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O ponto de vista do outro

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Conselho editorial

Bertha K. BeckerCandido MendesCristovam Buarque Ignacy SachsJurandir Freire CostaLadislau DowborPierre Salama

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O ponto de vista do outro

Jurandir Freire Costa

Figuras da ética na ficção de Graham Greene e Philip K. Dick

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Copyright © Jurandir Freire Costa, 2010

Direitos reservados para esta edição

Editora Garamond LtdaRua da Estrela, 79 - Rio Comprido - RJ 20251-021 – Rio de Janeiro, BrasilTel/fax: (21) 2504-9211 [email protected]

Revisão Carmem Cacciacarro

Editoração EletrônicaLuiz Oliveira

CapaEstúdio GaramondFotografia da capa: Mike Baird, disponível em http://www.flickr.com/photos/mikebaird/4264618603/ sob licença “Atribuição” da Creative Commons

C873pCosta, Jurandir Freire, 1944-O ponto de vista do outro / Jurandir Freire da Costa. - Rio de Janeiro : Garamond, 2010. 384p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7617-198-0 1. Ética. 2. Ética e literatura. 3. Psicanálise e literatura. I. Título. II. Série.

10-4552. CDD: 170 CDU: 17

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTEDO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

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A Célia, Ciça e Guga, como sempre, desde sempre, o que tenho de melhor.

Aos meus irmãos, Janda, Lila e Cere.

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Agradecimentos

Célia, Cecília e Tiago, com críticas pacientes, amorosas e bem-humoradas, me ajudaram a tornar os quatro primeiros capítulos do livro mais leves e palatáveis aos leitores que não têm o objetivo de discutir tecnicamente os assuntos abordados. A ajuda foi inestimável. A dicção universitária certamente não desapareceu, mas tornou-se menos intrusiva. Bethânia Assy e Francisco Ortega acompanharam o andamento do livro e puseram à minha disposição uma quantidade de referências literárias às quais eu não teria acesso, não fosse a boa vontade e a amizade dos dois. Meu obrigado superlativo. Marcelo Land ajudou-me a obter grande parte dos livros de Philip K. Dick usados no trabalho. Grande obrigado amigo. Aos amigos que participam comigo de seminários, estudos compartilhados e grupos de discussões clínicas psicanalíticas, minha gratidão pelo que me ensinam e estimulam a conhecer.

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Sumário

Introdução, 11

Graham GreeneÉtica e justiça: não se pode pedir demissão a Deus, 31Ética e amor: o inocente assassinado, 83

Philip K. DickÉtica e realidade: do cosmos ao caos, 133Ética e sujeito: tudo que é humano é-me estranho, 187

ApêndicesSobre o messianismo, 219Derrida e Caputo: justiça e messianicidade, 239Agamben e o amor, 285Žižek, o sujeito, a ideologia e o ato, 315

Bibliografia geral, 373

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Introdução

Raymond Chandler, em um texto escrito sobre os anos 1930, dizia:

A civilização ocidental, muito antes da bomba atômica, já criara as engrenagens para sua própria destruição e estava aprendendo a usá-las com a alegria idiota de um gângster que experimenta sua nova metralhadora.1

Evelyn Waugh, analisando o mesmo período, disse:

Parece-me que, no presente estado da história europeia, o problema essencial é [...] entre cristianismo e caos... A civilização – e por isso eu não entendo cinema falado, comida enlatada, nem mesmo cirurgia e casas higiênicas, mas a totalidade da organização moral e artística da Europa – não tem em si mesma o poder de sobreviver. Ela veio à luz através do cristianismo e, sem ele, não tem significância ou poder de ordenar [aos indivíduos] que lhe sejam fiéis. Não é mais possível... aceitar os benefícios da civilização e, ao mesmo tempo, negar as bases sobrenaturais sobre as quais ela repousa.2

E, continuava: “é o triunfo final dos Homens Ocos, que conhecem o preço de tudo e não conhecem o valor de nada, e que

1 CHANDLER, Raymond. A longa noite. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. [original em inglês de 1950]. 2 Apud TAYLOR, Charles. A Secular Age. Cambridge, Massachusetts and London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2007.

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perderam a habilidade de sentir ou pensar profundamente sobre o que quer que seja”.3

Os textos tratam do mal-estar na cultura. Escolhi citá-los por duas razões. O de Chandler por mostrar que o século XX foi pródigo em previsões sociais catastróficas; o de Waugh por deixar claro que os pretensos desastres foram, muitas vezes, imputados à perda de valores morais filiados ou não a doutrinas espirituais.

Nas três últimas décadas, aproximadamente, o cenário repetiu-se com ligeiras variações. Teses similares às de Chandler e de Waugh foram reafirmadas por pensadores que anunciam apreensivos o início de outra virada histórica, a da “saída da religião”.4 Isso significa que, após a etapa histórica da laicização ou secularização dos valores morais judaico-cristãos, estaríamos em vias de abandonar tudo que nos liga a esse passado. Donde a decadência ética nas esferas pública e privada. A moralidade, diz-se, perdeu a solenidade de suas origens, afogada em injustiças econômicas, leviandade cultural, negligência cívica e carência de horizontes de reparação. Em suma, estaríamos assistindo ao ocaso dos ideais de vida mais nobres e ao triunfo dos “Homens Ocos” na “terra devastada”, para usar a metáfora de T.S. Eliot evocada por Waugh.

Essa opinião, como seria de esperar, é discutível, e quatro correntes de ideias monopolizam, grosso modo, a controvérsia. Em primeiro lugar, há os que escarnecem do diagnóstico pessimista. Para estes, o catastrofismo é a eterna “doença infantil” dos intelectuais de academia preocupados em não deixar o pódio do radicalismo filosófico, político ou cultural. O status quo social é visto com simpatia e elogiado pela contribuição que trouxe à vida

3 Ibid.4 Ver: GAUCHET, Marcel. La religion dans la démocratie – Parcours de la laïcité. Paris: Gallimard, 1998; La condition historique. Paris: Stock, 2003; Um monde desenchanté? Paris: Les éditions de L’Atelier, 2004; FERRY, Luc e GAUCHET, Marcel. Le religieux après la religion. Paris: Grasset, 2004; L’avènement de la démocratie – I La révolution moderne. Paris: Gallimard, 2007; L’avènement de la démocratie – La crise du libéralisme. Paris: Gallimard, 2007.

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ética. Em segundo lugar, se situam os que reforçam e ensombrecem a imagem do declínio ético do Ocidente, associando-o, sobretudo, à ideologia do mercado no capitalismo globalizado. Em terceiro lugar, estão os que aceitam a tese da revolução dos costumes, mas rejeitam com veemência a sugestão de que o aggiornamento das éticas de natureza espiritual ou suas versões seculares5 possa reverter o hipotético estado de coisas. A cultura contemporânea, segundo eles, deveria ser fiel ao espírito científico e não flertar com o obscurantismo religioso. O retorno da religião estrito senso ou sua reabilitação no interior do ideário democrático significaria um retrocesso para o pensamento ilustrado. Em quarto lugar, estão aqueles aos quais me alinho. Trata-se de pensadores de várias inclinações teóricas que partilham a convicção de que os dilemas éticos contemporâneos ainda podem ser pensados com proveito no interior da tradição leiga ou espiritual do Ocidente.

A amplitude do assunto, vê-se, é gigantesca. Meu intuito, portanto, não é o de mapear exaustivamente uma questão que assedia o pensamento ocidental pelo menos desde as guerras religiosas e os libelos antirreligiosos do Iluminismo. A pretensão é mais tímida e tateante. Pretendo sustentar que a extensão dos problemas que presenciamos não comprometeu – em todo caso, até agora! – nosso discernimento moral. Além disso, sugiro que esse discernimento é parte integrante do ideal de pessoa que cultivamos. Sujeito ocidental e ética ocidental são fenômenos interdependentes e indissociáveis.6 Um não existe sem o outro. Por conseguinte, afirmar que revogamos o credo ético de nossa tradição equivaleria a dizer que nos tornamos

5 Usarei a expressão “ética secular” como sinônimo de “ética leiga”, embora esta sinonímia seja discutível entre os estudiosos do assunto. A corrente contrária à tese de que as éticas públicas e privadas dos tempos modernos sejam herdeiras mundanas dos ideais religiosos judaico-cristãos sustentam que usar a palavra “secularização” significa aceitar, ipso facto, a versão religiosa do advento da Modernidade ocidental. Para estes autores, em vez de secularização, deveríamos preferir expressões como “saída da religião” ou “legitimidade” dos ideais éticos modernos. 6 Em filosofia, a sinonímia entre moral, ética, eticidade e moralidade, em geral, não é aceita. Para nossos propósitos, tais distinções acrescentam pouco ao que queremos discutir.

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pessoas indiferentes ao que, até agora, nos sensibiliza em matéria de bem e mal, justo e injusto, correto e incorreto etc. É isto que acho contestável.

Começarei por apresentar, de modo breve, as quatro opiniões mencionadas.7 Como representante da primeira corrente, escolhi Luc Ferry. Para Ferry, o mal-estar atual se baseia no medo injustificado de não mais podermos intervir nos rumos da sociedade. Nos últimos tempos, a velocidade das mudanças parece ter escapado às regulações políticas, econômicas, morais ou espirituais costumeiras, provocando sentimentos de perplexidade e impotência nos sujeitos. Para explicar o que se passou, Ferry lança mão de três noções: a desconstrução, a desapropriação e a sacralização.8

Por desconstrução, o autor entende a atitude social e intelectual que destronou a tradição e seus ideais transcendentes.9 Disso teria resultado o desmoronamento “dos princípios de sentido e de valor”, a “deserção cívica”, o “declínio da moral comum” etc. A desapropriação, por seu turno, refere-se ao mito da criatura que se insurge contra o criador, ameaçando-lhe a segurança.10 Para Ferry, este mote, recorrente na ficção fantástica, voltou a amedrontar os sujeitos na figura da “globalização”. A globalização estaria envolta no halo das velhas histórias de mal-assombro, ou seja, histórias de indivíduos destruídos por seres inumanos aos quais deram vida e

7 Em dois trabalhos anteriores, O vestígio e a aura (Rio de Janeiro: Garamond, 2004) e O risco de cada um (Rio de Janeiro: Garamond, 2007), abordei com mais detalhes o assunto da chamada perda de valores. 8 FERRY, Luc. Famílias, amo vocês. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. 9 Em face do nosso intuito, é suficiente observar que transcendência é a propriedade que os seres humanos possuem de imaginar, criar, reconhecer e aceitar regras de conduta que funcionam como condições apriorísticas, independentes, necessárias e imperativas de tudo que podemos conhecer sobre o mundo ou do que devemos ser, do ponto de vista moral. A transcendência pode ser vista como uma propriedade do ser divino ou como uma invenção conceitual construída a partir das qualidades imanentes dos seres humanos. Qualidades imanentes são todos os fenômenos físico-mentais que caracterizam o modo de agir, pensar, sentir e desejar dos indivíduos. Na discussão, o que nos interessa realçar é, sobretudo, o aspecto ético da transcendência. É desse aspecto que será vista a questão da origem divina da transcendência ou de sua condição humana, como nas teorias críticas da religião. 10 FERRY, Luc. Op. cit., p. 15.

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autonomia por soberba intelectual ou ânsia de poder. A sociedade desconstruída e globalizada produziria, assim, o sentimento de inermidade e temor dos que se sentem expropriados do poder de controlar aquilo que criaram.

Ferry julga essas opiniões despropositadas. No fundo, diz ele, uma porção de intelectuais nostálgicos entrega-se ao gozo com o catastrofismo por não verem a realidade com dois olhos. Tais intelectuais lamentam o “esgotamento de entidades grandiosas” como “Deus, a República, a Pátria, a Revolução etc.” Mas, diz ele, se é verdade que perdemos o gosto por fórmulas grandiloquentes, também é verdade que reinventamos o sentido do sagrado na esfera dos afetos familiares, do cuidado para com o próximo e para com o ambiente natural. A isto dá o nome de “sacralização” da vida humana, que define como

a emergência progressiva de uma verdadeira “divinização do humano”, que, sob o efeito das evoluções da família moderna, vai dar corpo à ideia de um sagrado encarnado no coração da humanidade e não mais, como antes, em entidades “verticais”, superiores e externas a ela.11

A segunda corrente, bem representada por Robert Dufour, se opõe de alto a baixo a Ferry. Dufour é um crítico implacável das sociedades liberais, e se refere à visão de mundo dominante hoje em dia como a de “rebanhos barulhentos, incultos, bárbaros, liberados de todas as regras, desinibidos, pós-neuróticos, decididos a pisotear todos os muros da civilização que encontram em sua passagem”.12

Os rebanhos se acreditam livres quando na verdade são comandados pela força do divino mercado. O Mercado, pela via do entretenimento e do consumismo, estaria se constituindo como

11 Ibid., p. 74. 12 DUFOUR, Dany-Robert. Le divin marché. La révolution culturelle libérale. Paris: Denoël, 2007, p. 16.