“o poder para fazer o mal é o mesmo para curar”

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“O poder para fazer o mal é o mesmo para curar” por Patrícia Flores O livro “Muká – A Raiz dos Sonhos” conta a experiência do jornalista Leandro Altheman em um processo de formação espiritual com índios yawanawás do Acre. O relato detalhado de Altheman sobre o que vivenciou junto com esses índios é uma viagem a um mundo inimaginável, são janelas que se abrem em direção a um mundo que consegue ser fantasioso e concreto ao mesmo tempo. Acompanhar o jornalista em sua viagem espiritual de autoconhecimento é pesquisar um pouco sobre a matériaprima de todos nós seres humanos. Durante a leitura do livro, é impossível não pensar em Shakespeare e nas frases de Próspero na peça A Tempestade: “Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”. A obra de Shakespeare é povoada pelo mundo dos sonhos e dos espíritos. É através do contato com um mundo invisível que alguns de seus personagens enxergam o cerne da realidade do mundo “visível”. E é exatamente isso que Leandro Altheman parece ter vivenciado. Em determinados momentos do livro o leitor terá a impressão de também estar fazendo uma jornada ao centro do seu eu ou ainda ao núcleo da nossa sociedade. É importante dizer o sentimento de privilégio que o leitor adquire lendo o livro, pois a experiência do autor não é algo corriqueiro: poucos são “escolhidos” e se mostram dispostos a passar pelo longo e profundo ritual de iniciação espiritual, que tem como base digerir uma raiz sagrada chamada de “Muká” pelos yawanawás. O ritual da raiz de gosto amargo exige uma dieta de um ano sem doces e relações sexuais, além de rituais e dieta de preparação e um período de isolamento de pelo menos dois meses, no qual a dieta se torna ainda mais rigorosa. No isolamento, sem comer nada nas primeiras 24 horas depois de digerir o muká, as refeições das semanas seguintes se limitam a alguns peixes (sem esporão), arroz, banana, feijão, cuscuz, açaí e mais alguns poucos alimentos. O tempero da comida é preparado sem sal, mas com limão e pimenta e não é permitido beber água pura. Tudo isso transforma a caiçuma de milho com seu sabor adocicado na grande “dádiva” da dieta. É como se ela fosse o momento lírico da alimentação. Mergulhamos assim no mundo do muká, do uni, do samakei, do sheki mamã, do shuintiya, do vaná, dos kenês, do nanê, dos saitis, do sepá, do xinã, do vê kuxi, do uriá. De repente, palavras que nunca ouvimos se tornam familiares e enchem nosso pensamento de um ritmo que nunca ouvimos, mas que tomou forma em algum lugar dentro de nós. É linda a capacidade do livro de nos encher de respeito pela cultura indígena. Acompanhamos ali o rico mundo cultural e simbólico de um povo enraizado na floresta. Percebemos a sua relação com a terra, com as plantas e com os animais. E além de ser maravilhoso saber que isso existe, é um aspecto muito importante em tempos em que se continua desrespeitando tanto o direito indígena sobre a terra, com demarcações e desapropriações de terras absolutamente arbitrárias – sem falar nos assassinatos que ocorrem por essa causa. Como seria produtivo se os governantes que decidem sobre as terras indígenas tivessem consciência real da relação do índio com a terra, conhecessem um pouco do respeito, da troca e da sabedoria indígena em relação ao universo no qual todos nós estamos inseridos. E não é que essa relação seja romantizada no livro. O que testemunhamos nos relatos de Leandro Altheman do seu cotidiano em meio aos yawanawás é uma relação concreta, respeitosa e produtiva com a floresta e os seres que a habitam. O que também impressiona no livro é a “convivência” que os índios têm com seus ancestrais. Esses últimos estão presentes no diaadia. Seus desejos e avisos são recebidos através de sonhos e mirações (visões que se tem quando se toma ayahuasca) e muito respeitados. Não se entra aqui no mérito de acreditar ou não em uma

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Resenha do livro “Muká - A Raiz dos Sonhos" de Leandro Altheman

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  • O poder para fazer o mal o mesmo para curar por Patrcia Flores O livro Muk A Raiz dos Sonhos conta a experincia do jornalista Leandro Altheman em um processo de formao espiritual com ndios yawanaws do Acre. O relato detalhado de Altheman sobre o que vivenciou junto com esses ndios uma viagem a um mundo inimaginvel, so janelas que se abrem em direo a um mundo que consegue ser fantasioso e concreto ao mesmo tempo. Acompanhar o jornalista em sua viagem espiritual de auto-conhecimento pesquisar um pouco sobre a matria-prima de todos ns seres humanos. Durante a leitura do livro, impossvel no pensar em Shakespeare e nas frases de Prspero na pea A Tempestade: Ns somos feitos da matria de que so feitos os sonhos; nossa vida pequenina cercada pelo sono. A obra de Shakespeare povoada pelo mundo dos sonhos e dos espritos. atravs do contato com um mundo invisvel que alguns de seus personagens enxergam o cerne da realidade do mundo visvel. E exatamente isso que Leandro Altheman parece ter vivenciado. Em determinados momentos do livro o leitor ter a impresso de tambm estar fazendo uma jornada ao centro do seu eu ou ainda ao ncleo da nossa sociedade. importante dizer o sentimento de privilgio que o leitor adquire lendo o livro, pois a experincia do autor no algo corriqueiro: poucos so escolhidos e se mostram dispostos a passar pelo longo e profundo ritual de iniciao espiritual, que tem como base digerir uma raiz sagrada chamada de Muk pelos yawanaws. O ritual da raiz de gosto amargo exige uma dieta de um ano sem doces e relaes sexuais, alm de rituais e dieta de preparao e um perodo de isolamento de pelo menos dois meses, no qual a dieta se torna ainda mais rigorosa. No isolamento, sem comer nada nas primeiras 24 horas depois de digerir o muk, as refeies das semanas seguintes se limitam a alguns peixes (sem esporo), arroz, banana, feijo, cuscuz, aa e mais alguns poucos alimentos. O tempero da comida preparado sem sal, mas com limo e pimenta e no permitido beber gua pura. Tudo isso transforma a caiuma de milho com seu sabor adocicado na grande ddiva da dieta. como se ela fosse o momento lrico da alimentao. Mergulhamos assim no mundo do muk, do uni, do samakei, do sheki mam, do shuintiya, do van, dos kens, do nan, dos saitis, do sep, do xin, do v kuxi, do uri. De repente, palavras que nunca ouvimos se tornam familiares e enchem nosso pensamento de um ritmo que nunca ouvimos, mas que tomou forma em algum lugar dentro de ns. linda a capacidade do livro de nos encher de respeito pela cultura indgena. Acompanhamos ali o rico mundo cultural e simblico de um povo enraizado na floresta. Percebemos a sua relao com a terra, com as plantas e com os animais. E alm de ser maravilhoso saber que isso existe, um aspecto muito importante em tempos em que se continua desrespeitando tanto o direito indgena sobre a terra, com demarcaes e desapropriaes de terras absolutamente arbitrrias sem falar nos assassinatos que ocorrem por essa causa. Como seria produtivo se os governantes que decidem sobre as terras indgenas tivessem conscincia real da relao do ndio com a terra, conhecessem um pouco do respeito, da troca e da sabedoria indgena em relao ao universo no qual todos ns estamos inseridos. E no que essa relao seja romantizada no livro. O que testemunhamos nos relatos de Leandro Altheman do seu cotidiano em meio aos yawanaws uma relao concreta, respeitosa e produtiva com a floresta e os seres que a habitam. O que tambm impressiona no livro a convivncia que os ndios tm com seus ancestrais. Esses ltimos esto presentes no dia-a-dia. Seus desejos e avisos so recebidos atravs de sonhos e miraes (vises que se tem quando se toma ayahuasca) e muito respeitados. No se entra aqui no mrito de acreditar ou no em uma

  • comunicao que ocorra em um mundo onrico ou alucingeno. No esse o mago da questo. No preciso acreditar nisso para constatar a presena dos ancestrais na vida dos ndios yawanaws. real o fato de que eles acreditam continuar em contato com os que j foram e de que eles levam isso muito a srio e de forma absolutamente conseqente. O mrito do relato de Leandro Altheman que somos apresentados e nos familiarizamos com aspectos como esse da cultura yawanaw aos poucos. Temos a impresso de fazer o mesmo caminho que o autor, de descobrir e de nos acostumar com os novos elementos dessa cultura junto com ele. Suas descobertas, observaes e reflexes so escritas de forma muito sincera e pessoal, o que nos leva a embarcar nessa viagem. Na introduo do livro, o autor escreve: Entendi que revelar minhas expectativas, crenas e vises particulares de mundo seria uma maneira honesta de mostrar ao leitor a subjetividade por trs de meus relatos, em vez de tentar me esconder sobre o manto de uma falsa objetividade. exatamente essa subjetividade do autor que envolve o leitor. Observar o contato com os ndios com os olhos e o ritmo de Altheman faz com que o leitor tenha tempo de se habituar e se afeioar com o mundo yawanaw. Um grande aprendizado do livro tambm o respeito dos ndios em relao aos outros seres humanos, sem se importar com a idade ou a etnia. Eles respeitam, admiram e buscam a troca com outras tribos, ouvem com ateno e inserem em todas as atividades crianas, mulheres, homens e idosos, alm de terem agregado rapidamente um branco no s no seu cotidiano como em rituais sagrados de sua cultura, riqueza imensurvel de um povo. Alis, Leandro Altheman no o nico branco a tomar o muk. No livro, ele conta que um ano antes um antroplogo branco (Txai Terry) tambm fora iniciado no muk. E depois dele, outros brancos tambm tero esse privilgio. Acredita-se ser esse um desejo dos ancestrais. Percebe-se a preocupao dos ndios em explicar tudo com detalhes para o autor, fazer com que o novo agregado esteja realmente informado sobre toda a histria e cultura da tribo. Ele inserido sem distino naquele lugar. Alm disso, os ndios se mostram sempre interessados em ouvir o que Altheman tem para contar. Ali todos se ouvem. Que diferena faria se toda a humanidade seguisse essa linha! Mas a sbia tolerncia dos ndios no os fazem ingnuos, pois eles so tambm fortes e perspicazes. Os yawanaws contam para o autor sobre o perodo em que os missionrios chegaram na tribo. Acolhidos com respeito e hospitalidade, os missionrios mostraram claramente se sentirem superior aos ndios tanto por causa de sua crena monotesta, quanto pelo seu acesso medicina aloptica. Utilizaram os remdios dos brancos como forma de manipular e controlar toda a tribo, tornando-a dependente dos mesmos. Mas os ndios perceberam a manipulao e expulsaram os missionrios de l nos anos 80. Enfim, o livro de Leandro Altheman so viagens a diferentes mundos de um mesmo universo: com ele conhecemos o mundo da floresta amaznica, admiramos e ouvimos as revoadas e os cantos dos pssaros, as vocalizaes dos macacos, o movimento dos peixes e das guas do rio Gregrio, o mundo misterioso das serpentes; com ele conhecemos mundos invisveis, onricos, cheios de cores, smbolos, mensagens, enigmas, sensaes, paisagens e seres emblemticos; com ele conhecemos um pouco do mundo indgena, um pouco dos seus ritmos e cantos, da sua dana, do seu artesanato, das suas relaes familiares e sociais, da sua relao com os elementos naturais que lhes rodeiam; e, finalmente, viajamos com ele no mundo do auto-conhecimento, pois enquanto ele se pesquisa, refletimos tambm sobre ns mesmos e mergulhamos um pouco em nosso interior, em nossos desejos e emoes, em nossa personalidade, em nossa forma de lidar com os outros, com a doena, com a morte, com expectativas, com o amor e claro, com os nossos sonhos, tanto os de toda noite como os de toda a vida.