o futuro precário do estado nação - 1

17
[email protected] 20/11/2017 1 O futuro precário do estado-nação (1) A descolonização e os independentismos recentes têm a constituição de estados-nação como ponto alto, quiçá definitivo para a bem-aventurança dos povos, replicando a construção dos estados-nação na Europa, onde foram objeto de um lento processo, desde há alguns séculos atrás. Atualmente, a globalização desenvolve processos de subalternização dos estados-nação , com a criação de normas e instituições de âmbito plurinacional ou internacional, dando como adquirido que o plano dos estados-nação é demasiado estreito. Entre o estado-nação do passado e a unificação e uniformização do planeta levadas a cabo pelas multinacionais e pelo capital financeiro , onde se situam os povos e as pessoas? E, de um ponto de vista activo e prospetivo, que atitudes e escolhas deverão os povos assumir? Sumário A - Notas para o nascimento do estado-nação 1 - A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno 2 - O Estado, elemento essencial para a acumulação 3 - Nações e estados-nação 4 O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência 5 - L’Etat, c’est moi! 6 A importância do patriotismo 7 - O início do capitalismo industrial ========== ||||| ==========

Upload: grazia-tanta

Post on 24-Jan-2018

76 views

Category:

News & Politics


2 download

TRANSCRIPT

[email protected] 20/11/2017 1

O futuro precário do estado-nação (1)

A descolonização e os independentismos recentes têm a constituição de

estados-nação como ponto alto, quiçá definitivo para a bem-aventurança

dos povos, replicando a construção dos estados-nação na Europa, onde

foram objeto de um lento processo, desde há alguns séculos atrás.

Atualmente, a globalização desenvolve processos de subalternização

dos estados-nação, com a criação de normas e instituições de âmbito

plurinacional ou internacional, dando como adquirido que o plano dos

estados-nação é demasiado estreito.

Entre o estado-nação do passado e a unificação e uniformização do

planeta levadas a cabo pelas multinacionais e pelo capital financeiro,

onde se situam os povos e as pessoas? E, de um ponto de vista activo e

prospetivo, que atitudes e escolhas deverão os povos assumir?

Sumário

A - Notas para o nascimento do estado-nação

1 - A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno

2 - O Estado, elemento essencial para a acumulação

3 - Nações e estados-nação

4 – O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência

5 - L’Etat, c’est moi!

6 – A importância do patriotismo

7 - O início do capitalismo industrial

========== ||||| ==========

[email protected] 20/11/2017 2

A - Notas para o nascimento do estado-nação

1 - A expansão colonial conduziu à construção do Estado moderno

Os estados-nação surgiram nos séculos XVII/XVIII. Até aí, na Europa, desde o

desmembramento do Império Romano, existiam territórios tutelados por um rei,

aceite como agregador e árbitro por uma nobreza de possuidores de terra, a quem

uma multidão de camponeses pobres estava vinculada, numa relação de

vassalagem. Para essa multidão, a relação com o rei era muito distanciada e

ocasional, enquanto o apego à terra, à comunidade próxima onde se inseriam, era

a única relação de pertença sentida e solidária, embora modelada pelas exigências

dos senhores.

As disputas dinásticas entre casas reais, as junções e partições dos domínios

senhoriais só atingiam a grande massa da população se daí sobrassem acréscimos

nas já pesadas rendas, censos, multas, direitos e contribuições especiais exigidas

pelo senhor das terras; ou, se nessas disputas, as operações militares

provocassem a destruição de cultivos, saques e violações, geradoras de períodos

de fome.

A assunção de pertença a uma entidade alargada e abstrata – o estado-nação -

como hoje acontece, não existia, porque também não existia um Estado como

estrutura administrativa, coerciva e tributária que lhe desse corpo ou visibilidade e,

vincasse essa pertença, em antagonismo com outras. Não existia o estado-nação.

Somente existiam súbditos do rei e dos senhores, indivíduos concretos, exigentes

de obediência pessoal; mas, não emissores de cartão de cidadão, passaporte ou

número de contribuinte, entre outros modos de vínculo obrigatório a um estado-

nação.

A dialética entre os camponeses e os senhores feudais oscilava entre a tolerância

dos primeiros e a cupidez dos segundos que, em caso de desencontro,

regularmente provocava grandes e sangrentas revoltas de camponeses. Por

exemplo, em França, essas revoltas sucederam-se nos séculos X a XV, com relevo

para a Grande Jacquerie, quase em simultâneo com ações similares dos

camponeses ingleses sob o impulso de Wat Tyler e John Ball. Em Aragão, em

finais do seculo XV, a luta dos remensas, pelo direito de não pagar um tributo ao

seu senhor para puderem abandonar a terra a que estavam adstritos, durou mais

de dez anos. Na Alemanha, os camponeses tentaram aproveitar as movimentações

decorrentes da secessão luterana para se libertarem dos senhores mas, Lutero

preferiu ajudar a nobreza alemã no seu propósito de abandono da suserania papal.

[email protected] 20/11/2017 3

Nestas lutas, os revoltosos não se dirigiam contra um longínquo rei, a quem

pediam intervenção mas, contra os senhores, seus opressores diretos.

O predomínio de uma economia agrária de base local não gerava grande volume

de trocas com regiões muito afastadas, daí resultando o abandono, a má qualidade

e a segurança nas estradas e caminhos, frequentadas por bandos de salteadores.

Na Europa, estava-se longe da rede de estradas que ligava as várias regiões do

Império Romano e por onde circulavam mercadorias e soldados. O centro de um

domínio real era o local onde estava o rei e a corte que, com o seu poder de

compra, atraia o comércio de bens de luxo e os suprimentos para a soldadesca;

onde vivia o rei era o que hoje se chamaria a capital administrativa do reino.

O elemento perturbador desta ordem eram as cidades onde se concentrava a

riqueza gerada no comércio distante e na finança, como em Itália ou na Flandres,

cujos magnatas se constituíram igualmente como senhorios, acudindo com

empréstimos a nobres e reis em dificuldades. O comércio, a produção artesanal, a

construção naval, a navegação e as universidades criaram sociedades

cosmopolitas que exigiam mais força de trabalho, atraindo gente do campo, à

procura de uma vida melhor, fugida das crises alimentares, das guerras ou, da

cupidez dos senhores.

Foi sob a tutela real que se chegou à abertura do caminho marítimo da Europa

para o Oriente e à descoberta da América; o facto de esses acontecimentos terem

partido das coroas ibéricas prende-se com aspetos particulares. Primeiro, a

tradição expansionista bem marcada em Castela, à custa dos reinos muçulmanos,

depois de coartadas idênticas possibilidades de expansão, quer a Portugal, quer a

Aragão; e que motivou as primeiras incursões portuguesas em Ceuta e Tânger,

ainda com um caráter típico dos rituais aristocratas, da cavalaria. Em segundo

lugar, porque a luta secular dos reinos cristãos do norte da Península contra os do

sul, muçulmanos, criou um frequente estado de guerra que facilitou a concentração

do poder dos reis, em Portugal e Castela-Leão, em detrimento da gestação de uma

nobreza feudal típica de Além-Pirinéus. E, em terceiro lugar, estando os países

peninsulares em presença de um mar aberto, os custos da sua exploração seriam

sempre elevados e de rendabilidade não assegurada, próprios portanto, para

serem levados a cabo pelas casas reais ou, por um potentado chamado Ordem de

Cristo, dirigido pelo infante D. Henrique.

Foram as Coroas que armaram os navios e, quando nas Américas a exploração

colonial exigiu capitais para além das capacidades reais, passou-se a nomear (em

Espanha) encomenderos com direitos sobre terrenos e seus habitantes no novo

continente, que se encarregavam de armar navios e mobilizar dinheiro para o

efeito, cobrando a Coroa uma parte das riquezas obtidas do saque. E existiam

também contratos (capitulaciones) entre o rei e aventureiros como Cortez e Pizarro,

[email protected] 20/11/2017 4

para a procura de ouro e prata, em que à coroa cabia uma parte. Em Portugal, o rei

instituiu Cartas de Doação a donatários vindos da pequena nobreza, com direitos

hereditários sobre o território brasileiro e a quem competia dar ao rei 20% do ouro

ou pedras preciosas encontradas ou, 10% se se tratasse de produtos da

exploração agrícola. Ainda em Portugal, a estratégica construção naval estava

instalada junto ao paço real para que a Coroa mais facilmente controlasse o seu

desenvolvimento e viesse a cobrar no subsequente comércio de escravos, ouro ou

especiarias. Nesta lógica, ainda com traços medievais, toda a terra era do rei que

cedia os seus direitos no âmbito de contratos e concessões.

Nesse âmbito, a proveniência, a “nacionalidade” era irrelevante; os Reis Católicos

não tiveram qualquer problema em contratar o genovês Colombo ou o português

Magalhães, tal como a Inglaterra contratou o veneziano Cabot e o infante D.

Henrique contratou um traficante de escravos veneziano, Cadamosto. Uma

situação que hoje, com a erosão da relevância dos estados-nação e o domínio da

lógica da globalização, se voltou a tornar banal, com a lenta formação de vastas

elites globalizadas que trabalham para empresas transnacionais, bancos globais,

instâncias internacionais, para além, no caso europeu, das relações criadas através

do Erasmus.

Esse enorme alargamento do espaço de atuação, de saque colonial e de grande

diversificação de bens transacionados, incluindo o volumoso e rentável tráfico de

escravos, constituiu o início da globalização e deu um decisivo impulso ao

capitalismo comercial, que ainda não era dominante na Europa. E, daí que se

tenha gerado grande concorrência entre as coroas europeias da fachada atlântica,

todas procurando territórios na América, muitas vezes na perspetiva mercantilista

de encontrar ouro; todas procurando fixar-se nas ilhas das especiarias, afastando a

concorrência; todas semeando os litorais com fortalezas para dominarem as rotas

marítimas; todas armando os seus próprios corsários ou combatendo os piratas;

enfim, estabelecendo bases em África, subornando sobas com armas e álcool,

para a entrega de escravos em troca. Tudo isso alimentou uma acumulação de

capital que viria a estar ligada à agricultura de plantação, à exploração mineira, à

pilhagem que, no que respeita ao capitalismo, foi uma acumulação primitiva. O

capitalismo afirmava-se através da violência e do roubo; uma marca que nunca

abandonou.

Essa dimensão intercontinental e global exigiu grande concentração de meios –

navios mais robustos para conter grandes lotes de mercadoria e canhões,

guarnições espalhadas por um vasto espaço e armamento para alimentar um

esforço guerreiro continuado pelo controlo do comércio e das terras colonizadas,

para além das disputas dinásticas e de influência entre as várias casas reais

europeias; disputas que se vieram a articular, no século XVI, com espadas e

[email protected] 20/11/2017 5

canhões, como argumentos essenciais para definir quem detinha a pureza

religiosa.

As necessidades da realeza aumentaram substancialmente, no âmbito da defesa,

com a constituição de exércitos permanentes e marinhas de guerra onde era

frequente a incorporação de mercenários, pagos com o ouro ou a prata vindos das

Américas e do Golfo da Guiné, espalhados pela Europa como meios de pagamento

de transações comerciais. O endividamento cresceu bastante junto de banqueiros

italianos, flamengos ou, sob a forma de letras de câmbio; já não bastava a

desvalorização do valor da moeda, reduzindo-lhe o teor em prata, metal entretanto

embaratecido pela larga extração em minas americanas, como as de Potosi.

Assim, a carga fiscal, sob a forma de tributos e direitos no âmbito do comércio

colonial tinha de crescer substancialmente, criando-se sisas, dízimas e impostos

alfandegários; o que implicava funcionalismo, técnicos, ministros, contabilidade e

orçamento, uniformização de pesos e medidas, fiscais e, arrolamento de capelas,

albergarias, fogos e moradores, como no Numeramento em 1527/32, em Portugal,

para aplicação de um antepassado do IMI. Surgia o aparelho de estado, finava-se a

relação típica dos tempos medievais, entre a punção fiscal e os gastos com a corte

e a defesa.

2 - O Estado, elemento essencial para a acumulação

O desastre da Invencível Armada debilitou irreversivelmente o poder das marinhas

espanhola e portuguesa, deu supremacia nos mares à Inglaterra e, indiretamente

também à Holanda. Tendo em conta as distâncias, as tempestades e os riscos de

intrusão no Índico, então tomado como área de jurisdição portuguesa (no que aos

europeus dizia respeito), ingleses e holandeses criaram as respetivas Companhias

das Índias Orientais, no início do século XVII, como forma de unificação de

esforços entre os mercadores, com uma supervisão distanciada dos respetivos

Estados. Em ambos os casos, a ideia inicial era a do comércio e não a da

ocupação de território. Por outro lado, houve uma partição geográfica, com a

Companhia inglesa a concentrar os seus negócios na Índia e na China, envolvendo

o chá, a seda, o algodão, o sal e o ópio; enquanto a Companhia holandesa se

focava na área que hoje constitui a Indonésia, para comercializar a pimenta, o

sândalo, a noz-moscada e o cravinho, numa lógica de plantação, controlando o

comércio longínquo, com a Europa e, particularmente, entre as ilhas do arquipélago

de Sunda.

A Companhia inglesa foi constituída com capitais de nobres e burgueses, no

âmbito de concessão real, em regime de monopólio, com pena de confisco para os

prevaricadores. Inicialmente, o objeto da Companhia era o comércio mas, em

meados do século XVIII, as rivalidades entre os frágeis estados indianos levou-a a

[email protected] 20/11/2017 6

armar tropas (basicamente com soldados indianos) e assumir a administração

direta do território ocupado. Só em 1858 o Estado inglês assumiu, diretamente, até

às independências, o governo da Índia, do Raj.

A administração colonial no Índico, de ingleses e holandeses, procurava ser

discreta e pouco interventiva, dado que a numerosa população dos territórios seria

desastrosa para os europeus em caso de revolta em larga escala, dadas as

limitações das potências coloniais em projetar grandes meios bélicos em tão

extensas e populosas áreas. Se os ingleses ainda deixaram na Índia a sua língua,

os holandeses nunca procuraram sequer transmitir a sua aos povos subjugados,

mantendo uma dominação muito distanciada e o malaio como a língua franca na

região.

Numa fase mais recente, o poder colonial da Companhia das Índias, em interação

com assumidos capitalistas conduziu à ruina da indústria têxtil indiana e ao

empobrecimento dramático do povo, para benefício das fábricas de Manchester,

onde o capitalismo industrial dava os primeiros passos, introduzindo novas formas

de exploração do trabalho alheio.

Ainda na Inglaterra do século XVII o rei Carlos I julgava-se com todos os direitos de

aumentar os impostos e punir os opositores, como era a regra da época, das

monarquias absolutas feudais. A existência de um Parlamento, ainda que

constituído pelo clero e pela nobreza, dificultou-lhe a tarefa, acabando mais tarde

por ser julgado e condenado à morte, dando lugar à instituição de uma república,

onde Cromwell surgiu como homem forte, sobretudo depois de ter domesticado o

próprio Parlamento.

Cromwell criou um exército profissional e, apoiado por burgueses e camponeses

anulou os direitos feudais sobre os últimos e confiscou as terras da Igreja

Anglicana, para garantir um melhor rendimento da terra; e, sublinhamos, promulgou

o Ato de Navegação (1651). Este, instituía o monopólio do comércio marítimo entre

a Inglaterra e as suas colónias para os navios ingleses e só admitia nas suas

exportações ou importações navios seus ou da outra parte, com a exclusão de

terceiros, o que redundou em prejuízo para a Holanda. Esses tráfegos reservados1

iam ao encontro dos interesses da burguesia comercial, ávida em desenvolver o

comércio marítimo e da posse de terras coloniais, sem concorrência exterior. O não

domínio das terras propícias ao extrativismo do ouro e da prata (não existentes nas

1 Em Portugal, o monopólio do tráfego marítimo com as colónias durou até à independência daquelas.

Estava entregue a duas companhias de navegação que, pouco depois foram dadas como falidas – a CTM e a

CNN; e que, em 1975 haviam sido… nacionalizadas, tornadas “nossas”, como herdeiros das perdas

inerentes à descolonização, poupando-se assim os grupos económicos do fascismo à assunção dessas

perdas.

[email protected] 20/11/2017 7

colónias britânicas) veio a promover colónias de povoamento na América do Norte.

Mais tarde, a produção manufatureira, protegida da concorrência viria a fomentar a

acumulação capitalista associada a um território unificado e bem delimitado, com o

crescente domínio dos oceanos.

3 - Nações e estados-nação

Os exemplos atrás referidos mostram como as comunidades humanas europeias

passaram da vassalagem face a senhores feudais, estes, com um suserano,

distanciado do povo, a vassalos diretos desse suserano (rei), com o esbatimento

ou desaparição dos vínculos feudais.

Uma nação corresponde a um povo, à partida ligado a um local comum de

nascimento (natio), cuja convivência duradoura gerou uma cultura própria; e que

pode ou não, conduzir à edificação de um estado-nação, sem que haja qualquer

causa-efeito daí decorrente. Hoje, no século XXI do neoliberalismo e das

alterações climáticas, há muito mais nações sem Estado do que estados-nação; e

no seio de muitos destes, convivem, pacificamente ou de modo conflitual, várias

nações. Por outro lado, os estados-nação vão cedendo a sua suserania a

instituições globais, num processo de interligação, em rede, protagonizado por

empresas multinacionais e pelo sistema financeiro, que funcionalizam e

domesticam ao seu serviço as classes políticas nacionais.

Na génese dos estados-nação europeus, em geral, os territórios basearam-se nas

áreas correspondentes à suserania de uma casa real, com mais ou menos

alterações, resultantes, sobretudo de numerosas guerras. Porém, nesse processo,

muitas dessas soberanias, umas com menos território ou população, outras com

mais, desapareceram, diluídas num ou mais estados-nação, como o reino das

Duas Sicílias; outras, mesmo com uma dimensão média assenhorearam-se de

territórios e populações muito superiores, eliminando pelo caminho, muitos

senhorios, como foi o caso da Prússia.

Dentro da mesma lógica senhorial, nos antigos territórios colonizados, os estados-

nação daí resultantes herdaram as fronteiras estabelecidas pelas potências

ocupantes, a régua e esquadro, sem qualquer preocupação se daí resultaria ou

não uma separação política de uma nação, de uma tribo, de uma cultura resultante

de ancestral convivência; ou mesmo, se a linha divisória viria a separar partes de

uma mesma aldeia. As vantagens tecnológicas e bélicas induziam a uma

superioridade dos “brancos” que era acompanhada por um misto de desprezo e de

punição, pois “as raças inferiores” não correspondiam às virtudes da civilização dos

europeus ou dos seus descendentes, made in USA. Essas atitudes viriam, a partir

[email protected] 20/11/2017 8

do século XIX, a marcar também o espírito dos japoneses - mesmo que de “raça

amarela”- no seu expansionismo na Ásia, nomeadamente face aos chineses…

No âmbito dessa dita superioridade civilizadora, as potências coloniais deixaram,

em África sobretudo, estados-nação, onde nunca eles existiram, porque os povos

durante séculos procederam às suas trocas comerciais, de ideias, de corpos e de

conflitos, valorizando essencialmente as redes, os itinerários, as línguas locais,

como as línguas francas; e pouco ou nada, atentos a algo que se equiparasse a

fronteiras. A construção de estados-nação, cerca de cinquenta anos após a

descolonização, revelou inúmeras guerras civis, impôs limitações aos tradicionais

corredores comerciais e criou outros, para o tráfico de armas, drogas e candidatos

à entrada na Europa; favoreceu genocídios, deslocações massivas de gente em

fuga, implantação de cliques corruptas protegidas pelo capital global ou pela antiga

potência colonial; originou exércitos nacionais ou privados especializados na

predação e no massacre; gerou crianças-soldados, emigração compulsiva,

intervenções militares exteriores (agora monitoradas pelo Pentágono, via Africom),

refugiados e, nos países de imigração, exclusões, exploração, racismo, gente

“inexistente” denominada “sem-papéis”.

A distinção entre os seres humanos, em função da “raça”, qualificada basicamente

pela cor da pele, tem sido um instrumento de hierarquização social e discriminação,

surgida na sequência do domínio colonial; contudo, em países como os EUA, as

pessoas ainda são confrontadas para uma autoqualificação racial, surgindo daí

casos de impossível qualificação, dentro do “catálogo”, tal como de pessoas que

recusam outra qualificação que não seja a de ser humano.

No entanto, essas divisões arbitrárias não se cingem aos territórios outrora

colonizados. Em Portugal, no Alto Trás-os-Montes conhecemos uma aldeia dividida

pela fronteira – Rio de Onor na parte portuguesa e Río de Onor na parte leonesa

(com acento agudo no i como é devido, em castelhano); Rio de Onor reporta a

Bragança, sede de concelho e Río de Onor reporta a Puebla de Sanabria, província

de Zamora, comunidade de Leão e Castela. Em outras situações, a fronteira era

totalmente ignorada pelas pessoas, que se mudavam para o outro lado, com gado

e alfaias, em função das investidas da punção fiscal ou na perspetiva de

recrutamentos para a tropa.

Os estados-nação, nos seus primórdios, passaram a incorporar uma ou mais

nações englobando gente de várias culturas, línguas e tradições, como na

Inglaterra do século XVII ou em Espanha, desde os primórdios da sua constituição.

Por regra, os estados-nação tendem a gerar um totalitarismo unificador,

uniformizador, destruindo ou dificultando a expressão das nações englobadas, em

detrimento de uma que se pretende hegemónica, seja ou não maioritária; essa

pulsão, tanto se pode manifestar através de receios centrífugos (separatismos ou

[email protected] 20/11/2017 9

pendor para a incorporação num outro estado-nação, vizinho) ou centrípetos

(reivindicações expansionistas, de incorporar partes de outros estados-nação

vizinhos). Essa pulsão territorial expansionista correspondia à inclusão de mais

força de trabalho, recursos naturais, subjugação de outras classes possidentes;

mais mercado, como se diz hoje. Em regra, qualquer estado-nação assume-se

como avaro zelador do seu território e dos destinos dos seus “súbditos”; tal como

guloso candidato ao controlo de territórios alheios, em capturar novos súbditos, sob

qualquer pretexto, para enriquecer os seus ricos e, aumentar a ração e o prestígio

da sua classe política. A globalização, contudo, tende a dinamitar essa construção

– estado-nação – e a demonstrar a sua vulnerabilidade ou mesmo inconveniência

ou inutilidade, não só para os povos – para os quais sempre constituiu uma prisão -

como perante o capitalismo globalizado de hoje, como assinalaremos no contexto

deste trabalho.

Assim, na Grã-Bretanha actual convivem escoceses, galeses e irlandeses (do

norte), com as suas línguas2 e culturas; mas o predomínio político, económico e

cultural dimana da Inglaterra e, mormente da emblemática e gigantesca Londres.

Em França, os monarcas e, mais tarde os republicanos, instalados em Paris

acharam por conveniente destruir no sul, a cultura do provençal, da langue d’oc,

espremer para um canto os bretões, esquecer a cultura alemã da Alsácia ou dos

bascos no sudoeste e impedir qualquer devaneio soberanista dos corsos;

remetendo as respetivas línguas para o olvido do “não reconhecimento”. Por seu

turno, em Espanha, a classe política dominante, sediada em Madrid, sempre

sonhou com uma homogeneidade impossível, mesmo tendo utilizado meios brutais

no tempo do fascismo, como a proibição do ensino e da utilização em público das

línguas das nações integradas sob a tutela de uma monarquia sem rei; uma

integração que Rajoy e o seu nacionalismo arreigado, típico dos fascismos – tenta

manter, com sucesso mais que duvidoso a não ser que coloque na cabeça o

tricórnio de Franco e restaure os fuzilamentos, como aventado pelo seu confrade

Casado. No Brasil como nos EUA, as nações índias tentam sobreviver, no primeiro

caso, às investidas do agro-negócio que lhes destrói o habitat e, no segundo, como

zoos ou reservas.

4 – O engrandecimento de um aparelho de estado envolve sempre violência

A competição por territórios, mormente coloniais, transformou a gestão das

despesas do rei e da corte, numa estrutura burocrática e financeira complexa, com

gastos militares e administrativos elevados, a exigir uma máquina de cobrança de

rendimentos, adequada aos meios da época mas, muito zelosa de obter o

adequado aos vultuosos gastos exigidos pelas circunstâncias. Como se disse atrás

2 Para além das pequenas comunidades que falam manx (ilha de Man) ou cornish (Cornualha)

[email protected] 20/11/2017 10

(ponto 1) a carga fiscal e o aparelho para a sua recolha restrita ao território original,

mesmo tendo crescido bastante, não era suficiente para as necessidades das

finanças reais.

Uma fonte essencial de recursos financeiros a que os Estados recorreram de forma

massiva foi através do tráfico de escravos. Segundo Philip D. Curtin na sua obra

The Atlantic Slave Trade foram despejados, entre os séculos XVI e XIX, nas

colónias espanholas da América 1.6 M de escravos africanos, nas colónias

portuguesas 3.6 M, nas inglesas 2 M, nas francesas 1.6 M, nas holandesas 0.5 M,

num total de 9.2 M de pessoas. Isto, esquecer que 20 a 40% dos embarcados em

África morriam durante uma viagem de 30/50 dias durante a qual jaziam

acorrentados no porão. Só de Liverpool, nos doze anos terminados em 1707

zarparam para África 5300 embarcações de negreiros.

Os Estados europeus, durante séculos cobraram aos negreiros elevadas quantias

como licenças. A Fazenda espanhola, para além de cobrar um imposto de 100

pesos por “peça” (um standard de escravo, de 15/30 anos e com saúde) recebia

ainda 2.5 a 5% de imposto de venda e transação (o IVA da época…) no embarque

e 5 a 7.5% no local de destino, nas Américas. O recibo do pagamento do imposto

consistia… numa marca de fogo na pele do escravo. Se se pensar que à chegada

a Cartagena de las Índias uma “peça” era transacionada por 300 pesos, que no

Chile chegava a 600 e nas minas de Potosi o preço chegava aos 900 pesos, pode

imaginar-se a enorme margem de lucro dos negreiros e das receitas estatais que o

negócio permitia.

A questão da escravatura, como a ocupação da terra das comunidades nativas das

Américas, revela que a acumulação capitalista teve um primordial início no seio da

maior violência e no roubo; a que se seguia alguma redistribuição “democrática”

com os assaltos piratas aos galeões da prata vindos da América e a resultante dos

pagamentos em ouro dos deficits comerciais. Como as potências ibéricas tinham

recebido, importada do mundo muçulmano - e antes da Europa do Norte,

tipicamente feudal - a lógica do boullionismo, a extração de metais preciosos e os

altos lucros do comércio das especiarias e dos escravos permitiu-lhes negligenciar

a manufactura e as medidas protecionistas para a importação de bens acabados, o

que a Inglaterra não fez. Nos dois países ibéricos, a erosão do poder militar ou do

controlo dos mares, a continuidade do extrativismo colonial, o desinteresse por

uma reforma da posse da terra, a continuidade de um poder real conservador e,

entretanto, enfeudado à perseguição das elites mais endinheiradas e

empreendedoras, em nome de um proselitismo religioso, selaram a decadência e a

sua chegada mais tardia – e subalterna - ao capitalismo.

5 - L’Etat, c’est moi

[email protected] 20/11/2017 11

A edificação dos estados-nação na Europa e a acumulação de capital gerada em

torno do comércio negreiro e na sequência do trabalho escravo são peças

essenciais para o futuro desenvolvimento do capitalismo. Aliás, mesmo hoje e

apesar das altas tecnologias, a economia do crime representa cerca de 15% do

PIB mundial e o capitalismo não dispensa as “peças” do século XXI, os refugiados,

os imigrantes de África ou do Médio Oriente que tentam chegar à Europa; nem os

latino-americanos que tentam a sua sorte nos EUA; para não referir os tráficos de

prostitutas, crianças de órgãos e outros “nichos de mercado”. O sistema financeiro,

hoje, não se dispensa do protagonismo na integração (lavagem) de tamanho

volume de capitais; e as classes políticas dos estados-nação não cobram imposto

aos cartéis de traficantes mas, sabem que o dinheiro envolvido é branqueado nas

filiais offshore dos seus bancos e que muitos empresários ganharão

competitividade com o recrutamento ou mesmo a escravização das “peças”, o que

é fundamental para fazer crescer o sacrossanto PIB.

Para que se mantivesse um superavit no comércio externo com uma

correspondente entrada de ouro, as importações de matérias-primas teriam de ser

objeto de monopólios e de subsídios, concedidos pelo Estado, ao mesmo tempo

que se combatia a importação de bens manufaturados, através de tarifas

alfandegárias. A concentração de dinheiro no comércio viria, gradualmente, a

permitir um novo modelo de produção material, com a mercantilização da terra e

transferência de mão-de-obra agrícola, desnecessária no campo, para a produção

industrial; esse novo modelo acrescentou aos poderes do Estado todo-poderoso,

absolutista, os instrumentos de regulação do trabalho; e isso, fora e contra as

corporações de artes e ofícios, que definharam até desaparecerem na

generalidade, embora repescadas mais recentemente com as ordens profissionais,

como formas de controlo do acesso ao trabalho dos seus (obrigados) associados.

Esse papel de regulador, financiador, protagonista no que se pode chamar política

industrial e no equilíbrio financeiro com o exterior, juntou-se aos poderes mais

antigos, no âmbito do controlo das fronteiras, de manutenção da ordem, dos

tribunais e da guerra. Em conjunto, consubstanciaram a base do protecionismo e

da afirmação do estado-nação, face aos concorrentes; marcaram o poder

absolutista, bem expresso por Luis XIV, na segunda metade do séc XVII, quando

terá dito “L’Etat c’est moi”.

Em Portugal, pode acompanhar-se o desempenho de um país e uma economia

que construiu a peculiar situação de colonizador e colonizado. O tratado de

Methwen, em 1703, traduz, claramente, uma aplicação da (desigual) divisão

internacional do trabalho, em que a manufactura de têxteis seria uma

especialização inglesa enquanto Portugal se dedicaria à produção de vinhos, o que

agradava aos grandes senhores da terra duriense. Poucos anos antes (1690)

suicidava-se o conde da Ericeira, grande promotor da indústria em Portugal,

[email protected] 20/11/2017 12

incapaz de vencer a influência inglesa e a desestabilização patrocinada pelos

adversários da manufatura do têxtil na Serra da Estrela que chegaram a obter o

apoio da Inquisição uma vez que alguns industriais eram… cristãos-novos.

A incapacidade da sociedade em impor uma via de desenvolvimento capitalista

articula-se com a facilidade com que o fluxo de ouro brasileiro permitia recorrer à

importação e colmatar os deficits resultantes das trocas desiguais com a Inglaterra.

Por outro lado, o ouro brasileiro foi permitindo grandes gastos em construção que

não geraram desenvolvimento industrial em Portugal mas, produziram

mamarrachos como o Convento de Mafra; do mesmo modo, o fluxo de ouro não

evitou que os lisboetas, para terem um aqueduto que lhes trouxesse água em

abundância, tivessem de o pagar com impostos específicos sobre os bens

alimentares, durante muitos anos. Mais tarde, em meados do século XIX, a

construção de linhas de caminho-de-ferro ligando áreas rurais – e não centros

urbanos industrializados (inexistentes) - veio a demonstrar a sua desadequação

quando se observou o abandono dos campos, a fuga para o litoral ou para a

emigração.

Os pobres diabos que dizem “o Estado somos todos nós” não se julgam Luís XIV,

nem se mascaram de tal pelo carnaval. Mas imputam ao Estado um espírito

justiceiro, igualitário e protetor sobre todos os súbditos que, na sua concepção,

estariam representados e protegidos pelo Estado. Mesmo as funções estatais no

âmbito da educação, da saúde ou da ação social, a favor da população, mormente

trabalhadora, nunca deixam de ser integradas nos interesses mais gerais da

acumulação capitalista. O Estado sempre se revelou oligárquico e executor das

medidas que interessam ao capitalismo, através dos elementos da classe política

que o detêm, no sentido de manter a turba mansa, entre o pau e a cenoura. Os

referidos pobres diabos, muitos dos quais se dizem “de esquerda”, são como os

escravos, agradecidos pela malga oferecida pelo dono, a quem não contestam a

legitimidade da sua posse.

6 – A importância do patriotismo

A ligação entre o poder real, a burguesia comercial e, mais tarde, a industrial e a

financeira, exigia um Estado poderoso perante o exterior e que disputasse com os

rivais os mercados, as colónias e mesmo o espaço físico europeu, no âmbito de

sucessivas crises de sucessão real, promotoras de alianças antagónicas. Qualquer

estado-nação nascia e afirmava-se na desconfiança e no antagonismo com os

rivais, criando um aparelho cada vez mais poderoso, invasivo e exigente face à

população abrangida; porém, não bastava uma relativa unidade das várias facções

da burguesia e da aristocracia em torno do omnipotente rei, contra as ameaças

externas ou para monitorar as suas próprias ambições face ao exterior. Era preciso

[email protected] 20/11/2017 13

envolver, engajar, a grande massa da população dos campos e das cidades nesse

desígnio “nacional” para que aceitassem, sem protestos ou revoltas, a carga fiscal,

o recrutamento militar e o domínio das classes possidentes; e, para isso tornou-se

necessário incutir um elemento novo nas mentes dos povos – esse sentimento

arreigado e irracional de pertença, o patriotismo; e, através deste, a subordinação

às camadas dirigentes e ao rei, em particular, como encarnação viva da pátria.

Pretendia-se que as pessoas insufladas de patriotismo respeitassem fronteiras,

aceitassem a perda de autonomia nas suas vidas, a categoria de súbditos do

Estado, de membros de um estado-nação3 no âmbito do qual são fragmentados

em várias categorias – consumidor, contribuinte, espectador, eleitor, devedor,

colaborador, desperdício (ver O Homem, Ser Social e Fragmentado)

Como súbditos, teriam de estar dispostos a antagonizarem-se com gente

desconhecida que tivesse sorvido o mesmo elixir patriótico mas, num frasco

diferente, com o rótulo de outro estado-nação, em conflito com a sua “pátria4”. De

um ponto de vista mais restrito e de captura ideológica, o patriotismo não é

diferente, nem mais inteligente do que o clubismo; embora as classes políticas

exaltem o primeiro e se manifestem mais contidos quanto ao segundo, não

deixando de aceitar como úteis, as descargas de tensões dos mais fervorosos

adeptos. A adopção de uma nacionalidade é como a “raça”, divide a espécie

humana, espartilha as solidariedades e estilhaça a Humanidade.

3 Na verdade, as deserções face às guerras entre os estados-nação demonstram que há muita gente pouco

disposta a dar a vida por uma abstração que capeia interesses muito próprios de uma minoria privilegiada,

que assim se acha com o direito de envolver, no âmbito desses interesses, gente que nada tem a ver com

eles, nem com as suas fortunas. Os desertores e refratários são tratados pelos regimes políticos como

cobardes e antipatriotas, um superlativo da ignomínia para os regimes políticos, o pior dos anátemas; ou,

na hipótese mais benévola são ignorados mesmo que a História lhes tenha vindo a dar razão em não terem

participado ao serviço de opressores, como no caso da guerra colonial que Portugal levou a cabo nas

colónias entre 1961 e 1974. Aliás, em Portugal, o regime instaurado em 1974, mostrou-se discreto quanto

aos refratários, desertores e presos políticos pelo regime fascista, tanto quanto aos agentes da pide, aos

militares que cometeram atrocidades e crimes de guerra ou, aos membros da oligarquia política do

fascismo. Sobre este tema, anotámos estes testemunhos:

http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL912907-5602,00-

BELGICA+HOMENAGEIA+DESERTORES+DA+PRIMEIRA+GUERRA+MUNDIAL.html

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2014/06/28/interna_internacional,542164/confraternizacoes-

motins-e-desercoes-para-expressar-rejeicao-a-guerra.shtml

http://rr.sapo.pt/noticia/66884/o_pais_ainda_nao_absolveu_os_desertores_da_guerra_colonial

https://br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRKCN0ID2FK20141024

http://col2.com/bandas-de-desertores-en-tierra-de-nadie-durante-la-primera-guerra-mundial 4 A própria designação de pátria revela a prevalência do machismo, a secundarização da mulher, do

feminino que, até ver ainda não foi espoliado nas designações de mãe-natureza ou terra-mãe.

[email protected] 20/11/2017 14

Ao inventarem o patriotismo, as burguesias europeias criaram também uma forma

de embaratecer as guerras em que frequentemente se envolviam - o serviço militar

obrigatório - nos tempos modernos inventado pela França, no seguimento da

Revolução Francesa. Com as novas tecnologias da época, a guerra exigia muitos

soldados, a artilharia gerava muitas baixas e tornava impossível o recrutamento de

dezenas ou centenas de milhares de mercenários, porque não havia candidatos

suficientes; e, sendo o risco elevado, os salários teriam de ser forçosamente

elevados, no seio da célebre lei da oferta e da procura.

Os capitalistas, que nunca foram desastrados na contabilidade, viram que seria

mais barato convencer ou obrigar uma população a defender a pátria “comum”,

incutindo-lhe o tal sentido de pertença para que aceitassem o sacrifício e a ideia de

que o rei e os possidentes estavam empenhados na defesa do povo quando na

realidade, quem tinha bens e interesses em jogo eram aqueles e não a grande

massa do povo.

Mais tarde, a escola foi um instrumento essencial para incutir conceitos tão

inquinados, como a raça e o patriotismo, num contexto viciado de exaltação dos

feitos históricos da pátria; uma pátria em que os “nossos” soldados brilharam,

foram heróis e, os adversários, esses, foram derrotados, mesmo em maioria, pela

valentia e espírito de sacrifício do nosso povo, bla bla. E quando a derrota foi

inapelável, seguida de subjugação secular, cai-se no saudosismo, no lamento,

como transposto na metáfora do “chegar numa manhã de nevoeiro” referente a um

desejado regresso do rei Sebastião, derrotado em Marrocos e que, voltando

retiraria legitimidade à investidura de Felipe II de Espanha como rei português. As

derrotas podem também vir a alicerçar xenofobia, como o que ocorreu séculos

depois da derrota sérvia face aos otomanos na batalha do Kosovo Polje. No

seguimento, aqueles que se tornaram, com o tempo, membros da administração

otomana adoptando o islamismo, passaram, na Bósnia, à categoria recente de

muçulmanos, para se diferenciarem dos sérvios-bósnios e dos croatas, numa

mistura imbecil de distinções, onde se usam, critérios étnicos ou religiosos, para a

manutenção de divisões e ódios.

[email protected] 20/11/2017 15

O vincar do patriotismo, do exacerbamento da pertença a um estado-nação,

corresponde à sobrevalorização das fronteiras, à desconfiança, à animosidade face

ao Outro que vive do outro lado. Em Portugal diz-se “de Espanha, nem bom vento,

nem bom casamento” embora as ligações familiares entre os dois lados da dita

fronteira tenham sido comuns durante séculos e as afinidades linguísticas e

culturais, imensas. Politicamente, a separação entre os dois estados-nação

encontra-se estável há séculos, sendo no essencial uma abstração pois nada

distingue um lado do outro (a chamada raia seca); ou, quando constituída por um

rio, este embora ajude à demarcação é, em regra, um elo de ligação entre as duas

margens e um fraco obstáculo, excepto no caso do Douro Internacional que,

escavando margens alcantiladas, inviabiliza fáceis passagens. Se a fronteira era

um verdadeiro passador, já no passado, como o demonstra o comércio formal, o

contrabando e, sobretudo a passagem dos exércitos, hoje, as fronteiras são

marcas do passado, com os seus castelos e fortalezas como atrações turísticas e,

só se fecham em situações excepcionais, como relatamos a seguir, onde toda a

classe política surgiu unificada.

Em Portugal, depois da integração simultânea com a Espanha na CEE, só nos

recordamos de dois momentos de fronteiras com entradas controladas pela polícia.

O primeiro, terá sido quando da vinda do papa Wojtyla e, mais recentemente,

durante a Cimeira da NATO em 2010 em Lisboa, quando grupos pacifistas e

antimilitaristas foram impedidos de entrar em Portugal. Recordamos um autocarro

com finlandeses, impedido de entrar na fronteira norte, um grupo de andaluzes

travado em Vila Verde de Ficalho e outros casos que abrangeram cerca de 150

pessoas, sem que a “esquerda” parlamentar tenha gasto um neurónio face ao

atropelo à liberdade de circulação nas fronteiras. O governo Sócrates, hospedeiro

da NATO, mandou para a prisão 42 ativistas para que não viessem a perturbar a

ritual procissão convocada pela CGTP/PCP e apoiada pela “esquerda”; nesse

contexto, o mesmo governo mandou isolar e cercar pela polícia os manifestantes

[email protected] 20/11/2017 16

antimilitaristas, apontados como potenciais terroristas durante os dias anteriores,

para criar um ambiente propício a uma repressão brutal.

7 - O início do capitalismo industrial

O mercantilismo cedeu o passo ao capitalismo de predominância industrial que

integrou no processo produtivo a terra, a atividade comercial, a tecnologia e o

trabalho, sendo este autonomizado sob a forma de salariato. A tecnologia baseava-

se na mecanização, na utilização de novos materiais, do carvão, do vapor e,

integrada no sistema fabril; isto é, na aceitação pelos trabalhadores, sem

discussão, de um horário de trabalho de treze horas, durante as quais poderia

haver acidentes e, com a absoluta obediência às instruções dimanadas do patrão,

entidade suprema dentro da fábrica.

Na escravatura, o dono providenciava a subsistência e a produtividade tendia a ser

baixa; esta só aumentava com o chicote nas costas, o que exigia uma vigilância

prolongada, com os devidos custos. No novo paradigma, no capitalismo, os

assalariados - homens, mulheres e crianças – já não eram parte do inventário de

um dono e podiam adestrar-se em rotinas técnicas. Recebiam um salário que

podiam formalmente negociar, como podiam mudar de patrão ou de lugar, podendo

também, ser liminarmente despedidos; neste contexto, um desempenho

considerado insuficiente representava o despedimento e a fome… em liberdade.

Os assalariados, cujo salário, numa fase inicial, se situava no limiar da

subsistência, não tinham outros recursos para fazer frente a todas as suas

necessidades; e essa penúria jogava a favor do capitalista que pressionava para a

superação do desempenho dos trabalhadores, conducente ao aumento da

produtividade; a sua produtividade seria, naturalmente mais elevada do que a de

um escravo.

Quanto à rotina imposta pelo sistema fabril, cada assalariado tinha, como únicas

alternativas, a submissão ou, a inanição e a morte. Assim, foi-se gerando uma

vontade coletiva de mudança, de melhoria das condições de trabalho e de vida que

poderia chegar à abolição do capitalismo. Para o efeito seria necessário destruir a

máquina estatal que funciona na defesa dos capitalistas.

Esta realidade economicista coadunou-se com o espírito humanitário que, nas

camadas sociais inglesas mais elevadas, combatia a escravatura e veio a conduzir

à abolição do tráfico em 1807 e da escravatura em Inglaterra e colónias, em 1833.

Essas mesmas camadas anti-esclavagistas, porém, esqueciam o humanitarismo à

porta das suas fábricas onde vigorava a enorme dureza do trabalho e os parcos

salários auferidos, sobretudo por mulheres e crianças.

[email protected] 20/11/2017 17

Há em Portugal quem se ufane da primeira legislação anti-esclavagista a nível

mundial pela mão do Marquês de Pombal, em 1761 e que, já então, evidenciou a

prática muito actual de uma aplicação truncada ou não cumprida. Note-se, que

apenas tinha aplicação legal no território europeu e da Índia dita portuguesa, uma

vez que no Brasil a escravatura continuava pujante, só sendo abolida em 1888,

depois de proibido o tráfico em 1850. Assim, o Marquês reafirmou, mais tarde, essa

disposição legal com a lei do ventre livre, no âmbito da qual, um filho de escrava,

nascia livre.

Na realidade, a escravatura só acabou em Portugal em 1854 (muito depois da

Inglaterra e sob pressão inglesa) quando um decreto libertou os escravos

possuídos pelo Estado, continuando até 1856 a existirem escravos detidos pela

piedosa Igreja católica; a última antiga escrava morreu nos anos trinta do século

XX5. Só em decreto de 25/2/1869 a escravatura foi abolida nas colónias mas, na

prática, durou até 1876, tendo rapidamente sido substituída pelo trabalho forçado,

uma forma de “civilizar” os africanos (Regulamento do Trabalho Indígena, 18996). A

duração factual da escravatura em Portugal prende-se, naturalmente, com o atraso

das estruturas económicas e sociais que permitiam uma “rendabilidade” para a

escravatura uma vez que estes eram sobretudo serviçais, desligados, portanto da

atividade económica. Como em muitas partes do mundo, a escravatura continua a

existir em Portugal.

(continua)

Este e outros textos em:

http://grazia-tanta.blogspot.com/

http://www.slideshare.net/durgarrai/documents

https://pt.scribd.com/uploads

5 http://oficinadahistoriad.blogspot.pt/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html

“Escravos em Portugal - Das Origens ao Século XIX” de Arlindo Manuel Caldeira 6 Margarida Seixas “O trabalho escravo e o trabalho forçado na colonização portuguesa

oitocentista: uma análise histórico-jurídica”, 2015