o “ponto de mutação” da sulanca no agreste de pernambuco

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 ARTIGOS VARIADOS O “ponto de mutação” da Sulanca no Agreste de Pernambuco  Annahid Burnett* Feira da Sulanca 1  é como se denomina o fenômeno  de produção e comércio de conecções populares, o qual emergiu na década de 1960, na mesorregião do Agreste de Per nambuco, mais precisamente na microrregião do Alto Capibaribe. O município de Santa Cruz do Capibaribe dista 180 km da capital do estado, Recie, e az parte de um território tradicionalmente denominado Cariris Velhos  , com baixa densidade pluviométrica e solos rasos. Historicamente essa iniciativa tem tido como características principais o trabalho domiciliar, amiliar e inormal. al enômeno comercial/produtivo se instituiu nas décadas de 1950 e 1960, num primeiro movimento, tendo como matéria-prima os retalhos trazidos das ábricas têxteis do Recie, as costureiras dos sítios como orça  produtiv a e os tropeiros  como vendedores ambulantes, seguidos dos sulan- queiros como eirantes itinerantes e divulgadores do produto sulanca. Pos- terior mente, o seg undo movimen to resultou das m igrações dos retiran tes da região de Santa Cruz do Capibaribe e entor no, no Agreste p ernambucano, e da rede comercial que se estabeleceu com São Paulo para o aproveitamento dos retalhos  provenientes das ábricas têxteis daquele centro industr ial, os quais se adicionariam aos resíduos das ábricas do Recie, como matéria-prima * Doutora pelo P rograma de P ós-Graduação em C iências Sociais da U niversidade Federal de C ampina Grande (UFCG). Pesquisadora do grupo de pesquisa rabalho, Desenvolvimento e Políticas Públicas (UFCG/CNPq). E-mail: [email protected]. 1 Supostamente o vocábulo sulanca deriva da palavra helanca,  bra sintética em voga nos anos 1960/1970, que vinha do Sul. Portan to, sul + h elanca = sulanca.  

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Feira da Sulanca1 é como se denomina o fenômeno de produção ecomércio de confecções populares, o qual emergiu na década de 1960, namesorregião do Agreste de Pernambuco, mais precisamente na microrregiãodo Alto Capibaribe. O município de Santa Cruz do Capibaribe dista 180 kmda capital do estado, Recife, e faz parte de um território tradicionalmentedenominado Cariris Velhos, com baixa densidade pluviométrica e solosrasos. Historicamente essa iniciativa tem tido como características principaiso trabalho domiciliar, familiar e informal.Tal fenômeno comercial/produtivo se instituiu nas décadas de 1950e 1960, num primeiro movimento, tendo como matéria-prima os retalhostrazidos das fábricas têxteis do Recife, as costureiras dos sítios como forçaprodutiva e os tropeiros como vendedores ambulantes, seguidos dos sulanqueiroscomo feirantes itinerantes e divulgadores do produto sulanca. Posteriormente,o segundo movimento resultou das migrações dos retirantes daregião de Santa Cruz do Capibaribe e entorno, no Agreste pernambucano, eda rede comercial que se estabeleceu com São Paulo para o aproveitamentodos retalhos provenientes das fábricas têxteis daquele centro industrial, osquais se adicionariam aos resíduos das fábricas do Recife, como matéria-prima* Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de CampinaGrande (UFCG). Pesquisadora do grupo de pesquisa Trabalho, Desenvolvimento e Políticas Públicas(UFCG/CNPq). E-mail: [email protected] Supostamente o vocábulo sulanca deriva da palavra helanca, fibra sintética em voga nos anos 1960/1970,que vinha do Sul. Portanto, sul + helanca = sulanca.BURNETT, Annahid. O “ponto de mutação” d 154 a Sulanca no Agreste de Pernambucopara as costureiras confeccionarem produtos populares, que passaram a integraro circuito das feiras livres percorridas pelos sulanqueiros.

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  • ARTIGOS VARIADOS

    O ponto de mutao da Sulanca no Agreste de Pernambuco

    Annahid Burnett*

    Feira da Sulanca1 como se denomina o fenmeno de produo e comrcio de confeces populares, o qual emergiu na dcada de 1960, na mesorregio do Agreste de Pernambuco, mais precisamente na microrregio do Alto Capibaribe. O municpio de Santa Cruz do Capibaribe dista 180 km da capital do estado, Recife, e faz parte de um territrio tradicionalmente denominado Cariris Velhos, com baixa densidade pluviomtrica e solos rasos. Historicamente essa iniciativa tem tido como caractersticas principais o trabalho domiciliar, familiar e informal.

    Tal fenmeno comercial/produtivo se instituiu nas dcadas de 1950 e 1960, num primeiro movimento, tendo como matria-prima os retalhos trazidos das fbricas txteis do Recife, as costureiras dos stios como fora produtiva e os tropeiros como vendedores ambulantes, seguidos dos sulan-queiros como feirantes itinerantes e divulgadores do produto sulanca. Pos-teriormente, o segundo movimento resultou das migraes dos retirantes da regio de Santa Cruz do Capibaribe e entorno, no Agreste pernambucano, e da rede comercial que se estabeleceu com So Paulo para o aproveitamento dos retalhos provenientes das fbricas txteis daquele centro industrial, os quais se adicionariam aos resduos das fbricas do Recife, como matria-prima

    * Doutora pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Pesquisadora do grupo de pesquisa Trabalho, Desenvolvimento e Polticas Pblicas (UFCG/CNPq). E-mail: [email protected].

    1 Supostamente o vocbulo sulanca deriva da palavra helanca, fibra sinttica em voga nos anos 1960/1970, que vinha do Sul. Portanto, sul + helanca = sulanca.

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    para as costureiras confeccionarem produtos populares, que passaram a inte-grar o circuito das feiras livres percorridas pelos sulanqueiros.

    Esses mercados improvisados, temporrios e itinerantes, as feiras livres que marcam a cena do Agreste, remontam aos primrdios da colonizao do Agreste. A primeira feira livre tradicional instituda na regio foi a de Caru-aru, no fim do sculo XVIII, quando se formou um povoado oriundo de uma fazenda que servia de paragem para os viajantes no caminho do litoral/ser-to, um dos caminhos das boiadas observado em Abreu (1975). Depois, com a construo de uma capela nesse lugar, as pessoas comearam a se fixar em torno da igreja, constituindo um ponto de encontro para comrcio e lazer nos dias de liturgia a tradicional Feira de Caruaru estudada por Ferreira (2001).

    Esse mercado informal, improvisado e popular, denominado feira, um espao que concentra atividades diversas, ligadas ao comrcio, produo e ao consumo, assim como aos campos da cultura e da poltica. Esse tipo de mercado livre constitui verdadeiros complexos culturais para onde conver-gem vrios ofcios e modos de fazer, espaos de grande criatividade, celeiro de cultura popular, de ideias originais, saberes ancestrais e expresses diversi-ficadas, como argumenta SantAnna (2010). Portanto, consideramos que as feiras refletem o modus vivendi dos povos dessa regio, os hbitos e costumes, nos termos de Thompson (1998), representados nesse mercado improvisado.

    A Feira da Sulanca se estabeleceu e se desenvolveu na regio a partir da dcada de 1950 at os anos 1980. A partir da dcada de 1990, devido ao seu grande sucesso, tem havido esforos de regulao, formalizao e reestrutu-rao das atividades ali estabelecidas pelas instituies oficiais que, a partir da dcada de 2000, passaram a denomin-la Polo de Confeces do Agreste de Pernambuco. A criao do Polo, ao mesmo tempo, faz parte das estra-tgias de marketing dos sulanqueiros, dirigidos pelo Sebrae, para tentar se livrar do estigma que carrega o termo sulanca, significando produto de baixa qualidade, de feira. De acordo com Alexandre Lima (2011), pesquisador do Grupo de Pesquisa Trabalho, Desenvolvimento e Polticas Pblicas, na sua dissertao de mestrado sobre o Sebrae de Caruaru, as principais metas e objetivos deste rgo junto ao Polo so: desenvolver pequenos negcios; promover a acessibilidade desses empreendimentos tecnologia; incentivar o empreendedorismo; viabilizar o acesso s linhas de crdito; implantar a ges-to do conhecimento; apoiar o comrcio de produtos. Outra iniciativa que faz parte dessas estratgias a construo de shoppings onde os sulanqueiros

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    expem seus produtos em lojas, e no mais em bancos de feira em reas ao ar livre, tentando assim agregar valor ao seu produto e promover uma valori-zao da regio.

    Buscamos, atravs da histria oral, esclarecer alguns pontos na evoluo desse fenmeno, principalmente no que diz respeito s transformaes tec-nolgicas e aos costumes.

    Metodologia

    Como metodologia, recorremos a estratgias de pesquisa baseadas cen-tralmente na histria oral de vida dos atores sociais que compem esse com-plexo comercial/produtivo. A partir do relato oral (depoimentos e narraes individuais livres), foi possvel esclarecer vrios pontos ainda obscuros na histria da sulanca.

    De acordo com Bom Meihy (2005), a histria oral um recurso moderno usado na elaborao de documentos referentes experincia social de pessoas e de grupos. A histria oral de vida, uma das modalidades da his-tria oral, corresponde narrativa do conjunto da experincia de vida de uma pessoa. As histrias de vida tm sido usadas com a inteno de entender a sociedade nos seus aspectos ntimos e pessoais. A histria oral como meto-dologia de trabalho cientfico tem sido usada na academia brasileira como herana da tradio anglo-sax. Paul Thompson (2000), socilogo e histo-riador social britnico, utiliza essa reflexo como mtodo para sua pesquisa cientfica o sujeito social, o colaborador, fica mais vontade para narrar sua experincia pessoal. As perguntas servem apenas como indicativo, colocadas de forma ampla, dando maior liberdade ao sujeito para dissertar. Para con-duzir as entrevistas das histrias orais de vida dos protagonistas da sulanca, utilizamos uma espcie de linha do tempo, possibilitando aos entrevistados mergulhar nas histrias de vida dos seus ancestrais do stio, na experincia herdada e narrar o envolvimento com as atividades da sulanca. Solicitamos aos entrevistados uma narrao livre a partir da origem de seus ancestrais (lugar e condies de vida) e depois do seu prprio nascimento e, ento, sua histria de vida.

    A realizao de entrevistas livres, gravadas e transcritas, com os prota-gonistas da Feira da Sulanca foram ferramentas fundamentais para esclarecer vrios pontos da histria da sulanca. Ao todo realizamos trinta entrevistas,

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    principalmente com os pioneiros da sulanca e com a gerao dos filhos que deu continuao ao negcio da sulanca. As entrevistas foram realizadas durante os anos de 2012 e 2013 no mbito da pesquisa da minha tese de doutorado intitulada Era o tempo do pano na porta: instituio e desenvol-vimento da Feira da Sulanca dos anos 1950 aos anos 1980 (Burnett, 2014).

    Transcreveremos algumas entrevistas livres de alguns protagonistas da instituio da Feira da Sulanca seguidas de suas respectivas anlises. A pri-meira histria de vida foi narrada por dona Creusa, uma das pioneiras da sulanca.

    Era tudo na base da confiana

    Eu nasci no stio Olho Dgua do Pcaro, no municpio de Brejo da Madre de Deus, e meus pais vieram praqui [Santa Cruz do Capibaribe] na dcada de 50. Eu nasci em 46, eu ainda era menina. No stio, a terra era deles e eles trabalhavam na agricultura, no roado, era pobre. A eles vieram praqui e eles comearam a negociar, meu pai levava carvo, ovos, queijo para o Recife. Tinha as pessoa do stio que traziam aqui pra casa. Eram 12 irmos, cinco mulheres e sete homens. O stio ficou l meio que abandonado e a depois meu pai vendeu bem baratinho pra um sobrinho da minha me. Meu pai trocou uma madeira do stio numa casa aqui em Santa Cruz. A a gente j veio morar em casa prpria. A ele comeou a negociar. E minha me, toda vida foi muito trabalhadeira, a ela matava galinha e fazia aqueles pratinho e mandava os menino vender pelas casa, pelas porta. A, ela fazia tambm cocada, essas coisa. A ela comeou a comprar uns retalhos.Meu pai fretava um caminho que levava a carga dele pro Recife. O ponto dele era no Largo da Feira de Casa Amarela. Ele tinha uma barraca ali no Largo da feira. A ele voltava na marinete. Ele vendia em grosso para os clientes revenderem. A minha me comeou comprando aqueles retalhi-nhos e comeou a fazer coberta. Naquele tempo era retalho bruto mesmo. Primeiro comprava a seu Dom Rodrigues que esses retalhos vinham da Macaxeira [Cotonifcio Othon Bezerra de Mello, conhecido como Fbrica da Macaxeira, que como se denomina o bairro onde ela fica situada]. A ela fazia coberta, shortinho, vestidinho, mas tudo emendado, sabe? Esses tropeiros, galinheiros, levavam essa mercadoria pra vender no serto. Eles trocavam tambm por galinha, ovos, queijo e rapadura. Levavam tambm

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    loua pra vender l. Eles levavam nos burro, era por isso que chamavam de carregao, a sulanca, no incio, era bem bruto. A depois o pessoal come-aram a viajar pra So Paulo e trazer retalho de l.Minha me entregava a mercadoria aos tropeiros que trocavam por galinha, ovo, queijo, rapadura. A quando eles chegavam aqui, vendiam as galinhas e pagava ao pessoal. Seu Adrio Rodrigues, que a gente chamava seu Dom Rodrigues trazia os retalhos da Fbrica da Macaxeira e vendia aqui e vol-tava com o dinheiro. Ele tambm negociava com algodo, comprava aqui e vendia no Recife. Na poca era na mquina de mo, que rodava na mo. A depois seu Brs de Lira comeou a trazer mquina de p de So Paulo. Ele foi muito bom pro povo. Ele vendia as mquina fiado e o povo ia pagando a prestao. Era tudo na base da confiana, anotado num caderno. A depois comeou vim a helanca do Sul, por isso que sulanca. A depois comeou os sulanqueiros, a no era mais tropeiro e galinheiro. A eles levavam essa mercadoria pra Bahia e pra outros estados. Mas, principalmente, o primor-dial de tudo foi a Bahia. Os retalhos continuaram vindo da Macaxeira, mas tambm do Brs. A vendia aos sulanqueiros.Quando comeou, o pessoal que fabricava no vendiam, eles repassavam a mercadoria pra os sulanqueiros que revendia nos outros estados. As costu-reiras faziam as roupas e entregavam aos sulanqueiros pra vender nas feiras. Na semana eles faziam a rodada em vrias cidades l que eles comerciali-zavam a sulanca. At hoje continua. A na dcada de 60, 70, a carregao virou sulanca. Eles ia de caminhonete, nibus, Toyota. No era consignado porque eles no devolviam a mercadoria que sobrava. Quando eles volta-vam eles pagavam as costureiras. Era o mesmo procedimento dos tropei-ros e galinheiros, era tudo na base da confiana, s pagava quando voltava. Geralmente vendia tudo, se sobrasse no devolvia.Foi da quando surgiu a feira. O pessoal comeou a botar os bancos na feira. Minha me vendia um tipo de tecido chamado calandra. Eu no sei pra que o povo queria aquilo no. Era um tipo de tecido grosseiro. Era como um tecido de algodo meio manchado. Calandra era um tipo de tecido dos retalhos. Ela vendia no peso. Banco ela s tinha de retalho, no vendia sulanca no. Minha me era costureira. Mais tarde, a gente foi que botou, os filhos. Ela vendia as roupa pros sulanqueiros. Alguns desse sulanqueiros se tornaram altos comerciantes aqui de Santa Cruz.A feira comeou na rua Siqueira Campos. O pessoal comeou a botar uns banquinhos, a vender nas caladas. Depois foi se expandindo. A feira livre na Avenida Padre Zuzinha, onde tem a igreja. A sulanca ttulo de Santa

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    Cruz, comeou em Santa Cruz. Outra e qualquer cidade, como Caruaru, Toritama, j vieram depois de Santa Cruz. Santa Cruz foi onde comeou tudo. Sulanca de Santa Cruz, foi onde tudo comeou e minha me foi uma das pioneiras. Eu fao parte dessa histria.A gente aprendeu a costurar desde pequena, nem alcanava na mquina. Cinco filhas, minha me ia ensinando, na mquina de mo, depois era mquina de p, no pedal. Minha primeira overlock eu comprei pelo Banco do Brasil. (Rocha, 2013).

    O stio e o roado esto presentes na origem da sulanca e a centra-lidade sempre a famlia. Os nexos de confiana nas relaes comerciais representam o conceito dos valores essenciais da vida humana de Polanyi (2000), encontrados na tradio, os quais, segundo o autor, se perderam com a Revoluo Industrial. Com a expanso da Feira da Sulanca essas rela-es tambm se transformaram. Karl Polanyi (2000, p. 58), na sua obra A grande transformao, tambm comenta que as condies sociais da Revo-luo Industrial formaram um verdadeiro abismo de degradao humana. Os trabalhadores se amontoavam nas chamadas cidades industriais da Ingla-terra, as quais desumanizavam o povo da zona rural em habitantes de bairros improvisados e desintegravam as famlias. Houve uma desarticulao social simultnea a um vasto movimento de progresso econmico Um novo credo totalmente materialista o qual acreditava que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade ilimitada de bens materiais (Polanyi, 2000, p. 58).

    A pesquisa de Glauce Campello (1983) para sua dissertao de mes-trado em geografia intitulada A atividade de confeces e a produo do espao em Santa Cruz do Capibaribe, coordenada por Manuel Correia de Andrade e orientada por Tnia Bacelar, alega que at aproximadamente o final de dcada de 1960 a cidade de Santa Cruz do Capibaribe, no contexto do estado, era um centro urbano inexpressivo com atividades urbanas res-tritas s funes administrativas e um pequeno comrcio local, tendo na feira, o ponto de convergncia dos produtos e da populao, como acontece com todas as pequenas cidades do interior do Nordeste (Campello, 1983, p. 36). A pesquisadora salienta que a base econmica do municpio era a cultura agropastoril algodo/pecuria/lavoura de subsistncia, refletindo as condies precrias da natureza e o processo de povoamento, como em todo o Agreste. Alguns depoimentos na pesquisa de Campello (1983) narram

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    experincias em que os credores tomavam as mquinas e a produo das costureiras quando elas no conseguiam pagar as prestaes, j no incio da dcada de 1980.

    Constatamos, atravs da narrativa, que as transaes comerciais dos tropeiros e galinheiros se davam atravs de escambo, ou seja, atravs de tro-cas, elas no eram monetarizadas. Esse tipo de transao tambm denota a economia margem do sistema formal no qual os consumidores de sulanca viviam, ou seja, no existia dinheiro disponvel para o consumo e por isso mesmo eles tinham de lanar mo do escambo. Era necessrio viajar em dire-o ao serto para trocar a mercadoria transportada nos lombos dos burros e, posteriormente, nas caminhonetes galinheiros. Na volta, eles conseguiam vender a mercadoria que resultou do escambo, por dinheiro, com o intuito de pagar as costureiras, as quais compravam os retalhos a preos mdicos, costuravam as peas de roupa e cobertas e as confiavam aventura dos tro-peiros mascates.

    Observamos que o ofcio de costureira era transmitido oralmente de gerao para gerao que de acordo com Thompson (1981) uma trans-misso de experincias sociais, da sabedoria comum da coletividade, costumes que se reproduzem ao longo das geraes e se perpetuam pelas tradies. De acordo com a entrevista de dona Creusa, a me passou seu ofcio para as filhas quando ainda eram pequenas, na realidade com intuito de ter a ajuda delas, o trabalho em famlia, como no roado do stio. Essas mulheres eram as encarregadas de prover vestimentas para toda a famlia, de com-prar os retalhos e fazer roupa para a famlia inteira. Da mesma forma que as sobras do roado eram vendidas na feira, ou mesmo outros produtos como as panelas de barro feitas com a argila do rio, as colheres de pau entre outros produtos, as mulheres comearam a costurar para fora com o objetivo de complementao da renda do stio.

    O circuito das feiras livres

    A feira livre nordestina se d num circuito itinerante numa microrre-gio. Por exemplo: a feira tradicional de Santa Cruz acontece s segundas--feiras, a de Jataba na sexta-feira, j a de Caruaru, que foi a pioneira e a maior, tem lugar no sbado. Dessa forma, o feirante ter diversas oportuni-dades de oferecer seu produto na mesma semana com pouco deslocamento,

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    ou seja, numa distncia curta, dentro da mesma regio. Caruaru, como uma cidade maior, alm da feira central aos sbados, tem tambm as dos bairros: no domingo no bairro de So Francisco, na segunda-feira no bairro do Salgado e assim por diante. Alguns feirantes ficam somente nesse circuito municipal. Estas so as caractersticas de base da feira nordestina: improvi-sada, temporria e itinerante. O que os sulanqueiros fizeram foi expandir esse circuito microrregional e ampliar sua rea de atuao. Por exemplo: numa semana o sulanqueiro se deslocava para a regio de Feira de Santana, na Bahia, e fazia o circuito daquela regio. Na outra semana ele se deslo-cava at a regio de Barreiras, tambm na Bahia, e fazia as feiras da semana naquela rea. Ento, eles voltavam para Santa Cruz, pagavam as costureiras, se reabasteciam e saam em busca de outro circuito de feiras. Dessa forma, o produto sulanca ficou conhecido pelo Nordeste afora. Devemos ressaltar que atualmente o termo sulanqueiro se refere a qualquer pessoa que tenha uma atividade qualquer ligada fabricao e comrcio de sulanca, ou seja, que atue no universo mltiplo e diversificado que se tornou a sulanca, como j foi observado em Burnett (2013).

    A pesquisadora Marie France Garcia, na sua tese de doutorado inti-tulada Feiras e trabalhadores rurais: as feiras do brejo e do agreste paraibano, afirma que as feiras escondem realidades sociais distintas a partir das prti-cas dos seus agentes e dos significados que lhes so atribudos. A feira, alm de ser um lugar de trocas, funciona tambm como um elemento de articu-lao social, com significaes diversas de acordo com a estrutura em que se insere. Segundo a autora, a feira significa para os pequenos produtores e trabalhadores rurais um local privilegiado de abastecimento, de realizao do valor da pequena produo e de exerccio de uma atividade complemen-tar de compra e venda (Garcia, 1984, p. 6). Garcia segue argumentando que a feira livre significa para o trabalhador rural um espao social onde ele se sente mais livre e autnomo em relao aos grandes proprietrios. De acordo com o socilogo Valmir Pereira da Silva (2005, p. 137), a feira uma instituio social, onde os personagens consumidores e negociantes assu-mem o compromisso de serem seus protagonistas principais, a enredarem seus caminhos, transformando-a num grande cenrio mvel, investido de significados distintos.

    Outra narrativa esclarecedora a de dona Gersina, que analisamos a seguir.

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    Era o tempo do pano na porta

    Eu vim pra Santa Cruz no ano de 55. Eu nasci em 1943 no stio Caldeiro, municpio de Brejo da Madre de Deus, com 10 irmos. O stio era do meu pai, ele criava gado, eles traziam lcool l do sul2 no lombo do burro, lcool e acar. Desde do ano de 55 que eu moro nesta casa. Tinha uma venda nesta casa, uma bodega. Meu pai negociava, trazia caf de Taquaritinga pra vender aqui. Meu irmo era que tomava conta da bodega e meu pai negociava com caf, essas coisas, que ele trazia de Taquaritinga, e j tinha as pessoa que comprava o caf. Ele fazia cachaa no alambique atrs de casa. Vendia o caf em saco, em grosso, vinha as pessoa pra passar pra frente. Ven-dia farinha, vendia tudo. A feira sempre foi toda vida aqui nessa rua, pra l a matriz. Vendia feijo, secos e molhados.As mulheres casaram, outros foram embora pra So Paulo. Eu comecei a costurar com o tempo. Eu estudava numa escola aqui que era de dona Lcia. S era gado Santa Cruz. A minha me no costurava, no. A sulanca comeou ali na rua do Ptio. Tudo o que se fazia, vendia. Foi essa Santa Cruz foi to abenoada. O comeo do povo foi nessa cidade. Comeou mesmo l pra baixo, perto do aougue. O que levasse pra vender ali na rua do Ptio, todo mundo vendia. Tudo comeou em Santa Cruz e continua aqui. Eu comecei a costurar numa maquinazinha de p, no era a motor. Eu fazia saia e short. Da arrumei outra pessoa pra costurar. Comprava reta-lho por quilo. Ia pra feira, com as trouxas na cabea, era, levava. Naquele tempo no tinha essa danao de bandido. A pessoa saa daqui de noite, de madrugada. Ia prali vender, quando chegava l botava o pano no cho. Cinco hora da manh tava dento de casa com o dinheiro no bolso. O que se fazia se vendia. Graas a Deus, Santa Cruz deve tudo a Santa Cruz. O pessoal vinha do Acre e ainda vm umas pessoa comprar aqui com a gente, elas, com eu e a minha filha. A minha menina agora tem representao. Elas vm do Rio Branco. Vem gente do Par, Maranho, Piau, Bahia. Tem gente daqui que t morando no Maranho, interior do Par, tem muita gente daqui morando l, vem buscar mercadoria aqui, na Bahia tambm, o acesso mais fcil Irec, Barreiras.Nunca parou de vim retalho do Recife, tinha umas apara quadrada, reta-lho bom, fazia vestido, saia, fazia tudo, emendava os retalhos. Depois eu

    2 Sul neste contexto significa Zona da Mata Sul.

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    comecei a comprar o brim de Lourinaldo e fazer short. Quando ns che-gava na feira o povo j tava esperando, todo mundo. Eu j sa daqui at uma hora da madrugada. Naquele tempo eu ia sozinha, eu e Deus, nunca vi nada, tu acredita? Naquele tempo a gente deixava um pano escorado na porta, quem fosse chegando pra dormir ia entrando, escorava o pano na porta. Era o tempo do pano na porta. Era isso mesmo! Quem fosse che-gando ia entrando. E hoje, Jesus misericrdia, tudo trancado, t demais! Aqui tinha umas cacimba no rio Capibaribe com areia fina. O sapoli era de areia fina do rio, num tinha essas coisa de detergente no. (Marques, 2013).

    A bodega descrita no depoimento, emblemtica do cenrio socioecon-mico de Santa Cruz do Capibaribe, era na realidade a casa familiar do stio trasladada para a zona urbana. A famlia inteira morava nos cmodos que se seguem ao armazm, e o quintal ainda acomodava o alambique onde se fazia a cachaa que era vendida na frente. No existia separao entre o ambiente familiar e o ambiente de trabalho, e essa relao continuou na produo domiciliar familiar de sulanca.

    O trabalho de Maria Gilca Xavier, Luis de la Mora e Mnica Luize Sarabia (2009) mostra a transformao da paisagem urbana em Santa Cruz do Capi-baribe, cuja feira, que comeou na Rua Siqueira Campos, j ocupava 28 ruas do centro da cidade. A mudana ocorreu a partir do novo empreendimento comercial denominado Santa Cruz Moda Center. De acordo com a autora, essa mudana foi feita atravs de planejamento urbano, frente s necessidades da sociedade e do capital (Xavier; De la Mora; Sarabia, 2009, p.2). A pes-quisadora salienta no artigo que em sua tese de doutorado O processo de pro-duo do espao urbano em economia retardatria: a aglomerao produtiva de Santa Cruz do Capibaribe (1960-2000) observou que a expanso da atividade econmica e urbana ocorrida nas dcadas de 1980 e 1990 foi devida rees-truturao no processo de desenvolvimento do pas, diminuio do parque industrial no centro-sul, reduo de oferta de emprego formal e ao declnio das migraes internas (Xavier; De la Mora; Sarabia, 2009, p. 2).

    O depoimento se refere a essa transformao de uma simples feira local e pacata, que, ao se expandir, deu origem construo de um centro comercial imenso, aos moldes de um shopping center. A narrativa ainda se refere atrao de forasteiros que convergiram para Santa Cruz do Capiba-ribe, interessados nas oportunidades de emprego e negcios elementos ex-genos cultura de origem.

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    Outra narrativa muito importante foi a de Seu Mauro Feitosa, que indica o movimento de expanso, o Ponto de Mutao da sulanca e as redes comerciais de parentesco e amizade que se estabeleceram com So Paulo.

    Essa tatuzinha ainda funciona e tem no mnimo uns 150 anos

    Eu nasci no stio Garrote, municpio de Brejo, em 1938. Ento eu vivi l at a idade de trs, quatro anos. Meu pai trabalhava na agricultura. Depois ns mudou pra Paulista, a terra dos Lundgren, naquela poca dos coro-nis. J tinha duas fbricas de tecido. Minha me teve 11 filhos, criou-se nove, quando ns mudou pra Paulista pra trabalhar naquela fbrica dos Lundgren, meu pai e minhas irms foram trabalhar na tecelagem e na fia-o. Ele no vendeu o stio, ficou a casa l sem ningum. E l foi aquelas moa tudo trabalhar naquelas fbrica, enquanto tudo em casa, tudo bem, seis pessoa trabalhava pra manuteno da casa. A depois foram casando, ficou somente umas trs pessoas em casa, que no trabalhavam na fbrica, a no dava mais pra sobreviver l. Ns morou oito anos l em Paulista, a ns voltou novamente pra o stio Garrote, a nessa poca foi trabalhar total-mente na agricultura pra sobreviver. A depois no deu mais pra sobreviver trabalhando na roa e a meu pai mudou pra Santa Cruz. Foi quando ele vendeu esse stio, fez uma casa em Santa Cruz e veio morar aqui. A profis-so dele chamava marchante, matava criaes, n? Bode, carneiro, boi. Eu era sapateiro naquela poca e com 20 anos eu fui embora pra So Paulo. Fui trabalhar em calado l. Trabalhei um ano em So Paulo, a meu cunhado era chefe de uma mecnica l e ele me colocou na mecnica. A foi quando eu passei a aprender a profisso de mecnico. Ainda consegui registrar na minha carteira quatro profisses dentro da metalrgica. Eu trabalhava na Vila Maria e morava perto da Penha. Eu ia de bicicleta de l pra Vila Maria. Quatro filhos, os trs primeiros nasceram em So Paulo e a ltima nasceu aqui. Eu queria no era vir morar mais no Norte, eu no queria mais nunca vir mimbora praqui, eu queria passear pelo menos, mas no tinha condio de vir passear. A um dia um homem arranjou uma pas-sagem de graa pelo exrcito e eu vim passear com a famlia, a mulher e trs filho. Quando eu cheguei aqui, tudo bem, fiz o passeio, a voltei sozinho pra So Paulo, por que no podia pagar a passagem de volta e eles ficaram.

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    A eu fiquei em So Paulo sem mulher, sem filho, s olhando... hi! agora deu certo: eu perdi a mulher e trs filho, no posso mais ir buscar. Como eu passei uns dias afastado, a fiquei desempregado, mas eu tinha conseguido fazer uma casinha l. A eu fiz como diz o matuto: colocar fogo no rancho e sair de dento. Primeiro, eu comprei uns retalho fiado a um cidado l, pra vir vender em Santa Cruz e com o lucro voltar com a famlia pra So Paulo. Eu deixei empenhado, porque naquela poca eu estudava msica, eu tinha um saxofone a deixei empenhado l, pelos retalho. Peguei os pano dele e trouxe pra Santa Cruz. Cheguei aqui ningum quis de graa, porque era um negcio que no dava pra regio. A eu peguei aqueles pano, a eu fui costu-rar eles em Santa Cruz, fazer calo, porque o preo no dava pra vender os pano aqui. A eu tive que confeccionar eles, fazer o que chamam de sulanca. Fazer aqueles calo de homem emendado, fazer o que chamam coberta de retalho. Porque era umas tira grande daquele tecido daquela poca que cha-mava de percal. Naquela poca eu botei 33 costureira dos stio que costurava nas maquininha de p. Elas ia pegar l em casa e depois trazia as coberta, no era s dos stio, era de Santa Cruz tambm. Os pedao menor fazia coberta e os pedao maior fazia calo de homem, emendava e fazia calo. Ento quando eu desmanchei aquela mercadoria toda em sulanca, como se cha-mava, vendi a sulanca por aqui e o que foi que eu fiz: agora eu vou voltar pra So Paulo, sozinho a voltei. Voltei, mas no tinha o dinheiro todo e tive que convencer ao cidado: eu comecei a estudar msica, mas muito dif-cil, porque ele tinha um filho que estudava msica, tem esse instrumento, serve pra o seu filho, pra ele ficar com o saxofone e eu descontei na conta. Quando eu cheguei l, agora eu j sei o que que compro pra levar pra Santa Cruz. A cheguei pelo Brs, pegava resto de confeco, uns eu pagava, outros me davam, aqueles retalho de malha. Tinha uns pedao de malha que ia pras mquina e virava bucha de limpeza. E comecei trazendo retalho de malha, mas deu zebra tambm, porque a malha, pra costurar, tem que ser em mquina overlock, no pode ser nas mquina que era antigamente, mquina comum, estoura a costura. Resultado: comeou a dificuldade de eu trazer aquelas malha, umas eu ganhava, outras eu comprava. Agora eu vou fazer o seguinte: eu vou levar uma mquina semi-industrial, uma maqui-ninha pequena pra Santa Cruz e vou costurar isso a pra o pessoal ver, que quando o pessoal v que realmente funciona pra costurar malha, a vo me comprar meus retalho, pra formar uma freguesia com isso a. A eu trouxe essa tatuzinha, ento, eu trabalhando em casa, eu e minha mulher, a vinha o pessoal, as mulher olhar como era que fazia e eu ensinava pra elas. Seis,

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    sete, oito mulher olhando eu fazer aquilo e eu explicando, assim melhor porque trabalhar com as malha d mais lucro. Mas, a minha inteno na poca no era vender mquina, era vender os retalho que eu trazia. A gente precisa ter muita preciso pra inventar alguma coisa. A comearam a com-prar mquina aqui no Recife, naquela poca era a Faf, a Juki e a Pan cos-tura, era essas trs firma que vendia mquina em Santa Cruz. A comeou a inveja dessas trs firma oferecendo dinheiro pra eu ficar representando aquela firma em Santa Cruz, que aquilo dava certo. Se eu j voltei de So Paulo pra no ser empregado, eu vou ser empregado de vocs aqui? No quero, no. Eu vendo as mquina de vocs e no quero nada. A coloquei a Faf, a Pan costura e a Singer, o pessoal ia me perguntar quando ia comprar as mquina, que mquina que eu compro. A, eu, compre tal mquina, at que comeou os fabrico com mquina industrial. A mercadoria que eu fabri-cava eu vendia pra o povo revender na Bahia, os sulanqueiros, no caderno, na confiana. Ainda hoje eu uso. Nesse vai e vem pra So Paulo pra comprar esses retalho, foi quando surgiu na rua So Caetano uma maquininha, a eu comprei pra trazer e depois dessa mquina eu comecei a conhecer as firma que vendia mquina usada, a eu fui numa, fui noutra. A j comprei outra mquina. Cada viagem que eu ia, eu comprava uma mquina pra mim, pra costurar em casa. A foi que comeou a histria de mquina em Santa Cruz. O dono dessa maquininha l em So Paulo, eles com a honestidade deles, disse: o senhor vai levar essa mquina pra l e quando essa mquina que-brar como que o senhor vai fazer? Venho passar uma hora mais ou menos dentro da sua oficina aqui com os seu mecnico e eu quero s que ele me explique como o funcionamento dessa mquina, e o resto deixe comigo, porque eu trabalhava em mecnica, s que no era de mquina de costura, era de fabricar mquina, mas mquina pesada, eu trabalhava pelo desenho mecnico. No era assim a olho, era pelo desenho. A eu tinha muita noo de mecnica e ainda tenho. S que o resultado: ele no queria que eu trou-xesse a mquina porque no ia ter quem desse a manuteno dela. Mas a eu me virei e a eu no tive dificuldade, no. Essa tatuzinha ainda funciona e tem no mnimo uns 150 anos, que eu j comprei usada. Depois tornou-se isso a em uma oficina grande, eu tinha uma oficina grande, cheguei a trabalhar com 30, 40, 50 pessoa. Tinha uma firma de vender mquina e assim por diante. Eu tinha que vender a mquina e dar a garantia, eu tinha que ter a oficina. Sim, eu fabricava as pea dela tambm. Todas as pea de uma mquina, eu s no fabricava a agulha, mas o resto, fazia tudo, tinha o torno, plaina, tinha tudo isso. A maioria das mquina agora tudo chinesa. (Feitosa, 2013).

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    A narrativa nos mostra as estratgias da famlia do stio com intuito de complementao da renda familiar e observa que j nos anos 1940 havia uma indstria txtil florescente no Recife e j havia tambm uma migrao de tra-balhadores para essa indstria. De volta, mais tarde, a reproduo social no foi mais possvel no stio e eles mudaram para a zona urbana. No obstante, devemos ressaltar que a emancipao poltica de Santa Cruz do Capibaribe s se deu em 1953, at ento, se tratava de um distrito rural de Taquaritinga do Norte. Portanto, durante a dcada de 1950, a recente cidade de Santa Cruz do Capibaribe reproduzia ainda os costumes de uma comunidade rural, como informam os depoimentos.

    Mas, como era a indstria txtil em Pernambuco na dcada de 1940, quando comeou a se configurar o comrcio de retalhos entre Recife e Santa Cruz do Capibaribe? A pesquisa de Philip Gunn e Telma de Barros Cor-reia (2005) sobre a industrializao brasileira mostra que a indstria txtil se estabeleceu no Recife no fim do sculo XIX, primeiramente com a Compa-nhia de Fiao e Tecidos de Pernambuco, a Fbrica da Torre, em 1884. Na dcada de 1890, incio do perodo republicano, com novos ativos industriais na bolsa de valores, houve a instalao da Companhia Txtil de Aninhagem, no bairro central de So Jos. Ao mesmo tempo, na rea de Paulista, perife-ria norte do Recife, a famlia Lundgren instalou a Companhia de Tecidos Paulista, originando um grande ncleo fabril com mais de seis mil casas de propriedade da fbrica, que ficou conhecida pelo Brasil afora pela represen-tao das Casas Pernambucanas, rede de lojas de tecidos, durante todo o sculo XX. Em 1891, a Companhia Industrial Pernambucana, conhecida no Recife como a Fbrica de Camaragibe, iniciou suas operaes no subr-bio do mesmo nome a noroeste da capital. Posteriormente, em 1893, deu-se incio Companhia Industrial Fiao e Tecidos Goyanna, cidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco, no caminho para Joo Pessoa, na Paraba. Em 1895, foi a vez do Cotonifcio Othon Bezerra de Mello S.A., em Api-pucos, bairro do Recife, mais conhecida como a Fbrica da Macaxeira. A Societ Cotonnire Belge-Brsiliene abriu fbricas txteis em pequenas cidades no entorno da capital, como Moreno, a oeste do Recife, no ano de 1908 e, em 1911, em Timbaba, Zona da Mata Norte do estado. Nos anos 1920, foram criadas a Tecelagem de Seda e Algodo de Pernambuco, no bairro central de Santo Amaro, no Recife e o Cotonficio Jos Rufino, no Cabo, sul do Recife, em 1926, como tambm a Fbrica da Tacaruna, entre Recife e Olinda, em 1924, e a Fbrica Iolanda, em Jequi, distrito do Recife,

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    em 1937. Verificamos, ento, que a produo txtil era intensa no Recife durante a primeira metade do sculo XX, fato mencionado no artigo de Burnett (2013).

    Consideramos a dcada de 1960 como o turning point (ponto de muta-o) da sulanca. At ento, as costureiras dos stios aproveitavam os reta-lhos de tecido de algodo rsticos, sem tecnologia sofisticada, que vinham das fbricas do Recife, os quais podiam ser costurados pelas mquinas manu-ais domsticas chamadas de p duro. Os retalhos que comearam a vir do Sul eram de malha, e demandavam uma costura mais cuidadosa, com acaba-mento para no desfiar a malha e as mquinas semi-industriais eram eltricas. Na dcada de 1960, s havia eletricidade nas ruas centrais da cidade, forne-cida por um motor. Na segunda metade da dcada de 1960 foi instalada a ele-trificao fornecida por Paulo Afonso, a qual representou um grande avano na poca. No entanto, a eletrificao tambm era limitada s ruas centrais, os stios continuaram sem eletrificao rural.

    Acreditamos ser este fato a causa mais importante da desruralizao na poca. As costureiras dos stios, para aproveitar as toneladas de retalhos que estavam sendo trazidos de So Paulo, eram obrigadas a se deslocarem para a sede do municpio e comprar uma mquina overlock, como a tatuzinha citada pelo narrador. Foi por isso que o nosso entrevistado trouxe a tatuzinha j antiga e usada (fato comum nas economias perifricas), sendo necessrio empenhar seu saxofone para tal compra. Este outro costume muito cor-rente na cultura do stio: negociar os objetos que possuem.

    Para vender seus retalhos de malha, ele percebeu que seria necessrio ensinar as costureiras como utilizar as mquinas eltricas semi-industriais. Como ele tinha aprendido o ofcio de metalrgico em So Paulo, aprendeu com facilidade a mecnica das mquinas e foi naturalmente se encaminhando em direo ao negcio de venda e manuteno de mquinas e acessrios. Acreditamos que, nesse momento, a produo de sulanca passou de artesanal domstica e rural para semi-industrial urbana. A gegrafa Campello (1983, p. 112) comenta que as costureiras ao ingressarem na economia urbana pro-priamente dita, passam a adquirir outros tipos de mquinas e a ampliar a sua clientela de forma mais significativa.

    Portanto, o ponto de mutao da saga sulanca teve um componente tecnolgico importante. A tecnologia das mquinas domsticas das costurei-ras na dcada de 1960 no acompanhava a tecnologia dos retalhos de tecido vindos de So Paulo. Para aproveit-los tiveram que adquirir uma mquina

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    semi-industrial overlock. O relato tambm confirma as redes de parentesco e amizade, entre migrantes nordestinos, j formadas no centro industrial do eixo Rio-So Paulo em 1958. Tambm confirma o desejo de no ter patro do entrevistado, comum entre os protagonistas da sulanca.

    Consideraes finais

    A sulanca foi produto dessas estratgias de reproduo social, de sub-sistncia do ncleo familiar, resultado dos costumes agrestinos dentro de um contexto socioeconmico particular. As condies fsicas e tecnolgicas fize-ram com que esse ncleo familiar fosse transferido para a zona urbana, sede do municpio de Santa Cruz do Capibaribe e com ele seguiram os costumes do stio. Esse modo de produo do stio continuou sendo reproduzido nessa nova atividade que se apresentou como a estratgia mais vivel para assegu-rar a subsistncia no ncleo familiar: os retalhos que representavam uma matria-prima barata ou at gratuita, a experincia da costureira domstica, a famlia como mo de obra no processo de produo de sulanca, o domiclio da famlia como unidade produtiva e os homens como vendedores e divulga-dores desse produto nas feiras livres, os sulanqueiros, margem do mercado formal.

    Campello (1983) assinala a acentuao do processo de desruralizao no comeo dos anos 1980, a qual j vinha se processando desde a dcada anterior. Segundo a autora, esse resultado acompanha a expanso da ativi-dade de confeces que nos ltimos anos de 1970 toma grande impulso. A autora acrescenta que as modificaes na estrutura de produo do setor agrrio, agravadas pelas estiagens da poca, as quais atingiram sistematica-mente diversas reas da regio Agreste, contriburam da mesma forma para o decrscimo da populao rural e o elevado crescimento da populao urbana. A pesquisadora ainda argumenta que o equilbrio entre a cultura do algodo consorciada com as culturas de subsistncia no mais se observa. A pecuria se expandiu em detrimento das lavouras, e as estiagens sucessivas tambm foram destruindo o resto das lavouras ainda existentes. As condies desfa-vorveis da agricultura propiciaram uma forte emigrao do meio rural, e a populao rural remanescente foi integrada nas frentes de emergncia para o trabalho na ampliao dos audes do municpio. Alm do mais, a maior parte das terras agricultveis era de latifndios para a atividade da pecuria,

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    inviabilizando o sistema de arrendamento e parceria. Esse contexto deu lugar a um processo de desruralizao devido evaso da fora de trabalho do meio rural.

    Porm, apoiados nos depoimentos da nossa pesquisa, consideramos que o fator principal para a desruralizao foi mesmo o tecnolgico. Os retalhos vindos de So Paulo exigiam uma tecnologia mais sofisticada por parte dos meios de produo. Os stios no dispunham de luz eltrica para operar as mquinas semi-industriais. A energia primeiramente chegou somente no centro da sede do municpio. Para obter a instalao de eletrificao na zona rural, o proprietrio tinha que arcar com a despesa, que era extremamente elevada naquela poca e inacessvel aos pequenos proprietrios. Portanto, a soluo mais vivel para fazer face s novas exigncias da produo de sulanca era o deslocamento do domiclio, que era tambm a unidade produtiva, para a zona urbana e, com isso, a costureira domstica, rural e artesanal se trans-formou em semi-industrial e urbana. Teriam elas mudado de domiclio no fosse esse fator tecnolgico? Supomos que no.

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    Resumo: Este artigo pretende analisar a histria do fenmeno produtivo/comercial denominado Feira da Sulanca, configurado durante as dcadas de 1950 e 1960 na Mesorregio do Agreste de Pernambuco, com base nas narrativas dos seus protagonistas. Observamos que o fator essencial que deslocou a produo de sulanca do universo rural para o urbano foi tecnolgico, e transformou a produo de rural e artesanal em semi-industrial e urbana. Como metodologia, utilizamos a histria oral de vida.

    Palavras-chave: sulanca, trabalho, feira, Agreste, Pernambuco.

    The turning point of Sulanca in the Agreste of Pernambuco

    Abstract: This paper aims to analyze the history of the productive/commercial phenomenon called Feira da Sulanca that emerged during the 1950s and 1960s in the region denominated Agreste, state of Pernambuco, Brazil through the narratives of life of its protagonists. We observed that the fundamental factor that shifted the sulanca production from the rural universe to the urban universe was technological and transformed its rural and artisanal production into a semi-industrial and urban production. As methodological approach we used the oral history of life.

    Keywords: sulanca, work, street market, Agreste, Pernambuco.

    Recebido em 25/08/2014Aprovado em 22/10/2014