a família do ponto de vista psicológico

Upload: gideane-batista

Post on 18-Jul-2015

313 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    1/7

    ;A F A M IL IA D O P O N T O;D E V IS T A P S IC O L O G IC O :

    L U G A R S E G U R O P A R AC R E S C E R ?Rosa Maria MacedoCoordenadora do Nucleo de Familia e Comunidade da PUC-SP

    RESUMO ABSTRACTInicialmente, 0 texto apresenta uma discussao a respeito do con-ceito generico de familia no senso comum e no campo cientffico.Procura situar a famil ia na area da Terapia Famil iar, uti lizandoo referencial sistemlco com uma visao construtivistaiconstrucio-nista e realizar uma analise das transtormacoes que a familiatem apresentado a partir das rnudancas contextuais. Usa comoeixo norteador para esse fim universais como: cicio vital, etni-cidade, cultura, genero e nivel socio-economico. Conclui ressal-tando a peculiaridade dos padroes interacionais da famil ia decada um e alertando 0 terapeuta para a necessidade da cons-trucao conjunta de alternativas diante dos problemas que elapropria nao conseguiu superar.CONCEITO DE FAMiLIA - PSICOLOGIA - TERAPIAFAMILIAR

    THE FAMILY FROM THE PSYCHOLOGICAL VIEW: A SAFEPLACE TO GROW?Initially, the text discusses the generic of the family in theordinary sense and in the scientific field. I t tries to situate thefamily in the area of Family Therapy, using systemic referencewith a constructivist/constructionist view and analyses thetransformations in a family based upon changes in time andplace. For this, universals such as the life cycle, ethnicity,culture, gender, and socio-economic level are used as its guidingaxis. I t concludes by emphasizing the peculiarity to the familyinteractive standards of each one and alerts the therapist to theneed to build alternatives conjointly with the client for theproblems she herself has not been able to overcome.

    62 Cad. Pesq., Sao Paulo, n.91, p.62-68, nov. 1994

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    2/7

    Quando no cotidiano se faz reterencia a familia, aspessoas envolvidas na conversacao compreendemlogo 0 que esta sendo referido. Isto e, ha um con-senso no que diz respeito ao conceito de familia, queimplica a ideia de uma entidade composta de certosmembros - pai, mae, filhos - com determinadas res-ponsabilidades - procriar e cuidar da prole.

    Em termos de estrutura e funcao, entretanto,nota-se algo mais no imaqinarlo coletivo: a atribuicaoa familia de qualidades ideais que se referem ao re-fugio segura para onde se volta depois das batalhasdo cotidiano - lugar de paz, amor e harmonia entreas pessoas, onde reina a camaradagem, a fraterni-dade.

    Na construcao das subjetividades, esse ideal defamilia, mitificado atraves dos seculos, permanece for-temente presente hoje como aquilo que e desejavel.Embora a experiencia vivida no seu seio contradigaessa visao idealizada, ela se rnantern como uma ex-pectativa, um modelo, ~m lugar segura para crescer.

    Entre os especialistas do campo das ciencias so-ciais e humanas, ha igualmente um consenso quantoa conceituar a familia de forma generica. Ela e vistacomo unidade social cuja funcao e a socializacao dascrlancas por meio da educacao e da transrnissao dacultura, portanto, um poderoso agente para manuten-< ; : 1 3 . 0 da continuidade cultural, isto e, um valor socialuniversal. Desse ponto de vista, e um dos organiza-dores da sociedade, na medida em que define os es-tilos de vida, dando substancia a acao, A permanen-cia desse modelo como valor qualifica e mapeia asrelacoes sociais nas varias situacoes em que ocorre(Carneiro, 1986).

    Assim, na sociedade em ogeral, a familia e vistacomo uma entidade que situa e legitima 0 individuoem seu espaco social, tendo essa funcao maior im-portancia quanto mais uma sociedade e orientadapara a familia, como a brasileira. Aqui, 0 modele defamilia que povoou ate bem pouco tempo 0 irnaqinariodos cientistas sociais e serviu de referencial para seutrabalho (familia patriarcal do Brasil Colonia) tarnberne um mito, um grande arquetipo construido em nomedas elites (Samara, 1991).

    Essa reftexao aponta para 0 carater eminente-mente construido da realidade familiar, cujo conceitopode variar indefinidamente tanto em nivel do sensocomum como dos especialistas, em funcao do con-texto. Quando, porem, a questao for a familia comoobjeto de estudo e intervencao do psicoloqo, e ne-cessaria a explicitacao de reterencias conceituais, afim de orientar 0 trabalho para que ele possa fazerparte do discurso dos especialistas que constituemessa comunidade cientifica.

    Sendo assim, uma definicao qenerica de familiae dispensavel, na medida em que, como sujeitos daexperiencia familiar, cada pessoa tem sua concepcaoparticular fortemente influenciada pela idealizacao.Quanto aos estudiosos do assunto, cada qual no seucampo de conhecimento atribui significados a familia,ou a define de acordo com as categorias operacionaiscondizentes com a sua perspectiva.

    A familia ...

    Nesse sentido, pode haver tantas definlcoesquantas categorias, bastando indicar com que entericforam escolhidas. Assim, familia tem side definida en-quanto rslacoes biol6gicas, de oonsanquinidade, pa-droes de residencia, c6digos legais, depositaria dacultura, funcao socializadora, educativa e tantos ou-tros criterios prefixados de acordo com os objetivosde cada um. Mesmo que as construcoes te6ricas dosespecialistas nao sejam totalmente compativeis comas concepcoes correntes de familia que eles pr6priospossuem, nao ha maiores dificuldades quando se dis-tingue 0 lugar de onde se esta falando.

    Grande problema pode ocorrer quando familia fortomada como uma realidade em si, independente dosujeito que a concebe, como no paradigma positivista,o que teria como consequencia imediata sua natura-lizacao: familia e assim e assim e como ela deveser...

    Alern da naturalizacao que encara 0 tsnomenocomo expressao da verdade, outro problema podeocorrer quando diferentes modelos de discurso se cru-zam, como, por exemplo, quando famllias e clinicosse encontram na terapia familiar.

    Ai, entao, surge a necessidade das especifica-coes.

    A FAMILIA NA PSICOLOGIAA familia e, para a Psicologia, revestida de uma im-portancia capital, dado que e 0 primeiro ambiente noqual se desenvolve a personalidade nascente de cadanovo ser humano. Assim, a familia e vista como 0 pri-meiro espaco psicossocial, prot6tipo das relacoes aserem estabelecidas com 0 mundo. E a matriz daidentidade pessoal e social, uma vez que nela se de-senvolve 0 sentimento de pertinencia que vem como nome e fundamenta a identificacao social, bemcomo 0 sentimento de independencia e autonomia,baseado no processo de diferenciacao, que' permitea consciencia de si mesmo como alquern diferente eseparado do outro. 0 pertencer e constituido, por umlado, pela participacao da crianca nos varies gruposfamiliares, ao acomodar-se as regras, padroes intera-cionais e compartilhar da cultura particular da familia,que se rnantern atraves do tempo, como mitos, cren-cas, habitos... (Minuchin, 1976).

    Ja 0 diferenciar-se e construido, por um lado, pelaocupacao de diferentes posicoes no seu seio: 0 filhotarnbern e irrnao, sobrinho, afilhado, primo; por outrolado, pela participacao de grupos extrafamiliares: es-cola, clube, amigos, e adquirindo toda a intorrnacaosobre os diferentes grupos sociais, usos, costumes,atraves dos meios de cornunicacao.

    Justamente por sua natureza, a Psicologia procu-ra definir a familia diferenciando-a de outros grupossociais, pelo fato de os individuos que a cornpoem es-tarem ligados por fortes tacos de ateicao e lealdade,nao sendo a afiliacao passivel de demissao - nela

    63

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    3/7

    so se entra atraves do nascimento, adocao e casa-mento e so se sai pela morte (concretamente falando,porque permanece na lernbranca).

    Portanto 0 que caracteriza fundamental mente afamilia sao as relacoes de afeto e compromisso e adurabilidade de sua permanencia como membro.o propos ito da fam ilia seria prover um contextoque supra as necessidades prlrnarias de seus mem-bros, referentes a sobrevivencia - sequranca, alimen-tacao e um lar -, ao desenvolvimento - afetivo, cog-nitivo e social - e ao sentimento de ser aceito, cui-dado e amado.

    Satisfazer tais necessidades a fundamental parao desenvolvimento da personalidade e depende dacapacidade da familia para construir estrutura e rela-coes adequadas. Esta estrutura - que aqui se refereaos membros que a cornpoem em termos de idade,sexo, ordem de nascimento e orqanizacao - deve terflexibilidade suficiente para atender as necessidadesevolutivas de seus membros.

    Considera-se suficientemente boa a familia queprove um ambiente saudavel em termos do impactodas relacoes mae-crianca, pai-crianca, enfim relacoesentre todos os que sao significativos. Dessa forma, acrianca tera na familia suficiente suporte e provimentoafetivo (alem, claro, do de subsistencia), 0 que a tornaum lugar segura para crescer.

    Como objeto de estudo da Psicotoqia, a familiaate bem pouco tempo era vista como variavel inter-veniente nas pesquisas sobre relacoes entre pais efilhos, entre irrnaos, entre 0 casal e suas consequen-cias para os demais membros (Macedo, 1993).A familia referida a geralmente a nuclear (pais,mae, filhos), sendo rarissirnos os estudos que tern

    como objeto a familia extensa, sobretudo incluindomembros de gera~oes anteriores (avos, por exemplo)a nao ser quando vivem na mesma casa da familianuclear. E importante notar aqui a torca do ideal defamilia de que ja se falou, pois, pelas praticas das re-lacoes familiares, no Brasil, a convivencla ou proximi-dade dos membros de diversas gera~oes a muitogrande, mas parece so chamar atencao nos casos emque as avos substituern as rnaes no cuidado da casae dos netos, como a muito comum nas famllias che-fiadas por mulheres, uniparentais ou de baixa renda,no capitulo de cuidados alternativos da prole.

    Foi por influencla da pratica em Terapia Familiarque a Psicologia centrou seus interesses na familiacomo objeto, sendo hoje comum 0 estudo de padroasinteracionais, sobretudo na PsicologiaClfnica, que ul-timamente corneca a oferecer uma producao acade-mica regular nesse campo (Macedo, 1993).

    A O~IGEM DAS CONSTRUC;OES SOBRE AFAMILIA MODERNAo "sentimento de familia" (Aries, 1973), tao conhecidono seculo XX, resultou de uma transtorrnacao da fa-milia que passou de realidade moral e social a reali-64

    dade afetiva ocorrida em fins do seculo XVIII e inlclodo XIX, produto de uma revolucao qualitativa no ter-reno das representacoes mentais, ocorridas concomi-tantemente a outras importantes revolucoes sociais,econ6micas e polfticas da epoca.

    A partir do seculo XVI, com 0 aparecimento dosentimento de infancia e com 0 advento da burguesia,delineia-se uma orqanizacao de familia nuclear, cen-trada na privacidade e na educacao das criancas,Essa familia serviu de base para que "os tradiciona-listas do seculo XIX inventassem a conhecida familiapatriarcal", incluindo aqui Gilberto Freire, que descrevea tradicional familia patriarcal brasileira em Casa gran-de & senzala (Carneiro, 1986).

    Sao caracterfsticas dessa fam Ilia: 0 amor conjugale entre pais e filhos, a monogamia, a fidelidade, 0 cui-dado intense da prole no sentido de proteqe-Ia e edu-ca-la de acordo com os princfpios da moral, da higie-ne e dos bons costumes. Enfim, a um lugar de refu-gio, de protecao, de lealdade e amor, respeito a au-toridade do pai, provedor e responsavel pelo bem-estar da familia (Poster, 1979).

    Esse modelo, inicialmente restrito a burguesia,passa a ser um ideal para a classe operarla apes 0primeiro perlodo da industrializacao e se disseminacomo representacao social da familia e modele idea-lizado da mesma.

    DA FAMiLIA GENERICA A FAMiLIA DE CADA UMConsideradas de um lado as necessidades prlmariasdo ser humano, em termos do seu desenvolvimentopsicoloqico e, de outro, as caracteristicas da funcaoda fam Ilia reconhecida como a unidade social respon-savel pelo atendimento dessas necessidades, em ter-mos de prover um ambiente desejavel para que essedesenvolvimento se de, a questao que se apresentaa : como isso ocorre?

    Ou, dito de outra forma: se se pode falar gene-ricamente da familia em termos teoricos, quando hainterseccao do dornlnio teorico com a pratica, seja emtermos de intervencao ou pesquisa, a necessario con-siderar a familia de cada um, ou tipos especfficos defamllias, para tornar posslvel essas tarefas. Entao, de-para-se com um sern-nurnero de dificuldades. Em pri-meiro lugar, a preciso saber a que familia se esta re-ferindo.

    Ja se viu que 0 conceito gene rico de familia im-plica idealizacoes e norrnatizacoes que dao origem amitos, crencas, expectativas que nao resistem aoolhar mais rigoroso do especialista quando a tomacomo objeto de sua pratica.A que familia referir-se? A familia nuclear: pai,mae, filhos? E avos, tios, nao sao parte da familia,como familia extensa? E as famllias chefiadas por mu-

    Iheres ou as constitufdas pelo pai com os filhos (fa-milias uniparentais ou de pais singulares) como fi-cam? Como sao as famllias de baixo poder aquisitivo

    Cad. Pesq. n.91, nov. 1993

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    4/7

    onde a satisfacao das necessidades de subslstenciaa diffcil, as vezes impossivel?

    Pode-se falar numa familia brasileira? A Historiade vanguarda, segundo Samara (1991), ja mostrouque a familia patriarcal brasileira tlpica a um mito,construido a partir de uma classe social reduzida, deuma reduzida regiao brasileira. Alem disso, dada aenorme corrente irnlqratoria para 0 pais, como consi-derar as diferentes famllias de origem japonesa, ita-liana, alerna, polonesa e todas as demais? Nao se-riam as famllias afetadas de diferentes maneiras pelascrises econornicas, recessao, desemprego, falta demoradia, diterencas de classe e poder aquisitivo? Se-ria a familia atual diferente da familia do passado?Melhor ou pior?

    Supoe-se que as grandes mudancas ocorridasnas ultimas decadas tenham influenciado diretamentea chamada familia tradicional no sentido da moder-nizacao (Figueira, 1986). Entre elas sao fundamentaisas questoes de genera, envolvendo modiflcacoes naposicao da mulher na sociedade e na familia, as re-lacoes de casamento, com a leqalizacao do divorcio,relacoes homossexuais, 0 comportamento repradutivoque permite nao so 0 controle da natalidade mas pos-sibilita ao casal ter filhos se e quando quiser, a divi-sao do trabalho com a ocupacao do espaco profissio-nal pelas mulheres. Entretanto, 0 que mostram aspesquisas a a dificuldade do comportamento acompa-nhar a rnudanca das ideias e da convivencia do novocom 0 arcaico (Figueira, 1986).

    Todas essas questoes apontam para a diversida-de da familia que a vivida pelos sujeitos e retorcarna necessidade de se considerarem osarranjos fami-liares especificos ou a "familia a brasileira" no dizerde Samara (1991), que tem se dedicado a estudosdas peculiaridades da famIlia nas diversas regioes dopais no campo da pesquisa historica.

    A FAMILIA DA TERAPIA FAMILIARSegundo uma visao construtivistaiconstrucionista, 0processo de construcao da realidade se da nas roti-nas de interacao e trocas sociais do cotidiano, no cur-so do cicio vital de varias gerac;oes.

    Na pratica da intervencao terapeutica e/ou pre-ventiva a necessario levar em conta os construtos dafamilia, sua visao de mundo e de si propria, que seraocompartilhadas no processo que implica a reconstru-cao conjunta, terapeutaifamllia, nao se esquecendoque 0 terapeuta tem uma dupla visao de si mesmo:como membro de uma familia e cornotexpert". (ReiSS,1981; Slusky, 1983)

    A complexidade da tarefa a maior quando as con-cepcoes do especialista nao se encaixam com 0 con-ceito das familias e as visoes de si mesrnas queelastrazem para a terapia, embora possam ate pertencerao mesmo segmento social, grupo econornlco, etnicoetc.

    A familia ...

    o trabalho clfnico com famllias irnplica comparti-Ihar com elas seus constructos, cornpreende-los, elu-cida-Ios e com elas co-construir visoes alternativas,contextualizadas, promotoras de mudancas que sejamde molde a dissolver os problemas que fazem parteda historia que contam.

    Para tanto, a preciso que 0 terapeutaipesquisadortenha uma visao de mundo e uma postura esteticacompatfvel com a diversidade, sem, no entanto, per-der de vista a unidade do fsnomeno em construcaopara nao cair em posicoes nao eticas, indesejaveis,como 0 absolutismo das "verdades" estabelecidas, 0nihilismo da impossibilidade de conhecer, 0 relativis-mo radical que prejudica qualquer dialoqo e consensopor aceitar igualmente qualquer posicao sem compro-misso com nenhuma. A posicao etica desejavel aaquela em que, aceitando a multiplicidade das inter-pretacoes, assume-se uma postura flexivel frente asrnudancas, na base da conversacao, da busca deconsenso ou da neqociacao conscienciosa e respei-tosa das diterencas, para que haja oportunidade desurgimento do novo.

    Assim, preconceitos, sstereotipos, idealizacoes,tambam produto de construcoes sociais da realidade,devem ser necessariamente reconhecidos como tais,para que 0 trabalho terapeutico e/ou de pesquisa serealize de maneira adequada e tenha resultados,como producao de conhecimento, que possam ser va-lidados pela comunidade de pares.

    Isso nao significa que 0 terapeutaipesquisadornao possa ter um referencial teortco que permita a de-finicao e operacionalizacao dos construtos fundamen-tais que orientam seu fazer, suas praticas, nas diver-sas atividades particulares em que se engaja.

    Espera-se, pois, que 0 especialista apresente altograu de flexibilidade, abertura de visao e dominio daarea, alem de clareza e responsabilidade pela posicaoque assume, para poder participar do dialoqo com afamilia em consulta, por um lado, sem se perder ouse deixar apanhar nas armadilhas do sistema terapeu-tico (familia mais terapeuta) e, por outro, com seuspares, explicitando com clareza os referenciais quepermitam e direcionem as discussoes sobre as dife-renc;asde perspectiva. .

    Se 0 construtivismo/construcionismo como visaode mundo permite uma leitura da realidade que im-plica a unidade na diversidade, 0 referencial sisternicoda subsldlos para uma cornpreensao da estrutura eda dinarnica familiar, tendo como foco as relacoes in-terpessoais.

    Esse referencial, acrescido do desenvolvimentoda Teoria da Comunlcacao, dos Jogos e Tipos Logi-cos, alern da cornpreensao da Cibernetica, tornouposslvel a constituicao da familia como um dominicdo conhecimento, um objeto de pesquisa e interven-cao em si e nao como pano de fundo, como apenaso lugar das ocorrenclas e intluencias envolvendo pais,filhos, irrnaos etc. Desse ponto de vista, a familia aum "sistema aberto em transtormacao: quer dizer queesta constantemente recebendo e emitindo inputs doe para 0 extratamiliar' (Minuchin, 1976. p.50). Isso sig-

    65

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    5/7

    nifica que se pode aplicar a familia todas as caracte-risticas dos sistemas, discriminadas a seguir. E um todo organizado cujas partes sao interdepen-dentes, isto e, na familia como sistema nao se en-focam os individuos como tais, mas como "eus" re-lacionais interatuantes, constitutivos desse sistemafamiliar: cada um e filho, 0 irmao mais velho, maisnovo, pai, marido, mae. .. Todo sistema e formado de subsistemas que saoholons, isto e, ao mesmo tempo que funcionamcomo parte de um sistema, possuem tarnbern asqualidades de sistemas, como por exemplo, 0 sub-sistema de irmaos, 0 parental, conjugal, subsistemamasculino (pai e filhos) etc.

    As relacoes entre subsistemas sao governadas porregras e constituem padroes de interacao. Estes se-riam os modos resultantes das interacoes, tanto in-tra como inter-sistemas, incluindo aqui 0 sistemasocial amplo (Minuchin e Fishman, 1976). Portanto, as regras sao formadas nas proprias re-lacoes, envolvendo todos os participantes; sao re-correntes e tendem a estabilidade, sendo mantidaspor todo 0 sistema.

    Como ha limites ou fronteiras entre os subsistemas,geralmente as regras para as relacoes atraves dasfronteiras sao impHcitas. Como diz Minuchin (1976), as expectativas rnutuasentre os membros de uma familia sao um dos maio-res freios a rnudancas de padroes comportamentaise, quando algum membro da familia quebra algumaregra ja estabelecida como padrao, ha reacces con-trarias no sistema, no sentido de resistencla a mu-dancas, Da mesma forma, quando ocorrem situa-yoes dificeis, de desequilibrio, como uso de droga,por exemplo, sao comuns os apelos a lealdade fa-miliar ou cobrancas de nao-curnprimento das expec-tativas quanto aos papeis desempenhados, comomanobras para restaurar 0 equilibrio (situacao co-nhecida, habitual).

    A circularidade e uma caracteristica basica dos pa-droes de interacao, isto e, tais padroes nao sao asresultantes de sequencias lineares de cornporta-mento-causa/comportamento-efeito, mas sim de umconjunto de feedbacks recursivos, formando umateia de relacoes em que as mesmas pessoas ocu-pam diferentes posicoes nas relacoes com cadauma das outras, resultando padroes transacionaisdiferentes, como as figuras de um caleidoscopio.Por exemplo, uma posicao de autoridade em rela-yao a um filho: nesta posicao, ele deve ceder amesma especie de poder que provavelmente sentequanto interage com 0 irmao menor (Minuchin,1976).

    Os sistemas tendem a estabilidade, enquanto, poroutro lado, sao dotados de um grande potencial dernudanca. Estabilidade e rnudanca dizem respeito auma qualidade inerente dos sistemas; a auto-orga-nizacao, que, por sua vez, e expressao do alto po-tencial de flexibilidade, plasticidade e adaptabilidadeque pode resultar em uma auto-renovacao criativa

    66

    do sistema. Ser estavel nao significa ser estatico,pois 0 sistema flutua 0 tempo todo corrigindo osdesvios atraves de mecanismos de feedbacks ne-gativos para manter a estabilidade dos padroes, ouampliando os desvios, para criar novos pad roes(Watzlawick, 1967). Esses dois tipos de mudancasao conhecidos respectivamente como rnudanca deprimeira e segunda ordens.

    Estabelecer regras para limitar a hora de chegadade um adolescente em casa e uma rnudanca deprimeira ordem; dar a chave da casa e discutir prin-clpios de responsabilidade pessoal, quanto a sairde ou chegar em casa, e uma rnudanca de segun-da ordem porque supoe um saito qualitativo em di-recao a autonomia do jovem.Todos esses principios sao aplicaveis as relacoesna familia, sejam trlanqulacoes, aliancas, coalizao, re-gras, tipos de cornunicacao, mensagens, mandatos delealdade, proximidade, distancia, repeticao de mode-los, enfim, toda a gama relacional.

    MUDANC;AS DA FAMILIA NUM MUNDOEM MUDANC;ASo modelo apresentado para a cornpreensao da familiatem na mutualidade das inter-relacoes seu ponto-cha-ve. Em decorrencia, percebe-se imediatamente que afamilia evolui junto com seus membros no decorrer dociclo de vida das gerayoes sucessivas, assumindoparticularidades especificas em cada momenta dessaevolucao.

    Assim como a familia generica muda e se adaptaas circunstancias historicas, caracterlsticas sociais,econ6micas e iniuncoes de poder, tarnbern a familiade cada um esta sujeita a todas as pressoes do con-texto em que se insere, alern das pressoes internasrelativas ao desenvolvimento dos que a constituem. Arnudanca de cada membro implica rnudancas no sis-tema total.

    Uma das perspectivas que orientam a compreen-sao das relacoes familiares intra e inter-sistemas, bemcomo as possiveis acoes interventivas, e a de ciclovital. Suas ralzes situam-se na Sociologia da Familiae Psicologia do Desenvolvimento e tem a criacao dosfilhos como elemento organizador da vida familiar.Seu valor consiste em oferecer um quadro de refe-rencia, nao uma norma, baseado nas expectativas documprimento, pela familia, das tarefas evolutivas queasseguram 0 desenvolvimento "saudavel" de seusmembros, nas diversas etapas da vida familiar.Nesse processo evolutivo, pode-se detectar umasene de pontos de transicao entre sucessivos esta-gios, responsaveis por um aumento de estresse quepermite falar em crises previsiveis, e tornam a familiarnais susceHvel ao aparecimento de problemas quenem sempre ela consegue manejar. E funcao do te-rapeuta ajuda-la a encontrar alternativas possiveis

    mediante a co-construcao de novas realidades.Cad. Pesq. n.91, nov. 1993

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    6/7

    A dificuldade esta no fato de que os diversosmembros da famlliase encontram em pontos diferen-tes do ciclo de vida e cad a virada desse caleidosc6pioresulta numa rnudanca na posicao de todos. Algunspontos de virada que tornam a familia mais vulneravelsao, por exemplo, 0 nascimento do primeiro filho, quetransforma 0 casal em pais, seus pais em av6s; 0 filhona adolescencia que supoe pais entrando na meiaidade, tendo .que rever seus valores quanto a sexo,profissao, projeto de vida; 0 casamento dos filhos, 0nascimento dos netos, a aposentadoria, entre outros.Nao importa de que direcao venha 0 impulso de rno-dificacao, todos os subsistemas devem mudar quantoaos padroes interacionais, atitudes afetivas, dispensade cuidados, autonomia, relacoes com a familia ex-tensa.

    Quando nao ha no sistema recursos suficientes,por uma serie de razoes, para implementar as mu-dancas necessarias, aparecem os sintomas. 0 mem-bro com problema seria 0 porta-voz do sistema, sendopossfvel notar, em geral, uma riqidificacao dos pa-droes existentes, inadequados a situacao.Nao se pode esquecer nesse processo evolutivoa influencia de fatores "herdados", isto a, segredos,crencas, mitos, idiossincrasias familiares que vern de

    gerayoes anteriores e que tambam sao passfveis deprovocar estresse, tendo efeitos altamente potenciali-zadores quando incidem em pontos de transicao, porsi [a estressantes. Acrescente-se a isso os fatores ex-ternos: crises sociais, desemprego, problemas econo-micos e dosncas graves ou incapacitantes, morte pre-matura de um membro, catastrotes da natureza comoincendios, terremotos, enchentes, que sao imprevisf-veis, porern igualmente causadores ou potencializado-res de estresse.

    A literatura a rica em consideracoes sobre as ex-pectativas ou tarefas evolutivas da farnjia, tendo comoreterencia a familia de classe media, considerada, fre-quenternente, como a continuidade natural da familiapatriarcal burguesa, centrada na criacao de filhos.

    Hoje, entretanto, com 0 aumento da expectativade vida, a diminuicao da taxa de nascimentos, 0 tem-po dispendido pela familia com a criacao dos filhos,a significativamente menor, ou seja, enquanto no pas-sado essa tarefa ocupava toda a vida ativa dos adul-tos, atualmente pode ocupar menos da metade desseperfodo (Carter e McGoldrick, 1989).As rnudancas do papel da mulher na sociedadee na familia tarnbern geram grandes alteracoes no ci-clo vital da familia. Hoje, as funcoes de esposa e maeque a envolviam prioritariamente deixaram de ser suaprerrogativa exclusiva; hoje, a mulher procura firmarsua identidade pessoal alern do reino do lar, buscan-do satistacao na exscucao de projetos pessoais queenvolvam um trabalho profissional, uma carreira. Umdos casos mais frequentes de famllias de classe ma-dia alta com problemas sao as famllias com dupla car-reira, pelas dificuldades e conflitos entre os papais depais, esposos e profissionais. Assim, as mulheres es-tao tendo filhos mais tarde, menos filhos ou mesmooptando por nao te-los.

    A familia ...

    As separacoes ocorrem com maior frequencia tan-to no infcio do casamento como na adolescencia dosfilhos, em geral a pedido das mulheres. Surgem entaoas famllias unoparentais, frequentemente chefiadaspelas mass com os filhos, embora ja haja alguma in-cidencia de pais que fazem questao de ficar com aguarda dos filhos. Em geral, as mulheres recasammenos que os homens ap6s uma separacao: no en-tanto, as etapas que antecedem um recasamento en-tre parceiros com filhos de casamento anterior e apr6pria adaptacao a esse novo lar sao problematicasespecfficas enquanto padroes interacionais.

    o comportamento sexual dos jovens tambam temse modificado e com isso mudado as caracterfsticasda chamada familia tradicional. Nao ha mais (pelo me-nos em termos de valor) 0 tabu da virgindade. A atl-vidade sexual corneca mais cedo, ainda na adoles-cencia, ocorrendo muitas vezes gravidez e aborto, 0que influi nos padroes do casamento, tornando acei-tavel a convivencia entre parceiros, sejam adolescen-tes, sejam adultos, desde que ele foi esvaziado desua funcao procriativa.

    Cada vez mais as mulheres ocupam posicoes dechefia na vida profissional, bem como cargos politicos,o que muda tambam a confiquracao familiar, com aintroducao de cuidados alternativos para a prole, emaior responsabilidade dos pais frente as rotinas fa-miliares.

    Nos segmentos menos favorecidos da populacao,o nurnero de tamflias chefiadas por mulheres a maior,observando-se nessa familia uma sobrecarga muitogrande da mulher, tanto pela obrigatoriedade de pro-ver essa prole numerosa, como pela necessidade deabrigar maior nurnero de pessoas mais velhas sobseus cuidados, bem como filhos jovens sem trabalho.

    Desemprego, rna nutricao, maior nurnero de filhosdurante a adolescencia, maior taxa de mortalidade in-fantil, maior instabilidade nas relacoes, abuso de dro-gas, maior violencia, estresse de moradia inadequadae de dfvidas constantes, baixo poder aquisitivo, cons-tante falta de dinheiro e pouqufssimas opcoes de lazerfazem com que 0 cicio vital dessas famllias seja umasequencia de crises que nao raro ultrapassam os li-mites da capacidade adaptativa do sistema familiar.

    Alern disso, problemas de discriminacao, poucaoportunidade de educacao, rna assistencia a saude eum ambiente que chega a arneacar a sobrevivenciatornam essas famllias sujeitos das aqencias publicaede assistencia, casos em que muitas vezes 0 psico-logo acredita nao ter 0 que fazer. Porem, se algumasnecessidades evolutivas basicas foram atendidas, taistamllias poderao se beneficiar de uma assistencia psi-col6gica.

    A Terapia Familiar nao a panaceia mas pode aju-dar a conseguir um grau mais saudavel de funciona-mento, nos limites das possibilidades da familia. Emuito util, inclusive, para auxilia-la na relacao com osmeios assistenciais, a fim de receber adequadamenteaquilo a que tem direito. Sobretudo, a Terapia Familiar

    67

  • 5/16/2018 A fam lia do ponto de vista psicol gico

    7/7

    pode ajudar a desenvolver mais 0 respeito por si mes-mo, diminuir 0 sentimento de desamparo, aumentar eapoiar sua esperance numa vida melhor.Enfim, entre as famflias que vivem em diversosniveis de pobreza, certamente ha muitas que sao dis-funcionais, rnultiproblernatlcas, nao apenas pelo fatode serem pobres, mas pelas condicoes ultra-estres-

    santes e arneacadoras de seu ambiente. Entretanto,e certo tarnbem que se encontra entre as familias declasse media (padrao) muitas que sao tao ou maisrnultiproblernaticas e disfuncionais.

    Em decorrmcia de tudo isso, a mais importanteconclusao a que se pode chegar e que 0 terapeuta

    familiar precisa abandonar cada vez mais a ideia deuma familia "normal" pela ausencia de problemas.

    Todas as familias tem problemasmais ou menosserios: todas as familias tem condicoes de enfrenta-mento das situacoes criticas da vida, maiores ou me-nores, porern, cada familia tem suas peculiaridades,seus padroes interacionais especificos. A leitura sis-ternica, de uma posicao construtivista/construcionista,permite ao terapeuta familiar, como parte do sistemaobservante, construir com cada familia novas alterna-tivas possiveis, promovendo a rnudanca da historiaque contam e que se baseia em como se veem ecomo veem 0 mundo.

    REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

    ARIES, P. Histotie social da crience e da familia. Rio de Janeiro:Zahar, 1973.CARNEIRO, M. J. A Dasaqradavel familia de Nelson Rodrigues.In: FIGUEIRA, S. Uma Nova familia? Rio de Janeiro: Zahar,1986.CARTER, B., MCGOLDRICK, M. (eds.). The Changing family lifecycle. Nova York: Gardner Press, 1989.FALICOV, C. Family transitions. Nova York: The Guilford Press,1988.FIGUEIRA, S. A. (org.). Uma Nova familia? 0 moderno e 0 ar-caico na familia de classe media brasileira. Rio de Janeiro:Zahar, 1986.MACEDO, R.M. 0 Jovem na familia. In: SIMPOSIO DE PES-QUISA E INTERCAMBIO CIENTIFICO DA ANPEPP, III Anais.Sao Paulo: PUC, 1990.___ . A Pesquisa sobre familia em Psicologia a partir da de-cada de 80. Cadernos da ANPEPP, Sao Paulo, n. 2, p.91-

    120, 1993.

    MINUCHIN, S. et al. Families of the slums. Nova York: BasicBooks, 1967.MINUCHIN, S. Families and Family Therapy. Cambridge: HavardPress, 1976.MINUCHIN, S., FISHMAN, R. Techniques of Family Therapy.Nova York: Guilford Press, 1976.REISS, D. The Family's construction of reality. Cambridge: Har-vard University Press, 1981.POSTER, M. Teoria crftica da familia. Rio de Janeiro: Zahar,1979.SAMARA, Eni M. De que familia estamos falando? Mesa Re-donda da XLIII Heuniao da SBPC. Rio de Janeiro: 1991.SLUSKY, C. E. Therapy: toward an integration of systemic mo-dels. Family Process, v.4, n. 22, 1983. Process, structure andworld-views.WATZLAWICK, P., BEAVIN J., JACKSON, D. Pragmatics of hu-

    man communication. Nova York: W.W. Norton, 1967.

    68 Cad. Pesq. n.91, nov. 1993