio, que o
trabalhador deve dedicar ao repertório que será apresentado, seja também pela
exclusividade da disponibilidade da própria força de trabalho quando das atividades
requerem horas de viagens e deslocamentos; chegada ao local de trabalho muitas horas
antes do serviço – passando pelos custos de manutenção e seguro do próprio instrumento
e mesmo a seguridade de si, pois seu corpo está indistintamente ligado a necessidade de
sua performance.
A ausência de contratos formais que assegurem minimamente as condições
básicas de manutenção da força de trabalho artística confunde-se com a nova morfologia
que o trabalho vem sofrendo diante da reestruturação produtiva no capital17.
Evidentemente que as formas de expressão do “ardil contratual” respondem
historicamente a particularidade do estágio de desenvolvimento do modo de produção e
reprodução do capital. Nesse sentido, pode-se afirmar que no caso brasileiro, por
exemplo, somente a partir de uma mediação direta do Estado é que a força de trabalho
orquestral alcança uma condição formal de trabalho.
17 Cf. ANTUNES, Ricardo L.C. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo, SP : Boitempo, 2009.
NORMANHA, Ricardo. A centralidade do trabalho em debate: notas para um balanço histórico e
apontamentos para o presente e futuro da luta de classes. In: Projeto História, São Paulo, v. 68 , pp. 12-43,
Mai.-Ago., 2020
Ao analisar a trajetória do aspecto formal das condições de trabalho dos
músicos de orquestra, Segnini apontou a exemplaridade de São Paulo e da criação da
Orquestra Sinfônica Municipal pela Lei nº 3829, de 28 de dezembro de 194918, que
(...) criava condições para um trabalho de qualidade, condizente com a
função atribuída ao [Teatro] Municipal (...). Desde então, (...) a
orquestra esteve sempre vinculada à Prefeitura de São Paulo, é parte
integrante da Secretaria da Cultura do Município de São Paulo.
Portanto, seus funcionários, inclusive os artistas músicos, foram
considerados estatutários naquele período -, com direitos vinculados ao
trabalho na função pública, tais como salário em um emprego estável,
regulamentado, aposentadoria integral. (SEGNINI, 2006, p. 328)
A estatização dos contratos sugeriria o fim da instabilidade e uma diminuição
dos riscos atrelados às condições flexíveis por meio da inserção do artista na dinâmica do
capital como trabalhador formal. Ao que indica Juliana Coli em Vissi D’arte: por amor a
uma profissão, a tendência de participação efetiva do Estado na contratação de artistas
trabalhadores mediada por contratos expressa uma contradição na lógica do capital,
Já que o modelo capitalista de mercado introduz novas bases racionais
para o tipo de relação em que vendedor e comprador de mercadorias
colocam-se livremente no mercado para estabelecer uma relação de
trocas. (...) As relações contratuais nesse novo mercado sugerem formas
“sutis” de auto- imposição de valores arcaicos, que são reinventados
como parte dessa lógica duplamente fetichista da mercadoria (...).
(COLI,2006, pp. 100,101).
No entanto, o que se pode notar ao longo dos anos é o relativo esgotamento
da alternativa proposta em plena consonância com as disruptivas práticas de
reestruturação produtiva e flexibilização das condições de trabalho praticadas pelo
capital.
As novas formas de contratação dos músicos nos dias de hoje
transformam-nos em reféns das novas estratégias de utilização e
reposição implícitas em seus sutis mecanismos, dentre as quais se
incluem as várias modalidades de trabalho temporário e sem registro
em carteira. (COLI, 2006, p.101)
18 Cf. SEGNINI, Liliana R. P. Acordes dissonantes: assalariamento e relações de gênero em orquestras.
In: ANTUNES, Ricardo (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.
Veja-se que a constituição de um elo formal por meio do regime contratual
entre músicos e Estado, não elimina a recalcitrante possibilidade da precarização do
trabalhador, já que – alinhados ao processo contemporâneo de racionalização das relações
trabalhistas – os constituintes capitalistas lutam pela máxima flexibilização como novas
formas de subordinação do trabalho ao capital. Isso coloca em evidência a condição
histórica do estatuto precário dos músicos de orquestra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente exposição propôs um debate acerca de como podem ser
interpretadas as contradições da inserção do músico de orquestra como trabalhador sob a
perspectiva do capital. Partindo do questionamento pelo qual se evidencia um
descolamento entre o perfil associativo de classe e a articulação classistas de músicos
profissionais de uma orquestra, buscou-se discutir as particularidades da forma de
trabalho de músicos em orquestra a partir da ótica do valor – na acepção marxiana – e
também das condições concretas da atividade. Por meio de abstrações razoáveis, a
proposta teve em seu cerne a questão da divisão hierárquica e técnica do trabalho em
orquestra.
Por fim, procurou-se advertir sobre como se expressam as particularidades
históricas da forma de controle do sociometabolismo do capital na esfera da música
orquestral, mais precisamente no estatuto histórico das condições de trabalho da classe
dos músicos de orquestra. Nesse sentido, foi possível destacar que o Estado exerceu um
fator preponderante na formalização da contratação desses trabalhadores, o que não
inviabilizou, no entanto, as práticas informais de exploração da referida força de trabalho.
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