nação alemã

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CAPITULO 1 - ALEMANHA: IDENTIDADE E NAÇÃO 1.1 - Estado-nação e nacionalismo Para Habermas (2000), o Estado moderno é uma personalidade jurídica, delimitada territorialmente, com soberania interna e externa, o qual monopoliza a segurança de suas fronteiras, onde abriga seus cidadãos, por meio da lei e da ordem. A nação, para o filósofo, tem como origem em uma forma particular de vida, mais ou menos agrupadas em um espaço - mas ainda não integradas numa entidade política. Trata-se, portanto, de uma comunidade baseada por uma cultura, história e língua similares, de origem comum. Como explica o pensador, o Estado moderno se constitui a partir do final do século XVIII, e é produto histórico de seu desenvolvimento e da relação interior e gradual de determinada comunidade. Em síntese, quando o Estado e uma comunidade se integram, nasce o conceito de Volksnation, o Estado-nação. No entanto, para que diferentes arranjos culturas, étnicos e religiosos coexistam e interajam numa mesma comunidade política, a cultura majoritária tem que abrir mão de sua prerrogativa histórica de definir os termos oficiais dessa cultura política generalizada, a ser compartilhada por todos os cidadãos, independente do seu local de origem e do modo como vivem. A cultura majoritária tem que se desvincular de uma cultura política na qual se possa esperar que todos se unam. (HABERMAS, 2000, p. 305, grifo do autor). Bauer (2000) assinala a ausência de uma teoria sólida e universal para definir o conceito de nação, sob a perspectiva da ciência, sem considerações de ordem subjetivas. Para o autor, a definição de nação é complexa e apresenta vários inequívocos. Um deles é a forma de conceituar a nação como produto de uma comunidade de povos descendentes de uma mesma origem, por exemplo, “dos alemães, que descendem dos teutônicos, dos celtas e dos eslavos” (BAUER, 2000, p. 45). Nesse mesmo sentido, explica o autor, a língua não é fator determinante na construção de uma nação, “os ingleses e irlandeses, os dinamarqueses e noruegueses os sérvios e croatas falam, em cada um dos casos, a mesma língua, e nem por isso são único povo” (BAUER, 2000, p. 45). O autor entende que a característica comportamental de um povo é mutável e, para compreender a nação

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Parte de dissertação de Mestrado

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  • CAPITULO 1 - ALEMANHA: IDENTIDADE E NAO

    1.1 - Estado-nao e nacionalismo

    Para Habermas (2000), o Estado moderno uma personalidade jurdica,

    delimitada territorialmente, com soberania interna e externa, o qual monopoliza a

    segurana de suas fronteiras, onde abriga seus cidados, por meio da lei e da

    ordem. A nao, para o filsofo, tem como origem em uma forma particular de vida,

    mais ou menos agrupadas em um espao - mas ainda no integradas numa

    entidade poltica. Trata-se, portanto, de uma comunidade baseada por uma cultura,

    histria e lngua similares, de origem comum. Como explica o pensador, o Estado

    moderno se constitui a partir do final do sculo XVIII, e produto histrico de seu

    desenvolvimento e da relao interior e gradual de determinada comunidade. Em

    sntese, quando o Estado e uma comunidade se integram, nasce o conceito de

    Volksnation, o Estado-nao.

    No entanto, para que diferentes arranjos culturas, tnicos e religiosos coexistam e interajam numa mesma comunidade poltica, a cultura majoritria tem que abrir mo de sua prerrogativa histrica de definir os termos oficiais dessa cultura poltica generalizada, a ser compartilhada por todos os cidados, independente do seu local de origem e do modo como vivem. A cultura majoritria tem que se desvincular de uma cultura poltica na qual se possa esperar que todos se unam. (HABERMAS, 2000, p. 305, grifo do autor).

    Bauer (2000) assinala a ausncia de uma teoria slida e universal para definir o

    conceito de nao, sob a perspectiva da cincia, sem consideraes de ordem

    subjetivas. Para o autor, a definio de nao complexa e apresenta vrios

    inequvocos. Um deles a forma de conceituar a nao como produto de uma

    comunidade de povos descendentes de uma mesma origem, por exemplo, dos

    alemes, que descendem dos teutnicos, dos celtas e dos eslavos (BAUER, 2000,

    p. 45). Nesse mesmo sentido, explica o autor, a lngua no fator determinante na

    construo de uma nao, os ingleses e irlandeses, os dinamarqueses e

    noruegueses os srvios e croatas falam, em cada um dos casos, a mesma lngua, e

    nem por isso so nico povo (BAUER, 2000, p. 45). O autor entende que a

    caracterstica comportamental de um povo mutvel e, para compreender a nao

  • alem do sculo XX, no necessrio percorrer milnios na histria e se aprofundar

    na gnese dos traos culturais para entender a atualidade de seu carter.

    A nao, definida como comunho relativa de carter , para Bauer, a sua

    caracterstica central. Mesmo considerando as assimetrias individuais, prevalece o

    carter nacional, que a difere de outras naes. Esse carter nacional surge quando

    h uma relativa semelhana de comportamento dos compatriotas num perodo de

    tempo definido (BAUER, 2000, p. 48). Isto , os indivduos de uma nao - o povo -

    possuem caractersticas mentais e fsicas que, mais ou menos, os vinculam entre

    sim. Portanto, para Bauer, a comunho de carter surge na esteira do

    comportamento relativo e semelhante entre os indivduos no interior de uma

    comunidade e forma o Volksgeist, esprito do povo.

    Esse carter nacional, segundo Bauer, determinado pela historicidade

    cultural transmitida por geraes passadas. O autor admite que a herana

    hereditria fundada nas caractersticas das propriedades fsicas hiptese

    insustentvel.10 na transmisso aos descendentes atravs da criao, do costume

    e da lei, como efeito da comunicao entre os povos (BAUER, 2000, p. 56), que

    apresenta uma hiptese mais slida na explicao da formao do carter nacional

    moderno de uma nao. Todavia, na perspectiva de Bauer, o capitalismo moderno

    a estrutura determinante da produo de uma cultura nacional, o qual impe

    obstculos ao inibir a constituio de uma real comunho de carter nacional. Para

    esse autor, a presena do capitalismo na produo e transmisso da historicidade

    cultural determina a cultura nacional. Nesse sentido, os burgueses representam, por

    meio de sua classe social, uma comunidade nacional a parte. Bauer assinala que

    somente possvel a inaugurao de um esprito nacional quando os povos dessa

    nao tiverem uma riqueza em comum, sem explorao e diferenas na distribuio

    de riquezas.

    Portanto, na anlise de Bauer, uma verdadeira cultura nacional, representada

    pela mentalidade unida de um povo, num contexto histrico denominado de

    capitalismo moderno, s seria possvel no dia em que a abundncia da riqueza fosse 10 Como tambm ensinou Max Weber, no h indcios sociolgicos que a hereditariedade biolgica influencia no desenvolvimento de uma cultura. Durante o desenvolvimento desse trabalho, no ser aprofundado esse objeto de investigao antropolgica, portanto as caractersticas hereditrias, como possvel componente objetivo na construo de uma nao, no sero tratadas. (WEBER, 2001, p. 11).

  • de propriedade comum a todos os membros da nao. Somado a estes fatores,

    Bauer acredita que a transformao do carter nacional - e na Alemanha no

    ocorreu de modo diferente - o resultado de aes individuais e inconscientes. Isto

    , de uma ao particular restrita a cada indivduo, sem o sentimento de coletividade

    nacional, que pode provocar uma mudana na existncia global da nao (BAUER,

    p. 2000, 54), mas que no se constitui na nao imaginada por Bauer. Uma nao

    sem distino de classes. Para a realizao de uma real nao, sem classes,

    imperativo que as vontades individuais sejam subordinadas a um movimento

    consciente e organizado, num contexto histrico de alto grau de coletivizao. E

    somente por meio desse sistema social que Bauer acredita ser fundamental para

    construir, de forma consciente, o carter social de uma nao autodeterminada e

    no alienada. Uma nao na qual:

    Novas ideias s conseguiro conquistar uma sociedade socialista se conquistarem cada indivduo, que ter sido criado pela educao nacional socialista como uma personalidade altamente desenvolvida, em plena posse da cultura nacional. Isso significa, porm, que uma nova ideia no poder $ !adaptada e incorporada conscincia total de milhes de indivduos. (BAUER, 2000, p. 56).

    Socialismo, conforme assinala Bauer, a integrao do povo inteiro numa

    comunidade cultural nacional (2000, p. 56). A reproduo comunista dos antigos

    cls. a superao de uma era e da histria de um conflito de classes, como Marx e

    Engels nos ensinaram, A histria de todas as sociedades at hoje existentes a

    histria das lutas de classes. %&'()*+),-!.!$/40).

    Todavia, para definir nao, Bauer apresenta outros conceitos. O autor explica

    que cada grupo, ou comunidade, recepciona a histria de forma distinta, dadas s

    experincias de sofrimento comum11. Ora, as foras capitalistas foram as mesmas

    que atuaram na Inglaterra e na Alemanha do sculo XIX, todavia, esses dois pases

    no constituem uma nao. O que determina uma nao de fato, o que ele define

    como Comunho de Destino, que a experincia comum do mesmo destino, em

    11 Veremos isso quando tratarmos da posio geracional e conexo geracional em Karl Mannheim e do atrito entre geraes, na perspectiva de Norbert Elias.

  • constante comunicao12 e em interao contnua um com os outros (2000, p. 57).

    Ainda, para Bauer (2000), mesmo que determinadas condies histricas sejam as

    mesmas para naes separadas, na Alemanha, resultou em um produto histrico

    singular, distinto do que foi percebido pela Inglaterra. No so somente as aes

    impostas pelo capitalismo moderno que do origem a uma Comunho de Carter,

    mas tambm as experincias comuns e os sofrimentos, particulares de cada nao.

    Nesse sentido, Bauman (2006) compartilha desse mesmo entendimento, para

    o socilogo, a Europa ocidental, com o objetivo de legitimar - exceto em alguns

    locais remotos de difcil penetrao difundiu o seu padro de pensamento para o

    resto do planeta, com seu projeto sonhador de fundar e organizar a modernidade e a

    substituio dos modos antigos de produo, em prol do discurso do progresso

    econmico. Por mais que as regies do mundo tenham sido influenciadas por

    impulsos e tradies ocidentais por mais que desde o sculo XVI os valores e

    padres europeus fossem reconhecidos globalmente, as naes no se tornaram e

    no se consideraram europeias, graas autodeterminao dos povos e ao

    multiculturalismo.

    Bauer procura justificar que as aes propulsoras de certos eventos, como as

    foras do capital, por si s, no produzem a mesma nao. O carter nacional, na

    perspectiva de Bauer no eterno e no se forma sobre suas prprias

    caractersticas, ele constante e mutvel em funo de fatos histricos pretritos.13

    Compreendemos agora que a eficcia histrica, aparentemente autnoma, do carter nacional no oculta nada alm do fato de que a histria das geraes passadas, e as condies de sua luta pela vida, as foras produtivas que elas dominaram e as relaes de produo que estabeleceram, tudo isso continua a determinar o comportamento de sua progenitura natural e cultural. Desse modo, contudo, o prprio carter nacional tambm perde seu carter substancial. (BAUER, 2000, p. 63).

    A anlise terica de Bauer sobre o problema do carter nacional importante

    para compreender a importncia da transmisso da identidade cultural de uma

    12 Apesar de Bauer argumentar de maneira muito clara que o que distingue as naes no a lngua, em algumas passagens de seu artigo reconhece a importncia de uma lngua comum para uma nao, pois estreita os laos de comunicao. 13 Ao que me parece, Bauer sofisticou o que Marx assinalou: Os homens fazem a sua prpria histria; contudo, no a fazem de livre e espontnea vontade, pois no so eles quem escolhem as circunstncias sob as quais ela feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. (MARX, 2011, p.25).

  • gerao a outra mais nova, a qual incorporar a conscincia nacional da precedente.

    Todavia, sua hiptese insiste que a ordem capitalista o motor absoluto e

    determinante da produo cultural de uma e que uma nao de fato s

    surgiria com o desaparecimento da luta de classes. Hiptese insuficiente e

    incompatvel para explicar o conceito de nao e de nacionalismo que quero

    desenvolver. Como veremos, na concepo de Elias, o desenvolvimento do

    nacionalismo alemo no se reduz a uma luta que se encerra no interior da

    dimenso econmica, trata-se de um conflito que parte de outras determinaes, por

    exemplo, pelo poder entre estratos da aristocracia poltica e a alta classe mdia

    alems.

    Antes de apresentar a perspectiva de Norbert Elias, segundo Anderson (2000),

    o nacionalismo moderno um fenmeno poltico intrigante, com variadas

    interpretaes incertas e contrastantes. A investigao desse tema, segundo o

    pesquisador, permeia os mais diversos ramos das cincias humanas e foi objeto de

    investigao por grandes pensadores que dedicaram seus esforos no sentido do

    compreend-lo14.

    De fato, a produo vasta e rica em contradies, e no o propsito dessa

    pesquisa resgatar e interpretar os escritos desses notrios homens que registram

    seus nomes em nossa histria. Para Anderson, o nacionalismo decorre da

    construo da cultura nacional e que posteriormente ser incorporada por uma

    conscincia nacional nos planos polticos e ideolgicos, para entend-lo, temos de

    considerar, com cuidado, suas origens histricas, de que maneiras seus significados

    se transformaram ao longo do tempo, e por que dispem, nos dias de hoje, de uma

    legitimidade emocional to profunda (2008, p. 30). Portanto, nacionalismo e nao

    no se confundem.

    A nao refere-se a um territrio com fronteiras definidas, qual seja sua

    extenso, que integra um dado nmero de membros que esto cientes das

    diferenas de classes, e dos limites de sua expanso geogrfica. Nesse sentido,

    Anderson a define: uma comunidade poltica imaginada - e imaginada como sendo

    intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana (2008, p.32). imaginada

    14 O autor se refere a Marx, Nietzsche, Weber, Durkheim, Benjamin, Freud, Lvi-Strauss, Keynes, Gramsci e Foucault.

  • porque expressa um espao moderno cujos participantes tm uma integrao muito

    prxima no sentido de comunho, isto , os membros de determinada comunidade

    no necessariamente se conhecem entre si, mas esto vinculados em certo grau de

    semelhana que prevalece o mtuo respeito e os laos de fraternidade, mesmo com

    distines entre as classes ou estratos sociais. Neste ponto que Anderson diverge

    com Bauer. H, no interior da comunidade imaginada, uma afinidade relativa entre

    os membros que fornece as condies para a constituio e permanncia de uma

    nao, apesar da variedade cultural e de classes. uma comunidade porque,

    independentemente da desigualdade e da explorao efetivas que possam existir

    dentro dela, a nao sempre concebida como uma profunda camaradagem

    horizontal (ANDERSON, 2008, p.34).15

    Quanto anlise do nacionalismo, empresto a ponderao de Elias (1997).

    Para o autor, o adjetivo nacionalista, equivocadamente, aproxima-se do termo patrio-

    tismo e so comumente confundidas, portanto, inapropriadas para fundamentar a

    sua investigao sociolgica. O termo nacionalismo, na perspectiva de Elias, surge

    como uma forte crena nacional a partir dos sculos XIX e XX e peculiar s socie-

    dades industrializadas. Nacionalismo designa um conjunto de sentimentos coletivi-

    zados de valores e crenas que emerge no interior das sociedades modernas as

    quais os indivduos esto integrados.

    Em outros termos, um substantivo para designar o sentimento de um grupo

    comum com estruturas de personalidade mais ou menos semelhantes e que repre-

    sentam a nao - a sociedade-Estado soberana - a qual incorpora e subordina, nos

    limites de seu territrio, os valores e sentimentos de seu povo. Por mais heterog-

    neas e polarizadas as crenas dos membros que convivem no interior do Estado, o

    que prepondera o sentimento nacional mtuo sobre as peculiaridades particulares

    de cada indivduo. Portanto, nesta forma de sociedade moderna, no deixa de existir

    a polarizao das atitudes de cada membro, todavia, ela limitada e no suficiente

    para descaracterizar os termos que quero desenvolver: nao e nacionalismo. Se-

    15 Para Borneman, foi a comunidade poltica imaginada - quando incorporadas pelas Alemanhas Ocidental e Oriental - que antecipou a queda do muro de Berlim. O muro tambm no criou as estruturas polticas antagnicas. Como assinala o autor: A diviso da cidade pelo muro, em 1961, foi, em princpio, resultado e consequncia de uma nacional ideologia e disputas familiares crescentes na estrutura dual dos Estados. No foi o muro que as criou. (BORNEMAN, 1992, p. 19, traduo nossa).

  • gundo a preciso explicativa de Elias, o sentido do termo nacionalismo est relacio-

    nado com as crenas nacionais e:

    mais flexvel; com sua ajuda, podem formar-se derivativos compreensveis com um carter de processo tal como nacionalizao de sentimentos e pensamentos. nesse sentido, livre de implicaes de aprovao ou repro-vao, que o termo est sendo aqui usado. (ELIAS, 1997, p.145).

    Elias tambm adverte que se deve distinguir o nacionalismo de outras crenas

    ou ideologias modernas, como o comunismo, liberalismo e socialismo. O socialismo,

    como ele ensina, produzido a partir do atrito de foras endgenas a uma determi-

    nada sociedade-Estado e posteriormente emerge externamente para as relaes

    com outros Estados soberanos. O nacionalismo, de modo contrrio, adquire seu

    impulso primrio em virtude da mudana no equilbrio de foras entre diferentes so-

    ciedades-Estados e s secundariamente irradia as tenses e os conflitos entre dife-

    rentes estratos sociais dentro delas (ELIAS, 1997, p. 145).

    O nacionalismo, na viso de Elias, um termo utilizado para fins sociolgicos

    para investigar e registrar as propriedades estruturais comuns desse tipo de ligao

    emocional, crena e organizao da personalidade que mais cedo ou mais tarde se

    apresenta, no apenas em uma ou outra, mas em todas as naes-Estados no nvel

    de desenvolvimento dos sculos XIX e XX (1997, p. 145). O socilogo tambm

    argumenta a hiptese que o impulso primordial do nacionalismo pode decorrer do

    interior dos Estados desenvolvidos a partir de ideias j concebidas, como

    instrumento no s de manter a integridade e os valores imutveis da nao, por

    $0 mas tambm como um meio de

    dominao de um grupo sobre outros, comum no interior dos Estados modernos nos

    sculos XX e XIX. Em alguns casos, portanto, o nacionalismo um termo para

    identificar um ideal nacionalista orientado para energizar outras espcies de conflitos

    - no de geraes da forma que ser discutido - mas de conflitos de classe.

    Em suma, o carter de idias nacionalistas dificilmente pode ser entendido se for deduzido to-somente do estudo daquelas idias apresentadas em li-vros por filsofos ou outros escritores proeminentes, em outras palavras, se so estudadas de acordo com as tradies da "histria das idias". Idias e ideais nacionalistas no formam uma seqncia autnoma do tipo que freqentemente atribudo s seqncias de idias filosficas. Sua sucesso no tempo no se deve simplesmente ao fato de que autores de uma gera-

  • o lem, na verdade, livros escritos por autores de geraes prvias e de-senvolvem ainda mais, para aprovao ou para crtica, as idias de autores antecedentes sem referncia ao desenvolvimento e s peculiaridades estru-turais das sociedades onde esses livros so escritos e lidos. Tampouco as idias nacionalistas de eminentes escritores so a causa do "nacionalis-mo". Numa forma latente ou manifesta, o nacionalismo constitui uma das mais poderosas, talvez a mais poderosa das crenas sociais dos sculos XIX e XX. (ELIAS, 1997, p,141-142, grifo do autor).

    Para elucidar, imperativo compreender o modo que a Alemanha, de forma

    particular, edificou e incorporou seu nacionalismo. Para Elias (1997), a formao do

    Estado alemo moderno um processo que se desenvolveu ao longo dos sculos.

    O termo processo frequentemente utilizado pelo autor, em substituio histria,

    para dar um sentido mais distante no tempo e no restringir a investigao de uma

    determinada sociedade, em curto prazo. Como enfatiza Fausto, necessrio

    ampliar o foco cronolgico da longa durao, recuando-se consideravelmente no

    tempo.16

    Como socilogo, estou acostumado a examinar e a pr a descoberto as conexes mais amplas entre eventos sociais. Talvez ajude se elas ficarem visveis para muitas pessoas que, sob a presso de seu prprio trabalho especializado, observam os acontecimentos cotidianos numa escala de tempo mais curta. Entretanto, se no me sentisse obrigado como socilogo, no me aventuraria na arena dos acontecimentos dirios, pois quando se sondam e exploram as conexes entre os mais recentes eventos sociais, ento muitas das explicaes a curto prazo resultam inadequadas. (1997, p. 360).

    Nesse sentido, a formao do habitus 17 alemo composta por uma

    combinao de processos pretritos que culminaram no perodo hitlerlista, quando

    surge o Nacional-socialismo, abordado mais adiante. Em sua anlise da sociedade

    alem, Elias se sustenta por uma investigao scio-histrica para explicar, mesmo

    16 No mesmo ensaio, Boris Fausto assinala que a maioria dos autores concorda na tese de que a investigao histrica de longo prazo indispensvel para compreender o nazismo. A interpretao do nazismo, na viso de Norbert Elias. Mana vol.4. n.1. Rio de Janeiro. Apr. 1998, p.141-152. 17 O termo habitus, popularizado posterirormente por Pierre Bordieu, significa basicamente segunda natureza, ou saber social incorporado, usado em grande parte para superar os problemas da antiga noo de carter nacional, como algo fixo e esttico. Prefcio de Eric Dunning e Stephen Mennell . In: Os Alemes: A luta pelo poder e a evoluo do habitus nos sculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.9. Para melhor compreender a distino entre carter nacional e habitus, empresto a explicao do historiador Boris Fausto, uma clara distino consiste no fato de que o conceito de carter nacional tende a corresponder a um dado estrutural abrangente e pouco permevel a mutaes de uma formao social, quaisquer que sejam os elementos privilegiados na constituio do 'carter nacional', tanto em uma viso racial quanto em uma viso historicista. O conceito de habitus implica maior flexibilidade, o que se compatibiliza com os cortes e as descontinuidades da histria alem. (FAUSTO, 1998, p.141-152).

  • que parcialmente, os possveis fatos e as circunstncias que produziram o

    sentimento nazista na dcada de 30. Retroceder na histria alem, at 1930,

    insuficiente para analisar o desenvolvimento de sua sociedade. Por isso, o

    pesquisador privilegia a histria de sua nao e dedica sua investigao numa

    anlise de longa durao, para que possa justificar sua sustentao terica a partir

    de um processo histrico singular, inclusive no sentido de compreender, mesmo que

    seja uma parte da realidade, as causas do Nacional-socialismo.

    Como Elias observa ainda est por empreender a tarefa de investigar

    sistematicamente que fatores, no desenvolvimento em longo prazo da Alemanha e

    do chamado carter nacional alemo, contriburam para a ascenso dos nazistas

    (ELIAS, 1997, p.283). Em entrevista realizada em 1984, o prprio Elias assinalou

    que seu modo de pensar nos processos de longa durao, no era aceito pela

    maioria conservadora dos ingleses - nos anos 50 - quando j lecionava em Leicester.

    Elias, na ocasio da entrevista, respondeu que nunca fizera um plano para seguir a

    carreira de professor de sociologia, segundo ele:

    Eu no tinha nenhuma chance [...] considero-me um inovador em sociologia, e todas essas inovaes, no fundo, no eram aceitveis na poca. Cada vez que eu exprimia uma idia inusitada ao longo de uma das minhas intervenes numa reunio de colaboradores, isso provocada uma discusso muito agressiva com as geraes mais jovens. (ELIAS, 2001, p.75).

    Em outros termos, faz-se imperativo investigar alm das primeiras dcadas do

    sculo XX, marcadas por duas grandes guerras mundiais. Elias (1997) discorda que

    uma investigao unilateral da sociedade pode explicar a sociedade alem entre

    1871 e 1914. A anlise de Marx de que a estrutura econmica, representada pelos

    proprietrios e no-proprietrios, determina todas as demais instncias da vida,

    insuficiente para explicar a estrutura dos estratos sociais na Alemanha antes da

    Primeira Guerra. Se assim o fosse, o estrato socialmente mais poderoso seria a

    burguesia empresarial, e no era esse o estrato que comandava o Imprio alemo

    naqueles anos. De uma forma geral, os capitalistas eram os menos poderosos no

    sentido de participar das atividades e decises polticas. As condies determinantes

    dos antagonismos de poder vo mais alm e o determinismo de Marx no capaz

    de explica-las. Quem ocupava os altos cargos - na estrutura de poder - das esferas

  • administrativa e militar eram outras categorias sociais, no necessariamente com

    poder econmico.

    Em relao ao aspecto scio histrico, h outro autor que parece convergir

    com Elias da importncia da histria no estudo de uma nao, embora com outras

    consideraes. Para Hobsbawm (2000), no h nao sem passado. A investigao

    que reconstruda a partir dos historiadores pode mostrar uma histria diferente

    daquilo que os nacionalistas gostariam que fosse, isto , preciso de uma

    neutralidade sociolgica na pesquisa histrica. Sentimentos nacionalistas podem

    distorcer a interpretao de um evento e ocultar os aspectos importantes de uma

    comunidade, ou gerao, que no existe mais.

    Em sua argumentao, o historiador entende que o nacionalismo uma esfera

    poltica, pertencente a um territrio com fronteiras delimitadas e soberanas, a qual

    integra em seu solo um nico povo. Nesse sentido, podemos entender que o

    nacionalismo um ideal personalizado do ente estatal, o Estado nacional ou Estado-

    nao. Como observa o historiador, um dos fundamentos que se acreditava inerente

    constituio de uma nao o tnico - que se expressa no s nas suas

    caractersticas fsicas - mas inclui o critrio etnolingustico. Todavia, como observa o

    pesquisador, apenas algumas naes do mundo, incorporam esse critrio.

    Os costumes comportamentais de um grupo, ou nao, existem paralelamente

    ao Estado nacional, sem necessariamente provar sua simetria ou afinidade com a

    construo do ideal poltico que o Estado deseja impor. A nao, algumas vezes

    parece ser uma constante luta no sentido de manter a diversidade cultural. Uma

    nao pode possuir uma identidade coletiva real, quase independente, e pode

    preencher os espaos vazios do nacionalismo (HOBSBAWM, 2000, p.274). Em

    complemento, Hobsbawm, assinala:

    A etnia, seja qual for sua base, um modo prontamente definvel de expressar um sentimento real de identidade grupal que liga os membros do ns, por enfatizar suas diferenas em relao a eles. O que eles de fato tm em comum, alm de no serem eles, no muito claro, especialmente hoje em dia [...] (HOBSBAWM, 2000, p.274, grifo do autor).

    Ainda, para Hobsbawm (2013) os componentes como etnia, lngua, territrio,

    histria comum ou qualquer combinao entre tais critrios objetivos falharam, pois

  • no se mostraram, devido a vrias excees, fatores nicos na construo de uma

    nao. Tais critrios so mutveis e inteis. A investigao de critrios subjetivos

    poderia ser a alternativa para explicar a questo da nao? Na explicao de

    Hobsbawm, no. O autor entende que os critrios subjetivos no so suficientes ou

    determinantes para compreender a nao. A perspectiva subjetiva, em sua anlise,

    no passa de uma tentao de combinar elementos objetivos e como esses

    poderiam coexistir, de forma consciente, no interior de um territrio. Portanto, a

    seleo de critrios objetivos ou subjetivos de uma nao,

    so tentativas evidentes de se escapar da compulso do objetivismo a priori, adaptando, de forma diferente em ambos os casos, a definio de nao a territrios nos quais pessoas com diferentes lnguas ou outros critrios objetivos coexistem, como na Frana e no Imprio Habsburgo. (HOBSBAWM, 2013, p.16, grifo do autor).

    Em sntese, qual a relao entre nacionalismo e nao? Em primeiro lugar,

    no h uma nao, a priori, sem nacionalismo. Em segundo, a nao no uma

    entidade original e imutvel. Que a nao surge no contexto do Estado moderno, isto

    s faz sentido quando relacionada no interior de um territrio moderno. Para

    elucidar, a sntese de Hobsbawm digna de transcrio: em uma palavra, para os

    propsitos da anlise, o nacionalismo vem antes das naes. As naes no formam

    os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto (HOBSBAWM, 2013, p.19).

    Embora Hobsbawm tenha criticado o critrio da subjetividade como

    componente para constituio de uma nao, ele admite que para sua investigao

    deve ser considerada outras mltiplas variveis, como as econmicas,

    administrativas, tcnicas, polticas e outras exigncias. (2013, p. 19). De um lado, a

    influncia do Estado moderno sobre as pessoas comuns que constituem, ou tendem

    a constituir, uma nao. Do outro lado - externo ao plano do governo ou entidades

    prximas a este - a importncia da subjetividade coletiva, as esperanas e as

    aspiraes em comum de seres mortais. Como assinala Hobsbawm: felizmente os

    historiadores sociais aprenderam como investigar a histria das ideias no plano

    subliterrio, de modo que hoje estamos mais seguros de no confundir como os

  • historiadores faziam - os editoriais de jornais escolhidos com a opinio pblica

    (HOBSBAWM, 2013, p.20).18

    Nessa mesma linha, Borneman (1992, p. 50-51) critica a metodologia terica

    de alguns pesquisadores que ignoram a diversidade quando buscam um tipo

    singular de tribo e cultura. O pesquisador define a condio nacional19 como, uma

    subjetividade no contingente em uma opinio ou atitude, mas derivada das

    experincias vividas no interior do Estado (1992, p. 338) e no acata a hiptese de

    que a estrutura poltica de uma nao independente e soberana cultura, como

    defende alguns pesquisadores, na qual o Estado seria o meio legitimador 20 na

    formao de uma cultura nacional.

    Para Borneman, o Estado uma inveno cultural, iniciada h dois sculos, e

    sua autonomia constrangida pela particularidade da cultura que a integra. Como

    assinala o antroplogo, os Estados so limitados em sua soberania, em vrios

    aspectos de sua sociedade, inclusive em relao s identidades tnicas: Para o

    antroplogo, Estados so e permanecero partes de ordens culturais e, portanto,

    capazes de serem compreendidos utilizando-se das mesmas ferramentas analticas

    utilizadas para outros artefatos culturais (BORNEMAN, 1992, p.5, traduo nossa).

    Condio nacional, como pertencimento nao, no sentido que usado por

    Borneman, nem sempre significa o mesmo que nacionalismo, pois esse envolve uma

    devoo subjetiva nao. Esses termos, como ele esclarece, so frequentemente

    confundidos:

    18 Hobsbawm faz uma crtica ao trabalho de Ernest Gellner, que prefere a nao vista pelo Governo, dificultando a viso das pessoas comuns que no compem os governos, porta-vozes ou movimentos nacionalistas. (HOBSBAWM, 2013). 19 O termo condio nacional refere-se a nationness, o qual no possui traduo especfica em lngua portuguesa. Nation-ness utilizado por Benedict Anderson na introduo de sua obra Imagined communities: My point of departure is that nationality, or, as one might prefer to put it in view of that word's multiple significations, nation-ness, as well as nationalism, are cultural artefacts of a particular kind. Nesse sentido, utilizei a traduo da verso brasileira onde o termo condio nacional foi includo pela tradutora para enfatizar ou dar sentido ao termo nationness, ou nation-ness. O meu ponto de partida que tanto a nacionalidade ou, como talvez se prefira dizer, devido aos mltiplos significados desse termo, a condio nacional [nation-ness] quanto ao nacionalismo so produtos culturais especficos. (ANDERSON, 2008, p.30). 20 Nesse sentido ver Gilberto Dupas, legitimao o ato de legitimar, de tornar legitimo para a sociedade ou para a opinio pblica. Legitimo algo considerado autntico, genuno, fundado na razo, no direito ou na justia. (DUPAS, 2005, p.42).

  • Estados geralmente voltam-se a polticas para fomentar o nacionalismo, manipulando as opinies de seus cidados em tempos de crise e para reforar a legitimidade do governo, mas este tipo de devoo, que frequentemente manifestado igualitariamente aos membros recm-chegados e aos estabelecidos a longo tempo, to instvel como so todas as opinies subjetivas. (BORNEMAN, 1992, p.351, traduo nossa).

    Em sntese, o Estado-nao surge a partir do sculo XVIII, constitudo na sua

    formao por um territrio com fronteiras delimitadas e soberania interna e externa.

    Externa no sentido de impor sua fronteira jurisdicional em caso de invaso

    estrangeira. Soberania interna no sentido de estabelecer e legitimar seu poder de

    Estado sobre o subjetividade de seu povo, o qual possui caractersticas e histria

    mais ou menos semelhantes. Todavia, Estados no produzem cultura. Esses entes

    polticos podem estabelecer metas e ideias nacionalistas, mas para a real

    constituio do Estado-nao, em sua plenitude, temos primeiro de considerar

    compreender a importncia do papel subjetivo dos homens, no interior de dado

    espao, na produo do conhecimento histrico e como se d a transmisso desse

    legado cultural, de gerao a gerao.

    Esse ponto fundamental e no pode ser esquecido. Critrios objetivos como

    territrio, lngua e etnias em comum, parecem insuficientes, portanto, para explicar

    como se constitui uma nao. Nesse sentido, preciso enfatizar essa questo: O

    que de fato forma uma nao? Empresto a definio de Borneman:

    Construir uma nao envolve recriar padres de pertencimento que formam a base para que se sinta em casa, no mesmo lugar, em no em outro; se sentir em parte de um grupo que vivenciou um conjunto particular de acontecimentos em suas vidas suficientes para que sejam demarcadas de outros grupos. O Estado tem sucesso na construo de uma nao somente quando pode se autolegitimar como realizador da recriao desse grupo, cujos membros iro, por reciprocidade, recontar suas historias categorias e perodos em coerncia com aquelas que o Estado utiliza como relato. (BORNEMAN, 1992, p. 286-287, traduo nossa).

    O projeto de uma nao, de uma comunho de carter relativa e imaginada -

    para arriscar uma definio entre Bauer e Anderson -, uma questo complexa, que

    parece proceder ao nacionalismo. Mas quais os elementos determinantes do

    nacionalismo alemo? Uma complexidade histrica que envolve vrias dimenses,

    abordadas a seguir.

  • 1.2 O nacionalismo alemo e suas dimenses

    Segundo Fiori (2012)21, o nacionalismo se apresenta em mltiplos contextos e

    abrange vrias dimenses, que se estendem ao longo da histria e com variantes,

    dependendo da variedade de territrios observados. Face amplitude de tema, que

    se desloca no tempo e no espao, este captulo aborda o particularismo do

    nacionalismo alemo, o qual dar sustentao para o restante da dissertao.

    Entendo que o sentimento; a ideologia; a poltica; a economia e o poder militar so

    conotaes no exaustivas para tentar explicar a natureza do nacionalismo. Como

    explica Fiori (2012), a Alemanha foi uma das naes que conquistou tardiamente, na

    segunda metade do sculo XIX, em comparao aos demais Estados europeus,

    Inglaterra e Frana, seu processo de industrializao. Mesmo aps a primeira

    unificao Alem, em 1871:

    A Alemanha sempre se sentiu um pas cercado e pressionado, carregando um enorme atraso poltico e econmico e um profundo ressentimento com relao s grandes potncias [...], como no caso da Alemanha, a Rssia e o Japo so pases que sempre tiveram um forte sentimento nacional de cerco, vulnerabilidade e atraso [...]. E no cabe dvida que este sentimento de insegurana coletiva teve um papel decisivo na formulao do projeto e na trajetria nacionalista e militarizada do seu desenvolvimento econmico. (FIORI, 2012).

    Em complemento ao registro do autor, considero que o nacionalismo alemo,

    preliminarmente, se edificou em duas grandes dimenses ao longo de sua histria: a

    sentimental e a econmica. Todavia, no o meu propsito desenvolver uma inves-

    tigao histrica da conscincia nacional alem desde o Sacro Imprio Romano

    Germnico o I Reich. Esta tarefa escapa infinitamente do escopo desta pesquisa.

    O socilogo alemo Norbert Elias dedicou dcadas aos estudos de sua nao, sem

    esgotar o tema.

    Como assinala o pesquisador, seria, penso eu, uma bela tarefa escrever a bi-

    ografia de uma sociedade-Estado, por exemplo, a Alemanha (ELIAS, 1997, p. 165).

    21 FIORI, Jos Lus. Nacionalismo e desenvolvimento econmico. Artigo escrito em duas partes, a primeira em 3 de julho 2012 e a segunda em 26 de julho do mesmo ano. Disponvel em duas partes em e . Acesso em 8 mar.2014.

  • esse sentido, para compreender a argumentao dos prximos captulos, faz-se ne-

    cessrio algumas consideraes sobre as bases histricas da identidade nacional

    alem, no contexto dos sculos XIX e XX.

    O nacionalismo na Alemanha uma complexa contingncia histrica que en-

    volve, ao menos, uma combinao das dimenses citadas, sem importncia de hie-

    rarquia ou ordem temporal entre elas. Em outros termos, isolar o nacionalismo sen-

    timental alemo, como dimenso determinante, singular e absoluta, que prepondera

    sobre as demais, tese neutra, todavia, indispensvel compreend-lo, pois faz

    parte do carter dos alemes. O sentimento nacional decorre a partir da segunda

    metade do sculo XIX, em funo do atraso econmico da Alemanha perante as

    demais potncias da Europa, e, mais tarde, de um ciclo de penria econmica, que

    atingiu o auge aps a derrota na Primeira Guerra mundial, em 1918, pela imposio

    do Tratado de Versalhes e pela crise de 1929.

    Esse ressentimento, decorrente e combinado com a penria econmica, princi-

    palmente no perodo entre guerras (1918-1939), certamente no so os nicos na

    construo particular do nacionalismo germnico, seria uma argumentao fadada

    ao fracasso afirmar com veemncia essa hiptese. As variantes que produziram o

    nacionalismo na Alemanha certamente vo alm e uma construo complexa de

    se analisar. O tema adquire mais tenso quando trazemos discusso a questo da

    identidade nacional alem aps a derrota na Segunda Guerra, quando ocorre a ci-

    so da Alemanha em dois Estados antagnicos, em 1949, e a construo do Muro

    de Berlim, em 1961, isolando o setor ocidental, espao que incorporou duas gera-

    es que entraram em contraste social.

    Entretanto, para sustentar esta pesquisa, partiremos de uma breve anlise da

    natureza do comportamento e do sentimento alemo, na transio do sculo XIX

    para o sculo XX, como condio indispensvel para compreenso da formao do

    Nacional-socialismo e como esse no foi recepcionado pelas geraes subsequen-

    tes, aps o fim de Segunda Guerra, em 1945. Esses temas sero abordados nos

    captulos seguintes.

    1.3 Nao e identidade nacional

    Para que se possa analisar a relao entre as geraes contrastantes

  • necessrio compreender como os estudiosos abordam o tema identidade.

    Proponho os argumentos de dois autores, Stuart Hall e Zygmunt Bauman.

    Bauman no o primeiro, nem o nico, intelectual a se preocupar com a com-

    plexidade da definio de identidade. Segundo o pensador e socilogo, a identidade

    o papo do momento, um assunto de extrema importncia e em evidncia

    (BAUMAN, 2005, p. 23). Para o pensador, o tema realmente um desafio, um dile-

    ma sociolgico dos mais intrigantes da modernidade; um problema inconclusivo ain-

    da a ser revelado e a ser discutido nos meios intelectuais. Identidade, portanto,

    uma discusso moderna, que no fora refletida pelos fundadores da Sociologia:

    Durkheim, Weber e Simmel, homens preocupados com os problemas daquele tempo

    (BAUMAN, 2005, p. 21-22).

    Em entrevista a Benedetto Vecchi, Bauman (2005) sugere uma definio

    inacabada de identidade como um objetivo a ser inventado, e no descoberto

    como alvo de um esforo, uma tarefa que ainda se precisa construir a partir do

    zero. Como o pensador observa . se voc lembrar que, h apenas algumas

    dcadas, a identidade no estava nem perto do centro do nosso debate,

    permanecendo unicamente um objeto de meditao filosfica. (BAUMAN, 2005,

    p.22-23). O autor ainda refora o conceito altamente ambguo e contestado da

    identidade:

    o campo de batalha o lar natural da identidade. Ela s vem luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os rudos da refrega [] mas no pode ser eliminada do pensamento, muito menos afastada da experincia humana. A identidade uma luta simultnea contra a dissoluo e a fragmentao, uma inteno de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado [...] (BAUMAN, 2005, p.83-84, grifo do autor).

    ] Hall (2011) define a identidade em trs concepes: a primeira o sujeito do

    iluminismo. O sujeito sociolgico e o sujeito ps-moderno aparecem como as outras

    duas concepes, como forma de destronar o homem iluminista de sua conscincia

    egosta e inseri-lo na complexidade do mundo moderno, isto , na sociedade. Nesta

    interao, a identidade do individuo influenciada pelos valores das culturas exterio-

    res num contnuo dilogo, o sujeito passa a ser parte de uma estrutura pblica mais

    ampla, incorporando-se a uma cultura coletiva de uma nao. Em outros termos, o

  • sujeito abre mo do monoplio de uma identidade individualizada e se sintoniza a

    uma identidade nacional. Como Bauman, o autor engrossa o coro dos que reconhe-

    cem a complexidade do tema e no se arrisca em formular um conceito determinista.

    Hall discute a fragmentao da identidade do sujeito e sua relao com a estrutura

    na ps-modernidade, e a introduz como produto o sujeito ps-moderno, expresso

    de uma identidade voltil e mutvel.

    A opinio dentro da comunidade sociolgica est ainda profundamente divi-dida quanto a esses assuntos. As tendncias so demasiadamente recen-tes e ambguas. O prprio conceito com o qual estamos lidando, identida-de, demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na cincia social contempornea para ser definitivamente posto prova. Como ocorre com muitos outros fenmenos sociais impos-svel oferecer afirmaes conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegaes e proposies tericas que esto sendo apresentadas. (HALL, 2011, p. 8).

    Para Hall, a globalizao impacta sobre identidade cultural, seus efeitos contra-

    riam o que os socilogos pensavam sobre as mudanas evolucionrias de uma so-

    ciedade a partir de si mesma. Ela est constantemente sendo descentrada ou des-

    locada (HALL, 2011, p. 17). A indagao em relao a sua preocupao com a

    forma que a identidade cultural, mais especificamente, como a identidade nacional

    se comporta na modernidade tardia. Segundo sua anlise, a nao, na modernida-

    de, ao contrrio das sociedades mais tradicionais, so construdas a partir da cultura

    nacional.

    O discurso da cultura nacional, no , assim, to moderno como aparenta ser. Ele constri identidades que so colocadas, de modo ambguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentao por retornar a glrias passadas e o impulso por avanar ainda mais em direo modernidade. As culturas nacionais so tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele tempo perdido, quando a nao era gr so tentadas a restaurar as identidades passadas. (HALL, 2011, p. 56-57).

    Nesse sentido, a nao, para Hall, um conjunto de significados que no est

    somente restrito na entidade poltica, mas algo que produz sentidos um sistema

    de representao cultural. (HALL, 2011, p. 49), fazendo que as pessoas participem

    e se identifiquem da ideia imaginada de nao. Hall acredita que a identidade nacio-

  • nal na modernidade no esttica. Assim como a nao para Benedict Anderson,

    imaginada, o mesmo ocorre relao identidade nacional, ela produzida. Imagi-

    nada.

    As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nao, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos esto contidos nas histrias que so contadas sobre a nao, memrias que se conectam seu presente com seu passado e imagens que dela so cons-trudas. (HALL, 2011, p. 51, grifo do autor).

    A Identidade na modernidade tardia se inicia na segunda metade do sculo

    XX, e tem seu pice no histrico ano de 1968, alicerado no feminismo e outros

    movimentos sociais e revolucionrios dos anos 60. Hall (2011, p. 44) observa

    alguns elementos que refletem esse cenrio, como exemplo movimentos que se

    opunham a polticas capitalistas ou socialistas ou movimentos que eram

    sustentados por identidades especficas, negros e lutas raciais, gays e poltica

    sexual.

    As questes que Hall coloca em seu trabalho so importantes, pois sero re-

    tomadas mais adiante, se as identidades nacionais so realmente to unificadas e

    to homogneas como representam ser (HALL, 2011, p, 51). Em primeiro lugar, a

    partir dos cinco elementos propostos por Hall, arrisco uma noo abrangente de

    identidade nacional.22 Ela construda a partir de narrativas de experincias, signifi-

    cados histricos e mitos, no sentido de comunicar e perpetuar s geraes futuras,

    os valores comportamentais, as tradies culturais e as memrias produzidas no

    passado.

    Mas h uma unificao entre cultura nacional produzida e as identidades naci-

    onais que eles constroem? As diferenas em termos de classe, gnero ou raa, en-

    tre os membros de uma mesma comunidade teriam como propsito a formao de

    uma nica nao, para represent-los todos como pertencendo mesma e grande

    famlia nacional (HALL, 2011, p. 60), o que poderia suprir ou anular as diferenas

    culturais em prol de uma unidade nacional. Ao citar o povo britnico, como exemplo,

    22 Hall aborda estes cinco aspectos que constroem a noo de identidade cultural, a partir da cultura nacional, citando muitas vezes Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Terence Ranger. (HALL, 2011, p. 52-58).

  • inicialmente formado por culturas separadas por um longo processo de conquistas,

    cada qual lutou para impor sua hegemonia cultural, sendo que os componentes de

    origem devem ser esquecidos, pois ao longo da histria, seriam absorvidos para

    formar um pertencimento comum famlia da nao (HALL, 2011, p. 61).

    Mas para Hall (2011), a ideia da cultura nacional unificada com a identidade

    nacional, em toda sua plenitude posta em dvida. O problema no est no seu

    ponto de chegada. Ocorre que no interior da estrutura cultural, isto , nas tradies,

    valores nacionais e nos comportamentos pretritos, nunca se encontrou uma homo-

    gneidade no sentido como imaginado no romntico discurso de Ernest Renan, so-

    bre a Nao 23. Um dos grandes problemas a variedade de classes, no s no m-

    bito econmico, mas tambm em relao s classes tnicas e de gnero.

    A imaginada unificao plena da identidade nacional para com sua nao ,

    portanto, refutada por Hall. Isto no significa, de modo algum, que membros no inte-

    rior de um determinado Estado-nao refutam totalmente a diversidade de classes e

    etnias a sua volta, pode naturalmente permanecer uma relativa sensao de respeito

    mtuo entre eles.

    Hall nos traz um breve dilogo entre cultura, identidade e modernidade.

    J que a diversidade cultural cada vez mais, o destino do mundo moderno, e o absolutismo tnico, uma caracterstica regressiva da modernidade tardia, o maior perigo agora se origina das formas de identidade nacional e cultural novas e antigas que tentam assegurar a sua identidade adotando verses fechadas da cultura e da comunidade e recusando o engajamento... nos difceis problemas que surgem quando se tenta viver com a diferena. (apud BAUMAN, 2005, p. 105) 24.

    23 Uma nao uma alma, um princpio espiritual. Duas coisas que para dizer a verdade no formam mais que uma constituem esta alma, este princpio espiritual. Uma est no passado, a outra no $/12$2atual, o desejo de viver em conjunto, a vontade continuar a fazer valer a herana que receberam esses indivduos [...]nao, como o indivduo, o resultado de um longo processo de esforos, de 34///56$!$ter feito grandes coisas conjuntamente, querer fazer ainda, eis as condies essenciais para ser um povo. Amamos na proporo dos sacrifcios que consentimos, dos males que sofremos. Amamos a casa que construmos e que transmitimos [...]"Ns somos o que vocs f vocs so. RENAN, Ernest. O que uma nao? Conferncia realizada na Sorbonne, em 11 de maro de 1882." Revista Aulas . Dossi Subjetividades. Org. Adilton Lus Martins. vol. 1. n 2. 24 HALL. Stuart. Culture, Commnity, Nation. Cultural Studies, 3, 1993, p. 349-363.

  • Ao estudar a identidade nacional de uma cultura, sociedade ou nao perce-

    be-se que o tema, complexo, e certamente, no pretendo nesta pesquisa esgotar

    sua definio. O caso da raa e sua contribuio para a identidade nacional, por

    exemplo, outra discusso, sobretudo antropolgica.25 Raa um termo imprprio

    se utilizado para determinar uma caracterstica biolgica, uma categoria discursiva,

    organizadora das formas de falar, daqueles sistemas de representao e prticas

    sociais que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco especifico, de dife-

    renas em termos de caractersticas fsicas cor da pele, textura do cabelo [...] co-

    mo marcas simblicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro. (HALL,

    2011, p. 63-64).

    Trazemos, mais uma vez, a contribuio de Elias (1997). Para compreender

    a cultura ou a identidade de uma civilizao, imperativo analisar sua estrutura

    social e o legado histrico produzido pelas geraes passadas. Nesse sentido, Elias

    converge com Hall em relao importncia do papel da histria cultural. A teoria

    elisiana no despreza a herana da estrutura social e da produo cultural

    construda por geraes passadas. Os sentimentos de uma nao e sua

    conscincia de que pertencem a um povo so as razes que formam a identidade de

    uma cultura. Como Elias argumenta (1990, p. 30), Os problemas contemporneos

    de um grupo so crucialmente influenciados por seus xitos e fracassos anteriores,

    pelas origens ignotas de seu desenvolvimento.

    O sentimento de inferioridade alem identificado no sculo XIX; a humilhao

    sofrida na Primeira Guerra, principalmente com a imposio do Tratado de Versa-

    lhes; o sentimento de grandeza com a ascenso e a consolidao do Nacional-

    socialismo, em plena crise do sistema capitalista; o sentimento de culpa coletiva

    aps Auschwitz; o conflito social entre geraes ps Segunda Guerra; a diviso da

    Alemanha em dois Estados antagnicos; a construo e a queda do Muro de Berlim;

    a reunificao das Alemanhas, em uma Nao alem, - se que possvel usar esse

    termo naquela ocasio, - retratam uma contingncia produzida pelas relaes m-

    tuas entre homens, ao longo do processo histrico, que influenciaram a estrutura e a 25 Como ensina Lvi-Strauss. Mas o pecado original da antropologia consiste na confuso entre a noo puramente biolgica de raa (supondo, alis, que, mesmo neste terreno limitado, esta noo pudesse pretender a objetividade, o que a Gentica Moderna contesta) e as produes sociolgicas e psicolgicas das culturas humanas. LVI-Strauss, Claude. Antropologia Estrutural II. Raa e Histria. UNESCO, Paris, 1952, p 328.

  • identidade nacional alem das ltimas geraes, e que, possivelmente, criaro as

    condies determinantes para as prximas.

    Nesse sentido, para compreender as causas que levaram ao conflito entre as

    duas geraes - que uma relao antagnica entre grupos sociais, ou de um confli-

    to de identidades -, em primeiro lugar, preciso entender os critrios tericos para

    inaugurar uma nova gerao. A combinao de experincias similares vividas por

    grupos de faixas etrias prximas pode ser um critrio que sugere uma nova gera-

    o, distinta, em sua forma de agir e pensar para com a gerao que a precedeu.

    Em outras palavras, trata-se de uma identidade coletiva singular, e utilizo esse con-

    ceito para designar a unidade de gerao, esse ltimo termo cunhado por Karl Man-

    nheim no seu ensaio sobre o problema geracional, a ser tratado no captulo 3.

    Em segundo lugar, essa unidade de gerao no imutvel, est sujeita a

    ao da histria e ao encontro de novas geraes que surgiro. Em outros termos, e

    isso ser abordado mais adiante, discutir sobre os problemas de uma dada gerao

    somente possvel compreendendo que ela no dada a priori, em maior ou menor

    grau, ela (a gerao observada) constantemente influenciada por eventos presen-

    tes e imprevistos, mas no menos pelo legado de experincias e sentimentos trans-

    mitidos pela gerao anterior. Isolar uma gerao, portanto, em determinado territ-

    rio e tempo, vivel apenas em algumas circunstncias, onde o pesquisador, em

    funo do seu objeto limitado de pesquisa e do tempo que tem para a publicao de

    sua tese, est preocupado com as prticas e as aes singulares presenciais, dando

    as costas ao passado.26

    Como abordo mais adiante, a gerao produto histrico e sua constituio

    depende da forma com que cada grupo coletivo se identifica e reage para com as

    26 Essa forma de ocultar um contexto histrico mais amplo foi acreditada pelo antroplogo Bronislaw Malinowsky (1884-1942), como explica Laplantine, Mallinowsky considera que uma sociedade deve ser estudada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento em que a observamos. (LAPLANTINE 2012, p. 80). Para Eriksen e Nielsen, essa forma foi considerada, na ocasio, um mtodo revolucionrio de pesquisa, conhecido como observao participante, no sentido de viver com as pessoas que estavam sendo estudadas e em aprender o participar o mximo possvel de 7/ )'89-)* *8),-)*! :;:! $/

  • circunstncias histricas que lhe so impostas. Quanto aos conflitos, essa pesquisa

    no tem como propsito analisar os atritos no interior de cada gerao, mas do atrito

    intergeracional. Ora, se h conflitos de identidades geracionais no interior de um Es-

    tado-nao, estamos lidando com contradies em relao s maneiras de pensar,

    reagir e sentir, que podem, ou no, levar a um alto grau de intransigncia a ponto de

    descontinuar com a condio nacional - nation-ness (Anderson, 2008. p. 30) pre-

    cedente. Mas, como vimos, o conceito de nao parece inacabado e meu propsito

    acadmico, nem de longe, pretende superar os autores citados nesta pesquisa.