o plano inferencial de leitura e o ensino de … · todas as críticas e elogios, pelas perguntas e...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
O PLANO INFERENCIAL DE LEITURA E O ENSINO DE
ESPANHOL NA ESCOLA BRASILEIRA: COGNIÇÃO
DISTRIBUÍDA, POLÍTICAS COGNITIVAS E LIVRO DIDÁTICO
DIEGO DA SILVA VARGAS
Rio de Janeiro
2017
O plano inferencial de leitura e o ensino de espanhol na escola
brasileira: cognição distribuída, políticas cognitivas e livro didático
Por
DIEGO DA SILVA VARGAS
Aluno do Curso de Doutorado em Estudos Linguísticos – Língua Espanhola
(Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas)
Tese de Doutorado submetida à Banca
examinadora como requisito necessário
para obtenção do Título de Doutor em
Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos,
Língua Espanhola).
Orientadora: Profª. Drª. Leticia Rebollo
Couto
Co-orientadora: Profª. Drª. Ana Flávia
Lopes Magela Gerhardt
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Junho/2017
O PLANO INFERENCIAL DE LEITURA E O ENSINO DE
ESPANHOL NA ESCOLA BRASILEIRA: COGNIÇÃO
DISTRIBUÍDA, POLÍTICAS COGNITIVAS E LIVRO
DIDÁTICO
Diego da Silva Vargas
Tese de Doutorado submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Doutor em Letras Neolatinas (Estudos
Linguísticos, Língua Espanhola).
Orientadora: Profª. Drª. Leticia Rebollo
Couto
Co-orientadora: Profª. Drª. Ana Flávia
Lopes Magela Gerhardt
Rio de Janeiro
Maio de 2017
Aos meus pais... Por tudo que fizeram para que eu
chegasse até aqui. Por terem tornado esse caminho
tão difícil bem mais fácil. Por terem um filho
doutor desde muito antes desse momento. Em
especial à minha mãe, por ser o amor em pessoa,
por toda força e potência, e por sempre ter
valorizado em mim o que eu pude ser de melhor.
À Marina, de novo, pelo amor de antes, de durante
e de depois. Pela parceria que engrandece minha
vida, pela sorte do encontro e por todas as sortes
que com ele vieram.
AGRADECIMENTOS
Cursar um doutorado é fácil. Escrever uma tese é que é difícil. Estudar,
aprender, sempre foi um prazer pra mim. Escrever também. Mas escrever sob tantas
pressões (a maior delas: o tempo, em um tempo sem tempos) traz, talvez, tantos
sofrimentos quanto prazeres. Não tive forças de escrever esses agradecimentos ao
entregar a versão da banca. Aqui, na versão final, espero conseguir honrar todos aqueles
que tornaram os sofrimentos e as angústias deste meu caminhar acadêmico em prazeres
e alegrias, compartilhando parte de suas vidas comigo e fazendo de mim quem eu sou.
A escrita: sempre ela. Escrevo esses agradecimentos, sabendo que as palavras não serão
justas, entre o medo do esquecimento e a alegria da gratidão.
Antes de tudo, agradeço a minha família, mais uma vez, pela felicidade que é
fazer parte dela. Pelas alegrias compartilhadas, pelas conversas, pelas discussões, pela
união e pelas diferenças, pelo amor mais profundo e mais real. A meus pais, Iva e
Edinésio, por tudo que me ofereceram, por todo o sacrifício, por todo o orgulho e por
toda a liberdade. Por, ainda que nunca tivessem pisado em uma universidade, nunca
terem pensado em dizer uma palavra que tentasse me impedir de chegar até aqui. Por
sempre terem ensinado, a mim e a meus irmãos, que os caminhos somos nós quem
construímos e por sempre terem dado todos os tijolos que podiam para que
realizássemos essa construção. Por sempre terem feito da educação nossa argamassa.
Pelo orgulho de ser filho de vocês e pelo desejo constante de que se orgulhem de mim.
À minha mãe, em especial, por ser, para mim, a melhor definição de mãe, pelo exemplo
de força e de amor, pela melhor companhia e pela dedicação incansável. Aos meus
irmãos, Daniel e Douglas, pelo aprendizado de uma vida, pela história, pela identidade e
pela força de sempre. À minha cunhada Luana, pela torcida e pelo apoio. À minha
sobrinha Sophia, por toda a alegria, pela inspiração, pela inteligência, pelas
brincadeiras, pelas conversas sérias, pelos festejos, pela infância e pela saudade do
convívio diário, que se transforma em um “ti-tiiii-o!!!” a cada visita.
À Marina, minha esposa, agradeço por todo o companheirismo e por todo o
amor, pelas conversas intermináveis, pelas madrugadas, pelos nasceres e pores do sol,
por cada momento vivido junto, pelos sonhos e pelas conquistas, pela paciência, pelos
projetos de vida e pela vida já realizada. Pela força, pelos freios e pelos empurrões, pela
amizade, pelo foco e pelas distrações. Sem você, eu agora não era eu. Agradeço também
à sua família, em especial à sua mãe, minha sogra, Vera, por todo o apoio de sempre. E
agradeço também (e por que não?), à Ruth Paçoca e Raquel Pipoca, nossas gatinhas,
pela companhia, pela admiração e pela graça constantes, e pelo alívio nos momentos de
estresse.
Obrigado também aos amigos que fazem de minha vida uma vida melhor. Aos
que vieram do Colégio Pedro II e ficaram, aos que vieram da UFRJ e ficaram, aos que
vieram dos trabalhos que passaram e ficaram, aos amigos que já fiz nesse tempo de
UNIRIO. Tão diferentes entre si, tão iguais em tudo que me ensinam. Pela amizade,
pela sinceridade, pela paciência, pelo apoio, pelo humor, pela esperança, por se
manterem em minha vida, em meio a tantas vidas.
Ao Colégio Pedro II e seus professores, por definir a minha vida através da
educação pública. Pela definição de educação de qualidade. Pela inspiração. Por me
fazer acreditar tão fortemente na educação pública e por me fazer lutar por ela, onde
quer que eu esteja. Se hoje eu sou doutor, se sou professor de uma universidade pública,
se fui professor de instituições públicas, se faço pesquisa sobre ensino, devo tudo isso
ao CP2 e à luta em que acredito. Amplio esse agradecimento aos professores deste país
que também acreditam nisso e que sofrem diariamente a precarização de suas condições
de trabalho e o desrespeito político e social. Em especial, agradeço aos colegas com
quem compartilhei e compartilho minha trajetória docente, nas escolas e nas
universidades.
À Faculdade de Letras da UFRJ e seus professores, por todos esses anos de
aprendizados e de crescimento. Por me mostrar tantos caminhos possíveis e me fazer
acreditar no papel da universidade pública na construção de nosso país.
Às minhas orientadoras, Leticia e Ana Flávia, obrigado por tudo. À Leticia,
obrigado pela inspiração como professora, pelo engajamento em sua prática nada
reprodutora, pela preocupação e pela dedicação. Pela amizade, pelo carinho, pela
confiança e pela força de sempre. Pelo desejo de mudar e pela ação. Pelo exemplo. À
Ana Flávia, pela crença na pesquisa em ensino, pelo aprendizado durante todos esses
anos de orientação, pela atenção, pelo carinho, pela história compartilhada, pela
confiança, pela crença em meu potencial, pela compreensão, por me ajudar na
concretização de meus desejos acadêmicos e profissionais e por sempre me estimular a
ser quem eu sou, a dizer o que digo. Pelo Cogens. Aos amigos do Cogens, por toda a
parceria, pelas alegrias e angústias somadas e divididas.
Aos professores que compuseram minha banca de qualificação e de defesa, pela
leitura atenta e pelas contribuições para a melhora desta tese e para a minha formação.
Em meio a essa nossa vida cada vez mais atribulada, agradeço que tenham aceitado
dedicar um pouco de seu tempo para lerem meu trabalho, sempre em construção. Sei
que um momento como o da defesa não vai se repetir novamente. Agradeço, então, por
todas as críticas e elogios, pelas perguntas e pelos comentários. Pretendo levar tudo o
que foi dito e todas as inquietações produzidas para meus futuros trabalhos, para minha
pesquisa e para minha prática docente.
Por fim, não poderia deixar de agradecer a todos os meus alunos, todos aqueles
que, de alguma forma, passaram por mim em minha trajetória docente. Agradeço tudo o
que aprendi com vocês, em contextos tão diferentes, com pessoas tão diferentes.
Agradeço e peço desculpas, por, em muitos momentos, não ter conseguido (me)
oferecer mais. Agradeço, nesse momento, aos alunos da UNIRIO, pela paciência e
compreensão nessa reta final de produção da tese, mas, agradeço, em especial, aos
alunos com quem interagi na Educação Básica, principalmente, os do ensino
fundamental que colaboraram e foram “inspiração” para minha pesquisa. Esta tese foi
feita pensando em vocês, é por vocês e para vocês.
“Precious: My name is Claireece “Precious”
Jones, I go by Precious. I live in Harlem. I like
yellow. And I have problems at my old school… so
I come here.
Ms. Rain: Something you do well?
Precious: Nothing.
Ms. Rain: Everybody’s good at something.
Precious: Mm’mm.
Ms Raing: C’mon.
Precious: Well I could cook, and I never really
talked in class before.
Ms. Rain: How does that make you feel?
Precious: Here. It makes me feel here.”
(Cena do filme “Preciosa: Uma História de Esperança” [Precious, 2009], de Lee Daniels)
“No es inteligencia ni es sabiduría
esta es mi manera de decir las cosas
no es que sea mi trabajo, es que es mi idioma”
(Versos de “Amiga Mía”, canção de Alejandro Sanz)
“Por lo que fue y por lo que pudo ser
Por lo que hay, por lo que puede faltar
Por lo que venga y por este instante
¡A brindar por el aguante!”
(Versos de “El Aguante”, canção de Rene Perez Joglar y Eduardo
Cabra – Calle13)
RESUMO
VARGAS, Diego da Silva. O plano inferencial de leitura e o ensino de espanhol na
escola brasileira: cognição distribuída, políticas cognitivas e livro didático. 396f. Tese
de Doutorado em Letras Neolatinas. Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, 2017.
Esta tese, como um trabalho em Linguística Aplicada, busca “criar inteligibilidades”
(MOITA LOPES, 2006) sobre seu objeto central – o trabalho com o plano inferencial de
leitura nos livros didáticos de língua espanhola – e, ao mesmo tempo, contribuir para a
construção de alternativas para os problemas nela apresentados. Para isso, foram
selecionados como objetos de análise documentos e materiais que estão sendo
denominados de objetos reguladores do ensino, uma vez que demonstram “o que se
pensa oficialmente sobre o ensino de” (GERHARDT, 2013) língua espanhola. São eles:
os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira (BRASIL, 1998), os editais
do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2011 (BRASIL, 2009) e de 2014
(BRASIL, 2012) e sete livros voltados para a escola brasileira e produzidos entre os
anos de 2004 e 2013 para o 6º ano do ensino fundamental (dois livros anteriores ao
primeiro edital do PNLD, os dois aprovados no PNLD 2011, um não aprovado nos dois
editais, produzido entre eles, e os dois aprovados no PNLD 2014). Também compõem
os corpora desta tese as respostas dos alunos de uma turma do 6º ano para quatro
atividades de leitura: uma de cada um dos livros anteriores ao PNLD e uma de cada um
dos aprovados no PNLD 2014. Para fundamentar essa análise, parte-se dos princípios
tomados como teórico-éticos da Linguística Aplicada e de estudos voltados para a
compreensão da escola brasileira, das práticas escolares de letramento e da educação
linguística (KLEIMAN, 1995; RAJAGOPALAN, 2003; 2006; 2013; MOITA LOPES,
2006; 2013; PENNYCOOK, 2006; MENEZES, SILVA e GOMES, 2009;
PARAQUETT, 2009; BARROS e COSTA, 2010; GERHARDT, 2013; entre outros).
Além disso, advoga-se pela inserção dos estudos em cognição nesse campo, uma vez
que a tese se propõe a discutir a construção de significados por meio da leitura e o
processo de aprendizagem que se constrói em sala de aula. Assim, defende-se uma visão
de cognição como social e cultural, intersubjetival, corporificada, baseada em frames e
desenvolvida por meio de mesclagens conceptuais (SALOMÃO, 1998, 1999, 2003;
TOMASELLO, 1999; MIRANDA, 2001; FAUCONNIER e TURNER, 2002;
GEERAERTS, 2006a; SINHA, 1999, 2003; SINHA e JENSEN DE LOPÉZ, 2000;
DUQUE, 2015; entre outros); em resumo, da noção de que a cognição é distribuída
(HUTCHINS, 2000; ZHANG e PATEL, 2008; GERHARDT, 2012; 2014; DUQUE,
2014). Incorpora-se também a essa discussão o conceito de políticas cognitivas
(KASTRUP, 2005, 2012, 2015; DIAS, 2012). Com base nisso, define-se a leitura como
desenvolvida por meio de sucessivas integrações conceptuais entre o conhecimento
prévio do leitor e as informações postas explicitamente no texto. Dessas integrações,
surgem as inferências construídas pelo leitor. Estudos sobre a história social do livro
didático (ERES FERNÁNDEZ, 2000; 2012; GERALDI, 2003; BATISTA, 2003; 2004;
BATISTA e COSTA VAL, 2004; GALVÃO e BATISTA, 2009, entre outros) e do
ensino de língua espanhola (CELADA e GÓNZALEZ, 2000; DAHER, 2006;
PARAQUETT, 2009; FREITAS, 2011, entre outros) no Brasil também são trazidos à
tese para que se entenda o contexto histórico que leva a produção dos materiais
analisados. A análise demonstra o predomínio de uma visão de aprendizagem como
recognição e de leitura como reprodução tanto nos documentos oficiais como nos livros
didáticos. Ainda que historicamente se note uma melhora no trabalho com a leitura nas
coleções, em função, principalmente, do PNLD, não se nota ainda o desenvolvimento
de um trabalho didático que tenha sido capaz de alterar o predomínio de uma política de
recognição que leva à formação de aprendizes reprodutores. A escola, então, por meio
desses materiais, acaba desenvolvendo práticas que invalidam os conhecimentos
construídos pelos alunos antes, durante e depois das leituras desenvolvidas em sala de
aula, sendo, assim, silenciados. Considerando o lugar de poder que a escola ocupa na
formação de aprendizes – e, consequentemente, de cidadãos –, urge, então, lutarmos
para alterar essa situação.
Palavras-chave: educação linguística em língua espanhola, leitura, cognição,
inferência, livro didático, políticas cognitivas
RESUMEN
VARGAS, Diego da Silva. El plano inferencial de lectura y la enseñanza de español en
la escuela brasileña: cognición distribuida, políticas cognitivas y libro didáctico. 396 f.
Tesis de Doctorado en Letras Neolatinas. Facultad de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro,
2017.
Esta tesis, como un trabajo en Linguística Aplicada, busca “crear inteligibilidades”
(MOITA LOPES, 2006) sobre su objeto central – el trabajo con el plano inferencial de
lectura en libros didácticos de lengua española, bien como contribuir para la construción
de alternativas para los problemas en ella presentados. Para eso, se seleccionaron como
objetos de análisis documentos y materiales que aquí se denominan objetos reguladores
de la enseñanza, una vez que demuestran “lo que se piensa oficialmente sobre la
enseñanza de” (GERHARDT, 2013) lengua española. Son esos: los Parámetros
Curriculares Nacionales de Lengua Extranjera (BRASIL, 1998), los pliegos de
condiciones del Programa Nacional del Libro Didáctico (PNLD) de 2011 (BRASIL,
2009) y de 2014 (BRASIL, 2012) y siete libros direccionados a la escuela brasileña y
producidos entre los anos de 2004 y 2013 para el 6º año de la enseñanza fundamental
(dos libros anteriores al primer PNLD, los dos aprobados en el PNLD 2011, un no
aprobado en las dos ediciones, producido entre esas, y los dos aprobados en el PNLD
2014). También componen los corpora de esta tesis las respuestas de los alumnos de un
grupo de 6º año para cuatro actividades de lectura: una de cada uno de los libros
anteriores al PNLD y una de cada uno de los aprobados en el PNLD 2014. Para
fundamentar tal analisis, se parte de los principios tomados como teórico-éticos de la
Linguística Aplicada y de los estudios que buscan comprender la escuela brasileña, las
prácticas escolares de literacidad y la educación lingüística (KLEIMAN, 1995;
RAJAGOPALAN, 2003; 2006; 2013; MOITA LOPES, 2006; 2013; PENNYCOOK,
2006; MENEZES, SILVA e GOMES, 2009; PARAQUETT, 2009; BARROS e
COSTA, 2010; GERHARDT, 2013; entre otros). Además, se defiende la inserción de
los estudios en cognición en ese campo, una vez que la tesis se propone a discutir la
construción de significados a través de la lectura y el proceso de aprendizaje que se
construye en aula. De ese modo, se defiende una visión de cognición como social y
cultural, intersubjetival, corporificada, basada en frames y desarrollada a través de
blendings (SALOMÃO, 1998, 1999, 2003; TOMASELLO, 1999; MIRANDA, 2001;
FAUCONNIER e TURNER, 2002; GEERAERTS, 2006a; SINHA, 1999, 2003; SINHA
e JENSEN DE LOPÉZ, 2000; DUQUE, 2015; entre otros); en resumen, de cognición
distribuida (HUTCHINS, 2000; ZHANG e PATEL, 2008; GERHARDT, 2012; 2014;
DUQUE, 2014). Se agriega a tal discusión el concepto de políticas cognitivas
(KASTRUP, 2005, 2012, 2015; DIAS, 2012). Se define la lectura como desarrollada a
através de sucesivas integraciones conceptuales entre el conocimento previo del lector y
las informaciones lineales del texto. De dichas integraciones, se producen las
inferencias del lector. Se traen también estudios sobre la historia social del libro
didáctico (ERES FERNÁNDEZ, 2000; 2012; GERALDI, 2003; BATISTA, 2003; 2004;
BATISTA e COSTA VAL, 2004; GALVÃO e BATISTA, 2009, entre otros) y de la
enseñanza de la lengua española (CELADA e GÓNZALEZ, 2000; DAHER, 2006;
PARAQUETT, 2009; FREITAS, 2011, entre otros) en Brasil para que se entienda el
contexto histórico que lleva a la produción de los materiales analisados. El análisis
demuestra el predominio de una visión de aprendizaje como recognición y de lectura
como reprodución tanto en los documentos oficiales como en los libros didácticos.
Aunque historicamente se note una mejora en el trabajo con la lectura en las coleciones,
principalmente, debido al PNLD, no se nota todavia el desarrollo de un trabajo didáctico
que sea capaz de alterar el predominio de una política de recognición que lleva a la
formación de aprendizes reprodutores. La escuela, a través de tales materiales,
desarrolla, entonces, prácticas que invalidan los conocimientos construidos por los
alunmos antes, durante y después de las lecturas que desarrollan en aula. Así, son
silenciados. Si consideramos el lugar de poder que la escola ocupa en la formación de
los aprendizes – y, consecuentemente, de los ciudadanos –, urge, entonces, que
luchemos para cambiar dicha realidad.
Palabras clave: educación linguística en lengua española, lectura, cognición,
inferencia, libro didáctico, políticas cognitivas
ABSTRACT
VARGAS, Diego da Silva. The inferencial plain of reading and the teaching of Spanish
in the brazilian school: distributed cognition, cognitive policies and textbook. 396f. PhD
Thesis in Neo-Latin Letters. Faculty of Letters, UFRJ, Rio de Janeiro, 2017.
This thesis, framed within the Applied Linguistics field, aims at “creating
intelligibilities” (MOITA LOPES, 2006) about its central object – the work with the
reading inferential plain of textbooks of Spanish – and, at the same time, contributing
for the construction of alternatives for the problems presented herein. For that, as
objects of analysis, documents and materials that are being called teaching regulator
objects have been selected, since they demonstrate “what is the official thinking about
the teaching of” (GERHARDT, 2013) Spanish. They are: the National Curriculum
Parameters for Foreign Language (BRASIL, 1998), the public notice of the National
Program for the Textbook (PNLD) published in 2011 (BRASIL, 2009) and 2014
(BRASIL, 2012) as well as seven books targeted to the Brazilian school and produced
between the years of 2004 and 2013 for the 6th grade of fundamental education (two
books published prior to the first public notice of the PNLD; the two ones approved in
PNLD 2011; one not approved in either notice, produced in between them; and the two
ones approved in PNLD 2014). The corpora of this thesis are also composed of the
answers provided by students in a 6th grade to four reading activities: one from each of
the books prior to the PNLD and one from each of the approved in the PNLD 2014. To
guide this analysis, I follow the theoretical-ethical principles of Applied Linguistics and
studies targeted to the comprehension of the Brazilian school, of schooling literacy
practices and linguistic education (KLEIMAN, 1995; RAJAGOPALAN, 2003; 2006;
2013; MOITA LOPES, 2006; 2013; PENNYCOOK, 2006; MENEZES, SILVA e
GOMES, 2009; PARAQUETT, 2009; BARROS e COSTA, 2010; GERHARDT, 2013;
amongst others). Furthermore, I advocate for the inclusion of studies of cognition in this
field, since the purpose of this thesis is to discuss the construction of meanings through
reading and the process of learning constructed in the classroom. Hence, I view
cognition as social and cultural, intersubjectival, embodied, based on frames and
developed through conceptual blendings (SALOMÃO, 1998, 1999, 2003;
TOMASELLO, 1999; MIRANDA, 2001; FAUCONNIER e TURNER, 2002;
GEERAERTS, 2006a; SINHA, 1999, 2003; SINHA e JENSEN DE LOPÉZ, 2000;
DUQUE, 2015; amongst others); in summary, cognition is distributed (HUTCHINS,
2000; ZHANG e PATEL, 2008; GERHARDT, 2012; 2014; DUQUE, 2014). I also
include in this discussion the concept of cognitive policies (KASTRUP, 2005, 2012,
2015; DIAS, 2012). Based on such concept, reading is defined as developed through
recurrent conceptual integration between the reader’s prior knowledge and the
information explicitly presented in the text. From such integrations, inferences are
constructed by the reader. Studies of the history of the textbook (ERES FERNÁNDEZ,
2000; 2012; GERALDI, 2003; BATISTA, 2003; 2004; BATISTA e COSTA VAL,
2004; GALVÃO e BATISTA, 2009, amongst others) and of the teaching of Spanish
(CELADA e GÓNZALEZ, 2000; DAHER, 2006; PARAQUETT, 2009; FREITAS,
2011, amongst others) in Brazil are also important to this thesis so that historical context
influencing the production of the material analyzed is fully taken into consideration.
The analysis shows the prevalence of a view of learning as recognition and reading as
reproduction both in official documents and in textbooks. Even though historically we
notice some improvement in the work done on reading, mainly because of the PNLD,
we still do not see a didactic effort that has been able to change the prevalence of this
politics of recognition that leads to reproducer learners. The school, then, through these
materials, develops practices that invalidate the knowledges constructed by the students
before, during and after the readings developed in the classroom, which are, thus,
silenced. Considering the privileged power position the school occupies in the
upbringing of learners – and, consequently, of citizens -, it is urgent, then, that we
struggle to change such situation.
Keywords: linguistic education in Spanish, reading, cognition, inference, textbook,
cognitive policies
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................... 22
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 28
CAPÍTULO 1: A LINGUÍSTICA APLICADA, O ENSINO DE LÍNGUAS E AS BASES
TÉORICO-ÉTICAS DESTA PESQUISA ......................................................................... 37
1.1. A Linguística Aplicada como norte teórico-ético de pesquisa ......................................... 38
1.2. Breve trajetória da Linguística Aplicada e sua relação com o ensino de línguas ............. 44
1.3. Letramentos, Educação Linguística e ensino de línguas na escola pública...................... 49
CAPÍTULO 2: OS ESTUDOS EM COGNIÇÃO E OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO
DE SIGNIFICADOS ........................................................................................................ 61
2.1. A cognição é social e cultural (bem com a linguagem...)................................................. 65
2.2. A cognição é intersubjetival ............................................................................................. 73
2.3. A cognição é corporificada .............................................................................................. 79
2.4. A cognição é baseada em frames ..................................................................................... 86
2.5. A cognição é desenvolvida por meio de mesclagens ....................................................... 92
2.6. A cognição é, em resumo, distribuída ............................................................................ 100
CAPÍTULO 3: POLÍTICAS COGNITIVAS, LIVROS DIDÁTICOS E ENSINO DE
ESPANHOL NA ESCOLA BRASILEIRA ..................................................................... 112
3.1. Visões de aprendizagem e a aprendizagem integrativa .................................................. 112
3.2. O conceito de políticas cognitivas .................................................................................. 123
3.3. Políticas cognitivas e a trajetória do ensino de espanhol no Brasil: a construção histórica
de uma disciplina ................................................................................................................... 135
3.4. O livro didático como metonímia de políticas cognitivas: a construção histórica de uma
proposta de affordance .......................................................................................................... 157
CAPÍTULO 4: A LEITURA INTEGRATIVA E O PLANO INFERENCIAL DE
LEITURA ...................................................................................................................... 171
4.1. Problemas do ensino de leitura no Brasil ....................................................................... 172
4.2. Da leitura interativa à leitura integrativa ........................................................................ 177
4.3. A inferenciação como processo cognitivo...................................................................... 186
4.4. A cognição distribuída e o plano inferencial de leitura: por um ensino de leitura como
processo integrativo .............................................................................................................. 192
CAPÍTULO 5: METODOLOGIA E CORPORA ........................................................... 205
5.1. O caminho metodológico: escolhas e não escolhas ........................................................ 205
5.2. Os corpora ...................................................................................................................... 207
5.2.1. A escolha dos livros didáticos ..................................................................................... 208
5.2.2. A seleção e a aplicação das atividades ........................................................................ 210
CAPÍTULO 6: POLÍTICAS COGNITIVAS E OS OBJETOS REGULADORES DO
ENSINO DE LEITURA EM ESPANHOL-LE NOS ANOS FINAIS DO ENSINO
FUNDAMENTAL .......................................................................................................... 213
6.1. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - LE/EF ............................................................. 214
6.2. O Programa Nacional do Livro Didático: 2011 e 2014 .................................................. 235
6.3. Os Manuais do Professor ................................................................................................ 254
6.3.1. “Arriba” ................................................................................................................... 254
6.3.2. “Radix” .................................................................................................................... 257
6.3.3. “Entérate” ................................................................................................................ 258
6.3.4. “Saludos” ................................................................................................................. 260
6.3.5. “Ventana” ................................................................................................................ 263
6.3.6. “Cercanía” ............................................................................................................... 265
6.2.7. “Formación” ............................................................................................................ 268
6.2.8. Em resumo............................................................................................................... 272
CAPÍTULO 7: O LIVRO DIDÁTICO DE ESPANHOL E O ENSINO DA LEITURA
INTEGRATIVA: UMA BREVE E RECENTE HISTÓRIA ........................................... 274
7.1. Como os livros didáticos apresentam o ensino de leitura aos alunos? ........................... 276
7.1.1. A organização das atividades e o lugar do texto ..................................................... 276
7.1.1.1. “Arriba” ........................................................................................................ 276
7.1.1.2. “Radix” ......................................................................................................... 279
7.1.1.3. “Entérate” ..................................................................................................... 281
7.1.1.4. Saludos .......................................................................................................... 284
7.1.1.5. “Ventana” ..................................................................................................... 288
7.1.1.6. “Cercanía” ..................................................................................................... 291
7.1.1.7. “Formación”.................................................................................................. 295
7.1.1.8. Em resumo .................................................................................................... 298
7.1.2. O que se faz com a leitura: níveis e estratégias de leitura trabalhados .................... 299
7.1.2. O que se faz com a leitura: níveis e estratégias de leitura trabalhados – exemplos 305
7.1.2.1. “Arriba” ........................................................................................................ 305
7.1.2.2.. “Radix” ........................................................................................................ 308
7.1.2.3. “Entérate” ..................................................................................................... 311
7.1.2.4. “Saludos” ...................................................................................................... 316
7.1.2.5. “Ventana” ..................................................................................................... 321
7.1.2.6. “Cercanía” ..................................................................................................... 325
7.1.2.7. “Formación”.................................................................................................. 330
7.1.2.8. Em resumo .................................................................................................... 332
7.2. Como os alunos se integram às atividades de leitura dos livros didáticos? ................... 335
7.2.1. Atividade do livro “Arriba” ..................................................................................... 336
7.2.2. Atividade do livro “Radix” ..................................................................................... 342
7.2.3. Atividade do livro “Cercanía” ................................................................................. 347
7.2.4. Atividade do livro “Formación” .............................................................................. 361
7.2.5. Em resumo............................................................................................................... 369
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 373
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 384
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 - Esquema básico de integração conceptual .................................................................. 95
Figura 2 - Esquema de integração conceptual proposto por Salomão (2003) para a interação
humana ........................................................................................................................................ 98
Figura 3 - Esquema de construção de affordances, definido por Zangh e Patel (2008) ............ 106
Figura 4 - Esquema de integração conceptual proposto por Gerhardt (2012) para a identificação
de affordances ........................................................................................................................... 107
Figura 5 - Esquema de integração conceptual representando a inferenciação em leitura ......... 190
Figura 6 - Atividade de leitura do livro "Arriba" - 1a página ................................................... 306
Figura 7 - Atividade de leitura do livro “Arriba” - 2a página ................................................... 307
Figura 8 - Atividade de leitura do livro "Radix" - 1a página .................................................... 309
Figura 9 - Atividade de leitura do livro "Radix" - 2a página .................................................... 310
Figura 10 - Atividade de leitura do livro "Entérate" - 1a página ............................................... 312
Figura 11 - Atividade de leitura do livro "Entérate" - 2a página ............................................... 313
Figura 12 - Atividade de leitura do livro “Entérate” - 3a página .............................................. 314
Figura 13 - Atividade de leitura do livro "Saludos" - 1a página ............................................... 317
Figura 14 - Atividade de leitura do livro "Saludos" - 2a página ............................................... 318
Figura 15 - Atividade de leitura do livro "Saludos" - 3a página ............................................... 319
Figura 16 - Atividade de leitura do livro "Ventana" - 1a página ............................................... 321
Figura 17 - Atividade de leitura do livro "Ventana" - 2a página ............................................... 322
Figura 18 - Atividade de leitura do livro "Cercanía" - 1a página .............................................. 325
Figura 19 - Atividade de leitura do livro "Cercanía" - 2a página .............................................. 326
Figura 20 - Atividade de leitura do livro "Cercanía" - 3a página .............................................. 327
Figura 21 - Atividade de leitura do livro "Formación" ............................................................. 331
Figura 22 - Objetivos da unidade 6 - "Estoy perdido" do livro "Arriba" .................................. 336
Figura 23 - Atividade de leitura do livro "Arriba" respondida pelos alunos ............................. 337
Figura 24 - Objetivos do Módulo 6 – “El vestuario” do livro "Radix" ..................................... 342
Figura 25 - Objetivos da Unidade 2 - "Cine en casa: a convivir con la familia y la pandilla!" do
livro "Cercanía" ......................................................................................................................... 347
Figura 26 - Atividade de leitura do livro “Cercanía” respondida pelos alunos - 1a página ...... 348
Figura 27 - Atividade de leitura do livro “Cercanía” respondida pelos alunos - 2a página ...... 349
Figura 28 - Atividade de leitura do livro "Cercanía" respondida pelos alunos - 3a página ...... 350
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1 - Referência resumitiva dos livros selecionados para a pesquisa ............................... 210
Tabela 2 - Distribuição dos tipos de questão de leitura nos livros analisados .......................... 300
Tabela 3 - Respostas da atividade de leitura selecionada do livro "Arriba" .............................. 338
Tabela 4 - Respostas da atividade de leitura selecionada do livro "Projeto Radix" .................. 343
Tabela 6 - Respostas dos alunos à atividade de pré-leitura do livro “Cercanía” ....................... 352
Tabela 7 - Respostas dos alunos à atividade de leitura do livro "Cercanía" ............................. 356
Tabela 5 - Respostas da atividade de leitura selecionada do livro "Formación" ....................... 363
22
APRESENTAÇÃO
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles
Antes de iniciar a tese propriamente dita, apresento, nesta seção, o contexto de
sua construção, ou seja, minha trajetória nesses últimos anos. Faço isso porque
considero que, para mim, entender como seria possível inserir a construção desta tese
dentro de um panorama mais amplo – o da compreensão do que é a educação escolar
brasileira contemporânea – foi tão importante como foi a busca por alcançar resultados
relevantes através dos caminhos de pesquisa próprios para isso. Obviamente, sem a
pretensão de esgotar completamente esse exercício de compreensão ou de solucionar os
problemas que permeiam a escola brasileira de hoje, foi apenas após a tomada de
consciência de que esse era meu objetivo maior que me foi possível desenvolver a tese
que aqui apresento.
Na verdade, olhando para minha (curta?) trajetória, acredito ser possível dizer
que esse sempre foi o meu movimento de pesquisa e de ensino, ora conscientemente ora
inconscientemente construído, através das minhas experiências com a educação.
Especificamente em relação a esta tese, acredito que uma curta narrativa se faça
relevante, de forma que seja possível entender não apenas o seu contexto de produção
como também os caminhos que escolhi para sua escrita.
Quando fui aprovado no processo seletivo para o ingresso no doutorado, ao final
de 2012, eu atuava como professor de língua espanhola na rede municipal de Niterói e
na FAETEC-RJ (Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro),
23
como professor de língua espanhola e linguística da UGB (Universidade Geraldo Di
Biasi) e como professor-tutor a distância no Curso de Pedagogia a distância da UNIRIO
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) na disciplina “Língua Portuguesa
na Educação 1”. Inicialmente, minha proposta de pesquisa, então, derivava deste meu
contexto de atuação, em especial, de um deles, o que mais me instigava: minha atuação
na rede municipal de Niterói com crianças e adolescentes do 6º ao 9º ano do ensino
fundamental e o meu desejo, desde meu ingresso lá em 2011, de desenvolver um ensino
focado na leitura que fosse relevante para aqueles alunos.
Eu acabara de defender minha dissertação, em fevereiro de 2012, na qual eu
pesquisara como o que estamos chamando de “plano inferencial de leitura” vinha sendo
trabalhado em livros didáticos de Língua Portuguesa do 9º ano do Ensino Fundamental,
dentro de uma perspectiva cognitivista, com o foco na percepção da capacidade (ou não)
de os livros validarem as inferências construídas pelos alunos e em que medida eles
auxiliavam o aluno no seu processo de desenvolvimento como leitor.
Ao perceber, apoiado na teoria e em minha prática como docente, que os
problemas do ensino de leitura em língua materna eram transportados para o ensino de
leitura em outras línguas, meu projeto inicial de doutoramento – o defendido no
processo de seleção em 2012 – buscava desenvolver uma pesquisa-ação. Nessa
pesquisa, eu pretendia construir uma metodologia de trabalho com o plano inferencial
de leitura, voltada para os anos finais do ensino fundamental, articulando pressupostos
cognitivistas a perspectivas metacognitivas sobre o ensino de leitura. Esse projeto se
justificava duplamente: pela transposição dos problemas de leitura em língua
portuguesa para a língua espanhola e pelo fato de que, como professor e como
pesquisador, eu não encontrava materiais que me dessem suporte para isso.
Dessa forma, a criação de uma metodologia de trabalho que pudesse ser
compartilhada com outros colegas não apenas me permitiria investigar minha própria
prática docente no que se refere ao ensino de leitura e, em especial, ao plano inferencial,
como poderia também contribuir para o desenvolvimento de novas práticas a serem
executadas por outros docentes em outros contextos. Entretanto, ainda no final de 2013,
mesmo ano em que ingressei no doutorado, fui aprovado em um concurso público para
atuar como docente do Ensino Superior nas disciplinas da área de ensino de Língua
Portuguesa no Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO), com Dedicação Exclusiva.
24
Não era mais possível, portanto, desenvolver a pesquisa-ação anteriormente
pretendida. Entretanto, como assumi a vaga apenas em junho de 2014, pude aplicar, nos
primeiros meses daquele ano, com meus alunos da rede municipal, a etapa inicial da
pesquisa anteriormente pensada: as atividades de leitura propostas pelos livros didáticos
selecionados para a construção de meu corpus de análise. Meus corpora, então, naquele
momento se constituíram pelos livros didáticos selecionados para o que seria a etapa
inicial da pesquisa e das respostas dos alunos às atividades extraídas de cada um desses
livros.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que minha ida para a UNIRIO me impediu
de seguir com a proposta inicial, ela também me trouxe a necessidade de buscar
articular minha pesquisa de doutorado à minha atuação direta na formação de
professores para o ensino de língua portuguesa. De alguma maneira, minha proposta
precisaria se ampliar, no sentido de que eu deixaria de buscar entender um ponto
específico (o plano inferencial) do trabalho com uma habilidade específica (a leitura)
em uma disciplina específica (o Espanhol) para tentar inserir a tese em uma discussão
mais ampla, que me permitisse traçar caminhos para compreender estruturalmente a
realidade escolar – realidade essa que atravessa o ensino de leitura em língua espanhola,
mas não só ele. Essa busca me permitiu alterar não apenas os rumos da pesquisa, mas
me permitiu também – e, nesse momento, principalmente – entender (com todas as
limitações possíveis) meu papel como formador de professores na universidade
brasileira.
Aos poucos, então, esta tese foi deixando de ser um trabalho sobre uma
habilidade cognitiva específica em relação à leitura e sobre como ela pode ser
trabalhada em sala de aula para ser, através da análise do trabalho com essa habilidade,
uma tese sobre a aprendizagem na escola brasileira, desenvolvida por meio de um viés
político-ideológico muito mais forte do que o viés didático-metodológico inicialmente
pensado. O plano inferencial, portanto, segue sendo o foco desta tese, mas, ao invés de
fim, ele passa a ser meio. As necessidades didático-metodológicas não são deixadas de
lado, uma vez que elas atravessam todo o processo de análise dos materiais
selecionados, mas não é mais o foco desta tese propor caminhos alternativos testados
cujos resultados tenham sido exaustivamente analisados e detalhados. Acredito, porém
que, inclusive, a partir da discussão que apresentarei ao longo deste texto, será possível,
25
mais adiante, olharmos para as necessidades didático-metodológicas com muito mais
propriedade, entendendo as bases que as suportam para que a ruptura seja mais precisa.
Além disso, é importante destacar que, ao mesmo tempo em que a produção
desta tese ia acontecendo, ataques de naturezas diversas iam acontecendo à educação
pública de nosso país e, principalmente, aos caminhos apontados por diversos estudos
na área de Educação para resolver seus problemas. Não bastando toda a precarização a
que a educação pública brasileira está submetida há décadas, tal série de ataques
acontecia em dois planos simultâneos: na destruição do que já se construiu e na
impossibilitação de que se transforme o que é necessário mudar. De naturezas diversas,
todos tiveram finalidades muito próximas e partiram de princípios muito semelhantes,
sobre os quais pretendo discutir nesta tese: a ideia de que aprender é reproduzir; a ideia
de que ensinar é também reproduzir e fazer reproduzir; a ideia de que o trabalho do
professor e o aprendizado dos alunos precisam ser uniformizados e, por isso,
controlados; a ideia de que o professor deve ocupar o papel central nesse processo de
reprodução, mas apenas como sujeito de controle do que foi pensado por alguém mais
preparado que ele; etc.; e, consequentemente a todas elas, a ideia de que a educação
pública é ruim porque alunos e professores são ruins.
Dentre essa série histórica de ataques, destaco aqui alguns: a tentativa de
implantação do Programa Pátria Educadora1, o Movimento Escola Sem Partido
2 e a
ideologia por ele difundida (e todas as consequências práticas que ele já conseguiu, de
fato, concretizar); a Reforma do Ensino Médio, implantada inicialmente via medida
provisória3; e a PEC 241/55, que vai reduzir drasticamente por 20 anos os investimentos
1 O documento “Pátria Educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”,
cujo título remete ao slogan do 2º governo da presidente eleita Dilma Rousseff, circulou em abril de 2015,
apresentando propostas de caminhos para a educação brasileira, sem assinatura, apenas com a marca da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Depois de muita polêmica, o projeto foi
abandonado, mas as ideias apresentadas no documento representam o pensamento (talvez, cada vez mais)
de parte relevante da sociedade. O documento pode ser encontrado em:
https://www.fe.unicamp.br/patriaeducadora/documento-sae.pdf.
2 O movimento Escola Sem Partido existe desde 2004 e ganhou grande força nos últimos três anos,
alcançando grande espaço no debate educacional brasileiro. O movimento se define como criado por
membros da sociedade civil em nome de uma luta contra “a doutrinação política e ideológica em sala de
aula”. Ele se define como apartidário, mas diversos políticos, especialmente os que compõem à chamada
extrema direita, se vinculam a ele, criando projetos de lei a partir de suas propostas.
3 A chamada Reforma do Ensino Médio se originou na Medida Provisória MPV 746/2016 apresentada
nos primeiros meses do governo Temer e foi aprovada no Senado, em fevereiro deste ano, sob a forma do
26
em educação pública4. A esses pode-se somar ainda a polêmica construção da Base
Nacional Comum Curricular5, que dividiu opiniões entre os que são a favor dela, os que
são contra a sua implantação, os que são contra os conteúdos selecionados por ela, os
que são contra a forma como ela foi construída, etc.
Como apontado anteriormente e como pretendo mostrar ao longo da tese, é
possível notar que muitos desses movimentos partem das mesmas “premissas
equivocadas”6 sobre o que é ensinar, o que é aprender, o que é ser aluno, o que é ser
professor, o que é conteúdo de ensino, qual é o papel da escola na formação de seus
alunos, etc. Todas essas premissas equivocadas sustentam esses movimentos, mas
sustentam também as bases estruturais nas quais, ainda hoje, se apoia a escola brasileira,
em suas políticas (curriculares, linguísticas, cognitivas, de avaliação, de investimentos,
de formação de professores, etc.) nos âmbitos macrossocial e microssocial7. Dessa
maneira, procurei construir um caminho de pesquisa e de escrita que me permitisse
olhar para o macrocontexto que envolve o objeto da pesquisa – o plano inferencial de
leitura nas aulas de língua espanhola – e para as formas como esse macrocontexto
define, em alguma medida, o microcontexto em que ele, de fato, emerge – a sala de aula
e a interação que nela se apresenta entre professores, alunos e materiais didáticos.
O foco especial no trabalho desenvolvido por livros didáticos também se dá
nesse sentido, visto que, como exposto mais adiante, é neles que se materializam as
Projeto de Lei de Conversão PLV 34/2016. Essa Reforma altera drasticamente a estrutura curricular do
Ensino Médio e parcialmente a da Educação Básica.
4 Essa Proposta de Emenda Constitucional circulou com o número 241 na Câmara dos Deputados e com o
número 55 no Senado. Ela foi aprovada em definitivo no final do ano passado e foi definida como uma
das prioridades governo de Temer.
5 As discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular começaram ainda no governo Dilma e o
documento final foi oficializado há alguns meses no governo Temer. Várias versões do documento foram
feitas até que se chegasse a elas, mas todas elas definem os conteúdos e competências que devem ser
trabalhos em todas as disciplinas de todas as etapas da educação brasileira.
6 Retomo a expressão “premissas equivocadas” utilizada antes em Gerhardt e Vargas (2010) para mostrar
crenças que embasam práticas de ensino de leitura reprodutoras.
7 É interessante notar que, paralelamente a esses movimentos que estou denominando de “ataques à
educação pública” e em consequência a eles, também presenciamos nesse momento o movimento de
ocupações de estudantes em escolas públicas de todo o país, reivindicando novos modelos de
escolarização, novas organizações curriculares, buscando dar centralidade aos alunos no processo de
ensino-aprendizagem, etc., o que nos mostra que novas concepções que rompam com essas “premissas
equivocadas” estão sendo exigidas pelos alunos (e por professores que apoiam essas reivindicações). Essa
tese busca, de alguma maneira, também se alinhar a esses movimentos.
27
macropolíticas relativas à escola e ao ensino e são eles que, hoje, concretamente, em
grande parte das escolas brasileiras, orientam, guiam, direcionam a construção das
micropolíticas da/na sala de aula.
Aqui, cabe acrescentar que, ainda durante o período de produção desta tese, eu
recebi um convite de uma editora para produzir, junto com outras três autoras8, uma
coleção de livros didáticos de espanhol para o ensino fundamental, produzida
exclusivamente para a participação no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD
2017), ou seja, para ser usada exclusivamente por alunos da escola pública brasileira. A
produção da tese me trouxe, então, mais esse desafio: o de procurar entender a realidade
em que eu me encontro não só como docente, mas também como autor de livro didático,
ao mesmo tempo em que a produção do material me trouxe o desafio de entrar nesse
projeto com a consciência do papel que o livro didático ocupa na escola brasileira –
consciência derivada de meus estudos acadêmicos.
Dessa maneira, a análise dos livros que compõem um dos corpora de minha tese
– produzidos entre 2004 e 2013 – me permitiu compreender um breve, mas importante,
momento de uma história da qual hoje participo diretamente como agente, para que,
inclusive, eu possa atuar, daqui em diante, se for o caso, a partir de outras perspectivas
sobre ela. Levando isso em consideração, é importante esclarecer que a análise dos
livros, como se poderá perceber mais adiante, não pretende destacar obras que sejam
melhores ou piores (inclusive, porque as versões analisadas já não estão mais no
mercado, uma vez que são frequentemente atualizadas). O objetivo é compreender a
história em que essas obras se inserem e como elas revelam as bases estruturais da
escola brasileira que estou buscando entender. Assim, rompe-se qualquer possibilidade
de que a pesquisa caia em perigos éticos, uma vez que sabemos que, como objetos
comerciáveis, esses materiais também estão submetidos a uma lógica de mercado, sobre
a qual não pretendo discorrer nesta tese, nem sempre coincidente às questões que
envolvem uma pesquisa sobre eles.
Tendo feita, então, esta (talvez não tão) breve apresentação, vamos à tese.
8 As autoras são Alice Moraes, Flávia Paixão e Marina Martins, a quem agradeço a parceria nessa
construção, topando o desafio conjunto de produzir uma coleção em tão pouco tempo e sem deixar que o
nosso compromisso por uma educação pública de qualidade se perdesse em meio a tantos
atravessamentos aos quais a produção de uma coleção didática está suscetível.
28
INTRODUÇÃO
Como narrado na Apresentação, esta tese nasce do cruzamento de minhas
experiências docentes com minha trajetória de pesquisa acadêmica como membro do
Grupo de Estudos em Cognição e Ensino de Línguas (COGENS – UFRJ). Desde 2007,
ainda como aluno de iniciação científica, antes mesmo de o grupo ser oficialmente
institucionalizado, venho investigando como se desenvolve o processo de construção de
inferências em leituras realizadas por alunos em situação escolar em aulas de língua
portuguesa e de língua espanhola. Além de buscar entender como se dá esse processo,
também sempre foi meu foco identificar como a escola brasileira trabalha com ele e
como seria possível um trabalho que valorizasse e desenvolvesse os processos
inferenciais dos alunos, auxiliando-os em seu amadurecimento como leitores.
Com o desenvolvimento das pesquisas e a ampliação de minhas experiências
docentes, foi possível perceber que a discussão sobre o trabalho escolar desenvolvido
com o que estamos chamando de “plano inferencial de leitura” vai muito além da busca
por técnicas e metodologias de ensino, uma vez que, como uma série de outras questões,
a forma como ele se realiza em sala de aula revela formas de se ver a leitura e,
principalmente, de se ver a aprendizagem – ou seja, revela, como explicarei mais
adiante, “políticas cognitivas”9.
Por isso, esta tese parte de uma questão fundamental: Que política(s)
cognitiva(s) rege(m), em um plano macrocontextual, e se manifesta(m), em um plano
microcontextual, (n)o ensino de leitura em aulas de língua espanhola em contexto
escolar para os anos finais do ensino fundamental? Obviamente, esta questão se
desdobra em uma série de outras questões, que, por sua vez, nortearam a organização
deste texto. Em resumo, é possível subdividi-la em, pelo menos, outras cinco: a) Como
se constroem essas políticas cognitivas?; b) Como elas aparecem no espaço da sala de
aula?; c) Em que medida essas políticas (des)valorizam as leituras realizadas pelos
alunos e em que medida elas os auxiliam em seu processo de construção como leitores?;
d) Como os alunos reagem a essas políticas ao desenvolverem suas leituras, ou seja,
como eles também se colocam nesse processo de construção?; e e) Como se pode pensar
9 Como explicarei no capítulo 3 desta tese, o conceito de políticas cognitivas foi fundado por Kastrup
(1999, apud KASTRUP, 2005; 2012; 2015) e pode ser definido, brevemente, como o modo como nos
relacionamos com o conhecimento, com a aprendizagem, com o mundo e com nós mesmos.
29
em novas políticas que permitam a realização de um ensino de leitura (e não só...)
focado no desenvolvimento dos alunos?
Desse modo, como discutirei no capítulo 1, esta tese se assume como um
trabalho de Linguística Aplicada (LA) e advoga pela (re)inserção dos chamados estudos
em cognição dentro do campo da LA no Brasil. A teorização aqui feita é, então,
atravessada por diversas disciplinas ou subdisciplinas, que ora serão denominadas
explicitamente ora serão integradas ao texto através do resultado de pesquisas diversas
que serviram e servem de apoio à realização de minha pesquisa. Assumo, assim, uma
abordagem que reconhece o processo de construção de conhecimento como sendo,
necessariamente, vinculado à prática, a problemas reais, ao compromisso com a vida
social e, em especial, com a melhora da educação pública de nosso país.
A busca pela (re)inserção dos estudos em cognição à LA brasileira se justifica,
nesta tese, pela própria existência de meu objeto central de pesquisa – o trabalho com o
plano inferencial de leitura em livros didáticos de língua espanhola para os anos finais
do ensino fundamental. Nesse sentido, parto da perspectiva de que é necessário recorrer
a tais estudos para que se possa (re)conhecer os problemas da escola em relação à forma
como se vê o aprendizado e abrir caminhos para que se transforme essa visão. Para isso,
tomo uma noção de cognição que não se reduz ao cérebro e a seu funcionamento
fisiológico, mas que, ao contrário, é não modular, corporificada, intersubjetival e
situada. Em resumo, entendo, como se verá melhor no capítulo 2, de maneira detalhada,
que a cognição se distribui dentro do próprio cérebro, do corpo humano, entre pessoas,
entre pessoas, objetos e ambiente, e ao longo do tempo. Por isso, preciso recorrer a
diversos campos para entender como essa cognição distribuída funciona e,
principalmente, para entender meu objeto de pesquisa, uma vez que o foco desta tese
está em como as pessoas pensam enquanto estão na sala de aula.
O objeto central desta tese – o plano inferencial de leitura – parte de minha
trajetória de pesquisa nos estudos em cognição, iniciada pelos resultados alcançados no
desenvolvimento de uma pesquisa de Iniciação Científica, seguida de uma investigação
de Mestrado, igualmente focadas na investigação sobre atividades escolares de leitura.
Seguindo uma abordagem cognitivista sobre o ensino de leitura, para a pesquisa
realizada em caráter de Iniciação Científica, elaboraram-se atividades que foram
aplicadas em turmas da Educação Básica, na cidade do Rio de Janeiro. No trabalho
realizado tanto em aulas de português como de espanhol, foi possível observar que,
30
diferentemente do que se esperava, grande parte dos alunos era capaz de realizar boas
leituras10
dos textos trabalhados quando eram encaminhados a isso, ou seja, quando as
atividades de leitura lhes auxiliavam nesse processo.
Entretanto, foi possível verificar também, mesmo nessas atividades, a repetição
de determinados padrões em parte das respostas dos alunos, quando, por exemplo, eles
reproduziam elementos apresentados explicitamente nos textos, mesmo quando isso não
lhes era solicitado ou quando apontavam apenas para elementos externos ao texto, que
reproduziam o seu conhecimento prévio, sem qualquer articulação com o texto lido. Ao
analisar brevemente materiais didáticos que eram usados nas aulas de leitura, foi
possível perceber que havia um padrão de perguntas que levava os alunos a esse
comportamento. Então, no processo de desenvolvimento da dissertação (VARGAS,
2012a), senti a necessidade de voltar, de modo mais detalhado, minha atenção para a
maneira como esse padrão escolar de leitura se constrói.
Para isso, foquei-me na compreensão do processo de inferenciação em leitura,
buscando desenvolver uma concepção cognitivista sobre tal processo, que levasse em
conta o cruzamento de diferentes perspectivas sobre cognição e leitura, e analisar, com
base na concepção construída, em que medida os livros didáticos de Língua Portuguesa
reconheciam, validavam e avaliavam os processos desenvolvidos pelos estudantes. O
interesse por um estudo mais centrado no trabalho desenvolvido em livros didáticos
surgiu, então, nesse momento. Através da prática docente de membros de nosso grupo e
de trabalhos diversos de outros autores, foi possível perceber que, institucionalmente, a
escola brasileira potencializa uma visão de livro didático que o coloca como objeto
central na construção do modo de organização da cultura escolar. Portanto, o livro
didático institui formas de pensar no espaço escolar, o que também justifica o papel
relevante que o livro didático ocupa nesta tese.
A escolha pela leitura como objeto de pesquisa também não foi aleatória. Em
relação à disciplina Língua Portuguesa, diversos trabalhos, sob diferentes visões, já
revelaram que os livros didáticos, bem como (ou talvez: e em consequência) o trabalho
10
Definimos como “boa leitura” a capacidade do aluno de integrar seus conhecimentos prévios às
informações apresentadas no texto lido, de maneira crítica e agentiva, ou seja, sabendo utilizar o texto
para seus objetivos e sabendo responder ao texto, usando suas informações para julgá-lo e usando,
conscientemente, estratégias que lhe permitam ter o domínio desse processo. Ciente de que esta é apenas
uma das visões sobre o que é uma boa leitura, detalharei teoricamente este conceito no capítulo 4 desta
tese.
31
em aula, desenvolvem uma prática que coloca o aluno como um mero leitor-
decodificador (cf. BOTELHO, 2011, 2015; BRANDÃO e MARTINS, 2003;
DELL’ISOLA, 1997; GERALDI, 2003; GERHARDT, 2006b, 2010; GERHARDT e
VARGAS, 2010; GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015; KLEIMAN, 2001;
LAJOLO, 2000; MARCUSCHI, 1996; PIMENTA, 2006; ROJO, 2003; ROJO e
BATISTA, 2003; VARGAS, 2011, 2012a, 2012b). Dessa forma, como defendi em
Vargas (2012a), acredito que, mais do que mal ensinar a leitura aos alunos, acaba-se
ensinando que ler é selecionar informações explicitamente apresentadas, uma vez que
algo sempre é aprendido ao longo de todo o processo de escolarização.
Em relação ao ensino de espanhol, a situação é ainda mais complicada uma vez
que, mesmo depois de quase 20 anos dos Parâmetros Curriculares Nacionais terem
apontado que o ensino de línguas estrangeiras na Educação Básica deve atuar na
ampliação do letramento do aluno, trabalhando, principalmente, suas capacidades
leitoras (BRASIL, 1998), o que noto em minha experiência e conversas com colegas é
que pouco destaque se dá em aulas da educação básica ao ensino de leitura (cf.
PARAQUETT, 2009a) 11
. Em relação à pesquisa sobre o ensino de leitura, a situação
também ainda não é das melhores, principalmente, se visamos à construção de um
panorama de seu ensino no Brasil12
. Ainda que este panorama esteja em transformação,
como poderemos ver mais adiante, tomando-se a relevância do tema, é possível dizer
11
Em Paraquett (2009), a autora faz uma discussão interessante sobre o tema, percorrendo a história do
ensino de espanhol no Brasil e a relação dos professores e pesquisadores de espanhol com o campo da
Linguística Aplicada.
12 Em uma pesquisa no Google, no Google acadêmico, e na Plataforma Scielo, através das palavras-
chave: “leitura”, “ensino” e “espanhol”, pude encontrar diversos trabalhos que tratam sobre o ensino de
leitura em língua espanhola. Entretanto, o número é consideravelmente menor do que o de trabalhos que
tratam do ensino de leitura em língua portuguesa e língua inglesa. Pouquíssimos são os trabalhos que se
propõem a avaliar como se dá o trabalho com a leitura em livros didáticos, avaliações (externas ou
internas), em escolas ou redes de ensino, o que revela que essa não é uma cultura de pesquisa nos estudos
sobre o ensino de espanhol. A maior parte dos trabalhos apresenta relatos de experiência, propostas de
atividades ou resultados de atividades aplicadas no próprio contexto de trabalho dos autores. Se, por um
lado, isso revela uma interessante postura desses professores de refletirem sobre sua prática, por outro,
revela que, historicamente, não se apresentam muitos estudos que busquem construir um panorama crítico
do ensino de leitura desenvolvido na escola brasileira. A isso, é preciso acrescentar que o campo de
pesquisa em ensino de espanhol é um campo ainda em consolidação. Para que eu pudesse ter um
panorama da prática executada por professores que fogem do trabalho desenvolvido pelos livros
didáticos, outro trabalho seria necessário – o de avaliar criticamente a qualidade dessas atividades. Este
pode ser um momento seguinte de pesquisa. Nesta tese, foco apenas na análise dos livros didáticos.
32
que ele ainda está longe do ideal, tanto em termos de ensino como em termos de
pesquisa (se é que é possível separá-los).
Nesse sentido, ressalto que é foco desta tese também compreender esse
panorama em transformação, buscando entender as modificações recentes pelas quais
vêm passando o ensino de espanhol, em especial o de leitura, na escola brasileira, e os
elementos que contribuem (ou não) para que elas aconteçam. Para isso, selecionamos
como objeto de análise livros didáticos que formam um breve e recente percurso
histórico, uma vez que foram produzidos entre 2004 e 2013. Tal percurso está marcado
especialmente por dois atos governamentais: a aprovação da chamada Lei do Espanhol13
e a inclusão dessa disciplina (junto à língua inglesa) no Programa Nacional de Livro
Didático (PNLD). Esse dado nos levou, então, a não somente tomar a análise dos livros
como dados da pesquisa, mas também a tomar o próprio programa e o principal
documento que norteia o ensino de línguas estrangeiras no ensino fundamental – os
Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) – como objetos a serem
investigados.
O foco na leitura, em relação à análise dos livros, do programa e dos parâmetros,
torna-se bastante propício às questões que guiam esta tese, uma vez que a leitura, como
será posto mais adiante, se dá por meio da construção de significados por parte do leitor
ao integrar seus conhecimentos prévios às informações novas que recebe. Assim, ela
permite perceber, de maneira mais clara, as políticas cognitivas construídas, já que,
assim, se pode observar em que medida o aprendiz é silenciado em seu próprio processo
de aprendizado.
O plano inferencial adentra, assim, esta tese como um caminho possível para
evidenciar essa análise, uma vez que é nele que mais claramente se manifesta a
integração entre os conhecimentos prévios do leitor e as informações novas que recebe
do texto, da aula, do professor, dos colegas, etc. Dessa maneira, busco verificar em que
medida os livros didáticos validam e desenvolvem a leitura no plano inferencial,
entendendo-o como uma comprovação de que a leitura é também distribuída.
A análise dos livros didáticos em um eixo temporal permite, então, observar se
as atividades foram produzidas para favorecerem essa integração em sala de aula,
13
Trata-se da Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005, que instituía a obrigatoriedade da oferta de língua
espanhola aos alunos do ensino médio. Tal lei, porém, foi revogada pela lei 13.415, de 16 de fevereiro de
2017 – a chamada Reforma do Ensino Médio.
33
reconhecendo e validando os saberes e as experiências dos alunos. Além disso, permite
também verificar em que medida o ensino de leitura em língua espanhola (não) foi se
transformando rumo ao favorecimento dessa integração. Em outras palavras: em que
medida o aluno, seus saberes, suas experiências, suas realidades etc. foram sendo
verdadeiramente incluídos no ensino de espanhol e, consequentemente, na escola
brasileira.
A escolha por tomar os livros didáticos como objetos centrais de análise parte de
trabalhos de diferentes perspectivas teóricas que revelam que a relação instituída pela
escola brasileira entre professores, alunos, materiais, sistema escolar, etc.,
tradicionalmente, potencializa uma visão de livro didático que o coloca como objeto
central na construção do modo de organização da cultura escolar, o que detalharei mais
adiante. Nesse sentido, a ideia aqui defendida é que, por isso, o livro didático institui
formas de cognizar no espaço escolar. Sem buscar correr o risco de uma falsa
generalização que me cegue na busca da compreensão dos problemas aqui apresentados,
é importante ressaltar que tal realidade é descrita por diversos trabalhos e que, portanto,
pode ser posta como uma “lei social”, no sentido – e na problematização – posta por
Silva (2015), a partir do trabalho de Judith Butler:
Seguindo um princípio de Judith Butler em seu Problemas de gênero,
entendo que a postulação de uma lei social não significa que ela
universalmente “determina a vida social de modo unilateral”, menos
ainda que ela exista “em todos os aspectos da forma social
considerada, mais modestamente, isso significa que a lei existe e que
opera em algum lugar em cada formação social” (Butler, 2003 [1990],
p. 115) (SILVA, 2015, p.352).
Assim, não nego, obviamente, que haja professores que fujam do modelo
proposto por livros didáticos nem apago o papel do professor na construção da interação
em sala de aula. Entretanto, não posso ignorar que o livro didático ocupa hoje um lugar
central na escola brasileira e que, portanto, ele precisa ser de qualidade – tanto para os
professores que vão utilizá-lo com pouca interferência como para os que vão utilizá-lo
de maneira mais autoral, ou, como direi adiante, mais inventiva. Nesse sentido, é
importante ressaltar que, na escola brasileira de hoje, o livro didático serve
principalmente à precariedade das condições de trabalho do professor, que, com baixo
salário e muito trabalho, tem pouca condição de investir em sua própria formação. Além
disso, com muitos alunos e pouco tempo fora de sala de aula, não há como desenvolver
um trabalho que fuja muito do prescrito pelo livro didático.
34
Em resumo, posso dizer que, com esta tese, busco, de modo geral, por meio da
análise da história recente dos livros didáticos de língua espanhola para os anos finais
do Ensino Fundamental em relação ao trabalho com o plano inferencial de leitura,
identificar quais são as Políticas Cognitivas instituídas (ou manifestadas) pelo ensino de
espanhol na escola e, consequentemente, identificar quais são as condições de Cognição
Distribuída colocadas em sala de aula. De modo específico, pretendo também identificar
como o ensino de língua espanhola vem se construindo nos últimos anos, em especial, a
partir da sua inserção no PNLD, uma vez que essa construção revela como essa
disciplina, que tem um processo de expansão ainda em desenvolvimento, vem se
escolarizando e se adequando às condições de pensamento que fundamentam a cognição
escolar brasileira.
Para isso, selecionei como material de análise, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, os dois editais do Programa Nacional do Livro Didático e sete livros
didáticos de língua espanhola pensados para o trabalho com alunos do ensino
fundamental na escola brasileira: dois anteriores ao PNLD, dois aprovados no primeiro
PNLD, um produzido entre os dois editais e não aprovado neles e dois aprovados no
segundo edital do PNLD. Além disso, incluo também as respostas dos alunos para
atividades propostas por alguns desses livros, a serem especificados mais adiante no
capítulo 5.
Por fim, ressalto que não busco em minha análise procurar marcas explícitas de
visões sobre a cognição nem nos materiais didáticos, nem nos documentos oficiais,
principalmente porque tenho a consciência de que os estudos em cognição ocupam hoje
na pesquisa e no discurso sobre o ensino de línguas um lugar de desvalorização. Dessa
forma, construo também esta tese como um exercício para que se devolvam aos estudos
em cognição o lugar que eles ocuparam tempos atrás, reconhecendo sua importância
histórica na construção de um campo de pesquisa sobre o ensino de línguas, em
especial, o de leitura no Brasil (cf. FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996, 2003; KATO,
1986, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010; LEFFA, 1996; SCLIAR-CABRAL, 1991; SOLÉ,
1992; entre outros).
Além disso, é importante também que se abram oportunidades para que sejam
divulgados os resultados de pesquisas contemporâneas, que partem de uma visão de
cognição bem mais complexa do que a que comumente se atribuem aos estudos
cognitivistas. Nesse sentido, entendo que uma concepção de aprendizagem sempre
35
emerge dos discursos sobre o ensino que circulam no Brasil, mesmo que os estudos em
cognição sejam invisibilizados (ou, talvez, por isso), e que tais estudos precisam ser
resgatados (sem que se abra mão da interdisciplinaridade), uma vez que não é possível
falar sobre aprendizagem (e, consequentemente, sobre ensino) sem que se entenda como
a cognição humana funciona.
Esta tese se organiza, então, em sete capítulos, nos quais se percorre o caminho
teórico-prático desenvolvido para esta pesquisa. No primeiro capítulo, apresento o
enquadramento da Linguística Aplicada e sua relação com o compromisso que
denomino de teórico-ético desta pesquisa, bem como sua relação com a pesquisa sobre o
ensino de língua. Nesse capítulo, proponho uma discussão que serviu de norte para a
construção teórica e prática (como duas faces de uma mesma moeda) desta tese, ao
debater o papel dos estudos sobre a linguagem no mundo de hoje e a necessidade de se
construir pesquisas que contribuam para a diminuição do sofrimento dos que se
encontram à margem dos processos de globalização e tudo que os envolve, ou, ao
menos, para que se dê visibilidade a esse sofrimento, denunciando-o.
No segundo capítulo, apresento a visão de cognição por mim adotada, com base
em diversos trabalhos que compõem os chamados estudos em cognição. Assim,
apresento uma visão de cognição como sendo social e cultural, em suas relações com a
linguagem e com a cultura, como sendo intersubjetival, corporificada, baseada em
frames e desenvolvida por meio de mesclagens conceptuais. Em resumo, mostro uma
visão de cognição distribuída que nos permite inserir tais estudos, junto a tantos outros,
em uma Linguística Aplicada preocupada com a mudança da escola brasileira. Esse
capítulo se justifica justamente por conta da exclusão que tais estudos sofrem na
pesquisa sobre o ensino no Brasil e embasa a inserção de seus pressupostos nos
capítulos seguintes.
No terceiro capítulo, trago uma discussão mais diretamente relacionada à escola
brasileira e ao ensino de espanhol dentro dela. Para isso, trago o conceito de políticas
cognitivas, fundamental para entendermos as relações que se constroem em sala de aula
hoje. Tal conceito é articulado, neste capítulo, à história do ensino de espanhol e à
história do livro didático no Brasil. Esses estudos históricos, articulados à discussão
sobre políticas cognitivas, permitem que compreendamos a realidade contemporânea do
ensino de espanhol e do papel que o livro didático ocupa nas práticas de ensino que se
36
constroem em sala de aula. Tais estudos servirão de base também para a análise dos
documentos e dos materiais didáticos selecionados para esta tese.
No quarto capítulo, foco minha discussão mais diretamente no ensino de leitura.
Para isso, inicio a discussão apresentando uma compilação de trabalhos que apresentam
os problemas do ensino de leitura no Brasil mais diretamente relacionados à discussão
proposta por esta tese. Em seguida, apresento, com base nos pressupostos apresentados
nos capítulos anteriores, uma proposta de abordagem da leitura que estou denominando
de leitura integrativa e, a partir dela, uma visão de inferenciação como processo
cognitivo. Por fim, defendo um ensino de leitura como processo integrativo derivado da
relação entre a noção de cognição distribuída e o conceito de plano inferencial de
leitura. Assim, finaliza-se a construção das bases que vão permitir a análise dos
documentos e materiais apresentados nas seções seguintes.
No capítulo cinco, apresento os caminhos metodológicos tomados para a
construção desta tese, e, no capítulo seis, apresento como as políticas cognitivas e as
diferentes visões de aprendizagem e de leitura atravessam o que estou chamando de
“objetos reguladores”, especificamente, nesta tese, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, os editais do Programa Nacional do Livro Didático de 2011 e de 2014 e os
manuais do professor dos livros didáticos selecionados para minha análise. No capítulo
sete, por fim, apresento a análise das atividades de leitura apresentadas nos livros
didáticos selecionados e das respostas de alunos do 6º ano do ensino fundamental de
uma escola pública de Niterói para quatro atividades de leitura – duas dos dois
primeiros livros selecionados e duas dos dois livros aprovados no PNLD 2014.
37
CAPÍTULO 1: A LINGUÍSTICA APLICADA, O ENSINO DE LÍNGUAS E AS
BASES TÉORICO-ÉTICAS DESTA PESQUISA
Como já dito, esta tese se define como um trabalho de Linguística Aplicada e
advoga pela inserção dos estudos em cognição nesse campo. Essa inserção só é possível
porque, como apontado por Gerhardt (2017, p.01), tanto a Linguística Aplicada como os
estudos em cognição, ainda que paralelamente, se constroem
com base numa mesma ruptura de fronteiras de observação dos
problemas relacionados à linguagem por eles recortados: a ruptura das
fronteiras disciplinares, com o acesso e a incorporação de diferentes
teorias de mesmo campo epistemológico para o tratamento dos
problemas criados; a essa ação, segue-se a ruptura dos escopos
territoriais de estudo, com a assunção da pessoa no centro do processo
de pesquisa e a inclusão na virada somática de estudo do ser humano,
em contraposição às epistemologias cartesianas e positivistas,
hegemônicas nas Ciências Sociais.
Além disso, a possibilidade de trazer para esta tese esse diálogo parte também do
princípio de que a Linguística Aplicada e os Estudos em Cognição (ou Estudos da
Cognição ou Ciências da Cognição) são, como aponta Silva (2015, p.365), não
disciplinas, mas áreas de investigação “para onde convergem pesquisadores de
diferentes orientações teóricas e “disciplinares””14
. Assim, trago para esta tese trabalhos
de pesquisadores que se assumam com essas diferentes nomenclaturas e tantas outras
que possam aparecer, sempre reconhecendo que a história de uma disciplina e suas
vinculações são permeadas pela “maneira como a segmentação do conhecimento é
politicamente decidida em universidades” (Cavalcanti e Signorini, 1998, p.207, apud
SCHERER, 2003, p.62).
O destaque dado, nesta tese, aos estudos em cognição, porém, se explica porque,
como dito anteriormente, há certa rejeição, na Linguística Aplicada e nos estudos sobre
o ensino de línguas no Brasil, a tais estudos. Como historicamente eles foram sendo
abandonados ao longo da pesquisa aplicada ao ensino no Brasil, hoje, eles são vistos
sob um olhar preconceituoso, em geral sendo rejeitados e tratados como já superados.
Por isso, ainda é preciso focar nesses estudos de modo mais detalhado para comprovar a
possibilidade de que, não só eles podem ser inseridos no campo da Linguística Aplicada
14
Silva (2015) traz essa reflexão referindo-se apenas à Linguística Aplicada. Acredito que as mesmas
palavras cabem para os Estudos em Cognição, posto que esta já é uma área reconhecidamente colocada
como interdisciplinar, como se poderá ver nas diferentes perspectivas trazidas pelos trabalhos sobre
cognição citados nesta tese.
38
contemporânea, como também podem ser fundamentais para a transformação da escola
brasileira. Este capítulo, então, se constrói na perspectiva de trazer os compromissos
assumidos pela Linguística Aplicada em seus caminhos de investigação e de como me
coloco, nesta tese, diante desse compromisso. Além disso, essa discussão é que abre as
possibilidades para a inserção dos estudos em cognição na LA de hoje, entendendo que
“as dimensões de experiências pessoais de forma alguma estão alijadas dos processos
cognitivos” (GERHARDT, 2013, p.95).
Para isso, começo mostrando porque os caminhos teórico-metodológicos
tomados nesta tese se norteiam por um compromisso ético de pesquisa e trabalho,
apresento brevemente a história da Linguística Aplicada e sua relação com a Linguística
e com outras disciplinas, incluindo as potencialidades derivadas da inclusão dos estudos
em cognição, e finalizo o capítulo apresentando os reflexos dessa discussão na pesquisa
sobre o ensino e na prática escolar.
1.1. A Linguística Aplicada como norte teórico-ético de pesquisa
Nesta tese, parto do pressuposto básico de que falar de escolhas teóricas é falar
de questões éticas. Como aponta Rajagopalan (2003, p.13), é preciso reconhecer que
“qualquer possibilidade de que as teorias que elaboramos sobre a linguagem venham a
ter implicações de ordem ideológica e política, e portanto, a fortiori, éticas”
(RAJAGOPALAN, 2003, p.17). Nesse sentido, em acordo com o autor, fujo da ideia de
que as discussões sobre ética nos estudos da linguagem devam estar relegadas apenas à
esfera da prática, aos caminhos metodológicos de coleta ou de geração de dados ou à
forma como se usarão os dados cedidos por informantes, por exemplo. Ao contrário,
parto da noção de que representam também escolhas éticas as escolhas teóricas, das
visões de língua, de ser humano, de interação, de escola, dos papéis do pesquisador,
entre tantas outras adotadas em uma determinada pesquisa15
, uma vez que “trabalhar
com a linguagem é necessariamente agir politicamente, com toda a responsabilidade
ética que isso acarreta” (RAJAGOPALAN, 2003, p.125).
15
O autor aponta ainda que essa é uma tendência cada vez maior no campo da linguística, ainda que,
segundo ele, a maior parte dos estudos que adiram a ela se localizem nas áreas tidas como “periféricas ao
núcleo duro”, também chamadas por ele como “áreas hifenizadas ou aplicadas” (RAJAGOPALAN, 2003,
p.20), como é o caso desta pesquisa. Aqui, podemos trazer também a noção de “marginalidade” proposta
por Gerhardt (2017) ao buscar no conceito de “radialidade” a possibilidade de discutir metateoricamente
as relações entre a Linguística Cognitiva e a Linguística Aplicada.
39
Desse modo, acredito que, conforme defende Moita Lopes (2006, p.90), uma
proposta ética de investigação envolve “um processo de renarração ou redescrição da
vida social como se apresenta, o que está diretamente relacionado à necessidade de
compreendê-la”. Entendo que a escola faz parte da vida social das pessoas e que se
organiza de uma maneira que permite existir determinadas práticas de linguagem e,
consequentemente, determinadas formas de pensar, e que exclui outras. Assim, é
objetivo desta tese compreender essa escola, mas também reescrevê-la, questionando o
que chamamos anteriormente de “premissas equivocadas”, para que novas realidades se
construam. Busco, então, situar, como prossegue Moita Lopes (2006, p.90), este
“trabalho no mundo, em vez de ser tragado por ele ao produzir conhecimento”.
Portanto, é fundamental que as pesquisas que assumam para si esse
compromisso que estou tratando como “teórico-ético” tenham em seu foco um
compromisso social capaz de, como aponta Rajagopalan (2003, p.123), prestar um
serviço à comunidade e “contribuir para a melhoria das condições de vida dos setores
menos privilegiados da sociedade”, ou, nas palavras de Moita Lopes (2006, p.87),
construir formas de produzir conhecimento que reconheçam sua relação direta “com o
modo como as pessoas vivem suas vidas cotidianas, seus sofrimentos, seus projetos
políticos e desejos”.
Assim, não se pode ignorar que a vida escolar também é parte da vida cotidiana
das pessoas, em especial, de crianças e jovens e que, tanto quanto outras experiências de
vida, ela também é parte – e parte importante – de seus sofrimentos, de seus projetos
políticos e de seus desejos, atuando de forma limitadora ou potencializadora. Este
trabalho busca, com base nisso, se inserir nesta perspectiva ética de construção.
Considero, assim, que, como explica Rajagopalan (2013b, p.45), tal assunção
Trata-se da responsabilidade do pesquisador para com a sociedade que
lhe proporciona as condições necessárias de levar adiante suas
pesquisas. Trata-se da responsabilidade social do cientista (do
linguista, no caso) num sentido muito mais profundo do que uma
simples questão de “dívida moral” em relação aos informantes que
tanto nos auxiliam em pesquisas de campo.
Se, por um lado, esse compromisso ético parte da necessidade de um
compromisso do pesquisador com a vida social, por outro, e como consequência, parte
também da necessidade de que as pesquisas reflitam “os anseios do momento histórico
em que propomos e defendemos nossas ideias” (RAJAGOPALAN, 2003, p.18). Nesse
sentido, Moita Lopes (2006, p.22) levanta a necessidade de se pensar novos percursos
40
que interroguem a modernidade, “acarretando profundos questionamentos sobre os tipos
de conhecimento produzidos e tentando explicar as mudanças contemporâneas que
vivemos”.
Por isso, esta tese procura também contribuir para a construção de um pensar
sobre a linguagem que se coaduna com uma perspectiva voltada para o século XXI,
rompendo com a lógica denunciada por Hutton (1996, p.209, apud RAJAGOPALAN,
2003, p.25), ao dizer que “a linguística talvez seja a disciplina que mais encarna o
espírito do século XIX dentre as que são ensinadas nas universidades hoje”, posto que
“os nossos conceitos básicos relativos à linguagem foram em grande parte herdados do
século XIX, quando imperava o lema “Uma nação, uma língua, uma cultura”.”
(RAJAGOPALAN, 2003, p.25).
Cabe salientar que não se trata de apagar aqui a relevância da Linguística como
disciplina, uma vez que o próprio Rajagopalan (2003) aponta que a linguística dos
séculos XIX e XX encarnou perfeitamente o espírito de seus tempos e contribuiu
efetivamente para as discussões de seu tempo, causando impacto, inclusive, em outras
áreas disciplinares conexas. Entretanto, como ele mesmo aponta: “A saúde de uma
disciplina se mede pela presteza com a qual ela consegue responder a novas realidades
que surgem no mundo em que vivemos e pelo interesse que ela evidencia em atender
aos anseios e preocupações típicos de cada época” (RAJAGOPALAN, 2003, p. 39).
Assim, trata-se de construir novos caminhos para a linguística que fujam do modelo
ainda predominante e que segue o espírito de um tempo que já não existe mais fora dos
muros da academia.
Tal busca exigiria, então, ainda a noção de “um sujeito social heterogêneo e de
uma LA continuamente auto-reflexiva” e a compreensão de que “a LA está se tornando
um “espaço aberto” ou “com múltiplos centros”, o que envolveria a “desistência da
construção de um projeto de uma LA unificada e coesa” (MOITA LOPES, 2006, p.15) e
“o envolvimento em uma reflexão contínua sobre si mesma: um campo que se repensa
insistentemente” (MOITA LOPES, 2006, p.17).
A consideração da linguística aplicada como um campo no qual se insere esta
tese, dessa maneira, parte, então, desses movimentos de abertura e de autorreflexão a
que todo linguista aplicado deve (ou deveria) estar submetido. Trata-se, então, de uma
busca por incluir esta pesquisa que a embasa em um conjunto de “teorizações que
dialoguem com o mundo contemporâneo, com as práticas sociais que as pessoas vivem,
41
como também desenhos de pesquisa que considerem diretamente os interesses daqueles
que trabalham, agem etc. no contexto de aplicação” (MOITA LOPES, 2006, p.23).
Esse diálogo com a contemporaneidade pressupõe, portanto, tanto a ruptura com
qualquer tipo de essencialismo, como a vida social contemporânea globalizada nos
aponta há algum tempo (RAJAGOPALAN, 2013a), como também o “reconhecimento
de que é a teoria que precisa ser moldada segundo as especificidades da prática”
(RAJAGOPALAN, 2006, p. 165), e não o contrário. Como defende Scherer (2003, p.
81): a teoria e prática nos estudos da linguagem são (ou deveriam ser) inseparáveis:
queiramos ou não, as concepções de aquisição de línguas e as
propostas de uma LA ao ensino e à aprendizagem implicam
escolhas ou referências de ordem teórica. Tais escolhas não são,
necessariamente, homogêneas ou coerentes, também não são
limitadas tão somente às ciências da linguagem;
queiramos ou não, as teorizações científicas relativas às línguas
e/ou à linguagem, mesmo quando elas delimitam seu objeto – a
fins de idealização, de modelização, de formalização, por razões de
ordem metodológica ou epistemológica -, não podem não
comportar incidentes ou questionamento quanto à aquisição ou às
relações com o ensino/aprendizagem de línguas
O centro da pesquisa está assim não na aplicação da teoria, mas na percepção de
um problema real – no caso desta tese, a precariedade do trabalho com a leitura em
espanhol na escola brasileira, e a recolha de diversas fontes teóricas que permitam
compreendê-lo em alguma medida. Nesse sentido, cabe citar mais uma vez Moita Lopes
(2006), quando ele aponta para o fato de que a investigação em linguística aplicada é
fundamentalmente centrada no contexto aplicado, o que inclui entender onde as pessoas
vivem e agem, compreendendo, portanto, as mudanças relacionadas à vida
sociocultural, política e histórica que experienciam.
A escolha por um recorte de tempo que se circunscreve nos primeiros anos do
século XXI, ao analisarmos os materiais didáticos de espanhol e suas transformações,
parte justamente da busca por entender os movimentos de transformação dessa
disciplina neste (e para este) século. Parte também da consideração de que tais
movimentos revelam uma cultura escolar brasileira que pode estar de acordo com este
tempo ou não. Os discursos cotidianos sobre a escola brasileira me levam a crer que é
do desejo e do interesse dos que nela agem – alunos e professores –, usando os termos
de Moita Lopes (2006), transformá-la radicalmente. Movimentos como o das ocupações
das escolas no ano que passou revelam isso, revelam que sofrimentos são experenciados
42
na escola tal e como ela está construída. Sigo o caminho proposto por Cavalcanti (1986,
p.6), em texto seminal para a perspectiva hoje construída sobre a linguística aplicada:
O percurso de pesquisa em LA tem seu início na detecção de uma
questão específica de uso de linguagem, passa para a busca de
subsídios teóricos em áreas de investigação relevantes às questões em
estudo, continua com a análise da questão na prática, e completa o
ciclo com sugestões de encaminhamento.
Aqui, é importante destacar que já em 1986, Cavalcanti, aponta que a linguística
aplicada deve ser essencialmente de caráter multidisciplinar, ainda que sempre
preocupada com questões de uso da linguagem.
Justamente porque se assume hoje como multidisciplinar ou transdisciplinar é
que a Linguística Aplicada se coloca então como uma grande área de estudos diferente
da Linguística e não como uma subdisciplina dela. Assim, é interessante notar que a
história da LA esteve muito tempo vinculada unicamente à história da linguística, uma
vez que sua função principal era aplicar teorias linguísticas ao ensino e aprendizagem de
línguas (SZUNDY e NICOLAIDES, 2013). Entretanto, com afirma Rojo (2006, p.256),
“se, no passado, a questão da identidade da área de LA tinha a ver com suas fronteiras
em relação à linguística, hoje se reconhece a natureza transdisciplinar da LA em suas
relações com a educação, a psicologia, a etnografia da comunicação, a sociologia etc.”.
Entretanto, não há como negar que o campo da linguística aplicada ainda se vê
muito atrelada a linguística, uma vez que nossa cultura ainda valoriza o conhecimento
teórico em detrimento de suas possíveis aplicações (RAJAGOPALAN, 2003). Nesse
sentido, cabe trazer a polêmica levantada por Rajagopalan (2003), ao apontar que o
movimento de se libertar das amarras da disciplina-mãe pode causar (ou estar causando)
algumas confusões, tais como, a de que deveria haver uma perfeita divisão entre os que
escolham a “linguística pura” e os que optem pela “linguística aplicada”; a de que os
linguistas aplicados não precisem se preocupar com o trabalho teórico; ou mesmo de
que o trabalho prático (ou aplicado) comece onde o teórico acabe.
Buscando escapar dessas confusões, o autor defende a ideia de que a linguística
aplicada, como campo disciplinar, deve admitir até mesmo a possibilidade de que ela
possa vir a ser uma alternativa à linguística teórica, “algo que a própria disciplina mãe
pode emular em proveito próprio” (RAJAGOPALAN, 2003, p.79), o que, segundo ele,
já vem ocorrendo pelo movimento denominado de “linguística crítica”. Em relação a
isso, Menezes, Silva e Gomes (2009) ressaltam que a separação entre linguística e
linguística aplicada nunca foi e não é tão simples assim, uma vez que há também na
43
linguística estudos que focam a língua em uso e que, com o passar do tempo, as duas
áreas estão ficando cada vez mais próximas, sendo a denominação “linguista” ou
“linguista aplicado” muito mais uma questão de afiliação do que distinção
epistemológica ou metodológica.
Assim, Menezes, Silva e Gomes (2009) defendem que o hiato entre os estudos
da LA e os estudos linguísticos estão cada vez menos vigentes, uma vez que a própria
linguística caminha ao encontro da LA, já que, segundo eles, seus estudos formais
constituem um grupo cada vez menor dentro da linguística. Por outro lado, também a
LA caminharia para “o aumento da diversidade temática, para o abrandamento das
fronteiras entre as áreas, para um encontro mais fraterno com os colegas da lingüística,
mas, também, para o enfrentamento de divergências dentro da própria LA” (MENEZES,
SILVA e GOMES, 2009, p. 48).
Dentro de linha semelhante de discussão, Moita Lopes (2006) aponta que o
debate sobre a diferença entre aplicação da linguística e linguística aplicada já se
encontra envelhecido e, procurando ultrapassá-lo, nomeia de “linguística aplicada
mestiça” aquela que busca dialogar com teorias que atravessem o campo das ciências
sociais e das humanidades, de forma que se possa “criar integibilidade sobre problemas
sociais em que a linguagem tem um papel central” (MOITA LOPES, 2006, p.14). Essa
busca, por sua vez, exige “uma epistemologia e teorizações que falem ao mundo atual e
que questionem uma série de pressupostos que vinham informando uma LA
modernista” (MOITA LOPES, 2006, p.14).
É interessante observar que, em relação a essa discussão, Moita Lopes (2013) dá
papel de destaque à trajetória do campo no Brasil, onde teria adquirido um perfil
específico, sendo aqui o lugar em que ela teria conseguido expandir sua natureza
inter/transdisciplinar com mais força, colocando-se “na ponta das discussões mais
inovadoras de formas contemporâneas de produção do conhecimento, o que (...) é
interessante por responder às demandas epistemológicas atuais” (MOITA LOPES,
2013, p.18), ainda que se coloque também em uma posição contínua de revisão de si
mesma, “pisando em solos pouco sedimentados” (MOITA LOPES, 2013, p.18).
Em resumo, pode-se dizer que é papel do linguista aplicado que se circunscreve
a este panorama teórico-ético buscar “compreender nossos tempos” e “abrir espaço para
visões alternativas ou para ouvir outras vozes que possam revigorar nossa vida social ou
vê-la compreendida por outras histórias” (MOITA LOPES, 2006, p.23), o que exige
44
constante “reflexão sobre seus métodos e sobre o alcance teórico e metateórico de suas
categorias de análise e a efetividade e eficácia de seus resultados” (ROJO, 2006, p.259).
Com base nisso, e entendendo o papel político que toda pesquisa e todo
pesquisador assume diante do que coloca como seus objetivos e objetos de investigação,
procuro levantar, por meio desta tese e dentro desta perspectiva, então, (a) reflexões que
busquem entender a situação concreta em que se encontra hoje o ensino de leitura em
língua espanhola nas escolas públicas de nosso país; mas também (b) reflexões que
busquem pensar uma outra realidade possível, que parta da compreensão do papel
fundamental que ocupa o ensino de línguas no século XXI e dos pressupostos que serão
posteriormente apresentados.
Dessa maneira, é importante dizer ainda que a busca dessa LA, à qual adiro aqui,
como enfatiza Moita Lopes (2006), não é encontrar soluções ou resolver os problemas
que busca investigar, mas sim problematizá-los, ou “criar inteligibilidades sobre eles, de
modo que alternativas para tais contextos de usos da linguagem possam ser
vislumbrados” (MOITA LOPES, 2006, p.20). Nesse sentido, cada capítulo, cada seção e
cada subseção deste texto, se apresenta justamente como uma tentativa de fazer
exatamente isso – criar inteligibilidade sobre o problema central desta tese – a
precariedade do ensino de leitura em língua espanhola na escola brasileira – e suas
consequências para os alunos, ou seja, o sofrimento que lhes é gerado, em sala de aula e
fora dela, em função do silenciamento que tal precariedade institui.
Na próxima seção, apresento brevemente a trajetória da linguística aplicada, de
forma que se possa entender como ela chegou até esses pressupostos, mas,
principalmente, porque a história do ensino de línguas no Brasil está diretamente ligada
a ela. Assim, compreender os caminhos traçados pelo ensino de espanhol no Brasil – o
que será apresentado no capítulo 3 – passa também por compreender a história da LA
em nosso país.
1.2. Breve trajetória da Linguística Aplicada e sua relação com o ensino de línguas
A Linguística Aplicada constitui uma área de estudos relativamente recente na
academia brasileira, adquirindo maior vigor somente a partir da década de 90, quando se
amplia a massa crítica desse campo no Brasil (MOITA LOPES, 2013). Inicialmente
fundada para estudar a aplicação de teorias linguísticas ao ensino de línguas, a
45
Linguística Aplicada foi se construindo ao longo do tempo, no mundo e no Brasil, como
um campo interdisciplinar independente da Linguística e foi ampliando seus estudos em
direção à compreensão das relações que se estabelecem, em todo e qualquer espaço, por
meio da linguagem, ou, nas palavras de Moita Lopes (2006, p.14), “a criar
inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central”.
Como afirmam Menezes, Silva e Gomes (2009, p.25), hoje, “parece haver um
consenso de que o objeto de investigação da LA é a linguagem como prática social, seja
no contexto de aprendizagem de língua materna ou outra língua, seja em qualquer outro
contexto onde surjam questões relevantes sobre o uso da linguagem”. Esse consenso –
talvez o único elemento que unifique todos os trabalhos que se colocam dentro desse
campo - é fruto de sua trajetória histórica que, no Brasil, em especial, construiu-se de
modo particular, “permeada por uma heterogeneidade de ações e de dizeres na procura,
quase sempre de um novo sentido e de uma autonomia como ordem epistemológica”
(SCHERER, 2003, p.62).
No início de sua trajetória, nos anos 40/50, a LA nasceu como uma disciplina
voltada quase que exclusivamente para pesquisas sobre o ensino de línguas não
maternas, estando fortemente influenciada pelo contexto de expansão militar
estadunidense e das consequências colonialistas da expansão imperialista britânica que
apontavam para a necessidade de ensino de línguas diversas para os militares e de
língua inglesa para os países com os quais EUA e Grã Bretanha tinham relações de
domínio ou de parceria (LUNA, 2012; MENEZES, SILVA e GOMES, 2009;
RAJAGOPALAN, 2013b; SCHERER, 2003; SZUNDY e NICOLAIDES, 2013).
Com o advento da Segunda Guerra, o quadro de irregularidade de
oferta de cursos de línguas estrangeiras começa a mudar em
instituições de ensino dos Estados Unidos. A sociedade e as
instituições americanas, que tinham, durante a Primeira Guerra
Mundial, desmerecido a língua e a cultura do inimigo e repudiado
qualquer coisa que pertencesse a ele, passa, na Segunda Guerra, a
querer aprender a língua dos povos com cujos países os Estados
Unidos estavam envolvidos, fosse como inimigo, fosse como aliado.
Objetivamente, a motivação era militar e estratégica, mas também
política e econômica; visava ao período da guerra em si, mas também
ao que viria depois, por exemplo, as oportunidades de negócios
(LUNA, 2012, p.33).
Sobre este contexto, Scherer (2003, p.61) chega a dizer que a LA, a esse tempo,
era “entendida como sinônimo de Análise Contrastiva”, uma vez que basicamente se
dedicava a contrastar estruturas de línguas visando a encontrar possíveis dificuldades
46
para o aprendizado das línguas pelos falantes até então tidos como não nativos. É nesse
momento também que, segundo Luna (2012), os linguistas são, por primeira vez,
chamados a pensarem contextos aplicados de pesquisa voltando seus trabalhos para o
ensino de línguas, em especial, as estrangeiras. Cria-se, assim, por primeira vez um
circuito de produção de conhecimento sobre o ensino de línguas e, neste contexto, nasce
então a linguística aplicada.
Contrariamente ao que se costuma apontar dizendo-se que a linguística aplicada
nasce como tentativa de aplicação da Linguística, Menezes, Silva e Gomes (2009, p.27)
defendem que
a LA não nasceu como aplicação da linguística, mas como uma
perspectiva indutiva, isto é, uma pesquisa advinda de observações de
uso da linguagem no mundo real, em oposição à língua idealizada”, o
que teria abalado a forma de fazer ciência na academia, confrontando-
se diretamente “com a pesquisa tradicional dentro de modelos teóricos
e metodológicos muito rígidos.
Entretanto, não é possível negar que a ideia de aplicação da linguística emergiu
logo em seguida e predominou por um bom tempo – talvez mesmo predomine ainda
hoje –, apesar de todos os seus movimentos de expansão. Esses movimentos se iniciam
ainda na metade do século passado e percorrem todo o século, tanto no exterior como no
Brasil, em movimentos muito próximos (MENEZES, SILVA e GOMES, 2009;
SCHERER, 2003; SZUNDY e NICOLAIDES, 2013).
Já nos anos 60, segundo Luna (2012, p.44), inicia-se uma busca “de esclarecer
os limites da Linguística Aplicada para resolver os problemas existentes na sala de aula
de línguas”, sendo esta a motivação da maior parte dos estudos e publicações de
linguistas deste período.
Caracterizado como tinha ficado o problema do ensino de línguas
estrangeiras nos Estados Unidos no período pré- e pós-guerra, e
vinculado como acabou ficando o método audiolingual à Linguística,
a década de 60 começa com cobranças e defesas da aplicabilidade da
ciência da linguagem (LUNA, 2012, p.44).
Nos anos 70, em prosseguimento ao movimento vivido nos anos 60, a LA
passou a associar-se ao ensino da linguagem em geral, cobrindo um conjunto de tópicos
muito mais extenso (SCHERER, 2003). É também neste período que se inicia um
movimento fundador da área no Brasil, em um momento em que os pesquisadores
dedicados a questões linguístico-pedagógicas constituíam-se em grupos cada vez mais à
parte. Mesmo que a questão do ensino de línguas estivesse no centro dos debates àquele
47
tempo, quando os problemas da educação básica começaram a invadir as universidades,
a produção linguística ia se afastando de sua motivação pedagógica inicial, fazendo com
que os pesquisadores interessados pelas questões de ensino buscassem construir novas
formas de se organizarem (SCHERER, 2003).
Esse movimento faz com que, nos anos 80, viva-se um momento de pouco
consenso, tanto no Brasil como no exterior, atravessado pela discussão sobre a relação
de dependência da área em relação à linguística dita geral e a necessidade de
independência da LA como disciplina específica (SCHERER, 2003; SILVA, 2015). É
também nesse momento que se inicia um movimento de abertura disciplinar, a partir da
influência de outras teorias, tais como a linguística sistêmico funcional, a antropologia e
a abordagem comunicativa de ensino. Assim, a LA passa a investigar os usos situados
da linguagem no processo de ensino-aprendizagem de línguas, preocupando-se, por
exemplo, com o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem e o ensino
instrumental de LE e LM para fins específicos (SZUNDY e NICOLAIDES, 2013). Com
o grupo de linguistas aplicados sentindo-se discriminados pelos linguistas gerais,
passam, então, a reinvidicar uma especificidade própria e a criar, na metade final da
década de 1980 suas próprias instituições em nosso país (SCHERER, 2003; SILVA,
2015).
Essa trajetória chega ao ápice, no Brasil, nos anos 90, com a fundação da
Associação de Linguística Aplicada do Brasil, e os primeiros Congressos Brasileiros de
Linguística Aplicada (SCHERER, 2003; SZUNDY e NICOLAIDES, 2013). É nos anos
90 que a LA passa a se circunscrever “a um conjunto de discursos portando em si,
sobretudo, o que se passa em uma sala de aula – quando se aprende e se ensina uma
língua -, qualquer que seja o estatuto reconhecido desta e de sua natureza” (SCHERER,
2003, p.62).
Nesse tempo, a principal influência emerge da teoria sócio-histórico-cultural de
Vygostky e de Bakhtin, o que retira o objeto de estudo do aprendiz e o coloca na
interação que se constrói em aula (SZUNDY e NICOLAIDES, 2013). Aqui, é
importante acrescentar também que é nesta virada que os estudos em cognição
começam a perder prestígio nas pesquisas sobre o ensino de línguas e vão sendo
deixados de lado por essas pesquisas. Esse abandono dos estudos em cognição no Brasil
fez com que a pesquisa sobre o ensino de línguas e a Linguística Aplicada perdessem de
vista também as viradas pelas quais tais estudos passaram. Assim, o Brasil passou a
48
ignorar os caminhos cada vez mais multidisciplinares que os estudos em cognição
tomaram, bem como a ampliação do escopo de seus estudos. O compromisso desta tese
é, então, também contribuir para a devolução desse espaço retirado dos estudos em
cognição, sem buscar qualquer centralidade para ele dentro desse campo cada vez mais
indisciplinar (cf. MOITA LOPES, 2006), que é a Linguística Aplicada.
Nos anos 2000, tem-se, então, a consolidação de uma linguística aplicada tal
como posta na seção anterior (MOITA LOPES, 2006; 2013). Em relação a isso, Moita
Lopes (2013) nos lembra que todo esse percurso anteriormente exposto se deu em meio
à influência das chamadas viradas pós-estruturalista, discursiva, icônica, cibernética,
somática, pós-colonial, feminista, queer, antirracista, etc., o que fez com que o sujeito
social se tornasse o foco central das pesquisas em LA:
Se tradicionalmente a pesquisa modernista apagou o sujeito social na
produção de um conhecimento positivista, quantificável,
experimental, generalizável e objetivista (ou seja, modernista), o qual
somente com tal apagamento se tornava possível, a pesquisa na LA
em seu desenvolvimento no Brasil o coloca como crucial em sua
subjetividade ou intersubjetividade, tornando-o inseparável do
conhecimento produzido sobre ele mesmo assim como das visões,
valores e ideologias do próprio pesquisador. Em decorrência, questões
de ética, poder e política se tornam inerentes à produção do
conhecimento (MOITA LOPES, 2013, p.16-17).
Nesse sentido, considero importante ressaltar que, ainda que centrada na análise
de livros didáticos, esta tese é uma tese que busca tratar deste sujeito social que antes
estava apagado. O olhar para os livros didáticos se justifica justamente porque, como
explicarei mais adiante, eles também fazem parte dos processos de construção da
intersubjetividade dos alunos – enquanto alunos – e de professores – enquanto
professores – e, por isso, precisam ser compreendidos em seus conteúdos e nas políticas
que projetam nessa interação. Considero que esse é também um compromisso ético de
alguém que busque entender a escola brasileira e contribuir para que se transforme no
sentido de diminuir o sofrimento dos que dela fazem parte. Assim, faz parte desta busca
construir uma escola que corresponda aos desejos dos que dela fazem parte. Como o
próprio Moita Lopes (2013, p.19) nos lembra, a sala de aula, os professores, os alunos e
os materiais de ensino precisam também ser vistos como produtos e/ou produtores do
que ele chama de modernidade recente.
Dessa maneira, se, por um lado, concordo com Moita Lopes (2013, p.17),
quando ele afirma que “a situacionalidade e a particularidade do conhecimento e as
49
condições situadas de natureza ética, política e aquelas relativas a poder na sua
produção são o que importa”, discordo quando ele nega a importância da “procura por
grandes generalizações” (MOITA LOPES, 2013, p. 17), principalmente, em uma
pesquisa sobre o ensino, sobre a sala de aula, sobre a escola. Como instituição altamente
normatizada, os movimentos de interação que se apresentam nas aulas de leitura ao
longo de todo o país são muito semelhantes, principalmente se consideramos, como
explicitarei mais adiante, o papel que os livros didáticos vêm executando nessa
interação. Portanto, se é nosso objetivo compreender a forma como a leitura é ensinada
na escola para contribuir com as transformações desejadas, é nosso papel como
linguistas aplicados também fazer generalizações que revelem certos padrões de
interação institucionalmente situados.
Nesse sentido, mais uma vez, trago a noção de “lei social” posta por Silva
(2015), a partir de Butler, apresentada na introdução desta tese. Com base nisso,
entendo que obviamente as generalizações aqui postas não definem as interações que se
dão em cada sala de aula desse país, mas entendendo também que, mais relevante que
isso, elas mostram a existência de uma regularidade que, de alguma maneira, revela
crenças, conceitos, visões, e, em alguma medida, manifesta políticas e práticas, que
definem formas de se pensar na/a escola.
Como apontam Kirshner e Whitson (2009), pesquisas que desejem responder às
necessidades educacionais não podem ignorar a generalização e a transferência de seus
resultados, o que inclui, obviamente, também problematizá-los. Como
institucionalmente, a escola brasileira ainda se organiza de forma bastante padronizada,
é preciso entender esse padrão, para que, entendendo-o, possamos romper com ele. E
assim construir salas de aula que, como defende Paraquett (2009a, p.124), “funcione de
maneira mais democrática e comprometida politicamente”.
Na próxima seção, trago, então, alguns conceitos básicos que vêm sendo
discutidos quando se trata do ensino de línguas na escola brasileira de hoje, em especial,
na Linguística Aplicada. Dessa forma, busco inserir esta pesquisa dentro desse campo
maior de estudos, com o qual pretendo dialogar e a partir do qual busco justificar os
caminhos escolhidos para investigar o problema apresentado na introdução desta tese.
1.3. Letramentos, Educação Linguística e ensino de línguas na escola pública
50
Em uma pesquisa panorâmica sobre a história dos estudos em Linguística
Aplicada no Brasil e no exterior, Menezes, Silva e Gomes (2009) apontam que ainda
hoje há uma tendência forte de compreender a linguística aplicada como mera aplicação
da Linguística, mas ressaltam também que mesmo em pesquisas sobre o ensino em
contextos escolares, muitas outras questões emergiram. Assim, os autores defendem que
hoje há três visões de LA vigentes: a) a de pesquisa em ensino e aprendizagem, b) a de
aplicação da linguística e c) a de investigações aplicadas sobre estudos da linguagem
como prática social. Esta pesquisa se insere na primeira das categorias, mas também na
terceira, já que não acredito que as práticas de linguagem que ocorrem na sala de aula
possam não ser consideradas como práticas sociais e que, portanto, a linguagem da/na
sala de aula não seja uma prática social.
Ao analisar revistas da área nacionais e internacionais, os autores observam que
a linguística aplicada ainda continua com forte afiliação aos estudos sobre ensino e
aprendizagem, em diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, com diferentes
focos de investigação (MENEZES, SILVA e GOMES, 2009). Em relação a isso, é
interessante observar que, em análise sobre os discursos fundadores do campo no Brasil,
que vão apartar a Linguística Aplicada da Linguística, Scherer (2003) ressalta o papel
de destaque que ocupam os estudos sobre a leitura e sobre a sala de aula:
Leitura define um lugar de visibilidade, a sala de aula; esta, por sua
vez, define um campo do que pode e deve ser dito, do que é dizível; já
os enunciados relativos à sala de aula, como forma de conteúdo,
definem o lugar de viabilidade em sua materialidade mesma. Os
enunciados que aí se encontram são inseparáveis do espaço no qual
eles se distribuem. Não há nada possível, nem nada virtual no
domínios desses enunciados. Tudo é real e toda a realidade aí se
manifesta. A sala de aula surge, então, como aquele lugar de
visibilidade para o dizer sobre a Linguística Aplicada, ao mesmo
tempo em que a leitura formula os enunciados fundamentais para
estatuir o lugar de enunciação do linguista aplicado (SCHERER,
2003, p.79, grifos da autora).
Apesar da relevância histórica ocupada por esses estudos e da tradição já
consolidada dessa área como campo de pesquisas em nosso país, ainda se pode afirmar,
como o faz Gerhardt (2013, p.79) que “o Brasil enfrenta uma dificuldade histórica de
fazer com que os estudos na universidade influenciem as práticas escolares”. Ao tratar
do ensino de língua portuguesa, a autora aponta que tal dificuldade acarreta uma
“ausência de uma verdadeira e pertinente didática do ensino de leitura e de produção
textual escrita”. No ensino das outras línguas, a realidade não é muito diferente e, como
51
pode-se ver ao longo desta tese, talvez seja historicamente até pior. Por isso, em Vargas
(2012a, p.23) nomeei a relação entre pesquisa e ensino de leitura como “uma realidade
em dois planos” – realidade essa que revela constantemente o “insucesso das propostas
de letramento escolar” (ROJO e BATISTA, 2003, p.9), frequentemente apontadas como
reprodutoras, uma vez que nelas
obtém sucesso o aluno que se nega a “mergulhar” no texto e a recriá-
lo. Neste caso, a leitura singular, denotativa, parafrásica é o padrão
comparativo utilizado pelo sistema escolar pelas “vantagens” que
proporciona, tais como: a facilidade de correção por parte do
professor, a superficialidade não reflexiva que gera alienação e a
manutenção de estratificação social (DELL’ISOLA, 1997, p.56).
Em relação ao ensino de espanhol, como mencionei anteriormente, atualmente,
já não são poucos (ainda que o número esteja longe do ideal) os trabalhos dedicados, no
mundo acadêmico, a desenvolver propostas de trabalho com a leitura na Educação
Básica. O aumento desse volume de trabalhos se deve, em grande parte, à publicação,
em 1998, dos “Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua estrangeira” (BRASIL, 1998), uma vez que foram os PCN que
instituíram, oficialmente, um novo papel para o ensino de línguas estrangeiras16
na
Escola Brasileira, ao apontar a necessidade de se desenvolver um ensino com foco na
leitura. Tal foco se justificaria, segundo o documento, porque:
Com exceção da situação específica de algumas regiões turísticas ou
de algumas comunidades plurilíngues, o uso de uma língua estrangeira
parece estar, em geral, mais vinculado à leitura de literatura técnica ou
de lazer. Note-se também que os únicos exames formais em Língua
Estrangeira (vestibular e admissão a cursos de pós-graduação)
requerem o domínio da habilidade de leitura. Portanto, a leitura
atende, por um lado, às necessidades da educação formal, e, por outro,
é a habilidade que o aluno pode usar em seu contexto social imediato.
Além disso, a aprendizagem de leitura em Língua Estrangeira pode
ajudar o desenvolvimento integral do letramento do aluno. A leitura
tem função primordial na escola e aprender a ler em outra língua pode
colaborar no desempenho do aluno como leitor em sua língua materna
(BRASIL, 1998, p.20).
Quase vinte anos depois da elaboração dos PCN, já não parece ser consenso a
ideia de que o ensino de língua espanhola na escola deva estar exclusivamente, ou
prioritariamente, focado na leitura, uma vez que as condições postas no documento
16
Ciente do debate que há em torno da nomenclatura “línguas estrangeiras”, justifico o uso do termo
nesta tese em função do fato de que os documentos oficiais e os currículos escolares ainda nomeiam as
disciplinas relativas ao ensino de outras línguas que não a portuguesa (e a LIBRAS) dessa maneira.
52
teoricamente já não seriam as mesmas17
. Entretanto, não há quem negue a importância
de um trabalho bem desenvolvido com a leitura em sala de aula, sendo esta a habilidade
principal ou não a ser trabalhada na Educação Básica. Assim, considera-se que é papel
do ensino de línguas estrangeiras na escola brasileira unir-se ao ensino de língua
materna para que, juntamente às outras disciplinas do currículo escolar, possa atuar no
desenvolvimento do letramento dos estudantes.
Entendendo, então, com base em Soares (1997), que a linguagem assume uma
dupla função em determinada cultura, posto que, ao mesmo tempo em que constitui o
seu mais importante produto, também é o seu principal instrumento de transmissão,
acredito ser essencial, para o desenvolvimento desta tese, trazer a noção de
letramento(s) e suas contribuições para as pesquisas em ensino de línguas. Como bem
define Kleiman (1995, p.11), entende-se letramento como “um conjunto de práticas
sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as
formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de
identidade e poder”.
No Brasil, o termo “letramento” é um termo recente, tendo sido usado por
primeira vez no ano de 1986 (KATO, 1986) – período de importância destacada, como
já explicitado anteriormente, para a construção da Linguística Aplicada em nosso país.
Soares (1998) explica que se trata de um neologismo derivado de uma nova maneira de
compreender a presença da escrita no mundo social, a partir do momento em que se
compreende que “a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas,
cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o
indivíduo que aprenda a usá-la” (SOARES, 1998, p.17).
Dessa forma, por isso, o termo letramento passa a complementar os sentidos
atribuídos ao termo alfabetização, que, quando em oposição ao letramento, passa a
referir-se apenas às capacidades e competências individuais, cognitivas e linguísticas,
escolares e valorizadas socialmente. Assim, a inclusão do termo letramento apresenta a
representação de outra condição social e cultural, já que, como posto por Soares (1998),
por meio das práticas que se realizam com a linguagem escrita, pode-se mudar o lugar
17
Não entrarei no âmbito dessa polêmica aqui, uma vez que ela exige um debate mais longo do que o
espaço e o tempo que tenho para me dedicar a este tópico nesta tese. Porém, considero importante dizer
que defendo que, devido às condições ainda presentes na escola pública brasileira, a leitura deve ser sim o
objeto central do ensino de línguas, pelo menos até que novas condições sejam postas para o trabalho com
essas disciplinas. Explico melhor essa ideia no artigo “Ensino de línguas na escola pública brasileira:
entre concretudes e virtualidades” (a sair).
53
social, o modo de se viver na sociedade e a inserção dos indivíduos na cultura (a relação
com os outros, com o contexto, com os bens culturais).
Nesse sentido, cabe lembrar que dois são os modelos de letramento existentes
hoje. O primeiro é definido como “concepção liberal de letramento” (SOARES, 1998)
ou “letramento autônomo” (STREET, 1984, apud KLEIMAN, 1995) e se refere a uma
visão de letramento como instrumento de desenvolvimento cognitivo e econômico, de
mobilidade social, de progresso profissional e de cidadania. Essa concepção vem sendo
usada, por isso, para a manutenção das práticas e relações sociais correntes,
acomodando as pessoas às condições vigentes. Assim, a escrita é vista como um
produto completo em si mesmo, que não dependeria do contexto de produção para ser
interpretado, o que dicotomiza fortemente as práticas orais e as práticas escritas e atribui
poderes e qualidades intrínsecas à escrita e aos povos que a possuem (KLEIMAN,
1995; SOARES, 1998).
A segunda concepção, à qual esta tese se alinha, pode ser denominada de
“concepção radical ou revolucionária” (SOARES, 1998) ou de “modelo ideológico”
(STREET, 1984, apud KLEIMAN, 1995). Sob essa ótica, entende-se que o letramento
não é um instrumento neutro, mas sim um conjunto de práticas socioculturalmente
construídas e determinadas, “responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições,
formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais” (SOARES, 1998,
p.74). As práticas de letramento são vistas, assim, como “um conjunto de práticas
sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em
contextos específicos para fins específicos” (KLEIMAN, 1995: p.19)18
.
Passa-se a questionar, então, as relações de causa e efeito entre poder, acesso (e
sucesso) social e saber escolarizado e busca-se refletir sobre a capacidade de usar a
leitura e a escrita como um meio de tomar consciência da realidade e transformá-la. Em
relação ao ensino das línguas ditas estrangeiras na escola, a partir da inserção nesta
perspectiva de letramento, “o grande desafio é ajudar os aprendizes a dominarem a
língua sem serem dominados por ela” (RAJAGOPALAN, 2013a, p.159), posto que
tradicionalmente o aprendizado de uma outra língua está associado meramente a fins
18 Além disso, sob o modelo ideológico, deixa-se de focar apenas nas práticas escolares, considerando-se
também as práticas letradas produzidas pela família, igreja, trabalho, etc., entendendo o letramento como
um termo que se refere às diversas formas – institucionalizadas ou não – de interação social às quais os
sujeitos, em sua natureza coletiva/social, têm acesso por meio da linguagem escrita (KLEIMAN, 2005;
SOARES, 1998). Daí, o termo ser usado muitas vezes no plural.
54
tecnocráticos, dentre os quais se destaca a inserção acrítica no mercado de trabalho.
Além disso, historicamente,
Junto ao aprendizado de uma língua estrangeira e, analogamente, de
uma variante adotada como padrão para a língua materna, emerge uma
visão de mundo elitizada que não raro silencia a pessoa que não
nasceu e cresceu em condições sociais prestigiadas, e não adquiriu os
conhecimentos por uma elite legitimados. (...) No caso de uma língua
estrangeira, essa percepção acarreta a idealização do aprendizado do
inglês, do francês, do espanhol, etc. como a inserção numa cultura
rica, superior (GERHARDT, 2013, p.78).
Como salienta Gerhardt (2013), tais objetivos acarretam a invisibilidade do
aluno e a ausência de seus processos de subjetivação bem como das semioses que ele
produz dentro e fora da escola, ao colocarem esse aprendizado na condição para a sua
libertação, uma vez que institucionalmente, na escola, ele é considerado pobre e inculto,
de um lugar de indigência e impossibilidade de sucesso na vida. As línguas estrangeiras
seriam, assim, mais um objeto de salvação e, por isso, seu ensino deveria ignorar tudo
que ele traz para a sala de aula, suas experiências e seus saberes.
Como aponta Moita Lopes (2006, p.24) [com base em Gee (2000) e Bauman
(1999, 2005)], vivemos contemporaneamente em “uma nova ordem mundial” ou em
“um novo capitalismo”, “que atravessa o mundo, em todas as esferas, por meio da
globalização”, e que “promove as elites que passam a viver transglobalmente e deixam
aqueles que vivem vidas locais restritos a um mundo sem alternativas ou ao lixo dos que
vivem transglobalmente”. Acredito que o ensino de línguas, por ocupar lugar de
destaque na representação desses movimentos de globalização na escola pode ser um
importante instrumento, não de salvação, mas de conscientização dos alunos que vivem
na marginalização local, com o que lhes sobra do que é global.
Em relação à língua espanhola, então, seu lugar se torna ainda mais privilegiado,
uma vez que ela própria se encontra em posição marginal. Como afirma Rajagopalan
(2003, p.61), uma vez que “o avanço triunfante da língua inglesa como meio preferido
de comunicação internacional está afetando diretamente as demais línguas do mundo”,
e, consequentemente, as identidades linguísticas dos cidadãos do mundo globalizado. É
dentro desse panorama que Rajagopalan (2003) exalta a importância da inclusão da
pedagogia crítica na construção dos discursos sobre e das práticas de ensino de línguas
que pretendam formar focos de resistência em relação aos movimentos de globalização:
No contexto da linguística aplicada, uma proposta de pedagogia crítica
terá que começar agindo em duas frentes: a primeira, assumindo uma
postura crítica (...) em relação à linguística teórica (...), questionar a
55
própria validade da teorização feita in vitro e de sua aplicação
automática no mundo da prática. (...) A segunda (...) proporcionar aos
aprendizes capacidade de desenvolver formas de resistência e dar-lhes
condições de enfrentar os desafios e decidir o que é melhor para si. No
caso do ensino de línguas, mais especificamente de línguas
estrangeiras, a questão adquire uma certa urgência, diante do efeito
avassalador do fenômeno conhecido como “imperialismo linguístico”
(RAJAGOPALAN, 2003, p.112).
Acredito que a discussão que trago nesta tese sobre o trabalho com o plano
inferencial de leitura em livros didáticos de língua espanhola para alunos brasileiros se
encaixa perfeitamente nesse paradigma, posto que a leitura em língua estrangeira pode
ser plenamente desenvolvida em qualquer sala de aula deste país, independentemente
das condições tecnológicas, físicas e econômicas que elas venham a ter. Além disso, é
justamente o plano inferencial que permite a manifestação concreta da inclusão do aluno
nas aulas de leitura, como será possível perceber mais detalhadamente mais adiante.
Essa inclusão torna-se fundamental para que se rompa, em algum nível, com a recepção
acrítica por parte dos alunos da realidade denunciada pelos autores anteriormente
citados (RAJAGOPALAN, 2003; 2006; 2013; MOITA LOPES, 2006; 2013;
GERHARDT, 2013).
Por conta disso, é interessante trazer também para esta tese juntamente ao
conceito de letramento, a noção de Educação Linguística ainda pouco utilizada nos
discursos sobre o ensino de línguas no Brasil. Em relação a esse pouco uso, ressaltam
Menezes, Silva e Gomes (2009) que enquanto outras áreas assumiram o termo
educação, citando como exemplos, a “arte-educação” e a “educação matemática”, o
termo “educação linguística” não vingou, uma vez que os profissionais da área de
teriam se acomodado sob o guarda-chuva da LA. Por conta disso, segundo os autores, o
termo começa a ser resgatado recentemente no Brasil. Segundo os autores:
Nomear os estudos sobre ensino e aprendizagem como “educação
lingüística” seria benéfico tanto à linguística quanto à lingüística
aplicada, independente da afiliação de seus pesquisadores à LA ou à
Lingüística, pois daria realce a essa dimensão importante dos estudos
da linguagem (MENEZES, SILVA e GOMES, 2009).
A educação linguística pode ser definida como o
conjunto de fatores socioculturais que, durante toda a existência de um
indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar o
conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre outras línguas,
sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre todos os demais
sistemas semióticos. Desses saberes, evidentemente, também fazem
parte as crenças, superstições, representações, mitos e preconceitos
56
que circulam na sociedade em torno da língua/linguagem e que
compõem o que se poderia chamar de imaginário linguístico ou, sob
outra ótica, de ideologia linguística. Inclui-se também na educação
linguística o aprendizado das normas de comportamento linguístico
que regem a vida dos diversos grupos sociais, cada vez mais amplos e
variados, em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir. (BAGNO e
RANGEL, 2005, p.63).
Assim, é possível dizer que o ensino de leitura nas disciplinas de línguas
estrangeiras desenvolvido nas escolas é apenas parte da educação linguística recebida
pelo aluno ao longo de sua vida. Entretanto, é parte relevante na medida em que
desenvolve concepções/crenças/representações do que é ser leitor, do que é ser leitor em
língua estrangeira, do que é ser aprendiz de outra língua, do que é ser aprendiz, do que
lhe cabe dizer na escola e fora dela, do que é seu papel na sociedade, etc. – o que se
vincula claramente à noção de letramento defendida anteriormente. Pode-se dizer,
então, que a educação linguística se encontra baseada em um tripé essencial para a
construção do aprendiz como aprendiz em nossa sociedade. Nesse tripé,
língua/linguagem, escola e sociedade se encontram intrinsecamente vinculados.
Sobre isso, cabe lembrar que, como aponta Kleiman (1995), o letramento escolar
constitui apenas um tipo de letramento, ou seja, um tipo de prática social, porém seu
caráter é predominante em relação a outras práticas. A escola se constitui ainda hoje
como a mais importante agência de letramento, que se preocupa
não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de
prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de
códigos (...) geralmente concebido em termos de competência
individual necessária para o sucesso e promoção na escola
(KLEIMAN, 1995, p.20).
Como consequência, como bem define Rojo (2004, p.01):
a maior parcela de nossa população, embora hoje possa estudar, não
chega a ler. A escolarização, no caso da sociedade brasileira, não leva
à formação de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e,
às vezes, chega mesmo a impedi-la. Ler continua sendo coisa das
elites, no início de um novo milênio.
Em relação às aulas de língua espanhola, o que tenho notado, juntamente a
tantos outros colegas, é que, muitas vezes, por diversas razões, o texto nem chega a
entrar na sala de aula contrariamente ao que propõem os documentos oficiais (cf
PARAQUETT, 2009a). Assim, sequer há qualquer preocupação com a formação leitora
dos alunos que assistem a essas aulas, estando as práticas ainda baseadas quase que
essencialmente em exercícios gramaticais de conjugação de verbos, preenchimento de
57
lacunas, “tradução” de frases, etc. E minha hipótese aqui, a ser verificada ao longo do
trabalho é de que, quando o texto adentra a sala de aula, o trabalho desenvolvido nem
sempre condiz com o que preveem os estudos sobre o ensino de leitura, priorizando, por
exemplo, questões de “copiação” (MARCUSCHI, 1996) ou de “tradução” (no sentido
logocêntrico, palavra por palavra ou com frases isoladas, quando se pede as respostas
em português), avaliando uma competência reprodutora ou uma falsa competência
tradutória, ao invés de priorizar questões que levem o aluno a interagir, de fato, com o
texto que lê, para que assim se desenvolva como leitor, como aprendiz, etc.
Com base nisso, concordo com Gerhardt (2013, p.109-110), quando ela afirma
que:
Qualquer iniciativa de mudança estrutural dos projetos pedagógicos e
das propostas didáticas deve conter em sua base o objetivo de incluir
os alunos verdadeiramente e possibilitar a sua autonomia (...) através
do exercício do agenciamento sobre os seus processos de aprendizado,
para que eles se singularizem não apenas na escola, mas em todos os
espaços que eles desejarem ocupar e conquistar.
Para isso, creio que seja necessário, como apontam outros autores que:
a) se pense o mundo a partir de um olhar não ocidentalista (MOITA LOPES,
2006), valorizando-se assim, em nosso caso específico, os saberes e experiências
trazidos pelos alunos, tirando do lugar central os conteúdos escolares historicamente
construídos que trazem em si valores eurocêntricos e modernos e colocando o aluno
neste lugar de centralidade. Em relação ao ensino de espanhol, por exemplo, isso é
possível se se rompe com o padrão de organização do currículo focado em tópicos
gramaticais (ou mais recentemente nos gêneros discursivos apresentados de maneira
estrutural) e se coloquem práticas de leitura e escrita como foco dessa organização.
Essas práticas, por sua vez precisam estar centralizadas no desenvolvimento do aluno
como leitor e não nos conteúdos gramaticais, lexicais, genéricos etc.;
b) se busque romper com uma visão de linguística aplicada (e ensino de línguas)
como instância mediadora entre uma linguística construída à margem dos anseios
populares e a sociedade que deseja soluções práticas (RAJAGOPALAN, 2006). Assim,
torna-se papel do pesquisador em linguística aplicada (e, em nosso caso, por que não
dizer do professor de línguas?), detectar problemas linguísticos reais e teorizações que
partam desses problemas, centrando-se em quem os vive, ou, nas palavras de
Rajagopalan (2006, p.165):
58
intervir de forma consequente nos problemas linguísticos constatados,
não procurando possíveis soluções numa linguística que nunca se
preocupou com os problemas mundanos (e nem sequer tem uma
intenção de fazê-lo), mas teorizando a linguagem de forma mais
adequada àqueles problemas.
c) professores e pesquisadores se insiram no que Moita Lopes (2006) chama de
“coligação anti-hegemônica”, buscando construir maneiras de “criar inteligibilidades
sobre a vida contemporânea ao produzir conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar
para que se abram alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à
margem” (MOITA LOPES, 2006, p.86).
d) se procure, conforme descreve Pennycook (2006), com base em Janks (2000),
compreender as inter-relações entre dominação (compreendendo a
linguagem e a reprodução do poder), acesso (a necessidade de ter
acesso aos gêneros discursivos, línguas de poder etc.), diversidade (a
necessidade de reconhecer a diferença) e planejamento (a importância
de criatividade e agenciamento). Esses elementos, ela sugere, não
podem ser considerados isoladamente. Seguindo Janks, precisamos
focalizar o inter-relacionamento constante entre domínio (os efeitos
contingentes e contextuais do poder), disparidade (desigualdade e
demanda por acesso), diferença (engajamento com a diversidade) e
desejo (compreendendo como identidade e agenciamento estão
relacionados) (PENNYCOOK, 2006, pp.70-71).
Em relação a este último tópico, entendendo que ele envolve os tópicos
anteriormente citados, cabe destacar que, a partir da consideração das inter-relações
descritas por Janks, Pennycook (2006) levanta uma série de questões relativas a cada
item por ela definidos. Acreditando que tais questões propõem um norte interessante
para os que se inserem nesta perspectiva de estudos, abaixo, apresento as questões
propostas por Pennycook e, paralelamente, como elas poderiam ser reenquadradas
dentro desta tese.
Quadro 1 - Questões propostas por Pennycook (2006) e seus reenquadramentos para esta tese
Nível de análise Questões propostas por Pennycook
(2006)
Questões para esta tese
Domínio De que modos múltiplos o poder opera na
comunicação no trabalho? Que textos têm
poder em que contextos? Que questões
relativas a poder subjazem às diferentes
versões de uma tradução? Outros têm
acesso aos processos de tradução? 19
De que maneira as estruturas
de poder existentes na escola
afetam o acesso dos alunos
aos textos e a forma como os
alunos leem os textos nas
aulas de espanhol?
19
Ao tratar de uma linguística aplicada que ele denomina de transgressiva, o autor inclui os estudos da
tradução (translation) em inglês em um conjunto de caminhos “trans” (transculturalidade, translocalidade,
etc.) que contribuiriam para a ruptura com o que ele denomina de hipocrisias dentro da LA.
59
Disparidade Como os silenciados no contexto do
trabalho podem começar a falar? Como as
pessoas podem ter acesso a textos
poderosos? Outros podem ter acesso aos
processos de tradução?
Como os alunos podem ter
acesso a textos relevantes e
começarem a ser valorizados
em suas leituras nas aulas de
espanhol?
Diferença Que outros tipos de comunicação são
possíveis? Como as pessoas leem textos
diferentemente? Que formas de diferença
emergem em traduções alternativas?
Que leituras diferentes de um
mesmo texto podem existir?
Como os alunos constroem
diferentes leituras de um
mesmo texto nas aulas de
espanhol?
Desejo Por que as pessoas utilizam modos
particulares de comunicação? Que
posições de sujeito estão disponíveis para
leitores diferentes? Por que ainda são
preferíveis certas interpretações?
Que posições de aprendiz
estão disponíveis para os
alunos nas aulas leitura em
espanhol? Em que medida
suas leituras são (in)
validadas? Por quê?
Com todos esses desafios postos, ressalto, a partir de Gerhardt (2013), que é
preciso buscar construir “um ensino de língua que priorize a pessoa do aluno e as
variáveis que interferem na sua relação com os significados na escola”, devolvendo
assim ao aprendiz um lugar de centralidade que sempre deveria ter sido seu
(GERHARDT, 2013, p.94). Segundo a autora, isso só é possível “através da inserção
dos selves situados dos alunos como elementos estruturadores dos projetos curriculares
e dos planejamentos didáticos e pedagógicos em geral” (GERHARDT, 2013, p.94).
É nesse sentido que os estudos em cognição podem trazer contribuições
fundamentais para a ruptura do sistema de fracasso que tem sido o ensino de línguas no
Brasil, denunciado por diversos autores trazidos para esta tese. A partir deles, foi
possível recorrer a diversos estudos dedicados à compreensão do aprendizado (escolar
ou não) e à construção do significado de maneira situada pelas pessoas. Dessa maneira,
os estudos em cognição “podem dar uma valiosa contribuição na medida em que se
propõem a compreender como se processa o significado, quais são os elementos e
interveniências em jogo na sua produção, e como os novos conceitos produzidos se
enquadram no universo escolar” (GERHARDT, 2013, p.94).
Como se trata de um campo de estudos excluído e regularmente visto de maneira
redutora, trago no próximo capítulo, a visão de cognição com a qual trabalho nesta tese.
Lembro que são muitas as possibilidades hoje postas pelos pesquisadores desse campo
de estudos e aqui procuro apresentar as principais contribuições destes estudos para a
compreensão de uma visão de aprendizado que se alinhe às questões postas neste
60
capítulo, principalmente no que se refere ao ensino de línguas, em especial, o ensino de
leitura na escola.
61
CAPÍTULO 2: OS ESTUDOS EM COGNIÇÃO E OS PROCESSOS DE
CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS
Muitas são as perspectivas de observação dos aspectos envolvidos no processo
de desenvolvimento da leitura. As escolhas por um caminho teórico-prático ou outro,
como discutido no capítulo anterior, não são frutos de uma escolha aleatória, uma vez
que se trata também de uma escolha ética. Optar por uma maneira de observar o
fenômeno da leitura, ou da linguagem de forma mais geral, significa optar por uma
visão (e não outras) de ser humano, de aprendizado, de escola, etc. Como dito
anteriormente, nesta tese, incluo o olhar dos estudos em cognição sobre os fenômenos
que envolvem a interação por meio da linguagem – o que inclui, obviamente a leitura.
Essa escolha deriva de minha busca por compreender como a cognição humana
funciona – em especial, como funciona na escola – e da crença de que a perspectiva
desenvolvida nos estudos em cognição pode contribuir para a construção de uma
linguística aplicada comprometida com a compreensão da realidade social
contemporânea e de sua necessária transformação – o que passa também pela
compreensão e transformação da escola e do que nela se faz.
Como apontam Duque e Costa (2012, p.13),
a abordagem cognitivista contemporânea contempla distintas áreas do
conhecimento e se propõe a descrever e explicar as mútuas relações
entre a linguagem e outras faculdades cognitivas, assim como o papel
que a experiência intersubjetiva situada em diferentes contextos
socioculturais desempenha na arquitetura dessas relações (DUQUE e
COSTA, 2012, p. 13).
Assim, os estudos em cognição podem ser trazidos para uma pesquisa
preocupada com o ensino de línguas e com a realidade escolar com a qual os alunos se
deparam – e a qual os exclui cotidianamente (MOITA LOPES, 1996; SOARES, 2005;
GERHARDT, 2013), porque, como afirma Gerhardt (2013, p.77),
as línguas (materna e estrangeiras) com as quais o aluno tem contato
na escola precisam ser consideradas não apenas como “produtos
sociais da linguagem” (SAUSSURE, [1916] 2001), mas também como
construtos semióticos atravessados por valores engendrados nas
intersubjetividades simétricas e assimétricas em que as pessoas se
envolvem em quase todos os momentos de suas vidas.
Acreditando nisso, o objetivo deste capítulo é, então, destrinchar a visão de
cognição com a qual trabalho, de forma que: a) se entenda a visão de ser humano, de
linguagem, de interação e de mente que essa abordagem instancia e b) se construam as
62
bases teóricas necessárias para a visão de leitura e de inferenciação com a qual
trabalharei mais adiante.
Em sua maioria, os documentos oficiais e os trabalhos desenvolvidos na
academia brasileira, no que se refere ao ensino de línguas, se baseiam em um aporte
discursivo e/ou sócio-interacionista. Ao trazer os estudos em cognição para esse campo,
assumo o risco de estar trabalhando em um terreno desconhecido por muitos – e, por
isso, muitas vezes julgado equivocadamente como sendo um campo que reduzisse o
sujeito a seus aspectos fisiológicos. A título de exemplificação, em uma breve busca
rápida no Google, é possível localizar em trabalhos diversos sobre o ensino de línguas,
(auto)afirmações que ressaltam que a abordagem escolhida por seus autores não é
“meramente cognitiva”, “apenas cognitiva” ou “estritamente cognitiva” (e suas
derivações).
Em documento complementar ao edital do Programa Nacional do Livro Didático
– PNLD 201820
, por exemplo, a Comissão Técnica – Componente Língua Estrangeira
Moderna afirma que “cognitivistas acreditam que o indivíduo é uma "caixa-preta" e que
o processo de aprendizagem é tarefa única e exclusiva do sujeito, o ambiente não
participa do processo”, o que não condiz sequer com as perspectivas iniciais adotadas
pelos estudos em cognição, e, como se verá nesta tese, não corresponde a perspectivas
(nem tão) mais recentes às quais estou aderindo. Assim, pode-se notar que o discurso
oficial sobre a cognição e seus estudos é completamente alheio ao que efetivamente se
diz e se estuda nesse campo.
Por isso, tem sido foco de nosso grupo de pesquisa - o COGENS (Grupo de
Pesquisa em Cognição e Ensino de Língua) compreender os aspectos cognitivos
envolvidos em atividades escolares de leitura e de produção escrita, e também divulgar
a abordagem cognitivista de forma a mostrar que ela não se constitui por uma visão
restrita sobre a cognição e sobre a linguagem. Nesse sentido, posso dizer que, para nós,
a cognição nunca será “mera, estrita ou apenas”, e que, na verdade, esses julgamentos
são feitos por pesquisadores que possuem visões restritas sobre a cognição e sobre seus
estudos. Como afirma Gerhardt (2013, pp.80-81):
atualmente, as ciências cognitivas podem dar conta de contribuir com
o ensino através de subsídios conceituais e metodológicos, em
articulação com outras predisposições que advogam por uma visão de
20
Em: http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/165-editais?download=9812:pnld-2018-consideracoes-
comissao-tecnica-lem
63
pessoa atravessada por diferentes dimensões de subjetividade e pelos
universos de interação em que se engaja. Essa articulação permite que
assumamos uma das principais tarefas da Linguística Aplicada ao
ensino de línguas: a de estabelecer o necessário diálogo entre as
teorias da linguagem e os aparatos conceituais que oferecem
explicações sobre o que é o aprendizado e sobre o que é a construção
dos significados realizada pelas pessoas situadas em contextos
sociocomunicativos específicos.
Tendo isso em mente, acreditamos que, diferentemente do que fazem, em sua
maioria, os documentos oficiais, não é possível deixar de lado o legado deixado pelos
estudos em cognição, que foram essenciais, em um primeiro momento, para que o
debate sobre o ensino de línguas – tanto materna como estrangeiras – alcançasse o lugar
que hoje ocupa nos meios acadêmicos e escolares (cf. FULGÊNCIO e LIBERATO,
1996, 2003; KATO, 1986, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010; LEFFA, 1996; SCLIAR-
CABRAL, 1991; SOLÉ, 1992; entre outros). A forma como esses estudos foram sendo
abandonados pelos discursos oficiais e por boa parte dos estudiosos em ensino de
línguas poderia nos levar a entender que a discussão sobre os aspectos cognitivos
envolvidos no ensino-aprendizagem de línguas já estivesse findada ou superada ou que
não se adequasse a um ensino que respeite as especificidades e a complexidade dos
sujeitos envolvidos nesse processo – o que não é verdade.
Esse abandono, na verdade, apenas acarretou o não acompanhamento da
evolução dos estudos em cognição por parte dos pesquisadores brasileiros dedicados ao
ensino e, consequentemente, dos professores que estão nas escolas e dos documentos
oficiais. Por isso, a abordagem cognitivista citada por seus críticos é sempre retratada
sob uma ótica ultrapassada mesmo dentro dos estudos em cognição. Em relação a isso, é
interessante observar, por exemplo, o que diz Rojo (2006), ao descrever as
transformações ocorridas no campo da LA, em seus objetos eleitos para pesquisa, em
seus métodos e em seus recortes teóricos:
Das pesquisas iniciais sobre o texto e seu processamento –
principalmente em leitura, mas também em produção – onde se
apresentava um sujeito atemporal e a-histórico – sujeito
cognitivo/organismo mental -, capaz (inata ou maturacionalmente) de
atualizações, estratégias e procedimentos; passa-se então a um foco
discursivo (nas diversas acepções que a palavra discurso encerra),
processual e genético, onde, embora o sujeito cognitivo/atemporal não
tenha saído completamente de cena, sobretudo nas abordagens mais
ecléticas, pode emergir o sujeito psicológico historicizado e, mesmo, o
sujeito sócio-histórico (ROJO, 2006, p.256).
64
Observando a fala da autora, o que se nota é uma visão de “perspectiva
cognitiva” como abordagem atemporal e a-histórica, sendo o sujeito cognitivo sinônimo
de organismo mental, apontando-se, inclusive, para a possibilidade de se considerar um
“sujeito cognitivo” em oposição a um “sujeito psicológico historicizado” ou “sócio-
histórico”, como se em algum momento pudéssemos deixar de ser sujeitos cognitivos
para ser outras coisas. Ao invés de se incorporar a historicidade, os aspectos sociais e
culturais à cognição, nega-se a sua existência. Sob essa perspectiva – amplamente
difundida –, a cognição é vista
apenas como um acervo de saberes que são ativados e usados no
momento da enunciação linguística, sem se ponderar que essa própria
enunciação por si só já é uma ação cognitiva, que produz conceitos
que precisam ser levados em conta na investigação sobre ensino,
porque revelam como funciona a mente do aluno quando ele está em
sala de aula exercendo o seu self de aluno, e também porque
evidenciam quais são de fato os conteúdos e aprendizados que ele
aufere na escola” (GERHARDT, 2013, p.92-93).
Desse modo, cabe dizer que os estudos em cognição formam um campo que está
em constante processo de revisão de si mesmo, articulando conhecimentos de diferentes
disciplinas, sob diferentes abordagens, para construir uma visão sobre a mente humana
coadunada com seu tempo. Neste capítulo, portanto, procuro integrar os trabalhos que
vão me ajudar a construir uma visão processual e distribuída sobre a construção do
significado, o que acontece não só na leitura, mas em qualquer uso da linguagem por
seres humanos.
Para isso, trago pressupostos que mostram a complexidade da cognição humana,
entendida essencialmente como distribuída, uma vez que é social, cultural e
intersubjetival – daí a possibilidade de inserir tais pressupostos ao campo da Linguística
Aplicada. Sob essa perspectiva, destacam-se, então, os processos de construção de
sentido, entendidos como “um fenômeno multidimensional, um processo dinâmico de
acoplamento que delimita as relações entre o organismo e seu meio, entre os aspectos
estruturais e a dinâmica sociocultural, atestando uma atividade que perpassa organismo,
ambiente e cultura” (DUQUE e COSTA, 2012, p. 15).
Assim, nas próximas seções, apresento por que a visão de cognição aqui adotada
pode ser entendida como social e cultural. Nesse sentido, em seguida, explico como a
cognição é entendida como intersubjetival, corporificada, baseada em frames e
desenvolvida a partir de integrações conceptuais. Todos esses pressupostos, apesar de
didaticamente separados para a construção deste capítulo existem de maneira integrada
65
em nossos processos cognitivos. Além disso, todos eles nos levam à percepção de que a
cognição é distribuída, o que aparecerá ao final do capítulo como ideia base para a
compreensão do funcionamento da cognição dos alunos (e dos professores) no espaço
da sala de aula e suas consequências na formação do aprendiz e de seus aprendizados.
2.1. A cognição é social e cultural (bem com a linguagem...)
Como aponta Salomão (1998, p.261), “a hipótese central a toda abordagem
cognitivista postula que a ‘significação é uma construção mental produzida pelo
sujeito’”, o que confrontaria, segundo ela, diretamente a tradição em semântica
filosófica e linguística que ignora a dimensão mental do processo de construção de
significados. A partir dessa noção, a autora afirma que a abordagem cognitivista do
processo de construção de sentido se contrapõe à chamada semântica de verdades, que
trabalha, por exemplo, com conceitos como “sentido literal”, “forma lógica” e “análise
componencial e composicional da significação”.
Historicamente, a busca pelo desenvolvimento de uma linguística isolada de
outras perspectivas sobre a linguagem e bem definida enquanto disciplina, tal e como
posto por Saussure e por seus seguidores, dentro de uma linha estruturalista, acabou por
retirar toda a dimensão psicológica do estudo da linguagem, do sentido e da
compreensão da sociedade, uma vez que o foco dos estudos linguísticos estaria na
língua enquanto sistema estruturado. Essa perspectiva de abordagem da linguagem só
teve seu lugar de prestígio alterado pela “revolução copernicana protagonizada por
Chomsky” (SALOMÃO, 1999, p.63), uma vez que, a partir do desenvolvimento de uma
perspectiva essencialmente mental sobre a linguagem, ele colocou a natureza da mente
como foco de estudo.
Entretanto, Chomsky manteve uma visão essencialista da linguagem, ao assumir
uma perspectiva teórica que isola a faculdade da linguagem de outras capacidades
humanas, e postulou princípios gerais inatos (SALOMÃO, 1999). A partir de seus
estudos, a linguística voltava-se para a cognição, porém, sob uma visão de mente
modular, não considerando o fato de que a mente se insere em um corpo, que, por sua
vez, se insere em uma determinada cultura, que também a constituem. Como afirma
Salomão (1999, p.64), o reconhecimento da presença de um sujeito cognitivo não fez
66
com que os estudos gerativistas rompam com a barreira disciplinar entre as ciências
sociais e as ciências psicológicas. Porém, posteriormente,
quando os estudos linguísticos (...) encaram o desafio de tratar o
fenômeno da significação, tornam-se insustentáveis tanto a tese da
exclusão do sujeito, cultivada pelos estruturalismos de todos os
matizes, como a tese gerativa da exclusividade do sujeito cognitivo
(SALOMÃO, 1999, p.64).
Nesse sentido, é interessante observar que, como aponta Geeraerts (2006a), a
própria separação, dentro dos estudos linguísticos entre os aspectos psicológicos e os
aspectos sociais da linguagem, é derivada da separação entre “langue” e “parole”, posta
por Saussure:
A distinção saussuriana entre langue (o sistema linguístico) e parole (o
uso do sistema linguístico em uso real) cria uma gramática
internamente dividida, uma concepção de linguagem com, por assim
dizer, um buraco no meio. Por um lado, a langue é definida por
Saussure como um sistema social, um conjunto de convenções
coletivas, um código comum compartilhado por uma comunidade. Por
outro lado, a parole é uma atividade psicológica individual, que
consiste em produzir combinações específicas dos elementos que
estão presentes no código (GEERAERTS, 2006a, p.25, tradução
minha)21
.
Essa separação, uma vez que a Linguística serviu de base para a construção das
ciências humanas e sociais modernas, também foi adotada por outras disciplinas. Por
isso, apenas recentemente, como apontam Sinha e Jensen de López (2000), linguagem,
cultura e cognição começaram a ser vistos como objetos de estudos integrados por
diferentes abordagens. Entretanto, ainda assim, como enfatizam os autores, esses
elementos têm sido vistos dois a dois (linguagem e cultura, linguagem e cognição,
cultura e cognição), o que não é suficiente para se entender a complexidade humana.
Assim, se, por um lado, esse pareamento torna a interdisciplinaridade mais fácil de ser
construída, sendo vista como um fenômeno de fronteira entre duas disciplinas (o que
levou à criação das chamadas subdisciplinas: psicolinguística ou psicologia da
linguagem, linguística antropológica, antropologia cognitiva, etc.), por outro, também
tem levado as mais diversas disciplinas a verem o ser humano e sua realidade como
compartimentalizada em função dessa divisão.
21 Original: “The Saussurean distinction between langue (the language system) and parole (the use of the
language system in actual usage) creates an internally divided grammar, a conception of language with, so
to speak, a hole in the middle. On the one hand, langue is defined by De Saussure as a social system, a set
of collective conventions, a common code shared by a community. On the other hand, parole is an
individual, psychological activity that consists of producing specific combinations from the elements that
are present in the code” (GEERAERTS, 2006, p.25).
67
É na busca pela ruptura com essa divisão que a inclusão dos estudos em
cognição dentro da Linguística Aplicada apresentada no capítulo anterior pode ser uma
importante contribuição, uma vez que, como afirma Rajagopalan (2006, p. 18-19),
talvez tenha chegado a hora de não só traçar novos rumos para a LA,
mas de livrar o ensino de línguas, de uma vez por todas, das garras das
teorias linguísticas hegemônicas que insistem na tese de
autonomismo, segundo o qual o fenômeno linguístico deve ser
abordado sem se preocupar com seus eventuais desdobramentos
políticos e ideológicos, nem tampouco levar em consideração as
implicações práticas deles decorrentes.
Considerando o propósito posto por Rajagopalan em mente, é possível buscar na
inclusão dos estudos em cognição um caminho possível para se livrar dessas garras que
limitam visões sobre as práticas de linguagem nas quais nos engajamos como seres
humanos. Como explica Geeraerts (2006a), enquanto outras perspectivas linguísticas
acabaram construindo para si ilhas com entidades conceituais e sociológicas próprias, a
Linguística Cognitiva22
se construiu como um arquipélago sem um território delimitado,
constituído por um conjunto de muitas abordagens parcialmente sobrepostas: “a
Linguística Cognitiva é mais um suporte flexível do que uma única teoria da
linguagem” (GEERAERTS, 2006a, p.2)23
.
Dessa maneira, ainda que eu esteja evitando aderir ao termo, uma vez que seu
campo de estudos no Brasil parece estar marcado por um tipo de pesquisa muito
específica que coloca apenas a linguagem no centro dos projetos de investigação, é
possível afirmar que este é também um trabalho em Linguística Cognitiva, posto no que
Gerhardt (2017, p.11) coloca como “instância mais externa e expandida”:
Na instância mais externa e expandida da Linguística Cognitiva como
categoria radial, assim como se dá na Linguística Aplicada, rompe-se
com as definições disciplinares, para se privilegiar, no centro do
cenário, a pessoa, e se começa a pensar nela como situada,
normatizada e intersubjetival. E o aparato conceptual desenvolvido
para os estudos da linguagem bem como das práticas nas realidades
em que ela faz presente, ganha nova e interessantíssima dimensão.
Essa ampliação dos territórios revela uma abertura de caminhos sem
precedentes, porque as condições de pensabilidade proporcionadas
pelo aparato conceitual desenvolvido pela Linguística Cognitiva nas
outras instâncias da categoria tornam-na poderosa o suficiente para
que a empreguemos para falar das pessoas: à investigação da língua
22
Aqui, cabe ressaltar que a Linguística Cognitiva é apenas uma das disciplinas que compõem a área dos
estudos em cognição, mas é possível reconhecer esse movimento no campo como um todo.
23 Original: “Cognitive Linguistics is a flexible framework rather than a single theory of language”
(GEERAERTS, 2006, p.2).
68
como semiose, agrega-se a investigação das experiências das pessoas
(no meu caso, por exemplo, as experiências das pessoas com a
linguagem em contextos escolares), para a produção de conhecimento
com base no que há de integrativo entre os diferentes planos
experienciais/conceptuais em que existimos.
Dentro desta perspectiva, portanto, não há separação entre linguagem, cultura e
cognição, uma vez que “ao utilizar a linguagem, os seres humanos carregam, em suas
palavras, uma carga cumulada de crenças, ideais, influências, as quais estão tão
arraigadas em sua cognição que são inseparáveis daquilo que ele quer significar”
(VANIN, 2009, p.42). Nesse sentido, ao falarmos em linguagem, falamos em cognição
e, ao falarmos em cognição, falamos em linguagem, já que esta é entendida como “uma
parte integrada da cognição humana que opera em interação com e baseada nos mesmos
princípios de outras faculdades cognitivas”24
(DIRVEN, 2005, p.17, tradução minha).
Apresenta-se aqui, portanto, uma abordagem que “analisa a linguagem em suas relações
com outros domínios cognitivos e faculdades”25
(DIRVEN, 2005, p.17, tradução minha)
e que entende que “percepção, ação, linguagem não podem mais serem consideradas
como módulos totalmente autônomos e independentes, devendo tornar-se especificações
funcionais em uma configuração unitária comum”26
(DIRVEN, 2005, p.17, tradução
minha).
É por conta disso que se pode dizer que “o conhecimento de si próprio, o saber
sobre o mundo e a noção daquilo que está na mente do outro, num tripé irredutível,
tornam-se tão essenciais para a formulação de significados” (VANIN, 2009, p.57), uma
vez que, dentro dessa concepção, a linguagem, bem como a mente, também não se
separa do mundo. Se pensamos no trabalho a ser feito com os alunos na escola,
podemos encontrar aqui um importante foco para o trabalho com a educação linguística,
uma vez que a escola deveria contribuir para a construção desse conhecimento. Como
aponta Salomão (2003, pp.82-83):
24
Original: “CL approaches language as na integrated part of human cognition which operates in
interaction with and on the basis of the same principles as other cognitive faculties” (DIRVEN, 2005,
p.17).
25 Original: “a linguistic theory wich analyzes language in its relation to other cognitive domains and
faculties” (DIRVEN, 2005, p.17).
26 Original: “Perception, action, language cannot anymore be considered as totally autonomous and
independent modules, they must become functional specifications in a common unitary configuration”
(DIRVEN, 2005, p.17).
69
O realismo cognitivista (não-metafísico) reconhece que o mundo
existe e que a mente é inseparável do mundo, em sua materialidade e
em sua história: de fato, a mente é parte do mundo e, nesta condição,
não o representa, mas atua nele, e o transforma ao transformar-se. Por
isso, nesta perspectiva, é impossível conceber a verdade como
transcedência ou a liberdade como autonomia da situação em que a
cognição se produz. (...) A razão-no-mundo, que transforma o mundo
ao transformar-se, não se sintetiza jamais: ela é contrapontística,
mesclada e heterogênea; nada nela anuncia qualquer hipótese de
unificação. Sua pluralidade não a torna, entretanto, errática. (...) a
verdade, tanto quanto o mundo, existe e se produz como
entendimento, construído em condições comunicativas densamente
radicadas e vividamente experimentadas.
Nesse sentido, lembra Vanin (2009): “a cognição humana tem lugar em um
contexto cultural e também social, já que usa instrumentos fornecidos pela cultura na
qual estão inseridos, como palavras, conceitos e crenças” (VANIN, 2009, p.47). Desse
modo, a linguagem é entendida apenas como um dos instrumentos cognitivos, que,
juntamente a outros e em semelhança a eles, “aciona um conjunto de princípios
aparentemente simples, gerais e limitados, operativos sobre bases de conhecimento
subjacentes na memória, ou presentes, como contexto, na situação comunicativa”
(SALOMÃO, 1999, p.65)27
.
Por isso, nos lembra Miranda (2001) que o objetivo de um trabalho que parta
dessa concepção deve se alinhar a uma agenda mais ampla: a de busca da compreensão
do processo de significação, desvelando-lhe a face cognitiva, social e linguística sem
que se trabalhem com sujeitos ou cenas idealizadas, uma vez que “o coração da
atividade interpretativa está no caráter social da cognição e, portanto, no sujeito
interativo – um sujeito que constrói a identidade, o conhecimento, na dialogia, no
partilhamento com o outro” (MIRANDA, 2001, p.59). Sob essa concepção, o processo
de construção de sentidos ou significação deve ser considerado tanto um ato cognitivo
como social e, sob essa visão, não se pode falar em cognição e ignorar qualquer aspecto
social que faça parte de sua construção28
. Na verdade, é possível radicalizar essa visão e
dizer que o ato cognitivo é social e o ato social é cognitivo. Não há como separar essas
duas realidades.
27
Nesta e nas seções seguintes, tratarei de alguns desses princípios que, apresentam-se separados apenas
por questões didáticas, uma vez que, dentro da abordagem aqui adotada, estão plenamente imbrincados
uns nos outros.
28 Salomão (1997, 1998, 1999), por exemplo, defende a ideia de uma abordagem sócio-cognitivista. Nesta
tese, não uso o termo por acreditar, junto a tantos outros autores, que o termo “cognição” em si já envolve
os aspectos sociais e que, portanto, falar em “sócio-cognição” pressuporia a existência de uma cognição
que não seja social.
70
A linguagem, por sua vez, é entendida como uma capacidade humana (biológica
e cultural) desenvolvida para guiar esses processos de significação em contextos de uso
determinados. Como aponta Langacker (1995, apud DIRVEN, 2005), todo significado
linguístico é conceptual por natureza, pois reside na conceptualização. Assim, como já
dito, ela não pode ser analisada de maneira isolada de outras capacidades humanas, uma
vez que funciona como “operadora da conceptualização socialmente localizada através
da atuação de um sujeito cognitivo, em situação comunicativa real, que produz
significados como construções mentais, a serem sancionadas no fluxo interativo”
(SALOMÃO, 1999, p.64).
Posto que a conceptualização só se dá em situações reais de comunicação, sendo
dirigida pelo fluxo interativo, sob essa ótica, não se acredita que o sentido esteja nem na
linguagem nem no mundo. Ele não é visto como dado, mas sim como construído na
interação, em conjunto pelos participantes que nela atuam. Dentro dessa lógica, “a
linguagem, antes de refletir objetivamente a realidade, impõe ao mundo uma
organização, interpretando-o e construindo-o (...), é uma das estruturas mentais por
meio da qual o homem arquiteta e percebe o seu entorno biopsicossocial” (DUQUE e
COSTA, 2012, p. 15). Assim, é na interação que se interpretam os sentidos do outro e,
principalmente, que se atribui sentido ao mundo: “é a partir daquilo que se compartilha
com o outro que as coisas do mundo passam a existir realmente” (VANIN, 2009, p.45).
Assim, em uma visão de mente que vai muito além dos limites do cérebro,
passa-se a ver a relação entre conceitos construídos pelas pessoas e as palavras como
imperfeita (VANIN, 2009). Salomão (1997, 1999) denominou essa imperfeição de
princípio da escassez da forma linguística. Como afirma a autora, “o significado literal
não mora em parte alguma; não está na linguagem” (SALOMÃO, 1999, p.67). Uma vez
que, dentro dessa concepção, entende-se que os sentidos são sempre localmente
construídos, não se trabalha com ideias como sentido literal ou denotativo em oposição
a sentidos que fugiriam de uma significação previamente dada, posto que nunca haveria
sentidos preexistentes a uma determinada situação de uso linguístico.
Nesse sentido, não se trabalha com a noção de que são as palavras que codificam
os significados construídos pelo falante, uma vez que elas apenas os evidenciam. Os
significados, sob essa perspectiva, são construídos na mente das pessoas, o que inclui o
mundo social e tudo o que o constitui (objetos, pessoas, instituições, animais, etc.) (cf.
FAUCONNIER, 1997). Assim, quando alguém fala, esse alguém deseja que o
71
interlocutor entenda algo que está em sua mente e o interlocutor, por sua vez, espera que
o falante lance evidências do que ele quer dizer. Essas evidências só podem ser
interpretadas porque ambos vivem em um contexto compartilhado, micro e macro, ou
seja, porque ambos se inserem em uma cultura comum e em uma mesma situação de
comunicação (VANIN, 2009). Em uma pesquisa como esta sobre o ensino de leitura,
torna-se, então, fundamental, a compreensão de como esse processo de interação e de
construção de significados se dá, uma vez que é ele que compõe a construção das
leituras dos alunos (e de qualquer pessoa em qualquer espaço).
Sobre esse processo de construção de significados, Salomão (1998, p.263)
pergunta “Como determinar que a significação pretendida não recobre o campo de toda
a significação evocável?”, uma vez que não são os sentidos pré-determinados às
situações de comunicação nas quais os falantes se engajam. A própria autora responde:
A chave para a elucidação deste problema repousa em duas
dimensões: de um lado, o constrangimento imposto pela própria
escolha formal do significante; e, de outro, mais crucialmente, a
operação de estratégias comunicativas seletivas que elegem, no
contexto interativo determinado, “qual a interpretação relevante”.
(SALOMÃO, 1998, p.263).
A resposta dada por ela está diretamente conectada a outro princípio
estabelecido pela pesquisadora, denominado de “princípio do dinamismo contextual”
(SALOMÃO, 1997, 1999). Esse princípio está ligado ao fato de que linguagem e
contexto não são polaridades estanques, pois entende-se que as coisas do mundo social
também são signos e que é o contexto que, de maneira perspectival, focalizada ou
enquadrada, dará conta da escassez da linguagem. Sob essa ótica, o contexto não é um
conjunto de variáveis estáticas (espácio-temporais, sociais, situacionais, etc.), mas sim
um modo de ação compreendido fenomenologicamente (SALOMÃO, 1997).
Todo processo de construção conceptual é visto, então, como dinâmico, de
natureza duplamente contextual, uma vez que o contexto modela a prática interpretativa
e a prática interpretativa também modela o contexto (SALOMÃO, 1997). O contexto é,
sob essa ótica também visto como socialmente construído, sendo, portanto, sustentado
interativamente e delimitado temporalmente (SALOMÃO, 1999). Dessa maneira, o
caráter social da cognição (e da linguagem) se manifesta na medida em que
toda experiência social é, por sua vez, semantizante: só é possível
atuar na cena social (de caráter micro ou macro), investindo-a de
sentido, seja com base em conhecimento consensualizado (o MCI da
interação), disponível como norma de conduta, ou por conta da
72
motivação singular de realizar objetivos localmente relevantes
(SALOMÃO, 1999, p.71).
Assim, o significado produzido na interação é não apenas um significado
possível, mas é também – e principalmente – o significado aceitável naquele contexto
de interação, uma vez que a situação de comunicação impõe condições que operam na
construção dos sentidos pelos interactantes que nela atuam. É por isso que a natureza
social da cognição nos impõe a ruptura de uma visão cumulativa de cognição em função
da compreensão de que a cognição é essencialmente processual. E ela é processual,
entre outras razões, porque, como nos lembra Vanin (2009), a representação conceitual
(do que quer seja) não está fixa na mente do indivíduo, construindo-se no convívio com
os outros. Tal perspectiva é essencial para a mudança da visão escolar de aprendizagem,
uma vez que ela substitui a noção tradicionalmente valorizada pela escola de
inteligência como acúmulo de informações e coloca o foco na processualidade, ou seja,
no que se pode fazer com o que se aprende.
Sob esse ponto de vista, dizemos que os sentidos são construídos e reconstruídos
continuamente, sempre de forma interativa e, por isso, negociada, entre os sujeitos que
interagem sob qualquer condição e a qualquer tempo.
Tal interação pode levar à associação com outros conceitos que foram
derivados de trocas comunicativas anteriores, gerando assim uma
entrada mais complexa daquela que já faz parte da memória
enciclopédica do indivíduo. A língua, como prática social, é
sustentada pelas suas formulações no plano comunicativo e, como
capacidade cognitiva, é culturalmente situada e definida. Assim,
assume uma visão contextualizada – ou enciclopédica – do significado
(VANIN, 2009, p.50).
O significado linguístico, dentro dessa visão, é então visto como: a) perspectival,
uma vez que não é o reflexo objetivo do mundo, mas sim uma forma de modelar o
mundo, construído de uma maneira particular, corporificando uma perspectiva para o
mundo; b) dinâmico e flexível, uma vez que lidamos com um mundo em transformação
e que nossas novas experiências exigem que adaptemos nossas categorias semânticas
em função dessas transformações; c) enciclopédico e não autônomo, uma vez que se
considera a pessoa em sua completude, não entendendo a linguagem como um módulo
independente na mente, mas sim como refletindo nossa experiência global como seres
humanos e considerando que somos seres com corpos e com identidades culturais e
sociais que atuam na construção dos significados; d) baseado no uso e na experiência,
73
uma vez que o significado é experencialmente enraizado, não existindo no abstrato e
sendo sempre parte de enunciados e diálogos reais (GEERAERTS, 2006a).
Como Geeraerts (2006a) aponta, cada um desses pressupostos traz em si
diversas questões que servem de base para uma série de investigações. Nas próximas
seções, detalharei essa perspectiva social da cognição (e da linguagem), a partir de
alguns pressupostos dela derivados que serão úteis para a compreensão do objeto central
dessa pesquisa: o trabalho com o plano inferencial de leitura nas aulas de língua
espanhola a partir da análise de materiais didáticos e das respostas dos alunos a
atividades aplicadas em sala de aula.
2.2. A cognição é intersubjetival
O fato de a significação ser tratada como uma construção mental produzida
pelos interactantes no curso de uma determinada interação comunicativa (SALOMÃO,
1997) aponta não apenas para o fato de que a cognição é social, mas também – e
originariamente – para o fato de que a cognição é intersubjetival. E, consequentemente,
para o fato de que nós somos intersujeitos (GERHARDT, 2013). Assim, entende-se que,
em oposição à ideia defendida pelos gerativistas, o ser humano não é visto como um ser
social porque possui uma capacidade inata para a linguagem, mas sim porque possui
uma capacidade inata para o entendimento, sendo direcionado pela necessidade de
interação. Nossa cognição é vista como social, portanto, porque parte de um princípio
de partilhamento (TOMASELLO, 1999; VANIN, 2009).
Em função disso, Miranda (2001) nos lembra do caráter compartilhado da
construção da significação, já que o sentido não está na linguagem, mas sim no
resultado de uma atividade conjunta que exige cooperação: “a linguagem é ação
conjunta, o que significa dizer que, sem atenção partilhada, não há linguagem”
(MIRANDA, 2001, p.60). Como afima Tomasello (1999), o ser humano, em seu
processo de desenvolvimento, se projeta no outro, construindo assim, em função do
outro, sua própria identidade. Segundo defende o pesquisador, aprendemos através do
outro porque nos identificamos e nos projetamos nele.
Assim, as habilidades cognitivas são também modelos culturais, e
onde se desenvolvem os sistemas de dimensões coletivas a partir da
capacidade de compartilhar intenções através da linguagem (VANIN,
2009, p.46).
74
Tomasello (1999), em trabalho fundamental para a construção dessa perspectiva,
ao buscar investigar as origens culturais da cognição humana, aponta que a espécie
humana compartilha algumas capacidades com outras espécies primatas, tais como a de
se localizar espacialmente e temporalmente e a de categorizar. Porém, em oposição ao
que apontam outros teóricos, ele defende que a nossa diferença evolutiva em relação a
esses outros primatas não está em nenhuma mudança genética. Esta diferença reside,
para ele, no caráter cultural que a nossa cognição adquiriu ao longo do tempo, através
das gerações que compõem a história de nossa espécie no planeta.
Filogeneticamente, argumenta Tomasello (1999), não houve tempo histórico
para que uma transformação biológica / genética, ocorresse, uma vez que somente há
cerca de 200 mil anos nossa espécie humana teria iniciado um processo de
desenvolvimento de ferramentas mais complexas, de formas mais complexas de
comunicação e representação simbólica, bem como de organizações e práticas sociais.
Ademais, ontogeneticamente, o pesquisador observou que crianças apresentam em seu
desenvolvimento mecanismos de aprendizagem muito mais complexos do que a simples
associação ou do que a indução cega. Além disso, ele parte de estudos mais recentes que
revelam que a competência linguística das crianças é muito mais próxima da
competência linguística dos adultos do que comumente se pensa.
Em relação a isso, Sinha (2005, p. 313, tradução minha), que compartilha da
perspectiva definida por Tomasello (1999), defende que:
ao contrário dos sistemas de comunicação de sinais não-humanos, as
línguas naturais humanas são sistemas de símbolos. A transição
evolutiva do uso do sinal para o símbolo, e a elaboração exo-somática,
culturalmente dirigida do uso do símbolo na linguagem, explica a
complexidade única da linguagem humana (incluindo a gramática).
Esta complexidade emergente, (...), tem, no decurso da evolução,
cooptado ou capturado um conjunto de capacidades cognitivas que são
exclusivamente desenvolvidas (mas não únicas) em seres humanos.29
Com base nessa perspectiva, nossa evolução se deu porque, ao longo do tempo,
os processos socialmente e culturalmente desenvolvidos foram transformando nossas
habilidades comuns a outros primatas em habilidades mais complexas. E isso só
29
Original: “My argument is rather that, in contrast to non-human signal systems of communication,
human natural languages are symbol systems. The evolutionary transition from signal to symbol usage,
and the exo-somatic, culturally-driven elaboration of symbol usage into language, accounts for the unique
complexity of human language (including grammar). This emergent complexity, I suggest, has, in the
course of evolution co-opted or captured a suite of cognitive capacities that are uniquely developed (but
not unique) in humans” (SINHA, 2005, p. 313).
75
aconteceu porque, em determinado momento da história de nossa espécie, conseguimos
nos ver como co-específicos e, consequentemente, como agentes intencionais, capazes
de reconhecer e de compartilhar intenções. A cognição humana é, nessa concepção,
então, o resultado de processos evolutivos, que construíram biologicamente a cognição
primata, aprimorados pela nossa capacidade cultural de nos engajarmos em atividades
de colaboração, sendo, portanto, uma cognição essencialmente cultural.
Assim, a espécie humana seria a única capaz de transmitir conhecimentos já
existentes para membros de uma mesma cultura, mesmo através de diferentes gerações,
modificando-os ao longo do tempo e transmitindo também essas modificações para as
próximas gerações. Nesse sentido, retoma-se a ideia de que “a principal função da
linguagem não é a descrição objetiva do mundo, mas sim a comunicação e o
compartilhamento de experiências”30
(ROHRER, 2007, p.26, tradução minha), uma vez
que ela teria se desenvolvido como instrumento para esse mecanismo de transmissão de
conhecimentos, único de nossa espécie. Como aponta Sinha (2005, p.312, tradução
minha):
As línguas naturais humanas são sistemas comunicativos, e o uso
primário da linguagem é a comunicação. A extensão e a natureza da
relação entre as funções comunicativas, e as propriedades sistêmicas,
das línguas naturais podem ser contestadas, mas o que não pode ser
contestado é que a linguagem é um veículo para a comunicação
humana.31
Dentro dessa concepção, a linguagem não é considerada um aspecto crítico para
a evolução de nossa cognição. Ao contrário, defende-se que a linguagem é apenas mais
uma das consequências dessa capacidade humana de cognizar intersubjetivamente. Em
função disso, Miranda (2001) defende que a linguagem é conhecimento para o outro,
uma vez que nascemos programados apenas para nos entendermos como co-específicos
e atribuirmos intencionalidades às ações dos outros. Como aponta Gerhardt (2006,
p.1189), “a linguagem é uma forma de cognição constituída com a finalidade de
promover a comunicação interpessoal”.
30
Original: “the primary purpose of language is not the objective description of the world, but instead to
communicate and share experiences” (ROHRER, 2007, p.26).
31 Original: “Human natural languages are communicative systems, and the primary use of language is to
communicate. The extent and nature of the relationship between the communicative functions, and the
systemic properties, of natural languages may be disputed, but what cannot be disputed is that language is
a vehicle for human communication” (SINHA, 2005, p. 312).
76
Nesse sentido, Sinha (2005) diferencia o uso de sinais do uso de símbolos. Para
o autor, no uso de sinais comunicativos, as únicas relações atencionais necessárias são
entre o emissor e o estímulo e entre o receptor e o comportamento, não estando
envolvida por intencionalidade. Dessa maneira, o intercâmbio social de sinais não
envolve intersubjetividade, uma vez que não existe atenção conjunta nem um mundo
socialmente compartilhado de referência conjunta. Segundo o autor, o mecanismo
subjacente ao intercâmbio social de sinais é a simples coordenação do comportamento
organísmico individual. Os símbolos, por outro lado, são convencionais, e seu uso se
apoia na compreensão compartilhada, uma vez que se constroem em um campo de
significado intersubjetivo.
Um sinal pode ser considerado como uma instrução (possivelmente
codificada) para se comportar de certa forma. Um símbolo, por outro
lado, direciona e guia, não o comportamento do (s) organismo (s) que
recebe o sinal, mas seu entendimento (interpretação) ou
(minimamente) sua atenção em relação a uma situação referencial
compartilhada (SINHA, 2005, p.319, tradução minha)32
.
Por isso, a simbolização é vista como uma propriedade emergente
filogeneticamente da comunicação (SINHA, 2005). Assim, a natureza intersubjetival da
cognição humana “relaciona-se ao fato de que qualquer codificação lingüística é
compartilhada na interação” (GERHARDT, 2006b, p.1187): “daí podermos afirmar que
toda forma de linguagem, para muito além de ser um produto de processamentos de
informação, é uma ação conjunta, e é dessa forma que se observará qualquer
experiência humana que envolva a linguagem” (GERHARDT, 2006b, p. 1187).
O envolvimento em uma atividade de atenção conjunta, por sua vez, pressupõe a
compreensão da intencionalidade do outro. Nessas atividades, monitoramos sua atenção
e seus gestos em relação a referentes presentes no mundo, e, ao compreendermos que as
ações do outro são distintas de seus resultados e que ações determinadas se relacionam
com determinados resultados, entendemos também que podemos manipular sua atenção,
por meio de gestos não linguísticos e, posteriormente, por meio da linguagem
(TOMASELLO, 1999).
32
Original: “A signal can be regarded as a (possibly coded) instruction to behave in a certain way. A
symbol, on the other hand directs and guides, not the behaviour of the organism(s) receiving the signal,
but their understanding (construal) or (minimally) their attention, with respect to a shared referential
situation” (SINHA, 2005, p.319).
77
Sob essa perspectiva, então, Tomasello (1999) defende que nossa motivação
para compartilhar intencionalidades fez com que desenvolvêssemos formas complexas
de colaboração que acabaram por resultar nas organizações culturais humanas
modernas. Através dos processos de interação, socialmente e simbolicamente
estruturados, as crianças aprendem as perspectivas de mundo de seu grupo social e a
utilizá-las para mediar sua compreensão do mundo, sendo capazes de reconstruir em si
normas sociais que permitem a conceptualização e o compartilhamento de crenças, de
valores e de conceitos culturalmente estabelecidos.
Por isso, “a atenção conjunta é a base crucial para a emergência da
simbolização” (SINHA, 2005, p.321, tradução minha)33
. É ela também a responsável
por nossa capacidade, desde crianças, de nos envolvermos triadicamente e
colaborativamente em situações de interação, na medida em que, somos capazes de
compartilhar nossos objetivos, nossas ações e percepções e que somos capazes de
compartilhar também nossos estados intencionais e agirmos conjuntamente em função
de um objetivo compartilhado (TOMASELLO, 1999). Como afirma Miranda (2001,
p.69):
A integração entre sinalização e reconhecimento constitutiva de
qualquer atividade conjunta, inclusive das ações de linguagem,
espelha exatamente o caráter social singular da cognição humana: ao
projetar-se como contraparte do outro, reconhecendo-o como agente
intencional à semelhança de si mesmo, o ser humano é capaz de eleger
um foco comum de percepção, construindo-o com ou através do outro.
É esse foco comum de percepção que torna possível sinalizar e
reconhecer sinais na busca de entendimento com o outro.
Tudo que um indivíduo cria cognitivamente em sua mente, então, parte da
existência do outro em seu processo de interação com o mundo. Nesse sentido, Salomão
(1997) aponta, inclusive, que, sob essa concepção, radicaliza-se o dialogismo
bakhtiniano, uma vez que a presença do outro é vista como incorporada na produção
linguística de forma muito mais compacta do que habitualmente se reconhece e que
assim se rompe com a separação, normalmente estabelecida por estudos linguísticos,
entre: a) sentença, enquanto objeto sintático; b) proposição, enquanto objeto lógico e c)
ato de fala, enquanto objeto pragmático. Dessa maneira, a cognição humana se utiliza
da linguagem para produzir infinitas representações “através das quais os sujeitos se
conhecem e se dão a conhecer, ajustam a situação em que se encontram a
33
Original: “joint reference is the criterial basis for the emergence of symbolization” (SINHA, 2005,
p.321).
78
conhecimentos previamente acumulados e, criam novos conhecimentos” (SALOMÃO,
1999, p.74).
Como bem explica Vanin (2009, p.57):
O significado não existe a priori: ele é fruto mutável das atividades
cognitivas e de suas relações com o mundo. O mundo não é algo
pronto, algo a ser nomeado pelos indivíduos. Seus significados
surgem a partir de um princípio de partilhamento, em que a sua carga
semântica é comunicada intersubjetivamente, até que o consenso – e
até mesmo a convenção – o torne significativo para uma determinada
comunidade de mentes. Acredita-se na noção de que o mundo só
exista no momento em que ele é percebido. Isso porque é a partir da
própria consciência de que algo existe – “extramentalmente” – que
surge a necessidade de referir-se a ela.
Desse modo, entende-se que as interações fazem com que o aprendiz de uma
língua assuma diferentes perspectivas do meio com que está interagindo, sendo as
categorias linguísticas um importante instrumento para orientar essa perspectivização
(TOMASELLO, 1999). Essa natureza perspectival da cognição humana é derivada,
portanto, da compreensão de que ela se constrói gestalticamente, não sendo possível
dissociá-la do meio ambiente em que os sentidos se produzem. O mesmo valeria para a
linguagem. Entende-se, assim, que as formas linguísticas representam contextos nos
quais interagem entidades e processos, sendo, então, enquadres de cenas visualizáveis
na comunicação (GERHARDT, 2006a).
Pode-se dizer assim que se vê “a mente humana como fundada num mundo
intersubjetivamente compartilhado e ecologicamente real: um mundo povoado e
animado por artefatos, símbolos, convenções e significados intersubjetivamente
compartilhados” (SINHA, 2005, p. 333, tradução minha)34. Desse modo, rompe-se, com
a perspectiva cartesiana que separa corpo e mente e com o que Sinha (2005) chama de
“narrativa neo-cartesiana” que separa mente e cérebro, uma vez que “o caráter
intersubjetivo da cognição remete às experiências vivenciadas pelo sujeito e o torna apto
a revivenciá-las a cada nova interação, transmitindo e sorvendo impressões e
transformando-as em sentidos para o seu mundo em constante renovação” (VANIN,
2009, p.57).
Por isso, novos significados são dados continuamente ao mundo, a cada novo
contexto construído, o que só é possível pela “conjunção com outras mentes” (VANIN,
34
Original: “The alternative is to view the human mind as grounded in na intersubjectively shared,
ecologically real world: a world populated and animated by artefacts, symbols, conventions, and
intersubjectively shared meanings” (SINHA, 2005, p. 333).
79
2009, p.57) e pelo fato de que “a linguagem pode corporificar a experiência cultural e
histórica de grupos de falantes (e indivíduos)”35
(GEERAERTS, 2006a, p.05, tradução
minha). Dessa maneira, entende-se que a cognição é também essencialmente
experiencial e, consequentemente, corporificada – ideia que será desenvolvida na
próxima seção.
2.3. A cognição é corporificada
Como explicam Sinha e Jensen de López (2000) e Ferrari (2001), a tese da
corporificação da cognição (e da linguagem) é uma tese central dentro da concepção
aqui explicitada, uma vez que atua tanto como hipótese sobre o significado linguístico
como princípio filosófico e psicológico mais geral. Essa hipótese rompe com o
dualismo cartesiano, ao salientar o caráter motivador da relação entre a experiência
humana pré-linguística (ou não linguística) e a cognição.
Enquanto o cartesianismo postula uma racionalidade formal e
universal, instanciada inatamente no organismo humano, a tese da
corporificação reforça a continuidade e o caréter motivado da
relação entre experiência corporal pré ou não linguística e a
cognição (FERRARI, 2001, p.24).
Segundo Ferrari (2001), três achados das ciências cognitivas embasam essa
perspectiva: a ideia de que a mente é inerentemente corporificada; a noção de que o
pensamento é, em grande parte, inconsciente e o fato de os conceitos abstratos serem,
em sua maioria, metafóricos, derivados de experiências humanas concretas. Assim, a
tese da corporificação rompe também com a dicotomia empirismo-racionalismo, uma
vez que se acredita que os mecanismos cognitivos e, portanto, nossos sistemas
conceptuais, se constroem a partir de bases tanto inatas como aprendidas.
Como nos lembra Ferrari (2001), enquanto o empirismo clássico toma o ser
humano como uma tábula rasa, sendo todo o conhecimento adquirido pelos sentidos, o
racionalismo toma toda a razão humana como inata. Em oposição a ambas as visões,
acredita-se que o significado se constrói através de padrões recorrentes de interação
entre pessoas e entre pessoas e ambiente:
A visão experiencialista, portanto, encara a experiência como
resultado de estruturas cognitivas e sensório-motoras corporificadas
que geram significado através de interações permanentes com
35
Original: “languages may embody the historical and cultural experience of groups of speakers (and
individuals)” (GEERAERTS, 2006, p.05).
80
ambientes em constante mudança. A experiência é sempre um
processo interativo, envolvendo restrições fisiológicas e neurais do
organismo tanto quanto ganhos característicos do ambiente e de outras
pessoas para criaturas com nossos tipos de corpos e cérebros
(FERRARI, 2001, p.25, grifos da autora).
Outra ruptura proposta por essa visão se dá em relação à dicotomia
reducionismo-relativismo, uma vez que, como explica Ferrari (2001), dentro dessa
concepção, acredita-se em universais conceptuais que não negam a existência da
variação cultural na forma como os significados são elaborados.
evidências das ciências cognitivas demonstram que não há uma
faculdade autônoma da razão separada e independente das
capacidades corporais tais como percepção e movimento. As
evidências indicam que a razão desenvolve-se a partir dessas
capacidades corporais (FERRARI, 2001, p.27).
Uma dessas evidências aparece claramente no fenômeno da categorização,
entendida como “atividade cognitiva e sociocultural, a partir da qual a realidade é
construída” (DUQUE e COSTA, 2012, p. 19), não sendo, portanto, vista como um
processo desenvolvido individualmente. Duque e Costa (2012, p.21) apontam que a
categorização é “um dos mais fundamentais processos cognitivos e a mais relevante
função da linguagem”, não podendo ser “tomada como produto do nosso raciocínio
consciente, mas como resultante de nossa interação com o meio ambiente” (DUQUE e
COSTA, 2012, p. 21). Segundo Lakoff e Johnson (1999, apud DUQUE e COSTA,
2012), mais importante do que o fato de o pensamento ser corporificado é o fato de que
a natureza de nosso corpo modela nossas possibilidades de conceptualização e de
categorização.
O fenômeno da categorização, por sua vez, instanciou o desenvolvimento da
chamada teoria dos protótipos, que é fundamental para a compreensão da discussão
colocada nesta seção e na seguinte. Ela parte do pressuposto de que as categorias se
organizam em função de exemplares prototípicos e não de critérios rigidamente
estabelecidos. Assim, no centro da categoria, estariam os exemplares com maior
semelhança em relação ao protótipo e, em sua periferia, os com menor semelhança
(DUQUE e COSTA, 2012). Segundo Rosch (1978, apud DIRVEN, 2005, p.23, tradução
minha),
a categorização é baseada na experiência cotidiana e nem sempre
conduz a categorias claras com características necessárias e
suficientes. Na maioria das vezes, conduz a categorias que têm um
centro claro preenchido por membros prototípicos, e que têm limites
81
difusos que permitem membros marginais que, inclusive, podem se
aproximar de outras categorias vizinhas”36
.
A noção de prototipicidade se articula à noção de radialidade, que parte da ideia
de que a teoria do significado é mais operacional do que representacional (DIRVEN,
2005). Segundo Geeraerts (2006b), tais noções buscam dar conta da natureza dinâmica
e flexível da linguagem (e, portanto, da cognição humana). O modelo de rede radial,
especificamente, descreve categorias a partir de elementos centrais que irradiam em
direção a novas instâncias. Assim, os usos de elementos menos centrais só são possíveis
porque eles se extendem a partir do centro (BRUGMAN e LAKOFF, 2006).
Geeraerts (2006b) defende que o modelo de rede radial é apenas um dos
modelos que se enquadram na teoria dos protótipos. Segundo o autor, o próprio termo
“protótipo”, como todos os conceitos existentes e com os quais trabalhamos
cotidianamente, se encaixa nessa teoria, uma vez que não apresenta uma única definição
que capture todos os seus usos.
Outro modelo proposto é o de rede esquemática, na qual o dinamismo do
significado envolve uma mudança dentro de uma dimensão taxonômica, indo, por
exemplo, de um nível mais específico para um nível mais geral (TUGGY, 2006). Dessa
forma, entende-se que “a semântica do léxico e das unidades construcionais não é um
saco de significados, mas é um significado potencial (prototipicamente e
esquematicamente) estruturado que é sensível aos efeitos contextuais” (GEERAERTS,
2006a, p.10, tradução minha)37
. Nesse sentido, Geeraerts (2006a) enfatiza que definir
uma categoria envolve mais descrever alguns de seus membros principais do que dar
simplesmente uma definição abstrata.
Articulado à noção de categorização, um dos conceitos centrais para a
construção desta tese e que instancia a visão corporificada da linguagem adotada pela
Linguística Cognitiva e trazida para a discussão aqui construída é o de “esquema
imagético”. Os esquemas imagéticos são considerados padrões pré-conceituais ou
36
Original: “categorization is based on every-day experience and does not always lead to clear-cut
categories with necessary and sufficient features. Rather more often than not, it leads to categories wich
have a clear center populates by prototypical membres, and which have fuzzy boundaries that allow for
marginal members wich may even overlap with other neighboring categories” (ROSCH, 1978, apud
DIRVEN, 2005, p.23).
37 Original: “The semantics of lexical and constructional units is not a bag of meanings, but is a
(prototypically and schematically) structured meaning potential that is sensitive to contextual effects”
(GEERAERTS, 2006, p.10).
82
corporais que servem de base para a categorização do mundo físico, envolvendo, assim,
alguma forma de experiência sensório-motora.
Trata-se, portanto, de domínios pré-linguísticos que organizam estruturas
fundamentais para a construção da linguagem, e, consequentemente, para a
categorização também do mundo abstrato. Não são, porém, depósitos passivos de
experiência, uma vez que, para serem construídos, o ser humano deve organizar de
maneira imaginativa sua própria experiência com o mundo. Alguns dos esquemas
imagéticos prototípicos são o de contenção, o de escala, o de verticalidade, o de centro-
periferia e o de trajetória, que instanciam, por sua vez, a construção de conceitos como
movimento, superfície, contato, suporte, força, bloqueio, altura, distância etc. (GIBBS e
COLSTON, 2006; JOHNSON, 1987).
Para Johnson (1987), portanto, as categorias e o pensamento abstrato emergem
da experiência corporal, através de mapeamentos metafóricas e metonímicos de
categorias concretas, em especial, essas de domínio espacial que são representadas pelos
esquemas imagéticos. Dessa maneira, acredita-se que os esquemas imagéticos se
constroem em função dos movimentos do corpo no espaço e dos outros objetos em
relação ao corpo e que essa experiência estrutura metaforicamente as relações
interpessoais e as instituições sociais.
Rohrer (2007), assim, descreve que a hipótese da corporificação é a prova de que
a cognição e o físico humanos e a corporificação social sustentam nossos sistemas
linguístico e conceptual. Nesse sentido, Rohrer (2007) aponta que o termo
“corporificação” pode ter muitos sentidos dentro dos diversos estudos em cognição e
acaba por resumi-los em duas grandes vertentes: como “corporificação amplamente
experiencial" ou como "corporificação como substrato corporal". O primeiro grupo
refere-se a dimensões que se concentram nas experiências contextuais subjetivas,
culturais e históricas específicas, enquanto o segundo enfatizava a influência fisiológica
e o substrato neurofisiológico corporal, reconhecendo tanto os sentidos experienciais
quanto corporais da corporificação.
Segundo Sinha e Jensen de López (2000), a hipótese da corporificação,
manifestada pela teoria dos esquemas imagéticos, apresenta algumas semelhanças com
a perspectiva desenvolvida por Piaget, uma vez que ambas ressaltam o papel da
experiência sensório-motora no desenvolvimento cognitivo e buscam fundamentar a
teoria cognitivista nas propriedades biológicas do desenvolvimento do organismo
83
humano e suas interações com o mundo físico. Além disso, ambas as perspectivas
partem de uma visão universalista e individualista da mente; porém, uma diferença
básica estaria no fato de que Piaget enfatiza o raciocínio lógico-matemático, mas não a
hipótese da corporificação.
Em função disso, ainda que Piaget não negasse os aspectos socioculturais e sua
influência no desenvolvimento humano, sua classificação do desenvolvimento em
estágios é manifestada sempre de forma invariante:
Nesse sentido, o contexto sociocultural da cognição e seu
desenvolvimento era visto por Piaget simplesmente como uma
condição necessária e talvez limitadora, que, a seu ver, poderia
modular o ritmo e o ponto final de uma sequência universal e
endógena do desenvolvimento cognitivo (SINHA e JENSEN DE
LÓPEZ, 2000, p.18, tradução minha).38
Assim, Piaget é criticado por seu “individualismo epistêmico” e sua negligência
em relação ao contexto comunicativo e sociocultural do desenvolvimento cognitivo.
Sinha e de López (2000), entretanto, argumentam que a tese da corporificação como
formulada até então – e utilizada por muitos estudos até hoje – sofria da mesma
deficiência que a teoria de Piaget, uma vez que, mesmo sendo superior a ela em muitos
sentidos, ainda falhava ao não dar atenção suficiente à importância da cultura e da
sociedade no desenvolvimento da cognição humana, na motivação da estrutura
linguística e na aquisição da linguagem.
Dessa forma, a perspectiva corporificada explicita tanto a natureza interativa da
experiência que dá origem às categorias cognitivas como o fato de o ambiente em que o
organismo funciona e se desenvolve ser tão social como fisicamente construído.
Entretanto, por outro, tanto a natureza da interação como o fato de que cada experiência
pode variar entre indivíduos e entre culturas não são elementos suficientemente
desenvolvidos na teoria (SINHA e JENSEN DE LÓPEZ, 2000).
Sinha e Jensen de López (2000) acreditam que essa perspectiva orientada apenas
de dentro para fora precisa ser problematizada, já que as crianças desde sempre
aprendem a interagir com objetos culturalmente determinados, que também servem
como materiais para a realização de esquemas. Assim, os autores advogam por uma
38
Original: “In this sense, the socio-cultural context of cognition and its development was seen by Piaget
as simply a necessary and perhaps limiting condition, which could in his view only modulate the pace and
terminal point of a universal, endogenous sequence of cognitive development” (SINHA e JENSEN DE
LÓPEZ, 2000, p.18)
84
compreensão estendida (para além do corpo) da tese da corporificação, ao defenderem
que “o esquema corpo humano é um privilegiado, mas não o único, domínio fonte para
a conceptualização linguística das relações espaciais, e que o seu recrutamento
generalizado para este fim reflete sua relevância experiencial universal” (SINHA e
JENSEN DE LÓPEZ, 2000, p. 22, tradução minha)39
.
Essa mesma crítica é compartilhada por outros autores que advogam por uma
“corporificação situada”, como explica Dirven (2005, pp.29-30, tradução minha):
Também em semântica cognitiva estudiosos como Zlatev (1998,
2002) criticam o uso atual de Lakoff do conceito de corporificação
como muito pouco inserido no contexto situacional e de lidar com
corpos flutuantes apartados de seus ambientes. Em vez disso, Zlatev
propõe uma "corporificação situada" e apresenta uma abordagem que
ele chama de "semântica corporificada situada", em que o significado
emerge de um emparelhamento de expressões linguísticas com
situações. Ele usa o modelo conexionista para testar a viabilidade da
abordagem e para construir insights sobre questões como as categorias
de aprendizagem sem condições suficientes e necessárias para a
adesão, a dependência do contexto de significado e a habilidade de
expressar e compreender novas expressões.40
Dessa maneira, a tese da corporificação é vista como capaz de predizer uma
parte dos dados linguísticos relevantes, mas não é capaz de por si só explicar tudo, a não
ser que seja estendida para abranger aspectos e características do mundo não corpóreo.
Assim, Sinha e Jensen de López (2000) defendem que a corporificação permaneça
como noção central nos estudos sobre a significação, porém propõem uma reformulação
que a relacione mais explicitamente a sistemas culturais, integrando, portanto, de forma
triádica, linguagem, cultura e cognição, como apresentado anteriormente. Os autores
sugerem que as diferenças socioculturais não linguísticas em relação ao uso de artefatos
dão origem a pequenas, mas importantes, diferenças nos processos de conceptualização
39
Original: “the human body schema is a privileged, but not unique, source domain for the linguistic
conceptualization of spatial relations, and that its widespread recruitment for this purpose reflects its
universal experiential salience” (SINHA e JENSEN DE LÓPEZ, 2000, p. 22).
40 Original: “Also in cognitive semantics scholars like Zlatev (1998, 2002) criticize Lakoff’s present use
of the concept of embodiment as too little embedded in the situational context and of dealing with floating
bodies detached from their environments. Instead, Zlatev proposes a ’situated embodiment’ and presents
an approach which he calls “situated embodied semantics” in which meaning emerges from a pairing of
linguistic expressions with situations. He uses connectionist modeling to test the feasibility of the
approach and for gaining insights into such issues as learning categories without necessary and sufficient
conditions for membership, the context dependence of meaning and the ability to utter and comprehend
novel expressions”.
85
de esquemas desenvolvidos pelas pessoas em diferentes culturas (SINHA e JENSEN
DE LÓPEZ, 2000).
Assim, os artefatos usados cotidianamente, e consequentemente a relação de
nossos corpos com eles, deixam de ser vistos como culturalmente neutros, uma vez que
podem ser mais ou menos familiares a indivíduos de diferentes culturas e que podem
corporificar diferentes conceptualizações de esquemas culturais (SINHA e DE LÓPEZ,
2000). Os autores denominam esse fenômeno de “corporificação estendida” e destacam
que ela não acontece no vácuo, não sendo, portanto, uma propriedade dos objetos em si
mesmos, mas sendo constituída e exemplificada pela participação desses objetos em
uma matriz inteira de práticas culturais (linguísticas e não linguísticas).
Nesse sentido, pode-se afirmar que, “ao postularmos a continuidade essencial
das semioses, reconhecemos que igualmente se misturam, como representações, a
conceptualização do mundo e a comunicação do mundo” (SALOMÃO, 1999, p.72),
uma vez que todo significado é construído pela articulação interativa entre sujeito e
mundo imersos em uma realidade cultural específica, sem que se considere que haja um
sujeito cognitivo e uma realidade cognoscível apartados um do outro.
Essa problematização, por exemplo, é fundamental para a compreensão dos usos
que se podem fazer do livro didático em sala de aula dentro de uma visão de cognição
como fenômeno distribuído. Na verdade, é fundamental para a compreensão de como a
sala de aula funciona e de como ela pode funcionar de uma melhor maneira, a partir da
consciência de que os ambientes em que nos inserimos também nos constituem.
Portanto, através da ideia de que nossas experiências cognitivas se constróem a
partir de esquemas imagéticos corporificadamente e, por isso, culturalmente definidos, e
de que a linguagem se projeta também em função deles, pode-se dizer que a linguagem
guia a construção dos sentidos, através da ativação de estruturas de conhecimento não
linguísticas que compõem o “estoque de representações culturais disponíveis ao
indivíduo enquanto membro de algum grupo social” (SALOMÃO, 1998, p.264).
Como apontam Lakoff e Johnson (1999, p.37-38, apud ROHRER, 2007, p.38,
tradução minha), a hipótese da corporificação rompe com a divisão entre percepção e
concepção, uma vez que já se pode observar, contemporaneamente, que o mesmo
sistema neural envolvido na percepção (ou nos movimentos corporais) desempenha um
papel central na conceptualização: “é possível que os mesmos mecanismos envolvidos
86
na percepção, nos movimentos e na manipulação de objetos possam ser responsáveis
pela conceptualização e pelo raciocínio” 41
.
É justamente, a partir da compreensão de que mesmo os processos não
linguísticos de construção da nossa conceptualização/percepção do mundo estão
inseridos em uma realidade cultural específica, que parto para o pressuposto
apresentado na próxima seção – o de que a cognição é baseada em frames.
2.4. A cognição é baseada em frames
Como apresentado na seção anterior, uma das consequências do fato de nossa
razão ser corporificada é o fenômeno da categorização – “uma consequência inevitável
da estrutura biológica humana” (FERRARI, 2001, p.28). Esse fenômeno se dá, em
grande parte, de forma inconsciente, em função de como nossos corpos e cérebros
funcionam, através de nosso sistema visual, do movimento de nossos corpos, dos
movimentos de outros objetos em relação a nossos corpos, etc: “a natureza peculiar de
nossos corpos modela nossas possibilidades de conceptualização e categorização”
(FERRARI, 2001, p.28).
Sob essa perspectiva, a linguagem é considerada um instrumento cognitivo
(MIRANDA, 1999) que nos permite organizar, processar e transmitir informação, e, por
isso, ela é vista como primariamente semântica (GEERAERTS, 2006a), servindo para
categorizar o mundo e pressupondo uma relação do sujeito com o seu meio social e
cultural (VANIN, 2009). A linguagem é vista “como um meio de interpretar, construir e
organizar conhecimentos” (VANIN, 2009, p.43), “que refletem as necessidades, os
interesses e as experiências dos indivíduos e das culturas” (VANIN, 2009, p.45).
Considera-se que a linguagem é um fenômeno psicologicamente real, mas
também que o processamento e estoque de informações é um recurso fundamental para
seu desenvolvimento. Ela, portanto, faz parte do conhecimento humano e que, portanto,
precisa ser analisada com foco no significado e não na forma (GEERAERTS, 2006a):
a linguagem, que é parte da cognição, se fundamenta em processos
cognitivos, interacionais e culturais, abrindo espaço para dimensões
intersubjetivas. Por isso, a observação do seu uso torna-se relevante
pelo fato de os processamentos da conceitualização, da categorização,
41
Original: “it is possible that the very mechanisms responsible for perception, movements, and object
manipulation could be responsible for conceptualization and reasoning” (Lakoff e Johnson, 1999, p.37-
38, apud ROHRER, 2007, p.38).
87
da interação e da experiência social e cultural estarem imbricados e se
formarem nas práticas cotidianas (VANIN, 2009, p.46).
Diversos trabalhos em cognição, em especial, no Brasil, têm trabalhado com a
noção de que nossos saberes acumulados organizam-se em nossa mente em diferentes
tipos de domínios estáveis e locais (DUQUE e COSTA, 2012; GERHARDT, 2006a;
MIRANDA, 1999, entre outros). Enquanto os domínios locais seriam representados
pelos espaços mentais (cf. FAUCONNIER, 1994), que se constroem e reconstroem ao
longo da interação, sendo, portanto, efêmeros, os chamados domínios estáveis seriam
representados por categorias de saberes que são construídos e partilhados dentro de uma
determinada história e de um contexto sociocultural. São estruturas de memória pessoal
e social, possuindo uma natureza estável, mas também dinâmica, uma vez que se
estruturam na mente a partir das experiências pessoais, sendo, portanto, passíveis de
mudanças em função de como e quando essas experiências vão ocorrendo ao longo da
vida (DUQUE e COSTA, 2012; GERHARDT, 2006a; MIRANDA, 1999).
Tais trabalhos partem da noção de que os domínios estáveis se subdividem em
categorias em função da natureza dos saberes que representam. Miranda (1999), por
exemplo, diferencia os domínios estáveis em “frames” e “esquemas”: “uma categoria
interativa para os “frames” e uma categoria de estruturas de conhecimento para os
esquemas” (MIRANDA, 1999, p.82), diferenciando-os a partir de seus papéis na
interação:
A noção interativa de “frame” refere-se, pois, a uma definição do que
está em movimento na interação, sem o que nenhuma fala, gesto,
movimento faz qualquer sentido... Assim, na tarefa interpretativa, os
interlocutores precisam saber “o jogo que está sendo jogado”: se um
“frame” de brincadeira ou de conflito, por exemplo. Só assim poderão
dar significação ao que é dito. (...) Quanto aos “esquemas de
conhecimento” referem-se a expectativas dos interactantes sobre
pessoas, objetos, eventos e cenários no mundo. Alguns estudos
vinham caracterizando “frames” como estruturas dinâmicas e
esquemas como estáticas. Na realidade, qualquer estrutura de
expectativa é dinâmica, uma vez que é continuamente confrontada
com a experiência e revista (MIRANDA, 1999, p.82, grifos da
autora).
Além disso, a autora categoriza, a partir de Salomão (1999), os domínios
estáveis como sendo de três naturezas: a) Modelos Cognitivos Idealizados (MCI),
Molduras Comunicativas e Esquemas Genéricos. Duque e Costa (2012) e Gerhardt
(2006a) partem dessa mesma classificação, mas constroem categorizações diferentes.
Enquanto Gerhardt (2006a) incorpora à categoria os esquemas imagéticos e a própria
88
língua, Duque e Costa (2012) colocam os esquemas imagéticos e os frames dentro da
categoria dos MCI e articulam os esquemas genéricos às construções gramaticais. Além
disso, eles trabalham com quatro categorias de frames: cenários, roteiros, conjuntos de
traços e taxonomias.
Dentro dessa concepção, os Modelos Cognitivos Idealizados (MCI) seriam mais
culturalmente organizados, representando formas de pensamento e opinião socialmente
produzidos e culturalmente disponíveis na interação, correspondendo a conceitos mais
abstratos como família, casamento, estereótipos de gênero, etc. As molduras
comunicativas, por sua vez, seriam esquemas ou frames de interação, também
culturalmente definidos, que representam conhecimentos operativos configurados nos
eventos de interação, muitas vezes institucionalmente definidos. Já os esquemas
genéricos representariam esquemas conceptuais que se configuram de forma mais
abstrata, sendo, portanto, mais flexíveis em suas aplicações e a língua, por fim, atuaria
como um enquadre léxico-gramatical que fornece pistas de focalização durante a
interação (MIRANDA, 1999; GERHARDT, 2006a; DUQUE e COSTA, 2012).
Ao compilar diversos trabalhos sobre o tema, Duque (2015, p.30), chega à
conclusão de que todas essas categorias podem ser tratadas como frames, uma vez que
todas elas se baseiam no pressuposto de que, conforme Lakoff (2008,
p.22), “os frames estão entre as estruturas cognitivas com que
pensamos” (tradução nossa), de modo que orientam a maneira como
compreendemos o mundo à nossa volta. Essa grande quantidade de
abordagens acaba repercutindo em grande diversidade de tipologias.
Independentemente dessa variedade, no entanto, frames são pensados
como gestalts cujas partes, ou papéis, estabelecem relações entre si”
(DUQUE, 2015, p.30).
O conceito de frame parte da noção de que o significado linguístico não é visto
como isolado de outras formas de conhecimento. Rompe-se, assim, inclusive, com a
tradicional separação que comumente se faz entre conhecimento de mundo e
conhecimento do significado linguístico (FILLMORE, 2006). Tal ruptura é fundamental
para a compreensão do objeto desta tese – o trabalho com o plano inferencial de leitura
–, uma vez que, como se poderá ver melhor no capítulo 4, a não separação entre
conhecimento linguístico e conhecimento de mundo traz à tona o papel do
conhecimento prévio na construção da leitura e a necessidade de se sair de um trabalho
focado no nível literal, na reprodução das palavras postas no texto lido.
Segundo Fillmore (2006), um frame pode ser visto como uma estrutura que
envolve conceitos relacionados pela forma como as coisas acontecem em situações do
89
mundo real, uma vez que são os frames que permitem que o nosso conhecimento
enciclopédico seja estruturado (FILLMORE, 2006). Dessa maneira, frames integram
nossas experiências biológicas a nossas experiências culturais e podem ser definidos
como domínios complexos de experiências emoldurados a partir da cultura (MIRANDA
e BERNARDO, 2013).
Assim, sob a proposta de Duque (2015) e, entendendo com base em Sinha e
Jensen de López (2000), que os esquemas imagéticos também são construídos
culturalmente, eles também passam a ser considerados um tipo de frame, que,
especificamente, se organiza de forma “extremamente simples, contendo poucos papéis
e poucas relações entre esses papéis” (DUQUE, 2015, p.31). O autor classifica os
frames em:
a. Frames conceptuais básicos,
b. frames interacionais,
c. esquemas imagéticos,
d. frames de domínio-específico,
e. frames sociais (cenários e categorização social),
f. frames descritores de eventos,
g. frames-roteiro,
h. frames-culturais (DUQUE, 2015).
Esses frames se ligam através de relações de:
a. continência, uma vez que frames mais complexos são estruturados por
frames mais simples;
b. subcategorização, pois frames se organizam hierarquicamente;
c. evocação, já que frames podem evocar instancias de outros frames, e de
d. unificação, pois papéis que integram um frame podem ser preenchidos pelo
contexto (DUQUE, 2015).
Nesse sentido, é interessante retomar o que Miranda (2001) descreve com base
em Salomão (1999), uma vez que, ainda que ela não trate de frames com base na mesma
categorização posta por Duque (2015), ela antecipa uma caracterização que permite a
unificação de todas essas categorias sob o rótulo de frame:
os domínios conceptuais (MCIs, molduras comunicativas ou
esquemas genéricos) caracterizam-se (i) pela sua permanência como
ordens cognitivas identificáveis e evocáveis; (ii) pela organização
interna das informações que os constituem; (iii) pela flexibilidade de
90
sua instanciação, conforme as necessidades locais manifestadas
(MIRANDA, 2001, p.86, grifos da autora).
Assim, pode-se dizer que os frames são essenciais para a construção de sentidos,
uma vez que só podemos atribuir características a certos conceitos porque somos
capazes de associá-los a frames específicos e de mudar a perspectiva dentro de um
mesmo frame. Dessa maneira, os frames acabam construindo e orientando nosso modo
de pensar e de compreender o mundo, podendo ser acionados através de três estratégias:
a seleção lexical, o arranjo gramatical de uma determinada sentença e/ou o mapeamento
metafórico (DUQUE, 2015).
Com base nisso, Duque (2015) define os frames como “mecanismos cognitivos
através dos quais organizamos pensamentos, ideias e visões de mundo” e afirma que
“novas informações só ganham sentido se forem integradas a frames construídos por
meio da interação ou do discurso” (DUQUE, 2015, p.26). Assim, cognitivamente, é
possível afirmar que a linguagem aciona e constrói frames em nossa memória
continuamente, o que teria respaldo nos estudos neurais da linguagem, que já
demonstraram que “um frame é uma “cascata” de circuitos neurais acionada por
palavras” (DUQUE, 2015, p.27).
Frames são como Gestalts formadas por partes ou papéis que estabelecem
relações entre si, podendo variar em níveis de complexidade, ou seja, em números de
papéis pelos quais são compostos e de relações entre esses papéis. Eles poderiam,
inclusive, ser constituídos por outros frames (DUQUE, 2015). Um frame “é constituído
por estruturas hierárquicas, com atributos fixados nos níveis mais elevados, e slots,
fixados nos terminais. No frame “cozinha” por exemplo, os slots são preenchidos com
“geladeira”, “fogão”, “talheres” etc.” (DUQUE e COSTA, 2012, p. 84), ainda que,
muitas vezes, seja difícil “identificar os papéis que integram um frame por se
confundirem com informações de fundo ou com eventos em si (DUQUE, 2015, p.31).
Segundo Fillmore e Baker (2011, p. 318, apud DUQUE, 2015, p.26), “[...]
basicamente todas as palavras de conteúdo exigem, para a sua compreensão, um apelo
aos frames situacionais dentro dos quais o sentido transmitido por elas é motivado e
interpretado”. Por isso, apontam Miranda e Bernardo (2013, p.86), com base em
Fillmore, que
as palavras que evocam frames em um texto revelam a multiplicidade
de maneiras com que o falante ou o autor esquematizam a situação e
induzem o ouvinte a construir uma tal visualização do mundo textual
91
que motive ou explique os atos de categorização expressos pelas
escolhas lexicais observadas no texto.
Segundo Miranda e Bernardo (2013, p.84), a abordagem baseada em frames traz
um importante caminho metodológico para pesquisas que busquem o estudo da
significação por duas razões: a) porque constrói-se uma Semântica da Compreensão em
oposição a uma Semântica da Verdade, o que “fornece um olhar diferenciado - com
unidade e coerência - sobre os processos de significação e referenciação”; b) trabalha-se
com “importantes ferramentas analíticas, capazes de servir ao nível descritivo e
explanatório do léxico, da gramática e, em nossa visão, do discurso”.
O delineamento de tal proposta acabou por nos conduzir a outro
achado – a descoberta do frame como uma ferramenta singular no
suporte à interpretação da realidade perspectivada pelos atores sociais
(dentro ou fora da realidade educacional). Dito de outro modo, a
configuração da rede de frames no discurso faz emergirem as
vivências mais reiteradas e marcantes para os sujeitos na comunidade
em foco e finca uma sólida ferramenta como base para a leitura
hermenêutica multidisciplinar destas vivências perspectivadas pelo
discurso (MIRANDA e BERNARDO, 2013, p.83).
Como afirmam as autoras, a palavra-chave para se definir o que se chama de
Semântica de Frames é “experiência, ou mais precisamente, a relação entre linguagem e
experiência” (MIRANDA e BERNARDO, 2013, p.85), uma vez que os frames e,
consequentemente, a língua representam categorizações de experiências. Cada categoria
criada, por sua vez, “emoldura um complexo emaranhado de conhecimentos e
experiências” (MIRANDA e BERNARDO, 2013, p.85).
Nesta perspectiva, a categoria frame se define como (...) qualquer
sistema de conceitos relacionados de tal modo que, para entender
qualquer um deles, é preciso entender toda a estrutura na qual se
enquadram; quando um dos elementos dessa estrutura é introduzido
em um texto, ou em uma conversa, todos os outros elementos são
disponibilizados automaticamente. (FILLMORE, 1982: 112)
(MIRANDA e BERNARDO, 2013, p.85).
Dessa maneira, os frames não são entendidos como construídos apenas de fora
para dentro como um processo de internalização sem a participação ativa do indivíduo.
Em nosso processo de interação com o ambiente em que estamos inseridos, agimos
autonomamente, o que nos leva a desenvolver conceitos pessoais sobre essas
experiências (DUQUE, 2015). Além disso, “não tentamos internalizar uma
representação completa do mundo” (DUQUE, 2015, p.60), uma vez que nossa cognição
92
é sempre perspectival, “nem mantemos cristalizados todos os possíveis conceitos
herdados da nossa comunidade linguística” (DUQUE, 2015, p.60).
Ainda assim, como a cognição também é intersubjetival, esse processo de
construção de conceitos, também depende “do seu nicho ecológico e social para manter
a estabilidade de parte dos significados em geral” (DUQUE, 2015, p.61). Dessa
maneira, entende-se que os frames se localizam na memória de um indivíduo, mas, ao
mesmo tempo, são compartilhados por membros de uma mesma cultura quando estes
expressam seus conhecimentos, suas perspectivas e visões de mundo.
O conhecimento de frames pelos falantes permite, então, que a linguagem ative
frames, enfoque conceitos específicos do frame ou determine perspectivas por meio das
quais o frame é visto (FILLMORE, 2006). Por isso, tanto os frames se ancoram no
discurso como o discurso se ancora nos frames (DUQUE, 2015). Assim, “o
conhecimento linguístico é composto por um repositório de estruturas linguísticas
simples e complexas responsáveis pelo acionamento de frames (dos mais básicos aos
mais complexos)” (DUQUE, 2015, p.45) e o chamado “senso comum é simplesmente
uma coleção de frames fixos que usamos para entender o que experienciamos e
ouvimos” (DUQUE, 2015, p.46).
Como o uso dos frames no processo de comunicação entre os indivíduos vai
além da internalização passiva, torna-se fundamental compreender como esses frames e
os elementos que os estruturam se articulam para a criação de novos conhecimentos, de
novos sentidos, de novos usos. Na próxima seção, abordo, em especial, um desses
processos de projeção, tomado nesta tese como essencial para a construção da cognição
humana, da leitura e dos processos de aprendizagem – a integração (ou mesclagem)
conceptual.
2.5. A cognição é desenvolvida por meio de mesclagens
Até aqui é possível notar que têm se apresentado pressupostos que apontam para
uma natureza processual e dinâmica da cognição humana e, portanto, da construção do
significado. Assim,
não estamos considerando as expectativas prévias de como as coisas
significarão, tampouco postulamos um jogo entre uma virtualidade e
uma efetividade semântica, mas sim visualizamos as formas de
construção do significado que emergem na interação on line e nela
vão sendo negociadas, ajustadas. Isso permite que nos coloquemos em
93
posição de observar o significado de forma dinâmica, ou seja, como
construção e articulação entre experiências, habilidades,
conhecimentos e processos, incluindo as formas dos acordos
interacionais possíveis (ou não) durante a interação (GERHARDT,
2006a, p.01).
Essa natureza processual e dinâmica da cognição se dá essencialmente porque,
mais do que acumular conhecimentos, somos capazes de articulá-los processualmente
para criar novos saberes. Essa capacidade se dá em função de todo o exposto nas seções
anteriores e porque, como será apresentado aqui, possuímos a habilidade de estabelecer
projeções entre elementos de diferentes domínios. Sobre isso, Salomão (1998), em uma
comunicação pessoal, aponta o que Miranda (1999, p.81) chama de “hipótese-guia” de
um “arcabouço teórico de uma teoria [sobre a cognição humana] de grande alcance
explicativo”: “O princípio nuclear da cognição humana corresponde à projeção entre
domínios, desta forma operando produção, fracionamento da informação, transferência
e processamento do sentido” (SALOMÃO, 1998).
Segundo Miranda (1999), as projeções eram vistas tradicionalmente como
fenômenos periféricos, ganhando destaque nos estudos em cognição a partir da
fundação do Modelos dos Espaços Mentais. Como dito anteriormente, os espaços
mentais são tratados, dentro dessa abordagem, como domínios locais de conhecimento,
sendo, portanto, dinâmicos.
EM [espaços mentais] são domínios dinâmicos, i.e., proliferam
enquanto pensamos e falamos. Por isso são diferentes e novos a cada
semiose. São produzidos como funções da expressão lingüística que
os suscita e do contexto que os configura. Externamente esses
domínios estão ligados uns aos outros por conectores: marcas
lingüísticas e contextuais (Construtores de Espaços Mentais (CE)).
Internamente são estruturados por domínios estáveis (MIRANDA,
1999, p.86).
As projeções, inicialmente, foram vistas como exclusivamente acontecendo
entre os espaços mentais. Porém, ao observarem o papel central que ocupam na
cognição humana, os pesquisadores foram ampliando seu escopo de atuação para outros
domínios. Conforme explica Gerhardt (2006, p.04), a assunção de que a linguagem não
é autônoma e de que, por isso, os processos envolvidos na construção do significado
linguístico também estão nas representações cognitivas de outras naturezas trouxe para
as projeções o papel de “ação cognitiva humana mais importante”. Uma vez que
“domínios são evocados o tempo todo e, por isso, sofrem ajustes a fim de acomodarem
novas informações durante o processo de construção do sentido do/no mundo”
94
(DUQUE e COSTA, 2012, p. 75-76), “a perspectiva dos domínios conceptuais coloca
as projeções numa posição central da cognição humana, tendo em vista que operam para
construir e conectar domínios” (DUQUE e COSTA, 2012, p. 86).
Gerhardt (2006a) inclui a mesclagem na categoria por ela denominada de
“saberes processuais”, em complementação aos chamados “saberes acumulados”
apresentados anteriormente. Os saberes processuais permitem, assim, o uso dos saberes
acumulados na produção dos significados e se constituem de mecanismos de projeção
inter e intradominial, tais como a metonímia, a metáfora, a mesclagem, o reenquadre, a
contrafactualidade, a correlação, a refocalização e a referenciação.
Fauconnier (1997), por sua vez, apresenta a possibilidade das projeções
acontecerem entre partes de domínios, de um (domínio-fonte) em direção a outro
(domínio-alvo), entre domínios por conta de funções pragmáticas, e a partir de um
esquema abstrato para estruturar uma situação em contexto. Além disso, o autor
apresenta um modelo especial de projeção, ao qual me dedicarei nesta seção, em função
do papel essencial que ele vai ocupar no desenvolvimento desta tese – a mesclagem
(blending, no original), posteriormente denominada também de integração conceptual
(FAUCONNIER e TURNER, 2002).
Em Fauconnier (1997), o autor apresenta a mesclagem como ocorrendo apenas
entre espaços mentais. Entretanto, já em Salomão (1999, apud MIRANDA, 2001), a
mesclagem passa a ser tratada como um fenômeno geral da cognição humana, operando
sobre múltiplos domínios, estáveis ou locais. Em Fauconnier e Turner (2002), é possível
encontrar uma compreensão geral do fenômeno – também denominado de “integração
conceptual”, que chega a ser tratado pelos autores como “uma ótima capacidade mental
que, na sua forma de duplo-escopo mais avançada, deu aos nossos ancestrais
superioridade e, para o melhor e para o pior, fez de nós o que somos hoje”42
(FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.V, tradução minha). A isso, os autores
acrescentam que “os produtos da integração conceptual são onipresentes”
(FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.V, tradução minha)43
.
42
Original: “a great mental capacity that, in its' most advanced "double-scope" form, gave our ancestors
superiority and, for better and for worse, made us what we are today” (FAUCONNIER e TURNER, 2002,
p.V).
43 Original: “The products of conceptual blending are ubiquitous” (FAUCONNIER e TURNER, 2002,
p.V).
95
Dessa forma, a integração conceptual aparece como fenômeno cognitivo geral.
Os autores, sobre isso, descrevem que:
Como a integração conceitual apresenta tantas aparências diferentes
em diferentes domínios, sua unidade como capacidade geral tinha sido
perdida. Agora, no entanto, a nova disposição dos cientistas cognitivos
para encontrar conexões através dos campos tem revivido o interesse
nos poderes mentais básicos subjacentes produtos dramaticamente
diferentes em diferentes tipos de vida (FAUCONNIER e TURNER,
2002, p.15, tradução minha).44
A mesclagem, tal e como definida por Fauconnier (1997) e Fauconnier e Turner
(2002) se dá através da projeção entre dois domínios-fonte, em função da projeção
parcial de suas contrapartes, ou seja, trata-se de uma projeção interdominial complexa.
Essa projeção só é possível se, entre os domínios, houver estruturas comuns que
permitam sua articulação. Essas estruturas, em geral, mais abstratas que os dois
domínios, se situa em um terceiro espaço, denominado de espaço genérico. Por fim,
surge, então, um espaço-mescla, no qual se projetam parcialmente os dois domínios-
fonte. Essa projeção se dá de forma seletiva e, dela, resultam novos elementos,
formando-se, assim, uma estrutura emergente própria, que é diferente da soma simples
dos dois domínios-fonte.
Figura 1 - Esquema básico de integração conceptual
44
Original: “Because conceptual integration presents so many different appearances in different domains,
its unity as a general capacity had been missed. Now, however, the new disposition of cognitive scientists
to find connections across fields has revived interest in the basic mental powers underlying dramatically
different products in different walks of life” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.15).
96
Segundo Fauconnier e Turner (2002), a mesclagem envolve três processos
básicos: a identidade, a integração e a imaginação. Segundo os autores, o
reconhecimento de relações de identidade (e de oposição) não seria uma ação inicial
primitiva, mas já seria o produto de um trabalho inconsciente imaginativo complexo.
Dessa forma, a integração deriva do processo de construção de relações de identidades e
de oposições, ocorrendo de maneira despercebida, uma vez que trabalha com
propriedades estruturais e dinâmicas e restrições operacionais bastante elaboradas. Os
autores reforçam ainda que a identidade e a integração não podem ocorrer nos processos
de significação sem o terceiro “I” – o da imaginação, que pode acontecer mesmo sem
estímulos externos, em processos já comumente taxados como “criativos”, mas que
ocorre também mesmo nas mais simples construções de significado – “os produtos da
mesclagem conceptual são sempre imaginativos e criativos” (FAUCONNIER e
TURNER, 2002, p.06, tradução minha)45
.
(...) o trabalho em vários campos converge para a reabilitação da
imaginação como um tema científico fundamental, uma vez que é o
motor central do significado por trás dos eventos mentais mais
comuns. A mente não é um Ciclope; tem mais de um I; tem três46
-
identidade, integração e imaginação - e todos eles trabalham
inextricavelmente juntos (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.15)47
.
Fauconnier e Turner (2002) partem do pressuposto de que a mesclagem surge
da nossa necessidade de manter o que eles chamam de “escala humana”, assim,
podendo tornar, por meio de um processo de compreensão, ideias complexas facilmente
compreendidas e armazenadas em nossa memória: “Nós dividimos o mundo em
entidades a uma escala humana para que possamos manipulá-las em nossas vidas, e essa
divisão do mundo é uma realização imaginativa” (FAUCONNIER e TURNER, 2002,
45
Original: “The products of conceptual blending are always imaginative and creative” (FAUCONNIER
e TURNER, 2002, p.06).
46 Nota de tradução: Aqui, o autor faz um trocadilho em inglês, uma vez que a pronúncia do nome da letra
“i” lembra a palavra “eye” (olho). Assim, ele remete ao personagem da mitologia grega, o Ciclope, que só
tinha um olho.
47 Original: “As we continue to see, work in a number of fields is converging toward the rehabilitation of
imagination as a fundamental scientific topic, since it is the central engine of meaning behind the most
ordinary mental events. The mind is not a Cyclops; it has more than one I; it has three--identity,
integration, and imagination-and they all work inextricably together. Their complex interaction and their
mechanisms are the subject of this book” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.15).
97
p.8)48. “Um dos benefícios centrais da mesclagem conceptual é sua habilidade de prover
compressões à escala humana de sequências difusas de eventos” (FAUCONNIER e
TURNER, 2002, p.30)49. Assim, essa nossa capacidade de reestruturar diferentes
domínios para criar novas estruturas emergentes nos permitiu, ao longo do
desenvolvimento de nossa espécie, a criação de novas ferramentas, novas tecnologias e
novas maneiras de pensar (FAUCONNIER e TURNER, 2002).
A mesclagem transforma imaginativamente as nossas realidades
humanas mais fundamentais, as partes de nossas vidas mais
profundamente sentidas e mais claramente conseqüentes. Significado
vai muito além do jogo de palavras. Significar vai além de jogar com
as palavras. Significar importa, de maneira que tenha relevância para o
indivíduo, para o grupo social, e para a descendência da espécie
(FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.28)50
.
Nesse sentido, aponta Salomão (2003, p.78): “a natureza essencialmente social
da cognição torna imprescindível que disponhamos de âncoras materiais para as
integrações conceptuais, através das quais rompemos as barreiras de nossa
“internalidade” (nossa experiência mental subjetiva)”. Como aponta Gerhardt (2006,
p.02): “uma teoria cognitiva que reconhece a realidade da integração conceptual
compactuará com o significado visto de forma dinâmica, on line e real time”. Isso
porque, ao se trabalhar com a noção de “projeção interdominial”, entende-se que a
mesclagem “manipula elementos presentes na memória de trabalho no continuum da
comunicação” (GERHARDT, 2006a, p.02). Dessa maneira:
Compreende-se que todo evento de linguagem evidencia e deflagra, a
um só tempo, modelos e planos de realidade e de compreensão da
representação linguística, envolvendo conhecimentos sistematizados
de mundo que se articulam via processos cognitivos intra e
interdominiais, e gerando diferentes qualidades de interpretação,
relacionadas às condições pragmáticas de validação de cada
construção linguística (GERHARDT, 2006a, pp.02-03).
48
Original: “We divide the world up into entities at human scale so that we can manipulate them in
human lives, and this division of the world is an imaginative achievement” (FAUCONNIER e TURNER,
2002, p.8).
49 Original: “one of the central benefits of conceptual blending is its ability to provide compressions to
human scale of diffuse arrays of events” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.28).
50 Original: “Blending imaginatively transforms our most fundamental human realities, the parts of our
lives most deeply felt and most clearly consequential. Meaning goes far beyond word play. Meaning
matters, in ways that have relevance for the individual, the social group, and the descent of the species”.
98
Nesse sentido, a compreensão do papel da integração conceptual na construção
de significados torna-se de grande valia para uma pesquisa como esta preocupada com o
ensino de leitura, posto que leitura é construção de significado. No capítulo 4, será
apresentada mais detalhadamente a concepção de leitura com que trabalharei nesta tese,
entendendo-a como também construída com base em integrações conceptuais.
A integração conceptual aparece também como a chave para a compreensão da
natureza intersubjetival da cognição humana.
Os processos de integração/mesclagem conceptual de que tratamos,
decisivos para a interpretação simbólica e, nestes termos, para a
ordenação de nossa relação com o mundo, encontram a mais nobre de
suas aplicações na constituição da própria cena comunicativa, de que
participamos como pessoas do discurso e na qual radicamos toda a
experiência de percepção, concepção, referenciação e identificação
das coisas (SALOMÃO, 2003, p.80).
Assim, de acordo com Salomão (2003), a própria interação humana só é possível
porque nos mesclamos uns aos outros, em um processo de reflexividade profundo, que,
como apontado anteriormente, radicaliza o dialogismo bakhtiniano. Como se vê na
figura 2, realizamos projeções com base nos domínios conceptuais distintos (as
identidades comunicativas que interagem no discurso), que se integram a partir de um
esquema genérico da ação comunicativa. No espaço-mescla, emerge, então a
redefinição da pessoa como participante no discurso a partir de si e de seu interlocutor.
Figura 2 - Esquema de integração conceptual proposto por Salomão (2003) para a interação humana
99
Para Salomão (2003), no espaço mescla emerge um Interlocutor 1’, porém,
Gerhardt (2006a) acredita que ali emirja também um Interlocutor 2’, na medida em que
havendo mesclagem entre os egos para a configuração do interlocutor,
comunicamo-nos não para um outro, especificamente, mas sim para
uma mescla entre o que somos, ou que pensamos ser, e os outros, ou o
que pensamos sejam os outros, porque projetamos neles expectativas
relacionadas aos resultados de nossa fala. Assim, não vemos as
pessoas tais quais são, mas mescladas às expectativas que
alimentamos sobre elas, as quais, em última instância, somos nós
mesmos, já que estas expectativas são as de que elas se assemelhem a
nós, fazendo o que faríamos numa dada situação (GERHARDT,
2006b, p. 1193).
Por isso, para a autora, “a mescla conceptual entre os sujeitos engajados numa
comunicação seria assim a ação sociocognitiva mais primordial do ser humano, que
fundamenta a sua compressão de significados” (GERHARDT, 2006b, p. 1191), o que,
de maneira aprofundada, reforça a proposta de Fauconnier e Turner (2002):
Essas operações mentais básicas são altamente imaginativas e
produzem nossa consciência de identidade, mesmice e diferença.
Enquadramento, analogia, metáfora, gramática e raciocínio de senso
comum, todos desempenham papel nessa produção não consciente de
reconhecimentos aparentemente simples e atravessam divisões de
disciplina, idade, nível social e grau de especialização. A integração
conceptual, que também chamamos de mesclagem conceitual, é outra
operação mental básica, altamente imaginativa, mas crucial para até
mesmo os tipos mais simples de pensamento (FAUCONNIER e
TURNER, 2002, p.18, tradução minha)51
.
A proposta de Salomão (2003) põe em foco a noção central adotada nesta tese de
que a cognição é distribuída –, neste caso, entre os interactantes que atuam em uma
determinada situação de interação. A ideia de que a cognição é distribuída, na verdade,
já se apresentava nas seções anteriores, uma vez que, desde o início, a visão de cognição
aqui adotada rejeita uma visão modular da mente humana, que encapsularia
determinadas funções cognitivas em regiões do cérebro desconectadas entre si. Na
próxima seção, que encerra este capítulo, desenvolvo, então, especificamente, o
conceito de cognição distribuída, articulando-o às ideias apresentadas anteriormente.
51
Original: “These basic mental operations are highly imaginative and produce our conscious awareness
of identity, sameness, and difference. Framing; analogy, metaphor, grammar, and commonsense
reasoning all play a role in this unconscious production of apparently simple recognitions, and they cut
across divisions of discipline, age, social level, and degree of expertise. Conceptual integration, which we
also call conceptual blending, is another basic mental operation, highly imaginative but crucial to even the
simplest kinds of thought” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.18).
100
2.6. A cognição é, em resumo, distribuída
Por conta de tudo o que foi dito neste capítulo até aqui – por conta das relações
que se estabelecem entre linguagem, cultura e cognição, por conta do fato de a cognição
ser corporificada, cultural, social e compartilhada intersubjetivamente, porque todas as
nossas experiências são organizadas através de frames individualmente e culturalmente
estabelecidos e porque nossos movimentos de criação dependem da integração
conceptual –, é que se pode dizer que, em resumo, nossa cognição é distribuída. Apesar
disso, tradicionalmente, os estudos em cognição distribuída não têm sido incorporados
com frequência pelos que investigam aspectos da chamada Linguística Cognitiva, talvez
pelo que apontam Miranda e Bernardo (2013, p.95) na citação abaixo:
Dentro da tradição sociocognitivista da Linguística que emoldura este
estudo, é fato que os estudos sobre o discurso - confrontados com os
avanços alcançados, em nível descritivo e explanatório, pelos estudos
da gramática e do léxico - ainda são o nosso patinho feio. Não por
falta de aparato teórico (os fundamentos teórico-analíticos derivados
de uma visão holística sobre forma e significação são um bom
gancho!), mas, acreditamos, por falta de tradição. Assim, os modos de
processamento da significação discursiva ocupam pouco espaço nas
agendas analíticas dos projetos neste paradigma.
Uma vez que aqui trabalho a partir de um norte teórico-ético que busca a
inserção dos estudos em cognição no campo da linguística aplicada, centrando-me no
problema do trabalho escolar (e, portanto, em um uso situado da linguagem) com o
plano inferencial de leitura no ensino de língua espanhola, não posso abrir mão de trazer
a perspectiva distribuída da cognição e cruzá-la com os pressupostos já citados ao longo
deste capítulo – algo que, inclusive, já foi feito mais explicitamente ao problematizar a
visão corporificada da linguagem com base no trabalho de Sinha e Jensen de López
(2000). Tal cruzamento é fundamental, uma vez que
relações entre as pessoas e as coisas são de afetamento mútuo, sem
ponto de partida nem de chegada. Dissociar as pessoas dos objetos e
dos lugares de produção semiótica acabará por, entre outras coisas,
negar às pessoas aquilo que as compõe, porque o ambiente constitui as
pessoas tanto quanto elas os constituem” (GERHARDT, 2013, p.97).
Como aponta Duque (2015), a abordagem distribuída é essencial em qualquer
trabalho em cognição que “considere a intencionalidade e a interação, mediada ou não,
entre agente e ambiente, como crucial para a formação de conceitos e concepções”,
como é exatamente o caso desta tese.
101
Qualquer teoria que separe o agente do ambiente e o agente de outros
agentes está fadada a lidar, não com conceitos, mas com definições
destituídas de qualquer sopro de vida, pois um conceito só pode ser
apreendido e aprendido e compreendido nas relações intersubjetivas
que pavimentam nossos nichos ecológicos (DUQUE, 2015, p.61).
Em relação a isso, Gerhardt (2006, p.1186) diz que “a mente humana elabora e
padroniza universos de experiência enquanto interage com o ambiente externo, e esta
capacidade é o pré-requisito essencial para o desenvolvimento da inteligência e a
aquisição de novos conhecimentos com base em outros já existentes”, rompendo
completamente com a visão de cognição e de inteligência como acúmulo de
conhecimentos. Essa perspectiva se alinha com a visão distribuída da cognição ao
propor uma perspectiva que integra cérebro, corpo e ambiente. Nesse sentido, negam-se
visões modularistas e computacionais, que, por enfatizarem apenas os processos já
produzidos e ignorarem as condições de produção de tais processos, acabam não
oferecendo aparatos conceituais para observar o ambiente como variável estruturante da
cognição (GERHARDT, 2014; HUTCHINS, 2000) – algo que não pode ser ignorado
em pesquisas sobre o ensino, sobre a escola, sobre a sala de aula.
Com base nos estudos em cognição distribuída, a cognição humana é entendida,
então, como não restrita aos limites do cérebro, nem aos do corpo, mas sim como
distribuída (ou estendida) pelo ambiente. Portanto, para além do nosso processo de
interação corpórea com o mundo, as outras pessoas, os artefatos e as tecnologias
também formam parte da nossa cognição, ao interagirmos com elas em uma
determinada situação. Assim, parte-se do pressuposto de que a mente humana também é
constituída por esses elementos, uma vez que eles transformam, aumentam e/ou
possibilitam atividades cognitivas variadas, que, sem eles, não poderiam ser feitas
(GERHARDT, 2014; HUTCHINS, 2000; ZANGH e PATEL, 2008). Como explica
Hutchins (2000, p.01): “a cognição distribuída procura uma categoria mais ampla de
eventos cognitivos e não espera que todos esses eventos sejam abrangidos pela pele ou
pelo crânio de um indivíduo”52
.
Assim, entende-se que a mente e a atividade cognitiva se distribui entre pessoas,
artefatos externos e o ambiente, além de se distribuir também através do espaço e do
tempo, de forma que eventos anteriores podem transformar a natureza de eventos
52
Original: “distributed cognition looks for a broader class of cognitive events and does not expect all
such events to be encompassed by the skin or skull of an individual”.
102
posteriores (ZANGH e PATEL, 2008; HUTCHINS, 2000). Segundo Hutchins (2000),
os estudos em cognição distribuída começam a se construir como campo no meio dos
anos 80, após a divulgação dos trabalhos de Vygotsky, Minsky e Rumelhart et al. Em
seu texto, o autor traz uma série de trabalhos de diferentes vertentes teóricas que, ao
pesquisarem o comportamento de grupos, demonstram que “as propriedades cognitivas
de um grupo podem diferir das propriedades cognitivas dos membros do grupo”
(HUTCHINS, 2000, p.4, tradução minha)53
.
Dessa maneira, sob essa concepção, a inteligência é vista como derivada de
interações com artefatos cognitivos externos e com outras pessoas. A unidade de análise
passa a ser um sistema cognitivo distribuído composto por um grupo de pessoas
interagindo com artefatos cognitivos externos, uma vez que as atividades das pessoas se
dão em situações concretas e são guiadas, restringidas e determinadas pelos contextos
físicos, culturais e sociais em que se situam (ZANGH e PATEL, 2008). Dessa forma, a
noção de cognição distribuída torna-se fundamental para se pensar a aprendizagem – e,
consequentemente, o ensino – que se desenvolve na escola.
Algo semelhante fora proposto por Fauconnier e Turner (2002) quando
estabeleceram o conceito de integração conceptual como fenômeno geral. Tal fenômeno
ocorre, segundo os autores, também de forma distribuída:
A mesclagem não acontece on-line a partir do zero. Culturas
trabalham duro para desenvolver recursos de integração que podem
ser entregues com relativa facilidade. (...) Nas práticas culturais, a
cultura pode já ter desenvolvido uma mesclagem a um nível grande da
especificidade para inputs específicos, de modo que toda a rede da
integração esteja disponível, com todas suas projeções e elaborações.
(...) Os princípios de otimalidade que governam cérebros individuais
operando on-line também se aplicam a comunidades de cérebros
trabalhando juntas de forma distribuída para chegar a redes
compartilhadas adequadas (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.72,
tradução minha).54
53
Original: “that the cognitive properties of a group can differ from the cognitive properties of the
members of the group” (HUTCHINS, 2000, p.4).
54 Original: “But blending does not happen on-line from scratch. Cultures work hard to develop
integration resources that can then be handed on with relative ease. (...) In cultural practices, the culture
may already have run a blend to a great level of specificity for specific inputs, so that the entire
integration network is available, with all of its projections and elaborations. (...) The optimality principles
that govern individual brains operating on-line also apply to communities of brains working together in a
distributed fashion to come up with suitable shared networks” (FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.72).
103
Entretanto, é preciso esclarecer que a adoção de uma perspectiva essencialmente
distribuída sobre a cognição humana amplia o escopo dos estudos anteriormente citados
sobre a mente corporificada, posto que, segundo Hutchins (2000), os estudos em
cognição distribuída se distinguem por dois princípios teóricos relacionados: os limites
para a unidade de análise da cognição humana e o alcance dos mecanismos que podem
ser assumidos como participantes dos processos cognitivos estudados. Como aponta
Gerhardt (2014), em sua maioria, os estudos sobre a cognição corporificada, apesar de
retirarem o foco de um possível mundo objetivo e colocarem-no sobre as experiências
cotidianas das pessoas, ainda colocam sobre si um ponto de vista de um observador “de
fora”:
Isso ocorre porque os estudos que assumem a cognição corporificada
não assumem também a corporalidade situada, isto é, uma
corporalidade imersa e articulada às forças do ambiente, com seus
objetos, intersubjetividades e normatividades. (...) a ideia de um
cenário é levada em conta (...), mas este cenário nunca inclui a própria
pessoa como um componente estruturador dos acontecimentos que ali
se dão, (...) o corpo não é contínuo às coisas (GERHARDT, 2014,
p.5).
Assim, uma vez que a cognição é vista como partilhada, ela é igualmente vista
como normatizada, sendo estruturada por regulações internas, mas também por
regulações funcionais externas, no sentido de que as ações cognitivas precisam estar
adequadas a um maior ou menor grau de institucionalização a depender de onde a
pessoa se encontra, o que, por sua vez, está profundamente relacionado ao fato de
sermos intersujeitos (GERHARDT, 2014). Essa forma de entender a cognição humana
faz com que, por exemplo, ao olharmos para o que o aluno (ou o que o professor) faz
em sala de aula, para como pensa, para o que diz ao desenvolver suas tarefas etc,
tenhamos que olhar também para o que normatiza, em termos institucionais, todas essas
ações.
De acordo com os estudos em cognição distribuída, entende-se que nós apenas
acionamos nossos processos cognitivos a partir da identificação de um problema, o que
nos demanda determinadas ações e determinados pensamentos, vistos como integrados.
Essas ações e pensamentos nos levam a observar o ambiente e nele perceber certos
aspectos e artefatos como possíveis extensores de nossas possibilidades cognitivas
(GERHARDT, 2014). Esses processos podem estar envolvidos em diferentes atividades
cognitivas, como a memória, a inferência, a tomada de decisões, o raciocínio, o
104
aprendizado, etc. (HUTCHINS, 2000). Assim, podemos usar uma calculadora para fazer
uma conta, um lápis e um papel para anotarmos uma lista de coisas passíveis de
esquecimento ou mesmo o diálogo com outra pessoa para nos ajudar a pensar, etc.
Nesse sentido, é interessante observar que a própria identificação de um problema só
ocorre mediante alguma ação “externa” ao indivíduo, ou seja, ela acontece no ambiente
e faz com que o indivíduo dele se utilize para transformá-la (GERHARDT, 2014).
Sobre isso, Hutchins (2000) afirma que o potencial do ambiente material para
auxiliar a memória já é amplamente reconhecido, do mesmo modo que a noção de que
os artefatos cognitivos ampliam nossa cognição já é lugar comum. Entretanto, o autor
ressalta que o ambiente pode ser mais do que um recurso de memória ou um
amplificador da nossa cognição. Para ele, a atividade cognitiva pode estar situada no
mundo material de tal forma que o ambiente atua como um meio computacional, com
seus artefatos cognitivos fazendo-nos mais inteligentes por usarmos uma série de
habilidades diferentes das que usaríamos sem eles.
Dessa maneira, entende-se que o cérebro, o corpo e o ambiente possuem a
mesma importância no desenvolvimento dos processos cognitivos. Assim, a mente é
vista como um processo, uma vez que nenhum desses elementos seria dado
preeminentemente à sua própria construção para o desenvolvimento das ações
realizadas em função do problema identificado. Nesse sentido, “cada ato de pensar
torna-se único, porque formulado por uma pessoa com uma vivência única, e articulado
estruturalmente ao contexto em que ela se encontra num dado momento”
(GERHARDT, 2014, p.11), o que marca claramente a situatividade da cognição
humana, uma vez que suas ações se dão sempre em um contexto situacional específico
(SINHA, 1999; KIRSHNER e WHITSON, 2009).
Com base nos trabalhos de Hutchins, Salomão (2003) entende que a invenção e
o uso de qualquer artefato se dá por conta de complexos processos de mesclagem
conceptual. Assim, a autora postula que os processos de distribuição da mente humana
só são possíveis por conta de sermos capazes de desenvolver integrações conceptuais.
Além disso, afirma a autora que “todos estes fatos nos levam a concluir pela inequívoca
materialidade da vida simbólica, ou, dito de outro modo, pela inescapável
semiologização da vida material” (SALOMÃO, 2003, p.79), rompendo definitivamente
com o “dualismo espírito/matéria” e refletindo “o caráter eminentemente social da
cognição”.
105
Assim, diz Hutchins (2000): “(...) Um grupo social é um sistema
cognitivo com propriedades distintas daquelas apresentadas pelos
indivíduos que o compõem. (...)”. Na verdade, na medida em que cada
um dos sujeitos, que participa deste grupo, adquire, pela
aprendizagem, o conjunto de representações das experiências das
gerações precedentes, na forma de um acervo de modelos culturais,
este indivíduo passa a ter acesso a uma base de dados que seria
incapaz de constituir no decurso de sua vida pessoal. Neste sentido, o
conhecimento, como o próprio Hutchins proclama, além de ser uma
condição psicológica, é a maior de todas as realizações sociais. Na
mesma linha, é possível afirmar que cultura é cognição distribuída. O
tratamento da cognição como rede social e o reconhecimento da
dimensão material da experiência cognitiva impelem-nos, no mesmo
movimento, a abandonar duas dicotomias fundadoras da Razão no
Ocidente: o dualismo corpo/mente e a distinção sujeito/objeto
(SALOMÃO, 2003, p.80).
Como esclarecem Zhang e Patel (2008), um sistema distribuído pode ter
propriedades cognitivas que diferem radicalmente das propriedades cognitivas de seus
componentes, e, por isso, estas propriedades não podem ser inferidas a partir das
propriedades dos componentes isoladamente. Por isso, os autores denominam os
componentes que integram um sistema cognitivo distribuído de “representações internas
e externas”: “O comportamento de um sistema cognitivo distribuído é geralmente
suficiente para entender como informação e conhecimento são distribuídos e
propagados através dos vários componentes do sistema distribuído” (ZHANG e
PATEL, 2008, p.138, tradução minha)55
. De igual maneira, as interações entre os
indivíduos produzem propriedades que emergem no grupo e que não podem ser
reduzidas às propriedades dos indivíduos: “nesta visão, para entender o comportamento
do grupo, precisamos examinar não apenas as propriedades dos indivíduos, mas também
as interações entre os indivíduos” (ZANGH e PATEL, 2008, p.139, tradução minha)56
.
Dentro dessa abordagem, um conceito fundamental é o conceito de affordance.
O termo, original do inglês, foi fundado por Gibbson (1986, apud DUQUE, 2015) a
partir do verbo to afford (fornecer). Segundo Duque (2015), o autor deu significado
próprio ao termo, que
55
Original: “the behavior of a distributed cognitive system it is usually sufficient to understand how
information and knowledge are distributed and propagated across the various components of the
distributed system” (ZHANG e PATEL, 2008, p.138).
56 Original: “the interactions among the individuals can produce emergent group properties that cannot be
reduced to the properties of the individuals. In this view, to study group behavior, we need to examine not
only the properties of individuals but also the interactions among the individuals” (ZHANG e PATEL,
2008, p.139).
106
passou a designar as possibilidades oferecidas pelo ambiente a um
agente particular. Nesse sentido, superfícies possibilitam locomoção,
alguns objetos possibilitam manuseio e alguns animais possibilitam
interação. Assim, quando um agente percebe superfícies, objetos e
animais, ele percebe affordances (DUQUE, 2015, p.57).
Segundo Zhang e Patel (2008), affordances são ações permitidas especificadas
pelo ambiente acopladas às propriedades do organismo. Podem ser consideradas como
representações distribuídas estendidas através do ambiente e do organismo. Segundo os
autores, as estruturas e as informações presentes no ambiente especificam o espaço da
representação externa e as estruturas físicas do organismo – as estruturas e mecanismos
das faculdades biológicas, perceptivas e cognitivas internas – especificam o espaço da
representação interna. Essas duas representações, de maneira integrada, especificam o
espaço da representação distribuída, que é o espaço de affordance. As affordances
representariam, assim, a disjunção das restrições e a conjunção das ações permitidas dos
dois espaços que se integram. Os autores apresentam o esquema abaixo e é interessante
observar como ele se assemelha ao esquema de integração conceptual de Fauconnier e
Turner, apresentado anteriormente.
Figura 3 - Esquema de construção de affordances, definido por Zangh e Patel (2008)
107
A partir do esquema de Zangh e Patel (2008), Gerhardt (2012) propõe então que
efetivamente a construção de affordances seja vista como um processo de integração
conceptual entre nós e as coisas, ou entre as representações internas e as representações
externas, como se pode ver na figura 4:
Figura 4 - Esquema de integração conceptual proposto por Gerhardt (2012) para a identificação de
affordances
Sob essa ótica, as representações externas deixam de ser vistas como meros
inputs e estímulos às representações internas, uma vez que, para muitas tarefas, as
representações externas atuam como componentes intrínsecos a elas (ZHANG e
PATEL, 2008). Assim, entende-se que as affordances não estão nem nas coisas nem em
nós (GERHARDT, 2012), mas em nossa integração com elas e, por isso, guiam também
nosso processo de construção de sentidos: “A externalidade destas formas simbólicas
que se afiguram “coisas” tem a finalidade de construir nossa condição de pertinência a
um grupo social específico, o qual, em condições históricas assemelhadas, faz sentido –
o mais coletivo de todos os modos de produção” (SALOMÃO, 2003, p.80). Aqui, é
interessante citar que Fauconnier e Turner (2002, p.21, tradução minha) também
apontaram o papel fundamental das affordances em nossa cognição: “A criação de
108
mesclagens também é guiada por affordances do mundo real, incluindo a física e a
biofísica”57
.
Para isso, como apontam Zhang e Pathel (2008), as pessoas precisam integrar, de
maneira dinâmica, a informação percebida das representações externas e a informação
recuperada das representações internas. Desse modo, é interessante observar que em
trabalhos como os de Vigostski (2008) e de Sinha (1999), os objetos materiais também
aparecem como mediadores semióticos do desenvolvimento cognitivo do aprendiz
(SINHA, 1999; VIGOSTSKI, 2008), atuando como elementos que também contribuem
para o posicionamento do aprendiz em determinada prática discursiva de aprendizagem
(SINHA, 1999).
Nesse sentido, não podemos esquecer os aspectos institucionais que envolvem a
construção de affordances em um determinado ambiente. Assim, essa construção, como
toda nossa cognição, também é atravessada pelas relações institucionais e normatizadas
que se dão em um certo espaço, pela macro e pela microcultura que definem essas
relações, pela história dos objetos e das pessoas que compõem esse espaço, etc. Tais
aspectos serão essenciais para pensarmos, por exemplo, o papel do livro didático nesta
tese, especialmente em relação à sua história e a seu uso em sala de aula.
Além disso, é essencial entender o papel da linguagem nesse processo, uma vez
que, sob nossa perspectiva, cognição e linguagem não existem autonomamente, assim, a
linguagem também passa a ser abordada como distribuída:
Integrados ao ecossistema, gerenciamos inputs, percebemos,
reconhecemos e associamos entidades em tempo real e, assim,
aliviamos nossas memórias. Nesse sentido, a cognição se distribui por
todo o ecossistema. Essa cognição distribuída, dinâmica e complexa, é
organizada graças à linguagem, que estabelece a conexão entre
pessoas em si e entre pessoas, recursos ecológicos e tradições
(DUQUE, 2015, p.55-56).
Como afirma Hutchins (2000), a linguagem de nosso grupo social é usada para
descrever o que acontece em nossas mentes, o que é uma evidência da natureza
distribuída da cognição humana. Nesse sentido, aponta Duque (2015, p.76) que “da
mesma forma que a linguagem não é uma concatenação de palavras, o significado não é
uma concatenação de affordances”. Nas trocas comunicativas, a identificação de
57
Original: “The creation of blends is guided by cognitive pressures and principles, but in the case of
skiing it is also guided by real-world affordances, including biophysics and physics” (FAUCONNIER e
TURNER, 2002, p.21).
109
affordances é essencial para a compreensão de enunciados, já que não é possível
construir o significado fora da interação (DUQUE, 2015). Assim, as affordances
precisariam ser sempre combinadas em padrões coerentes que se sustentem em um
evento, uma vez que identificar as affordances de “objetos linguisticamente já
indexados pressupõe que todas as possibilidades de interação de um indivíduo com
esses objetos refletem diversas maneiras de interagir (e diversas intenções de interação)
com esses objetos num dado espaço e num dado momento” (DUQUE, 2015, p.63).
De acordo com a Hipótese Indexical, adaptada aqui de Glenberg &
Robertson (1999), a compreensão linguisticamente guiada aciona a
simulação da ação e do deslocamento físico por meio de três
procedimentos: 1) palavras e expressões linguísticas mais amplas são
indexadas a corpos físicos do ambiente de entorno ou à imagética
desses corpos, quando estes não estão presentes; 2) dos corpos físicos
do ambiente, extraímos affordances; e 3) as affordances (e não as
palavras) restringem a maneira como as idéias podem ser
coerentemente combinadas (DUQUE, 2015, p.57).
Além disso, outro conceito fundamental, uma vez que esses processos são vistos
sempre como situados, é o conceito de “nicho cognitivo”, que pode ser definido como
“um locus onde as pessoas pensam e agem de forma situada, e relativamente ao qual
elas constroem suas intersubjetividades” (GERHARDT, 2014, p.12) ou como “um
ambiente dinâmico em que as ações modificam o comportamento do cognizador e
também as características e propriedades do ambiente, incluindo tudo o que pode ser
percebido nele” (GERHARDT, 2012, p.3, tradução minha)58
.
Dessa maneira, esse conceito permite a compreensão dos processos cognitivos
efetivamente construídos intersubjetivamente, uma vez que se pode observar o processo
de construção de significados, observando-se, ao mesmo tempo, as regulações internas e
externas de comportamento, os padrões institucionais de construção do conhecimento, o
relacionamento com outras pessoas, etc. (GERHARDT, 2014). Assim, podem-se
observar as negociações intersubjetivais, os cruzamentos normativos e as possibilidades
de ressemiotização para a resolução de problemas de sentido, bem como a recriação de
sentidos (GERHARDT, 2012).
58 Original: “a dynamic setting where cognitive actions modify the cognizer’s behavior and also the
environment features and properties, including everything which can be perceived in there”
(GERHARDT, 2012, p.3).
110
Segundo Gerhardt (2014), a adoção do nicho cognitivo como elemento
estruturador da cognição permite identificar e descrever, de uma só vez, sua natureza
local e seus atributos intersubjetivos e normatizados:
a. Sua natureza local diz respeito ao fato de que o reconhecimento
de um determinado espaço como nicho cognitivo articula-se
intimamente com o reconhecimento dos artefatos materiais e
simbólicos de um dado ambiente como elementos propiciadores e
desencadeadores das ações cognitivas pretendidas e realizadas naquele
espaço.
b. Sua constituição intersubjetiva relaciona-se às pessoas que
constroem, participam de e têm as suas formas de cognição
organizadas relativamente ao nicho. Essas pessoas assumem entre si, e
em condições de ação conjunta, formas de cognição baseadas no
nicho, bem como nos problemas que justificam sua existência, e nos
objetivos de ação e cognição específicas àquele espaço (Carassa et al.
2008).
c. Seus elementos de regulação normativa, que podem se
apresentar em âmbito mais ou menos institucional, afetam e
estruturam os comportamentos cognitivos das pessoas e suas
construções de significado (GERHARDT, 2014, p.15).
Dessa maneira, podem-se ressaltar as contribuições dessa perspectiva para a
pesquisa em ensino, preocupada com a compreensão e com a transformação da escola
brasileira. Como explica Hutchins (2000), a visão "clássica" da cognição foi sendo
construída de dentro para fora, com: a) a mente sendo vista como um motor de lógica
central, b) a memória sendo vista como simples recuperação de uma base simbólica de
dados armazenados, c) com a resolução de problemas sendo vista como uma forma de
inferência lógica, d) com o ambiente sendo entendido como um mero domínio problema
e e) com o corpo sendo visto apenas como um dispositivo de entrada. Entretanto, sob a
ótica dos estudos em cognição distribuída é possível reconstruir os estudos em cognição
de fora para dentro, reintegrando cultura, contexto e história aos seus conceitos centrais,
e partindo da configuração social e material da atividade cognitiva.
Essa possibilidade é essencial em um trabalho que, como este, pretende
compreender os processos de aprendizagem da leitura que se desenvolvem em um
ambiente altamente institucionalizado como é a escola brasileira, que carrega consigo
uma história e uma cultura, que projetam possibilidades de intersubjetividades,
normatividades e restringem e permitem a construção de umas affordances e não de
outras. Como aponta Gerhardt (2012, p.16, tradução minha):
A principal vantagem que esta perspectiva pode trazer reside na
epígrafe deste texto: quanto mais procuramos entender o que é a
cognição, em contextos reais de ação cognitiva, e quanto mais
111
incorporarmos à Ciência Cognitiva a evidência de que nossa relação
com o mundo é intercambiada com nossas maneiras de pensar, mais
perto nos encontramos de nós mesmos para, em última análise,
entender quem somos.59
No próximo capítulo, então, adentro especificamente o campo da escola
brasileira, de forma a ir adentrando mais aprofundadamente no meu objeto central nesta
tese – o trabalho com o plano inferencial de leitura em livros didáticos de espanhol. Para
isso, incorporo a esta tese o conceito de “políticas cognitivas”, cunhado por Kastrup
(2005) e o aplico à compreensão da trajetória que o ensino de espanhol construiu na
escola brasileira, em paralelo à busca pela compreensão do papel que o livro didático foi
assumindo dentro das relações que se instauram em sala de aula. Acredito que essa
discussão seja essencial para, mais adiante, adentrarmos no campo do ensino de leitura.
59
Original: “The best advantage that this perspective can bring lies in the epigraph of this text: the more
we search to understand what cognition is, in real contexts of cognitive action, and the more we
incorporate to Cognitive Science the evidence that our relationship with the world is interchanged with
our ways of thinking, the closer we find ourselves to understand who we are, ultimately” (GERHARDT,
2012, p.16).
112
CAPÍTULO 3: POLÍTICAS COGNITIVAS, LIVROS DIDÁTICOS E ENSINO
DE ESPANHOL NA ESCOLA BRASILEIRA
Neste capítulo, trago para a discussão proposta por esta tese o conceito de
Políticas Cognitivas, fundado por Kastrup (2005) e discutido ainda muito timidamente
em pesquisas sobre o ensino. Considero que o conceito de políticas cognitivas possa
contribuir para pesquisas que, como esta, estão preocupadas em compreender a
realidade escolar brasileira do século XXI e embasar discussões que proponham
caminhos alternativos para ela. Dessa maneira, especificamente nesta tese e, mais
especificamente ainda neste capítulo, busco cruzar este conceito à trajetória na escola
brasileira dos objetos centrais desta pesquisa: o ensino de língua espanhola e o livro
didático, em especial, o de língua estrangeira.
É importante ressaltar aqui que o conceito de políticas cognitivas se originou,
nos trabalhos de Virgínia Kastrup e seu grupo de estudos, a partir de um aporte teórico
não diretamente relacionado aos construtos teóricos que foram trazidos anteriormente
para esta tese. Entretanto, tais pressupostos não se negam; apenas representam caminhos
diferentes que, neste momento, estão sendo cruzados pela primeira vez. Além disso,
neste capítulo, preparo definitivamente o terreno para a discussão a que se propõe esta
tese, contextualizando o cenário em que se encontra o problema central aqui trazido – o
trabalho com o plano inferencial de leitura nos livros didáticos de espanhol para a
educação básica.
Por isso, intercalando políticas cognitivas, políticas educacionais e políticas
linguísticas, após definir a visão de aprendizagem com a qual me coaduno, trago nas
seções seguintes, respectivamente e brevemente, a história do ensino de espanhol e a
trajetória do livro didático e, em especial, do livro didático de língua estrangeira, na
escola brasileira. Acredito que assim é possível entender melhor o panorama histórico
recente de que tratarei mais adiante, na análise do trabalho desenvolvido por livros de
espanhol produzidos entre 2004 e 2012, uma vez que nesse panorama recente também
se fazem presentes as histórias desses objetos e suas interseções.
3.1. Visões de aprendizagem e a aprendizagem integrativa
113
Como pressuposto básico, entendo que não é possível falar em ensino e em
ensino escolar sem que se considerem perspectivas teóricas dedicadas à compreensão da
aprendizagem, uma vez que, como bem salienta Kastrup (2005, p.1274), “o modo como
ela [a aprendizagem] é entendida implica diretamente a maneira como concebemos o
processo de ensino/aprendizagem”. Falar de aprendizagem, entretanto, não é tarefa
simples, tampouco é tratar de unanimidades. Dentro das perspectivas teóricas que
tratam dessa questão, diversas são as visões apresentadas e, fora delas, no senso comum,
nas diferentes mídias e nos discursos de profissionais da educação e de estudantes,
tantas outras se apresentam. Fala-se, por exemplo, em estilos de aprendizagem,
aprendizagens múltiplas, ensino-aprendizagem e desaprendizagem sem que se defina a
visão de aprendizagem adotada e as bases que ela carrega consigo para que esses e
outros termos sejam adotados. De igual maneira, propõem-se teorias e práticas sobre o
ensino sem que se pense, porém, no que é aprender, para, a partir daí, poder se pensar
em como alguém pode ajudar alguém a aprender mais e melhor.
Entretanto, ainda que não se explicitem visões de aprendizagem, ao se falar
sobre ensino ou ao se ensinar, seja em um ambiente escolar seja em qualquer outro
espaço, visões de aprendizagem são construídas, são apresentadas e são igualmente
ensinadas. Além disso, tais visões, bem como as visões sobre a linguagem,
simultaneamente, ajudam a definir e são definidas por visões de cognição e,
consequentemente, visões de ser humano, sendo, portanto, essa também uma escolha
ético-teórica, mesmo quando negada ou invisibilizada.
Dentro das diferentes correntes teóricas que tratam do tema, destaca-se,
inclusive nos diversos discursos sobre educação, a oposição que se construiu entre os
estudos de Piaget e Vygotsky, em um tempo em que o behaviorismo já estava eliminado
dos discursos sobre a aprendizagem humana. Nessa oposição, regularmente, Vygotsky
aparece como oferecendo, através de sua teoria, melhores contribuições para o ensino na
escola, uma vez que ele consideraria as condições sociais ignoradas por Piaget.
Entretanto, um estudo mais aprofundado de ambas as teorias, sem um olhar pré-
concebido sobre elas, pode revelar que elas se distanciam em alguns pressupostos, mas
se aproximam em outros. Nesse sentido, podem se complementar e serem
complementadas por perspectivas mais atuais sobre o que é a aprendizagem, como
proponho nesta seção.
114
Como apontam Moura e Corrêa (1997, p.83), os estudos de Piaget se orientam
para a compreensão da gênese do conhecimento: “para ele as estruturas cognitivas que
caracterizam o sujeito do conhecimento não são aprendidas ou apreendidas através do
contato com o meio, nem dadas a priori ou determinadas geneticamente. São, isto sim,
construídas por um sujeito ativo em interação com esse meio”. Assim, tal como os
pressupostos defendidos no capítulo anterior, para Piaget, a base do processo de
construção do conhecimento é a ação do sujeito sobre o ambiente, sendo hereditárias
apenas nossas capacidades cognitivas de adaptação e de organização. Nossa
inteligência, então, se constrói, sob sua visão, em um processo de continuidade entre
ações biologicamente programadas e processos construídos por nossa interação com o
ambiente (MOURA e CORRÊA, 1997).
Dentro desse processo, é interessante observar que, para o pesquisador, as
estruturas mentais tendem sempre a um equilíbrio – que, é bom ressaltar, não é inato,
mas construído. Dessa forma, nossos processos de aprendizagem, que são a base do
processo de adaptação, ocorreriam por um princípio de autorregulação a partir de dois
componentes complementares: a assimilação e a acomodação.
A assimilação consiste na integração de elementos novos aos
esquemas ou estruturas já existentes, e a acomodação consiste na
adequação do funcionamento do organismo às características novas e
diferentes do ambiente. É importante ressaltar que acomodação e
assimilação podem ser caracterizadas como duas faces de uma mesma
moeda, no sentido de que a adequação do organismo às características
novas do ambiente ocorre por exigência da própria assimilação. Na
tentativa do organismo de incorporar os elementos do ambiente às
suas estruturas, faz-se necessária a modificação destas mesmas
estruturas visando uma maior eficácia do processo de assimilação. A
coordenação entre assimilação e acomodação é possível por meio da
equilibração (...), vista como majorante, não levando a uma
homeostase estática, mas à criação de novas estruturas a partir das
anteriores (...) (MOURA e CORRÊA, 1997, p.90).
Além disso, para Piaget, a abstração ocupa um lugar central, uma vez que ela é
que permitiria a construção de novas organizações a partir das ações, criando-se uma
espécie de percurso em que “cada nova forma de organização é vista como abstração de
organizações mais simples” (MOURA e CORRÊA, 1997, p.91). Por isso, a teoria de
Piaget é muito marcada – e igualmente criticada – pelas etapas de desenvolvimento da
cognição humana. Outra crítica relevante se relaciona ao fato de que estudos mais
recentes, principalmente os que observam a cognição de forma situada, têm
115
demonstrado que há uma maior influência dos fatores contextuais (micro e macro) do
que a teoria de Piaget prevê.
Vygostky, por sua vez, entende que o desenvolvimento cognitivo se dá pelo
processo de socialização, e que a aprendizagem, portanto, é social e leva ao
desenvolvimento humano. Como seu foco está no que ele chama de funções
psicológicas superiores, e, em seu trabalho, apresenta uma busca por separar a cognição
humana da de outros animais, o pesquisador atribui um papel dominante à experiência
social no desenvolvimento humano. Assim, para ele, o uso de instrumentos pelo homem
e o desenvolvimento da linguagem, socialmente construídos em um processo de
internalização, alteram as estruturas internas das nossas operações intelectuais enquanto
somos crianças (VYGOTSKY, 1991).
Para Vygostky (1991, p.21), então, a maturação não é passiva, sendo, “um fator
secundário no desenvolvimento das formas típicas e mais complexas do comportamento
humano”. As mudanças cognitivas ocorridas durante o processo de desenvolvimento
humano, para ele, são sempre complexas e qualitativas, alterando nossas formas de
comportamento e as estruturas internas das nossas operações intelectuais. Assim, a
linguagem, para ele, atua no desenvolvimento de uma nova organização da estruturação
prática, e o aprendizado vai se dar sempre por meio de um processo de internalização de
experiências sociais que se realizam repetidamente e de maneira mediada, através do
uso dos signos e dos instrumentos, que são separados no desenvolvimento cultural das
crianças, mas se ligam mutuamente (VYGOTSKY, 1991).
Dessa forma, a mediação é tomada como base para o desenvolvimento do que
ele chama de processos psicológicos superiores, e a chamada zona de desenvolvimento
proximal vai adquirir um destaque essencial em sua teoria. Através dela, o pesquisador
defende que não se pode resumir a pesquisa sobre o aprendizado e o desenvolvimento a
níveis específicos, ainda que eles existam, uma vez que as nossas capacidades
cognitivas dependem da articulação entre aquilo que efetivamente podemos realizar
sozinhos (nosso nível real de desenvolvimento) e o que podemos fazer com a ajuda do
outro (a zona de desenvolvimento proximal) (VYGOTSKY, 1991).
Nesse sentido, é importante destacar que, como apontam Cole e Scribner, no
prefácio de A formação social da mente (1991), Vygotsky foi o “primeiro psicólogo
moderno a sugerir os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da natureza de
cada pessoa” (VYGOSTKY, 1991, p.7). Ao mesmo tempo, “ao insistir em que as
116
funções psicológicas são um produto da atividade cerebral, tornou-se um dos primeiros
defensores da associação da psicologia cognitiva experimental com a neurologia e a
fisiologia” (VYGOSTKY, 1991, p.7). Pode-se dizer, assim, que a zona de
desenvolvimento proximal é um dos primeiros achados da psicologia moderna que
apontam para o fato de que a cognição é distribuída.
Como aponta Gerhardt (2010, p.247), “em virtude dos trabalhos de Jean Piaget
não discutirem os efeitos do aprendizado no desenvolvimento cognitivo, os estudos
interessados especificamente nas relações entre cognição e escolarização têm assumido
as ideias de Lev Vygotsky como orientação teórico-epistemológica”. Ainda assim,
longe das disputas travadas entre seus seguidores, é possível, como faz Tomasello
(1996), conciliar ambas as perspectivas, não apenas para que se cruzem os conceitos
definidos pelos dois pesquisadores, mas para que, através dessa integração, eles também
sejam ampliados a partir da inclusão de novas perspectivas em seus estudos.
Assim, tomando Piaget como um pesquisador dedicado à compreensão do
funcionamento interno do desenvolvimento cognitivo humano e Vygotsky como um
pesquisador dedicado à compreensão da relação entre a socialização e o
desenvolvimento, Tomasello (1996, p.275, tradução minha), ao abordar especificamente
o tema da aquisição da linguagem, defende que:
Seguindo suas pistas, conseguimos apreciar em alguns detalhes como
é que as habilidades cognitivas das crianças e o contexto cultural
dentro do qual elas se desenvolvem interagem para permitir a
aquisição da linguagem. Pode-se argumentar que, na verdade, a
maioria dos nossos avanços no estudo da aquisição de linguagem se
deu por estarmos sobre os ombros desses dois gigantes. Porém, dessa
perspectiva elevada, podemos também ver coisas que eles não viram -
observações mais detalhadas, em consonância com suas teorias, e uma
nova apreciação do papel da cognição social precoce na aquisição da
linguagem. O fato de termos usado as idéias de Piaget e Vygotsky
para ir mais longe do que eles foram capazes de ir por si só serve para
destacar a generatividade que está latente nessas duas mais poderosas
teorias do desenvolvimento60
.
60 Original: “Following their leads, we have come to appreciate in some detail how it is that children's
cognitive skills and the cultural context within which they develop interact to enable language acquisition.
An argument can be made that in fact the majority of our advances in the study of language acquisition
have come as we stand on the shoulders of these two giants. From that lofty perspective, however, we can
also see things they did not see - both more detailed observations consonant with their theories and a new
appreciation for the role of early social cognition in the acquisition of language. The fact that we have
used Piaget's and Vygotsky's ideas to go further than they were able to go by themselves serves to
highlight the generativity that is latent in these two most powerful of developmental theories”
(TOMASELLO, 1996, p.275).
117
Aqui, parto do pressuposto de que a conclusão a que chega Tomasello (1996)
vale também para os estudos sobre a aprendizagem – e sobre o ensino. Portanto, é
possível articular ambas as visões entre si, e entre elas e os conceitos apresentados no
capítulo anterior. Pode-se, dessa maneira, prosseguir nessa discussão e ao mesmo tempo
ampliá-la. Sobre essa articulação, Tedesco (2015) reorganiza o domínio das diferentes
teorias que compõem os chamados estudos em linguagem, tomando a relação entre o
signo e o não signo como referência. Nessa reorganização, inclui Piaget e Vygotsky
dentro de um mesmo grupo, revelando mais semelhanças do que oposições em suas
concepções.
A autora organiza seu mapeamento de concepções teóricas em dois grupos:
Um deles representa o modo de pensar dominante desde o início do
século. Ele dispensa ao objeto um tratamento orientado pelo enfoque
formal no qual, através de um processo de depuração das contigências
empíricas, faz ressaltar o caráter geral da linguagem, sua
homegeneidade e cristalização temporal. (...) O outro setor do campo,
que começa a ganhar mais expressão a cada dia, acentua o aspecto
pragmático, heterogêneo e sempre provisório da linguagem
(TEDESCO, 2015, pp.23-24).
Sob essa ótica, então, tanto Vygotsky como Piaget tratam a linguagem como
representação: “a linguagem é definida como um sistema de sinalizadores que apontam
para a realidade da qual não participam e sobre a qual não possuem intervenção (...). À
linguagem cabe apenas representar objetos ou situações e transmitir informações”
(TEDESCO, 2015, pp.24-25). Dessa forma, a autora revela não só a possibilidade de
articulação entre suas teorias, como busca a superação dessa visão, através da defesa por
uma abordagem pragmática. Nesta tese, adoto uma abordagem cognitivista, que é
também pragmática e foi apresentada no capítulo anterior61
, através da defesa de uma
visão de cognição e, consequentemente, de linguagem, como distribuída, uma vez que:
À medida que nossas interações configuram a maneira como
construímos significados e desenvolvemos habilidades de enriquecer
pensamentos e de refinar ações, a linguagem não deve ser concebida
como um objeto autônomo. Por fazermos parte de uma rede social
61
É importante ressaltar que Tedesco (2015) não defende a visão de linguagem e de cognição como
fenômenos distribuídos. A autora traz para sua defesa autores como Austin e Deleuze e Guatari.
Entretanto, pela definição de “perspectiva pragmática da linguagem” por ela apresentada, essa articulação
com a visão de cognição distribuída apresentada no capítulo anterior é possível: “Pelo desempenho da
força instauradora de mudanças empíricas, a linguagem adquire a qualidade de acontecimento e, como
evento irreprodutível, passa a comportar demarcação espaço-temporal precisa, não podendo ser
compreendida sem que sejam consideradas as contigências de sua apresentação e, principalmente, sua
responsabilidade pelos fatos que engendra (...) A singularidade da linguagem reside no seu caráter único
de acontecimento, isto é, potência portadora de sentidos novos, inesperados” (TEDESCO, 2015, p.29).
118
dinâmica, a experiência linguística pode alterar quem somos quando
orientamos o outro (e o outro nos orienta). Buscamos a sincronia com
o outro, criando expectativas, rastreando olhares e evocando
memórias. Enfim, a linguagem conecta o aqui e o agora com o que já
foi e, crucialmente, com o que está por vir (DUQUE, 2015, p.56).
Segundo Gerhardt (2010, p.248), é possível reconhecer nos trabalhos de
Vygotsky uma busca pela compreensão das “bases processuais-cognitivas do
aprendizado e do desenvolvimento cognitivo”. Entretanto, de forma geral, os trabalhos
que hoje utilizam tais estudos como bases teóricas acabam ignorando a forma como o
aprendizado acontece como processo cognitivo e a experiência interna à pessoa durante
o desenvolvimento do aprendizado, uma vez que buscam apenas “premissas, parâmetros
de observação e evidências para identificar os atributos de uma pessoa que obteve
sucesso no processo de construção de conceitos” (GERHARDT, 2010, p.248).
Gerhardt (2010), então, busca articular a visão de Vygotsky, especificamente a
oposição que ele estabelece entre conceitos cotidianos e conceitos escolares, a propostas
que buscam romper com a suposta superioridade dos conceitos científicos. Assim, a
pesquisadora observa que, ainda que Vygotsky, em princípio, tome os conceitos
escolares como superiores, em sua própria teorização, é possível inferir que “a diferença
qualitativa entre os conceitos cotidianos e escolares não é inerente aos conceitos, mas
sim às suas condições de produção. Assim, os conceitos cotidianos estão aptos a serem
sistematizados da mesma forma, pela via da escolarização” (GERHARDT, 2010,
p.250).
Conclui, então, Gerhardt (2010) que há uma homogeneidade entre os conceitos
no sentido de que tudo o que o ser humano aprende, independentemente do lugar em
que o faz, tem o mesmo valor.
Essa definição desconsidera a hipótese de que a pessoa escolarizada,
que teve contato com conceitos científicos, seria mais desenvolvida
cognitivamente do que a pessoa que não frequentou os bancos
escolares, já que aqui estamos inclinados a reconhecer que a mente
humana funciona da mesma forma no contato com todo tipo de
conceito, informação e conhecimento, o que lhe permite articulá-los
eficientemente. Com base nisso, não se considerará também a ideia de
que os conceitos escolarizados e científicos seriam mais
sistematizados que os cotidianos, já que a atribuição de sistematizar (e
ser sistemático) não está no conceito, mas sim na pessoa, que os
formata, organizando-os em sua mente e articulando-os a padrões de
conhecimento já assimilados e constituídos (...). A diferença entre os
dois está apenas no fato de que, na escola, estar-se-á lidando com
informações a ela pertinentes. Tal fato abre espaço para a suposição de
que o ambiente em si não é suficiente para formar conceitos, mas
119
concorre para estabelecer as suas condições de validação
(GERHARDT, 2010, p.251).
Dessa forma, é possível relacionar os estudos em aprendizagem à visão de
cognição apresentada no capítulo anterior, uma vez que, como posto anteriormente, a
nossa cognição está estruturada para organizar nossas experiências em frames, ou seja
para categorizar, inserindo os conceitos aprendidos em padrões anteriormente
existentes. Tal proposta, inclusive, de alguma maneira, também nos permite articular-
nos à proposta de Piaget de que todo processo de aprendizado passa por um movimento
de inserção de novos saberes em padrões anteriormente estabelecidos (assimilação),
que, por sua vez, precisam se transformar para receber esses novos saberes
(acomodação). Entretanto, como bem salienta Gerhardt (2010, p.253), “categorizar é
padronizar, mas não é aprender, porque a ação de padronizar não implica
necessariamente a formação de novos conceitos”.
Entendendo, com base em uma visão de cognição que se aproxima à posta no
capítulo anterior desta tese, que “para formarmos conceitos, precisamos reconhecer os
espaços mentais, contextuais, culturais e epistêmicos que ancoram toda forma de
conceptualização, esteja ela atrelada ao cotidiano, seja ela tida como científica”
(GERHARDT, 2010, p.256), defende a pesquisadora que:
Qualquer que seja o modelo processual proposto, ele deverá
reconhecer a relação de mão dupla entre a pessoa que cogniza e o
universo à sua volta, num fluxo contínuo de informação em ambos os
sentidos, e não supor que o ser humano apenas recebe passivamente as
informações, sem atuar sobre a construção do significado
(GERHARDT, 2010, p.256).
Dessa maneira, mais uma vez, é necessário retomar a noção defendida
anteriormente de que essa relação de mão dupla só é possível acontecer porque nossa
cognição é distribuída, e, assim, nos integramos conceptualmente ao ambiente, às outras
pessoas e integramos conceptualmente saberes novos a saberes velhos. Dentro dessa
concepção, só podemos aprender quando nos deparamos com o novo, e, então, o
analisamos e o integramos aos saberes que já temos. Assim,
a forma como aprendemos não é específica em nada, mas sim é parte
de uma habilidade geral, subjacente e única a todas as formas de
conceptualização por parte da mente humana: uma “habilidade de
juntar duas coisas” (Fauconnier & Turner, 2008), para formar uma
terceira (GERHARDT, 2010, p.257).
120
Isso não quer dizer, porém, que a aprendizagem não seja situada. Aprendemos
sempre do mesmo modo – através da integração conceptual –, mas o que aprendemos,
como valoramos o que aprendemos, como interagimos e como nos posicionamos em
uma situação de aprendizagem, por exemplo, dependem do micro e do macrocontexto
em que estamos inseridos. Nesse sentido, uma vez que especificamente esta tese trata da
aprendizagem escolar, é preciso salientar, como faz a autora, que, para que a integração
conceptual possa se realizar, “é necessário estarem nítidos na mente da pessoa os
universos de experiência que servirão de input para a mesclagem, porque apenas se eles
forem completamente visualizados é que poderão ser capturados e associados em
relação ao que têm em comum” (GERHARDT, 2010, p.260). Torna-se, então, papel da
escola auxiliar o aluno nesse processo, muito mais do que levá-lo à reprodução de
conceitos construídos fora dela.
Dessa forma, o caráter situado da cognição distribuída se faz ainda mais
relevante, uma vez que aprender é “também reconhecer as realidades que enquadram e
validam esses conteúdos para que eles sejam compreendidos como conceitos”
(GERHARDT, 2010, p.260).
Ou seja, para reconhecer os objetos de conhecimento na escola como
instrumentos de aprendizado o aluno precisa reconhecer os lugares de
onde eles vêm. Então, se a escola não se faz como realidade
disponível ao aluno, e se ele mesmo assim conseguir dar-se conta dos
objetos simbólicos ali dispostos, ele vai relacioná-los de outra forma
com os instrumentos e conhecimentos de que dispõe. Para evitar esse
problema, a escola precisa apresentar-se à pessoa como uma realidade
a ser construída com base em outras que ela já conhece, mas de forma
não alijada da chamada realidade imediata do aluno, porque ambas
precisam ser percebidas e conceptualizadas por ele (GERHARDT,
2010, p.260).
Nessa visão, a qual estou denominando aqui de concepção integrativa da
aprendizagem (ou aprendizagem integrativa), o aprendizado é tratado, então, como
construção semiótica (GERHARDT, 2013), que se dá por meio de integrações
conceptuais de forma situada. Sob essa ótica, os aprendizes, aqueles (ou aquilo) com
quem eles interagem e seus objetos de aprendizagem se enquadram de maneiras
diferentes de acordo com o macrocontexto cultural e com o microcontexto situacional
de aprendizagem (SINHA, 1999). Nesse sentido, entende-se, inclusive que um aprendiz
não nasce aprendiz, mas aprende a sê-lo, em um contexto cultural e institucional
específico, e por meio de experiências reais de aprendizagem, as quais o guiam nesse
processo (SINHA, 1999).
121
Como defende Sinha (1999), o ser humano se constrói e se posiciona em práticas
discursivas específicas, para que assim se torne um sujeito-aprendiz. Esse processo se
dá conforme o modelo exigido pela cultura em que a pessoa se insere, em um âmbito
mais geral, e, mais especificamente, pelas situações e oportunidades de aprendizagem
com as quais a pessoa se relaciona. Dessa forma, o aprendiz e as relações de
aprendizagem se constroem num processo constante de negociação e ressignificação,
definido por um macrocontexto sociocultural e por um microcontexto situacional, que
não agem, entretanto, como elementos definitórios e definidos a priori.
Os diferentes significados dos artefatos correspondem a práticas e
padrões discursivos distintos, a diversas posições do sujeito nos
discursos embutidos nos artefatos e a diferentes construções da
situação. A situatividade, desse ponto de vista, não é dada a priori,
mas é continuamente contestada, negociada e restabelecida. Esse
processo de contestação, negociação e ressignificação discursivas leva
a novidades, e se a novidade deve ser avaliada no processo de ensino-
aprendizagem; então, o processo deve levá-la adiante (SINHA, 1999,
p.45, tradução minha)62
.
Entendendo que somos a única espécie que nos educamos, que, por isso, retemos
nossos filhos por tanto tempo e que aprendemos não apenas com o outro, mas também
através dele (TOMASELLO, 1999), é preciso ver o aprendizado em termos macro e
micro sociais e individuais, sem apartar o sujeito cognoscente da situação real de
aprendizado, ou sem focar demasiadamente no contexto e deixar de se olhar para o
aprendiz como indivíduo (SINHA, 1999).
Sinha (1999) defende, dentro dessa concepção, que a subjetividade do aprendiz
se constrói discursivamente na situação de aprendizagem, sendo, portanto, situada.
Assim, deixa-se de lado uma visão naturalizada do aprendizado, que não á capaz de
explicar os matches e mismatches (encontros e desencontros) que ocorrem entre o
aprendiz e a situação de aprendizado, e alça-se o ensino a uma condição que vai muito
além de ser apenas um input desse processo. Desse modo, entende-se que os espaços
perceptuais/conceptuais e epistêmicos ocupados pela pessoa definem sua forma de ver
os objetos de aprendizagem, bem como de entender a própria aprendizagem. Essa
62
Original: “The various different “meanings” of artefacts correspond to different discursive patterns and
practices, different subject positions within the discourses embedding the artefact, and different construals
of the situation. “Situatedness”, from this point of view, is not given once and for all, but is continually
contested, negotiated and re-established. It is this process of contestation, negotiation and discursive re-
imagining which leads to novelty; and if novelty is to be valued in learning and teaching, so must the
process be which brings it forth” (SINHA, 1999, p.45).
122
abordagem pode ocupar um espaço essencial no tratamento da aprendizagem escolar,
uma vez que é preciso considerar:
o fato de que a condição de professor e turma estarem ocupando um
espaço físico, ou usando um mesmo código linguístico, não significa
que estão construindo os mesmos significados, observando os mesmos
objetos, concebendo as coisas da mesma forma. A não assunção da
cognição situada pode acarretar a completa estranheza e desinteresse
do aluno por aquilo que o professor pretende lhe dizer, simplesmente
por não conseguir conceptualizar em sua mente a realidade que o
professor descreve e os elementos e processos que a compõem
(GERHARDT, ALBUQUERQUE E SILVA, 2009, P.80).
A macroestrutura, ao longo dos processos de socialização, formata
microestruturas específicas de ensinar e aprender para fins específicos em culturas
específicas (SINHA, 1999). Assim, ainda que, aparentemente, aprendiz e ensinante
estejam em uma mesma microestrutura de aprendizagem, é possível que tenham
construído visões diferentes sobre ela. Se essa diferença é ignorada no espaço escolar,
geram-se consequências na aprendizagem diferentes do que seria esperado. Além disso,
é também possível que os aprendizes (entre si e em relação a quem ensina) atribuam
diferentes sentidos aos objetos de aprendizagem, para além do que se convencionalizou
socialmente, uma vez que as diferentes perspectivas dos diferentes participantes em uma
determinada situação ou em diferentes momentos de uma mesma situação podem gerar
diferentes concepções do que se aprende.
Desse modo, para Sinha (1999), a agentividade surge, então, como construção de
subjetividade na elaboração do significado e na prática discursiva, uma vez que o
receptor ressignifica ao ouvir o tempo todo. Assim, o autor constrói uma visão, ao
mesmo tempo, naturalista e social (micro e macro) do aprendizado. E também da
criatividade, que passa a ser vista não apenas como um atributo de nossa espécie, mas
também como uma construção social. Segundo Gerhardt (2013, p.91), pode-se assim,
então, construir uma crítica à perspectiva sócio-histórica, cujos estudos tratam a
aprendizagem de forma essencialista, descrevendo
um movimento top-down de ação cognitiva – do coletivo para o
individual. Tal perspectiva se manifesta, por exemplo, no fato de que
não se reconhece a possibilidade de que o aluno, como um elemento
estruturador do processo de aprendizado, possa agir sobre as
construções materiais e simbólicas na sala de aula, operando de forma
ascendente (bottom-up) sobre os significados.
Com base nisso, a autora denuncia que, embora os alunos geralmente sejam
vistos como sem conhecimentos, acredita-se, ao mesmo tempo, que a mera exposição a
123
novas informações é suficiente para que aprendam: “nesse sentido, a ideia do que é
aprender é naturalizada, isto é, o aprendizado acontece independentemente das
condições em que o contato com os conteúdos tem lugar e das formas de
intersubjetividade envolvidas no processo” (GERHARDT, 2013, p.83). Essa confusão,
segundo ela, seria, na verdade, um paradoxo aparente, uma vez que, na profundidade,
ambas as situações evidenciam o fato de que as percepções sobre o
ensinar e o aprender não incluem um entendimento de quais são as
variáveis envolvidas na produção do conhecimento em situação de
sala de aula, e quais seriam os comportamentos cognitivos dos alunos
quando se considera a normatividade inerente à estruturação das
atividades escolares (GERHARDT, 2013, p.84).
Dentro dessa visão sobre o processo de escolarização, apagam-se as experiências
sociais dos alunos, bem como suas experiências cognitivas, já que seus processos de
integração entre o que já sabem e o que estão aprendendo não são considerados como
relevantes. Assim, definem-se de antemão quem eles são, o que eles desejam e como
eles aprendem (GERHARDT, 2013), o que gera dois problemas principais relativos ao
ensino em geral:
(a) “não problematização dos objetivos para o engajamento dos alunos
na cognição conjunta escolar” ou “em outras palavras: não se busca
compreender quais são os propósitos dos alunos para estar lidando
com artefatos materiais e simbólicos em sala de aula” (GERHARDT,
2013, p.86);
(b) “definição dos conhecimentos e conceitos como dados a priori,
anteriormente à produção linguística, e não reconhecidos como
construídos no fluxo comunicativo da sala de aula”, uma vez que
acredita-se que a cognição é apenas a organização de conceitos
prontos, acabados e, por isso, ignora-se sua processualidade, que é
“um fenômeno inerentemente intersubjetival, normatizado e situado”
(GERHARDT, 2013, p.86).
Em função disso, na próxima seção trago o conceito de políticas cognitivas e a
discussão proposta por pesquisadoras do tema, uma vez que acredito que ele pode trazer
um refinamento interessante a essa discussão sobre visões de aprendizagem e suas
relações com os processos de formação de aprendizes em sala de aula. Além disso, bem
como subsidiará a discussão a ser trazida posteriormente sobre como a leitura é
trabalhada nos livros didáticos que compõem o corpus desta tese e como esse trabalho
se relaciona a uma visão de aprendizagem difundida na escola brasileira.
3.2. O conceito de políticas cognitivas
124
Com base no que foi exposto na seção anterior e, entendendo que uma concepção
de aprendizagem sempre emerge dos discursos (e das práticas) sobre o ensino, mesmo
que os estudos em cognição sejam invisibilizados, apresento, nesta seção, o conceito de
políticas cognitivas e suas contribuições para a pesquisa em ensino. Antes de adentrar
especificamente no conceito de políticas cognitivas, trago a citação de Rajagopalan
(2003, p.104), ao tratar de políticas linguísticas, quando afirma que:
A pergunta que urgentemente precisamos fazer é: que esforços podem
ser feitos de imediato a fim de trazer à baila os interesses ocultos e
escusos que podem eventualmente estar por trás das propostas
políticas e descortinar as consequências longínquas de adotarmos esta
ou aquela política no momento atual? É preciso, com urgência,
encarar a dimensão política da linguagem, sob pena de sermos
ultrapassados pela marcha dos acontecimentos ao nosso redor.
Tal como proposto pelo autor, acredito que também seja preciso, com igual
urgência, encarar a dimensão política da cognição (e de seus estudos). Se consideramos
que o ser humano é um ser essencialmente cognitivo, nos termos postos no capítulo
anterior, precisamos prontamente entender que visões sobre a cognição e,
consequentemente, sobre a aprendizagem constroem visões de ser humano que podem
ser potencializadoras ou delimitadoras, dependendo de onde e de como circulam.
Sabendo do lugar de prestígio que a escola tem em nossa sociedade e do papel que ela
exerce na formação de aprendizes, acredito que seja urgente pensar nas políticas
cognitivas nela e por ela (im)postas, em termos institucionais.
O termo “política cognitiva” foi cunhado por Kastrup (1999, apud KASTRUP,
2005; 2012; 2015), partindo dos estudos de Deleuze sobre a aprendizagem e a produção
de subjetividade e do princípio da não separação entre conhecimento e política: “O que
é uma política cognitiva? É um modo específico de relação com o conhecimento, com o
mundo e consigo mesmo” (KASTRUP, 2012, p.56). Para a autora, a ideia que temos do
que é o conhecimento e a própria ideia que temos do que é a aprendizagem vão muito
além de posicionamentos teóricos, e constituem, na verdade, políticas da cognição
(KASTRUP, 2005; 2012). Como salienta Dias (2012, p.27),
o conceito de política cognitiva busca evidenciar que o problema do
conhecer não se esgota na sua definição teórica ou no debate acerca
dos modelos ou paradigmas que são utilizados para o seu
entendimento. O problema do conhecer envolve uma posição em
relação ao mundo e a si mesmo, uma atitude, um ethos.
Por isso, Kastrup (2005; 2012) propõe que políticas cognitivas manifestam o tipo
de relação que estabelecemos com a cognição nas diferentes práticas de aprendizagem
125
em que nos engajamos: “Deixando patente que o conhecimento não se separa da
política, Deleuze aponta como nossos mestres deixam em nós sua marca, sua política
cognitiva” (KASTRUP, 2005, p.1286).
Com base nesses trabalhos, é possível entender que diferentes políticas cognitivas
manifestam diferentes visões de aprendizagem e se concretizam nas diferentes práticas
de ensino que podem ser executadas por alguém que ensina algo a alguém em um
determinado contexto. A isso, acrescento o fato de que essas políticas também podem se
manifestar, para além das práticas cotidianas e da sala de aula, em discursos, como os
apresentados em documentos oficiais ou em materiais didáticos.
A autora apresenta dois modelos de políticas de cognição: o da representação (ou
recognição) e o da invenção, que, como dito anteriormente, vão muito além de modelos
teóricos distintos (KASTRUP, 2005; 2012; 2015). O primeiro toma a cognição como
representação de um mundo dado, que oferece informações a serem captadas pelo
aprendiz. A cognição assim seria a representação da relação entre um sujeito e um
objeto previamente definidos.
O modelo da representação caracteriza sistemas psicológicos diversos,
como a psicologia da gestalt, a psicologia genética de J. Piaget, bem
como o cognitivismo computacional que surge no campo das ciências
cognitivas. No caso deste último, o que prevalece é o entendimento da
cognição como processamento de informação. O sistema cognitivo
recebe inputs, realiza seu processamento de acordo com regras lógicas
e transforma-os em outputs. Varela afirma que o cognitivismo
computacional trabalha com o modelo do tubo: input – processamento
simbólico – output. Resulta daí uma concepção lógica da cognição, o
que significa seu resfriamento formal. Ela se limita a um processo de
solução de problemas, sem espaço para a invenção de problemas
(KASTRUP, 2005, p.1275).
Dentro desse modelo, “existe um sujeito, existe um mundo e existe um
equivalente mental que esse sujeito faz dentro dele, desse mundo preexistente. Há então
sujeito, mundo e relação” (KASTRUP, 2012, p.56). Essa concepção, então:
polariza-se em duas posições. A primeira evidencia uma atitude
realista, que faz com que lidemos com o mundo como se ele
preexistisse. A segunda é a atitude idealista e individualista. Agimos
como se tivéssemos um eu, como se fossemos o centro, a fonte e o
piloto do processo de conhecimento (KASTRUP, 2005, p.1281).
Dessa maneira, políticas de recognição manifestam uma visão de aprendizagem
como representação e reprodução: “as informações chegam de um mundo preexistente e
o sistema cognitivo opera com regras e representações, chegando a resultados
previsíveis” (KASTRUP, 2005, p.1275). Dessa forma, “aprende-se para obter um saber.
126
A aprendizagem é solução de problemas preexistentes, que são colocados muitas vezes
pelo professor. A atenção que é mobilizada durante o processo de aprendizagem atém-se
a formas prontas e à aquisição de informações” (KASTRUP, 2005, p.1275). Como
aponta Kastrup (2012), mesmo que nos pareça natural, essa ideia de cognição
representacional é produzida historicamente, ainda que nos pareça natural.
O segundo modelo é denominado de política de invenção. Dentro dele, a
cognição é tomada como inventiva, em oposição à ideia de cognição como
representação. Dentro do modelo da cognição inventiva, não há nem sujeito nem mundo
prévios: “há práticas, ações concretas. A partir daí há produção de subjetividades e
produção de mundos. Mundos e subjetividades são efeitos de práticas” (KASTRUP,
2012, p.56). Dessa forma, entende-se que as práticas têm uma potência inventiva, na
medida em que diferentes práticas produziriam diferentes subjetividades e diferentes
mundos (KASTRUP, 2012): “a invenção não deve ser entendida a partir do inventor. O
sujeito, bem como o objeto, são efeitos, resultados do processo de invenção”
(KASTRUP, 2005, p.1275).
Como salienta Kastrup (2005), é importante não confundir invenção, no sentido
tomado para definir uma política cognitiva e uma prática de aprendizagem, com
criatividade, uma vez que, enquanto a criatividade representaria uma “capacidade de
produzir soluções originais para os problemas” (KASTRUP, 2005, p.1274), a invenção
representaria, inclusive, a invenção de problemas. A invenção é, assim, tratada como a
potência que a cognição tem de diferir de si mesma, podendo haver, assim, uma
percepção inventiva, uma memória inventiva, uma linguagem inventiva e uma
aprendizagem inventiva (KASTRUP, 2005). Dessa forma, ela deixa de ser vista como
um processo cognitivo dentre outros, sendo, na verdade, “uma certa maneira de
entender a cognição, de colocar o problema da cognição” (KASTRUP. 2012, p.52).
Dentro dessa concepção, entende-se que:
O sujeito e o objeto não são polos prévios. O sujeito do conhecimento
e o objeto conhecido, que aparentemente existe independente dele,
vão ser entendidos como efeitos das práticas cognitivas. Então, o que
existe no início são ações de conhecer, são práticas de conhecer. Os
efeitos são sujeitos cognitivos e domínios cognitivos, ou um ser e um
mundo, ou uma subjetividade e um território existencial (KASTRUP,
2012, p.54).
Portanto, segundo a autora, a invenção representaria uma terceira via em relação
ao debate sobre o caráter mecânico ou inteligente da aprendizagem. Em oposição às
127
políticas de recognição, as políticas de invenção manifestariam uma visão de
aprendizagem como não “apenas um processo de solução de problemas, mas inclui a
invenção de problemas, a experiência de problematização” (KASTRUP, 2012, p.53).
Dessa maneira, enxerga-se o ato de aprender como emergindo dessa “experiência de
problematização, de invenção de problemas ou de posição de problemas” (KASTRUP,
2012, p.53), o que leva a autora a afirmar que esse processo envolve também a invenção
de mundo, não correspondendo, portanto, a um processo de adaptação a um mundo
preexistente (KASTRUP, 2012). Dentro dessa visão, conhecer é problematizar
(KASTRUP, 2012).
Entretanto, é preciso esclarecer que a cognição inventiva não é espontânea, nem
tampouco privilégio de poucos. Segundo Kastrup (2005, p.1279), ela depende de
cultivo:
A invenção não vai por si, mas envolve repetição. O aprendizado
depende, de saída, da suspensão da atitude recognitiva. Começando
por mobilizar uma intenção consciente, torna-se aos poucos
inintencional. Depraz, Varela & Vermersch apontam que, no longo
prazo, uma segunda espontaneidade tem lugar. Esta é definida com a
curiosa formulação de um esforço sem esforço, que supera tanto a
dicotomia ativo/passivo quanto a dicotomia voluntário/involuntário.
Nesta segunda espontaneidade a atenção não é ativa, pilotada por um
eu, nem passiva, lançada reflexa ou mecanicamente ao sabor dos
estímulos do ambiente externo. Partindo da suspensão da recognição,
o aprendizado estabiliza um tônus atencional singular que envolve a
ativação de uma atenção aberta ao encontro de experiências pré-
egóicas. Esta atenção se encontra até certo ponto desativada, sendo
pouco investida na contemporaneidade. Aumentar sua potência e
trabalhar para sua estabilização por intermédio de práticas de
transformação de si é atualizar uma virtualidade por meio da aliança
da surpresa com a regularidade. O aprendizado assume a forma de um
círculo, em que o movimento é o de reincidir, retornar, renovar,
reinventar, reiterar, recomeçar.
Além disso, com base nos trabalhos de Maturana e Varela, a pesquisadora
ressalta que, dentro de uma política inventiva, deixa-se de se aderir à polêmica sobre se
as condições da cognição são invariantes ou produzidas historicamente e passa-se a
evidenciar o fato de que as condições históricas coexistem com um presente que é vivo
e pode problematizar as configurações históricas (KASTRUP, 2015): “o problema não é
entender o funcionamento cognitivo como produzido historicamente, mas sim como o
presente é capaz de promover rachaduras nos estratos históricos, nos antigos hábitos
mentais, nos acoplamentos estruturais estabelecidos e produzir novidade” (KASTRUP,
128
2015, p.98). Portanto, é possível perceber que a visão de cognição que está sendo
apresentada nesta tese casa-se perfeitamente com essa proposta.
Assim, partindo da oposição que se estabelece entre recognição e invenção, Dias
(2012) traz uma comparação entre o que ela chama de cognitivismo computacional e o
que denomina de construtivismo radical, para demonstrar que, dentro dos chamados
estudos em cognição, há tendências que apontam para uma visão de cognição como
recognição e modelos que se aproximam de uma visão inventiva de cognição:
Para o cognitivismo computacional, a cognição é uma relação
intencional entre um sujeito e um objeto. Nessa relação, prevalece o
entendimento da cognição como processamento da informação: o
sistema cognitivo recebe inputs, realiza seu processamento por regras
lógicas e os transforma em outputs. A cognição é (...), em última
análise, um processo de solução de problemas. O construtivismo
radical de Humberto Maturana e Francisco Varela propõe que sujeito e
objeto são efeitos emergentes, e não condição prévia da atividade
cognitiva (DIAS, 2012, p.26).
Segundo Kastrup (2012), a ideia de cognição como invenção é bastante pautada
nos trabalhos de Maturana e Varela sobre o que denominaram de teoria da autopoiese:
Com esta teoria, eles problematizaram uma noção muito instituída,
muito pouco questionada e muito naturalizada no campo dos estudos
da cognição: a ideia de que conhecer é representar um mundo
preexistente. Segundo essa concepção tradicional da cognição, que é
conhecida como modelo da representação, existe um sujeito do
conhecimento, um objeto e uma capacidade de representar, de
produzir uma espécie de cópia, equivalente ou correspondente mental
do mundo externo (KASTRUP, 2012, p.53).
Além deles, no campo da filosofia, a autora cita os trabalhos de Gilles Deleuze e
Félix Guattari como “também intercessores muito fortes” (KASTRUP, 2012, p.56):
Eles também nos ajudam a pensar que não existe um sujeito pronto,
um sujeito essencial, um sujeito-fundamento. Em seu lugar existe um
processo de produção de subjetividade por meio de práticas concretas
(...) É necessário entender que todas essas subjetividades fazem parte
de uma rede que é constituída através de práticas concretas, práticas
que são, ao mesmo tempo, cognitivas e existenciais (KASTRUP,
2012, p.56).
Ao reconhecer a trajetória de pesquisa que levou Kastrup a definir as políticas
cognitivas anteriormente citadas, é possível notar que ela não passa pelos mesmos
pressupostos apontados no capítulo anterior desta tese. Assim, ao opor sua visão a
concepções recognitivas de cognição, a pesquisadora chega a apontar que
a invenção é sempre invenção do novo, sendo dotada de uma
imprevisibilidade que impede sua investigação e o tratamento no
interior de um quadro de leis e princípios invariantes (...) se houvesse
129
uma teoria da invenção, ou mesmo leis da invenção, seus resultados
seriam passíveis de previsão, o que trairia o caráter de novidade e
imprevisibilidade que toda invenção comporta (KASTRUP, 2005,
p.1274).
Com base nessa citação e em outras passagens de seu texto, talvez se pudesse
pressupor que não é possível articular a visão de Kastrup (2005; 2012; 2015) aos
pressupostos trazidos no capítulo anterior, uma vez que eles trabalham dentro de um
“quadro de leis e princípios invariantes”. Entretanto, são leis e princípios que não
pressupõem uma linearidade no desenvolvimento e no funcionamento da cognição e
que, portanto, como se pode ver, principalmente na apresentação da integração
conceptual como fenômeno crucial para o funcionamento da cognição humana, não
trazem consigo a possibilidade de previsão do que se constrói. Com base nisso, defendo
aqui que é possível articular esses estudos, sem que se negue o “caráter de novidade e
imprevisibilidade” trazido pela noção de invenção, visto que ele também é trazido pelos
pressupostos anteriormente apresentados.
Por caminhos diferentes, que agora se cruzam, Kastrup (2005; 2012; 2015) e os
estudos em cognição anteriormente trazidos vão negar a ideia de cognição como
reprodução e a possibilidade de se trabalhar com sentidos prévios ao momento de
construção do significado. Esse esclarecimento se faz relevante porque a autora chega a
apontar a visão da representação como “uma ideia cognitivista” (KASTRUP, 2012,
p.53). Entretanto, ela faz a distinção entre estudo da cognição e cognitivismo: “A
posição cognitivista, que trabalha com o modelo da representação, é uma das posições
dentro do estudo da cognição, o que não significa que ela é a mais verdadeira, nem
tampouco a única” (KASTRUP, 2012, p. 54). E cita outras três posições: as perspectivas
da autopoiese, da enação e da invenção, que vão apontar para o fato de que “o
conhecimento não é uma representação, mas uma ação, uma prática” (KASTRUP, 2012,
p. 54).
Com base nos estudos em cognição apresentados no capítulo anterior e não
tomados como pressupostos por Kastrup, em especial na visão de integração conceptual
de Fauconnier e Turner (2002) e o papel imaginativo a ela atrelado no processo de
construção do pensamento humano, postulo aqui uma quarta posição, que, na verdade,
pode-se desmembrar em diversas outras e que já foi associada à perspectiva da
autopoeise em trabalhos anteriores, como o de Duque e Costa (2012). Inclusive, ao fazer
essa postulação, é possível perceber que, ao falar de políticas cognitivas, a autora não
está falando da forma como as pessoas pensam ou como aprendem, mas sim da forma
130
como elas pensam que pensam ou pensam que aprendem. Trata-se, portanto, de uma
discussão que está no plano meta da cognição (NELSON, 1996; NELSON e NARENS,
1990).
A existência do plano meta parte da compreensão de que a mente humana
funciona sempre em dois planos de consciência, que co-existem e se retroalimentam: o
plano base, nível do objeto ou da constituição linear das coisas, e o plano meta, nível de
suas condições de validação (NELSON, 1996; NELSON; NARENS 1990). Assim, o
plano meta pode ser entendido como aquele por meio do qual
percebemos/conceptualizamos como as coisas devem ser entendidas em termos
situacionais, interacionais, normativos, estruturais, funcionais, epistêmicos, etc.
(GERHARDT e VARGAS, 2010). Por meio do plano meta, podemos enquadrar e
validar cognitivamente os elementos existentes no plano base. Sob essa concepção, é
pela existência de um plano de validação que podemos construir significados a partir do
que vemos / ouvimos / sentimos. Por isso, não é possível separar percepção e
conceptualização, pois só percebemos o que conceptualizamos, e vice-versa.
A identificação do plano meta vai perfeitamente ao encontro dos
pressupostos cognitivistas, que se consubstanciam justamente porque,
longe de suporem a uniplanificação e a generalidade da cognição
humana, atestam fortemente o seu caráter particionado, perspectival,
distribuído, situado e baseado em domínios específicos, que interagem
tentacularmente entre si, mas que, com fins de descrição ou ensino,
podem ser observados separadamente, graças à capacidade que
desenvolvemos em lidar com esses domínios ao mesmo tempo,
mesmo tendo eles naturezas diversas (GERHARDT e VARGAS,
2010, p.152).
É por isso, e com base nos pressupostos trazidos no capítulo anterior, que é
possível postular aqui que, ainda que se possa partir, em práticas de aprendizagem, da
ideia de que cognição é reprodução, a cognição como representação de um mundo dado
não existe na realidade da mente humana. Com base em Faucconier e Turner (2002),
entende-se que a cognição humana opera essencialmente através da integração
conceptual. Assim, ela pode ser entendida como uma teoria geral da cognição, por meio
da qual é possível descrever nossa capacidade de imaginar relações entre conceitos e
integrá-los para criar novos – o que chamamos anteriormente de aprendizagem
integrativa. Como Kastrup (2005; 2012; 2015) define ao tratar da aprendizagem
inventiva, concebe-se a cognição humana como criativa e produtora de realidades, não
se tomando, portanto, o mundo como dado, pronto para ser reconhecido pela pessoa,
131
que também não é dada, uma vez que está o tempo todo se mesclando a outros e a
elementos do espaço de formas únicas e imprevisíveis.
Entretanto, ainda que a aprendizagem não possa ser entendida como
efetivamente um processo meramente recognitivo, é preciso salientar, como faz a
própria Kastrup (2012), que os diferentes modelos de cognição nos constituem,
justamente porque se encontram, segundo postulo aqui, no plano meta (NELSON, 1996;
NELSON e NARENS, 1990). Portanto, embora eu não conceba que a recognição exista
no plano base, ou seja, como funcionamento cognitivo, é possível afirmar sim que ela
existe – e com muita força – no plano meta, ou seja, no plano de validação das coisas,
principalmente na escola. Diz Kastrup (2012, p.57): “a cognição representacional e a
cognição inventiva são duas maneiras de estar no mundo”, o que acarreta em
consequências nas formas como vemos a aprendizagem e, consequentemente, no
trabalho do professor, na produção de materiais didáticos, de documentos oficiais sobre
a educação, etc. Nesse sentido, é interessante observar o que diz Rajagopalan (2013b,
p.62) sobre políticas linguísticas:
Em primeiro lugar, é importante reconhecer que, enquanto a ciência
lida com os fatos, a matéria prima da política é composta das
percepções dos tais fatos, e nunca dos fatos em si e por si sós. (...). E
o povo, habitante da poleis, reage às percepções dos fatos, isto é, os
fatos tais como eles se apresentam ou são apresentados, e não os fatos
como eles realmente são. Daí a conclusão a que famosamente chega
Nietzche quando diz que não há fatos, apenas percepções.
Ao tratar da política (seja ela linguística, cognitiva, educacional, micro ou
macro), Rajagopalan traz, na citação acima, o papel central que o conceito de políticas
cognitivas pode ocupar nas discussões sobre aprendizagem e, primordialmente, sobre
aprendizagem na escola. A partir de sua percepção sobre o que é a política e,
especialmente, porque “nossos corpos, cérebros e interações com o ambiente fornecem
a base, em grande parte inconsciente, de nossa metafísica cotidiana, ou seja, de nosso
sentido do que é real” (FERRARI, 2001, p.28), é possível entender que é a visão de
aprendizagem aprendida institucionalmente que vai definir para os alunos quem são eles
como aprendizes, o que devem aprender e como e para que devem fazê-lo. Dessa
maneira:
somente entendendo a cognição como invenção63
podemos dar conta
do fato de que algumas formas cognitivas, forjadas pelas nossas
63
Aqui, tomo a cognição inventiva como baseada em integrações conceptuais.
132
práticas concretas, resultam em subjetividades que encarnam o
funcionamento inventivo, e outras resultam em subjetividades
recognitivas, que se limitam a tomar o mundo como oferecendo
informações prontas para serem captadas (KASTRUP, 2005, p.1281).
Além disso, é interessante observar como a ideia de cognição como invenção se
articula à proposta de cognição distribuída anteriormente apresentada. Essa articulação
se mostra mais clara quando Kastrup (2005, p.1276) traz para seu texto o conceito de
breakdown de Varela:
Para Varela, ao contrário, o sujeito e o objeto, o si e o mundo são
efeitos da própria prática cognitiva. O mundo perturba, mas não
informa. O conceito de “perturbação” ou de “breakdown” responde
pelo momento da invenção de problemas, que é uma rachadura, um
abalo, uma bifurcação no fluxo recognitivo habitual. O conceito de
“breakdown” é essencial na argumentação de que não existe mundo
prévio, nem sujeito preexistente. O si e o mundo são co-engendrados
pela ação, de modo recíproco e indissociável. Encontram-se, por sua
vez, mergulhados num processo de transformação permanente. Pois
ainda que sejam configurados como formas, estas restam sujeitas a
novas perturbações, que forçam sua reinvenção.
Através do uso desse conceito, Kastrup (2015), revela que concebe a cognição
como ação ou prática, sendo o domínio cognitivo um domínio “experiencial e emergido
das interações e dos acoplamentos do organismo” (KASTRUP, 2015, p.99). Dessa
forma, deixa-se de olhar de forma objetiva para as relações que estabelecemos com o
ambiente, uma vez que se entende a cognição como corporificada ou encarnada, o que
inclui os acoplamentos biológicos, psicológicos e culturais: “A corporificação do
conhecimento inclui, portanto, acoplamentos sociais, inclusive linguísticos, o que
significa que o corpo não é apenas uma entidade biológica, mas é capaz de se inscrever
e se marcar histórica e culturalmente” (KASTRUP, 2015, p.103).
Como esta tese discute a aprendizagem escolar, é preciso estabelecer um diálogo
entre a ideia de política da invenção e a necessidade de se “trazer as identidades situadas
(ou selves situados, no entender de Chris Sinha, 1999a) dos alunos para o centro do
cenário educacional, equacionando-as e requerendo que elas se configurem como
elementos estruturadores dos projetos curriculares” (GERHARDT, 2013, p.78). Nesse
sentido, é importante retomar o fato de que, “ao provocar deslocamentos uma formação
inventiva trabalha sob o signo do novo e do imprevisto” (DIAS, 2012, p.31)64
e que,
64
A autora está se referindo ao processo de formação de professores, mas igualmente podemos nos referir
ao processo de formação de alunos na Educação Básica
133
portanto, “as singularidades se tornam ferramentas indispensáveis” (DIAS, 2012, p.36).
Entretanto, em um contexto escolar, essas singularidades são institucionalizadas e
passam por planos de validação.
Esses dados revelam um fator importante no processo de
escolarização, que diz respeito ao fato de os conteúdos passarem a ser
expressos dentro de determinados formatos, padrões de validação que
os definem como escolares, e não pertencentes a outro universo. Ora,
já se sabe que faz parte do aprendizado na escola não apenas assimilar
um conceito; talvez tão importante quanto isso ou até, em muitos
casos, mais importante, é assimilar as condições discursivas que o
validam como conceito aprendido na escola e conferem à pessoa que o
expressa o status de indivíduo letrado, instruído (Kleiman, 1998;
Signorini, 2001). (GERHARDT, 2010, P.254).
Além disso, elas se constroem de forma distribuída, na integração entre alunos e
professores, entre eles e as coisas que formam o ambiente escolar, e entre tudo isso e o
que a escola representa como instituição em nossa cultura:
Se pensarmos na atividade dentro da escola, as subjetividades que
serão constituídas ocorrerão através de determinadas práticas
concretas. Nós não podemos pensar o aluno e o professor como
sujeitos diferentes, ou seja, pessoas que têm uma realidade dada e que
chegam ali e vão conhecer um ao outro, representar um ao outro e
entrar em interação (KASTRUP, 2012, p.56).
Quando essas singularidades não são consideradas e trabalha-se com a ideia de
cognição como recognição, formam-se alunos que lidam com o mundo como se ele
preexistisse, em uma atitude realista, ou que agem como se só houvesse um eu, tomado
como centro, fonte e piloto da aprendizagem, em uma atitude idealista e individualista
(KASTRUP, 2005):
O que prevalece é a crença de que o conhecimento é configurado
pelos esquemas recognitivos, pelas regras e pelo saber anterior. Seja
fundamentando o conhecimento nas formas de um mundo
preexistente, seja na forma do sujeito cognoscente, a atitude realista e
a idealista/individualista apresentam-se como duas faces da mesma
política da recognição, que toma o conhecimento como uma questão
de representação (KASTRUP, 2005, p.1281).
Por outro lado, ao se trabalhar com a ideia de cognição como invenção, formam-
se alunos que exercitam a problematização, sendo “afetados pela novidade trazida pela
experiência presente e tomam o conhecimento como invenção de si e do mundo. Ainda
que as práticas cognitivas configurem regras, estas são tomadas como temporárias e
passíveis de reinvenção” (KASTRUP, 2005, p.1281). Dentro desse modelo, não há
distinção entre teoria e prática, e ao contrário do que se pode pensar, as práticas de
134
estudo não são dispensáveis. Ao contrário, são fundamentais, “pois ajudam sim a
constituir políticas cognitivas (...). Só que o estudo tem que se transformar em algo
encarnado. O que se estuda deve deixar de ser apenas uma teoria abstrata” (KASTRUP,
2012, p. 58).
Dentro dessa concepção, Dias (2012, p.29) ressalta que:
Os processos de formação não podem ser reduzidos à aquisição de
conhecimentos técnico-científicos, à transmissão de conteúdos /
informações visando mudança comportamental, à aplicação de
técnicas e de teorias, que nos alertam para o perigo de reduzir o
conhecimento a um objeto já dado, produto a ser consumido, ou ainda,
o que me parece mais importante, não reduzir o processo da formação
à avaliação do resultado obtido ao final, para solucionar problemas.
(...) o processo de formação não se separa do modo de fazê-la.
Com base nisso, complementa a autora: “a aposta de uma formação inventiva é
fazer com o outro, e formar é criar outros modos de viver-trabalhar, aprender,
desaprender, e não apenas instrumentalizar o outro com novas tecnologias ou ainda, dar
consciência crítica ao outro” (DIAS, 2012, p.36). Para isso, porém, é preciso romper
com o que Gerhardt (2013, p.92) chama de “visão neutralizada da sala de aula e dos
elementos e fatos que a compõem”, uma vez que essa visão só se justifica em uma
escola que se interessa unicamente pelos materiais de linguagem produzidos fora dela
(GERHARDT, 2013), ou seja, por uma escola que toma o mundo como dado e o coloca
na sala de aula independentemente do que nela acontece e das pessoas que ali estão. Em
oposição a isso, é preciso que a escola seja considerada “um lugar de construção social
da cognição: um lugar plural, intersubjetival, palco para estranhamentos,
desentendimentos, confrontos epistêmicos, diferenças entre objetivos, expectativas e
desejos” (GERHARDT, 2013, p.92), uma vez que:
os alunos são indivíduos que têm papel agentivo na construção
semiótica da sala de aula, portanto, são parte integrante do ambiente
escolar como um espaço de ação e cognição. O seu fazer constrói e ao
mesmo tempo é afetado pela organização estrutural da sala de aula
(GERHARDT, 2013, p.96).
Assim, tendo em mente a ideia de que “uma formação inventiva é exercício da
potência de criação que constitui o vivo, é invenção de si e do mundo, se forja nas redes
de saberes e fazeres produzidas histórica e coletivamente” (DIAS, 2012, p.36), na
próxima seção deste capítulo, busco trazer um panorama histórico do ensino de
espanhol na escola brasileira. Articulando trabalhos que trazem o histórico das políticas
linguísticas e educacionais que marcam a história dessa disciplina escolar, busco
135
construir uma reflexão sobre como essa história pode se refletir nas políticas cognitivas
que se manifestam nos livros didáticos dessa disciplina hoje em dia e,
consequentemente, como argumentarei mais adiante, nas práticas desenvolvidas em sala
de aula. Ao mesmo tempo, por outro lado, também busco compreender como a história
dessa disciplina foi sendo alterada ao longo dos anos em função de sua adequação às
políticas cognitivas já instituídas na escola brasileira.
3.3. Políticas cognitivas e a trajetória do ensino de espanhol no Brasil: a construção
histórica de uma disciplina
Como defende Gerhardt (2014), existe, ao longo da história da escola, seja no
Brasil ou em qualquer outra parte do mundo, um processo de institucionalização do
ensinar-aprender que define um código que especifica como as ações dentro de sala de
aula devem ser interpretadas. A autora defende, assim, que esse processo de
institucionalização é, a longo prazo,
parte estruturadora da constituição sócio-histórica de cada Disciplina
escolar, definindo seus objetivos de organização e permitindo que se
agreguem a eles as formas de conhecimento, as práticas culturais, os
padrões cognitivos, interacionais e discursivos, bem como os sistemas
de crenças e estruturas de expectativa peculiares ao entendimento e
diferenciação entre disciplinas (GERHARDT, 2014, p.14).
Pensando nisso, nesta seção, me proponho justamente a entender os movimentos
de institucionalização da disciplina escolar “Espanhol”, uma vez que esses movimentos
vão se espelhar, de alguma maneira, na análise que farei mais adiante de livros didáticos
dessa disciplina produzidos entre 2004 e 2012. Para isso, é necessário trazer para essa
seção não apenas estudos que se dedicam a debates sobre o ensino de espanhol no
Brasil, como também estudos voltados para as políticas linguísticas relacionadas à
língua espanhola, uma vez que a história dessa disciplina também estará atravessada por
tais políticas. Assim, através desses estudos, uma vez que não é o foco deles, tento
apreender quais políticas cognitivas atravessam a história do ensino de espanhol no
Brasil, para que as políticas cognitivas que se apresentam hoje sejam melhor entendidas.
Como afirma Rajagopalan (2013b, p. 52), “há um componente nítido e
inconfundivelmente político em matéria de ensino de línguas”, o qual se manifesta tanto
nas políticas educacionais como nas políticas linguísticas que o sustentam. Segundo ele,
“a questão política esteve presente o tempo todo ao longo da história, influenciando
136
diretamente a tomada de decisões no que tange às políticas educacionais”
(RAJAGOPALAN, 2013a, p.145). Além disso, o autor afirma que
o ensino de línguas, sejam elas línguas maternas ou estrangeiras,
constituiu-se desde sempre como parte integral da política linguística
(no sentido de language policy) posta em prática no país.
Curiosamente, esse fato nem sempre foi reconhecido como tal.
Contudo, a política linguística tem norteado, de maneira escancarada
ou muitas vezes sutilmente velada, os objetivos e as prioridades do
ensino de línguas. Ela também invariavelmente baliza e determina
seus rumos e suas guinadas ocasionais (RAJAGOPALAN, 2013a,
p.144).
De igual maneira, defendo aqui que esse ensino também foi permeado ao longo
do tempo por políticas cognitivas, que, inclusive, podem ter se transformado durante a
história do ensino de línguas e, aqui em especial, do ensino de espanhol, no Brasil.
Sobre esse tema, Rajagopalan (2013a, p.151) descreve que “a história das políticas
linguísticas é ainda mais difusa e muitas vezes até confusa, no Brasil” (grifos do autor),
faltando “ainda e de forma bastante acentuada uma política clara e bem elaborada”.
Nesse sentido, Daher (2006, p.1, tradução minha) nos lembra que “a trajetória do ensino
de espanhol no Brasil é recente, complexa e difusa, mas integra uma história maior do
ensino de línguas estrangeiras e, igualmente, da educação no Brasil”65
.
Além disso, entendendo que “do ponto de vista social, não todas as línguas têm
o mesmo valor, nem o mesmo peso no sistema linguístico mundial” (LAGARES, 2013,
p.387), e que a trajetória do ensino de línguas estrangeiras em qualquer parte do mundo
vai manifestar também essas relações, é importante ressaltar que
As fonias (francofonia, hispanofonia, lusofonia, anglofonia,
arabofonia...), que podemos definir como espaços de gestão
internacional de línguas, apresentam características diversas de acordo
com sua história sociopolítica. (...) Assim, a anglofonia teria uma
norma descentralizada, sem protagonismo da antiga potência colonial
e com um mercado forte; a francofonia e a hispanofonia teriam uma
norma centralizada com grande protagonismo do antigo Estado
colonial e forte intervenção econômica em sua difusão; enquanto a
lusofonia teria uma norma descentralizada e dual, com pouca e
desigual participação dos seus principais Estados – Portugal e Brasil –
em sua promoção internacional” (LAGARES, 2013, p.388).
Essas características das fonias, como processos históricos de expansão política
e/ou religiosa (LAGARES, 2013), acabam por se manifestar também, como veremos ao
65
Original: “La trayectoria de la enseñanza de español en Brasil es reciente, compleja y difusa, pero
forma parte de una historia mayor de la enseñanza de las lenguas extranjeras y, a su vez, de la educación
en Brasil” (DAHER, 2006, p.1).
137
longo dessa seção, na história do ensino de línguas no Brasil. Em relação à língua
espanhola, Paraquett (2009b) nos lembra de que a Espanha foi, em certo aspecto,
pioneira na dominação linguística de outros povos, através de uma política linguística
que se inaugura em 1492, com a publicação da Gramática de Nebrija, não
coincidentemente o mesmo ano em que se dá a chegada dos espanhóis ao continente
americano. A autora nos recorda que a criação dessa gramática não só traz em si a
intenção de sistematização de uma língua do reino como facilita o domínio dele sobre o
nosso continente (PARAQUETT, 2009b).
ao ano de 1492, marco de glória da história moderna da Espanha.
Além da “Descoberta da América”, naquele ano os espanhóis
terminaram de expulsar os judeus e os mouros de seu território, e
ainda publicaram a Gramática de la lengua castellana, cujo autor foi
Elio Antonio de Nebrija. Esses não são fatos isolados, naturalmente.
Ao contrário, deixam clara a política de nacionalização e de
formalização linguística dos reis católicos, Fernando e Isabel
(PARAQUETT, 2009b, p.01).
Esse fato se torna especialmente relevante se observamos que, durante muito
tempo, a maior parte do material didático de ensino de espanhol que circulou no
mercado brasileiro era produzido na Espanha, sendo considerada essa produção
localizada nesse país um símbolo por si de qualidade e que boa parte do material que
hoje ainda circula no mercado privado brasileiro ainda é espanhola. Além disso, como
ressalta Paraquett (2009b, p.01):
a história da presença/ausência do Espanhol como língua estrangeira
(E/LE) no Brasil foi marcada por um percurso que confirma a falta de
compromisso com uma política que, de fato, tenha se dedicado à
construção de uma relação dialética entre o Brasil e os países
hispânicos.
Como destaca Daher (2006), a história do ensino de línguas estrangeiras no
Brasil se inicia no momento em que se inicia a história da educação brasileira, que,
dentro de uma política colonizadora, propunha a catequização dos indígenas. Assim, a
política educacional brasileira, nos primeiros anos de colonização, se voltou para esse
objetivo. Segundo Lagares (2013), nesse primeiro momento de expansão, ainda que um
extenso espaço político do português e do espanhol tenha começado a se constituir, a
difusão das línguas ainda se dava de forma muito desigual. A justificativa ideológica da
colonização era religiosa e, por isso, a ideia de língua nacional só se estabiliza como
instrumento de unidade política no século XIX. Sobre isso, Rajagopalan (2013b) afirma
que, até metade do século XVIII não havia nem no Brasil nem em Portugal uma
138
consciência em relação à existência de uma língua nacional, ou seja, não havia uma
política linguística sistemática66
.
No Brasil, a política educacional logo se deparou com a chegada dos europeus
para efetivamente colonizar o país. Eles acabam por exigir outros parâmetros de ensino.
Com a expulsão dos jesuítas em 1759 e a vinda da corte em 1808, a educação deixa de
se voltar para a Igreja e passa a se voltar para o Estado, ainda que o modelo jesuítico
fosse o seguido, em integração com modelos europeus. Dentre as mudanças ocorridas a
esse tempo, inseriram-se nos “currículos” o ensino das línguas clássicas – o latim e o
grego – através de uma prática baseada na tradução e nos comentários sobre os textos
clássicos e seus autores (DAHER, 2006). Dessa maneira, inaugura-se o ensino de
línguas no país, para além das razões da catequização, por meio da aprendizagem de
línguas mortas através de textos escritos, sem que, obviamente, houvesse qualquer
preocupação com a aprendizagem dessa língua para um uso cotidiano.
Além disso, também em 1759 o Marques de Pombal proibiu o uso da língua
geral e marcou a conscientização dos colonizadores sobre o papel desempenhado pela
língua em sua missão imperialista, tal como Nebrija propôs no prólogo de sua
Gramática de la lengua castellana. Assim, o ensino da língua portuguesa se tornou
obrigatório no Brasil (RAJAGOPALAN, 2003). Paralelamente, na América Latina,
houve o processo de expansão do castelhano de diferentes modos em diferentes regiões,
a partir de diferentes centros de prestígio, em função de fatores como:
a) O estado político, social e cultural da população indígena à época
da colonização.
b) A situação política e cultural de cada território durante a época
colonial.
c) As relações entre povoadores europeus e indígenas americanos
durante os primeiros séculos da colonização, e, sobretudo, a posição
social desses últimos.
d) Os ideais linguísticos e culturais durante o século XIX.
e) A evolução linguístico-cultural posterior, sobretudo com o processo
de industrialização e a imigração. (LAGARES, 2013, p.394).
Isso fez com que o espanhol se desenvolvesse como uma língua pluricêntrica
(LAGARES, 2013), mas, como visto anteriormente, ela ainda não havia alcançado os
espaços de aprendizagem de línguas no Brasil. Com a criação da “Real Academia
Española”, em 1773, esse pluricentrismo se viu obrigado a conviver com a obediência a
66
É interessante observar, com base em Lagares (2013) que nos séculos XVI e XVII, o termo Espanha
referia-se a toda pensínsula ibérica e que o castelhano era tomado, então, como “língua vulgar da
Espanha”, sendo falado por toda a aristocracia dos reinos ibéricos, inclusive pelas elites portuguesas.
139
uma norma prescritiva única (LAGARES, 2013), o que influenciou também a trajetória
do ensino de língua espanhola pelo mundo: “A influência da norma prescritiva da RAE
e um certo imaginário sobre a prevalência das formas ibéricas, por seu suposto ‘valor de
origem’, sempre estiveram presentes, em maior ou menor medida, no ensino de língua
em todo o mundo hispânico” (LAGARES, 2013, pp.399-400).
Aqui, é interessante observar que, a partir de 1871, criam-se outras academias
em diversos países e só em 1960 elas passam a criar uma associação, que “de alguma
maneira, reconhece uma certa autonomia das academias (o que não acontecia quando
estas eram “correspondentes”) e ao mesmo tempo permite que a RAE continue
mantendo o seu controle sobre todas” (LAGARES, 2013, p.400). Esse controle, não
apenas da não apenas da RAE, mas também de editoras e grupos espanhóis, acaba por
se refletir nas práticas de ensino de línguas através da produção de materiais didáticos e
de programas de formação de professores e, como se verá adiante, na implementação de
políticas linguísticas, educacionais, e também cognitivas relativas ao ensino de
espanhol. Dessa forma, o lugar do ensino de leitura no ensino de espanhol e a forma
como foi sendo desenvolvido ao longo do tempo no Brasil também vão ser
influenciados por essas políticas de centralização.
Prosseguindo esse breve panorama histórico, segundo Rajagopalan (2013b), o
século XIX presenciou a consolidação de conceitos como pátria, nacionalidade,
patriotismo e dos símbolos que os representam – hino nacional, bandeira nacional, etc.
Assim, através “de um trabalho árduo de delineação das fronteiras entre os territórios
recém-demarcados e a implementação de práticas pedagógicas que visavam à separação
linguística dos povos nos dois lados das fronteiras” (RAJAGOPALAN, 2013a, p.146),
uma vez que “as línguas eram convocadas para servir de laço unificador de um povo e
distingui-lo dos seus vizinhos” (RAJAGOPALAN, 2013a, p.146).
Leffa (1999) aponta que, no Brasil Império, o ensino das línguas modernas
sofria de dois graves problemas: falta de metodologia adequada, uma vez que se
utilizava a mesma metodologia para o ensino de línguas mortas e de línguas vivas –
tradução de textos e análise gramatical; e problemas de administração, o que incluía
também decisões curriculares, uma vez que as decisões relativas a esse tema estavam
centralizadas nas congregações dos colégios, que pouca competência tinham para
“gerenciar a crescente complexidade do ensino de línguas” (LEFFA, 1999, p. 24). Além
disso, ressalta o autor que foi nesse tempo que se instaurou a prática rotineira, presente
140
até hoje, de adaptar no Brasil o que acontecia em outros países, tanto em termos de
conteúdo (línguas escolhidas) como de metodologias, o que vai se manifestar também
na recente história do livro didático de espanhol no Brasil – objeto desta tese.
Em 1892, ocorreu a primeira reforma educacional da República, a qual reduziu o
número de horas dedicado ao ensino de línguas: o grego praticamente desapareceu, o
italiano passou a ser facultativo, e os alunos deveriam escolher entre o inglês e o alemão
(DAHER, 2006), desconsiderando-se desde lá, a proximidade com países que tinham já
a língua espanhola como língua oficial e a trajetória histórica que essas línguas –
português e espanhol – traçaram em conjunto. Dentro desse contexto, Freitas (2011)
lembra que talvez, ainda no século XIX, o Colégio Pedro II tenha ofertado a disciplina
língua espanhola, uma vez que, em 1885 houve um concurso para professor substituto
da disciplina, para o qual o candidato Alfredo Augusto Gomes escreveu a tese
Litteratura Hespanhola do XVII século. Escriptores Hespanhoes do XVII século: suas
produções principaes; porém, não há registros acerca de sua aprovação ou reprovação.
Assim, em termos institucionais, o primeiro registro do ensino de língua
espanhola em uma rede oficial só vai se dar em 1919, no Colégio Pedro II, através do
concurso que aprovou Antenor Nascentes para que se oferecesse a disciplina como
optativa, ainda que essa língua não fizesse parte das disciplinas previstas pela legislação
vigente naquele momento. A disciplina foi ofertada até 1925 e orientou, a partir de
então, a visão contrastiva como prática pedagógica, uma vez que, a partir dessa
experiência, Nascentes publicou, em 1934, a primeira gramática da língua espanhola
voltada para aprendizes brasileiros, tendo por base o princípio contrastivo (DAHER,
2006; FREITAS e BARRETO, 2007; FREITAS, 2011; PARAQUETT, 2009b;
RODRIGUES, 2010).
Sobre essa gramática, Celada e González (2000) chamam atenção para o fato do
autor nela dizer que “Estando o Brasil cercado de países onde se fala o espanhol e com
os quais se acha em relações constantes, de origem política, comercial, etc. é de grande
vantagem para os brasileiros o conhecimento não perfunctório daquella lingua” e que
“O espanhol é parecidíssimo com o português, como tôda a gente o sabe. Quem conhece
o português, com facilidade lê e compreende o espanhol, sentirá, é verdade, algumas
deficiências”. Dessa forma, é possível notar que o primeiro material didático produzido
no Brasil para o ensino de língua espanhola apresenta uma realidade difusa: ao passo
que não seria necessário que o brasileiro se dedicasse a estudar a língua espanhola, uma
141
vez que a compreensão entre os falantes de português e de espanhol estaria garantida,
cabe ao aprendiz brasileiro dedicar-se, muito provavelmente de maneira ainda mais
intensa, a esse aprendizado para que não saiba a língua de modo perfunctório e, assim,
supere suas deficiências.
Segundo Sebold (1998), na gramática de Nascentes, apresenta-se uma visão de
língua normativa e prescritiva e uma confusão entre língua literária e língua cotidiana,
uma vez que os modelos de correção derivavam de modelos literários. Entretanto, é
interessante observar, como fazem Vargens e Freitas (2010) que, em sua Gramática,
Antenor Nascentes também chamava a atenção para a necessidade de trabalhar com os
gêneros do cotidiano, que seriam efetivamente usados pelos alunos e não mais com o
método derivado do ensino de línguas clássicas, ou seja, o da tradução e do comentário
de textos literários: “Em vez da versão de trechos de antologias, é preferível ensinar a
redigir cartões postais, telegramas, bilhetinhos, cartas, que são as coisas que o aluno
precisará escrever em língua espanhola” (Nascentes, 1934, p.119, apud VARGENS e
FREITAS, 2010, pp.196-197).
Portanto, Nascentes traz, com sua gramática, outra forma de se ensinar a língua
espanhola no Brasil, através do método contrastivo e do uso de gêneros do cotidiano.
Em termos de políticas cognitivas, podemos dizer que ele inaugura assim uma política
cognitiva acerca de como e por que a língua espanhola precisa ser ensinada aos
brasileiros – uma política cognitiva que traz consigo a marca da recognição, uma vez
que, por mais que se ressalte a necessidade de uso de gêneros do cotidiano, as línguas
são entendidas como prévias e acabadas em si mesmos e que, portanto, cabe ao
aprendiz, que está alheio a elas, compará-las para que não tenha um conhecimento
superficial e assim resolva suas dificuldades, que também são pré-determinadas, uma
vez que elas se encontram na língua e não nos aprendizes.
Entre 1925, quando o espanhol deixa de ser ensinado no Colégio Pedro II, e
1942, quando uma nova lei para educação é formulada, têm-se que, segundo Freitas
(2011, p.04), “o ensino do espanhol no Rio de Janeiro e no Brasil enfrentou-se com um
longo período de esquecimento, um interregno sobre o qual não há notícias da presença
dessa disciplina em instituições escolares”. Em 1942, então, em meio à chamada
Reforma Capanema, que pretendia reestruturar a educação nacional, foi criada a
primeira legislação a tornar a língua espanhola disciplina obrigatória – a Lei Orgânica
do Ensino Secundário. Essa lei foi criada durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas
142
e em meio à Segunda Guerra Mundial. De acordo com ela, o espanhol, substituindo o
alemão, passou a ser ensinado como disciplina obrigatória, mas apenas no 1º ano dos
cursos Clássico ou Científico e com uma carga menor do que as outras línguas
estrangeiras modernas e clássicas: o francês, o inglês, o latim e o grego, já ensinadas,
nesse momento, há quase um século nas escolas brasileiras (DAHER; 2006; FREITAS e
BARRETO, 2007; FREITAS, 2011; PARAQUETT, 2009b; RODRIGUES, 2010).
Segundo Picanço (2003), a substituição do alemão pelo espanhol se
explica não apenas pelo fato de aquela ser a língua do inimigo na
Guerra Mundial, mas também como uma tentativa de sufocar as
colônias alemãs do sul do país que insistiam em manter em língua dos
seus antepassados e em não adotar o português. A opção pelo
espanhol se deu em função de que o inglês e o francês já faziam parte
do currículo e o italiano padecia dos mesmos problemas do alemão.
Além disso, o espanhol era língua de grandes clássicos da literatura...
(FREITAS e BARRETO, 2007, p.58)
Daher (2006) afirma que a Reforma também sugeria que se adotasse o ensino
através do método direto, apontando inclusive detalhes de como as aulas deveriam ser
dadas. Segundo Leffa (1988), esse método se caracteriza pela ênfase na língua oral,
podendo a escrita ser introduzida nas primeiras aulas. Nele, recomenda-se o uso de
diálogos situacionais e pequenos trechos de leitura para desenvolver exercícios orais e,
posteriormente, exercícios escritos, sendo o primeiro método que vai se utilizar da
integração das chamadas quatro habilidades (ouvir, falar, ler e escrever, nessa ordem).
Além disso,
A gramática, e mesmo os aspectos culturais da L2, são ensinados
indutivamente. O aluno é primeiro exposto aos "fatos" da língua para
mais tarde chegar a sua sistematização. O exercício oral deve preceder
o exercício escrito. A técnica da repetição é usada para o aprendizado
automático da língua. O uso de diálogos sobre assuntos da vida diária
tem por objetivo tornar viva a língua usada na sala de aula. O ditado é
abolido como exercício (LEFFA, 1988, p.215).
De acordo com o autor, esse método foi introduzido no Brasil, em 1932, no
Colégio Pedro II, através de uma reforma radical no método de ensino, que envolveu a
diminuição do número de alunos por turma – entre 15 e 20 alunos –, uma seleção
rigorosa de professores e a escolha de material adequado à proposta. Apresentado na
letra da lei, poderíamos dizer que se institui assim, pela primeira vez, uma política
cognitiva oficial no Brasil relativa ao ensino de línguas, a qual, igualmente marcada
pela lógica da recognição, aparta a língua de seus aprendizes e regula uma maneira
única de se aprender – de fora para dentro, ou seja, da língua pronta para o aprendiz, que
143
não deveria, então, bem como o professor, usar sua língua materna para não prejudicar o
processo. Entretanto, salienta Leffa (1988, p.216), esse método não foi adotado
plenamente por professores em sala de aula, “o antagonismo entre a AD [abordagem
direta], defendida pelos metodólogos, e a AGT [abordagem da gramática e da tradução],
empregada pela maioria dos professores na prática, parece mostrar uma luta constante
que perpassa todo o ensino de línguas através das mais diferentes abordagens e
métodos”.
É nesse tempo também – anos 40 – que se criam os primeiros Cursos Superiores
de Letras Neolatinas, sendo o primeiro deles em 1941, na Universidade Federal do Rio
de Janeiro, com foco maior nos estudos literários (DAHER, 2006; PARAQUETT,
2009b). Nota-se que o método direto não chega a invadir os cursos superiores a esse
tempo, estando eles mais restritos ao caráter cultural, que marca o aspecto mais
importante do ensino de espanhol em sua origem no Brasil, bem como uma concepção
de língua focada na norma e na prescrição (DAHER, 2006).
Além disso, é também na década de 40, que surge nos EUA, conforme aponta
Luna (2012), o chamado “Army Method”, voltado para o ensino para militares da
produção e da compreensão oral de línguas faladas pelos diferentes povos com os quais
o exército americano deveria se comunicar, influenciando também o ensino de língua
inglesa como LE em países que apoiavam os EUA. Esse método é marcadamente
influenciado pela teoria behaviorista, concebendo a língua um sistema de hábitos, e o
aprendizado como um processo de condicionamento (LUNA, 2012, p.37). O foco,
assim, deste método, também denominado de audiolingual, estava na oralidade, a
gramática deveria auxiliar apenas a imitação da fala e a escrita só deveria ser ensinada
após o “domínio” da oralidade. Para esses fins, também teve grande contribuição a
chamada linguística contrastiva, com ênfase nas estruturas das línguas estrangeiras em
comparação ao inglês (LUNA, 2012). Como apresentado no capítulo 1, é também com
forte influência desse campo que nasce a Linguística Aplicada.
Essa perspectiva contrastiva chega de maneira muito forte no ensino de espanhol
no Brasil com a publicação do Manual de Español, de Idel Becker, em 1945,
considerado por Celada e González (2000, p.44) um “gesto fundador” de uma visão de
ensino de espanhol no Brasil, aprofundando o que já aparecia na gramática de Antenor
Nascentes: “os estudos de Nascentes instauram e fundam uma interpretação acerca da
língua espanhola que o Manual de Becker consolida e consagra (CELADA e
144
GONZÁLEZ, 2000, p.50, tradução minha)67
. A presença do manual de Becker foi tão
forte durante algum tempo que Amaral (1995, apud CELADA e GONZÁLEZ, 2000,
p.51), chega a dizer que “quem não estudou na época com o professor Becker estudou,
certamente, com seu Manual de Español”. Segundo Sebold (1998), esse manual, focado
nas dificuldades para um brasileiro ou um português aprender o espanhol (e vice-versa),
baseado em “divergências léxicas” e na abordagem contrastiva, traz ressonâncias no
ensino de espanhol no Brasil até hoje.
Não apenas o Manual ressoa ainda hoje como também o próprio método da
análise contrastiva voltada para o ensino e apoiada na pressuposição behaviorista de que
os indivíduos transferem hábitos de sua língua à língua aprendida influencia os estudos
em espanhol até hoje (CELADA e GONZÁLEZ, 2000). Essa abordagem pressupõe que
havia a necessidade de colocar as línguas em contraste para encontrar as diferenças
entre elas e, assim, prever as dificuldades dos aprendizes. Entretanto, como salientam
Celada e González (2000, p.38, tradução minha), “essa diferença linear, em tese
objetivamente observável pelo linguista, não necessariamente se traduz em dificuldade,
o que significa que se suprime totalmente a reflexão sobre o peso da relação do sujeito
com seu objeto de aprendizagem”68
. Dessa forma, com o foco na língua e não no
aprendiz (GERHARDT, 2013), uma vez que as línguas são vistas como dadas e devem
ser comparadas para que as dificuldades dos alunos sejam previstas, projeta-se uma
política de cognição mais uma vez baseada na recognição. Tal política, como é possível
notar, vai atravessando os diferentes métodos ao longo do tempo.
Nesse sentido, é interessante observar a crítica feita por Celada e González
(2000, p.39) sobre o fato de que os estudos da língua realizados para resolver problemas
de didática geralmente mantêm a pressuposição de que “a efetiva investigação no
campo da língua espanhola, aquela que, sem ter um caráter propriamente didático, é a
que pode dar e dará à didática do espanhol as pautas, se não do que deve ser, ao menos
do que não deve reproduzir”69
. Retomo aqui, então, a ideia apresentada no início deste
67
Original: “los estudios de Nascentes instauran y fundan una interpretación acerca de la lengua española
que el Manual de Becker consolida y consagra” (CELADA e GONZÁLEZ, 2000, p.50).
68 Original: “esa diferencia lineal, en tesis objetivamente observable por el linguista, no necesariamente se
traduce en dificultad, lo que significa que se suprime totalmente la reflexión el peso de la relación del
sujeto con su objeto de aprendizaje” (CELADA e GONZÁLEZ, 2000, p.38).
69 Original: “la efectiva investigación en el campo de la lengua española, aquella que, sin tener un carácter
propiamente didáctico, es la que puede dar y dará a la didáctica del español las pautas, si no de lo que
debe ser, al menos de lo que no debe reproducir” (CELADA, GONZÁLEZ, 2000, p.39).
145
capítulo de que só é possível falar de ensino-aprendizagem com base em pressupostos
sobre a aprendizagem. A lógica recognitiva que separa língua de aprendiz e concebe
ambos como pré-definidos e, portanto, passíveis de previsibilidade na relação que
estabelecerão ao longo do aprendizado, acaba por instaurar cenários como esse, que se
apresentam até hoje, uma vez que a noção naturalizada de aprendizagem não é
questionada.
Na década de 50, segundo Valbuena Prat (2000, apud FREITAS e BARRETO,
2007), a situação do espanhol no Brasil era precária e se restringia apenas a algumas
iniciativas individuais. Em 1961, cria-se, então, a primeira LDB – Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB) e o panorama se altera, uma vez que ela não apresenta, em
seu texto, nenhuma referência a qualquer língua estrangeira. Abria-se, porém, uma
brecha para que elas continuassem a ser ensinadas, uma vez que a lei descentralizava as
determinações sobre a educação, criando os Conselhos Estaduais de Educação (CEE),
que deveriam ser corresponsáveis pela estruturação curricular das escolas, em função
das especificidades de cada região (RODRIGUES, 2010; FREITAS, 2011). Entretanto,
em função disso, a língua espanhola praticamente desapareceu dos currículos escolares,
uma vez que:
Essa oportunidade de subsistência que a LDB abria, porém, não foi
sentida da mesma maneira por todas as línguas que se ensinaram entre
1942 e 1961. O espanhol foi, entre as três línguas modernas
obrigatórias – ao lado do francês e do inglês -, aquela que desfrutou do
menor poder de adesão na estrutura curricular desse período, devido a
sua presença praticamente simbólica nos cursos Clássico e Científico
(contando com apenas um ano de estudo) e ao pouco tempo de que se
dispôs para poder consolidar nesse nível de ensino (RODRIGUES,
2010, p.17).
Como destaca Daher (2006), com menos de vinte anos de implantação, o
espanhol acabou saindo do espaço educativo, no qual permaneceram unicamente o
inglês e/ou o francês e, “com isso, o inglês e o francês se tornaram hegemônicos
durante, pelo menos, três décadas” (FREITAS, BARRETO e MARESMA, 2006). Nesse
sentido, cabe ressaltar o conceito de fonias (LAGARES, 2013) e a trajetória desses
idiomas para que eles se sobrepusessem ao espanhol. Sobre isso, Lagares (2013) aponta
que:
a sua presença [do francês] em instituições internacionais e o seu
prestígio como língua de cultura tem a ver, sobretudo, com o papel
que a França cumpriu desde cedo como centro mundial da cultura
“leiga”, e com o fato de Paris ser um centro cultural de produção e
validação internacional da cultura letrada [e que] a hegemonia
146
internacional do inglês se baseia principalmente no fato de outros
países se situarem na sua órbita, apesar de não o terem como língua
primeira da sua população nem como língua oficial (...). Mas o grande
sucesso do inglês como “língua franca” nas relações internacionais
(políticas, econômicas, culturais, científico-acadêmicas) se deve ao
enorme poder de atração do mercado de bens materiais constituídos
nessa língua” (LAGARES, 2013, pp.389-390).
Além disso, como bem ressaltam Celada e González (2000, p.37, tradução
minha, grifos das autoras): “o espanhol é uma língua que, no Brasil, tradicionalmente
foi objeto de uma ‘falta de atribuição de um suposto saber’ pelo qual valesse o esforço
de ser estudada”. Assim, o seu ensino no Brasil é marcado por “uma história de
desconhecimento mútuo, apoiado, porém – e isso é talvez o mais problemático – em
uma pressuposição de conhecimento”.70
É importante, entretanto, ressaltar que a língua
espanhola continuava sendo ensinada no nível universitário, primeiramente nos cursos
de Letras Neolatinas, criados no final da década de 1930 e, a partir dos anos 60, nos de
Letras (Português-Espanhol), e em alguns cursos livres (FREITAS e BARRETO, 2007;
FREITAS, 2011; PARAQUETT, 2009b).
Sobre a nova legislação, Rodrigues (2010, p.18) aponta que, mais do que
prejudicar a ampliação do ensino de espanhol, essa alteração na legislação “deu início a
um processo que temos chamado de ‘desoficialização’ do ensino de línguas estrangeiras
por parte do Estado em suas escolas”. Assim, aos poucos as línguas estrangeiras vão
deixando de ocupar lugar de destaque nas escolas brasileiras. Não à toa, os cursos livres
se fortalecem nas décadas de 1950 e 1960, quando são fundados, no Brasil, institutos de
cultura empreendidos por países hispânicos, ou seja, como parte de suas políticas
linguísticas, especialmente por Espanha e Argentina (FREITAS, 2011): “Eram criações
de política exterior linguística e cultural e tinham, entre suas finalidades, a oferta de
cursos de língua espanhola” (FREITAS, 2011, p.8). Um desses exemplos é o ICH, que:
nasceu com a conclusão das atividades do Consejo de la Hispanidad,
instituição criada em 1940 para levar adiante o ideal de Hispanidade,
sob a direção da Espanha, que assumia o papel de “líder espiritual do
mundo hispânico” (BARBEITO DÍEZ, 1989). Na verdade, o ICH
dava continuidade apenas à Sección Cultural do Consejo de la
Hispanidad, com seus programas de intercâmbio acadêmico e cultural,
bolsas, publicações, entre outros. A política externa franquista
70
Original: “el español es una lengua que en Brasil tradicionalmente fue objeto de una “falta de
atribución de un supuesto saber” por el cual valiese el esfuerzo de ser estudiada”. – “una historia de
desconocimiento mutuo, apoyados, sin embargo – y esto es quizás lo más problemático – en una
presuposición de conocimiento” (CELADA e GONZÁLEZ, 2000, p.37).
147
desejava cooptar o Brasil para a “causa” da hispanidade (AYLLÓN
PINO, 2004). Dois anos após sua fundação, em 1958, o IBCH começa
a oferecer cursos de língua espanhola. A iniciativa partiu de Emilia
Navarro Morales, então professora de língua espanhola da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, que teria encontrado na
criação desses cursos a solução para a prática de ensino de seus alunos
de graduação (FREITAS, 2011, p.8).
Sobre esse período, Vargens e Freitas (2010) apontam que “o século XX, em
especial o período que vai da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) à década de 70, foi
marcado, no que diz respeito ao ensino de línguas estrangeiras, por métodos (direto,
audiolingual, situacional) cujo foco estava nas competências orais” (VARGENS e
FREITAS, 2010, p. 199), principalmente se considerarmos esses cursos livres que se
multiplicavam cada vez mais com o passar dos anos.
Em 1971, cria-se uma nova LDB que apenas sugeria que as línguas estrangeiras
poderiam ser escolhidas pelos CEEs para a composição dos currículos, sendo a situação
de “desoficialização” alterada apenas em 1976, com a Resolução 58/76 do Conselho
Nacional de Educação (CNE), que retornava com a obrigatoriedade do ensino das
línguas no núcleo comum do 2º grau e recomendava também sua inclusão no 1º grau,
“onde as condições o indiquem e permitam”. A escolha das línguas a serem ensinadas
ficava por conta dos CEEs, o que mantinha o espanhol na mesma condição
(RODRIGUES, 2010; FREITAS, 2011).
Com isso, a partir de 1961, o espanhol praticamente desaparece das
escolas brasileiras e permanecem hegemônicos durante quase três
décadas o francês e o inglês, em especial. A língua espanhola
resiste, sempre convivendo com inglês e francês, em instituições como
o Colégio Pedro II, que a manteve no curso Clássico ao longo da
década de 1960, e em algumas escolas da rede pública do Estado da
Guanabara, que realizou concurso para professor de espanhol em 1967
(DAHER, 2009) (FREITAS, 2011).
A esse tempo – nos anos 70, por um lado, introduz-se no Brasil uma concepção
instrumental do ensino de línguas (DAHER, 2006) e, por outro, há um avanço dos
enfoques chamados de comunicativos, que levam a um ensino focado de forma mais
equilibrada nas quatro habilidades linguísticas. Entretanto, dentro dessa abordagem, a
ilusão de transparência entre as línguas fez com que as competências escritas fossem
pouco trabalhadas em aula (VARGENS e FREITAS, 2010): “Entre línguas estrangeiras
e língua materna parece haver-se criado um hiato que isolava as competências orais
como responsabilidade das primeiras e, as escritas, como pertencentes à seara da
segunda” (VARGENS e FREITAS, 2010, p.200). O ensino da língua escrita em língua
148
estrangeira parece, então, ter sido relegado à concepção instrumental, que, dedicada
especialmente à leitura, passou a ser procurada por aqueles que precisavam das línguas
estrangeiras para fins acadêmicos.
De certa forma, pode-se dizer que há nesse movimento um princípio de busca
pela fuga de uma política de recognição que apontava ali ainda timidamente para uma
política de invenção: em teoria, o método instrumental partiria das necessidades dos
alunos que vão buscá-lo, colocando-os no centro do processo, e o método comunicativo
retiraria o foco da língua e o colocaria na interação, reconhecendo a necessidade de 1 -
priorizar a comunicação; 2 - o uso de diferentes recursos, inclusive a língua materna e a
tradução se necessários, para a aprendizagem; 3 - a motivação e a reflexão sobre os
erros como parte de um processo pelos alunos; 4 - a contextualização da correção e a
impossibilidade de que o professor saiba exatamente e previamente a língua que seus
alunos usarão (cf. LEFFA, 1988; RICHARDS e RODGERS, 2003).
Entretanto, ao que parece, a busca por uma didatização encaixada nos padrões
anteriormente estabelecidos não fez com que a prática de ensino de línguas estrangeiras
se encaminhasse efetivamente para uma política de invenção, o que se pode notar muito
claramente na crítica levantada por Leffa (1988, p.229) a essa abordagem:
Embora a abordagem comunicativa tenha produzido na teoria várias
tentativas de taxionomias, na prática parece impossível aplicar os
princípios taxionômicos de modo que uma unidade de ensino forme
um todo integrado pelas suas partes. O fato de que uma função
independe da realidade física em que se encontram os participantes
(uma pessoa pode discordar numa loja, num restaurante ou numa aula)
torna difícil ou impossível encapsular uma série de funções menores
numa função maior. Um dos problemas, por exemplo, com materiais
comunicativos é identificar o conteúdo de cada unidade, normalmente
expresso através de listas de funções simultaneamente repetitivas,
incompletas e sem qualquer relação entre si. A compartimentalização
da língua em funções corre o risco de atomizacão da aprendizagem.
Não digo aqui que a abordagem comunicativa iria resolver os problemas do
ensino de línguas, principalmente considerando-se os problemas que a esse tempo já
dominavam a escola pública brasileira. Entretanto, é interessante observar na crítica
posta por Leffa (1988), a dificuldade de que novas propostas fossem inseridas em sala
de aula de forma a que fosse possível romper com visões de aprendizagem já
estabelecidas – dificuldade essa que nos acompanha ainda hoje, como bem nos lembra
Kastrup (2005; 2012), ao comentar nossa dificuldade de romper com o modelo da
recognição.
149
Nos anos 80, então, inicia-se um movimento de luta pelo regresso do ensino de
espanhol na educação básica, principalmente após a fundação da Associação de
Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro (APEERJ), criada para esse fim,
em 1981. Em poucos anos de luta, a APEERJ conseguiu aprovar leis no Estado e no
município do Rio de Janeiro que tornavam obrigatório o ensino de espanhol em escolas
de 1º e 2º graus. Além da APEERJ, paralelamente, outras associações foram sendo
fundadas pelo Brasil (DAHER, 2006; FREITAS e BARRETO, 2007; FREITAS, 2011;
PARAQUETT, 2009b). Antes disso,
Em 1980, já no processo de reabertura democrática, a Secretaria
Estadual de Educação do Rio de Janeiro faz a opção pelo Espanhol,
juntamente com o Inglês e o Francês, como língua estrangeira a ser
oferecida nos Centros de Estudos Supletivos. Dessa forma, o Espanhol
passa a ser, outra vez, uma opção de língua estrangeira na rede pública
estadual” (PARAQUETT, 2009b, p.07).
Entretanto, Paraquett (2009b, pp.08-09) nos lembra que “essa obrigatoriedade
[posta nas leis estadual e municipal aprovadas] não foi cumprida a contento, porque
houve resistência por parte de muitos diretores de escolas e também pela comunidade
como um todo, já que ainda não se podia compreender a importância da aprendizagem
de E/LE por brasileiros”. Ressalto aqui que, na verdade, ainda hoje as leis são
descumpridas por falta de compromisso dos governantes, mesmo com o apoio das
diversas comunidades escolares.
Além disso, outro fator que contribuiu para a ampliação do ensino de espanhol,
principalmente nas redes privadas, foi a inclusão, a partir de 1986, pela Cesgranrio entre
as línguas que poderiam ser escolhidos pelos alunos que prestariam os exames de
vestibular, sendo também essa uma conquista da APEERJ (FREITAS, 2011; FREITAS
e BARRETO, 2007 e PARAQUETT, 2009b). Também nos anos 80, impulsiona-se a
investigação sobre o ensino de leitura em língua estrangeira no Brasil, a partir do
projeto de Maria Antonieta Alba Celani denominado Projeto Nacional de Ensino de
Inglês Instrumental (VARGENS e FREITAS, 2010). Vargens e Freitas (2010) apontam
que esse projeto, ainda que focado no inglês, foi muito importante também para o
desenvolvimento de pesquisas relativas ao ensino de leitura em espanhol.
Entretanto, até os anos 90, a presença quase exclusiva do Inglês em instituições
públicas e privadas não conseguiu ser quebrada (PARAQUETT, 2009b), sendo ela
o resultado de uma política de hegemonia linguística que está além
das leis brasileiras. Pode-se encontrar explicação para essa hegemonia
no (falso) caráter utilitário que essa língua tem no imaginário da classe
150
média brasileira e que, de certa forma, repete o discurso ideológico e
econômico que vem crescendo desde a metade do século XX
(PARAQUETT, 2009b, p.06).
A situação só vai começar a se alterar no início dos anos 90, com a assinatura do
Tratado do Mercosul (1991), em um contexto em que “ao mesmo tempo em que se fala
em interesses globais, as nações estão procurando cada vez mais cuidar dos interesses
regionais” (RAJAGOPALAN, 2003, p.60). A partir daí, o número de cursos de língua
espanhola expandiu-se bastante e houve uma mudança no perfil do público, passando a
ser composto por profissionais e estudantes (FREITAS, 2011). Dessa forma, o espanhol
deixa de ocupar um lugar de língua “literária” e “de cultura” e passa a ocupar o lugar de
língua veicular (CELADA e GONZÁLEZ, 2000). Paralelamente, desde os anos 90, a
RAE vem implementando uma política denominada de “pan-hispânica”, que se projeta
na produção de materiais normativos e didáticos para o ensino de espanhol e no próprio
ensino de espanhol como língua estrangeira, através de uma visão de língua como puro
instrumento de comunicação e da noção de pátria compartilhada (LAGARES, 2013):
Essa política inclui uma proposta padronizadora para o espaço
internacional do espanhol, e é implementada com o apoio desigual dos
governos dos países de língua espanhola e com a decidida intervenção
de um conglomerado empresarial que já tinha constituído formalmente
uma Fundación Pro Real Academia Española, em 1993 (LAGARES,
2013, p.400).
Essa política se manifesta mais claramente quando, em 1998, é criado o Instituto
Cervantes no Brasil (PARAQUETT, 2009b).
O Instituto Cervantes é o órgão oficial do Ministério de Educação da
Espanha para fomentar o Espanhol como língua estrangeira fora do
território nacional. Seu papel é, portanto, político. Essa aparente
coincidência [com a criação do MERCOSUL] confirma que a
Espanha seguia com sua política lingüística externa, lutando por
garantir a presença do Espanhol fora de seu espaço geopolítico. Além
da oportuna presença do Instituto Cervantes, houve a partir dos anos
noventa uma intensa corrida de editoras às instituições brasileiras de
ensino, no propósito de vender manuais didáticos que seriam
utilizados, farta e cegamente, na rede privada e pública de nosso país.
Esses materiais traziam em si, e sem disfarce, as marcas da política de
hegemonia linguística, conhecida, pela primeira vez, nas caravelas dos
conquistadores (PARAQUETT, 2009b, p.08).
É interessante observar que, apesar de o MERCOSUL ser uma proposta de
integração regional, com a presença forte de uma política linguística espanhola aqui no
Brasil, o ensino de língua espanhola passa a ser regido pelos materiais produzidos na
Espanha – materiais que se produzem para alunos de espanhol de todo o mundo e que
151
ignoram, portanto, as especificidades do aprendiz que aprende essa língua no Brasil.
Assim, vemos também uma influência estrangeira na construção de uma política
cognitiva relativa à aprendizagem do espanhol, uma vez que essa padronização colocada
nos materiais demonstra claramente que o seu foco está na língua (GERHARDT, 2013),
e que, como a língua é a mesma para todos, não há problema algum que um mesmo
material cruze o mundo ensinando-a. E isso se refere a não apenas materiais, uma vez
que, como ressalta Freitas (2011), os Institutos Cervantes aqui fundados vieram com o
propósito de formar professores:
Após a fundação, em 1998, da sede em São Paulo, o IC abre as portas
no Rio de Janeiro em 2001. A princípio, eram sedes diferentes das
demais no mundo, pois não ofereciam cursos livres de língua e se
dedicavam apenas a atividades de didática e de metodologia. Em
função disso, eram inicialmente denominadas Centros de Formación
de Profesorado, apesar de a legislação educacional brasileira atribuir
apenas às Instituições de Ensino Superior a tarefa de formação
docente. Somente em 2002 e 2003, respectivamente, os IC de São
Paulo e Rio de Janeiro começam a dispor de cursos livres de língua e,
de maneira gradativa, vêm diminuindo as atividades de didática e
metodologia em prol dos cursos de língua (FREITAS, 2011, P.16).
Uma nova lei que alteraria a situação escolar das línguas estrangeiras só entrou
em vigência em 1996 e mantém-se vigente até hoje. Trata-se da LDB 11.161, que define
que, obrigatoriamente, uma língua estrangeira moderna deve ser ensinada como
disciplina obrigatória, a partir do segundo segmento do ensino fundamental, sendo ela
escolhida pela comunidade escolar, e outra em caráter optativo, no ensino médio, dentro
das possibilidades da instituição (FREITAS e BARRETO, 2007; PARAQUETT, 2009b;
RODRIGUES, 2010). Essa lei, mais uma vez, não altera a situação do espanhol na
escola brasileira; entretanto, com a luta das associações e com o argumento da fundação
do MERCOSUL, abrem-se brechas para que a disciplina se expanda. Paraquett (2009b),
por exemplo, nos lembra que, em 1998, devido à importância atribuída ao espanhol,
realiza-se o primeiro concurso para professores da rede pública municipal do Rio de
Janeiro para o nível de Ensino Fundamental, o que torna essa a primeira rede a incluir o
espanhol em seu currículo como língua obrigatória, embora opcional para o aluno.
Por outro lado, os cursos superiores de formação de professores de espanhol
ainda se espelhavam em currículos de universidades espanholas ou mesmo na
organização de gramáticas espanholas (SEBOLD, 1998), o que as aproximava das
políticas linguísticas (e, claro, cognitivas) da Espanha. Nesse sentido,
152
Por um lado, há um consenso de que é importante que o espanhol seja
amplamente divulgado e ensinado no Brasil, em vista do interesse
geopolítico do Estado brasileiro em fortalecer os laços com seus
vizinhos no continente sul-americano. Por outro lado, há uma
tremenda indefinição ou falta de clareza em relação às variedades da
língua a serem escolhidas para compor os materiais didáticos
(RAJAGOPALAN, 2013b, p.67).
Em 2000, ainda nesse contexto, funda-se a Associação Brasileira de Hispanistas
(ABH) e amplia-se em nível nacional a luta pela expansão do ensino de espanhol
(PARAQUETT, 2009b). Alguns anos depois, em 2005, então, é aprovada a lei 11.161,
que estabelece a obrigatoriedade da oferta de língua espanhola no ensino médio: uma lei
polêmica mesmo entre professores de espanhol, uma vez que muitos alegam que ela
representaria um movimento contrário ao plurilinguismo e à escolha livre da
comunidade escolar (FREITAS e BARRETO, 2007).
Em função da indeterminação estabelecida pela LDB, essa lei teve que obrigar a
oferta pela escola, mas deixar facultativa a matrícula ao aluno, de forma que não se
sobrepusesse à LDB. Essa lei traz um problema grave para os que acreditam na
possibilidade de ensinar línguas estrangeiras na escola regular. Ela autoriza e
regulamenta uma prática já comum em escolas privadas desde os anos 90 – o ensino de
línguas estrangeiras através do convênio com cursos livres. Além disso, ela
institucionaliza a possibilidade de que sistemas públicos criem “centros de ensino de
língua estrangeira” (RODRIGUES, 2010), retirando assim das escolas a
responsabilidade pelo ensino de línguas estrangeiras. Segundo Rodrigues (2010, p.21),
essas possibilidades se vinculam diretamente ao processo de “desoficialização” do
ensino de línguas estrangeiras em contexto escolar, uma vez que:
Segundo uma imagem que ganha espessura e se estende pelo Brasil a
partir dos anos 60, a escola “não ensina bem línguas estrangeiras” e,
por isso, essa disciplina deve ser concebida como um conteúdo
extracurricular, podendo ser estudada isoladamente, sem vínculos com
as demais disciplinas que compõem a grade do Ensino Médio (...).
A partir da criação da lei, o Ministério da Educação (MEC) executou ações
diversas no sentido de contribuir para o processo de inclusão dessa disciplina na
Educação Básica:
avaliação, seleção e distribuição aos professores do Ensino Médio de
um kit de materiais didáticos de Língua Espanhola; elaboração de um
capítulo específico para o Espanhol nas Orientações Curriculares
(2006); inclusão das Línguas Estrangeiras (Inglês e Espanhol) no
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2011 – anos finais do
Ensino Fundamental e PNLD 2012 – Ensino Médio) e no Programa
153
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), entre outras (BARROS e
COSTA, 2010a, p.9).
Por outro lado, começaram a aparecer também notícias na imprensa nacional e
internacional sobre milhares de postos de trabalho que se abririam em função da lei, o
que não era verdade (DAHER, 2006). Também apareceram projetos do governo
espanhol para a formação de professores fora dos cursos de licenciatura em função
desses números. Em contraposição a elas, manifestações intensas das associações de
professores e de professores de diversas universidades contrários a esses projetos
conseguiram bloquear tais projetos (DAHER, 2006). Sobre esse período, que vai até os
anos 2000, Freitas e Barreto (2007, p.58) descrevem a expansão do ensino de espanhol
no Brasil como um fenômeno impressionante, uma vez que “há trinta anos ocupava uma
posição secundária entre as línguas estrangeiras estudadas no país, e atualmente, embora
não tenhamos dados exatos sobre o assunto, é, sem dúvida, a segunda em importância”.
Além disso, observa-se também um fenômeno inédito: a propagação do ensino
de espanhol nos dois primeiros ciclos do ensino fundamental, sem que se tenham
pensado documentos orientadores para este trabalho e sem que os cursos universitários
formem professores para atuar nesse nível (DAHER, 2006), o que mais uma vez reforça
a ideia de aprendizagem como recognição, posto que se entende que se a língua é a
mesma, os professores que vão trabalhar com crianças e com adolescentes também
podem ser os mesmos e ter as mesmas formações, independente das especificidades que
a infância traz para o trabalho do professor.
Atualmente, excluindo o trabalho desenvolvido nas chamadas escolas bilíngues
ou internacionais, as línguas estrangeiras, especialmente o espanhol, ainda aparecem,
como ressalta Rodrigues (2010, p.23) num certo imaginário, desvinculadas do
estabelecimento escolar, “o que explica as numerosas tentativas de produzir sua efetiva
separação com relação às demais disciplinas oferecidas pela escola em suas estruturas
curriculares”. Entretanto, é importante observar que
A integração do processo de aprendizagem de línguas estrangeiras
com as demais disciplinas que compõem o currículo de cada
estabelecimento é uma forma de respeitar a proposta de formação
integral, além de uma oportunidade de fazer com que a língua
estrangeira estudada, faça sentido no/para aluno (RODRIGUES, 2010,
p.23).
A isso, se soma o fato de que “o multilinguismo está se tornando cada vez mais a
norma e não a exceção em nosso mundo” (RAJAGOPALAN, 2003, p.27) e que,
154
portanto, “urge pensar em novas formas de formular a política linguística no Brasil, com
vistas à nova ordem mundial que está aí e ao importante papel reservado a nosso país
nesta nova ordem” (RAJAGOPALAN, 2013a, p. 161). Além disso,
As formas como a língua estrangeira é encarada e ensinada como
parte do currículo escolar determinam como as crianças vão abordar
sua própria identidade como futuros cidadãos adultos, encarregados de
participar nas decisões importantes relativas às políticas internas e
externas do seu país, e de conduzir os rumos do seu país no cenário
global (RAJAGOPALAN, 2013b, p.69).
Nesse sentido, é de se lamentar enormemente o que vem acontecendo com o
ensino de línguas estrangeiras no Brasil durante o governo Temer, uma vez que, após a
Reforma do Ensino Médio, o inglês passou a ser a única língua estrangeira obrigatória
tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio, alterando-se a LDB de maneira
radical e jogando-se fora qualquer possibilidade de projeto plurilíngue. Além de revelar
uma política linguística que dá às costas para a América Latina, essa alteração também
projeta uma política cognitiva, uma vez que, subliminarmente, o que se diz é que a
função da aprendizagem de uma língua estrangeira deve ser unicamente tecnicista e
voltada para o mercado de trabalho. Dessa maneira, a impossibilidade de escolha por
parte do aprendiz demonstra que o mundo já está dado a tal ponto que não há sequer o
que escolher. Sobre isso, Rajagopalan (2013a, p.157) aponta que:
Há uma consciência crescente em diversas partes do mundo de que as
políticas educacionais devem colocar os interesses nacionais em
primeiro lugar, atendendo-se às prioridades geopolíticas que a nação
elegeu. Deve haver uma perfeita sintonia entre a política educacional
– e isso inclui a política de ensino de línguas – e o projeto geopolítico
na qual a nação se encontra isolada. Em vez de a linguística teórica
ditar as práticas relacionadas às políticas linguísticas e, por
conseguinte, a fortiori, ao ensino de línguas (...), hoje em dia percebe-
se que todos aqueles envolvidos de uma forma ou de outra na
educação devem estar atentos à esfera política, o lugar onde tais
questões devem ser debatidas e postas em prática.
O autor apresentava um panorama positivo derivado dessa reflexão. Entretanto,
em nosso contexto, em que o projeto colocado em voga não é o que a nação elegeu,
infelizmente, não há como projetar um futuro muito próspero, ao menos a curto prazo,
para o ensino de espanhol na escola regular. Nesse sentido, prosseguimos na luta para
que
(...) essa disciplina cumpra sua função no contexto do Ensino Regular:
contribuir para a formação de cidadãos letrados e críticos, com
autonomia para enriquecer e continuar seu aprendizado. Pode-se
concluir, assim, que não vemos a Língua Estrangeira na Educação
155
Básica como um mero instrumento para o mercado de trabalho, como
um signo de status social ou ainda como um conjunto de saberes
técnicos que se deve dominar para aplicar com fins específicos. Em
nossa concepção, o Espanhol no Ensino Regular tem uma função
muito mais ampla – a de educar e formar cidadãos -, possibilitando
contatos e encontros culturais relevantes e, mais que ensinar um
código, promover uma educação linguística, discursiva e intercultural
(BARROS e COSTA, 2010a, p.10).
Dessa maneira, o que se nota hoje, em trabalhos diversos, na academia
brasileira, é a defesa de um ensino de língua espanhola que:
a) parta do papel educativo das línguas estrangeiras (GONZÁLEZ, 2010;
BARROS e COSTA, 2010b; BAPTISTA, 2010; VARGENS e FREITAS, 2010);
b) que se apoie na superação de uma visão comunicativa tecnicista (GONZÁLEZ,
2010; BAPTISTA, 2010; VARGENS e FREITAS, 2010);
c) em uma perspectiva interdisciplinar (BARROS e COSTA, 2010b;
PARAQUETT, 2010; VARGENS e FREITAS, 2010);
d) no reconhecimento e na reflexão sobre a diversidade/pluralidade linguística e
cultural (GONZÁLEZ, 2010; BARROS e COSTA, 2010b; PARAQUETT,
2010; PONTE, 2010);
e) na superação da “enganosa proximidade” entre as línguas portuguesa e
espanhola, através do estudo da relação entre elas (GONZÁLEZ, 2010;
BARROS e COSTA, 2010b);
f) no ensino de gramática abordada de forma contextualizada e para além da
gramática normativa (GONZÁLEZ, 2010) e/ou reflexiva e indutiva (BARROS e
COSTA, 2010b);
g) na organização em temas transversais relevantes aos alunos (GONZÁLEZ,
2010; BARROS e COSTA, 2010b; PARAQUETT, 2010; VARGENS e
FREITAS, 2010) e
h) em gêneros discursivos e tipos textuais diversos, de forma intertextual
(BARROS e COSTA, 2010b; COSTA, 2008; PARAQUETT, 2010; VARGENS
e FREITAS, 2010; BRUNO, 2010);
i) no desenvolvimento linguístico do aluno associado ao desenvolvimento dos
letramentos (críticos, múltiplos, etc.) (BAPTISTA, 2010; BARROS e COSTA,
2010b; COSTA, 2008; VARGENS e FREITAS, 2010),
j) do pensamento crítico (BARROS e COSTA, 2010b), do senso de cidadania
(BARROS e COSTA, 2010b; VARGENS e FREITAS, 2010),
156
k) da autonomia intelectual (BARROS e COSTA, 2010b) e do domínio ativo do
discurso em diferentes comunidades e situações discursivas (VARGENS e
FREITAS, 2010);
l) e no desenvolvimento de habilidades, competências e estratégias diversas
(BARROS e COSTA, 2010b).
Entretanto, em um breve panorama, uma série de outros trabalhos tem
denunciado uma situação não muito positiva, em que materiais didáticos diversos
apresentam
a) questões de leitura que privilegiam a reprodução de informações explicitamente
postas na linearidade dos textos a leitura feita superficialmente, sem questões em
que os alunos emitam opiniões sobre o texto lido e sem que o conhecimento
prévio seja evocado para que o aluno conteste ou se contraponha ao que leu
(COSTA, 2011; FERREIRA, 2012; VARGAS, 2013);
b) dificuldade de se trabalhar, sistematicamente, com gêneros textuais e tipologias
de textos (PARAQUETT, 2012);
c) uma abordagem “estrutural” dos gêneros com ênfase na forma composicional e
no conteúdo (tema), deixando à parte os efeitos de produção de sentido e as
interrelações entre autor, leitor, texto e contexto (CARNEIRO et al., 2015);
d) a permanência de modelos comunicativistas que ignoram um ensino de base
interculturalista (PARAQUETT, 2012; GUADELUPE e SILVA, 2013);
e) a hegemonia de alguns países sobre outros, abandonando-se os mais periféricos,
inclusive em relação à diversidade linguística (PARAQUETT, 2012; ERES
FERNÁNDEZ et al., 2012; PONTE, 2010; RAJAGOPALAN, 2013b);
f) a apresentação de informações culturais pouco relevantes ou
descontextualizadas, com estereótipos ou visões distorcidas da realidade (ERES
FERNÁNDEZ et al., 2012);
g) a desconsideração das relações entre o universo cultural do aluno e os da língua
estudada (ASSIS e SILVA, 2015);
h) poucas atividades de compreensão leitora com a presença das relações entre
diferentes modos semióticos e práticas do letramento visual (MOREIRA, 2013);
i) ausência de reflexão (meta)linguística sobre as relações entre a língua materna
(português) e a língua aprendida (espanhol) (VARGAS, 2013).
157
Tudo isso demonstra que, basicamente, no ensino de língua espanhola vem se
reproduzindo o que Gerhardt (2013) denunciou em relação ao ensino de língua
portuguesa:
o foco dos planejamentos curriculares de língua portuguesa tem
recaído sobre a língua e não sobre os alunos, daí se considerarem as
condições de produção dos materiais didáticos, mas não as condições
em que os alunos constroem significados em contato com eles em sala
de aula, e com quais objetivos e recursos o fazem (GERHARDT,
2013, p.80).
Nesse sentido, é muito relevante que os dados anteriores tenham sido retirados
de análises de materiais didáticos, justamente porque, como demonstrarei na seção
seguinte, são esses materiais que efetivam em sala de aula as políticas cognitivas, sejam
elas previstas por documentos oficiais ou não. Portanto, considerando que “o desafio
para o aluno é como aprender a dominar a língua sem ser dominado por ela”
(RAJAGOPALAN, 2013b, p.68), é possível notar brevemente que ainda há muito por
fazer. Sobre esse fazer, é interessante observar que:
A política consiste em ação, não constatação. Ademais, ela objetiva
mudanças num dado status quo, não em sua perpetuação. Embora as
iniciativas políticas devam ser sensíveis às aspirações e aos desejos
daqueles em nome e em prol de quem elas são elaboradas, não podem
ser limitadas a tais restrições. Muitas vezes, as políticas devem ter
como objetivo introduzir mudanças no comportamento de um povo e
até mesmo nas suas formas de pensar. Em outras palavras, as ações
políticas são medidas intervencionistas (RAJAGOPALAN, 2013,
p.161a).
Concordando com Rajagopalan (2013a), acredito, então, que a produção de
livros didáticos que se proponham a fomentar políticas cognitivas de invenção é uma
ação política fundamental para a introdução de mudanças nas formas de pensar a
aprendizagem na escola brasileira. Essa ideia ficará mais clara na seção seguinte, em
que demonstrarei o papel basilar que os livros didáticos vêm desempenhando na
organização da cultura escolar brasileira e consequentemente na formação de aprendizes
e de seu posicionamento sobre seus processos de aprendizagem.
3.4. O livro didático como metonímia de políticas cognitivas: a construção histórica
de uma proposta de affordance
Como apresentei no capítulo anterior, parto, nesta tese, de uma visão de
cognição como processo de produção de conhecimento que se dá de forma distribuída
158
materialmente e socialmente, sendo, portanto, também situada, e representando a
manifestação das relações concêntricas estabelecidas entre forças culturais, locais e
individuais (HATCH e GARDNER, 1993). Assim, há sob essa visão dois tipos de
cognição distribuída, que se integram ao longo da interação que estabelecemos com o
ambiente e com as pessoas que nele se encontram: entre uma mente e um artefato
externo e entre mentes individuais (ZHANG e PATEL, 2006).
Essa visão de cognição distribuída traz para os estudos em e sobre o ensino
escolar a concepção da sala de aula como um nicho cognitivo (GERHARDT, 2014):
Para discussões sobre ensino, esse lugar é a sala de aula, que assume
um estatuto específico por ser um espaço de cognição, ação e
construção de significados com peculiaridades que não encontramos
em outros lugares. Tais peculiaridades permitem-nos definir para a
sala de aula a condição de nicho cognitivo - um locus onde as pessoas
pensam e agem de forma situada, e relativamente ao qual elas
constroem suas intersubjetividades (GERHARDT, 2014).
Entendendo, então, que, na escola, os pensamentos e as ações das pessoas se dão
de forma altamente institucionalizada, e que “é através de práticas cognitivas concretas
e efetivas que subjetividades são constituídas, sujeitos cognitivos são produzidos,
mundos são também constituídos, tudo em movimento em coengendramento”
(KASTRUP, 2012, p.55), torna-se essencial compreender como as pessoas atuam
situadamente a este espaço. Para que essa compreensão se desenvolva, é fundamental
que se observem os materiais que se encontram no nicho e que demonstram, de
diferentes maneiras, como o espaço (e tudo que há nele) afeta as pessoas, bem como as
pessoas também o afetam. Como nos lembra Gerhardt (2014):
como nicho cognitivo, não apenas a sala de aula afeta as pessoas que a
ocupam, como também as pessoas, através de suas ações cognitivas,
constroem os artefatos simbólicos e materiais propostos para uso, e
transformam-nos em coisas que elas podem compreender, usar (...).
Mas elas também reconstroem, ou seja, agem significativamente sobre
esses objetos, por isso a forma como os alunos os percebem é parte
integrante da natureza da sala de aula e dos relacionamentos em que
ali eles se engajam.
Portanto, entender a história do livro didático no Brasil e entender seu papel na
escola brasileira hoje é entender a própria história da construção da sala de aula como
nicho cognitivo e as possibilidades institucionalizadas para que nela atuem alunos e
professores.
a. Sua natureza local [do nicho cognitivo] diz respeito ao fato de que o
reconhecimento de um determinado espaço como nicho cognitivo
articula-se intimamente com o reconhecimento dos artefatos materiais
159
e simbólicos de um dado ambiente como elementos propiciadores e
desencadeadores das ações cognitivas pretendidas e realizadas naquele
espaço.
b. Sua constituição intersubjetiva [do nicho cognitivo] relaciona-se às
pessoas que constroem, participam de e têm as suas formas de
cognição organizadas relativamente ao nicho. Essas pessoas assumem
entre si, e em condições de ação conjunta, formas de cognição
baseadas no nicho, bem como nos problemas que justificam sua
existência, e nos objetivos de ação e cognição específicas àquele
espaço (Carassa et al. 2008).
c. Seus elementos de regulação normativa [do nicho cognitivo], que
podem se apresentar em âmbito mais ou menos institucional, afetam e
estruturam os comportamentos cognitivos das pessoas e suas
construções de significado (GERHARDT, 2014).
Nesse sentido, é fundamental, então, entender que, na sala de aula, o livro
didático atua como uma importante affordance, utilizada, como apontarei mais adiante,
como metonimização das intenções e expectativas da escola em relação ao aprendizado
dos alunos e ao desempenho dos professores. Entretanto, a construção e o uso dessa
affordance para o aprendizado escolar não é pré-dado, mas é também aprendido ao
longo do processo de escolarização. Como salienta Duque (2015a, p.62), “é na atuação
que descobrimos, revelamos ou até mesmo criamos o que elas [as affordances]
realmente proporcionam”. Além disso, a percepção (que é também conceptualização)
dessas affordances envolvem a mediação social e “não podem ser determinadas por
alguém que desconheça tais artefatos e esteja isolado de outras pessoas” (DUQUE,
2015a, p.62).
A affordance não se limita a um objeto isolado, mas depende de uma
coleção de objetos relacionados e de eventos. Em especial, as
affordances de artefatos não costumam ser autônomas. Elas dependem
de um contexto mais amplo que envolve outros artefatos e um
conjunto de ações envolvendo tais objetos (DUQUE, 2015a, p.62).
Não se pode esquecer que o uso do livro didático como affordance (ou como
suporte para a construção de affordances) não pode ser entendido fora de um contexto
específico de uso. Entretanto, não se pode negar o papel histórico que ele vem ocupando
na escola e que vem definindo também seus usos em microcontextos específicos. Nesse
sentido, é possível entender o que se planeja para esse uso para se entender as
possibilidades postas para os usos que alunos e professores fazem dele em um contexto
tão normatizado como é a sala de aula brasileira.
Em Vargas (2012a), eu já havia apontado que o livro didático atua como um
objeto semiótico formador de comportamentos cognitivos, modelando práticas e
160
estruturando relações em sala de aula. Nesta seção, trago parte da discussão lá posta,
atualizada e articulada aos estudos em cognição distribuída e à noção de políticas
cognitivas. Retomando os estudos sobre a história social do livro didático, é possível
notar que o modelo de livro didático que hoje existe na escola brasileira, tendo como
função principal a estruturação do trabalho pedagógico a ser desenvolvido em sala de
aula, se constituiu definitivamente no Brasil por volta da década de 60 (BATISTA,
2003; 2004; 2009; GERALDI, 2003; LERNER, 2004).
Esse modelo se caracteriza basicamente pela apresentação de conteúdos
curriculares e atividades para o ensino, por parte do professor, e a aprendizagem, por
parte dos alunos, desses conteúdos, e por sua distribuição de acordo com a progressão
escolar em séries e em unidades de ensino. Dentro desse modelo, então, o livro didático
se dirige especificamente ao aluno, mas seu uso deve ser feito com a mediação do
professor, direcionando, inclusive, o seu fazer através, mais recentemente, do manual do
professor. Desse modo, os livros didáticos acabam por atuar mais como um
condicionante e organizador da ação docente do que um material de apoio ao seu fazer,
como fora em outros tempos (BATISTA, 2003; 2004; 2009; GERALDI, 2003;
LERNER, 2004).
É importante observar, porém, que o processo de cristalização desse modelo de
livro didático não se deu de maneira isolada de qualquer contexto histórico. Ele
representou e ainda hoje representa o resultado de políticas públicas dirigidas ao próprio
material, em um nível mais restrito, e a projetos pedagógicos, em um nível mais amplo.
Nesse sentido, essa modelização acompanha a própria formação da escola brasileira
como ela é hoje constituída e de, portanto, um processo maior de sistematização de
projetos pedagógicos em nosso país – o que se comprova pelas crescentes políticas
públicas voltadas para esses materiais (GALVÃO e BATISTA, 2009; GERALDI, 2003).
Paralelamente à formação desse modelo de livro didático, a escola brasileira foi
se transformando em um espaço em que deveriam ocorrer um conjunto de atividades
reunidas em um ensino seriado de método simultâneo. Assim, os alunos passaram a ser
organizados em classes, que, teoricamente, representariam grupos com o mesmo grau de
desenvolvimento, e o professor passou a desenvolver atividades coletivas com eles, a
partir de um mesmo material.
Os livros didáticos vão passando, então, a ocupar esse papel de reproduzir e, ao
mesmo tempo, condicionar fortemente o “modo de organização da cultura escolar,
161
concepções pedagógicas, [e] maneiras de escolarizar saberes” (GALVÃO e BATISTA,
2009, p. 16). Isso se deu, por volta dos anos 60 e 70, em meio a um processo de intensa
ampliação do sistema de ensino, em especial da rede pública, que gerou, juntamente a
um aumento significativo do número de matrículas de alunos, um recrutamento docente,
por necessidade de dar conta desse número de alunos, mais amplo e menos seletivo.
Dessa forma, deterioraram-se suas condições de trabalho e o livro atuaria como um
manual impresso de conteúdos e exercícios delimitados em áreas de conhecimento e
Disciplinas para que esse professor, cujo trabalho entrava em suspeição, pudesse ser de
alguma forma direcionado (BATISTA, 2003; 2004; 2009; GALVÃO e BATISTA, 2009;
GERALDI, 2003).
Em função dessas transformações, os conteúdos a serem ensinados passaram a
ser organizados em progressão, acompanhando o ano letivo e possibilitando o controle
sobre o trabalho do professor (BATISTA, 2003; 2004; 2009; GALVÃO e BATISTA,
2009; GERALDI, 2003). Como denuncia Geraldi (2003, p.95):
O material está aí: facilitou a tarefa, diminuiu a responsabilidade pela
definição do conteúdo de ensino, preparou tudo - até as respostas para
o manual ou guia do professor. E permitiu: elevar o número de horas-
aula (...); diminuir a remuneração (...); contratar professores
independentemente de sua formação ou capacidade (GERALDI, 2003,
p.95).
Portanto, é possível entender que o livro didático atua como um objeto que
metonimiza a instituição escolar, uma vez que é a representação mais concreta da forma
como a escola se vê e de como ela quer ser vista pelos que nela atuam. Nele, revelam-
se, então, as intenções e as expectativas da instituição escolar em relação aos seus
objetivos e à atuação dos diferentes sujeitos que a integram (VARGAS, 2012a):
Assim, a solução para o despreparo do professor, em dado momento,
pareceu simples: bastaria oferecer-lhe um livro que, sozinho,
ensinasse aos alunos tudo o que fosse preciso. Os livros didáticos
seriam de dois gêneros: verdadeiros livros de textos para os alunos, e
livros-roteiros para os professores, para que aprendessem a servir-se
bem daqueles. Automatiza-se, a um tempo, o mestre e o aluno,
reduzidos a máquinas de repetição material (GERALDI, 2003, p.117).
Como aponta Geraldi (2003), essa configuração acaba por introduzir, na relação
entre a atividade de produção de conhecimentos e a atividade de ensino, uma nova
realidade intermediária: a produção do material didático que está unicamente a serviço
do trabalho de transmissão.
162
Trata-se de uma “parafernália didática” que vai do livro didático (para
o professor, com respostas dadas) até recursos de informática (...). Em
relação ao trabalho do professor, a profecia de Comenius se
concretiza: “tudo aquilo que deverá ensinar e, bem assim, os modos
como há de ensinar, o tem escrito como que em partituras”
(GERALDI, 2003, p.93).
No Brasil, estudos sobre o livro didático vêm sendo divulgados também desde os
anos 60. Em sua maioria, acabam por denunciar a falta de qualidade desses materiais em
relação aos seus conteúdos e às práticas que eles viabilizam (BATISTA, 2003).
Entretanto, como já apontado em Vargas (2012a), quase nada se fala sobre as relações
que se podem estabelecer entre o uso desses materiais por alunos e professores e a
forma como atuam cognitivamente, em um espaço tão institucionalizado como é o
espaço escolar. Nesse sentido, não se pode esquecer a importância dos objetos materiais
não apenas como ferramentas para o pensamento (VIGOTSKI, 2008) e como
mediadores semióticos do desenvolvimento cognitivo do aprendiz (SINHA, 1999), mas
como parte mesmo da própria cognição do aprendiz (ZHANG e PATEL, 2006),
contribuindo também para o seu posicionamento em determinada prática discursiva de
aprendizagem (SINHA, 1999).
Com base nisso, entendendo o livro didático como um objeto semiótico
formador de uma forma de cognição específica da aprendizagem escolar, desenvolvida
em sala de aula (VARGAS, 2012a), é possível observar que historicamente o livro
didático foi se construindo para atuar como uma affordance que fomenta políticas de
recognição, que emergiriam, então, no momento em que o professor colocaria as
atividades nele postas em prática. Assim, já se sabendo do papel fundamental que os
livros exercem em sala de aula, eles acabam por ser pensados para concretizar-se em
meios de controlar a atuação dos interactantes em sala de aula, enquadrando, portanto,
formas de pensar situadamente a esse espaço.
Sobre isso, Vigostki (2008) já havia apontado que a cognição humana é também
modelada pelos instrumentos e pelas ferramentas que o homem utiliza, sendo as funções
da mente e do corpo também desenvolvidas pelos objetos com que interagem em meio a
um contexto social que define essa interação. Sinha (1999) a isso acrescenta o fato de
que não apenas o contexto social define essa interação, mas também a própria interação,
em seu microcontexto, enquanto espaço de negociações entre os intersujeitos nela
presentes, se define e define o papel a ser desempenhado por cada um, por meio
também dos objetos que dela fazem parte. Assim, como os signos podem ser vistos
163
como ferramentas ou mercadorias, sob a ótica dos estudos em cognição, os objetos
também podem ser vistos como signos e como mediadores semióticos do
desenvolvimento da cognição, integrando o posicionamento e a perspectiva do sujeito-
aprendiz aos contextos das práticas que enquadram significativamente a aprendizagem
(SINHA, 1999; VIGOTSKI, 2008).
Como explicou Vigotski (2008) – e esse pode ser um conceito fundamental para
a noção de affordance –, um instrumento só é utilizado pelos seres humanos para
resolver problemas se a pessoa consegue conceptualizar simultaneamente as funções do
objeto e o objetivo a ser alcançado por meio dele: “mesmo o melhor instrumento para a
solução de dado problema não será utilizado pelo chimpanzé se ele não puder vê-lo ao
mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, que o objetivo” (VIGOTSKI, 2008 [1934],
p.49). E affordances, por sua vez,
são as entidades primárias que são percebidas, e perceber affordances
é perceber o mundo significativo. Importante para finalidades em
curso, affordances não são meramente entidades no ambiente, e eles
também não são projeções de significado estabelecidas por animais
em um ambiente meramente físico. Affordances são funcionalidades
dos sistemas animais-meio ambiente, e existem em tais sistemas
apenas em virtude de animais possuirem as habilidades necessárias
para perceber e tirar proveito deles (Anderson e Chemero, 2009, p.
306, apud GERHARDT, 2012).
Desse modo, um instrumento só pode ser usado se é posto para ele um objetivo,
uma vez que só assim é possível ao homem enxergar nele uma affordance. Em relação
ao livro didático, existe um objetivo pretendido para seu uso em sala de aula e que pode
também ser conceptualizado pelo aprendiz que se põe em interação com ele. Assim, por
meio de uma política de recognição, esses livros acabam por contribuir para a formação
de sujeitos reprodutores, o que se concretiza através da verificação das ações cognitivas
da pessoa que aprende. Dessa forma, como apontei em Vargas (2012a), mais uma vez, é
possível afirmar que o livro didático entra em sala de aula como um objeto que não
ensina apenas “conteúdos”, mas ensina também – e principalmente – o aprendiz a se
comportar como aprendiz, a formar seu comportamento cognitivo enquanto aprendiz:
como explica Gerhardt (2006b), a aprendizagem de conteúdos na escola é incidental,
uma vez que se ensinam, na verdade, comportamentos (socio)cognitivos e
metacognitivos.
Além disso, como consequência da construção desse modelo de escola e desse
perfil de livro didático elaborado por pessoas que não vão trabalhar com ele em sala de
164
aula, gera-se uma clara separação entre o grupo dos que executam o trabalho didático e
o dos que pensam esse trabalho. Sob a ótica dos estudos em cognição, então, o resultado
que se tem é que o livro didático passou a assumir o papel de formador de
comportamentos cognitivos tanto do professor, como sujeito-ensinante, como do aluno,
como sujeito-aprendiz. Entretanto, ambos atuam como reprodutores e não como
produtores de um conhecimento que deveria ser construído conjuntamente em sala de
aula. E o pior: sem a consciência de que o sistema educacional os colocou nessa posição
de emuladores e (re)produtores (SINHA, 1999), os professores acabam por
responsabilizar o aluno pelos fracassos que são, como já dizia Soares (1997), da escola
(VARGAS, 2012a).
Essa situação toda se agrava quando se observa que ainda hoje o livro didático,
em muitos casos, é o único instrumento de letramento dos nossos alunos, constituindo o
único meio de acesso sistemático deles à cultura escrita (PERINI, 1988; ROJO e
BATISTA, 2003; GALVÃO e BATISTA, 2009). Como salientam Rojo e Batista (2003,
p.16), “muitas vezes, o livro didático é o único material de leitura disponível nas casas
destes alunos de Ensino Fundamental e, por isso mesmo, são fundamentais para seu
processo de letramento”, uma vez que “os textos e impressos escolares parecem vir
sendo, assim, para parte significativa da população brasileira, o principal meio em torno
do qual sua escolarização e acesso à cultura escrita são organizados e constituídos”
(GALVÃO e BATISTA, 2009, p. 17) ou como cita Perini (1988, p. 81), são “o único
tipo de material escrito com o qual esses alunos têm oportunidade de um convívio
relativamente prolongado”.
Nesse sentido, não se pode negar que sejam, muitas vezes, esses materiais que
estejam ensinando os estudantes da escola brasileira a se posicionarem como
aprendizes, ensinando visões de aprendizagem e, portanto, ensinando e construindo
políticas cognitivas. Por isso, concordo com Rajagopalan (2003) quando ele diz que
“com certeza, esses materiais têm uma importância fundamental na formação dos
alunos, posto que eles orientam a escolha do modelo que vai ser seguido pelos alunos”
(RAJAGOPALAN, 2013b, p.67).
Igualmente, por conta de todo o cenário de precarização docente que ainda hoje
vivemos e que parece agravar-se de maneira vertiginosa, devido a fatores externos ao
trabalho em sala de aula, mas que acabam por defini-lo – entre eles, a inadequada
formação de professores e/ou suas precárias condições de trabalho, e as dificuldades de
165
produção e circulação do livro no Brasil -, o livro didático se transformou “numa das
poucas formas de documentação e consulta empregadas por professores e alunos”
(BATISTA, 2003, p.28). Assim, ele atua também como referência teórica para a
formação e informação do professor, sendo, por muitas vezes, seu único meio para isso,
uma vez que se encontra em um estado legitimado pela tradição escolar (BATISTA,
2003; BATISTA e COSTA VAL, 2004; BARROS e COSTA, 2010b; BRÄKLING,
2003; ERES FÉRNANDEZ et. al, 2012; GALVÃO e BATISTA, 2009; GERALDI,
2003; LERNER, 2004; ROJO, 2003; SEBOLD, 1998).
Sobre isso, Eres Fernández et al. (2012) chegam a dizer que os professores, em
sua maioria, não realizam análises prévias, não verificam os princípios teóricos nos
quais se pautam os livros, e não sabem como analisar os livros didáticos, comentando
pontos negativos de maneira genérica, o que, consequentemente, restringe suas
possibilidades de intervenção. Citando a pesquisa de Xavier e Urias (2006) com
professores de inglês, Rojo (2013) apresenta que o livro didático, para os professores
pesquisados, assume as funções de orientar as ações pedagógicas; de auxiliar e facilitar
o trabalho do professor, de complementar as aulas e a aprendizagem dos alunos; e de
estabelecer o conteúdo de ensino-aprendizagem e a sua sequência, isto é, viabilizar e
concretizar o programa e o currículo. Assim, como afirma Sebold (1998, p.34): “na falta
de informação, de subsídios e de uma definição clara de objetivos didáticos
institucionais, o livro-texto aparece como um elemento organizador da prática
pedagógica do professor”, constituindo-se, então, “na única referência metodológica de
que o professor de LE [língua estrangeira] dispõe e, portanto, se torna indispensável e,
muitas vezes, inquestionável”, uma vez que
Esses manuais [os livros didáticos] às vezes adquirem tanta
importância que acabam sendo a única referência para a elaboração do
planejamento de curso e, nesses casos, o professor normalmente
apenas transpõe para o plano os conteúdos apresentados no índice do
livro (BARROS e COSTA, 2010b, p.88).
Sobre essa questão, Rojo (2013) apresenta, então, três alternativas a partir das
quais o professor poderia se posicionar em relação ao livro didático. A primeira seria o
professor estar completamente refém do livro escolhido, executando-o em sala de aula
tal e como ele se apresenta – o que, pelo que apontam as pesquisas, é o que acontece na
maior parte dos casos. A segunda seria o professor ter uma “autonomia” total em
relação a ele, o que se torna impossível para a maior parte dos professores a partir da
organização do tempo escolar, da jornada de trabalho e das tecnologias disponíveis para
166
a preparação das aulas e para o trabalho em sala de aula. A terceira via seria, “além de
gerenciar o tempo e a disciplina escolar, selecionar bons livros, afinados com suas
concepções tanto sobre o ensino-aprendizagem como sobre os objetos de ensino, e deles
extrair seu melhor, combinando-o com outros recursos disponíveis” (ROJO, 2013,
p.171).
Transpondo essa reflexão para a discussão proposta por essa tese, é possível
dizer que a terceira via seria justamente assumir um movimento de invenção em relação
ao livro didático, assumindo-o como uma affordance que está ali para ajudar o professor
e os alunos na construção de práticas inventivas de aprendizagem. O livro didático
deixaria, portanto, de ser um objeto de controle e passaria a ser uma ferramenta a mais
no trabalho do professor, que, pelas condições precárias de trabalho que tem, não pode
abrir mão dele para desenvolver suas atividades em sala de aula. Rojo (2013) chega a
dizer que existe um problema nessa terceira via, uma vez que “quase sempre, ela resulta
em uma colagem de textos e atividades retirados de LD com propostas muitas vezes
disparatadas ou contraditórias, sem uma “espinha dorsal” que sustente tais disparates ou
contradições” (ROJO, 2013, p.172) e atribui esse problema ao fato de o livro didático
ser, em si mesmo, “um gênero discursivo que, como tal, apresenta unidade discursiva,
autoria e estilo” (ROJO, 2013, p.172).
Dentro da perspectiva aqui levantada, é possível dizer que o problema está, sob o
viés de análise das políticas da cognição, no fato de que os professores se libertam do
uso exclusivo de um único livro, mas não da forma reprodutora como se utilizam dele.
Assim, acabam não se colocando – porque não foram ensinados a isso – de maneira
inventiva em relação a eles, mas apenas reproduzindo fragmentos de livros dispersos.
Respaldado pela tradição, então, o livro didático acaba funcionando como principal
instrumento de letramento escolar – sendo que a escola, como já lembrou Kleiman
(1995), ainda é a principal agência de letramento de nossa sociedade, atuando com
privilégio sobre as outras –, tanto para alunos como para professores, e, portanto, como
um manual de como se deve pensar na Escola e fora dela (VARGAS, 2012a).
Como esta tese trata do livro didático de língua espanhola, é fundamental
ressaltar que o livro didático de língua estrangeira foi traçando, no Brasil, ao longo do
tempo uma trajetória paralela que nem sempre se alinhou à trajetória de livros de outras
disciplinas mais integradas ao cotidiano escolar. Paiva (2009), em texto sobre a história
dos LD de inglês no Brasil, diz que, em sua maioria, esses materiais, por um longo
167
tempo, foram produzidos fora do Brasil. Nesta tese, parto da premissa de que entender a
recente história do livro didático de língua estrangeira no Brasil é entender o processo
de integração da disciplina língua, no sistema educacional brasileiro, ao que Batista e
Galvão (2009) chamam de “cultura escolar”. Assim, acredito que esse processo de
inserção foi transformando os livros didáticos de língua estrangeira de forma que
passassem a se configurar também para a reprodução e o condicionamento dessa
cultura. Nesse sentido, é possível considerar a entrada das línguas estrangeiras no
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do MEC, sobre o qual falaremos mais
adiante, o ponto culminante desse processo.
Paiva (2009) demonstra que, ao longo da história do livro didático de língua
estrangeira no Brasil, ele foi se modificando de acordo com as perspectivas teóricas
vigentes a cada tempo, tais como as que foram brevemente apresentadas na seção
anterior. Entretanto, na análise da autora, é possível notar que não se trata de uma
história linear, uma vez que é atravessada por inovações e retrocessos, e pela
transposição nem sempre fidedigna para o material dos princípios teóricos que
influenciam sua produção. A autora salienta que a produção própria no Brasil de
materiais para o ensino de inglês só vai acontecer com alguma relevância por volta dos
anos 70, crescendo progressivamente até hoje.
Tratando dos livros didáticos de língua espanhola, Sebold (1998) apresenta uma
trajetória muito semelhante. Segundo a autora, os materiais didáticos dedicados ao
ensino de língua espanhola de maior êxito editorial foram influenciados, num primeiro
momento, pela concepção estruturalista e pela hipótese contrastiva, que tiveram maior
repercussão a partir da década de 60, quando começam a se desenvolver os materiais
que aderiam ao método audiolingual ou direto. Ela salienta também que, a partir da
década de 50, a produção de material didático espanhola começa a se tornar mais
significativa, inserindo-se, de um lado, dentro do pensamento gramatical espanhol, no
qual predominava a perspectiva formal, e de outro, recebendo influências das correntes
que se propagavam a partir de então: como salientado anteriormente, o estruturalismo, o
behaviorismo e a análise contrastiva.
Por volta dos anos 80, começam a se desenvolver fora do Brasil e são trazidos
para cá materiais voltados para o método comunicativo, com princípios da abordagem
nocional-funcional e com base em abordagens cognitivistas. Neles, a língua escrita volta
a ocupar lugar de destaque, bem como a produção criativa e a compreensão do sistema
168
de regras da língua, em vez da memorização de elementos sistêmicos apresentados em
cadeia. Segundo a autora, nesse momento, os exercícios e tarefas aparecem de forma
contextualizada, e a organização do material leva em conta o que o aprendiz já sabe
(SEBOLD, 1998).
Paralelamente a essa trajetória, entre os anos 60 e 80, foram também produzidos
no Brasil alguns materiais voltados para o ensino de língua espanhola especificamente
por brasileiros, em especial, compêndios gramaticais que incorporaram a abordagem
contrastiva e/ou descreviam princípios da gramática normativa da variedade dominante,
a castelhana, em português (SEBOLD, 1998):
Esses materiais apresentam, ainda que com pequenas variações, uma
abordagem sobre a língua numa mesma perspectiva. A produção
apresenta dados sistêmicos da língua espanhola segundo uma visão
normativa e prescritiva onde a dedução de regras é uma das estratégias
(...). Além da informação gramatical, essas obras incorporam textos
literários, primeiro, identificando literatura com língua e, depois,
oferecendo padrões de correção a partir dos modelos literários. Essa
perspectiva segue os princípios metodológicos anteriormente
apresentados no método gramática-tradução (SEBOLD, 1998, p.36).
Nos anos 90, então, surgem materiais que, seguindo as tendências anteriores,
integravam diferentes abordagens em sua produção e começaram a apresentar
informações variadas sobre os diferentes países de fala espanhola, coisa que antes não
era comum, já que o espanhol era diretamente associada à Espanha e sua cultura.
Entretanto, como salienta Sebold (1998, p.37),
esses materiais, em maior ou menor grau, se limitam a seguir
conceitos metodológicos já institucionalizados, buscando um
ecletismo que encobre o conflito entre a formação tradicional dos
profissionais de ensino e as necessidades de atualização teórica e
pedagógica (SEBOLD, 1998, p.37).
Ou como aponta Rojo (2013, p.164):
Entre outros resultados, os vários estudos têm apontado o papel
estruturador e cristalizador de currículos desempenhado pelo livro
didático e por outros materiais impressos de caráter apostilado e certa
homogeneização das práticas e propostas didáticas presentes nesses
materiais que, embora busquem se adequar a referenciais e propostas
curriculares mais recentes, mantêm-se ligados a certa “tradição” na
abordagem de seus objetos de ensino (ROJO, 2013, p.164).
Com base nesse processo histórico, nesta tese, me proponho a analisar a recente
história do livro didático de espanhol, tomando a leitura como foco de análise, o que se
verá mais adiante. A partir da trajetória de construção desse objeto que pode atuar como
169
uma affordance ou como suporte para a construção de affordances para a realização de
interações em sala de aula, torna-se mais do que relevante pensar sobre como o livro
didático vem se construindo. Além disso, é importante também refletir sobre como é
possível repensar seu lugar na escola brasileira, tendo em vista o papel fundamental que
ele desempenha na formação de professores e alunos. Nesse sentido, não se pode
esquecer que são os livros didáticos que evidenciam o que está sendo de fato
reconhecido como objeto de ensino nas salas de aula brasileiras (GERHARDT, 2013) e
que a seleção e organização dos conhecimentos escolares que neles se apresentam se dá
em função do que se acredita ser o processo de desenvolvimento humano e de
aprendizagem (MOREIRA e CANDAU, 2007), instituindo, portanto, políticas
cognitivas.
Cabe ressaltar, além disso, que os livros didáticos, seguindo essa lógica de
recognição, colocam, como ressalta Coracini (2011), o foco do ensino em seus
conteúdos e não no aluno, levando o professor ao posto de simples mediador, como já
dito anteriormente, entre o que se pensou fora da escola e o processo de reprodução a
ser desempenhado pelo aluno. Essa situação se agrava quando observamos que tudo que
nele se apresenta é visto como verdade, e os modelos apresentados, como padrões a
serem seguidos (CORACINI, 2011). Feitos fundamentalmente para a reprodução, então,
não costuma[m] incluir, entre os conteúdos selecionados, os debates,
as discordâncias, os processos de revisão e de questionamento que
marcam os conhecimentos e os saberes em muitos de seus contextos
originais. Dificilmente apresenta[m] menções às disputas que se
travam, por exemplo, no avanço do próprio conhecimento científico
(MOREIRA e CANDAU, 2007, p.23).
Nesse sentido, cabe entender os usos que se fazem hoje desses materiais em sala
de aula, bem como os modelos que eles propõem para a interação nesse espaço, mas
também – e, principalmente – cabe utilizar essa compreensão para estimular usos
inventivos desse material, fazendo com que se construam affordances diferentes
dependendo dos objetivos estabelecidos em cada situação de interação específica. Para
isso, Paiva (2009, p.53) espera que “o professor seja capaz de adaptar e complementar o
livro adotado e, até mesmo, de produzir material didático para seu contexto específico”.
Nessa mesma perspectiva, Gónzalez (2010, p.39) defende que:
Além disso, é importante ter claro que os materiais didáticos,
sobretudo o livro didático, são um meio e não um fim, elementos de
mediação e não objetos de aprendizagem, tampouco os compiladores
da matéria a ser aprendida de modo automático, os sinalizadores dos
rumos do ensino, aqueles que, sobretudo na ausência de propostas
170
curriculares claras (que é o caso mais frequente em nossas escolas),
funcionam como o currículo oculto a ser seguido passo a passo, sem
reflexão e crítica (GONZÁLEZ, 2010, p.39).
Considerando toda a precariedade que envolve a nossa realidade educacional,
principalmente, as condições de trabalho e de formação do professor que está em sala de
aula, defendo que esse movimento de transformação das concepções de uso do livro
didático precisam também emergir, em nível mais imediato, dos próprios materiais e
das políticas públicas que envolvem a produção de livros didáticos no Brasil. Nesse
sentido, concordo com Batista (2003) que, por exemplo, defende a necessidade do MEC
diversificar o modelo de livro didático proposto nos editais. É com base nesse
pensamento que observarei mais adiante os documentos oficiais e os livros selecionados
para a construção desta tese, tentando verificar em que medida os discursos e as práticas
executadas nos livros, em especial, no que se refere ao ensino e à aprendizagem da
leitura, foram se transformando ao longo do tempo. Antes disso, no próximo capítulo,
adentro, então, especificamente, o plano do ensino de leitura.
171
CAPÍTULO 4: A LEITURA INTEGRATIVA E O PLANO INFERENCIAL DE
LEITURA
Como aponta Kastrup (2012, p.59), a suspensão de uma política de recognição
ou a invenção de práticas de descontrução ou deslocamento dessa política nos obriga a
colocar outras práticas no lugar. Tal tarefa não é simples, uma vez que o modelo da
recognição “é um modelo que nos puxa sempre e a resistência tem que ser
constantemente reiterada. O caminho tem que ser feito dia a dia, como um desafio
permanente. Por isso, a formação inventiva vai se fazendo o tempo todo, sem ter um
resultado pronto”.
Assim, torna-se urgente a busca por práticas escolares que fomentem políticas de
invenção e que, portanto, reconheçam uma visão de cognição como distribuída e de
aprendizagem como invenção de problemas. Essa aprendizagem deveria ser construída,
na escola, através da integração conceptual entre o que o aluno já sabe e as informações
novas que a escola traz. Em função disso, neste capítulo, me dedico a tratar
especificamente do problema do ensino de leitura e de possíveis caminhos para sua
reconstrução. Acredito que essa seja uma contribuição fundamental não apenas para o
ensino de língua espanhola na escola pública brasileira, mas também para o ensino de
qualquer disciplina em qualquer etapa da educação básica, uma vez que a leitura
permeia toda e qualquer atividade escolar.
Assim, inicio este capítulo apresentando um breve panorama de como o ensino
da leitura vem sendo tratado pela escola brasileira, às vezes, apresentando-o de forma
mais geral, às vezes, apresentando-o especificamente ao que apontam os trabalhos sobre
o ensino de espanhol em situação escolar. Em seguida, apresento, então, a proposta de
visão de leitura integrativa, acreditando que ela pode nos oferecer um suporte para a
compreensão do processo de construção de significados durante a leitura. Assim,
acredito também que ela pode embasar a proposição de caminhos didáticos para
melhorar o ensino de leitura na escola, de forma que ele possa contribuir efetivamente
para o desenvolvimento dos alunos como leitores amadurecidos e críticos em relação ao
que leem.
Tal concepção me leva à seção seguinte em que apresentarei o plano inferencial
de leitura e sua articulação com as necessidades de mudança para o tratamento da leitura
na escola brasileira. Assim, perpassando os estudos em metacognição, apresento, ao
172
final, uma visão de ensino de leitura baseada na ideia de cognição distribuída e pensada
especificamente para o tratamento do plano inferencial de leitura, que deveria ser
trabalhado de forma inventiva em sala de aula.
4.1. Problemas do ensino de leitura no Brasil
No capítulo anterior, ao tratar do tema das políticas cognitivas e de sua
articulação com o uso dos livros didáticos em sala de aula e com a trajetória histórica da
disciplina língua espanhola na escola brasileira, já foi possível estabelecer, de alguma
maneira, uma visão panorâmica de como a escola brasileira enxerga a aprendizagem e,
consequentemente, o ensino. Neste capítulo, foco especificamente na leitura, sem
ignorar que ela representa, em um pequeno – mas essencial – nível, essa visão mais
ampla. Nesta seção, especificamente, trago, então, alguns estudos que já discutiram o
ensino de leitura na escola brasileira, seja em língua portuguesa, seja em língua
espanhola, uma vez que entendo, como os próprios PCN apontam, que o ensino de
leitura é um só, e que as habilidades desenvolvidas em uma língua são levadas a outra.
Antes de tudo, é importante ressaltar que estudos que levantam críticas em
relação à forma como a escola ensina a leitura são diversos desde muito tempo. No
Brasil, eles se reproduzem de maneira intensa, desde especialmente os anos 80 (KATO,
1990). Minha intenção com essa seção é apenas recolher alguns desses estudos que
tenham alguma relação mais direta com o objeto desta tese, retomando e dando
prosseguimento à pesquisa desenvolvida em Vargas (2012a), quando, por exemplo,
identifiquei que, em livros didáticos de língua portuguesa, não existe de fato um ensino
de leitura e que, ainda que se apresentem textos de qualidade, as atividades de leitura
neles apresentadas são de nível relativamente baixo.
De forma geral, o que se nota é que a vasta produção acadêmica sobre o trabalho
escolar com a leitura não conseguiu ainda se efetivar em mudanças concretas na
realidade da sala de aula, dessa maneira, se veem, demonstrações diversas do “insucesso
das propostas de letramento escolar” (ROJO e BATISTA, 2003, p.9). Entre outros
fatores, sobre isso, diversos trabalhos, a partir de diferentes linhas teóricas, já revelaram
que o trabalho em sala de aula não propicia que os estudantes entendam que ler é um
processo que exige a participação ativa dos leitores (BOTELHO, 2010; 2011; 2015;
BRANDÃO e MARTINS, 2003; CARNEIRO et al., 2015; COSTA, 2011;
DELL’ISOLA, 1997; FERREIRA, 2012; FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996, 2003;
173
GERALDI, 2003; GERHARDT, 2006b; 2013; 2014; GERHARDT, ALBUQUERQUE e
SILVA, 2009; GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015; GERHARDT e
VARGAS, 2010; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010; MARCUSCHI, 1996;
PIMENTA, 2006; ROJO, 2003; ROJO e BATISTA, 2003; TOMITCH, 2000; VARGAS
et al., 2011; VARGAS, 2011; 2012a; 2012b; 2013).
De modo geral, o que se nota é que a leitura ainda se encontra em um lugar
difuso dentro das aulas de língua portuguesa ou de línguas estrangeiras na escola
brasileira. Esse lugar difuso, como apontei em Vargas (2012a), se deve justamente à
contradição que se estabelece entre o que agora podemos chamar de políticas cognitivas
que embasam a estrutura escolar e o que é a leitura como prática social. Como denuncia
Geraldi (2003, p.117), a escola, em oposição ao fazer científico, busca sempre a
sistematização, a regularidade, a padronização:
a instituição escolar, incapaz de tolerar tais idas e vindas, porque
adepta de uma forma de conceber o conhecimento como algo exato e
cumulativo, pretensamente científico, não pode abrir mão de,
didaticamente, tentar ordenar e disciplinar esta aprendizagem
(GERALDI, 2003, p.117).
Nesse sentido, é possível afirmar que a escola desenvolve práticas reprodutoras.
Em função disso, o trabalho com a leitura acaba se dando de forma difusa, posto que
não caberia nesse modelo. Assim, a realidade do ensino de leitura acaba se construindo
de outra maneira, uma vez que não há qualquer sistematicidade em relação a ele:
A assistematicidade que se apresenta no contexto escolar em relação
ao desenvolvimento da leitura ao longo das etapas escolares pelas
quais o estudante passa acaba por revelar a quebra de um padrão,
justamente porque não se consegue, mantendo os padrões vigentes,
fazer um trabalho que desenvolva as capacidades leitoras de seus
alunos (VARGAS, 2012a, p.41).
Além disso, como apontam Rojo e Batista (2003, p.117), as atividades de leitura,
de forma geral, não conseguem “explorar satisfatoriamente aspectos linguístico-
discursivos cruciais para a construção da leitura” (ROJO e BATISTA, 2003, p.117), o
que gera uma leitura superficial em relação aos temas abordados nos textos (ROJO,
2003). Essas questões acabam não contribuindo para o desenvolvimento das
capacidades dos alunos, uma vez que, de modo geral, “o aluno passeia pelo texto em sua
superfície em busca das respostas que satisfarão não a si, mas à aferição de leitura que o
livro didático e o professor podem vir a fazer” (GERALDI, 2003, p.170).
174
Acabam, assim, sendo priorizados “os trabalhos temático e estrutural ou formal
sobre estes [os textos], ficando as abordagens discursivas ou a réplica ativa em segundo
plano” (ROJO e BATISTA, 2003, p.19-20). Como destaca Botelho (2015), ao ensinar a
leitura através de uma concepção de texto como produto acabado e como repositório de
informações, a escola, metonimizada pelo livro didático (VARGAS, 2012a), acaba não
contribuindo para a realização de uma leitura criativa, reflexiva ou mesmo para que os
alunos construam significados a partir do que leem: “as atividades desses materiais
formam um leitor que não atua sobre o texto e que não constrói reflexões sobre o que
leu, mas que aprende somente a reproduzir informações que o texto lhe transmite e que
não interpreta de forma autônoma a partir do que leu” (BOTELHO, 2015, p.31).
Apresenta-se, assim, o reforço de uma visão recognitiva de aprendizagem da leitura, já
que o texto é tomado como dado e o aluno não é encarado como capaz de produzir
significados ao interagir com ele.
Portanto, nota-se que o aluno como produtor de significados também não existe
nas aulas de leitura, sendo o seu papel apenas reproduzir os significados dados pelo
texto e confirmados pelo professor ou pelo livro didático. Assim, em resumo, não se
reconhece “a leitura como uma ação que envolve a participação ativa da pessoa que lê
na construção dos significados” (GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015,
p.181). Essa visão reprodutora é claramente demonstrada quando se observa que não há,
nas atividades de leitura, a apresentação para os alunos de objetivos claros para sua
realização (BOTELHO, 2015; GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015).
Tampouco se apresentam atividades que reconheçam os conhecimentos prévios dos
alunos como relevantes para o desenvolvimento da leitura (BOTELHO, 2015). Como
denuncia Botelho (2015, p.21), “Não considerar o conhecimento prévio dos alunos
como parte relevante para realização da atividade de leitura deriva de um modelo de
educação em que os saberes dos alunos não são convidados a participar do processo de
aprendizado escolar”.
Esses dois dados revelam a pouca importância que é dada ao aluno-aprendiz
durante o processo de ensino. A consequência, como apontei em Vargas (2012a), dessa
situação de ensino de leitura na escola é que esse tipo de prática, que coloca o aluno-
leitor no lugar de mero decodificador de signos linguísticos e reprodutor de ideias
apresentadas por outros, encaminha esses aprendizes a um entendimento de leitura
175
como simples tarefa mecânica de seleção de informações. Dessa forma, na escola, de
maneira absurda,
obtém sucesso o aluno que se nega a “mergulhar” no texto e a recriá-
lo. Neste caso, a leitura singular, denotativa, parafrásica é o padrão
comparativo utilizado pelo sistema escolar pelas “vantagens” que
proporciona, tais como: a facilidade de correção por parte do
professor, a superficialidade não reflexiva que gera alienação e a
manutenção de estratificação social (DELL’ISOLA, 1997, p.56).
Considerando o panorama apresentado no capítulo anterior, não se pode ignorar
que essa é uma política cognitiva que se apresenta muito fortemente na escola brasileira.
Assim, o mais grave é que, como se trata, então, de uma política cognitiva efetivada nas
salas de aula, além do aprendizado da leitura como tarefa mecânica de seleção de
informações, há aí outra aprendizagem, que se dá no plano meta: a ideia de que
aprender é reproduzir e que, ao aprendiz, que não tem nem é capaz de construir
qualquer saber relevante, só cabe, portanto, repetir as informações que recebe:
porque os temas destas interlocuções são constituídos como
“conteúdos de ensino” prontos, acabados, aos quais cabe ao aprendiz
“aceder”; porque a interlocução de sala de aula se caracteriza mais
como “aferição” de incorporação do que já estava pronto, acabado;
porque os sujeitos envolvidos se sujeitam às compreensões do mundo
que se lhes oferecem na escola (GERALDI, 2003, p.8).
Esse modelo de leitura apresentado anteriormente e massivamente desenvolvido
no espaço escolar, mais do que ensinando conteúdos aos alunos, estão atuando muito
fortemente na construção de sentidos sobre qual é a verdadeira natureza da leitura.
Como destaca Geraldi (2003), a Escola se converteu em um lugar de certezas e, mais
que isso, de reprodução dessas certezas. Não há espaço para dúvidas, erros e, muito
menos, para a construção de conhecimentos, uma vez que tudo se apresenta como
produto. Os processos, dessa forma, são ignorados e inexistem. Essa visão também
acaba conceptualizada pelo aprendiz que, no papel de aluno, em sala de aula, aprende
que é assim que se constrói o conhecimento e assim que se desenvolve a leitura: através
da reprodução do que já é certo, do que está escrito. O aprendiz aprende, então, que ele
não é alguém que possui saberes e experiências relevantes e que tampouco pode
construir qualquer tipo de conhecimento.
Neste sentido, não apenas o professor se despersonaliza na relação
institucional que mantém com o aluno – este também se dessujeitiza e
se minimiza, preocupando-se mais em atender a um sistema de
avaliação que infere e incorpora ao longo da sua existência como
estudante, do que propriamente em formar-se como pessoa por meio
176
da compreensão plena dos conteúdos e da expressão das suas próprias
ideias (GERHARDT, 2006b, p.1184-1185).
Com esse modelo de interação, em que alunos, professores e objetos de
aprendizagem são pré-existentes à interação que constroem em sala de aula e em que o
foco está na reprodução de um conteúdo escolarizado, obviamente, não há espaço para
que o professor entenda efetivamente as necessidades de seus alunos e trabalhe, com
base nelas e a partir delas. Em relação à leitura Gerhardt, Botelho e Amantes (2015,
p.182) destacam que:
as atividades escolares, por não promoverem a leitura como ação
cognitiva plena, não permitem a professores e alunos compreender as
capacidades destes últimos como leitores, nem identificar eventuais
dificuldades de leitura para saná-las em atividades posteriores.
Tudo isso se resume no que, em Gerhardt e Vargas (2010, p.153), apresentamos
com uma lista de “premissas equivocadas” sobre o ensino de leitura:
1. Saber ler é saber repetir/transcrever material explícito do texto; a
leitura inferencial não é identificada como tal.
2. Na falta de parâmetros objetivos para a avaliação em leitura, aceita-
se toda resposta que for oferecida numa dada atividade;
3. Ou, ao contrário, aferra-se ao gabarito do livro ou outro material
disponível, tido como certo, e tratam-se como erradas as respostas
diferentes;
4. Não se consideram os saberes prévios do aluno na leitura de um
texto, os quais poderiam levar à compreensão sobre como ele elabora
suas respostas;
5. As aulas de leitura (e também de escrita) são completamente
apartadas das de gramática, o que demonstra falta de percepção de
que, nos textos, os conteúdos estruturais tratados nos estudos
gramaticais estão sendo efetivamente usados, e poderiam ser
explorados nas atividades de leitura e produção textual.
Todas essas premissas revelam como o ensino de leitura é atravessado, nas
escolas, por políticas de recognição. Alunos e textos são tomados como dados, sem que
possam ser transformados ao se integrarem para a construção de novos sentidos. Não se
considera sequer que novos sentidos possam ser construídos através da atividade de
leitura. Com base nesse panorama, este capítulo busca, então, propor caminhos para o
ensino de leitura com base nos pressupostos que foram apresentados no capítulo
anterior. Como inspiração, pego o questionamento proposto por Dias e Scheinvar (2012,
p.150): “Seria possível experienciar e fazer aulas menos explicativas e mais
problematizadoras em um tempo como o nosso, em que tudo já vem muito pronto e sob
um regime de controle?”. Assim, me pergunto: seria possível pensar um ensino de
177
leitura que fugisse da reprodução e se voltasse para a formação de leitores críticos,
reflexivos, autônomos? Seria possível superar as “premissas equivocadas”
(GERHARDT e VARGAS, 2010) em que se baseiam as atividades escolares de leitura?
Acredito que sim e que a educação está nesse movimento, posto que, como
aponta Rajagopalan (2006, p.161),
está ganhando cada vez mais adeptos a ideia de que, na hora de
planejar o currículo e de elaborar a metodologia do ensino de línguas,
é preciso valorizar e levar em conta o conhecimento que os próprios
aprendizes já possuem e empregam como um dos fatores importantes
na tarefa de aprender. É essa ideia que move tendências recentes
como: educação com fins emancipatórios (empowerment education),
ensino reflexivo (reflective teaching) etc.
Dessa maneira, torna-se urgente o resgate do “saber do aluno como elemento
constitutivo da elaboração pedagógica e didática, favorecendo o aprendizado e
provendo a necessária construção da autonomia das pessoas como produtoras de
significados linguísticos na vida pública” (GERHARDT, 2013, p.82). Só dessa forma é
possível romper com a lógica denunciada em, entre outros, Soares (2005) e Moita Lopes
(1996), de que os alunos de classes populares nada teriam a contribuir para o ensino,
uma vez que seriam menos aptos intelectualmente ou pertenceriam a uma cultura menor
e/ou porque não teriam aptidão para o aprendizado de línguas estrangeiras. Nessa
perspectiva, para Rajagopalan (2006, p.162), há também outra ruptura com o próprio
campo teórico, posto que “a atitude de respeitar o ponto de vista do discente contrasta
de forma gritante com orientação da linguística teórica, segundo a qual o leigo nada
teria a ensinar ao perito”.
Buscando somar forças a essas perspectivas de ensino, considero que a
transformação em direção a uma mudança efetiva em relação ao ensino de leitura,
baseada nas questões postas anteriormente, passa pela construção de outra concepção de
leitura e, consequentemente, de ensino de leitura. Essa outra concepção, defendida aqui
nesta tese, será apresentada nas próximas seções deste capítulo.
4.2. Da leitura interativa à leitura integrativa
Tradicionalmente, os estudos em leitura têm apresentado, quase sempre em uma
linha temporal, três visões sobre como se dá o processamento da informação pelo
sujeito leitor. Predominantemente encarando-a como um processo no qual leitor e texto
participam com igual responsabilidade, tais estudos consideram duas dessas visões
178
como ultrapassadas e postulam uma terceira visão, na qual busca-se articular as duas
anteriores. Assim, opõe-se uma visão denominada de interativa a duas outras visões que
se opõem entre si e que corresponderiam aos dois tipos básicos de processamento da
informação: a hipótese top-down ou descendente e a hipótese bottom-up ou ascendente
(CORACINI, 2002; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KATO, 1990; KLEIMAN,
2001).
A hipótese bottom-up deriva de uma visão estrutural e mecanicista da
linguagem. Tal hipótese toma o texto, ou seja, a informação visual71
como fonte única
de sentido para o leitor. Assim, por meio de um processamento exclusivamente
ascendente, o leitor faria um uso linear e indutivo das informações visuais, construindo
o significado a partir da síntese do significado das partes. A leitura seria entendida,
então, como um processo mecânico e serial que começaria pela verificação de um
elemento escrito para que, a partir dele, se mobilizem outros conhecimentos de forma
que, passivamente, o leitor possa restaurar o sentido original do texto (CORACINI,
2002; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001).
A hipótese top-down, derivada de uma primeira geração de estudos da psicologia
cognitiva voltados para a compreensão leitora, vê o texto como um objeto
indeterminado e incompleto. Por isso, no ato de leitura, o leitor seria a fonte única do
sentido, acionando esquemas cognitivos que atuariam como padrões para o
entendimento das coisas. O processo de leitura seria um jogo de adivinhações e o texto
atuaria como mero confirmador de hipóteses. Desse modo, de forma descendente, o
leitor processa o texto não linearmente, fazendo o uso intensivo e dedutivo da chamada
informação não visual (ou conhecimento prévio), ou seja, de tudo o que não aparece
explicitamente no texto, partindo da macroestrutura para a microestrutura e da função
para a forma (CORACINI, 2002; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003; KATO, 1990;
KLEIMAN, 2001).
Nesse sentido, pode-se perceber que as duas visões constituem modelos de
recognição, posto que, na primeira delas, temos o predomínio de um texto que já chega
pronto para o leitor e, na segunda, o predomínio de um leitor que, igualmente, chega
pronto para o texto. Nenhum dos dois se altera ao entrarem mutuamente em contato. A
terceira hipótese não necessariamente se vincula a um modelo inventivo de cognição,
71
A informação visual é tratada aqui como toda informação explicitamente apresentada na linearidade do
texto. Ela pode ser reconhecida pelos olhos, no caso de videntes, ou pelo tato, no caso de leitores cegos.
179
uma vez que também pode apontar para a existência prévia de sentidos antes da
interação que se estabelece entre texto e leitor, entretanto, nos auxilia na construção
dessa visão.
Ela foi definida posteriormente, quando os teóricos da leitura perceberam que
essas duas visões isoladamente não conseguem representar completamente o processo
de construção de significados pelo sujeito leitor no ato de sua leitura. Assim, articulando
as duas anteriores, passou-se a se defender a existência de um processamento interativo
– a um só tempo top-down e bottom-up –, de forma que se vê a compreensão de um
texto como ocorrendo por meio da interação entre experiências prévias (conceitos
linguístico-culturais recuperados pelo leitor) e o texto.
Não nego que, de fato, a leitura se dá pela realização a um só tempo desses dois
movimentos e que, portanto, há uma interação entre texto e leitor no ato da leitura.
Entretanto, a partir da perspectiva que busco construir nesta tese, derivada da
articulação desses pressupostos a estudos mais recentes, acredito que uma concepção de
leitura que a toma como um processo interativo não seja suficiente, uma vez que ela
simplifica excessivamente os processos cognitivos envolvidos no ato de ler, reduzindo-
os a dois movimentos opostos (ascendente e descendente) e dificultando, assim, as
possibilidades de intervenção em relação ao ensino. Como aponta Gerhardt (2010,
p.257):
a sua adoção não é suficiente para que possamos defini-lo como base
processual do aprendizado em termos cognitivos, porque, restrito à
movimentação de informações entre a mente e o contexto, esse
modelo não dá conta de incluir – quanto mais de definir como se
constitui e do que se constitui – o estatuto do novo conceito formulado
pela mente e de como ele se relaciona com os conceitos que servem de
input para a sua formação, para que se atrelem, em um só esquema
estrutural, fontes, processo e resultado (GERHARDT, 2010, p.257).
Além disso, a busca pela construção de outra concepção ajuda a resolver
também o problema que a nomenclatura “leitura interativa” (também denominada de
interacional72
) traz, posto que vem sendo utilizada por diferentes correntes teóricas.
Desse modo, os diferentes usos do termo acabam por esconder diferenças substanciais
entre eles, podendo, inclusive, referir-se a diferentes tipos de interação: leitor-texto,
72
O fato de que muitos trabalhos, inclusive, apresentam os dois termos como semelhantes é uma
evidência dessa falsa polissemia do termo “leitura interativa”.
180
leitor-autor, autor-texto-leitor.73
Com base nisso, busco, então, nesta seção, definir essa
perspectiva que estou nomeando de “leitura integrativa” (ou de “leitura como processo
integrativo”) e mostro, em seguida, como o processo de construção de inferências pode
ser uma evidência dessa concepção, surgindo, inclusive como uma possibilidade
concreta de intervenção na formação de leitores em ambiente escolar.
Inicialmente, cabe destacar que, dentro dessa concepção, a leitura é vista como um
processo (ou como a integração de processos) e não como um produto, resultado da
extração de significados do texto pelo leitor. Assim, alinhando-me tanto aos
pressupostos apresentados no capítulo 2 desta tese como a uma concepção de cognição
como invenção, nego qualquer concepção que parta da ideia de que os significados
construídos ao longo de uma leitura existam anteriormente ao processo de integração do
leitor com o que lê. Dentro dessa perspectiva, o significado é visto como construído on
line e real time, ou seja, no momento da interação, de forma negociada e ajustada. Isso
nos leva a “observar o significado de forma dinâmica, ou seja, como construção e
articulação entre experiências, habilidades, conhecimentos e processos” (GERHARDT,
2006a, p.1).
Como dito anteriormente, essa concepção não nega o fato de que haja uma real
interação entre leitor e texto, ou entre a informação visual e os conhecimentos prévios
do leitor durante o processamento da leitura. Acredita-se, inclusive, que essa ideia tem
seu respaldo na fisiologia do cérebro humano, uma vez que ele não é capaz de processar
toda a informação visual alcançada pelos olhos, o que tomaria muito tempo
(FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003). Entretanto, embora não negue a ideia de que o
processamento da leitura exija do leitor previsões e saltos de parte da informação a ser
processada, gastando, assim, menos tempo e menos esforço cognitivo, como apontam os
estudos psicolinguísticos clássicos, uma concepção integrativa concebe que os
conhecimentos do leitor e as informações do texto se integram para o surgimento de
novos conhecimentos porque essa é a natureza da cognição humana.
Com base em importantes textos responsáveis pela divulgação de uma primeira
visão sobre os aspectos cognitivos e psicolinguísticos da leitura no Brasil (KATO, 1990;
73
É interessante observar que, por exemplo, encontrei em Coracini (2002), uma proposta de também
construir uma visão própria de leitura, denominada de leitura como processo discursivo, com base em
seus pressupostos teóricos, e que essa visão também foi usada em trabalhos posteriores, de outros autores,
em conjunto à noção de “leitura interativa (ou interacional)”, o que nos revela a importância desse
movimento de singularização teórica, mas também a dificuldade de evidenciá-lo a possíveis leitores.
181
LEFFA, 1996; KLEIMAN, 2001; 2010; FULGÊNCIO e LIBERATO, 2003, entre
outros), sabe-se o leitor retém apenas o conteúdo semântico construído, abandonando a
forma literal apresentada na informação visual. Além disso, sabe-se também que todo o
processo de leitura é seletivo e, portanto, individual, pois, como não percebemos tudo o
que vemos, cada um de nós tem uma percepção única de um mesmo objeto.
Postula-se também, nesses estudos, a existência de uma memória intermediária
(consciousness ou estado de consciência), na qual se focalizam as partes do
conhecimento geral do leitor necessárias para o entendimento de novas informações.
Nela, parte da informação velha, o conhecimento prévio, é focalizada, e a informação
nova é introduzida para a construção de novos significados. Isso só seria possível
porque os nossos conhecimentos se organizam em esquemas cognitivos, que podem
modificar-se, aumentando ou alterando-se, conforme novas informações são aprendidas.
Portanto, os estudos psicolinguísticos clássicos fundantes de uma visão interativa
de leitura já apontavam para o fato de que, para que a leitura seja construída, é
necessário que o leitor tenha conhecimentos para serem ativados, de modo que ele possa
receber a informação nova e compreendê-la. Nesse sentido, já se chamava a atenção
para o papel fundamental do conhecimento prévio do leitor no desenvolvimento de sua
leitura. Kleiman (2010, p.13) chega, inclusive, a apontar que “sem o engajamento do
conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão”.
Parto, então, desses estudos para buscar compreender processualmente como essa
interação, posteriormente posta como integração, se dá, entendendo que, como
destacado no capítulo anterior,
Qualquer que seja o modelo processual proposto, ele deverá
reconhecer a relação de mão dupla entre a pessoa que cogniza e o
universo à sua volta, num fluxo contínuo de informação em ambos os
sentidos, e não supor que o ser humano apenas recebe passivamente as
informações, sem atuar sobre a construção do significado
(GERHARDT, 2010, p.256).
Com base, então, em pressupostos mais recentes, apresentados no segundo
capítulo desta tese, é possível observar que nossos conhecimentos estão organizados,
em nossa mente, em saberes acumulados e se relacionam e se manifestam na interação
por meio de saberes processuais, que permitem a utilização desses saberes para a
formação de outros (DUQUE e COSTA, 2012; GERHARDT, 2006a; 2010;
MIRANDA, 2001). A partir disso, pode-se entender que, na leitura, o leitor integra a
182
informação recebida do texto aos seus saberes acumulados, por meio dos processos
cognitivos que constituem os saberes processuais.
Assim, o conhecimento prévio é entendido como todo o conhecimento que o leitor
tem e que é ativado no momento da leitura (cf. BOTELHO, 2011, 2015; GERHARDT,
ALBUQUERQUE, e SILVA, 2009). O conhecimento prévio se torna, assim, “um
conceito fundamental à compreensão e exploração estratégica da leitura, tendo em vista
que (...) é possível ler melhor a partir do olhar sobre aquilo que já conhecemos”
(BOTELHO, 2015, p.16).
Isso implica que, muito embora algumas previsões possam ser feitas
sobre como um determinado texto será lido, cada pessoa lerá um texto
de uma forma que lhe é absolutamente pessoal; por isso, não haverá
nunca duas pessoas que leiam um texto de maneira igual
(GERHARDT, ALBUQUERQUE e SILVA, 2009, p.75-76).
Segundo Duque (2015b), como também já foi mostrado no capítulo 2, os nossos
saberes acumulados se estruturam e são acionados inconscientemente através de padrões
cognitivos denominados de frames. O autor define os frames como “mecanismos
cognitivos através dos quais organizamos pensamentos, ideias e visões de mundo” e
afirma que “novas informações só ganham sentido se forem integradas a frames
construídos por meio da interação ou do discurso” (DUQUE, 2015b, p.26). Assim,
cognitivamente, podemos afirmar que a linguagem aciona e constrói frames em nossa
memória continuamente, o que teria respaldo nos estudos neurais da linguagem, que já
demonstraram que “um frame é uma “cascata” de circuitos neurais acionada por
palavras” (DUQUE, 2015b, p.27).
De certa forma, essa visão retoma a dos estudos clássicos, uma vez que já
consideravam que o nosso conhecimento prévio estava organizado em esquemas, e a
refina, ao evidenciar a dinamicidade da construção do significado, permitindo-nos um
melhor uso da teoria para estudos aplicados ao ensino. Além disso, é interessante
observar que, mesmo no campo da linguística cognitiva, alguns trabalhos, como o de
Miranda (1999), já associavam os chamados “domínios estáveis” ao conhecimento
prévio, ainda que nesses trabalhos, alguns desses domínios tivessem um caráter de
permanência recentemente rejeitado por uma abordagem exclusivamente baseada em
frames. Propostas de análises de leituras realizadas por estudantes em contexto escolar
com base em frames podem ser vistas em Botelho (2015) e Vargas (2012a, 2015).
Tratando especificamente do ensino da leitura, Botelho (2015), então, afirma que a
183
organização do conhecimento prévio do leitor deve ser compreendida em função do
emprego dos frames, uma vez que sendo
estruturas de conhecimento altamente sistematizadas, delimitadas por
experiências corporificadas e por interações sociais, (...) além de não
permanecerem na memória de forma aleatória, podem ser entendidas
como uma espécie de conhecimento compartilhado a fim de se
compreender um dado evento ou objeto abordados em um texto. Com
base nesse tipo de percepção, Duque (2014, p.82) definiu os frames
como uma estrutura seletiva de “memória social”, o que favorece a
que pensemos o conhecimento prévio a partir da noção de frame
(BOTELHO, 2015, p.49).
Duque (2015b) afirma que os frames são essenciais para a construção de sentidos,
uma vez que só podemos atribuir características a conceitos predefinidos porque somos
capazes de associá-los a frames específicos e de mudar a perspectiva dentro de um
mesmo frame. O autor ressalta que diversas são as abordagens sobre esse conceito, mas
que todas constroem uma visão de frames como gestalts formadas por partes ou papéis
que estabelecem relações entre si, podendo variar em níveis de complexidade, ou seja,
em números de papéis pelos quais são compostos e de relações entre esses papéis. Os
frames, assim, poderiam, inclusive, ser constituídos por outros frames.
Dentro de uma visão que reconhece os movimentos ascendente e descendente do
fluxo da informação como contribuindo de igual maneira para a construção de
significados, é possível dizer que apenas a ativação dos frames não é suficiente para a
compreensão do discurso. É preciso que eles se articulem, nesse duplo movimento, às
informações que o texto traz. Para isso, o leitor deve se utilizar de seus saberes
processuais, tais como a integração conceptual (FAUCONNIER e TURNER, 2002),
processo cognitivo que, por excelência, permite a articulação de diferentes domínios já
existentes e, consequentemente, a formação de novos significados. Ao considerar a
integração conceptual como processo chave para a construção de significados, no caso
desta tese, em uma atividade de leitura, é possível começar a construir uma visão que
fuja do modelo da recognição, posto que se reconhece a possibilidade de que texto e
leitor se transformem no ato da leitura e de que novos significados surjam dessa
integração.
Em resumo, entende-se que os conhecimentos prévios se unem e se organizam
em nossos saberes acumulados, que, durante a leitura, são ativados e integrados às
informações novas. Consecutivamente, as informações construídas passam a constituir-
se como velhas, o que possibilita a integração com novas informações, formando uma
184
sucessão de integrações para a compreensão do texto. Assim, ao longo de uma atividade
de leitura, ocorrem sucessivos processos de integração conceptual entre a informação
visual e o conhecimento prévio do leitor, o que permite a formação de novos
significados que, por sua vez, passam a compor também sua memória.
Para isso, pode-se basear em Gerhardt (2010), que define os processos de
formação de conceitos, e, consequentemente, de aprendizagem como frutos da
capacidade humana de juntar duas coisas para formar uma terceira por meio da
integração conceptual, como apresentado no capítulo anterior. A autora define da
seguinte maneira como se dá o aprendizado de um conceito na Escola (o que, para mim,
vale também para a construção dos significados durante a leitura de um texto em sala de
aula):
Os participantes do processo de construção de significados
proporcionado pela mesclagem conceptual - no nosso caso, conceitos-
base para a formação de outros novos conceitos na escola – estão em
diferentes domínios de experiência: no input I, o domínio dos
conhecimentos do aluno; no input II, o domínio dos conhecimentos da
escola. Os domínios input encontram-se numa situação de fluxo, de
troca; para usar a terminologia clássica do processamento interativo,
trata-se dos movimentos top-down e bottom-up, respectivamente. Isso
nos permite dizer que o modelo interativo proposto por Rumelhart &
McClelland (1982) faz parte de um universo processual mais amplo,
de integração conceptual (GERHARDT, 2010, p.258).
Assim, é possível associar a visão clássica da psicolinguística sobre o
processamento da leitura a esse fundamental processo descoberto recentemente e
definido no segundo capítulo desta tese. Cabe ressaltar que a projeção interdominial se
dá por meio de projeções seletivas e deriva na formação de um espaço-mescla. Essa
projeção só é possível se, entre os domínios, houver estruturas comuns que permitam
sua articulação, formando, assim, o espaço genérico. O espaço-mescla herda, assim,
estruturas parciais dos inputs, mas tem uma estrutura própria, não sendo simplesmente a
soma das partes.
Dessa forma, se os estudos clássicos já entendiam a leitura como o resultado da
interação entre conhecimento prévio e informação nova, dentro dessa ótica derivada da
articulação dos estudos clássicos a estudos mais recentes, pode-se compreendê-la como
o resultado de sucessivas integrações conceptuais entre o conhecimento prévio
(organizado em frames) e a informação nova recebida do texto (que ativa os frames do
conhecimento prévio e é também selecionada em função dos frames já construídos pelo
185
leitor). O que se produz dessa interação estaria, então, nos sucessivos espaços-mescla
que se formam para a construção do todo conceptualizado.
Assim, o leitor, ao receber as informações novas explicitamente apresentadas no
texto, recupera experiências, saberes, conceitos, sentidos, etc. previamente construídos e
os articula ao que recebe do texto. Dessa forma, tanto a informação nova, recebida do
texto, como a informação velha, se alteram para que novos saberes, conceitos,
experiências, visões, sentidos, etc. se construam.
Tanto do ponto de vista psicológico quanto sociológico, o texto se
descontextualiza e se deixa recontextualizar pelo leitor. Tal fato
relaciona-se diretamente com o repertório de experiências do leitor.
Nenhum texto apresenta um sentido único, instalado, imutável,
depositado em algum lugar. (...). A leitura é produzida à medida que o
leitor interage com o texto (DELL’ISOLA, 2001, p.28).
Assim, reconhece-se o papel fundamental desempenhado pelo conhecimento
prévio na compreensão da linguagem, como já apontavam os textos responsáveis pela
divulgação de uma primeira visão sobre os aspectos cognitivos e psicolinguísticos da
leitura no Brasil (KATO, 1990; LEFFA, 1996; KLEIMAN, 2001; 2010; FULGÊNCIO
e LIBERATO, 2003, entre outros), mas entende-se também e melhor como se dá a
integração entre este e a informação nova, o que nos permite, inclusive, pensar numa
didática mais apropriada para o trabalho com a leitura na escola.
Ao mesmo tempo, através dessa visão, também se retoma o valor da informação
visual para a construção da leitura, uma vez que é esta que vai ativa os frames que
compõem o nosso conhecimento prévio. Também é importante destacar que nem todas
as informações constantes no texto são percebidas/conceptualizadas, uma vez que a
projeção interdominial é sempre seletiva e que o próprio conhecimento prévio guia essa
seleção, o que contribui para a corroboração do já clichê de que toda leitura é
individual, uma vez que é fruto de projeções seletivas únicas. Para que a leitura se dê
efetivamente, é preciso, então, que as partes relevantes dos dois inputs sejam
selecionadas e integradas, de forma que o leitor possa de fato integrar-se ao texto e que,
desse processo, novos saberes se formem.
Assim, não haveria leitura ou significado construído anteriormente ao próprio
ato de leitura, tampouco haveria leituras melhores ou piores por si mesmas. Como
salienta Kastrup (2012, p.55), “não existe um mundo só, nem existe só um sistema
cognitivo e nem uma representação melhor do que a outra do mundo, mais próxima da
realidade. Existem diferentes percepções e diferentes mundos”. Existem também
186
diferentes leituras, pensadas em diferentes contextos, por diferentes pessoas, com base
em diferentes saberes e experiências para o alcance de diferentes objetivos.
Nas próximas seções, apresento, então, o que estou chamando de plano
inferencial de leitura. Dentro da concepção que aqui apresento, este seria o plano de
leitura que melhor evidencia as premissas aqui postas, uma vez que as inferências vão
ser vistas justamente como a consequência da integração conceptual entre os
conhecimentos prévios do leitor e as informações visuais apresentadas na linearidade do
texto. Assim, apresento, inicialmente, o processo de construção de inferências – a
inferenciação – como um processo cognitivo, para depois atravessar essa discussão com
as questões que envolvem o ensino de leitura na escola.
4.3. A inferenciação como processo cognitivo
Como dito anteriormente, nesta tese, estou focando nossa atenção no processo de
construção de inferências (ou inferenciação), por acreditar que ele evidencia os
fenômenos descritos anteriormente. Com base nos pressupostos anteriormente
apresentados, a inferenciação passa a ser entendida como um processo cognitivo básico
de construção de significados, consequência, na leitura, da integração das duas fontes de
informação anteriormente citadas: a informação visual e o conhecimento prévio. Antes
de tudo, é importante salientar que, durante muito tempo, a inferência foi vista como
uma forma de se referir a tudo que não estava explícito em um texto. Assim, a
inferência estava essencialmente vinculada ao texto, sendo vista dentro de uma
concepção ascendente (bottom-up) de leitura. Além disso, ao referir-se a tudo que não é
explícito em um texto, apresenta-se uma aparente polissemia do termo, que, na verdade,
representa uma falta de precisão teórica.
A noção de inferência tem sido usada para descrever operações
cognitivas que vão desde a identificação do referente de elementos
anafóricos e exofóricos até a construção da organização temática do
texto. Essa excessiva abrangência do conceito de inferência é
problemática para a caracterização desse fenômeno, pois reúne sob o
mesmo título operações muito diversas, trazendo assim dificuldades
para o estudo dele (COSCARELLI, 2002, p.2).
Ao escolher uma angular teórica que busque aprimorar o conceito de inferência
em leitura sob a ótica apresentada nos capítulos anteriores e na seção anterior deste
capítulo, acredito estar contribuindo para a fundamentação de discursos pedagógicos
sobre o ensino de leitura. Nesse sentido, é importante ressaltar que diversos dos
187
trabalhos clássicos sobre leitura e cognição já deram o devido destaque ao papel
cumprido pelas inferências em um ato de leitura. Muitos já apontaram, inclusive, que os
leitores sempre constroem inferências de forma espontânea enquanto leem, e que o que
fica após uma leitura, ou seja, seu resultado para o leitor, na verdade, são as inferências
geradas ao longo do processo e não as informações explicitamente postas nos textos
(DELL’ISOLA, 2001; FERREIRA e DIAS, 2004; FULGÊNCIO e LIBERATO; 2003;
KATO, 1990; KLEIMAN, 2001, 2010): “há evidências experimentais que mostram com
clareza que o que lembramos mais tarde, após a leitura, são as inferências que fizemos
durante a leitura; não lembramos o que o texto dizia literalmente” (KLEIMAN, 2010,
p.25).
Entretanto, tendo em mente a ideia de que tais estudos não permitiam observar
com a devida importância a processualidade da leitura, como destacado na seção
anterior, tornou-se necessário também construir uma visão de inferência que se
encaixasse com a visão de leitura explicitada anteriormente. Essa visão foi definida de
forma mais detalhada em Vargas (2012a), e aqui apresento brevemente alguns pontos lá
postos, os que nos permitem entender melhor a análise apresentada mais adiante.
Nesse sentido, é interessante observar que os primeiros estudos sobre leitura e
cognição já nos deram, anteriormente, também a base para a construção de uma visão
essencialmente integrativa do processo de inferenciação, uma vez que já definia esse
processo como a articulação entre duas fontes de informação: o texto, em sua
linearidade, e o conhecimento prévio (cf. CHIKALANGA, 1992). Além disso, o fato de
entenderem a leitura como processamento seletivo, que depende de previsões e
deduções também já produzira, em estudos anteriores, contribuições para a
compreensão da inferenciação como processo básico de significação, por meio do qual
o leitor se coloca como ativo na construção de significados (KATO, 1990; KLEIMAN,
2001, 2010; FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996, 2003).
Chikalanga (1992), entre outros autores, ofereceu a base para essa compreensão,
ao definir a inferência como
o processo cognitivo no qual um leitor obtém a informação implícita
de um texto escrito com base em duas fontes de informação: o
conteúdo proposicional do texto (isto é, a informação explicitamente
afirmada) e o conhecimento prévio do leitor. Alternativamente, o
188
termo é usado para definir o produto final desse processo
(CHIKALANGA, 1992, p.697, tradução minha)74
.
A partir desses estudos, em Vargas (2012a), caracterizei as inferências como
resultados únicos e novos de cada leitura, sendo, portanto, uma evidência de que a
leitura é um processo que acontece on line, em condições singulares. Nesse sentido,
cabe lembrar que a inferenciação é um processo que permeia a linguagem de forma
geral, ocorrendo em todas as atividades que envolvem a compreensão (de textos, de
imagens, etc.), tanto na fala como na escrita, posto que novas experiências são sempre
postas em articulação a velhas, e a construção de significados se dá sempre nesse
movimento de integração: “a nossa compreensão não só de textos, mas da realidade
como um todo, está condicionada à nossa experiência anterior” (FULGÊNCIO e
LIBERATO, 2003, p.86).
Dessa forma, em relação à leitura, um leitor só é capaz de atribuir sentido a um
texto se passa a constituí-lo também, transformando-o em algo novo.
O significado não está embutido ou inscrito totalmente no texto oral
ou escrito. Embora o texto carregue um sentido pretendido pelo autor,
ele é polissêmico e, como tal, oferece possibilidades de ser
reconstruído a partir do universo de sentidos do receptor, que lhe
atribui coerência através de uma negociação de significados. Esse
processo, por sua vez, amplia as chances de compreender e ser
compreendido na e pela interação (FERREIRA e DIAS, 2004, p.440).
A construção de inferências é entendida, então, como um processo de criação,
um processo básico de produção de (novos) significados. Com base nisso, ao
incorporar-se a teoria da integração conceptual (FAUCONNIER e TURNER, 2002) aos
estudos anteriormente citados, é possível trazer uma maior noção de processualidade ao
estudo da inferenciação, que pode, então, ser analisada de maneira on line e por meio de
integrações de conceitos projetados seletivamente. Assim, a inferenciação é vista como:
um processo de formação de conceitos (inferências) que se dá a partir
da integração conceptual entre dois inputs de informação: o
conhecimento prévio do leitor e a informação visual apresentada no
texto. A inferência, por sua vez, possui um caráter imprevisto e
particular, sendo um elemento novo relativamente aos inputs
(VARGAS, 2012a, p.85).
74
Original: “inference is defined as the cognitive process a reader goes through to obtain the implicit
meaning of a written text on the basis of two sources of information: the ‘propositional content of the
text’ (i.e. the information explicitly stated) and ‘prior knowledge’ of the reader. Alternatively, the term is
taken to mean the end product(s) of such a process” (CHIKALANGA, 1992, p.697).
189
É importante lembrar que a informação recebida não vem por meio de frases,
mas dos agrupamentos de saberes que denominamos de frames, uma vez que a mente
cria gestalts contextuais e não interpreta cada frase de forma isolada (DUQUE e
COSTA, 2012). A geração de inferências se dá, então, por meio da projeção
interdominial entre o conhecimento prévio e as informações visuais, que funcionam
como inputs, e assim, por meio da projeção seletiva, obtêm-se as inferências no espaço-
mescla. Essas inferências seriam, então, sempre base para a construção de novas
inferências que vão se desenvolvendo ao longo da leitura, uma vez que, como explicam
Fauconnier e Turner (2002, p.24), “a existência de uma boa mescla pode tornar possível
o desenvolvimento de uma mescla melhor. A estrutura conceptual contém muitos
produtos entrincheirados da integração conceptual anterior”75
.
Tal processo seria, então, a base da compreensão leitora, que se daria sempre
como fruto de inferenciações situadas, porque dependem, em um sentido amplo, do
contexto em que são realizadas, mas não podem ser previstas. Utilizando, então, o
esquema de integração conceptual representado a seguir, pode-se dizer que, no input I,
estariam as informações que o leitor seleciona de seu conhecimento prévio, organizado
em frames, e que se articulariam ao input II, das informações trazidas pelo texto e
igualmente selecionadas pelo leitor. Da projeção seletiva das informações contidas em
ambos os espaços, seriam construídas as inferências no espaço-mescla, que se forma
pela integração de ambos os espaços, com base em elementos que eles tenham em
comum. Como salientam Fauconnier e Turner (2002), nós podemos criar diferentes
mesclagens a partir dos mesmos inputs. Assim, o processo, ainda que seja o mesmo,
pode ter resultados diferentes, uma vez que os inputs não determinam a rede de
integração conceptual.
75 Original: “The existence of a good blend can make possible the development of a better blend.
Conceptual structure contains many entrenched products of previous conceptual integration”.
190
Figura 5 - Esquema de integração conceptual representando a inferenciação em leitura
Dessa forma, a inferência surge como a evidência mais representativa de que a
leitura é essencialmente integrativa, uma vez que, ao mesmo tempo em que é o
resultado de uma integração conceptual, ela representa o que retemos após a realização
de uma leitura. Assim, mais do que uma interação na qual leitor e texto contribuem para
a construção de significados através dos movimentos ascendente e descendente, o que
temos é uma verdadeira integração entre texto e leitor, sendo os resultados dessa
integração elementos completamente novos relativamente aos domínios que os formam
e únicos para cada leitor em cada momento de cada leitura que realiza.
Assim, é possível concordar com Vanin (2009, p.51), que, por outro caminho,
entende que a inferenciação (ou o “ato inferencial”, como o denomina) é “um processo
de construção de sentido através de um conjunto de relações decorrentes da interligação
do conteúdo de memórias enciclopédicas pertinentes para o momento comunicacional e
do contexto que circunda tal interação”. Para ela – como para a visão que aqui é
apresentada – “a significação só se torna possível devido à atividade inferencial, que é
desencadeada pelas interações do indivíduo com o mundo, através de um sistema de
encaixes de raciocínios de natureza linguística, social, cultural, e cognitiva” (VANIN,
2009, p.51).
Mais uma vez, essa visão integrativa nos permite associar-nos à ideia de
cognição inventiva (KASTRUP, 2005, 2012, 2015), posto que, como já salientara Vanin
191
(2009, p.56), “a formação de inferências nas trocas comunicativas leva à construção do
mundo e dos significados dos objetos que nele estão inseridos”, não havendo, portanto,
qualquer sentido anterior ao movimento de integração. Mesmo a informação visual, que
poderia ser entendida como dada antes da integração, nessa concepção, torna-se única,
uma vez que cada um de nós seleciona o que dela nos interessa selecionar ou o que
podemos selecionar em função de nossos conhecimentos prévios. Não só “as inferências
são subordinadas a contextos interpretativos específicos” (DUQUE, 2015a, p.68), como
a informação visual também o é.
Nesse sentido, não só a leitura integrativa comprova a natureza distribuída da
cognição humana, mas também as inferências – enquanto resultado dessa leitura –
também o fazem. As inferências, desse modo, só são construídas porque distribuímos
nossa cognição entre o que há em nossos conhecimentos prévios, o texto com o qual nos
integramos e a situação em que nos encontramos, que vai nos levar a definir objetivos
específicos para nossa leitura a usar elementos e pessoas nela presentes como parte
também desse processo de construção.
Como afirmam Fauconnier e Turner (2002), nós vivemos na mescla, uma vez
que nossa experiência deriva das integrações conceptuais que realizamos. Isso quer
dizer que as inferências que produzimos formam parte da nossa realidade. Entretanto,
ressaltam eles, há atividades altamente abstratas que realizamos e que dependem da
nossa capacidade de separar passo a passo as integrações realizadas. Os autores citam,
por exemplo, a matemática, e prosseguem:
Quão completamente nossa apreensão consciente é limitada à mescla
depende do tipo de atividade para qual a mesclagem serve. No caso da
sensação e da percepção, nossa experiência consciente vem
inteiramente da mistura - nós "vivemos na mistura", por assim dizer.
Em outras atividades, a apreensão consciente tem mais margem para
avançar e retroceder, para "viver na rede de integração completa”
(FAUCONNIER e TURNER, 2002, p.83, tradução minha)76.
É partindo, então, da ideia de que podemos refletir sobre parte das integrações
conceptuais que realizamos que desejo pensar o trabalho com o ensino de leitura na
escola. Entendendo que a escola é o espaço – socialmente construído – que deveria nos
levar a nos construirmos como sujeitos críticos, autônomos, reflexivos, acredito que,
76
Original: “How thoroughly our conscious apprehension is limited to the blend depends on the kind of
activity that blending serves. In the case of sensation and perception, our conscious experience comes
entirely from the blend - we "live in the blend", so to speak. In other activities, conscious apprehension
has more leeway to go back and forth, to "live in the full integration network” (FAUCONNIER e
TURNER, 2002, p.83).
192
nela, o ensino de leitura deva ir além do estímulo à produção de processos espontâneos
de construção de inferências.
Uma vez que as inferências que construímos em uma leitura se tornam parte da
nossa realidade, cabe à escola levar os alunos a pensarem sobre essa realidade
construída, não naturalizando sentidos e visões de mundo. A leitura crítica, dessa
maneira, partiria (mas não se restringiria a) de um trabalho realizado no plano
inferencial. É sobre isso que tratarei na próxima seção, para, nos capítulos seguintes,
verificar o que vem sendo feito da leitura nos livros didáticos de espanhol selecionados
para esta pesquisa.
4.4. A cognição distribuída e o plano inferencial de leitura: por um ensino de
leitura como processo integrativo
Como explicitado anteriormente, ao pensar o ensino de leitura na escola, parto
do fato de que o aprendizado envolve dois domínios de realidade distintos: o do
conhecimento da pessoa e o domínio contextual (GERHARDT, 2010). Dessa forma,
dentro de uma visão escolar de aprendizagem, existiria o espaço da realidade do aluno e
o espaço da realidade da escola, que se mesclariam para a formação de novos conceitos,
por parte de quem aprende, gerados na estrutura emergente fruto dessa integração. Do
mesmo modo, a leitura na Escola ocorre a partir da integração entre o espaço da
realidade do aluno e o espaço das informações trazidas pelo texto, com o aluno-leitor
construindo uma nova leitura, fruto dessa integração.
Nesse sentido, Gerhardt (2013), apresenta algumas contribuições que as ciências
cognitivas podem oferecer às ciências sociais na discussão sobre a escola –
contribuições essas que serão consideradas aqui basilares para a discussão proposta
sobre o ensino de leitura, entendendo-o como manifestação de uma relação maior da
escola com a aprendizagem:
[1] As ciências cognitivas atualmente podem oferecer o entendimento
de como a construção do significado em “coparticipação social”
(MOITA LOPES, 1996, p.88) se manifesta em termos dos processos
cognitivos realizados pelas pessoas (...), porque oferece uma
percepção fidedigna e aprimorada de como a pessoa lida com a
linguagem, não apenas interacional e socialmente, mas também
cognitivamente – articulando “o lado de dentro” com o “lado de fora”
e recusando as supostas dualidades mente-corpo e cognição-cultura
típicas das epistemologias tradicionais (GERHARDT, 2013, p.98,
grifos da autora).
193
[2] Os estudos em cognição e ensino de língua permitem realizar uma
associação entre o uso da linguagem e a construção mais geral da
cognição humana, detectando as evidências linguísticas do que
desencadeia as ações cognitivas, quais são os seus objetivos, e quais
tipos de problemas elas buscam resolver. Essa detecção pode subsidiar
a formulação de propostas didático-pedagógicas que, em vez de
definir a priori qual é a relação entre as pessoas e a linguagem,
busquem associar a cognição cotidiana dos alunos, mais próxima das
realidades vividas por eles fora da escola, às suas ações cognitivas
situadas dentro da sala de aula (GERHARDT, 2013, p.98).
[3] Os estudos em cognição, sobretudo aqueles relacionados ao caráter
processual da construção do significado, oferecem um arcabouço
teórico-descritivo capaz de nos auxiliar a compreender os
mecanismos, elementos e processos relacionados ao aprendizado, aqui
visto como integração conceptual que conta com a articulação entre as
bases de conhecimento existentes no “lado de dentro” e no “lado de
fora”, para que sejam criados novos conceitos, novas ideias.
Associando-se tais trabalhos aos estudos em cognição distribuída, é
possível definir parâmetros razoavelmente precisos acerca do que é
necessário proceder para que se possa instaurar em sala de aula um
ambiente de intersubjetividade que seja favorecedor do aprendizado,
mesmo com o engessamento que a forte institucionalização e a
normatização das relações escolares impõem sobre nossos
comportamentos (GERHARDT, 2013, p.99).
Acredito, assim, que o trabalho reflexivo sobre esse movimento de integração
entre o espaço cotidiano do aluno, de seus saberes e suas experiências, e o espaço da
escola, manifestado no texto lido e na atividade realizada, seja essencial. Não apenas o
aluno pode selecionar melhor as informações que busca em seu conhecimento prévio e
as informações novas recebidas em função de um objetivo específico, como também
pode refletir sobre possíveis direcionamentos presentes nos textos lidos para que ele
selecione determinadas informações e ignore outras.
Além disso, ao refletir sobre as inferências construídas, o aluno pode refletir
também sobre sua concepção de mundo, alterando-a, de maneira mais consciente, em
função da sua integração com novos saberes. É possível dizer, inclusive, que um
trabalho com o plano inferencial apresenta para os alunos uma concepção de
aprendizagem que foge do padrão reprodutivo do modelo de recognição e que, portanto,
auxilia na construção de aprendizes que estão sempre abertos – e atentos – à construção
de novos saberes e à consciência de que nenhum saber é fixo, uma vez que não existe
ninguém nem nada que esteja dado e acabado.
Desse modo, evitam-se dois problemas clássicos em relação à aprendizagem
escolar, descritos em Gerhardt (2013): o fato de a cognição cotidiana interferir
excessivamente na cognição escolar, ou seja, o aluno não conseguir aprender o que a
194
escola lhe ensina porque seus saberes prévios se sobrepõem aos novos saberes, e o fato
de a cognição escolar ser excessivamente institucionalizada, ou seja, de não haver,
dentro da escola, qualquer espaço de abertura para a entrada dos saberes prévios dos
alunos, o que, dentro dessa concepção, impede inclusive a articulação com os novos
saberes apresentados. Como apontam Gerhardt, Albuquerque e Silva (2009, p.89), a
sala de aula, geralmente, é posta como um cenário de desencontros e falta de diálogos:
a escola fala uma língua, o aluno, outra; a escola suscita dele
pensamentos alienígenas à sua vida, e ele, evidentemente, se mantém
no lugar de onde veio, e esse estado de coisas se repete sem que a
parte realmente responsável por uma mudança de olhar e de atitude
reconheça as suas responsabilidades. De forma que o aluno sai da
escola sem ter verdadeiramente em algum momento entrado nela.
Para isso, torna-se essencial, de antemão, um trabalho escolar que tome
verdadeiramente a leitura como um processo, e como um processo que se dá na mente
de forma distribuída, por meio da integração de dois domínios de experiência diferentes
e pela seleção de elementos desses domínios para a sua integração, em função de
objetivos anteriormente postos para a leitura e da articulação entre os frames que
organizam o conhecimento prévio do leitor e os frames que são apresentados no/pelo
texto lido.
Portanto, torna-se necessário entender que qualquer leitura depende tanto do
leitor quanto do texto, no sentido de que o texto não pode se distanciar demais dos
conhecimentos prévios do leitor, o que exige um trabalho de construção desses
conhecimentos anterior à leitura, nem o leitor pode abrir mão de engajar seus saberes
nesse processo. Além disso, ela é marcada por um contexto macro e microssocial,
envolvendo outras pessoas e o ambiente físico e institucional em que elas se encontram.
Nesse sentido, uma boa leitura é aquela que permite a construção de novos saberes: nem
o texto nem o leitor permanecem inalterados, sendo esses novos saberes o que o leitor
reterá após sua leitura. Metacognitivamente, cabe ainda ao leitor saber que está
realizando esse processo, regulando-o em função de seus objetivos.
Entendido o processo de leitura sob essa ótica, é possível pensar melhor em
como a Escola pode atuar no desenvolvimento metacognitivo do aluno-leitor em
interação não só com o texto escrito, mas também com o mundo que o rodeia, uma vez
que esse também é compreendido e interpretado por meio dos mesmos processos
cognitivos. As atividades de leitura, em qualquer disciplina, deveriam lançar mão dessas
noções, buscando ativar os conhecimentos prévios do aluno (ou construí-los, se
195
necessário) e permitir (e mais: validar e desenvolver) a integração desses conhecimentos
aos novos que o texto apresenta, trabalhando, essencialmente, o processo de construção
da leitura com base na integração entre esses dois inputs. Não faz sentido, assim, que a
escola busque do aluno, como vimos na primeira seção deste capítulo, apenas a
capacidade de reproduzir informações explicitamente postas nos textos, uma vez que
isso nega os processos cognitivos envolvidos na leitura e força o aluno a se comportar
de uma maneira artificial em relação à sua leitura.
Como vimos, essa é uma prática que representa uma política cognitiva contra a
qual precisamos lutar emergencialmente e o plano inferencial de leitura pode ser um
importante instrumento nessa luta. Nesse sentido, cabe salientar que estou denominando
de plano inferencial de leitura o plano das possibilidades de inferências realizadas
durante uma determinada leitura, a partir da proposta apresentada em Gerhardt e Vargas
(2010) de que um texto pode ser lido de várias formas diferentes, cada qual equivalente
à ativação de uma determinada organização no plano meta77.
Sobre isso, diversos trabalhos já apontaram que os leitores constroem inferências
espontaneamente enquanto leem e que o resultado de uma leitura, na verdade, são as
inferências geradas ao longo do processo e não as informações explicitamente postas
nos textos, como se costuma imaginar (DELL’ISOLA, 2001; FERREIRA E DIAS,
2004; FULGÊNCIO e LIBERATO, 1996; 2003; KATO, 1990; KLEIMAN, 2001; 2010,
MARCUSCHI, 2002, 2003). Por outro lado, outros tantos trabalhos mostram que, na
escola, ainda se ignoram os diferentes processos de construção possíveis para cada
leitor, buscando essencialmente a reprodução de informações explicitamente
apresentadas ou recorrendo a questões que não exigem a leitura dos textos para serem
respondidas (DELL’ISOLA, 1997; FERREIRA, 2012; GERHARDT e VARGAS, 2010;
MARCUSCHI, 1996; 2003; ROJO e BATISTA, 2003; ROJO, 2003; VARGAS, 2011,
2012a, 2012b, 2013; VARGAS et al., 2011). Além disso, há trabalhos que mostram que
diferentes inferências, quantitativamente e qualitativamente, são produzidas em função
de objetivos diferentes postos para a leitura (GERBER e TOMITCH, 2008; ROSCIOLI
e TOMITCH, 2014; ROSCIOLI, TOMITCH e FARIAS, 2015).
77
Nesse texto, entre outros planos ainda não estabelecidos, citamos algumas possibilidades de planos: a) o
das estruturas esquemáticas dos saberes estáveis que subjazem à construção do significado; b) o da
estrutura de evento para narrativas; c) o da organização referencial; d) o da organização sequencial; e) o
da organização do parágrafo; f) o da organização inferencial; g) o da estrutura de argumentação; h) o da
compreensão metalinguística e i) o da compreensão metacognitiva (GERHARDT e VARGAS, 2010).
196
Quando se trata da inferência, costuma-se observá-la como uma simples
estratégia de leitura utilizada para, teoricamente, preencher as lacunas deixadas em um
texto. Como explica Dell’isolla (2001), nesse tipo de abordagem, o nível básico do texto
(o que mais adiante chamarei de linear ou literal) pode apresentar proposições que não
se inter-relacionam. As inferências, então, atuariam preenchendo os espaços deixados
entre essas proposições. A construção de inferências seria, assim, um procedimento nem
sempre utilizado, ocorrendo apenas quando o texto o exigisse. Sob essa visão, o leitor
geraria inferências apenas para entender o que está escrito quando as informações do
texto lido não fossem suficientes. Acredita-se, assim, que, de alguma forma, seria
possível entender o texto tal e como ele se nos apresenta, e a inferência seria o resultado
de um processo predominantemente ascendente (bottom-up), o que reforça uma visão de
cognição – e de aprendizagem – como reprodução, dentro de uma política de
recognição.
De forma a superar essa visão, acredito que as atividades escolares de leitura
deveriam, no que se refere ao plano inferencial, trabalhar em dois planos:
(a) num primeiro plano, deveriam trabalhar efetivamente com o
desenvolvimento de tarefas que levassem os alunos a reconhecerem as inferências por
eles construídas e a pensarem sobre as inferências como um processo que envolve a
integração de duas fontes de informação. Isso envolveria um trabalho de ativação e, se
necessário, de construção de conhecimento prévio e um trabalho com questões que
abordem diferentes níveis de leitura, orientando o aluno em sua reflexão sobre as
inferências construídas e sobre os elementos selecionados e articulados para essa
construção; e
(b) num segundo plano – meta –, em paralelo ao anterior, no desenvolvimento de
habilidades metacognitivas sobre os processos que os leitores desenvolvem ao
aprenderem a ler, em função de objetivos previamente definidos e de hipóteses
construídas ao longo de uma leitura. Dessa forma, pensando no plano inferencial, seria
papel da escola levar os alunos a proporem objetivos para suas próprias leituras –
pensando-os como invenção de problemas – e a pensarem estratégias de leitura em
função desses problemas, sendo as inferências, assim, construídas em função dos
objetivos propostos. Além disso, seria fundamental a compreensão de como as
inferências atuam na formulação e flexibilização de hipóteses de leitura de forma que a
197
leitura seja efetivamente vista como processualidade e que o aluno possa pensar sobre
ela enquanto lê.
Assim, questões de leitura que se propusessem de fato a ensinar o aluno a ler
melhor deveriam atuar levando-o a ativar seus conhecimentos prévios e permitindo que
os integre de uma melhor maneira às informações novas que o texto apresenta. Para que
isso aconteça, é necessário que os professores que se dedicam ao ensino de leitura, em
aulas de línguas ou de outras disciplinas, conheçam como se dá o processo da leitura,
para que possam atuar reflexivamente em sala de aula, interferindo nele quando
necessário, e criando parâmetros para a avaliação e análise dos textos a serem
utilizados, bem como do trabalho a ser desenvolvido com eles:
...acreditamos que o desvendamento do processo torna possível o
planejamento de medidas de ensino adequadas, de base informada,
bem fundamentadas. (...) Refletir sobre o conhecimento e controlar os
nossos processos cognitivos são passos certos no caminho que leva à
formação de um leitor que percebe relações, e que forma relações com
um contexto maior, que descobre e infere informações e significados
mediante estratégias cada vez mais flexíveis e originais (KLEIMAN,
2010, p.9).
Igualmente, para que a citação de Kleiman (2010) possa ser efetivamente
realizada, o aluno deve conhecer os objetivos da tarefa que busca desenvolver, do que
está buscando alcançar, das habilidades que precisa ativar e das estratégias de que se
pode utilizar para alcançá-lo. No que se refere à leitura, por exemplo, o estabelecimento
de objetivos “refere-se à intervenção do leitor na seleção prévia de quais significados
deverão ser capturados na interação com o texto, a partir de uma definição específica do
que se quer reconhecer nele” (GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015, p.182).
Dessa maneira, nosso foco de atuação deve estar no desenvolvimento de suas
habilidades metacognitivas, ou seja, em sua conscientização sobre seus próprios
processos cognitivos. Nesse sentido, cabe lembrar que, como nos ensinou Kleiman
(1992), as habilidades cognitivas não podem ser ensinadas, apenas exercitadas, mas as
estratégias de leitura (ou seja, as habilidades metacognitivas) sim podem ser ensinadas
de forma consciente. A metacognição é entendida aqui, então, como a nossa capacidade
de pensar e refletir sobre nossa cognição, monitorando-a, regulando-a e reformulando-a
quando necessário. Mais especificamente, podemos dizer que a metacognição diz
respeito à autorregulação da própria cognição, de forma que possamos administrar
nossos próprios processos cognitivos, em função de um determinado objetivo, através
198
de atividades de monitoramento e controle (NELSON e NARENS, 1996; SCHWARTZ
e PERFECT, 2002; TARRICONE, 2011).
Na leitura, podemos atuar metacognitivamente por meio da habilidade em
elaborar objetivos e hipóteses flexíveis acerca dos significados que o texto traz. Assim,
podemos dizer que o monitoramento e o controle são processos que atuam
articuladamente na construção de duas dimensões para a metacognição em atividades de
leitura: a autoavaliação, a partir da formulação de hipóteses, e o controle da ação
cognitiva em função de um resultado desejado, a partir da postulação de objetivos e de
estratégias para resolver os problemas (BOTELHO, 2011; 2015; GRIFFITH e RUAN,
2008; RANDI, GRIGORENKO e STERNBERG, 2008). Pensando em uma abordagem
que busque a construção de políticas inventivas em sala de aula, acredito que os estudos
em metacognição podem nos auxiliar na fundação de um olhar que parta de problemas
efetivamente inventados em sala de aula – que se transformam, no caso da leitura, em
objetivos de leitura – para construir uma prática de leitura que abra espaço para a
criação.
Nesse sentido, cabe observar que mesmo ao trabalharmos com o primeiro plano,
anteriormente citado, estamos também, como professores, trabalhando com habilidades
metacognitivas, uma vez que a busca é por levar os alunos a refletirem sempre sobre as
inferências por eles construídas ou sobre as inferências que poderiam construir para
desenvolver uma melhor leitura dos textos com que se integram. Nesse sentido, se um
leitor reconhece que uma determinada inferência se derivou da integração de uma
determinada informação presente em um texto e uma informação existente em seu
conhecimento prévio, já há nesse reconhecimento o desenvolvimento de uma reflexão
metacognitiva sobre esse processo. Assim, a ideia é que, com o tempo, essa reflexão
seja incorporada ao processo espontâneo de leitura do aluno, tendo ele se construído,
com o apoio das atividades escolares, como um leitor maduro, autônomo – e crítico em
relação ao que lê e, igualmente, à leitura que constrói.
Essa perspectiva se aproxima do que Kastrup (2005) propõe como perspectiva
para o aprendizado. Segundo a autora,
A novidade e a surpresa configuram uma das faces da dupla
temporalidade da aprendizagem. A segunda face de sua temporalidade
é a sedimentação e o enraizamento. A sedimentação do aprendizado
ocorre por intermédio da repetição e do ritmo de um treino que se dá
por meio de um conjunto de sessões consecutivas e regulares. O
sentido do treino é criar um campo estável de sedimentação e
acolhimento de experiências afectivas inesperadas, que fogem ao
199
controle do eu. A regularidade das sessões tem como efeito a criação
de uma familiaridade com as experiências de breakdown e, enfim, o
desenvolvimento de uma atitude cognitiva e atencional ao plano das
forças. O processo começa com esforço, por intermédio de uma
atitude consciente e intencional, mas que se torna, com a prática,
espontânea e inintencional” (KASTRUP, 2005, p.1279).
É interessante observar que, ao repensar o papel da linguística aplicada para os
novos tempos que vivemos, Rajagopalan (2006, p.160) aponta os estudos sobre a
metacognição como um dos “bons ventos” que “começaram a soprar, ajudando a
dissipar certo marasmo que se instalou no campo”, vindo para contribuir para o
questionamento da tese de que “a prática só teria êxito se obedecesse aos ditames da
teoria”. Entretanto, para que isso possa se concretizar em sala de aula, professores e
especialistas em leitura podem e devem, como afirmam Applegate et al. (2002), atuar
como catalizadores para uma mudança no ensino.
Para que possam exercer esse papel, precisam os professores, anteriormente,
compreenderem como se constrói uma leitura integrativa e se tornarem capazes de
acessar a habilidade de seus alunos em pensar sobre e responder ao texto – o que
também é um aprendizado que exige sedimentação, no termo proposto por Kastrup
(2005). Caso contrário, eles acabam por perder, como apontei em Vargas (2012a), uma
de suas mais poderosas ferramentas para estimular a consciência nos estudantes, e em si
mesmos, de que ler é um processo ativo de construção de significados (e não de
reprodução!) para o qual concorrem, entre outros fatores, tanto a voz de quem escreve
como a voz de quem lê, em igual proporção.
O caminho para esta mudança tem sido oferecido fartamente pelas
ciências da cognição: a partir da pressuposição de que a relação entre
professor e aluno, fortemente marcada pela institucionalização, é
assimétrica por natureza, o olhar inicial de atenção para o lugar do
outro precisa ser construído pela escola; cabe a ela dar-se conta de que
em sala de aula existe uma pessoa que, embora esteja por lá
fisicamente, precisa de estímulo e atenção para integrar o universo de
saberes e experiências que a escola tem a oferecer; cabe a ela
compreender que a aquisição de novas informações por parte do aluno
só acontecerá se ele conseguir encontrar ligações entre o que lhe é
conhecido e o que está para ser aprendido. O novo, pelo novo, de nada
vale (GERHARDT, ALBUQUERQUE e SILVA, 2009, p.89).
Assim, novamente, é possível voltar à ideia de cognição inventiva, uma vez que,
dentro dessa visão, segundo Kastrup (2005, p.1287), “ensinar é, em grande parte,
compartilhar experiências de problematização”. Desse modo, o ato de ensinar precisa
200
estar sempre aberto a potencializar as possibilidades de invenção de novas
subjetividades e de novos mundos.
Por isso considero que, no domínio da formação, é preciso encontrar
estratégias de constante desmanchamento da tendência a ocupar o
lugar do professor que transmite um saber. Penso que não se trata de
determinismo nem de livre arbítrio; nem de submissão a um modelo
existente, nem de boa vontade. O caminho é de um aprendizado
permanente. Trata-se de um processo lento, marcado por idas e
vindas, mas só ele possibilita a criação de uma política cognitiva da
invenção (KASTRUP, 2005, p.1287).
Além disso, uma vez que a perspectiva assumida aqui é a de que a cognição é
distribuída, a saída do professor do lugar de alguém que transmite um saber também
abre espaço para que os alunos, entre si, se engajem em processos coletivos de
construção de significados. Assim, entendo que a leitura no plano inferencial pode ser a
comprovação de que a leitura é distribuída entre texto e leitor, mas é também – e, talvez,
até de maneira mais importante, distribuída entre leitores. Como apontam Zhang e Patel
(2006), existem dois tipos de cognição distribuída: entre uma mente e um artefato
externo e entre mentes individuais, e que:
Um grupo de mentes pode ser melhor que um (ganho de processo)
porque, em um grupo, há muito mais recursos, carga de tarefa e carga
de memória, que são compartilhados e distribuídos, os erros são
verificados, e assim por diante. O desempenho de um grupo também
pode ser pior do que o de um indivíduo (perda de processo), porque
em um grupo de comunicação leva tempo, o conhecimento pode não
ser compartilhado e diferentes estratégias podem ser utilizadas por
diferentes indivíduos (ZANGH e PATEL, 2006, p. 140).78
Sem o professor ocupar exclusivamente esse lugar de saber, a busca pela resposta
correta às questões postas por ele dá lugar a uma busca individual e coletiva de
construção efetiva de significados em sala de aula. Entretanto, como é possível notar
pela citação acima, isso precisa ser ensinado e desenvolvido em sala de aula, de forma a
que a perspectiva de um pensar em grupos (GURECKIS e GOLDSTONE, 2008) não
mais atrapalhe do que ajude. Pensar a cognição de forma distribuída em sala de aula,
seja distribuída entre um aluno e o material com que se integra, seja entre alunos e entre
alunos e professores, exige necessariamente um novo fazer, a criação de práticas que
78
Original: “A group of minds can be better than one (process gain) because in a group there are much
more resources, task load and memory load are shared and distributed, errors are cross-checked, and so
on. The performance of a group can also be worse than that of an individual (process loss) because in a
group communication takes time, knowledge may not be shared and different strategies may be used by
different individuals” (ZANGH e PATEL, 2006, p. 140).
201
retirem do centro políticas de recognição e ocupem esse espaço com políticas de
invenção.
Acredito que a possibilidade de trabalharmos com uma perspectiva que integre
esses pressupostos a uma didática de leitura focada no desenvolvimento de habilidades
metacognitivas nos auxilia como aporte metodológico para o ensino de leitura em
situação escolar, atendendo à necessidade destacada por Davis, Nunes e Nunes (2005)
de construir, em sala de aula, uma cultura do pensar. Como ressalta Rajagopalan (2006,
p.162),
a prática pedagógica dentro da sala de aula não pode ser considerada
como mero apêndice da reflexão teórica feita sobre a aquisição da
língua (...). as práticas pedagógicas devem se basear nas aspirações e
motivos dos aprendizes e não, como foi a prática durante um bom
tempo (isto é, o tempo em que a teoria ditava as regras do jogo) nas
tomadas de decisões com base em elucubrações teóricas, feitas longe
dos aprendizes e de suas crenças.
Como caminhos metodológicos para isso, me baseio aqui na integração de
atividades que trabalhem com os diferentes níveis inferenciais em que uma leitura pode
ocorrer (APPLEGATE et al., 2002) e o modelo de ações metacognitivas de Nelson e
Narens (1996), segundo os quais, devem compor-se de três etapas: aquisição, retenção e
recuperação, que, em relação à leitura, se transformam nas etapas de pré-leitura, leitura
e pós-leitura, respectivamente. Dessa forma, acredito ser possível pensar em uma prática
– mais do que em um modelo – de ensino de leitura que abra perspectivas para a
inclusão dos saberes e experiências dos alunos e para sua inclusão com o texto lido,
considerando o ato de ler como sendo efetivamente um processo, que, por sua vez,
exige reflexão para não se dar de maneira passiva.
Partindo, então, desses pressupostos, é possível encontrar em Applegate et al.
(2002) um protocolo de leitura que nos permite pensar em questões de leitura que levem
em conta essencialmente o processo inferencial do leitor. Segundo os autores, boas
atividades de leitura deveriam fazer com que o leitor pensasse sobre o que lê79
e usasse
as informações do próprio texto para explicar seus pensamentos. Em outras palavras,
pode-se dizer que os autores colocam o processo inferencial como central para a
elaboração de questões de leitura que levem o aluno a se tornar agente de sua própria
leitura. Com base nisso, os autores criaram um protocolo de classificação de questões de
79
Aqui, podemos acrescentar que, além de fazer com que o leitor pense sobre o que lê, essas questões
deveriam também reconhecer e validar os pensamentos já desenvolvidos pelo aluno-leitor durante sua
leitura, ou seja, antes mesmo da realização das questões.
202
leitura e definiram quatro níveis de questões de compreensão leitora, levando em conta
o que estamos chamando de plano inferencial:
(a) questões de nível literal: exigem que o leitor apenas selecione informações
declaradas explicitamente no texto;
(b) questões de baixo nível inferencial: requerem respostas não citadas
verbalmente no texto, mas que podem estar próximas do literal; exigem que o leitor
identifique relações entre ideias do texto não explicitadas gramaticalmente; importam-se
com detalhes irrelevantes para a mensagem central ou requerem que o leitor especule
sobre informações do texto sem apoiar-se nelas;
(c) questões de alto nível inferencial: incitam o leitor a articular suas
experiências e o texto; requerem pensamentos mais complexos do que as questões de
baixo nível inferencial; exigem soluções alternativas para um problema específico
descrito no texto; solicitam a descrição de motivações que poderiam explicar atitudes
apresentadas nos textos; buscam explicações para uma situação, um problema ou uma
ação apresentado no texto; buscam explicitar predições baseadas nas informações do
texto; ou descrições de personagens ou ações baseando-se em eventos do texto; e
(d) questões inferenciais globais80: enquanto questões de alto nível se dirigem a
elementos específicos ou problemas em passagens do texto, as inferenciais globais
requerem um leitor que discuta e reaja ao significado do texto como um todo; buscam
descrever a lição que um personagem pode ter aprendido, julgar a eficácia de uma ação
ou decisão e defender um julgamento ou uma solução alternativa para um problema
complexo descrito no texto; solicitam ao aluno responder positivamente ou
negativamente ao texto, baseando-se em julgamentos lógicos sobre ele.
Em relação ao modelo proposto por Nelson e Narens (1996), Gerhardt, Botelho e
Amantes (2015, p.190-191) propõem a seguinte adaptação para atividades de leitura:
(i) As tarefas do estágio de aquisição incluem o recrutamento de dados
do objeto de estudo para a checagem das estratégias utilizadas – no
caso, o enquadramento, na memória rasa, de conhecimentos prévios
que são importantes para uma boa leitura do texto.
(ii) No estágio de retenção, administra-se a coleta e a manutenção do
aprendizado do objeto de estudo, em relação aos conhecimentos
prévios levantados e aos objetivos de leitura.
(iii) O estágio final de recuperação contém atividades de fixação e
verificação da aprendizagem e de checagem do alcance dos objetivos
80 Em inglês, Applegate et al. (2002) denominam essa categoria como “response items”. Em português,
temos usado, no âmbito do COGENS, esse termo juntamente a outros autores que também usam a mesma
categorização dos autores.
203
de leitura. Nesse estágio, é possível refletir sobre a relação entre os
dados recrutados e os conhecimentos prévios dos alunos, em vias de
validar as informações capturadas durante a leitura.
Assim, dentro da proposta aqui levantada, em atividades escolares de leitura que
considerem o plano inferencial como relevante e que pensem nos alunos como sujeitos
de sua aprendizagem, torna-se fundamental que:
a) sejam elaboradas questões de pré-leitura, que solicitem a ativação de
conhecimentos prévios do leitor ou o auxiliem na construção de
conhecimentos necessários para o desenvolvimento de sua leitura e que
contribuam – ou ofereçam provisoriamente – para o estabelecimento de
objetivos de leitura;
b) questões de leitura, que possam auxiliar o aluno em seu processo de
integração com o que lê, através de questões que priorizem os níveis mais
inferenciais de leitura, usando o nível literal apenas como suporte para a
construção de inferências; e
c) questões de pós-leitura, que busquem o desenvolvimento de reflexões a
partir da articulação entre o que o leitor sabia antes e o que ele aprendeu ao
longo de sua leitura.
Em meio a tudo isso, cabe também a essas tarefas o auxílio no desenvolvimento,
por parte do aluno, da percepção de que toda inferência construída durante a leitura
representa uma hipótese provisoriamente levantada e que, por isso, é preciso a
verificação e a reformulação constante, pela integração e não pela reprodução, dos
sentidos construídos ao longo da leitura.
Nesse sentido, não se pode esquecer que, dentro de uma prática que fomente
políticas cognitivas de invenção, tudo isso deve estar a serviço da construção de alunos
(e professores) inventivos e não reprodutores, mesmo que a reprodução fosse desse
modelo de leitura. Como salienta Kastrup (2015, p.105):
A repetição serve para corporificar o conhecimento, para eliminar a
análise, a representação. A aprendizagem, em sentido deleuziano, não
é analítica nem reflexiva. Se ela passa pela reflexão, não se esgota aí.
Ela envolve intimidade, contato direto, corporal com a matéria – é
disto que o conceito de agenciamento maquínico fala. Repetir não é
criar automatismos, condutas mecânicas. A repetição que está
envolvida na arte-aprendizagem é como a do músico que ensaia
duramente até poder viajar na melodia ou a de um ator que ensaia até
incorporar o espírito do personagem, até cavar uma profunda
intimidade com ele, até encarná-lo, corporificá-lo e com isso espantar
a mediação da representação.
204
Dessa forma, o objetivo não é levar o aluno ao treinamento maçante de técnicas
e estratégias de leitura, respondendo sempre questões que sigam um mesmo modelo até
que ele esteja suficientemente treinado a respondê-las. Se assim o fizermos, não estamos
alterando a relação desses alunos com a aprendizagem. A ideia é que, através de tarefas
diversas de leitura, eles sejam levados a construírem essa relação com os textos que
leem. Essa relação exige o reconhecimento de sua agentividade e da importância de seus
conhecimentos prévios para a construção de novos saberes. Exige também a
desconfiança em relação ao que se lê e mesmo aos sentidos que se constroem, posto que
não devem ser fixos, prontos, acabados. E acima de tudo, uma relação que reflita o lugar
de autor da leitura; não uma autoria vazia, de quem não pensa sobre o que diz, mas uma
autoria que parte da leitura, de fato, da informação recebida e da construção de uma
análise crítica dessa informação, baseada nos movimentos de integração. Assim, a
escola – em especial, a pública – pode efetivamente contribuir para o desenvolvimento
de leitores que pensem criticamente sobre sua realidade, sobre o que leem, o que veem,
o que ouvem, o que sentem em um mundo que, na maior parte do tempo, lhes traz
sofrimento e segregação.
205
CAPÍTULO 5: METODOLOGIA E CORPORA
Neste capítulo, apresento, então, a metodologia com que esta tese foi construída
e os corpora selecionados para a construção da análise, que será apresentada nos
capítulos seguintes. Aqui, é importante, destacar que estou desenvolvendo a análise de
alguns corpora que se integram na prática de ensino desenvolvida em sala de aula. A
separação entre eles se dá de maneira a que possamos entender como eles constroem
uma cadeia de discursos que se manifestam nessas práticas e que, consequentemente,
contribuem para a construção de políticas cognitivas no espaço da sala de aula.
5.1. O caminho metodológico: escolhas e não escolhas
Antes de tudo, é importante assinalar que, dentro do caminho teórico
anteriormente apresentado, nesta tese, é preciso entender, como nos lembra Dias (2012,
p.30), que toda pesquisa traz consigo uma “ideia de intervenção na relação
sujeito/objeto pesquisado, pois ambos se constroem na trajetória” (DIAS, 2012, p.30) e
que, “uma vez que é na relação das políticas de pesquisa que se configura a condição do
próprio conhecimento, não há neutralidade nem objetividade a serem perseguidas”
(DIAS, 2012, p.30). Assim, mais do que apresentar uma metodologia de pesquisa, nesta
seção, eu apresento o caminho metodológico que me levou à construção desta tese,
consciente de que esse caminho poderia ter sido diferente se outro o tivesse percorrido,
já que ele foi construído através de escolhas e, consequentemente, não escolhas, que
foram também feitas a partir da minha relação com meu objeto de pesquisa e de minha
trajetória de pesquisa e tudo que a envolve.
Como apontado na introdução, inicialmente, esta tese seria derivada de uma
pesquisa-ação desenvolvida com alunos do 6º ano do ensino fundamental em uma
escola pública no município de Niterói. Com o campo que me permitiria desenvolver a
pesquisa perdido, decidi voltar meus olhos mais detidamente para os livros didáticos de
língua espanhola produzidos para essa etapa da escolaridade e para sua história recente
no Brasil. Escolhi o 6º ano do Ensino Fundamental por ser essa a série em que, por lei, é
o primeiro momento em que há a obrigatoriedade do ensino de uma língua estrangeira:
“§5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da
quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha
206
ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição” (LDB –
BRASIL, 1996)81
.
Dessa maneira, entendo que, sendo essa a série em que o contato com a leitura
em espanhol se inicia até então para muitos alunos, nela eles constroem uma primeira
percepção/conceptualização do que é a leitura em língua estrangeira e de como ela se
constrói. Além disso, como a própria LDB aponta, ao final do Ensino Fundamental, o
aluno já deveria ter se formado como um leitor maduro. É interessante observar,
inclusive, que a lei coloca a leitura e seu “pleno domínio” como essencial para o
desenvolvimento, nos alunos, de suas capacidades de aprendizagem:
O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos,
gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá
por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: (Redação dada
pela Lei nº 11.274, de 2006)
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios
básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,
da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a
sociedade;
III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em
vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de
atitudes e valores;
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de
solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a
vida social (BRASIL, 1996, s/p.)
Assim, uma vez que é papel do ensino de línguas estrangeiras se unir ao ensino
de língua materna nessa tarefa (BRASIL, 1998), torna-se fundamental observar como a
leitura é tratada desde o momento em que ela é apresentada inicialmente, em língua
estrangeira, aos alunos. Acredito, inclusive, que, uma vez que toda prática de ensino traz
consigo políticas cognitivas, nesse processo também se apresente aos alunos o que é
aprender uma língua estrangeira.
Além de observar as atividades apresentadas nos livros, observei também como
os alunos interagem com ela. Para isso, apliquei, em uma turma do sexto ano de uma
escola municipal de Niterói-RJ, uma atividade de cada um dos livros selecionados.
Dessa maneira, esta etapa da pesquisa se dividiu com base em dois focos: por um lado,
81
Como visto no capítulo 3, no momento em que esta tese foi iniciada, essa língua era de escolha da
comunidade escolar e o espanhol vinha ocupando, cada vez mais, esse lugar, como língua única ou
dividindo o espaço com o inglês: Entretanto, com a chamada Reforma do Ensino Médio, a lei foi alterada
e o inglês passou a ser a língua obrigatória, o que poderá alterar profundamente o panorama apresentado
nesta tese.
207
em como o livro didático se apresenta aos alunos e, por outro, na forma como os alunos
interagem com ele em sala de aula, ou seja, em como ele é concebido (com base nas
políticas cognitivas que o definem ou que neles se manifestam) e em como ele é
recebido (como de fato o aluno aprende com ele).
Não foi objetivo desta análise desenvolver profundamente reflexões sobre novos
usos para os materiais didáticos em sala de aula. Acredito, porém, que aqui se abrem
portas para que elas sejam feitas posteriormente. Adiante, analisarei apenas como os
livros didáticos selecionados para a construção desta tese apresentam o ensino de leitura
aos alunos, através da análise das atividades por eles propostas. Assim, em um primeiro
momento, analiso o lugar do texto na organização das unidades dos livros e,
posteriormente, analiso especificamente as atividades de leitura apresentadas. Essa
análise das atividades se dá a partir de: a) sua contagem e de sua classificação em
função dos níveis de leitura exigidos e, b) da seleção de uma delas por livro para
exemplificar e ampliar a discussão trazida.
Como apontado na apresentação, ainda como docente da educação básica,
apliquei uma atividade de cada livro em turmas do 6º ano de uma escola pública.
Adiante, analisarei também como os alunos responderam a uma atividade de leitura de
quatro dos livros didáticos selecionados para a pesquisa.
5.2. Os corpora
Começo, no próximo capítulo, minha análise com o que estou denominando aqui
de “objetos reguladores”, entendendo que esses objetos constroem uma trajetória de
regulação: documentos oficiais regulam, de alguma maneira, a produção dos livros
didáticos, que, por sua vez, regulam as práticas desenvolvidas em sala de aula. Dentre o
conjunto de objetos reguladores que se possam apontar, escolhi os que considerei mais
relevantes nessa trajetória de regulação:
a) os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira para os terceiro e
quarto ciclos do Ensino Fundamental;
b) os editais do Programa Nacional do Livro Didático; e
c) os Manuais do Professor dos livros selecionados para pesquisa.
Acredito que a inserção dos manuais nessa parte dos corpora da pesquisa se faz
necessária porque são eles que vão apontar (mesmo que o professor não os leia ou crie
práticas diferentes em sala) as visões com que esse material foi construído. Nesse
208
sentido, é possível, inclusive, perceber discrepâncias entre o que se apresenta no
discurso sobre o ensino de leitura e no que se apresenta na prática fomentada pelas
atividades.
Além desses objetos, meus corpora, como já dito, são formados também pelos
livros didáticos selecionados para a pesquisa, com o objetivo de medir sua capacidade
em valorizar as habilidades cognitivas e desenvolver as habilidades metacognitivas de
leitura dos alunos que se colocam em interação com eles, especificamente no que diz
respeito ao trabalho com o plano inferencial. Além disso, é objetivo desta tese também
observar as respostas dadas pelos alunos a atividades de leitura desses livros, com o
objetivo de entender como os alunos interagem efetivamente com as atividades postas
nos livros, em especial, no que diz respeito aos processos inferenciais desenvolvidos.
5.2.1. A escolha dos livros didáticos
Para o desenvolvimento deste trabalho, optei por analisar sete livros didáticos de
espanhol, como já dito, do 6º ano do ensino fundamental, produzidos entre 2004 e 2012,
em suas versões “manual do professor”. A opção por recortar esse intervalo de tempo se
deve a minha busca por tentar perceber, em uma perspectiva de curto tempo, em que
medida novas (ou velhas) práticas passaram a circular e a modelar o ensino de leitura
em espanhol como língua estrangeira ao longo dos últimos anos.
Desse modo, paralelamente à análise dos próprios livros, busco identificar
também em que medida a inclusão da disciplina Línguas Estrangeiras no Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) pode ter contribuído para uma mudança dessas
práticas ou de discursos sobre essas práticas. Assim, é possível avaliar também em que
medida as políticas públicas estão contribuindo para que a leitura integrativa se faça
presente no trabalho desenvolvido em sala de aula. Em outras palavras, como as
políticas públicas contribuem para a construção de políticas cognitivas na escola.
A entrada das línguas estrangeiras modernas (inglês e espanhol) no programa só
se deu a partir do PNLD 2011, cujas atividades de avaliação das obras inscritas
aconteceram entre os anos de 2009 e 2010. Assim, tomando a inserção das línguas
estrangeiras no programa como um fato relevante nas políticas públicas sobre o ensino
de línguas estrangeiras na escola brasileira, foram selecionados, para o desenvolvimento
desta tese os seguintes livros:
209
(a) ¡Arriba! (RINALDI e CALLEGARI, 2004) e (b) Projeto Radix – Espanhol
(GARCÍA e HERNÁNDEZ, 2005), que compõem o nosso corpus anterior à inclusão da
disciplina Língua Espanhola no PNLD, podendo servir como parâmetros para a análise
dos efeitos dessa inclusão no desenvolvimento das atividades de leitura.
(c) ¡Entérate! (BRUNO, TONI e ARRUDA, 2009) e (d) Saludos (MARTIN,
2010), que são os dois únicos livros aprovados na primeira edição do PNLD (em 2011).
A minha hipótese é a de que os efeitos de um primeiro processo de avaliação ainda não
pudessem ser tão visíveis nesse momento, levando-se em conta o fato de que,
possivelmente, as obras aprovadas nesse edital ainda não teriam sido moldadas para sua
aprovação. Como afirmou González (2010, p.49):
Em que pese todo o detalhamento do Edital PNLD 2011, e sua relação
clara com os documentos anteriores nos quais esse caráter educativo
do ensino de língua estrangeira na Educação Básica vem sendo
reiteradamente valorizado, o primeiro processo avaliativo do livro
didático (...) foi ainda bastante decepcionante. (...) Acreditamos e
esperamos que, superada esta etapa, superem-se também as graves
deficiências encontradas e possamos contar com materiais melhor
elaborados e que sejam mais adequados ao tipo de ensino de língua
estrangeira que queremos garantir aos alunos de escolas públicas.
(e) Ventana al español (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011), produzido após o
primeiro processo de avaliação, mas não incluído nos dois primeiros editais. Não se
pode afirmar que esse livro tenha sido reprovado no processo de avaliação do PNLD,
uma vez que a lista de coleções reprovadas não é divulgada pelo MEC. Este livro foi
escolhido também, porque fora usado, mesmo sem estar na lista do PNLD, na rede
municipal de Niterói, onde a pesquisa-ação seria desenvolvida82
.
E, por fim, (f) Cercanía (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012); e (g)
Formación en Español: Lengua y cultura (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2013),
que são também os dois únicos livros aprovados no segundo processo de avaliação – o
PNLD 2014, já tendo sido produzidos com base na avaliação que é feita pelo programa
e, provavelmente, com base nos resultados da primeira edição.
Esses livros foram analisados segundo os critérios apontados anteriormente e
essa análise será apresentada nos próximos capítulos. Ao final do capítulo 6, incluo uma
82
Em “treinamento” para o uso do livro feito por uma representante da editora com os professores da
rede, foi informado que o livro seria submetido à edição seguinte do PNLD e que ele não havia sido
finalizado a tempo de entrar na edição anterior. Entretanto, ainda assim, não é possível afirmar que ele foi
efetivamente submetido ao edital seguinte.
210
análise das políticas cognitivas que emergem dos manuais do professor desses livros,
entendendo que eles atuam nessa “cadeia de regulação” do que se faz em sala de aula e,
no capítulo 7, apresento a análise das atividades em função dos critérios anteriormente
apresentados.
Esses livros foram analisados, inicialmente, de forma individual, ou seja, em que
medida cada livro trabalha com a leitura e a apresenta aos alunos. Posteriormente, foi
feita uma análise comparativa entre os livros, observando-se a ordem cronológica de sua
produção. Essa análise foi feita de forma qualitativa, mas, para seu desenvolvimento,
foram utilizados alguns dados quantitativos baseados, principalmente, na classificação
de questões de leitura posta por Applegate et al. (2002).
De forma a facilitar a leitura dos dados a serem apresentados nos próximos
capítulos, a seguir apresento como esses livros serão dominados daqui em diante, ao
longo desta tese:
Tabela 1 - Referência resumitiva dos livros selecionados para a pesquisa
Nº de
Referência Livro
Como será
referido na tese
1 ¡Arriba! (RINALDI e CALLEGARI, 2004) “Arriba”
2 Projeto Radix – Espanhol (GARCÍA e HERNÁNDEZ,
2005) “Radix”
3 ¡Entérate! (BRUNO, TONI e ARRUDA, 2009) “Entérate”
4 Saludos (MARTIN, 2010) “Saludos”
5 Ventana al español (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011) “Ventana”
6 Cercanía (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012) “Cercanía”
7 Formación en Español: Lengua y cultura (VILLALBA,
GABORDO e MATA, 2013) “Formación”
5.2.2. A seleção e a aplicação das atividades
De cada um dos livros didáticos, foi selecionada uma atividade de leitura neles
contida. As atividades foram selecionadas de acordo com:
(a) a temática abordada nos textos, ou seja, busquei selecionar textos que,
quando possível, fossem do interesse dos alunos, o que, provavelmente,
permitiria a construção de um maior número de inferências, uma vez que
eles tratariam de temas que compõem elementos de seu conhecimento
prévio e que permitiriam alguma motivação, por parte dos alunos, para sua
leitura.
211
(b) a fonte do texto, evitando-se a seleção de atividades que usavam textos
criados especialmente para o livro didático; e
(c) sua forma de organização como representação da forma como a leitura é
trabalhada em outras atividades do livro.
Tais atividades foram aplicadas, através de folhas fotocopiadas, em dias
diversos, em sala de aula, com alunos do 6º ano do ensino fundamental de uma escola
pública da rede municipal de Niterói. Dessa maneira, o número de alunos que as
responderam não é o mesmo em todas elas. Como o objetivo é analisar a capacidade do
livro de reconhecer as diversas leituras possíveis, as atividades respondidas foram
numeradas aleatoriamente. Não há identificação dos alunos que as responderam, o que
não nos permite desenvolver uma análise comparativa entre as respostas dadas às
atividades com foco em um ou mais alunos especificamente.
As atividades selecionadas e aplicadas foram analisadas com base nos seguintes
pontos: (1) se reconhecem as diferentes leituras possíveis do texto, a partir da
observação de como trabalham o plano inferencial de leitura; (2) se, da forma como se
organizam, são capazes de encaminhar o leitor a uma leitura qualitativa que ultrapasse o
nível linear; e (3) se possibilitam uma conscientização do leitor de seu processo de
leitura, tornando-o mais hábil ao lidar com o texto. Para isso, portanto, tornou-se
necessário analisar tanto as atividades em si, o que inclui os gabaritos propostos, como
as respostas dos alunos para elas.
Em relação às respostas dos alunos, como em Vargas (2012a), não me preocupo
em agrupá-las em categorias que levem em consideração a noção de certo ou errado. O
objetivo de minha análise é entender o raciocínio desenvolvido pelos alunos para que
dessem uma determinada resposta para uma determinada questão, levando em
consideração a noção de plano inferencial e a visão de cognição distribuída e inventiva
apresentada anteriormente. Por isso, parto da premissa de que as respostas dadas pelos
estudantes, mesmo as que são consideradas erradas pelos gabaritos dos livros e pela
prática escolar que os reproduz, são sempre reveladoras de seus processos cognitivos.
Muitas vezes, em determinada atividade de leitura, apresenta-se um alto índice
de respostas semelhantes de diferentes alunos, porém discordantes das consideradas
corretas. Como já apontado em diversos trabalhos (GERHARDT, 2006b; VARGAS,
2012a; BOTELHO, 2015; entre outros), tal semelhança revela uma lógica subjacente de
base cognitiva que orienta as respostas dos alunos para as questões apresentadas. Mais
212
do que avaliar o processo de leitura dos alunos, ao analisar suas respostas, pretendo
entender que lógica é essa que se apresenta, especificamente no que se refere ao
processo de inferenciação, uma vez que, na maioria das vezes, a Escola prefere
desconsiderá-la e tratar a explicitação do processo cognitivo do aluno como erro,
quando ele não resulta em respostas legitimadas pelo livro didático. Assim, a proposta é
sistematizar esses processos, bem como estabelecer, quando possível for, generalizações
acerca dos processos desenvolvidos pelos alunos para responder a questões de naturezas
diferentes.
Como esses livros traçam um percurso histórico, para esse segundo momento – de
análise das respostas dos alunos, selecionei apenas as atividades aplicadas dos dois
primeiros e dos dois últimos livros que constroem o panorama histórico de curto tempo
desta tese. Assim, é possível ver como os alunos respondem a atividades que
correspondem ao padrão inicial, anterior às intervenções do Programa Nacional do
Livro Didático e ao padrão final, após dois editais desse programa. Como o objetivo
principal é identificar a capacidade dessas atividades em reconhecerem e validarem o
desenvolvimento dos alunos como leitores, acredito que seria desnecessário apresentar
como os alunos responderam às atividades dos outros livros, tendo em vista o fato de
que há um processo evolutivo sendo descrito e que será detalhado nos próximos
capítulos.
213
CAPÍTULO 6: POLÍTICAS COGNITIVAS E OS OBJETOS REGULADORES
DO ENSINO DE LEITURA EM ESPANHOL-LE NOS ANOS FINAIS DO
ENSINO FUNDAMENTAL
Neste capítulo, me dedico, então, a, com base nos pressupostos apresentados nos
capítulos anteriores, analisar o que estou denominando de objetos reguladores do
ensino, especificamente, de espanhol nos anos finais do ensino fundamental. Como
objetos reguladores, como dito anteriormente, estou entendendo aqui, os documentos
oficiais que direcionam o processo de produção dos livros didáticos que são produzidos
no Brasil, em especial, para serem usados na escola pública. Podem ser entendidos
também como objetos reguladores os próprios livros didáticos que adentram o espaço
da sala de aula, uma vez que, como visto no capítulo 2, com a estrutura escolar que
temos, são eles que efetivamente conduzem, na maior parte dos casos, o trabalho feito
pelo professor na maior parte das salas de aula do país.
Dessa maneira, é possível através dessa análise, entender o que se pensa
oficialmente sobre o ensino de espanhol para os anos finais do ensino fundamental no
Brasil e, inclusive, observar como esse pensamento foi se transformando nos últimos
anos, uma vez que se cobre aqui um intervalo de tempo que vai desde a publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais dos 3º e 4º ciclos em 1998 até os livros aprovados no
Edital do PNLD 2014, produzidos em 2012. De forma mais ampla, é possível entender,
assim, qual é a visão de aprendizagem que circula oficialmente no Brasil e que, se
demonstra, nesta tese, através das visões de aprendizagem da leitura em língua
espanhola e, consequentemente, de seu ensino.
Em relação aos livros didáticos, neste capítulo, foco apenas nos discursos que se
manifestam em seus “manuais do professor”83
, ou seja, nas seções especificamente
voltadas para a leitura do professor em que se apresenta como os livros foram
supostamente pensados e as visões teóricas a que eles pretendem, de alguma maneira,
aderir. No capítulo seguinte, foco nas atividades propostas pelos livros, uma vez que
essa análise exige um grau de detalhamento maior, e em como os alunos se integram a
83
Nos documentos oficiais, tais como os editais do PNLD, “Manual do Professor” é todo o livro que é de
uso do professor, o que inclui o livro do aluno com as respostas sugeridas para as atividades. Aqui, estou
tratando como manual do professor a seção teórica que é inserida no livro apenas para a leitura do
professor. Assim, uso a nomenclatura, em geral, usada mesmo pelos livros.
214
essas atividades através das respostas que eles dão para as questões apresentadas pelos
livros.
Aqui, então, busco compreender, numa perspectiva ampla, que política(s)
cognitiva(s) são instituídas por esses objetos reguladores do ensino de espanhol (ou que
se manifestam nos objetos reguladores do ensino de espanhol) no ensino fundamental
do Brasil e, em uma perspectiva mais estrita, como o ensino de leitura em espanhol se
apresenta nesses objetos e, consequentemente, como ele pode estar sendo levado para a
sala de aula e apresentado aos alunos. Nesse sentido, é importante enfatizar que tais
visões, por se apresentarem de forma institucionalizada no espaço escolar, também
levam os alunos, enquanto aprendizes, a aprenderem como devem se colocar diante de
situações de aprendizagem não apenas dentro desse espaço como também fora dele
(SINHA, 1999).
Na próxima seção, então, apresento as concepções postas nos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira para os 3º e 4º ciclos (ou anos finais) do
ensino fundamental. É interessante observar que, como a LDB não prescrevia, até a
Reforma do Ensino Médio, o ensino de línguas específicas, os PCN trazem uma
perspectiva geral que aborda o ensino de línguas estrangeiras de modo geral. Dessa
forma, a análise feita na próxima seção serve para o ensino de espanhol, mas também
para o de qualquer língua que seja ofertada nesta etapa de ensino como língua
estrangeira.
6.1. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - LE/EF
De início, é importante salientar que os Parâmetros Curriculares Nacionais se
apresentam ao professor como um documento elaborado para
De um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, políticas
existentes no país e, de outro, considerar a necessidade de construir
referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as
regiões brasileiras. Com isso, pretende-se criar condições, nas escolas,
que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de
conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como
necessários ao exercício da cidadania (BRASIL, 1998, p.5).84
84
Esse fragmento se encontra na introdução, intitulada “Ao professor”, dos parâmetros de todas as
disciplinas e é assinado pelo então ministro da educação e do desporto Paulo Renato Souza.
215
Dessa forma, pode-se observar o caráter regulador do documento, uma vez que,
ainda que pretenda respeitar a diversidade, ele aponta, ao menos dentro do texto que o
oficializa como documento nacional, para a possibilidade de, com sua publicação,
desenvolver intervenções no que se faz em sala de aula. De igual maneira, acredita-se
oficialmente que a publicação desses referenciais cria condições para que os jovens
tenham acesso a esse conjunto de conhecimentos “socialmente elaborados e
reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania”.
É interessante notar também que os parâmetros nascem dentro de uma visão de
cognição como recognição, uma vez que os conhecimentos “socialmente elaborados e
reconhecidos” estão fora do aprendiz e prontos no mundo e cabe, portanto, à escola dar
aos jovens o acesso a eles para que possam exercer sua cidadania. O uso do verbo
acessar, inclusive, demonstra bem a metáfora construída: esses saberes são ou estão em
um lugar e cabe aos jovens encontrarem-nos. Eles não são construídos, mas alcançados.
Tampouco os jovens os têm independentemente da escola: é a escola (e os parâmetros)
que permitem seu acesso.
Ao longo do documento, entretanto, é possível notar que diferentes concepções
de aprendizado, de língua, de aluno, de papel da escola, etc. se atravessam85
. Entre os
objetivos gerais do ensino fundamental, também igual para todas as disciplinas e todos
os ciclos, é possível notar, por exemplo, a presença de alguns objetivos que apontam
para uma concepção de aprendizagem como invenção, ainda que eles tendam bem a
uma ideia de reprodução de um mundo dado a ser (re)conhecido pelo aluno. A seguir,
apresento esses objetivos, marcando em negrito os momentos em que a invenção possa
ter aparecido de algum modo:
OBJETIVOS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objetivos do
ensino fundamental que os alunos sejam capazes de:
compreender a cidadania como participação social e política,
assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais,
adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e
repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo
respeito;
85
O documento não tem uma autoria claramente definida, o que pode ter contribuído para essa não
uniformidade. Nos parâmetros de todas as disciplinas, aparecem os mesmos nomes, divididos em:
coordenação geral, coordenação de temas transversais, elaboração, consultoria, assessoria, revisão e
copydesk e agradecimentos.
216
posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva
nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma
de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas;
conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões
sociais, materiais e culturais como meio para construir
progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o
sentimento de pertinência ao país;
conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural
brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e
nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou
outras características individuais e sociais;
perceber-se integrante, dependente e agente transformador do
ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles,
contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente;
desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o
sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física,
cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social,
para agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício
da cidadania;
conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e adotando
hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida
e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde
coletiva;
utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical, matemática,
gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e
comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções
culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a
diferentes intenções e situações de comunicação;
saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos
tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos;
questionar a realidade formulando-se problemas e tratando
de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a
criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica,
selecionando procedimentos e verificando sua adequação
(BRASIL, 1998, pp.7-8).
É possível observar, assim, que a invenção aparece efetivamente apenas no
segundo e no último dos objetivos, sendo articulada, nos outros objetivos marcados, à
ideia de reprodução. Para os PCN, a construção da identidade do aluno depende do
“conhecimento de características fundamentais do Brasil”; o conhecimento de si mesmo
deve servir à busca de conhecimento, externo ao sujeito; e as diferentes linguagens são
meios para que o aluno se expresse, produza e comunique, não sendo desenvolvidas
também por ele. É interessante notar também que, nos momentos em que a invenção
aparece de alguma maneira, também se encontram fragmentos que apontam para a ideia
de que usamos também outras pessoas e elementos, além de nós mesmos, para aprender,
como defendo nesta tese ao trazer a ideia de cognição distribuída.
217
Ao adentrar a parte específica da disciplina “Língua Estrangeira”, pode-se
verificar que, explicitamente, ela se assume como concebendo linguagem e
aprendizagem dentro de uma visão intitulada de sociointeracional. Como se pode ver na
citação abaixo, essa visão acaba sendo definida pela integração de conceitos e enfoques
derivados de diferentes perspectivas, tais como a discursiva, a (meta)cognitiva e a sócio-
histórica. Entretanto, o documento, de forma geral, acaba entendendo que a linguagem e
os conhecimentos a serem aprendidos pelos alunos já estão prontos no mundo e cabe a
eles apenas aprenderem como usá-los.
Duas questões teóricas ancoram os parâmetros de Língua Estrangeira:
uma visão sociointeracional da linguagem e da aprendizagem. O
enfoque sociointeracional da linguagem indica que, ao se engajarem
no discurso, as pessoas consideram aqueles a quem se dirigem ou
quem se dirigiu a elas na construção social do significado. É
determinante nesse processo o posicionamento das pessoas na
instituição, na cultura e na história. Para que essa natureza
sociointeracional seja possível, o aprendiz utiliza conhecimentos
sistêmicos, de mundo e sobre a organização textual, além de ter de
aprender como usá-los na construção social do significado via Língua
Estrangeira. A consciência desses conhecimentos e a de seus usos são
essenciais na aprendizagem, posto que focaliza aspectos
metacognitivos e desenvolve a consciência crítica do aprendiz no que
se refere a como a linguagem é usada no mundo social, como reflexo
de crenças, valores e projetos políticos (BRASIL, 1998, p.15).
Dentro dessa perspectiva, cabe ao aluno aprender como os conhecimentos se
apresentam fora dele e como eles e a linguagem são usadas em seu mundo social para
reproduzir tais usos. É curioso observar que mesmo uma classificação clássica,
apresentada em Kleiman (2010)86
sobre o conhecimento prévio é aqui transformada em
uma classificação de conhecimentos que estariam fora do aprendiz87
. Quando a palavra
“construção” aparece, ela se refere apenas à “construção social do significado” sem que
haja explicitação de que o aluno deve ser agente dessa construção. Sob a visão aqui
defendida, concordo que haja uma “construção social desse significado”, mas ela se dá
porque é, antes de tudo, invenção (de mundo e de si), desenvolvendo-se de maneira
distribuída e, portanto, também social.
86
Kleiman (2010, p.13) entende que o conhecimento prévio se divide em conhecimento linguístico,
textual e de mundo. Nesta tese, como dito anteriormente, não trabalho com essa divisão, mas com a ideia
de que ele se organiza em frames.
87 Diferentemente do que propõe a autora, posto que, para ela, tais conhecimentos são construídos pelas
pessoas e organizados em sua memória semântica.
218
Nesse sentido, é importante retomar aqui, brevemente, a ideia posta por Kirshner
e Whitson (2009), com base no trabalho de Litowitz (1993), de que teorias
socioculturais correm o risco de se tornarem educacionalmente triviais, ao adotarem o
que eles chamam de uma postura neobehaviorista sobre a aprendizagem:
Isso é especialmente verdade quando o papel do adulto é descrito
como uma série de passos cuidadosamente organizados e habilidades
de ensino... e quando a contribuição do aluno como uma tabula rasa é
absorver a linguagem e a estrutura a partir do input do adulto.
(Litowitz, 1993, p.190, apud KIRSHNER e WHITSON, 2009, p.12,
tradução minha)88
.
Ao longo do documento é possível estabelecer relações entre a ideia de cognição
posta nesta tese e a posta nele, como se pode ver no fragmento a seguir, em que se
ressalta a natureza situada da aprendizagem, especificamente, da aprendizagem escolar
e o papel que o professor exerce nesse processo. Além disso, dialoga também de algum
modo com a natureza distribuída da aprendizagem, ao se trazer uma noção claramente
articulada à ideia de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky (1991)89
:
No que se refere à visão sociointeracional da aprendizagem, pode-se
dizer que é compreendida como uma forma de se estar no mundo com
alguém e é, igualmente, situada na instituição, na cultura e na história.
Assim, os processos cognitivos têm uma natureza social, sendo
gerados por meio da interação entre um aluno e um parceiro mais
competente. Em sala de aula, esta interação tem, em geral, caráter
assimétrico, o que coloca dificuldades específicas para a construção
do conhecimento. Daí a importância de o professor aprender a
compartilhar seu poder e dar voz ao aluno de modo que este possa se
constituir como sujeito do discurso e, portanto, da aprendizagem
(BRASIL, 1998, p.15).
O objetivo dessa seção é justamente identificar essas relações de semelhança e
oposição entre a concepção defendida nesta tese e as concepções postas nos Parâmetros.
Dessa forma, não pretendo fazer aqui uma leitura crítica exaustiva do documento, mas
apenas pontuar as questões mais interessantes para os encaminhamentos desta pesquisa.
Nesse sentido, cabe salientar que os parâmetros elegem a habilidade de leitura como a
88
Original: “It is especially true when the adult’s role is described as a series of carefully arranged steps
and teaching skills... and when the child’s contribution as tabula rasa is to absorb the language and
structure from the adult input.” (Litowitz, 1993, p.190, apud KIRSHNER e WHITSON, 2009, p.12).
89 Segundo Vygotsky, a Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser definida como a distância entre o
nível de desenvolvimento real para a resolução de um determinado problema e o nível potencial, em
função da colaboração de um parceiro mais experiente.
219
principal habilidade a ser aprendida na disciplina escolar de Língua Estrangeira, o que
se encaixa perfeitamente com a discussão feita aqui.
Para que isso seja possível, é fundamental que o ensino de Língua
Estrangeira seja balizado pela função social desse conhecimento na
sociedade brasileira. Tal função está, principalmente, relacionada ao
uso que se faz de Língua Estrangeira via leitura, embora se possa
também considerar outras habilidades comunicativas em função da
especificidade de algumas línguas estrangeiras e das condições
existentes no contexto escolar (BRASIL, 1998, p.15).
Além disso, ele é o primeiro documento oficial que ressalta, por diversas vezes,
que a escola também é lugar de se aprender outras línguas, indo contra a lógica
defendida pelo senso comum e ainda hoje muito presente em políticas públicas e
discursos de profissionais da educação de que os cursos livres seriam o lugar ideal para
isso. Inclusive, esse papel formativo da disciplina Língua Estrangeira, na escola, é
ressaltado pela contribuição que ela pode oferecer ao processo de letramento do aluno:
Portanto, a leitura atende, por um lado, às necessidades da educação
formal, e, por outro, é a habilidade que o aluno pode usar em seu
contexto social imediato. Além disso, a aprendizagem de leitura em
Língua Estrangeira pode ajudar o desenvolvimento integral do
letramento do aluno. A leitura tem função primordial na escola e
aprender a ler em outra língua pode colaborar no desempenho do
aluno como leitor em sua língua materna (BRASIL, 1998, p.20).
Nesse momento, tem-se uma concepção de ensino de língua cujo foco está no
aluno (GERHARDT, 2013), ou seja, em quem aprende e não no conteúdo aprendido,
uma vez que a preocupação central está no processo de desenvolvimento do aluno, o
que se pode, inclusive, associar à ideia de cognição como invenção. Entretanto, logo
depois, vemos uma concepção de currículo que ignora as possibilidades inventivas do
aprendiz ao defender que a escolha linguística de uma escola parta de três fatores:
históricos, relativos às comunidades locais e relativos à tradição (BRASIL, 1998, pp.
22-23). Assim, cabe, portanto, ao aluno adequar-se à realidade que lhe é dada.
Obviamente que os Parâmetros não poderiam sugerir a oferta de diferentes línguas para
os alunos, considerando-se a realidade brasileira e a LDB – 9394/96. Entretanto, é
bastante significativo que, considerando-se seu caráter de intervenção, nem se
problematize essa questão ao longo do documento.
Essa noção é reforçada ainda ao final das “considerações preliminares”, quando
se ressalta que
os temas centrais nesta proposta são a cidadania, a consciência critica
em relação à linguagem e os aspectos sociopolíticos da aprendizagem
220
de Língua Estrangeira. Eles se articulam com os temas transversais,
notadamente, pela possibilidade de se usar a aprendizagem de línguas
como espaço para se compreender, na escola, as várias maneiras de se
viver a experiência humana.
Dessa forma, os PCN tomam toda essa realidade como dada, cabendo ao aluno
apenas sua compreensão e sendo, inclusive, esse o foco da proposta de ensino por eles
defendida. Diferentemente do que poderia parecer, o foco não está no aluno, em seu
desenvolvimento como sujeito letrado, em seu processo de invenção de si e do mundo
também por meio da aprendizagem de outras línguas, mas sim nos conceitos pré-
definidos de cidadania e de consciência crítica em relação à linguagem. Assim, a
aprendizagem é vista prioritariamente em seus aspectos sociopolíticos e a discussão
sobre seus aspectos cognitivos fica deixada de lado em grande parte do documento.
Entretanto, em um momento posterior, logo após definir o que se denomina “a
natureza sociointeracional da linguagem”, novamente, pode-se retomar sentidos que
remetam, de certa forma, a uma concepção de aprendizagem como invenção, uma vez
que se parte da ideia de que é o aluno que constrói seu conhecimento sobre a linguagem
e é ele quem constrói significados na língua que aprende, ainda que a ideia de língua e
linguagem pareçam representar algo pronto e não igualmente construído:
Em linhas gerais, o que a aprendizagem de uma Língua Estrangeira
vai fazer é:
aumentar o conhecimento sobre linguagem que o aluno
construiu sobre sua língua materna, por meio de comparações com a
língua estrangeira em vários níveis;
possibilitar que o aluno, ao se envolver nos processos de
construir significados nessa língua, se constitua em um ser discursivo
no uso de uma língua estrangeira (BRASIL, 1998, pp.28-29).
Assim, caberia perguntar como processualmente a escola contribuiria para essa
construção a partir da concepção posta no documento de como tal construção se daria.
Entretanto, não há resposta explícita para isso. Mais adiante, ao explicar os
conhecimentos anteriormente citados – sistêmico, de mundo e da organização textual –
os Parâmetros explicam que eles “compõem a competência comunicativa do aluno e o
preparam para o engajamento discursivo” (BRASIL, 1998, p.29). Não há uma discussão
sobre os aspectos cognitivos envolvidos na construção desses conhecimentos. Diz-se
apenas que são conhecimentos que as pessoas têm. Sobre o conhecimento de mundo,
explica-se que:
Esses conhecimentos, organizados na memória em blocos de
informação, variam de pessoa para pessoa, pois refletem as
221
experiência que tiveram, os livros que leram, os países onde vivem
etc. Pode-se, contudo, imaginar que algumas pessoas que tenham a
mesma profissão – professores, por exemplo – tenham mais
conhecimentos de mundo em comum do que aquelas que exerçam
outra profissão (BRASIL, 1998, p.30).
Assim, é possível notar o caráter individual e o caráter social dessa construção
atuando de forma integrada, mas não o papel agentivo da própria pessoa nesse processo.
Ainda que se reconheça o papel fundamental do conhecimento prévio e da motivação
vinculada a ele no processo de aprendizagem, chega-se também, simultaneamente, a
apresentar, como se nota no fragmento destacado abaixo, a ideia de que o
desenvolvimento cognitivo se dá de fora para dentro, apenas pelo contato do aluno com
outras experiências:
Do mesmo modo, para o aluno de Língua Estrangeira, ausência de
conhecimento de mundo pode apresentar grande dificuldade no
engajamento discursivo, principalmente se não dominar o
conhecimento sistêmico na interação oral ou escrita na qual estiver
envolvido. (...) Além disso, não é comum vincular-se a práticas
interacionais orais e escritas que não sejam significativas e
motivadoras para o engajamento discursivo. Em Língua Estrangeira, o
problema do conhecimento de mundo referente ao assunto de que se
fale ou sobre o qual se leia ou escreva pode também ser complicado
caso seja culturalmente distante do aluno. (...) Ao mesmo tempo, é
esse tipo de conhecimento que pode, com o desenvolvimento da
aprendizagem no nível sistêmica, colaborar no aprimoramento
conceptual do aluno, ao expô-lo a outras visões do mundo, a
outros modos de viver a vida social e política, à possibilidade de
reconhecer outras experiências humanas diferentes como válidas etc. (BRASIL, 1998, p.30).
Aqui, novamente, é possível retomar a crítica levantada por Litowitz (1993,
apud KIRSHNER e WHITSON, 2009), uma vez que o aluno é tratado como um ser que
não possui agência nenhuma sobre seu aprendizado. Sobre o conhecimento da
organização textual, afirma-se que “o terceiro tipo de conhecimento que o usuário de
uma língua tem engloba as rotinas interacionais que as pessoas usam para organizar a
informação em textos orais e escritos” (BRASIL, 1998, p.31) e mais uma vez não se
destaca o papel do sujeito nessa construção. É interessante observar, inclusive, como se
mostra uma visão homogeneizante de língua, com ela definindo o comportamento
discursivo (e por que não dizer cognitivo também?) das diferentes pessoas e das
diferentes culturas que se manifestam através de uma determinada língua:
Deve-se notar também que usuários de línguas diferentes podem
organizar textos escritos e orais de forma distinta. Por exemplo,
mesmo em uma conversa informal em inglês não se admitem tantas
222
interrupções e fracionamento dos tópicos quanto parecem ocorrer em
uma conversa informal em português. Da mesma forma, um texto
escrito em inglês não permite tantas digressões do tópico principal
quanto um texto em português (BRASIL, 1998, p.31).
Esse dado e o pouco destaque dado aos conhecimentos sistêmicos revela uma
visão de língua que não passa pela construção/invenção do sujeito que dela se utiliza.
Sobre o conhecimento sistêmico, diz-se apenas que:
O conhecimento sistêmico envolve os vários níveis da organização
linguística que as pessoas têm: os conhecimentos léxico-semânticos,
morfológicos, sintáticos e fonético-fonológicos. Ele possibilita que as
pessoas, ao produzirem enunciados, façam escolhas gramaticalmente
adequadas ou que compreendam enunciados apoiando-se no nível
sistêmico da língua (BRASIL, 1998, p.29).
Na seção seguinte, os PCN se dedicam a explicar como esses conhecimentos são
usados na construção do significado e, nesse momento, é possível notar uma concepção
bem próxima da defendida nesta tese, inclusive, dando destaque ao papel que o
conhecimento prévio exerce no desenvolvimento da aprendizagem:
São esses conhecimentos (sistêmico, de mundo e da
organização de textos) que falantes e escritores utilizam na construção
do significado para atingirem suas propostas comunicativas, apoiando-
se nas expectativas de seus interlocutores em relação ao que devem
esperar no discurso. Em contrapartida, os interlocutores (ouvintes e
leitores) projetam esses conhecimentos na construção do significado.
O processo de construção de significado resulta no modo como as
pessoas realizam a linguagem no uso e é essencialmente determinado
pelo momento que se vive (a história) e os espaços em que se atua
(contextos culturais e institucionais), ou seja, pelo modo como as
pessoas agem por meio do discurso no mundo social, o que foi
chamado de a natureza sociointeracional da linguagem. Assim, os
significados não estão nos textos; são construídos pelos participantes
do mundo social: leitores, escritores, ouvintes e falantes (...).
Um dos procedimentos básicos de qualquer processo de
aprendizagem é o relacionamento que o aluno faz do que quer
aprender com aquilo que já sabe. Isso quer dizer que um dos processos
centrais de construir conhecimento é baseado no conhecimento que o
aluno já tem: a projeção dos conhecimentos que já possui no
conhecimento novo, na tentativa de se aproximar do que vai aprender.
(BRASIL, 1998, p.32).
Os Parâmetros destacam ainda a relação complementar que se estabelece entre
esses diferentes tipos de conhecimento e entre o conhecimento linguístico que se tem
em língua materna e o que se constrói na língua estrangeira, além de ressaltar o papel da
consciência (meta)linguística no aprendizado de uma língua:
(...) uma parte importante do que o aluno precisa aprender está
relacionada ao conhecimento sistêmico, embora essa aprendizagem
223
possa ser facilitada ao se apoiar, principalmente no início da
aprendizagem, nas convergências entre o que o aluno já sabe do
conhecimento sistêmico de sua língua materna e a língua estrangeira.
(...) Pode-se dizer também que uma maneira de facilitar a
aprendizagem do conhecimento sistêmico e colaborar para o
engajamento discursivo da parte do aluno é exatamente fazê-lo se
apoiar em textos orais e escritos que tratam de conhecimento de
mundo com o qual já esteja familiarizado. (...) Quanto ao
conhecimento da organização de textos orais e escritos, o aluno pode
se apoiar também nos tipos de texto que já conhece como usuário de
sua língua materna. (...) A consciência desses tipos de conhecimento
pelo aluno é o que será chamado aqui de consciência linguística, que,
além de ampliar o conhecimento que o aluno tem sobre o fenômeno
linguístico, isto é, incluindo a percepção de sua língua materna, tem
um alto valor na aprendizagem de Língua Estrangeira devido à sua
natureza metacognitiva (BRASIL, 1998, p.32).
É interessante observar que os PCN dedicam uma seção a esclarecer que os
alunos já possuem um conhecimento prévio sobre a linguagem desenvolvido em língua
materna (“Os usos dos conhecimentos e o processo de aprender e ensinar Língua
Estrangeira”). Nesse momento, dizem que o ensino de língua estrangeira pode
contribuir para o desenvolvimento metacognitivo e metalinguístico do aluno e que esse
desenvolvimento contribui para o aprimoramento do letramento do aluno. Entretanto,
essa discussão específica se reduz ao parágrafo apresentado abaixo e não se desenvolve
ao longo do documento, que parece estar mais focado em discutir “a função social da
língua” do que os processos de desenvolvimento do aluno como sujeito que se utiliza da
linguagem para construir visões de si e do mundo.
Esses usos em Língua Estrangeira têm de ser trazidos à mente do
aluno, posto que, freqüentemente, ele não tem consciência deles como
usuário em sua língua materna. É nesse sentido, explorando aspectos
metacognitivos da aprendizagem, que a aprendizagem da Língua
Estrangeira pode ajudar na educação lingüística do aluno como um
todo, aumentando sua consciência do fenômeno lingüístico, e no
aprimoramento de seu nível de letramento (BRASIL, 1998, p.34).
Essa discussão, por exemplo, não é trazida à tona quando se trata do “Papel da
área de Língua Estrangeira no Ensino Fundamental diante da construção da cidadania”
(BRASIL, 1998, pp. 37-41). Nessa seção, diz-se que a aprendizagem de uma língua
estrangeira “leva a uma nova percepção da natureza da linguagem, aumenta a
compreensão de como a linguagem funciona e desenvolve maior consciência do
funcionamento da própria língua materna” (BRASIL, 1998, p.37). Entretanto, não há
uma discussão que relacione esses aspectos à construção da cidadania. Não se fala, por
224
exemplo, sobre o agenciamento que os alunos devem exercer sobre o que leem, o que
traz uma certa contradição ao texto.
Passa-se também por questões referentes à interculturalidade, à
interdisciplinaridade, aos processos de exclusão social por que passam os usos de
línguas estrangeiras, à possibilidade delas atuarem como instrumento de libertação, à
presença do inglês como língua hegemônica e ao processo de escolha das línguas para o
currículo, mas não há uma articulação entre esses temas e como a consciência sobre os
próprios usos linguísticos e os usos dos outros pode auxiliar a construção do aluno
como cidadão. Ao se tratar de cidadania, os PCN recomendam que a reflexão seja feita
apenas sobre a realidade exterior ao sujeito, ou seja, a um mundo já construído.
A Língua Estrangeira no ensino fundamental tem um valioso papel
construtivo como parte integrante da educação formal. Envolve um
complexo processo de reflexão sobre a realidade social, política e
econômica, com valor intrínseco importante no processo de
capacitação que leva à libertação. Em outras palavras, Língua
Estrangeira no ensino fundamental é parte da construção da cidadania
(BRASIL, 1998, p.41).
A seção seguinte inicia-se ressaltando o fato de que construímos o mundo e a
nós mesmos através da linguagem. Poderia parecer uma contradição com o que (não) foi
dito anteriormente, porém, mais uma vez, vemos uma visão homogeneizante de língua,
como se as línguas, por si sós, definissem modos de estar no mundo. Assim, segundo o
documento, ao aprender uma língua estrangeira, passivamente, o aluno aprenderia novas
formas de estar no mundo além da forma que teria aprendido em língua materna:
A aprendizagem de Língua Estrangeira representa outra possibilidade
de se agir no mundo pelo discurso além daquela que a língua materna
oferece. Da mesma forma que o ensino da língua materna, o ensino de
Língua Estrangeira incorpora a questão de como as pessoas agem na
sociedade por meio da palavra, construindo o mundo social, a si
mesmos e os outros à sua volta. Portanto, o ensino de línguas oferece
um modo singular para tratar das relações entre a linguagem e o
mundo social, já que é o próprio discurso que constrói o mundo social
(BRASIL, 1998, p.43).
Em outros momentos, ressalta-se a possibilidade do ensino de línguas
estrangeiras ajudar o aluno a perceber as escolhas linguísticas feitas pelas pessoas, mas
elas acabam recaindo nessa ideia de que mundos sociais são construídos diferentemente
em línguas diferentes, em uma visão homogeneizante de língua. Pode-se observar isso
no fragmento a seguir, em que se apresenta a noção de que a relação entre linguagem e
mundo social se dá externamente ao aprendiz.
225
A consciência crítica de como a linguagem é usada no mundo social
pode ser bem desenvolvida em Língua Estrangeira, devido ao
distanciamento que ela oferece, possibilitando um estranhamento mais
fácil em relação ao modo como as pessoas usam a linguagem na
sociedade. Ao mesmo tempo que isso traz para o centro do currículo a
relação da linguagem com o mundo social, constitui um modo de
integrar os temas transversais com a área de Língua Estrangeira. Além
disso, a consciência crítica em relação à linguagem possibilita o
surgimento de novas práticas sociais por meio da criação de espaços
na escola para a construção de contra-discursos.
A comprovação de que a ideia de aprendizagem se dá com base em um mundo
dado e de que o aluno age passivamente em relação a esse mundo aparece logo em
seguida, quando o documento expressa a busca por fazer com que o aluno aprenda a
olhar para “as escolhas linguísticas que as pessoas fazem para agir no mundo social”
(BRASIL, 1998, p.43). Para isso, bastaria o aluno localizar ou identificar elementos que
se apresentariam explicitamente no que lê ou no que ouve. Não há qualquer menção ao
processo inferencial que o leitor/ouvinte executa nesse processo. Ou seja, ele como
alguém que age construindo significados sobre o que lê ou sobre o que ouve é ignorado
nesse “procedimento pedagógico”:
Um procedimento pedagógico útil para mostrar ao aluno que a
linguagem é uma prática social, ou seja, envolve escolhas da parte de
quem escreve ou fala para construir significados em relação a outras
pessoas em contextos culturais, históricos e institucionais específicos
é submeter todo texto oral e escrito a sete perguntas: quem
escreveu/falou, sobre o que, para quem, para que, quando, de que
forma, onde? (BRASIL, 1998, p.43).
É importante ressaltar que há uma seção dedicada nos PCN à descrição dos
alunos que frequentam, normalmente, os terceiro e quarto ciclos, à sua experiência
escolar e ao fato de eles estarem passando por um momento de transição em diversos
sentidos. Ainda que, equivocadamente, diga-se, no documento, que os alunos, neste
momento estão passando por “transformações significativas relacionadas (...) ao
desenvolvimento cognitivo” (BRASIL, 1998, p.53), é interessante que ele ressalta a
necessidade de se partir dos conhecimentos que os alunos tenham. Além disso, ressalta
também que, geralmente, “sem ter ainda uma reflexão mais aprofundada sobre o
funcionamento e uso da língua materna, o aluno se depara com a necessidade de
compreender a construção do significado na língua estrangeira” (BRASIL, 1998, p.53).
Nesse sentido, o documento destaca também a importância de um trabalho focado na
autonomia dos alunos e no trabalho cooperativo, em um fragmento que poderia dialogar
com a ideia de cognição distribuída:
226
Assim, é fundamental que desde o início da aprendizagem de Língua
Estrangeira o professor desenvolva, com os alunos, um trabalho que
lhes possibilite confiar na própria capacidade de aprender, em torno de
temas de interesse e interagir de forma cooperativa com os colegas.
(...) Dentre esses aspectos, destaca-se, inicialmente, como
fundamental diagnosticar os conhecimentos que os alunos trazem,
proporcionando a eles a oportunidade de identificar e reconhecer esses
conhecimentos e oferecer possibilidades de troca de experiências entre
eles, na perspectiva de dar continuidade à construção de novos
conhecimentos. Outro aspecto a ser levado em conta consiste em
aproveitar o interesse que os alunos mostram em relação à novidade
que representa aprender uma língua estrangeira, estimulando-os a
trabalhar com autonomia, de forma a poderem identificar suas
possibilidades e dificuldades no processo de aprendizagem (BRASIL,
1998, pp.54-55).
Assim, os PCN complementam essa discussão, ressaltando a importância de um
trabalho que desenvolva diferentes capacidades. O papel do professor como mediador
do desenvolvimento dessas capacidades também é salientado, mas não há uma
discussão aprofundada que, inclusive, ajude o professor a pensar sobre isso e a
desenvolver seu trabalho em sala de aula.
O estímulo à capacidade de ouvir, discutir, falar, escrever, descobrir,
interpretar situações, pensar de forma criativa, fazer suposições,
inferências em relação aos conteúdos é um caminho que permite
ampliar a capacidade de abstrair elementos comuns a várias situações,
para poder fazer generalizações e aprimorar as possibilidades de
comunicação, criando significados por meio da utilização da língua,
constituindo-se como ser discursivo em língua estrangeira. (...) A
mediação do professor é fundamental em todo esse percurso de
aprendizagem, que abrange ainda o desenvolvimento e aprimoramento
de atitudes. Coloca-se a necessidade de intervenção do professor em
relação às orientações sobre como organizar e lidar com o material de
estudo, como desenvolver atitudes de pesquisa e de reflexão sobre as
descobertas, para promover a autonomia do aluno, sem a qual torna-se
mais difícil garantir avanços.
Aqui, cabe destacar também que há nos parâmetros uma seção dedicada às
“Concepções teóricas do processo de ensino e aprendizagem de língua estrangeira”.
Nela, apresentam-se três concepções: a behaviorista, a cognitivista e a sociointeracional.
Como o documento assume a terceira perspectiva como sendo a ideal, é dado mais
destaque a ela. Já a concepção behaviorista é descrita de forma negativa. A visão
cognitivista é apresentada dentro de uma perspectiva individualizadora e reducionista,
muito mais atrelada ao processo de construção linguística do que à aprendizagem de
forma geral. Além disso, esse processo de construção linguística é tratado dentro de
uma percepção derivada muito mais de estudos inatistas, que trabalham com noções
227
como interlíngua, do que com concepções mais sociais de cognição e aprendizado de
línguas. Assim, desconsideram-se, por exemplo, trabalhos que já utilizavam concepções
cognitivistas para o tratamento do ensino de leitura e de produção textual, por exemplo,
como dito anteriormente, já bastante divulgados no Brasil desde os anos 80:
Na visão cognitivista desloca-se o foco do ensino para o aluno
ou para as estratégias que ele utiliza na construção de sua
aprendizagem da Língua Estrangeira. Entende-se que a mente humana
está cognitivamente apta para a aprendizagem de línguas. Ao ser
exposto à língua estrangeira, o aluno, com base no que sabe sobre as
regras de sua língua materna, elabora hipóteses sobre a nova língua e
as testa no ato comunicativo em sala de aula ou fora dela. Os erros,
então, passam a ser considerados como evidência de que a
aprendizagem está em desenvolvimento, ou seja, são hipóteses
elaboradas pelo aluno em seu esforço cognitivo de aprender a língua
estrangeira. Contrariamente à visão behaviorista, os erros passam a ser
entendidos como parte do processo da aprendizagem.
Os traços característicos da língua construída pelo aprendiz,
normalmente entendidos como erros, passam a ser vistos como
constitutivos da língua em construção no processo de aprendizagem
sua interlíngua, uma língua em constante desenvolvimento, no
contínuo entre a língua materna e a língua estrangeira, e que resulta de
suas tentativas de aprendizagem. Nesse processo, uma das estratégias
mais comumente usadas pelo aluno é criar hipóteses sobre a língua
estrangeira que está aprendendo, com base no conhecimento que tem
de sua língua materna: a estratégia de transferência lingüística.
Outras estratégias usadas pelo aluno podem ser entendidas
como estratégias gerais de aprendizagem de línguas, tais como
supergeneralização, em que o aluno generaliza uma regra para um
contexto em que não se aplica (por exemplo, a generalização, na
aprendizagem do português, da flexão verbal de passado do verbo
comer em comi que é generalizada para o verbo fazer, gerando a
forma fazi); hipercorreção, em que o aluno, por excesso de
preocupação com correção, acaba corrigindo formas que estariam
corretas (por exemplo, a correção do uso do pronome objetivo em
posição de sujeito em português, tal como em Isto é para mim fazer,
corrigida intensamente na escola para Isto é para eu fazer, acaba
gerando a forma Isto é para eu, que pode ser entendida como resultado
de hipercorreção) (BRASIL, 1998, p.57).
Ao final, há uma deturpação do que os estudos cognitivistas dizem sobre a
aprendizagem, ao tomá-la como um processo individual e generalizado, como se cada
pessoa aprendesse de uma maneira diferente. Assim, os PCN confundem estratégias
metacognitivas de aprendizagem com processos cognitivos e as toma,
contraditoriamente, independentemente dos objetivos do aprendiz e das situações em
que se encontra.
Uma contribuição importante do enfoque cognitivista foi chamar a
atenção para a questão dos diferentes estilos individuais de
aprendizagem que as pessoas possuem, ou seja, nem todos os alunos
228
aprendem da mesma forma. Por exemplo, há alunos que se utilizam
mais de meios auditivos e outros de meios visuais da mesma forma
que alguns têm mais sucesso no uso de estratégias sociointeracionais
devido ao fato de serem mais extrovertidos (BRASIL, 1998, p.57).
Como apresentado nos capítulos anteriores, todos nós aprendemos através do
que estou chamando aqui de aprendizagem integrativa, ou seja, da nossa capacidade de
realizar integrações conceptuais entre saberes velhos e novos. O que varia de pessoa
para pessoa e de situação para situação são as estratégias metacognitivas, ou seja, como
refletimos conscientemente sobre nossas potencialidades cognitivas. Essa confusão se
dá justamente porque não há um aprofundamento nesses estudos na construção dos
PCN. O interessante é que, ao explicar a visão sociointeracional, o documento retoma
como os processos cognitivos são tomados nessa perspectiva, e resgata a perspectiva
defendida por Vygotsky e seus seguidores.
O que subjaz a esta última visão é a compreensão de que a
aprendizagem é de natureza sociointeracional, pois aprender é uma
forma de estar no mundo social com alguém, em um contexto
histórico, cultural e institucional. Assim, os processos cognitivos são
gerados por meio da interação entre um aluno e um participante de
uma prática social, que é um parceiro mais competente, para resolver
tarefas de construção de significado/conhecimento com as quais esses
participantes se deparem. O participante mais competente pode ser
entendido como um parceiro adulto em relação a uma criança ou um
professor em relação a um aluno ou um aluno em relação a um colega
da turma. Na aprendizagem de Língua Estrangeira, os enunciados do
parceiro mais competente ajudam a construção do significado, e,
portanto, auxiliam a própria aprendizagem do uso da língua (BRASIL,
1998, pp. 57-58).
Posteriormente, os Parâmetros explicam como a aprendizagem é tomada, nessa
concepção como uma “forma de co-participação social” e como “construção de
conhecimento compartilhado”, citando, inclusive, a Zona de Desenvolvimento
Proximal. Dessa forma, focam no papel mediador da linguagem e da interação e na
problematização da natureza assimétrica das relações que se estabelecem entre professor
e alunos em sala de aula.
O processo de aprendizagem, mediado pela interação, vai levar à
construção de um conhecimento conjunto entre o aluno e o professor
ou um colega. Para que isso ocorra, o processo envolverá dificuldades
e sucessos na compreensão, negociação das perspectivas diferentes
dos participantes e o controle da interação por parte deles até que o
conhecimento seja compartilhado. Em última análise, o processo é
caracterizado pela interação entre os significados ou conhecimento de
mundo do parceiro mais competente (em sala de aula, o professor ou
um colega) e os do aluno. Muitas dificuldades na aprendizagem são
geradas, exatamente, por essas diferenças, que vão determinar
229
expectativas e condições de relevância diferentes sobre o que se fala.
Na verdade a aprendizagem em sala de aula é uma extensão de um
desafio diário: a necessidade de se interagir a partir de percepções
comuns do mundo ou da criação de perspectivas comuns (BRASIL,
1998, pp. 58-59).
Dessa forma, o documenta apresenta aqui uma perspectiva de aprendizagem que
dialoga com a visão defendida nesta tese. Essa perspectiva é retomada, posteriormente
no documento, quando se levantam críticas à forma como a interação é posta em sala de
aula, como se nota no fragmento abaixo:
Tradicionalmente, a interação em sala de aula tem sido explicada por
uma organização discursiva considerada típica: INICIAÇÃO,
RESPOSTA e AVALIAÇÃO. Assim, a interação é assimétrica, pois
seu controle é exercido pelo professor, que inicia a interação sobre um
tópico que escolheu (na dependência de seu planejamento), que faz
perguntas sobre respostas que já sabe, para, a seguir, avaliar a resposta
do aluno. (...) Esse jogo interacional não possibilita, muitas vezes, que
o aluno construa os princípios subjacentes ao que está aprendendo
para poder transferi-los para outros contextos de uso da linguagem. O
aluno deu a resposta certa para resolver a tarefa, mas o conhecimento
construído é limitado à resposta (BRASIL, 1998, p.59).
O problema é que, ao questionar esse jogo interacional que se estabelece em sala
de aula, os PCN discutem apenas os aspectos sociais que são consequência dele, tais
como a insubmissão de grupos de alunos ou a dificuldade de inserção de determinados
grupos sociais nesse padrão interacional. Nesse momento, sobre os aspectos cognitivos,
dizem apenas que “abordagens que se apoiam em visões cognitivistas podem conflitar
com tradições escolares de aprendizagem que se centram em práticas de memorização”
(BRASIL, 1998, p.60). Não há uma problematização em relação às políticas de ensino e
de aprendizagem nesse espaço segundo esse modelo. Os Parâmetros não questionam,
por exemplo, a formação que se dá em sala de aula do aluno como um sujeito aprendiz
reprodutor e as consequências disso em sua vida social, em sua prática cidadã, no
mundo do trabalho etc.
Em uma seção intitulada “Cognição e metacognição”, os PCN dizem apenas que
“a cognição é construída por meio de procedimentos interacionais” (BRASIL, 1998,
p.62) e chamam, em seguida, a atenção para o trabalho escolar com base em uma
abordagem metacognitiva:
Cabe chamar a atenção para o fato de que, além do domínio de
processos de natureza cognitiva, é preciso que o aluno tenha
conhecimento de natureza metacognitiva em relação ao que está
aprendendo e como. Sabe-se que, quanto melhor for o controle que os
aprendizes têm sobre o que estão fazendo no ato de aprender, maiores
230
serão os benefícios do ponto de vista da aprendizagem. Isso inclui
clareza sobre o propósito da aprendizagem com que estão envolvidos
(por exemplo, saber que são alunos de um curso de leitura em Língua
Estrangeira), da tarefa pedagógica que estão querendo resolver (por
exemplo, saber que a tarefa focaliza o ensino da organização textual),
do papel de uma determinada organização do espaço (por exemplo,
saber que a finalidade da organização em grupos menores pode
facilitar a aprendizagem) etc. (BRASIL, 1998, p. 62).
Entretanto, mais uma vez, o que se vê é uma visão de (meta)cognição baseada
em uma realidade dada e não no processo de construção / invenção pelo qual o aprendiz
passa no desenvolvimento de sua aprendizagem. Essa visão acaba por negar o conceito
de metacognição que foi explicitado anteriormente nesta tese, bem como os
encaminhamentos didáticos que se abrem a partir de sua consideração. Assim, o foco do
trabalho metacognitivo, nos PCN, recai apenas sobre objetivos superimpostos, que, na
verdade, se relacionam mais à tarefa do professor do que aos processos desenvolvidos
pelos alunos. Essa visão é reforçada nos parágrafos seguintes, em que caberia ao aluno
metacognizar apenas a relação interacional posta em sala de aula ou os processos de
construção linguística.
Além disso, o conhecimento explícito sobre a relação entre o uso de
certos padrões interacionais em sala de aula e a construção do
conhecimento constitui um tipo de conhecimento metacognitivo que
pode colaborar para que o aluno tome consciência das regras
implícitas que regem a interação em sala de aula, as quais são centrais
na construção do conhecimento. No ensino de Língua Estrangeira, os
processos de natureza metacognitiva envolvem também a consciência
lingüística, isto é, a consciência dos conhecimentos (sistêmico, de
mundo e da organização textual) que o usuário possui como também a
consciência crítica de como as pessoas usam esses conhecimentos na
construção social dos significados (BRASIL, 1998, pp.62-63).
Toda essa perspectiva acaba por gerar uma lista de “Objetivos gerais de Língua
Estrangeira para o Ensino Fundamental” mais centrada em processos recognitivos do
que inventivos, como se pode ver na citação abaixo, em que destaco aqueles que
remeteriam a uma concepção inventiva de aprendizagem, ainda que eles possam
representar igualmente uma perspectiva que vê a aprendizagem como compreensão
passiva, de fora para dentro, de um mundo que está dado.
Os objetivos são orientados para a sensibilização do aluno em relação
à Língua Estrangeira pelos seguintes focos:
mundo multilíngüe e multicultural em que vive;
a compreensão global (escrita e oral);
o empenho na negociação do significado e não na correção.
Ao longo dos quatro anos do ensino fundamental, espera-se com o
ensino de Língua Estrangeira que o aluno seja capaz de:
231
identificar no universo que o cerca as línguas estrangeiras que
cooperam nos sistemas de comunicação, percebendo-se como
parte integrante de um mundo plurilíngüe e compreendendo o
papel hegemônico que algumas línguas desempenham em
determinado momento histórico;
vivenciar uma experiência de comunicação humana, pelo uso de
uma língua estrangeira, no que se refere a novas maneiras de
se expressar e de ver o mundo, refletindo sobre os costumes
ou maneiras de agir e interagir e as visões de seu próprio
mundo, possibilitando maior entendimento de um mundo
plural e de seu próprio papel como cidadão de seu país e do
mundo;
reconhecer que o aprendizado de uma ou mais línguas lhe
possibilita o acesso a bens culturais da humanidade
construídos em outras partes do mundo;
construir conhecimento sistêmico, sobre a organização
textual e sobre como e quando utilizar a linguagem nas
situações de comunicação, tendo como base os
conhecimentos da língua materna;
construir consciência lingüística e consciência crítica dos
usos que se fazem da língua estrangeira que está
aprendendo;
ler e valorizar a leitura como fonte de informação e prazer,
utilizando-a como meio de acesso ao mundo do trabalho e dos
estudos avançados;
utilizar outras habilidades comunicativas de modo a poder atuar
em situações diversas (BRASIL, 1998, pp.66-67).
Ao tratar dos conteúdos a serem trabalhados em aula, novamente, os Parâmetros
trazem a importância de se partir dos conhecimentos prévios dos alunos e os separa,
novamente, em conhecimento de mundo, tipos de texto e conteúdo sistêmico. Além
deles, incorporam também “conteúdos atitudinais”, mas sempre a partir de uma
perspectiva que adota como conteúdo aspectos de uma realidade tomada como pronta,
na qual o aluno não exerce processos de criação. Ao final dessa seção, aparecem os
princípios que alicerçam as abordagens que embasam a discussão neles posta, em que se
separam, equivocadamente, aspectos inseparáveis do processo de aprendizagem.
As abordagens estão alicerçadas em princípios de natureza variada, já
considerados neste documento:
sociointeracional da aprendizagem em sala de aula;
cognitiva, em relação a como o conhecimento lingüístico é
construído por meio do envolvimento na negociação do
significado, como também no que se refere aos pré-
conhecimentos (língua materna e outros) que o aluno traz;
afetiva, tendo em vista a experiência de vir a se constituir como
ser discursivo em uma língua estrangeira;
pedagógica, em relação ao fato de que o uso da linguagem é
parte central do que o aluno tem de aprender (BRASIL, 1998,
p.76).
232
Em relação à compreensão escrita, especificamente, há dois momentos em que o
documento trata especificamente dela. No primeiro momento, apresentam-se os
“critérios de avaliação”, em que se pode observar muito claramente a ideia de que a
leitura serve à compreensão passiva por parte do leitor de sentidos construídos por outra
pessoa:
Quanto à compreensão escrita, o aluno deverá ser capaz de:
demonstrar compreensão geral de tipos de textos variados,
apoiado em elementos icônicos (gravuras, tabelas, fotografias,
desenhos) e/ou em palavras cognatas;
selecionar informações específicas do texto;
demonstrar conhecimento da organização textual por meio do
reconhecimento de como a informação é apresentada no texto
e dos conectores articuladores do discurso e de sua função
enquanto tais;
demonstrar consciência de que a leitura não é um processo
linear que exige o entendimento de cada palavra;
demonstrar consciência crítica em relação aos objetivos do
texto, em relação ao modo como escritores e leitores estão
posicionados no mundo social;
demonstrar conhecimento sistêmico necessário para o nível de
conhecimento fixado para o texto (BRASIL, 1998, pp.82-83).
O outro momento se encontra na seção “Orientações didáticas”, em que se
defende a ideia de que
O processo da compreensão escrita e oral envolve fatores relativos ao
processamento da informação, cognitivos e sociais. Os fatores
relativos ao processamento da informação têm a ver com a atenção, a
percepção e decodificação dos sons e letras, a segmentação
morfológica e sintática, a atribuição do significado ao nível léxico-
semântico, e a integração de uma informação a outra. Os fatores
cognitivos envolvem a contribuição do leitor/ouvinte, a construção do
significado (a formulação de hipóteses sobre os significados possíveis
com base no seu pré-conhecimento de mundo) e de organização
textual e os fatores sociais, que englobam a interação/falante e
escritor/ouvinte localizada na história, na instituição e na cultura. Isso
significa dizer que compreender envolve crucialmente a percepção da
relação interacional entre quem fala, o que, para quem, por que,
quando e onde (BRASIL, 1998, p.89).
Assim, observa-se uma concepção de leitura (e de compreensão oral) que
diferencia níveis tomados nessa tese como indissociáveis e que resume o ato de ler na
identificação de elementos externos ao ato de ler e pré-concebidos (quem fala, o que,
para quem, por que, quando e onde). Entretanto, não é ignorada a agentividade de quem
lê, uma vez que, em seguida, os objetivos de leitura e os resultados subjetivos desse
processo são tratados.
233
Deve-se dizer, ainda, que a compreensão é uma atividade com
propósito definido, pois aqueles envolvidos nesse processo
estabelecem objetivos quanto à finalidade do ato de compreender em
que estão engajados (...). Outro aspecto importante é que o resultado
do processo de compreensão é variado por estarem envolvidas pessoas
diferentes, com propósitos interacionais nem sempre iguais, e
conhecimento de mundo variados (BRASIL, 1998, p.89).
Sobre as especificidades do processo de compreensão escrita, os PCN apontam a
necessidade de que se trabalhe, primeiramente, com uma compreensão geral, no terceiro
ciclo, para depois, no quarto ciclo, trabalhar-se com a compreensão também detalhada.
Assim, se pode priorizar os conhecimentos de mundo e textuais que o aluno já tenha e ir
introduzindo, aos poucos, o conhecimento sistêmico. Dessa forma, ressaltam o papel
fundamental do conhecimento prévio e seu papel na construção de hipóteses de leitura:
O que é crucial no ensino de leitura é a ativação do
conhecimento prévio do leitor, o ensino de conhecimento sistêmico
previamente definidos para níveis de compreensão específicos e a
realização pedagógica da noção de que o significado é uma construção
social. Além disso, a leitura abarca elementos outros que o próprio
texto escrito, tais como as ilustrações, gráficos, tabelas etc., que
colaboram na construção do significado, ao indicar o que o escritor
considera esclarecedor ou principal na estrutura semântica do texto.
(...) O conhecimento de mundo tem um papel primordial, pois, ao ler,
o aluno cria hipóteses sobre o significado que está construindo com
base em seu pré-conhecimento. (...) O conhecimento de organização
textual também facilita a leitura ao indicar para o aluno como a
informação está organizada no texto. (...) O conhecimento sistêmico
contribui para a ativação e a confirmação das hipóteses que o aluno
está elaborando. Nos estágios iniciais de aprendizagem, o
conhecimento referente aos itens lexicais é crucial, já que facilita a
ativação de conhecimento do mundo do aluno (BRASIL, 1998, p.90).
Em função disso, os PCN trazem uma proposta que se reparte em “pré-leitura”,
“leitura” e “pós-leitura”, que, como as orientações apontadas anteriormente, se
coadunam com a proposta defendida nesta tese. Em relação à pré-leitura, indicam um
trabalho com base na elaboração de hipóteses, a partir da ativação de conhecimentos
prévios de mundo e textuais e a identificação de elementos como o autor do texto, o
leitor virtual, quando e onde foi publicado e seu propósito. Para a leitura, recomendam o
trabalho com a projeção do conhecimento prévio dos alunos no texto, com as estratégias
de leitura que o aluno tenha em língua materna, o trabalho com elementos sistêmicos,
quando necessário, e com diferentes níveis inferenciais (lexical, estabelecimento de elos
coesivos e estratégia de inferência). Para a pós-leitura, propõem o planejamento de
234
atividades que levem os alunos a pensarem sobre o texto, emitindo reações e avaliando-
o criticamente (cf. BRASIL, 1998, pp.91-93).
Nesse sentido, é interessante observar que, ao trazer orientações didáticas
concretas para o ensino da leitura, é nos estudos cognitivistas de até então que os PCN
se baseiam. Nesse momento, as sugestões todas parecem orientar-se para a participação
ativa do leitor no processo de construção de sentidos, em integração com o texto lido.
Entretanto, ao pautar grande parte da discussão anterior em uma concepção de
aprendizagem como processo que se dá de fora para dentro por meio da apreensão ou
identificação de um mundo já construído, o documento não traz uma base teórica que
facilite a compreensão deste trabalho como um trabalho que se deva centrar no aluno e
não no texto. Assim, sem o apoio de uma discussão que leve o professor a compreender
que tais propostas pressupõem uma dinâmica diferente de trabalho com a leitura, pode-
se hipotetizar que os leitores (professores) do documento entendam que se trata de uma
mesma visão de leitura, de cognição, de aprendizagem, etc.
Não nego aqui, porém, a importância histórica dos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Estrangeira, que, naquele momento, representaram uma
perspectiva inovadora, fugindo da lógica do senso comum de que o ensino de línguas
estrangeiras na escola deveria reproduzir as práticas dos cursos livres de idiomas. A
questão que aqui coloco é que, ao ignorar os avanços alcançados pelos pressupostos
derivados dos estudos em cognição até então desenvolvidos, os PCN creem que a
apresentação de uma proposta sociointeracional representaria uma superação da
abordagem cognitivista – ainda muito baseada nos estudos trazidos para o Brasil nos
anos 80. Dessa forma, dissociam os aspectos sociais dos, segundo eles, cognitivos – o
que, nesta tese, se trata como indissociável – e focam excessivamente nos primeiros,
construindo uma visão de aprendizagem que tente mais à ideia de recognição do que a
de invenção.
Sei que a influência dos PCN nas práticas cotidianas dos professores é ainda
hoje mínima. Nas salas de aulas do nosso país, como se pôde ver no capítulo 3, é o livro
didático que ainda define as práticas realizadas em sala de aula. Porém, eles serviram
como base para a produção dos editais do PNLD e, consequentemente, para a produção
de livros didáticos. Mesmo antes das línguas estrangeiras serem incorporadas ao PNLD,
os livros didáticos já citavam os PCN como um documento de referência. Além disso,
antes da participação das línguas estrangeiras no PNLD, eram esses os livros utilizados
235
pelos professores como modelos para suas aulas. Assim, essa visão neles apresentada
pode ter trazido consequências diretas para o trabalho com a leitura em línguas
estrangeiras em sala de aula. Na próxima seção, me dedico então a analisar os editais do
PNLD envolvidos nessa tese – 2011 e 2014 – para que, mais adiante, parta para a
análise dos livros didáticos.
6.2. O Programa Nacional do Livro Didático: 2011 e 2014
Buscando, entender, então, como as políticas públicas de regulação da produção
de materiais didáticos para a escola pública brasileira atuaram, nos últimos anos, na
construção de políticas cognitivas em sala de aula, neste momento da tese, busco
analisar as concepções de aprendizagem (e de aprendizagem da leitura) que aparecem
nos editais do Programa Nacional do Livro Didático, de 2011 e 2014, uma vez que
foram eles que estabeleceram os parâmetros de avaliação das obras aprovadas. Como
sabemos que boa parte do mercado é direcionada aos editais públicos, eles acabam
também por orientar fortemente a produção editorial de livros didáticos no Brasil.
Em função disso, cabe esclarecer que o PNLD é um programa que se encontra
sob a responsabilidade do Ministério da Educação (MEC) e tem como objetivo principal
“prover as escolas públicas de livros didáticos, dicionários e outros materiais de apoio à
prática educativa” (BRASIL, 2010, s/p). O programa integra-se ao Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) – autarquia federal responsável pela captação
de recursos para o financiamento de diversos programas educacionais. Segundo o
decreto 7084/10, o PNLD se organiza em diferentes etapas. A primeira corresponde à
inscrição, por meio de edital publicado no Diário Oficial pelo FNDE, das editoras que
desejem ter suas obras avaliadas pelo programa. Posteriormente, ocorrem a etapa de
triagem, realizada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo
(IPT), na qual se verifica se as obras apresentadas se enquadram nas exigências técnicas
e físicas do edital, e a etapa de pré-análise, na qual se verifica se o objeto e a
documentação definidos pelo edital de convocação foram respeitados, bem como se
obras excluídas em anos anteriores foram realmente reformuladas.
Em seguida, ocorre a etapa de avaliação, quando os livros já selecionados pela
triagem do IPT são encaminhados à Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC). Nessa
236
etapa, ocorre a avaliação pedagógica pelos especialistas – etapa fundamental para a
atuação efetiva do programa. A SEB é responsável por selecionar alguns especialistas
para que as obras sejam analisadas conforme os critérios estabelecidos previamente no
edital:
Art. 14o A avaliação pedagógica das obras será realizada por
instituições de educação superior públicas, de acordo com as
orientações e diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Educação, a
partir das especificações e critérios fixados no edital correspondente.
§ 1o Para realizar a avaliação pedagógica, as instituições de
educação superior públicas constituirão equipes formadas por
professores do seu quadro funcional, professores convidados de outras
instituições de ensino superior e professores da rede pública de
ensino (BRASIL, 2010, s/p).
As obras avaliadas recebem pareceres nos quais se indica se o material foi
aprovado, aprovado com a necessidade de correção de falhas pontuais – com o prazo de
15 dias para as devidas correções – ou reprovado. Posteriormente à avaliação, os
especialistas elaboram resenhas sobre os livros didáticos aprovados para a distribuição
nas escolas e estas resenhas passam a compor o Guia de Livros Didáticos. Esse guia é
disponibilizado pelo FNDE, via internet, uma vez que “os livros didáticos serão
escolhidos pelas escolas” (BRASIL, 2010, s/p) e para que, assim, os professores possam
escolher, auxiliados pelo conteúdo do guia, os livros com os quais gostariam de
trabalhar.
Desse modo, em um país como o Brasil, onde existe uma política pública em
relação ao livro didático, acredito que seja fundamental aproveitar a oportunidade de
que ao menos esse livro seja acessível a cada um dos alunos e que, acima de tudo, seja
um livro de qualidade (cf. PERINI, 1988; LERNER, 2004). Acredito que, ao criar o
processo de avaliação dos livros a serem escolhidos, o Estado, por meio do Ministério
da Educação (MEC) assumiu um papel fundamental nesse momento, participando
ativamente do processo de avaliação de livros, mas também do trabalho em sala de aula
– através do uso desses livros por alunos e professores –, induzindo, assim, “a uma
oferta e a uma demanda de livros articuladas com as políticas públicas para a educação”
(BATISTA, 2003, p.35).
De início, cabe destacar que os editais do PNLD envolvidos na análise dos
materiais selecionados para essa pesquisa – ou seja, PNLD 2011 e PNLD 2014 –, não
apresentam explicitamente concepções de aprendizagem, de texto e de leitura, uma vez
que é valorizado, segundo neles mesmo se afirma, o “pluralismo de ideias e de
237
concepções pedagógicas” (MEC, 2008, p.34; MEC, 2011, p.52). Entretanto, como foi
possível observar na análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais, essas concepções
aparecem mesmo quando não são apresentadas explicitamente. Nesse sentido, é
interessante observar que, em seus princípios gerais90
, ambos editais apontam que:
os progressos efetuados nas últimas décadas nos campos das teorias da
aprendizagem e da psicologia cognitiva não podem ser esquecidos.
Para formar cidadãos capazes de participar, de forma consciente,
crítica e criativa, de uma sociedade cada vez mais complexa é preciso
levar os alunos a desenvolverem múltiplas habilidades cognitivas. A
apresentação de conceitos e procedimentos sem motivação prévia,
seguida de exemplos resolvidos como modelo para sua aplicação em
exercícios repetitivos é danosa, pois não permite a construção, pelo
aluno, de um conhecimento significativo e condena este aluno a ser
um simples repetidor de procedimentos memorizados. Assim, o ensino
que ignore a necessidade do desenvolvimento, por parte do aluno, das
várias habilidades cognitivas e se dedica primordialmente à
memorização de definições, procedimentos e à resolução de exercícios
rotineiros de fixação não propicia uma formação adequada para as
demandas da sociedade atual (MEC, 2008, p.35; MEC, 2011, p.52-
53).91
Assim, é possível notar que a discussão trazida nesta tese está profundamente
ligada aos propósitos do edital e das políticas públicas sobre o livro didático no Brasil.
Porém, é interessante observar que, em relação aos critérios específicos propostos para a
avaliação dos livros de língua estrangeira, essa discussão sobre aspectos cognitivos da
aprendizagem em sala de aula não é explicitamente retomada em nenhum dos dois
editais. Isso revela o aprofundamento de um processo de construção de um discurso
oficial sobre o ensino de línguas estrangeiras que ignora as contribuições dos estudos
em cognição. Esse processo se inicia, como vimos, já na escrita dos Parâmetros
Curriculares Nacionais e parece radicalizar-se na construção dos editais, como se pode
ver na análise que será apresentada adiante.
Ambos os editais abrem os Princípios Gerais com uma discussão sobre o papel
da escola, o que é interessante, porque também mostra, de certa forma, qual seria o
papel do edital – e dos livros didáticos – dentro dos objetivos postos para a escola.
Assim, eles apontam que
90
Ambos os editais são compostos por uma parte geral, em que se apresentam pressupostos e critérios de
avaliação comuns a todas as disciplinas e partes específicas em que se discutem critérios para cada uma
das disciplinas que compõem o edital.
91 Parte considerável dos dois editais aqui analisados apresenta texto idêntico. Por isso, quando for o caso,
utilizarei essa citação dupla como forma de localização do texto citado em cada um dos editais.
238
O acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade é um dos
direitos fundamentais do cidadão. A educação escolar, como
instrumento de formação integral dos alunos, constitui requisito
fundamental para a concretização desse direito. Para tanto, a educação
deve organizar-se, de acordo com a legislação em vigor, de forma a
respeitar o princípio de liberdade e os ideais de solidariedade humana,
visando assim, ao pleno desenvolvimento do educando, ao seu preparo
para o exercício da cidadania e à sua qualificação para o trabalho
(MEC, 2008, p.34; MEC, 2011, p.52).
Com essa abertura, já é possível observar a contradição com que o edital é
construído – e que representa a contradição em que a escola brasileira se assenta,
apresentada também nos PCN. Se por um lado, segundo os editais, a educação visa o
“pleno desenvolvimento do educando” para que possa exercitar sua cidadania e estar
qualificado para o trabalho, por outro, acredita-se que isso se dá pelo “acesso aos bens
culturais produzidos pela humanidade”. Dessa forma, pode-se perceber que, para os
editais do PNLD e, consequentemente, para a política educacional brasileira, o
desenvolvimento dos alunos deve se dar dentro de uma visão de aprendizagem como
reprodução, mais uma vez manifestada pelo verbo “acessar”.
Essa perspectiva é reforçada em fragmento apresentado ao final da seção
“princípios gerais”, em que se retoma a noção de “acesso ao conhecimento”:
O PNLD cumpre a função, também, de estimular a discussão e
participação de professores na escolha dos materiais didáticos a serem
utilizados na escola, contribuindo dessa forma para o exercício
competente de sua profissão. Espera-se, sobretudo que o livro didático
contribua para o acesso de professores, alunos e famílias a fatos,
conceitos, saberes, práticas, valores e possibilidades de compreender,
transformar e ampliar o modo de ver e fazer a ciência, a sociedade e a
educação. Assim, iniciativas editoriais que associem correção
conceitual, adequação de atividades e procedimentos, atualização
pedagógica e reflexão sobre as interações entre ciência, tecnologia e
sociedade constituem importantes instrumentos de apoio e
qualificação do ensino (MEC, 2008, p.36; MEC, 2011, p.54).
Dentro dessa visão, os editais propõem, então, que o livro didático deva
“veicular informação correta, precisa, adequada e atualizada” (MEC, 2008, p.35; MEC,
2011, p.53) e que o manual do professor deve “valorizar os conhecimentos prévios do
aluno e buscar a confrontação com o conhecimento científico, esclarecendo a relação
entre o conhecimento historicamente construído e aquele construído em seu cotidiano”
(MEC, 2008, p.35; MEC, 2011, p.53). Assim, pode-se entender que não caberia ao livro
apresentar para os alunos a valorização de seus conhecimentos prévios, uma vez que
isso ficaria restrito ao trabalho do professor, embasado nos manuais a que tenha acesso.
239
Para os alunos, caberia apenas a apresentação das informações corretas. Para os editais,
portanto, ao menos em seus princípios gerais, o livro não é o lugar da invenção, que
pode ser construída a partir da integração entre os saberes novos e os saberes que os
alunos já têm. Esse lugar deveria ser construído pelo professor e, portanto, pelos
manuais do professor.
O mais interessante é que, logo em seguida, traz-se uma discussão que poderia
dialogar com a ideia de cognição distribuída, ao apresentar o processo de construção do
conhecimento como envolvendo entre pessoas e instituições. Entretanto, ao que parece,
apresenta-se uma proposta de trabalho não para a construção do conhecimento em sala
de aula, mas para o reconhecimento por parte dos alunos das pessoas e instituições
envolvidas no processo de construção de um conhecimento pronto.
Dessa forma, estará favorecendo a interação da escola com as famílias
e a comunidade. Isso significa reconhecer que a construção do
conhecimento é um empreendimento laborioso e que envolve
diferentes pessoas e instituições, às quais se deve dar o devido crédito.
É esse amadurecimento e esse refletir constante que garantirão que
ocorram as mudanças efetivas na prática pedagógica do ensino
fundamental do país (MEC, 2008, p.35; MEC, 2011, p.53).
Partindo dessa noção, os editais enxergam, então, o livro didático como um
material de apoio ao trabalho do professor, como se pode ver na citação a seguir.
É preciso que o livro didático contribua com o trabalho do professor
no sentido de propiciar aos alunos oportunidades de desenvolver
ativamente as habilidades envolvidas no processo de ensino e
aprendizagem, e, além disso, buscar a formação dos alunos como
cidadãos, de modo que possam estabelecer julgamentos, tomar
decisões e atuar criticamente frente às questões que a sociedade, a
ciência, a tecnologia, a cultura e a economia têm colocado ao presente
e, certamente, colocarão ao futuro (MEC, 2008, p.35; MEC, 2011,
p.53).
Com base nesses princípios, os editais propõem “critérios eliminatórios comuns
a todas as áreas” (MEC, 2008, p.37; MEC, 2011, p.55):
(i) respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas
ao ensino fundamental;
(ii) observância de princípios éticos necessários à construção da
cidadania e ao convívio social republicano;
(iii) coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica
assumida pela coleção, no que diz respeito à proposta
didático-pedagógica explicitada e aos objetivos visados;
(iv) correção e atualização de conceitos, informações e
procedimentos;
(v) observância das características e finalidades específicas do
manual do professor e adequação da coleção à linha
pedagógica nele apresentada;
240
(vi) adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico aos
objetivos didático-pedagógicos da coleção.
No detalhamento desses critérios, é possível notar que os dois primeiros (i e ii) e
o último (vi) apresentam critérios mais pontuais e objetivos, que não cabem ser
problematizados aqui. Em relação ao terceiro critério (iii), é interessante observar que
inicialmente se apresenta uma perspectiva de aprendizagem centrada na ideia de
recognição, uma vez que o edital entende que cabe ao aluno apropriar-se de um
conhecimento pronto.
Por mais diversificadas que sejam as concepções e as práticas de
ensino envolvidas na educação escolar, propiciar ao aluno uma efetiva
apropriação do conhecimento implica: a) escolher uma abordagem
metodológica capaz de contribuir para a consecução dos objetivos
educacionais em jogo; b) ser coerente com essa escolha, do ponto de
vista dos objetos e recursos propostos (MEC, 2008, p.38; MEC, 2011,
p.56).
Logo em seguida, ainda na descrição do critério, apresentam-se requisitos que
reforçam a ideia de aprendizagem como recognição de saberes construídos por outros,
ainda que um deles reforce a necessidade de que os livros favoreçam o desenvolvimento
do pensamento autônomo e crítico dos alunos.
Em conseqüência, serão excluídas as coleções que não atenderem aos
seguintes requisitos:
I. explicitar, no manual do professor, os pressupostos teórico-
metodológicos que fundamentam sua proposta didático-pedagógica;
II. apresentar coerência entre essa fundamentação e o conjunto de
textos, atividades, exercícios etc. que configuram o livro do aluno; por
isso mesmo, no caso de uma coleção recorrer a mais de um modelo
teórico-metodológico, deve indicar claramente a articulação entre eles;
III. organizar-se — tanto do ponto de vista dos volumes que as
compõem quanto das unidades estruturadoras de cada um de seus
volumes — de forma a garantir a progressão do processo de ensino-
aprendizagem;
IV. favorecer o desenvolvimento de capacidades básicas do
pensamento autônomo e crítico, no que diz respeito aos objetos de
ensino-aprendizagem propostos;
V. contribuir para a apreensão das relações que se estabelecem entre
os objetos de ensino-aprendizagem propostos e suas funções
socioculturais (MEC, 2008, p.38; MEC, 2011, p.56).
Assim, parece que a ideia de apreensão e a ideia de pensamento autônomo e
crítico são tratadas como se representassem uma mesma visão de cognição e de
aprendizagem. Nesse sentido, cabe-se perguntar qual é a ideia de “progressão do
processo de ensino-aprendizagem” proposta pelo edital, uma vez que ela não é
explicitada e pode representar a noção de sistematização de um ensino voltado para a
241
reprodução de uma organização pré-estabelecida de um mundo dado. O quarto critério
(iv) reforça essa noção na medida em que ele se propõe justamente a avaliar a
capacidade de reprodução dos livros didáticos. Obviamente, não nego aqui a relevância
desse critério e de que os livros apresentem conceitos, informações e procedimentos
corretos e atualizados, mas é interessante observar o destaque que se dá a essa questão.
Respeitando tanto as conquistas científicas das áreas de conhecimento
representadas nos componentes curriculares quanto os princípios de
uma adequada transposição didática, serão excluídas as coleções que:
I. apresentar de modo equivocado ou desatualizado conceitos,
informações e procedimentos propostos como objetos de ensino-
aprendizagem;
II. utilizar de modo equivocado ou desatualizado esses mesmos
conceitos e informações, em exercícios, atividades, ilustrações ou
imagens (MEC, 2008, p.39; MEC, 2011, p.56).
O quinto critério (v), dedicado especificamente aos manuais do professor, nos
mostra a visão que os editais apresentam em relação ao papel não só do manual, mas
também do professor no uso dos livros didáticos. Nesse sentido, cabe salientar que há
alterações textuais entre o edital do PNLD 2011 e do PNLD 2014. Neste último, parece
haver uma preocupação maior em não se reproduzir a ideia de que ao professor caberia
apenas utilizar passivamente o material que chegasse a suas mãos. Entretanto, ao manter
parte do texto original, o segundo edital mantém também a contradição entre uma
concepção de manual que busque a superação da dicotomia entre quem pensa e quem
executa o trabalho didático e uma concepção de manual que oriente o professor no “uso
adequado da coleção”.
O Manual do Professor deve visar, antes de mais nada, a orientar os
docentes para um uso adequado da coleção, constituindo-se, ainda,
num instrumento de complementação didático-pedagógica e
atualização para o docente. Nesse sentido, o Manual deve organizar-se
de modo a propiciar ao docente uma efetiva reflexão sobre sua prática.
Deve, ainda, colaborar para que o processo de ensino-aprendizagem
acompanhe avanços recentes, tanto no campo de conhecimento do
componente curricular da coleção, quanto no da pedagogia e da
didática em geral (MEC, 2008, p.39).
As concepções atuais de ensino e aprendizagem, assim como as
orientações para formação docente consideram que é preciso superar a
dicotomia entre os que produzem e os que ensinam os conhecimentos
e repensar o papel do professor, valorizando sua competência também
como produtor do saber.
Portanto, o manual do professor não deve ser um mero roteiro para
utilização do livro do aluno, com acréscimo de textos desarticulados
da proposta central da coleção.
O manual do professor deve se constituir em um material diferenciado
do livro do aluno e deve visar à orientação dos docentes para o uso
242
adequado da coleção, constituindo-se, ainda, num instrumento de
complementação didático-pedagógica e atualização para o docente.
Nesse sentido, o livro deve organizar-se de modo a propiciar ao
docente uma efetiva reflexão sobre sua prática.
Deve, ainda, colaborar para que o processo de ensino-aprendizagem
acompanhe avanços recentes, tanto no campo de conhecimento do
componente curricular da coleção, quanto no da pedagogia e da
didática em geral (MEC, 2011, pp.56-57).
É interessante observar que, em meio a essa contradição em que se constrói o
edital – e que, na verdade, revela a realidade escolar brasileira, ainda baseada em uma
sucessão de reproduções –, aparece como papel do manual do professor “propiciar ao
docente uma efetiva reflexão sobre sua prática”. Essa contradição se manifesta mais
detalhadamente nos requisitos apontados para a avaliação dos manuais em ambos os
editais:
Considerando-se esses princípios, serão excluídas as coleções cujos
Manuais não se caracterizarem por:
1. explicitar os objetivos da proposta didático-pedagógica efetivada
pela coleção e os pressupostos teórico-metodológicos por ela
assumidos;
2. descrever a organização geral da coleção, tanto no conjunto dos
volumes quanto na estruturação interna de cada um deles;
3. relacionar a proposta didático-pedagógica da coleção aos principais
documentos públicos nacionais que orientam o ensino fundamental no
que diz respeito ao componente curricular em questão;
4. discutir o uso adequado dos livros, inclusive no que se refere às
estratégias e recursos de ensino a serem empregados;
5. indicar as possibilidades de trabalho interdisciplinar na escola, a
partir do componente curricular abordado na coleção;
6. discutir diferentes formas, possibilidades, recursos e instrumentos
de avaliação que o professor poderá utilizar ao longo do processo de
ensino-aprendizagem;
7. propiciar a reflexão sobre a prática docente, favorecendo sua análise
por parte do professor e sua interação com os demais profissionais da
escola;
8. apresentar textos de aprofundamento e propostas de atividades
complementares às do livro do aluno (MEC, 2008, p.39).
Considerando-se esses princípios, o manual do professor deverá:
1. explicitar os objetivos da proposta didático-pedagógica efetivada
pela coleção e os pressupostos teórico-metodológicos por ela
assumidos;
2. descrever a organização geral da coleção, tanto no conjunto dos
volumes quanto na estruturação interna de cada um deles;
3. orientar o professor para o uso adequado da coleção , inclusive no
que se refere às estratégias e recursos de ensino a serem empregados;
4. indicar as possibilidades de trabalho interdisciplinar na escola, a
partir do componente curricular abordado na coleção;
243
5. discutir diferentes formas, possibilidades, recursos e instrumentos
de avaliação que o professor poderá utilizar ao longo do processo de
ensino-aprendizagem;
6. promover a interação com os demais profissionais da escola;
7. sugerir textos de aprofundamento e propostas de atividades
complementares às do livro do aluno.
8. propiciar a superação da dicotomia ensino e pesquisa,
proporcionando ao professor um espaço efetivo de reflexão sobre a
sua prática (MEC, 2011, p.57).
Quando se observam os critérios específicos de Língua Estrangeira Moderna
(Inglês e Espanhol), é possível observar diferenças consideráveis entre os dois editais.
De início, é possível observar que no PNLD 2014 há uma referência direta aos PCN que
não se encontra no edital PNLD 2011, o que reforça a existência de um caminho de
regulação, como hipotetizo nesta tese. Pode-se inferir que a inclusão dessa citação se
deva à frustração denunciada por González (2010) em relação às obras avaliadas no
PNLD 2011 e seu distanciamento do que estava posto nos referenciais oficiais. Porém,
mesmo que não haja uma referência explícita, é possível identificar uma visão de língua
e de ensino de língua que remete aos PCN, também apresentada no edital de 2011, no
de 2014, como se pode ver nos fragmentos a seguir:
O ensino de Língua Estrangeira – Inglês e Espanhol - para os anos
finais do ensino fundamental pauta-se, primordialmente, pelos
objetivos que contribuam para a reflexão sobre a função social da
língua estrangeira como uma disciplina que permite o acesso a outros
bens, tais como a ciência, a tecnologia, as artes, as comunicações e
produções (inter)culturais e o mundo do trabalho. Além disso, a
aprendizagem de outras línguas possibilita o contato com novas e
variadas formas de ver e organizar o mundo e com outros valores, os
quais, confrontados com os nossos próprios, contribuem para uma
saudável abertura de horizontes, uma ruptura de estereótipos, uma
superação de preconceitos, um espaço de convivência com a
diferença, que promove inevitáveis e frutíferos deslocamentos em
relação às nossas próprias formas de organizar, dizer e valorizar o
mundo. Assim, não resta dúvida de que essa abertura para o diferente
tem um papel muito importante na constituição da identidade dos
alunos (MEC, 2008, p.55).
Entre os fundamentos orientadores dos anos finais do nível
fundamental, os Parâmetros Curriculares Nacionais ressaltam a
importância da escola como espaço de acesso ao conhecimento e à
valorização da “pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro,
bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações,
posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças
culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia, ou
características individuais e sociais.” (PCNEF-LE, 1998, p. 7). Desse
modo, o ensino da língua estrangeira assume papel relevante para o
alcance desse objetivo, ao propiciar ao aluno a oportunidade de
reflexão sobre diferentes povos, culturas e consequentes visões de
244
mundo, e, ainda, permitir-lhe melhor conhecer outras realidades,
assim como aquela em que vive.
Aprender uma língua estrangeira tem como um de seus princípios
proporcionar o acesso a sentidos relacionados a outros modos de
compreender e expressar-se no e sobre o mundo. A aproximação do
aluno a essas formas de dizer o mundo e de significar experiências
vividas por outros povos deve estar pautada no esforço de romper
estereótipos, superar preconceitos, criar espaços de convivência com a
diferença, que vão auxiliar na promoção de novos entendimentos das
nossas próprias formas de organizar, dizer e valorizar o mundo. Para
que essa aproximação se dê de forma efetiva, ao longo desse segmento
de ensino, é importante ressaltar o papel da criatividade, do lúdico e
dos afetos na construção coletiva do conhecimento a ser partilhado
(MEC, 2011, p.72).
Dessa forma, em ambos os editais, é possível notar uma concepção de
aprendizagem que parte de um mundo dado, que deve ser acessado pelo aluno, ainda
que se cite a busca por um trabalho reflexivo sobre esses novos mundos a serem
(re)conhecidos pelos alunos. Seguindo essa concepção, o edital do PNLD 2011 traz uma
discussão inicial mais centrada nos conteúdos e temas a serem apresentados nas obras
avaliadas, que deveriam “contemplar as variedades linguísticas” e levar os alunos e os
professores a “perceber a diversidade sócio-cultural que há no mundo”, por exemplo (cf.
MEC, 2008, p.56). Além disso, ele propõe uma visão de língua “como portadoras de
valores e sentimentos” (MEC, 2008, p.56), o que também revela uma visão de língua
que independe de seus falantes para existir e que se encaixa na visão de aprendizagem
como recognição.
O edital do PNLD 2014, por sua vez, traz visão de língua semelhante, descrita
como “como portadora de sentimentos, valores e saberes profundamente atrelados a
processos históricos de sociedades muito diversificadas” (MEC, 2011, p.72), mas, em
sua discussão inicial sobre os critérios específicos, ao invés de focalizar os temas e
conteúdos a serem apresentados nos materiais, apresenta uma interessante discussão
sobre como os livros didáticos podem contribuir para a construção de um trabalho
autônomo do professor, como se pode ver na citação abaixo. É interessante observar
também nela que, ao final, se reforça o caminho regulador postulado nesta tese, uma vez
que se faz novamente referência aos documentos organizadores do ensino fundamental,
dentre os quais se apresentam os PCN.
Outro princípio orientador a ser considerado diz respeito ao papel
atribuído ao professor nesse contexto. O material didático para o
ensino de língua estrangeira tem função complementar à ação do
professor. É este que, a partir de sua experiência no meio de trabalho
escolar, compromete-se com o encaminhamento mais adequado para
245
sua turma. Por isso, é preciso estar garantido na coleção o diálogo
respeitoso e equilibrado entre esse compromisso e os critérios gerais
de organização do material didático. As concepções que norteiam a
coleção didática devem incluir propostas que favoreçam as decisões
do professor e elucidem o compromisso com a valorização da prática
docente, prática essa que exige arbitragem entre saberes teóricos e
práticos. Uma das questões fundamentais para que esse diálogo entre
coleção e professor possa ser efetivo está no modo como a coleção
explicita sua orientação teórico-metodológica e demonstra coerência
entre essa e a seleção temática, a apresentação de elementos
linguísticos e de atividades de compreensão e produção na língua
estrangeira. Essa coerência deve estar pautada no que propõem os
documentos organizadores do ensino fundamental e devem atravessar
tanto o material impresso quanto o que se oferece na mídia que
compõe a coleção (MEC, 2011, pp.72-73).
Cada edital aponta também os objetivos para o ensino de línguas estrangeiras na
escola. Ainda que se aproximem na maior parte deles, é interessante notar as diferenças,
uma vez que elas marcam a busca, no edital de 2014, pelo apagamento de uma
concepção comunicativista de ensino de língua que atravessa o edital de 2011 (cf.
FREITAS e VAZQUEZ, 2016) e a adesão a uma perspectiva mais fortemente
discursivo-interacionista.
Em conformidade com esses princípios gerais que balizam o ensino e
a aprendizagem das línguas estrangeiras na atualidade, esse ensino,
nessa etapa da educação formal, deve ter por objetivo possibilitar ao
aprendiz:
• vivenciar uma experiência de comunicação humana pelo uso de uma
língua estrangeira, no que se refere a novas e diversificadas maneiras
de se expressar e de ver o mundo;
• refletir sobre os costumes ou maneiras de agir e interagir em
diferentes situações e culturas, em confronto com as formas próprias
do universo cultural dos alunos, de modo a promover neles uma visão
plural e heterogênea do mundo e a fazer entender o papel de cada um
como cidadão em nível local e global;
• reconhecer que a aprendizagem de Língua Estrangeira possibilita o
acesso a legados culturais da humanidade construídos em outras partes
do mundo;
• construir conhecimento sistêmico sobre a língua estudada,
conhecimento sobre diferentes modalidades pragmático-discursivas
vigentes nos diversos âmbitos sociais e regionais, sobre a organização
textual e sobre como e quando utilizar a linguagem adequadamente
nas situações de comunicação;
• desenvolver consciência lingüística e crítica dos usos que se fazem
da língua estrangeira que está aprendendo;
• utilizar a língua estrangeira como fonte de informação, de fruição e
como veículo de comunicação, em diversas práticas sociais da
linguagem (MEC, 2008, p.55).
Tendo em vista esses princípios, o ensino de língua estrangeira deve
orientar-se para oferecer ao aluno condições para que possa:
246
1. vivenciar experiências de interação pelo uso de uma língua
estrangeira, no que se refere a novas e diversificadas maneiras de se
expressar e de ver o mundo;
2. refletir sobre costumes, maneiras de agir e interagir em diferentes
situações e culturas, em confronto com as formas próprias do universo
cultural do seu entorno, de modo a perceber que o mundo é plural e
heterogêneo e entender o papel de cada um como cidadão;
3. construir conhecimento sobre a língua estrangeira estudada, em
particular, quanto às diferentes finalidades de uso dessa língua,
conforme os diversos âmbitos sociais e regionais, a partir do estatuto
dos parceiros em interação, o lugar e o momento legítimos, e os seus
possíveis modos de organização verbal, não verbal e verbo-visual, que
remetem a uma finalidade reconhecida social e historicamente;
4. reconhecer processos de intertextualidade como inerentes às formas
de expressão humana, às manifestações humanas, quer se manifestem
por meio do verbal, não verbal ou verbo-visual;
5. desenvolver consciência linguística e crítica dos usos que se fazem
da língua estrangeira que está aprendendo (MEC, 2011, p.73).
Em função disso, é possível observar que a ideia de “experiência de
comunicação humana” foi trocada pela ideia de “experiências de interação” e as noções
de “conhecimento sistêmico”, “modalidades pragmático-discursivas” e “situações de
comunicação” pelas noções de “conhecimento sobre a língua”, “finalidades de uso”,
“parceiros em interação” e “modos de organização”, por exemplo. Além disso, apagam-
se noções instrumentais da aprendizagem de língua estrangeira, tais como a ideia de que
por meio dela pode-se acessar a legados culturais e a possibilidade de seu uso como
“fonte de informação, de fruição e como veículo de comunicação”, ao mesmo tempo em
que inclui-se a noção de intertextualidade como inerente às formas de expressão.
Entretanto, em ambos editais, os objetivos reforçam a ideia de aprendizagem como
percepção, reconhecimento de um mundo dado, ainda que apareçam objetivos que
visem a reflexão, a construção de conhecimentos e o desenvolvimento de consciência
crítica. Mesmo nesses casos, parece que a ideia de reflexão ou de criticidade, por
exemplo, aparece apenas como recaindo sobre algo que já existe e não como sentidos
construídos pelo aprendiz.
Ao apresentar os “Critérios específicos eliminatórios para o componente
curricular Língua Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol)”, os dois editais se
organizam em uma estrutura bastante diferente. O edital de 2011 propõe uma lista de
critérios introdutórios, uma lista de critérios para cada uma das habilidades linguísticas
– compreensão escrita, produção escrita, compreensão oral e produção oral –, uma lista
para o “trabalho integrado das quatro habilidades”, uma para o “enfoque intercultural”,
247
uma “para a construção da cidadania” e uma para a “estrutura editorial”, além de
dedicar uma lista específica para os critérios que se refiram ao manual do professor (cf.
MEC, 2011, pp. 56-62). Assim, é possível notar que há uma visão de livro didático mais
compartimentalizada e a necessidade do edital de detalhar de modo bastante minucioso
a diversidade de critérios de avaliação, o que poderia se explicar pelo fato de este ser o
primeiro edital a apresentar a disciplina de Línguas Estrangeiras na história do PNLD.
Já o edital de 2014, por sua vez, apresenta uma lista menor de critérios, que são
apresentados de forma integrada, sem a separação apresentada no edital anterior. A
única separação que nele se encontra divide os critérios referentes ao manual do
professor dos outros (cf. MEC, 2011, pp.73-76). Dessa forma, é possível perceber que
há no edital de 2014 a tentativa de construção de uma outra concepção de livro didático
e de aprendizado de línguas estrangeiras, priorizando uma abordagem integrada das
chamadas habilidades linguísticas, sem a separação de aspectos que atravessam seu
ensino, tais como o trabalho com questões (inter)culturais e questões relativas à
construção da cidadania.
Nesse comparativo, é interessante observar que o edital do PNLD 2011
apresenta um grupo de critérios específicos para tratar da aprendizagem em sala de aula,
como se pode ver abaixo:
Por sua vez, a aprendizagem na sala de aula é compreendida como
construída e reconstruída pelos alunos e professores, como resultado
de (auto-)observação, (auto-) análise e (auto-)avaliação. Para tanto, as
coleções de Língua Estrangeira devem:
apresentar instruções claras para as atividades;
maximizar as oportunidades de aprendizagem do aluno e
propiciar-lhe condições para ampliar suas habilidades e
competências de maneira autônoma, bem como sua
capacidade de auto-avaliação;
permitir ao aluno a construção e ampliação de um repertório de
estratégias de aprendizagem, relacionadas ao desenvolvimento
de diferentes habilidades e competências e ao alcance dos
objetivos de aprendizagem definidos tanto pelo currículo
escolar quanto pelo próprio aluno;
ser sensíveis às diferentes situações de ensino e aprendizagem
escolar em contextos educacionais urbanos e rurais;
reconhecer as identidades coletivas e individuais dos
participantes do processo de ensino e aprendizagem em
relação a classe, raça, gênero e outras marcas identitárias
(MEC, 2008, p.57).
Aqui, é possível notar uma visão de aprendizagem que dialoga muito fortemente
com a visão defendida nesta tese. Entretanto, não há uma integração concreta entre essa
248
visão de aprendizagem e os critérios apresentados para a avaliação do trabalho com as
diferentes habilidades, uma vez que, na apresentação desses critérios, o edital foca
muito mais nos conteúdos propostos pelos livros do que no desenvolvimento da
aprendizagem deles pelos alunos. No edital 2014, esses critérios são retirados e
apresenta-se apenas o seguinte tópico, muito mais focado na avaliação do que na
aprendizagem:
18. propõe atividades de avaliação e de autoavaliação que integrem os
diferentes aspectos que compõem os estudos da linguagem nesse nível
de ensino, buscando harmonizar conhecimentos linguístico-
discursivos e aspectos culturais relacionados à expressão e à
compreensão na língua estrangeira (MEC, 2011, p.75).
Dessa forma, mais uma vez, é possível notar o processo de apagamento, nos
documentos oficiais sobre o ensino de línguas estrangeiras, das discussões referentes
aos aspectos (meta)cognitivos da aprendizagem em sala de aula, em um movimento
contrário ao que é defendido nesta tese. A ausência de uma discussão (ou de uma
discussão aprofundada) sobre a cognição nos dois editais e suas consequências se
mostram mais explicitamente quando se observam os critérios apresentados,
especificamente em relação ao ensino da leitura. Como dito anteriormente, o edital do
PNLD 2011 apresenta critérios específicos para essa habilidade. São eles:
No componente curricular Língua Estrangeira é essencial que a
coletânea de textos seja composta por textos autênticos e originais,
advindos de suporte impresso ou digital, para que se possibilite ao
aprendiz qualidade de experiência em leitura, incluindo textos
multimodais. Logo, a diversidade de temas, de gêneros e de tipos
textuais, bem como a de contextos culturais e de circulação deve
estimular a leitura como processo de construção de sentido, ao
considerá-la uma situação efetiva de interação leitor-autor, tendo em
conta a constituição histórico-social e ideológica de ambos. Para tanto,
é necessário que:
o aluno tenha contato com textos de diferentes esferas –
científica, cotidiana, jornalística, jurídica, literária, publicitária etc. –
nas quais possa estreitar seu contato com diversas práticas de
linguagem, de estilo formal e informal, de modo a confrontar
diferentes recursos comunicativos;
as atividades respeitem as convenções e os modos de ler
constitutivos de diferentes gêneros e tipos textuais, bem como o
caráter polifônico dos textos e, portanto, a multiplicidade de vozes
nele presentes;
o processo de compreensão envolva atividades de pré-leitura e
pós-leitura; as atividades pressuponham a abordagem de diversas
estratégias de leitura, tais como localização de informações explícitas
no texto, levantamento de hipóteses, produção de inferência,
reconstrução de sentidos do texto pelo leitor, compreensão
global e detalhada do texto, dentre outras;
249
as atividades explorem a intertextualidade e estimulem alunos e
professores a buscarem textos e informações fora dos limites do livro
didático;
as atividades de interpretação de texto sejam estimuladas,
aceitando-se, dentro dos limites do que o próprio texto permite, a
pluralidade de interpretações;
o aluno seja formado como leitor reflexivo e crítico (MEC,
2008, p.57-58).
Assim, é possível observar que os critérios estão muito mais centrados nos textos
que serão apresentados aos alunos do que efetivamente com o trabalho que é feito com
eles. Desse modo, por exemplo, a partir de uma visão que toma o texto como pré-
construído antes da leitura a ser feita pelo aluno, acredita-se que os diferentes modos de
ler um texto estão nos gêneros e tipos dos textos e não nos objetivos postos pelo leitor.
De igual modo, acredita-se que os leitores reconstroem os sentidos postos nos textos e
não que são eles que, em integração com os textos, efetivamente os constroem.
Ao falar sobre as atividades de leitura, especificamente, o edital mistura, então,
diferentes habilidades e estratégias, de naturezas e propósitos diversos, sem que haja
qualquer problematização em relação a isso. Ainda que o documento ressalte a
necessidade de um trabalho com a pré e com a pós-leitura, o fato das diferentes
estratégias serem apresentadas desse modo, em uma lista organizada de forma aleatória
com um “dentre outras” ao final revela a pouca importância dada a isso pelo edital.
Assim, a formação de um leitor crítico e reflexivo aparece, entre os critérios, sem que se
estabeleça um diálogo entre as atividades e essa formação, como se não dependesse
delas para se concretizar. Cabe ainda ressaltar a estranheza que causa a inclusão, na
seção dedicada à “compreensão leitora”, de um critério que aponta a necessidade de que
os livros estimulem “as atividades de interpretação de texto”, como se a interpretação de
texto fosse apenas uma das atividades possíveis dentro do trabalho com a compreensão
escrita. Compreensão escrita e interpretação de texto não são tratadas, assim, como
expressões sinônimas. Um aspecto positivo nesse critério é o foco dado a “pluralidade
de interpretações”.
Como dito anteriormente, o edital de 2014 não faz a separação entre as
habilidades. Assim, os critérios que envolvem a leitura aparecem dispersos ao longo da
lista apresentada. Abaixo, apresentam-se os que mais diretamente se relacionam ao
trabalho com a leitura:
Para o componente curricular Língua Estrangeira Moderna
(Espanhol e Inglês), será observado se a obra:
250
1. reúne um conjunto de textos representativos das
comunidades falantes da língua estrangeira, com temas adequados aos
anos finais do ensino fundamental, que não veicule estereótipos nem
preconceitos em relação às culturas estrangeiras envolvidas, nem à
nossa própria em relação a elas;
2. seleciona textos que favoreçam o acesso à diversidade
cultural, social, étnica, etária e de gênero manifestada na língua
estrangeira, de modo a garantir a compreensão de que essa diversidade
é inerente à constituição de uma língua e a das comunidades que nela
se expressam;
3. contempla variedade de gêneros do discurso (orais e
escritos), concretizados por meio de linguagem verbal, não verbal ou
verbo-visual, caracterizadora de diferentes formas de expressão na
língua estrangeira e na língua nacional;
4. inclui textos que circulam no mundo social, oriundos de
diferentes esferas e suportes representativos das comunidades que se
manifestam na língua estrangeira;
5. discute relações de intertextualidades a partir de produções
expressas em língua estrangeira e língua nacional;
6. propõe atividades de leitura comprometidas com o
desenvolvimento da capacidade de reflexão crítica;
7. ressalta nas atividades de compreensão leitora o processo
que envolve atividades de pré-leitura, leitura e pós-leitura;
8. explora estratégias de leitura, tais como localização de
informações explícitas e implícitas no texto, levantamento de
hipóteses, produção de inferência, compreensão detalhada e global do
texto, dentre outras;
13. desenvolve atividades de leitura, escrita e oralidade, que
sejam capazes de integrar propósitos e finalidades da aprendizagem da
língua estrangeira (...) (MEC, 2011, p.74-75).
Apesar de haver diferenças importantes entre os dois editais no que se refere às
atividades de leitura, é possível notar que, de modo geral, eles apresentam uma forma de
lidar com a avaliação do trabalho com a leitura muito semelhante. No edital de 2014,
também há uma sequência de critérios dedicados à avaliação dos textos usados e uma
sequência de critérios dedicados às atividades propostas pelos livros. Nesse, porém,
parece dar-se um destaque um pouco maior às atividades do que no edital anterior.
Novamente, tratam-se os textos dentro de uma visão que tente à recognição, uma vez
que, sem que haja uma problematização em relação a como as atividades contribuem
para a construção de perspectivas de mundo pelos alunos, centraliza-se o papel do texto
como único responsável pelo acesso dos estudantes às visões de mundo privilegiadas
pelo edital. Não nego a fundamental relevância de que o edital exija dos livros um
trabalho cuidadoso no processo de escolha dos textos e na construção da relação entre
eles em suas unidades, entretanto, como o edital apresenta seus critérios, pode-se
251
entender que o aluno receberia passivamente as visões de mundo apresentadas pelos
textos lidos.
Dessa forma, a aprendizagem da / pela leitura parece naturalizar-se: acredita-se
que, a partir do momento em que o aluno entre em contato com os textos, ele aprende
visões de mundo, posto que, assim, tem acesso a elas. Isso fica mais claro no critério 2,
em que se levanta a possibilidade de que a seleção de textos garanta a compreensão de
alguma coisa. O critério 5 também não parece deixar claro se as “relações de
intertextualidades” são discutidas nas atividades e, portanto, são produzidas pelo leitor,
ou se encontram dadas nos próprios textos (“produções expressas em língua estrangeira
e língua nacional”). O edital parece não evidenciar a noção de que leitura é construção
de sentidos nunca previamente estabelecidos, e que, portanto, as atividades podem
contribuir de maneira significativa para esse processo de construção, principalmente em
contextos de aprendizagem como a sala de aula. Novamente, apresentam-se estratégias
de leituras de maneira pouco aprofundada e agrupadas como se fossem todas de
natureza semelhante, inclusive, igualmente ao edital de 2011, com a lista delas
finalizada com a expressão vaga “dentre outras”.
Entretanto, diferentemente do edital de 2011, esse já apresenta a noção de que
são as atividades de leitura que contribuem para o “desenvolvimento da capacidade de
reflexão crítica”. Além disso, novamente, ressalta-se a importância de um trabalho que
envolva atividades de pré-leitura, leitura e pós-leitura. O problema é que, também nesse
edital, não há integração entre esses dois critérios e entre eles e os anteriores, o que
dificulta a percepção de que não são os textos em si, mas as atividades feitas a partir
deles que contribuem para que os alunos se construam como leitores autônomos,
críticos, reflexivos, uma vez que nelas é que deve aparecer a possibilidade de
reconhecimento e valorização da potencialidade inventiva de alunos e professores na
construção de suas leituras. A avaliação dos livros parece, desse modo, não considerar a
qualidade do trabalho feito com as diferentes etapas da leitura (pré-leitura, leitura e pós-
leitura) e com as diferentes estratégias de leitura, sem que haja, por exemplo, uma
discussão sobre a natureza consciente ou inconsciente delas e o papel delas para os
diferentes objetivos que se pode ter em cada leitura. Desse modo, o edital parece
apontar apenas para que haja nos livros atividades que trabalhem com as etapas de
leitura e as estratégias citadas, mas não há qualquer referência a critérios qualitativos
que sirvam à avaliação desse trabalho.
252
Sobre os critérios postos para a avaliação do manual do professor, apresenta-se,
nos dois editais, critérios que tentam diminuir o papel normativo do manual em relação
à prática a ser desenvolvida pelo professor em sala de aula, o que é interessante discutir
aqui nesta seção, uma vez que esses critérios também demonstram uma tentativa dos
editais de romper com a lógica reprodutora a que o uso do livro didático geralmente
atende. Abaixo, apresentam-se os critérios que melhor explicitam essa perspectiva em
cada um dos editais:
Na avaliação das coleções de Língua Estrangeira Moderna, será
observado se o Manual do Professor:
• estimula o professor a continuar investindo em sua própria
aprendizagem, ampliando os seus conhecimentos da e sobre a língua
bem como sobre as múltiplas formas de desenvolver as suas atividades
de ensino;
• apresenta insumo lingüístico e informações culturais que propiciem a
expansão do conhecimento do professor acerca das culturas
vinculadas à língua estrangeira e do desenvolvimento de sua própria
competência lingüística, comunicativa e cultural;
• apresenta referências bibliográficas de qualidade, que orientem o
professor em relação a leituras complementares, tanto sobre os temas
que deve abordar em suas aulas quanto sobre questões relativas ao
processo de aprendizagem e às metodologias de ensino;
• apresenta sugestões de implementação das atividades, porém
evitando detalhamentos que possam impedir a criatividade e
autonomia do professor (MEC, 2008, p.62).
Na avaliação das obras do componente curricular Língua Estrangeira
Moderna (Espanhol e Inglês), será observado se o manual do
professor:
4. oferece referências suplementares (sítios de internet, livros, revistas,
filmes, outros materiais) que apoiem atividades propostas no livro do
aluno e na mídia que integra/compõe a coleção;
6. inclui informações que favoreçam a atividade do professor,
proporcionando-lhe condições de expandir seus conhecimentos acerca
da língua estrangeira e de traços culturais vinculados a comunidades
que se expressam por meio dessa língua;
9. elucida seu compromisso com a valorização dos saberes advindos
da experiência do professor, favorecendo a aproximação respeitosa
entre saberes teóricos e saberes práticos (MEC, 2011, pp.75-76).
Sobre essa questão, é interessante observar que o primeiro edital se preocupa
mais com o material que deve ser apresentado ao professor, focando no papel de
(in)formação teórica, linguística ou educacional, que o manual pode desempenhar. Já o
segundo edital foca na valorização do trabalho do professor, ressaltando a “atividade do
professor” e os “saberes advindos de sua experiência”. Além disso, em relação à
apresentação dos critérios de avaliação do manual do professor, um deles chama a
atenção em relação à discussão desta tese:
253
• oferece sugestões de respostas para as atividades propostas no livro
do aluno, sem, no entanto, restringi-las a uma única possibilidade,
sobretudo tendo em conta a diversidade lingüística e cultural, que
pode dar margem a diferentes soluções, e orientando o professor nesse
sentido (MEC, 2008, p.62).
7. sugere respostas às atividades propostas no livro do aluno, sem que
tenham caráter exclusivo nem restritivo, em especial quando se refira
a questões relacionadas à diversidade linguística e cultural expressa na
língua estrangeira (MEC, 2011, p.75).
Se por um lado, é de suma importância que os editais proponham que os livros
não apresentem respostas exclusivas e restritivas às suas atividades, por outro, é
estranho que o destaque se dê apenas “a questões relacionadas à diversidade linguística
e cultural expressa na língua estrangeira”. Dessa maneira, ainda que se instaure um
gesto histórico de abertura para a diversidade linguística, ao não fazer o mesmo para as
questões de leitura, o edital ignora o fato, por exemplo, de que as questões de
compreensão leitora devem ser, por tudo que foi discutido nos capítulos anteriores desta
tese, essencialmente de natureza aberta, principalmente, em uma proposta de ensino que
vise à formação crítica do aluno para o exercício da cidadania. Observando-se esse
critério, é possível notar que, segundo os editais, a diversidade de respostas às
atividades só é possível se ela já estiver reconhecidamente dada no mundo, dada na
língua aprendida. Nesse sentido, não se apresenta uma visão de aprendizagem que
permita uma diversidade de respostas em função dos alunos, que construiriam seus
saberes, de forma distribuída e inventiva.
Novamente, não nego aqui a importância desses editais para a transformação do
livro didático de língua espanhola produzido no Brasil, como se poderá ver, inclusive,
mais detalhadamente no próximo capítulo. Entretanto, ao não reconhecerem a
importância da discussão sobre os aspectos (meta)cognitivos da aprendizagem e
focarem apenas nos aspectos discursivos e comunicativos do ensino das línguas
estrangeiras, os editais, entre avanços e permanências, acabam por manter – e, como
objeto regulador, estimular – a lógica recognitiva que permeia as relações entre
professores e alunos e entre ambos e a construção do conhecimento em sala de aula. Se,
por um lado, há uma preocupação legítima de que o professor não seja um mero
reprodutor das práticas que se apresentam nos livros didáticos, por outro, não há a
mesma preocupação em relação à forma como os alunos vão construir sua
254
aprendizagem, o que se manifesta muito claramente nos critérios de avaliação das
atividades de leitura.
Na próxima seção, analiso, então, os manuais dos livros didáticos selecionados
para a pesquisa, entendendo que, de alguma maneira, eles trazem as concepções que
explicam (ou que pretendem explicar) as atividades propostas pelos livros e que, neles,
podem se explicitar visões de aprendizagem que completam o percurso regulador
traçado nesta tese: Parâmetros Curriculares Nacionais > Editais do PNLD > Livro
Didático. Dessa forma, abre-se o caminho para a análise que farei no capítulo seguinte
das atividades apresentadas nos livros didáticos selecionados.
6.3. Os Manuais do Professor
Nesta seção, busco apresentar as visões de aprendizagem e, especificamente, de
aprendizagem da leitura postas nos manuais do professor. O objetivo aqui não é exaltar
alguma(s) obra(s) em relação à(s) outra(s), mas entender como os livros didáticos
apresentam suas concepções para os professores e, em função do percurso regulador
postulado nesta tese, entender também as alterações que possam ter ocorrido nessas
concepções em função dos editais do PNLD. Aqui, entendo que os livros didáticos
como suportes para a construção de affordances são objetos permeados por concepções
diversas, culturalmente construídas, que podem alterar-se ao longo do tempo, inclusive,
por meio da ação de elementos superimpostos, como é o caso do PNLD. É importante
ressaltar também que esses livros já tiveram reedições lançadas e foram alterados em
muitos aspectos. Como nossa intenção é tratar de um processo histórico, apresento a
análise dos manuais dos livros na ordem em que eles foram produzidos.
6.3.1. “Arriba”
Começo, então, pelo livro “Arriba”. Em seu manual, logo nas primeiras palavras
apresentadas ao professor, o livro se assume como pensado em uma concepção
comunicativista de língua, o que, segundo ele, o diferenciaria dos outros livros
disponíveis no mercado: “La lengua, aquí, está pensada como instrumento de
comunicación, que permite al individuo articular sus pensamientos, ampliar su visión
del mundo y expresarse con claridad” (RINALDI e CALLEGARI, 2004, p.02).
255
Retomando Paraquett (2009a), é possível observar que, historicamente, a abordagem
comunicativa realmente não chegou a alcançar sua plenitude no ensino de espanhol,
uma vez que a abordagem gramatical sempre predominou sobre ela. A partir dessa
perspectiva, em seu objetivo, o livro busca associar a visão comunicativista com os
propósitos postos pelos PCN:
El objetivo principal de la colección ¡ARRIBA! es presentar a
los estudiantes de E/LE un vasto material que les permita un
acercamiento agradable a la lengua española y ofrecerles condiciones
para que, a lo largo de cuatro años de estudios, sean capaces de
comunicarse oralmente y por escrito, en situaciones cotidianas y
formales en dicha lengua.
Entendemos que aprender un idioma extranjero no significa
solamente conocer sus reglas gramaticales o un conjunto de palabras.
Así ¡ARRIBA! contempla también el desarrollo de otras
competencias, además de la gramatical, como la competencia
estratégica, la discursiva y sociocultural, de acuerdo con las
orientaciones de los Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
Es nuestro objetivo, aun, que el alumno se sienta el principal
responsable de su aprendizaje y que considere la lengua extranjera
como un vehículo no sólo de comunicación sino también de
interacción social, bajo una perspectiva sociointeraccionista del
lenguaje y de la construcción del conocimiento. Además, debe saber
reconocer y respetar la existencia del otro y de otras culturas,
identificándose como miembro de un mundo plurilingüe (RINALDI e
CALLEGARI, 2004, p.02).
É interessante observar que, apesar de citar os PCN, não há uma discussão
aprofundada que parta das mesmas bases postas nos parâmetros. Assim, o livro cita
termos que se encontram nos parâmetros, mas não desenvolvem esses termos. Além
disso, apresenta uma série de competências (estratégica, discursiva e sociocultural)
como se elas tivessem sido apresentadas pelos parâmetros, divididas dessa maneira, o
que não é verdade. Chama a atenção ainda como o livro busca articular uma visão de
aprendizagem que coloca o aluno como centro do processo a uma perspectiva
sociointeracionista, provavelmente, por ela ser apresentada nos PCN como a ideal para
o ensino de línguas estrangeiras.
Entretanto, ao falar sobre os tipos de atividades que compõem o livro, é possível
encontrar fragmentos que revelam uma concepção de aprendizagem aparentemente
baseada em “achismos”, com julgamentos sobre o processo de ensino-aprendizagem
não baseados em qualquer perspectiva teórica que os justifique. Assim, o livro
naturaliza uma visão de aprendizagem focada nos conteúdos e não no aluno. A ele
caberia exercer uma função passiva diante do que aprende, inclusive, não podendo ter
256
para si a sensação de que “já sabe o que vai fazer” nem podendo atuar livremente sem
que tenha passado por experiências controladas anteriormente.
Las presentamos [las actividades] en gran variedad, lo que hace que el
alumno se motive a realizarlas y no tenga la sensación a todo
momento de que ya sabrá que va a hacer. Buscamos favorecer la
curiosidad y la imaginación de los estudiantes por medio de prácticas
que, además de hacer que se trabaje el contenido linguístico, estimulan
su creatividad y sensibilidad. Sobre todo en lo gramatical, tuvimos el
cuidado de graduarlas, partiendo de las controladas, pasando por las
semicontroladas para sólo después ofrecer prácticas libres, cuando los
alumnos ya se sientan más seguros para actuar (RINALDI e
CALLEGARI, 2004, p.03).
Ao tratar da leitura, em uma seção intitulada “Cómo alcanzar esos objetivos”, os
autores ressaltam a preocupação que tiveram em apresentar textos diversos aos alunos,
com base no que, segundo eles, preconizam os PCN. Como se pode ver no fragmento a
seguir, explicita-se uma preocupação de que os textos sejam adequados à realidade dos
alunos e sejam apresentados a eles em ordem de complexidade e de profundidade.
Dessa forma, é possível notar uma visão de texto como produto, previamente
construído. Para esta coleção, os textos é que precisariam estar prontamente adequados
aos alunos e não o trabalho feito pelo livro que ajudaria os alunos a construírem suas
leituras:
Comprensión lectora: tuvimos la preocupación de presentar a los
alumnos varios tipos de textos a lo largo de la colección (narrativos,
descriptivos, poéticos, periodísticos, humorísticos, cuentos, fábulas,
publicidades, gráficos, cuadros, mapas, cómics, textos de internet
etc.), auténticos, adaptados y didácticamente elaborados, de manera
que el estudiante reciba input suficiente y de la calidad (...) los textos
escritos presentan gradualmente mayor complejidad y profundidad a
cada nueva unidad y nuevo volumen, Los temas elegidos, todos de
acuerdo con el eje de la unidad, forman parte de la realidad del
alumno (la escuela, la familia, los amigos etc.) para que él se
identifique y el aprendizaje le resulte realmente significativo
(RINALDI e CALLEGARI, 2004, pp.02-03).
Além disso, ao explicar o trabalho pretendido pela seção “Entretextos”,
especificamente pensada para o trabalho com a leitura, o manual também salienta a
importância de atividades que desenvolvam a pré-leitura, a leitura, e a pós-leitura.
Entretanto, como se pode notar na citação abaixo, isso aparece como uma sugestão para
o trabalho do professor, não como um compromisso da obra em relação ao trabalho que
desenvolverá com os textos:
Sugerimos que el trabajo con los textos pase por tres fases:
a) prelectura – exploración del título del texto, imágenes, autor,
257
vehículo de información y conocimiento previo de los alumnos sobre
el tema;
b) lectura – en silencio y/o voz alta, promueve el desarrollo de
aspectos fonéticos y la ampliación de vocabulario. Es interesante que
el alumno aprenda a inferir el significado de palabras desconocidas
por medio del contexto.
c) poslectura – solicitación de informaciones sobre el texto e
interpretaciones sobre su contenido (RINALDI e CALLEGARI, 2005,
p.05).
Interessante notar que, apesar de apresentar concepções equivocadas sobre as
três etapas de desenvolvimento da leitura, principalmente sobre a leitura – focada no
desenvolvimento da pronúncia e na ampliação do vocabulário –, já se nota uma
preocupação em que haja um trabalho que antecipe a leitura do texto e que a
complemente, ainda que o livro não os desenvolva, o que estimularia a realização de um
trabalho que integre os saberes dos alunos às informações do texto. De forma geral, é
possível notar, ao longo do manual, uma visão de aprendizagem não baseada em
abordagens que a respaldem. Assim, seus autores a tomam como reprodução de sentidos
previamente construídos e, mais especificamente, entendem a aprendizagem da leitura
tomando o texto como produto acabado. O texto deveria, então, ocupar o lugar central
nesse processo e não os alunos.
6.3.2. “Radix”
O livro “Radix”, ao menos na edição a que tivemos acesso, não apresenta, no
livro do professor, uma discussão teórica ou textos que apresentem os aspectos teórico-
metodológicos que embasam o trabalho desenvolvido ao longo das atividades propostas
para os alunos. Nele, consta-se apenas uma página dupla denominada “Apresentação da
obra”, em que as seções do livro são resumidamente apresentadas. São duas as seções
dedicadas à leitura: “Leyendo” e “Sobre el texto”.
Na apresentação da seção “Leyendo”, foca-se apenas nos textos que nela se
apresentam: “Lectura de textos, cuentos, poesias, artículos de periódicos, trechos de
novelas juveniles como Harry Potter y Manolito Gafotas, etc., para conocer un poco
más de la cultura española, hispanoamericana y otras.” (GARCÍA e HERNÁNDEZ,
2005, p.5). Já na apresentação da seção “Sobre el texto”, diz-se que seu foco está na
“lectura del texto y compreensión de la idea central y de las secundarias; relacionar el
tema a tu realidad; opinar y hacer críticas sobre una determinada situación, etc”
(GARCÍA e HERNÁNDEZ, 2005, p.4). Assim, é possível notar que o livro apresenta
duas visões de leitura diferentes: uma para cada seção.
258
Na primeira, a leitura é apresentada dentro de uma política de recognição, em
que o aluno apenas recebe informações do texto, sendo seu propósito apenas levá-lo ao
conhecimento de certas culturas. Na segunda, ao menos pelo que se propõe nessa
apresentação, o objetivo é que o aluno receba informações, mas também relacione-as à
sua realidade, opinando e fazendo críticas sobre elas. Dessa forma, é possível observar
que é objetivo dessa seção fazer com que os alunos integrem as informações recebidas
do texto aos seus saberes e experiências.
6.3.3. “Entérate”
Em seguida, analiso os livros aprovados na primeira edição do PNLD de Língua
Estrangeira, começando pelo “Entérate”. Logo em seu primeiro parágrafo, o livro
retoma os PCN para dizer que a aprendizagem de línguas estrangeiras é um direito de
todos e que a prática dessa aprendizagem deve tomar o diálogo como forma de mediar
conflitos. Além disso, aponta que o aprendizado das línguas estrangeiras pode ser uma
oportunidade de levar os alunos a aprenderem sobre si mesmos e sobre a pluralidade
cultural do mundo.
Ao apresentarem a metodologia com que a obra foi criada, as autoras do livro
dizem que optaram por uma metodologia que busca estratégias de comunicação
relacionadas com o léxico associado a um contexto e definem essas estratégias como
“actividades cognitivas realizadas en lengua extranjera y, si es necesario, en lengua
materna” (BRUNO, TONI e ARRUDA, 2009, p.4). Posteriormente, misturam-se
pressupostos derivados de abordagens comunicativas, discursivas e cognitivas, como se
fossem naturalmente complementares.
Um aspecto positivo da discussão apresentada nessa seção “Metodología” é a
valorização dos conhecimentos prévios do aluno, dividido, segundo o livro, em
“vivencias y sistémicos”, dando papel relevante à língua materna dos aprendizes. Além
disso, as autoras também trazem uma discussão importante sobre os trabalhos em grupo,
que poderiam se relacionar à discussão aqui trazida sobre a cognição distribuída.
Entretanto, ao focar apenas nos aspectos comportamentais da interação entre diferentes
alunos em sala de aula, os autores perdem a oportunidade de mostrar como
aprendizagens podem ser melhor construídas se bem construídas por mais de uma
pessoa.
259
Além disso, o livro trata, ainda nessa seção, como “actividades cognitivas
desafiadoras y motivadoras” os seguintes grupos de tarefas, que revelam uma concepção
de cognição difusa e mais baseada no senso comum do que em estudos da área:
deducción: involucran la comparación, el reconocimiento, la
observación y el establecimiento de relaciones entre ideas y cosas;
diversión: involucran el diseño, la pintura, la memorización y el
juego;
sistematización: involucran la formalización gramatical
comunicativa y textual (BRUNO, TONI e ARRUDA, 2009, p.05).
É interessante observar que esse é o único dos livros analisados para esta tese que
apresenta uma discussão, em uma seção específica, sobre o erro. Partindo da noção de
“Interlengua”, a seção “El error”, entretanto, foca apenas nos “erros linguísticos” do
aprendiz e trabalha com as noções de língua materna e língua meta. Assim, as autoras
dizem que o “erro” faz parte do processo de aprendizagem, mas tratam a aprendizagem
como a compreensão de uma língua pronta que se reduz às formas linguísticas. As
orientações sobre como o professor deve corrigir os alunos reforçam essa visão e a
discussão proposta se dedica muito mais ao âmbito afetivo da relação aluno-professor
do que aos processos de aprendizagem de uma língua estrangeira (cf. BRUNO, TONI e
ARRUDA, 2009, pp.08-10).
Ao tratar especificamente do trabalho com as chamadas “habilidades de
comprensión”, o manual dessa coleção aponta que, segundo os PCN, estão envolvidos
nos processos de compreensão fatores relativos ao processamento da informação,
cognitivos e sociais. A partir disso, separa cada um desses fatores, dizendo que o
processamento da informação envolve: a atenção, a percepção e a decodificação dos
sons e letras, a segmentação morfossintática, a atribuição do significado em nível
léxico-semântico e a integração de uma informação a outra. Os fatores cognitivos são
apontados como envolvendo a contribuição do leitor/ouvinte, a construção do
significado, formulando hipóteses com base no conhecimento prévio e a organização
textual. Os fatores sociais envolveriam a interação entre falante e ouvinte e escritor e
leitor (cf. BRUNO, TONI e ARRUDA, 2009, p.14).
Nessa distribuição, é possível ver novamente a confusão que se faz em relação ao
tratamento da cognição ao longo do manual. Sobre o que chamam de fatores cognitivos,
pode-se observar, por exemplo, que o livro separa a formulação de hipóteses das
contribuições do leitor e trata a construção do significado como se fosse algo também
260
separado dessas contribuições. A organização textual, por sua vez, que independe de
quem lê ou ouve, aparece como um fator cognitivo.
Especificamente, na seção dedicada à compreensão leitora, o manual prescreve:
Prelectura: elaboración de hipótesis antes de la actividad de
lectura. Se activan los conocimientos previos de los/as aprendices por
medio de preguntas sobre la visualización del texto: el título, autor,
figuras, dibujos, organización textual (aspectos que revelan de qué
género de texto se trata, como, por ejemplo, el encabezamiento de una
carta).
Lectura: a partir de lo visto en la prelectura, el/la profesor/a
podrá orientarlos/as a que observen qué es igual y diferente de su
lengua materna, de modo que esta conducta los/as ayude a encontrar
pistas contextuales para el entendimiento de aquello que no conocen y,
por otro lado, advertirlos/as de que no siempre es necesario entender
cada palabra o fragmento para comprender el significado general del
texto. Es más importante saber establecer relaciones, integrando una
información a outra.
Postlectura: para actividad de comprensión lectora, elaboramos
ejercicios variados (BRUNO, TONI e ARRUDA, 2009, p.14).
Assim, é possível notar que, no discurso posto no manual do professor,
apresenta-se uma concepção de leitura que poderia remeter à concepção integrativa
postulada nesta tese, uma vez que enfoca a interação entre o leitor, seus conhecimentos
e habilidades, e as informações do texto, em diferentes etapas de leitura. Entretanto,
mais uma vez, vemos que o trabalho de pré-leitura e de leitura é apresentado como
tarefa única do professor e trata-se a pós-leitura de maneira generalizada como todas as
atividades apresentadas no livro.
6.3.4. “Saludos”
O livro “Saludos”, aprovado no mesmo edital, diz, no parágrafo de abertura do
manual do professor, que seu objetivo é
aliar o estudo específico da língua espanhola – apreensão do
vocabulário, de construções sintáticas e de estruturas comunicativas –
ao aprendizado das manifestações culturais dos povos falantes do
idioma, visando a uma formação crítica dos educandos baseada no
respeito à diferença e na construção de uma sociedade de paz
(MARTIN, 2010, p.03).
A partir da postulação desse objetivo, é possível perceber uma visão de
aprendizagem de língua estrangeira reduzida a reproduções – tanto da língua reduzida a
suas estruturas como da cultura –, o que não está de acordo com a noção de formação
crítica apontada ao final do parágrafo. Essa visão é reforçada, ainda na “Apresentação”,
261
em que os verbos “aprender” e “apreender” são usados como sinônimos por diversas
vezes, como, por exemplo, no fragmento abaixo em que se explicitam os objetivos para
a inclusão dos textos na obra:
A coleção oferece uma grande variedade de textos autênticos, de
gêneros e origens diferentes, para que o aluno aprenda a perceber e a
utilizar o registro adequado às situações comunicativas. Essa
diversidade contribui também para a apreensão de outros modos de
sentir e ver o mundo. Considerando a faixa etária à qual se destina
cada um dos volumes, os textos escolhidos apresentam uma
progressão em sua complexidade formal. E, no que diz respeito ao
conteúdo, sempre que possível se optou por aqueles que propiciam a
reflexão (MARTIN, 2010, p.03).
Assim, por exemplo, o manual parte da ideia de que o aluno perceba e apreenda
coisas pelo seu contato com os textos, que ofereciam informações prontas a ele.
Acredita, inclusive que a reflexão do leitor é propiciada pelo texto, como se nele
estivesse as possibilidades de se refletir sobre sua leitura. Essa perspectiva se contrapõe
ao propósito apresentado para as atividades, focadas na compreensão dos alunos: “As
atividades convidam o aluno a expressar, oralmente ou por escrito, sua compreensão da
leitura dos textos escritos, da audição de diálogos e depoimentos e da observação de
imagens e ilustrações” (MARTIN, 2010, p.03).
Além disso, o livro aponta que adota uma concepção de linguagem e de
aprendizagem sociointeracionista. Assim, ele estaria superando as visões de linguagem
“estrutural” e “funcional”, o que é curioso, porque, normalmente, essas visões são
encaradas como opositivas, uma vez que uma se dedica à compreensão da forma e a
outra do uso linguístico. O livro prossegue trazendo três concepções de aprendizagem: a
behaviorista, a inatista e a sócio-histórica, aderindo à terceira na seção seguinte
“Princípios gerais orientadores da coleção”, em que se resgatam preceitos apresentados
pelos PCN.
Sobre a leitura, apresentada na seção “Compreensão e produção escrita”, o
manual inicia a discussão, fazendo uma crítica aos que acreditam que a leitura em
língua espanhola não precisaria ser trabalhada pela proximidade dela com a língua
portuguesa. Reconhecendo o papel dela no que chama de “sociedade da informação e do
conhecimento”, nesse início de século XXI, aponta que:
A aula de leitura em espanhol contribui, portanto, não só para a
aprendizagem da língua como também para o desenvolvimento
constitutivo do indivíduo – o leitor. No entanto, é preciso deixar de
lado a velha prática da leitura como decodificação de palavras ou
aquela visão de texto como mero pretexto para o ensino de aspectos
262
linguísticos, pois, assim entendido, o texto nada mais é do que uma
fonte de palavras ou conceitos gramaticais a serem depositados na
cabeça dos alunos, um modelo de educação bancária, como bem
definiu o professor Paulo Freire (...). Para o desenvolvimento da
habilidade de leitura em língua estrangeira, entendemos que a prática
problematizadora (Freire, 1979) proporciona ao aluno a possibilidade
de construir novos conhecimentos a partir daqueles já existentes, dos
quais faz uso em sua língua materna (MARTÍN, 2010, p.7).
Dessa maneira, o manual faz uma crítica a uma política de recognição, fortemente
manifestada nas práticas tradicionais de ensino de leitura. Essa visão aponta para uma
política de invenção já que reivindica o abandono da prática de leitura como simples
decodificação de palavras e o incentivo a uma prática problematizadora. Ela é
confirmada quando, logo em seguida, o manual, ainda baseado nos PCN, apresenta os
tipos de conhecimento que o aluno possui e que precisam ser usados nas atividades de
leitura: o conhecimento de mundo, o conhecimento sistêmico e o conhecimento textual.
E acrescenta:
Para que esses conhecimentos possam ser mobilizados é fundamental
que sejam estabelecidas ações conjuntas entre professor e alunos na
sala de aula, que poderão compartilhar seus saberes. Nesse sentido, na
coleção, o professor atua como mediador do conhecimento no
intercâmbio de experiências do grupo, criando o espaço para a
construção conjunta dos saberes (MARTÍN, 2010, p.8).
Se, por um lado, é interessante observar como o livro fomenta, em seu manual,
uma prática de ensino relacionada à proposta defendida nesta tese, por outro, novamente
o professor é colocado como o único responsável pela mediação (nesse caso, somente
entre os saberes dos alunos). O livro não toma essa responsabilidade para si a partir dos
propósitos que seriam apresentados para suas atividades. Essa visão do papel do livro
didático como simples meio de apresentação de textos aos alunos transparece também
na seção intitulada “A noção de gênero e o trabalho com textos orais e escritos”. Após
uma discussão sobre o conceito de gêneros e seu papel pedagógico, o manual do livro
aponta o seguinte:
A seleção dos textos (orais e escritos) desta coleção foi feita
considerando-se o texto no âmbito do gênero a que pertence. Assim,
ao longo dos quatro volumes encontramos textos os mais diversos que
colocam o aluno em contato com contextos de produção que fazem
parte de seu dia a dia. Essa variedade permite que o aluno tome
consciência das características típicas de determinados gêneros e
também lhe apresenta aqueles que emergiram no último século (...)
(MARTÍN, 2010, p.11).
263
Dessa forma, seu autor manifesta a ideia de que apenas a apresentação de uma
variedade de textos é capaz de levar o aluno a tomar consciência das características do
gênero, que, por sua vez, também são apresentadas como relevantes porque são dadas
pelos textos. Tal ideia manifesta uma concepção de aprendizagem como reprodução e,
consequentemente, de leitura como recepção passiva de informações, o que entra em
contradição com a ideia anteriormente apresentada de leitura como integração. Essa
contradição se expressa também na apresentação das seções que envolvem a leitura.
Sobre a seção “Así lo dices”, diz o manual que:
Nessa seção são propostos dois tipos de atividade. Utilizando as
informações e as estruturas linguísticas vistas imediatamente antes, na
seção Así se dice, os alunos devem responder, com frases geralmente
curtas, a perguntas diretas sobre os textos e, depois, criar pequenos
textos em que se falem de si mesmos (MARTÍN, 2010, p.11).
Já sobre a seção “Lee y reacciona”, diz o manual que seu principal objetivo é
propiciar ao aluno as ferramentas necessárias para ler, analisar e
interpretar textos em língua espanhola. Por meio da realização de
atividades de leitura e compreensão de textos de fontes e gêneros
diversos, o aluno é convidado a refletir sobre os mecanismos que
constroem o tecido discursivo e também sobre os aspectos históricos e
culturais inerentes às enunciações (MARTÍN, 2010, p.15).
Assim, enquanto, em uma seção, o texto é tomado como pretexto para a
aprendizagem de estruturas linguísticas, em outra, o texto aparece como instrumento
para a aprendizagem da leitura de forma ampla, o que inclui análise, interpretação e
reflexão, por exemplo.
6.3.5. “Ventana”
Em seguida, analiso o livro “Ventana”, produzido entre os dois editais do PNLD.
Segundo seus autores,
La colección se ha elaborado con el objetivo de servir de base para un
proceso valioso de aprendizaje de español (...) y se apoya en una
concepción de lengua extranjera (LE) como instrumento de
comunicación y conocimiento que permite al alumno insertarse en
otra comunidad discursiva, a fin de ampliar su visión de mundo y
exponer ideas con claridad y seguridad. (...) La colección ofrece a los
alumnos una diversidad de textos auténticos de diferentes géneros y
tipos, así como una variedad de propuestas de trabajo con esos textos,
a fin de insertarles en situaciones de uso de la lengua que sean lo más
reales posibles (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, p.02).
A partir desse fragmento, é interessante observar que, mesmo que aderindo a uma
concepção de língua como instrumento de comunicação – muito criticada por teóricos
264
sociointeracionistas –, esse livro é o primeiro que coloca o aluno (e não a língua) em
uma posição central, uma vez que é ela, a língua, que lhe serve para a ampliação de sua
visão de mundo e para a exposição de ideias. Além disso, também revela, de início, a
importância do trabalho realizado com os textos e não apenas da apresentação de uma
diversidade de textos.
Já na seção “Visión de lenguaje y de lengua”, o livro explica que sua visão de
língua é a “de una actividad social e interactiva situada (quienes usan la lengua
consideran el público al cual se dirigen o quién ha producido el enunciado), así que se
relacionan aspectos históricos y discursivos y se observa la lengua en su funcionamiento
social, cognitivo e histórico” (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, p.02). Ao citar
Bakhtin, o livro diz ainda que, nessa concepção, “el ser humano usa el lenguaje para
actuar en el contexto social, pues lengua y lenguaje son concebidos como formas de
acción social como espacios de interlocución que permiten la práctica de los más
diversos tipos de actos” (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, pp.02-03).
Ao tratar da concepção de avaliação proposta pelo livro e da organização do
material, os autores citam os PCN como base teórica, mais uma vez, reforçando o
percurso regulador postulado nesta tese, mesmo em uma obra que não apareceu como
aprovada nos dois editais do PNLD. Em relação ao trabalho com a leitura, é possível
notar que ele se dá em três seções: “¿Qué sabes?”, “!A empezar!” e “Contextos”.
A seção “¿Qué sabes?” tem como objetivo “determinar el conocimiento del
alumno sobre el tema planteado” (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, p.04), através de
um trabalho com perguntas de pré-leitura. Segundo os autores do livro, “es importante
haber relación entre los conocimientos previos que poseen los alumnos y los que
adquieren en el ambiente escolar” (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, p.04). Ainda que
a proposta foque apenas no tema dos textos, cabe observar que essa é a primeira obra
que propõe um trabalho sistematizado com o conhecimento prévio dos alunos,
fundamental para o desenvolvimento de uma leitura efetivamente integrativa e
adequado a uma concepção de cognição como processo distribuído.
A seção “A empezar”, segundo o manual, tem por finalidade desenvolver a
compreensão auditiva e leitora dos alunos, uma vez que, primeiramente o aluno escuta a
gravação e depois lê o texto escrito lido na gravação. Esses textos são apresentados
como sendo de complexidade gradual e representando gêneros diversos. O objetivo da
seção seria levar o aluno a desenvolver e empregar “estrategias de lectura que lo
265
llevarán a procesos de inferencia a partir del texto leído, construyendo la lectura a través
de su conocimiento textual y de mundo” (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, p.04).
Assim, observa-se na obra um discurso que aponta para uma visão integrativa da
leitura, chegando-se a apontar explicitamente processos e estratégias que os alunos
deverão utilizar para integrar-se ao texto lido. Apesar de crer na possibilidade de que os
textos possam ser organizados em uma complexidade gradual (e não o trabalho com
eles), a perspectiva propõe que os processos inferenciais do leitor ocupem uma posição
central no trabalho com a leitura. O manual chega a afirmar que a aprendizagem do
aluno se constrói pela “reorganización de los contenidos ya assimilados por el alumno
de acuerdo con los nuevos significados que aprende en el contexto escolar” (ALMEIDA
e AMENDOLA, 2011, p.04).
Em relação à seção “Contextos”, o livro explica que seu objetivo é ampliar o
trabalho com os textos na coleção e que, nela,
Se expone al alumno al reconocimiento de diferentes géneros
textuales, con actividades que unen comprensión lectora y análisis de
los componentes intrínsecos del tipo textual. La propuesta de esta
sección es la comprensión textual basada en el proceso de reflexión
sobre el género trabajado (ALMEIDA e AMENDOLA, 2011, p.05).
A mudança de perspectiva, ao menos na forma como o discurso se apresenta ao
professor fica explícita no fragmento anterior, uma vez que o aluno mais uma vez é
colocado como elemento central do processo de aprendizagem. Ainda que os diferentes
gêneros sejam colocados como reconhecidos, esse reconhecimento, que apontaria para
uma política de recognição, se dá pela compreensão leitora e pela análise do aluno.
Além disso, essa compreensão deve se dar pela reflexão sobre o gênero e não pelo
“acesso” ou pela “apreensão” como em outros livros. Além disso, é possível notar que o
livro toma também para si a responsabilidade de incentivar a integração entre aluno e
texto para si ao demonstrar que esse é o foco das seções que o compõem.
6.3.6. “Cercanía”
Passo, então, aos livros aprovados no segundo edital do PNLD, começando pelo
Cercanía (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012). Em seu manual do professor, o livro
se assume como seguindo uma abordagem sociodiscursiva não apenas para a aquisição
do espanhol como língua estrangeira, mas também para a construção da autonomia e do
pensamento crítico dos estudantes. Segundo seus autores, ele
266
parte del proyecto de conciliar el trabajo con los géneros textuales y el
tratamiento de los temas transversales (...), en conjunción con una
enseñanza de la lengua española que lleve a que los niños y
adolescentes se expresen de forma efectiva en español, insertándoles
en la cultura de los diversos países hispanohablantes, como forma de
establecer puentes interculturales y relaciones con su propia cultura
(COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.03).
Como meios para alcançar esses objetivos, os autores apontam que optaram por,
entre outras coisas: escolher temas que estabelecessem uma mediação entre o mundo
escolar e o mundo extraescolar; utilizar uma grande variedade de gêneros textuais das
mais diversas esferas de circulação; ensinar a língua como fonte de investigação e de
construção do conhecimento; trabalhar a língua em uso e o vocabulário em contexto (cf.
COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.03). Além disso, tomam a língua como
un sistema que se organiza en tres niveles: semántico (sentido y
significado), gramatical (estructuras lingüísticas) y discursivo
(dimensión social). No es un sistema fijo e inmutable, instrumento
listo y acabado para ser usado. No es simplemente un sistema de
signos, una gramática con reglas fijas, un código que sirve para
transmitir informaciones. (...) Estudiar la lengua extranjera significa
comprenderla en su funcionamiento social, en la interacción entre los
sujetos que construyen la comunicación, sus elecciones sintácticas,
semánticas, morfológicas, fonológicas y pragmáticas dentro de un
contexto discursivo (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.03).
Nota-se, assim, que as concepções anteriormente apresentadas circulam entre
diferentes vertentes teóricas, oscilando entre o foco na língua como forma e o foco na
língua como uso linguístico. O aluno aparece na investigação e na construção do
conhecimento, bem como na compreensão de seu funcionamento social, mas até aqui
ele ainda é alguém que aprende uma língua que é dada em seu uso, ainda que o próprio
manual negue essa concepção, o que também revela a oscilação comentada
anteriormente.
Com base nessa concepção, o manual apresenta sua concepção de gênero textual,
tipo textual e domínio discursivo. Entre outras ideias apresentadas, ele defende que, “en
el trabajo con las cuatro destrezas (leer, escribir, escuchar, hablar), se busca reflexionar
sobre las características de los géneros textuales” (COIMBRA, CHAVES e ALBA,
2012, p.04). Assim, nesse momento, propõe uma visão de ensino baseada na reflexão e
não na reprodução, o que é reforçado quando diz que “la responsabilidad de la escuela
en la sociedad actual es, mucho más que enseñar contenidos, formar ciudadanos éticos y
críticos para actuar en la sociedade” (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.04). Ao
267
tratar do papel do professor nesse processo, novamente, essa visão é retomada, dessa
vez, e pode até ser articulada à ideia de cognição distribuída:
El profesor se configura como un “articulador de voces”, un
dinamizador, un elemento de apoyo importantísimo en ese proceso de
construcción y reconstrucción de conocimiento. (...) Así, enseñar
exige investigación, busca indagació, componentes definidores de la
autonomia que dicen respeto a la capacidad de conocer e intervenir en
el mundo. El profesor intelectualmente autónomo y crítico es aquel
que tiene consciencia del no-acabamiento del ser humano, que analiza
el presente e interroga el futuro (COIMBRA, CHAVES e ALBA,
2012, p.05)
Essa perspectiva aparece ainda quando o manual explica que a produção do livro
buscou “conducir la enseñanza de la lengua extranjera de forma responsable, teniendo
en cuenta la identidad de los alumnos, su saber linguístico y sociodiscursivo, siendo
esse el principal punto de partida de la práctica educativa” (COIMBRA, CHAVES e
ALBA, 2012, p.05). Igualmente, quando recomenda que a prática em sala deve partir de
“una negociación en la construcción de sentido: los variados puntos de vista deben ser
llevados en cuenta y no se debe prejuzgar lo que es correcto o incorretcto, sino
desarrollar un diálogo, propiciar un intercambio de experiencias” (COIMBRA,
CHAVES e ALBA, 2012, p.07).
Ao tratar especificamente do trabalho com a leitura, os autores do livro indicam
que esse trabalho parte das seguintes concepções:
Leer es un proceso interactivo que involucra las inter-relaciones entre
autor, lector, texto y contexto;
El lector tiene un papel activo en la negociación de los sentidos;
En el proceso de lectura se involucran y se usan diferentes estrategias
(cognitivas, metacognitivas, afectivas, sociales) (COIMBRA,
CHAVES e ALBA, 2012, p.13).
São apresentados, assim, preceitos que se coadunam com a perspectiva
integrativa. Tais preceitos são reforçados ainda por uma citação de Cassany (2006, apud
COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.13)
el discurso no posee conocimiento en sí, sino que este emerge, al
entrar en contacto con los significados que aporta cada comunidad a
través del lector. El conocimiento es siempre cultural e ideológico; no
existen realidades absolutas u objetivas que puedan servir de
referencia. Tampoco es completo tomar los propósitos del autor como
fuente básica del significado (...).
Ao apresentar a estrutura da coleção e tratar novamente do trabalho com a leitura,
o manual apresenta a seção “Lectura” subdividida em três. A primeira, “Almacén de
268
ideas”, apresenta, segundo o manual, questões “de activación de conocimientos de
mundo y previos del alumno sobre el tema y sobre el género a leer y de formulación de
hipótesis a partir de la temática y/o del género y sus condiciones de producción”
(COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.18). Na segunda, “Red (con)textual”, “se
define el objetivo de lectura del alumno, es decir, se informa cuál es la función de
lectura a la hora de empezar a entrar en contacto con el texto. Además, se proponen
estrategias de lectura distintas” (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.18). Na
terceira, “Tejiendo la comprensión”, por fim,
se explora el texto a partir del tema, de su forma composicional, del
soporte y del contexto de circulación. Además, se proponen preguntas
que llevan el alumno a adquirir variadas habilidades de lectura:
comprensión global del texto, localización de información explícita,
producción de inferência, identificación de efectos de sentido,
comparación de informaciones, expresión de opiniones, etc.
(COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.18).
O livro aponta, então, para uma abordagem integrativa de leitura, explicitamente
posta na forma como suas seções se constroem. Dessa forma, a responsabilidade pelo
desenvolvimento desse tipo de trabalho não é tomada como sendo apenas do professor,
mas também do próprio material, que está feito para isso.
6.2.7. “Formación”
Por fim, chego ao livro “Formación”, que se assume como seguindo uma
concepção sociointeracionista de ensino-aprendizagem e de língua como prática de
interação social, saindo, assim, “do que se entende em geral como metodologia
comunicativa” (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.08). Ao longo de seu
manual do professor, políticas de invenção se manifestam em alguns momentos. Por
exemplo, quando os autores dizem que o que lhes interessa “não é apenas o processo
dessa relação num contexto de concordância e/ou discordância, mas também os novos
saberes que são gerados continuamente, obrigando-nos a reformulá-los e a reestruturar
crenças e valores” (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.08).
Além disso, esse é o primeiro livro que traz uma discussão efetiva, mesmo que
breve, sobre seu papel na interação que se estabelece em sala de aula, entendendo,
inclusive que ele não é pré-concebido, mas deve ser construído na interação. Assim, ele
se articula, de alguma maneira, a uma visão de aprendizagem que entende a cognição
como distribuída, uma vez que se coloca explicitamente como buscando um diálogo
269
entre ele e seu usuário, desejando que, “ao ser inserida manualmente a resposta, seja
construído um objeto de estimação por meio do qual as vozes das duas partes (autores e
leitores) tornem-se reais e companheiras” (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012,
pp.12-13).
Essa noção que remete à cognição distribuída também é posta em relação à
interação entre professores e alunos em sala de aula: “Este material didático foi
concebido como um conjunto de tarefas, cujo objetivo é a interação verbal entre
professor e alunos, entre alunos, entre a classe e a escola, e entre a escola e a
comunidade em geral, seja regional ou internacional (...). O ideal seria haver condições
de discutir entre todos o resultado dessas reflexões, com o auxílio do(a) professor(a)”
(VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.10). A partir dessa perspectiva, o manual
problematiza também as relações que se estabelecem no espaço da sala de aula, ao
priorizar “o enfoque à prática social de interação verbal numa situação formal de sala de
aula, sem que este último fator constituísse a perpetuação do modelo clássico de
professor e aluno em representação teatral” (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012,
p.11).
Em função disso, o manual também reforça a necessidade de um trabalho baseado
em objetivos preestabelecidos: “Isso nos faz assumir a importância das tarefas
realizadas com determinada finalidade, e não mais como meras obrigações escolares
para passar de ano” (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.11). Além disso,
ressalta também a importância de um trabalho baseado no conhecimento prévio dos
alunos:
É preciso esclarecer que o entrave maior é que se trata de um livro de
língua estrangeira e por isso exige um tratamento diferenciado em
relação à língua materna. Estamos apostando na capacidade de cada
aluno de desenvolver a sua estratégia de compreensão leitora e
auditiva, ajudado pelo(a) professor(a), que pode se valer da abertura
de cada unidade, na seção “Calentando el motor” para comentar com
seus alunos os aspectos que julgar necessários. Com o apoio do
conhecimento que, no momento em que é discutido se torna prévio, e
na experiência de vida escolar (são leitores em língua materna),
consideramos que o acesso às informações dadas em espanhol pode
ser facilitado (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.12).
Nesse sentido, é interessante observar que diversas vezes o livro ressalta a
importância do trabalho apoiado no uso da língua portuguesa em suas atividades: “no
caso de abordagem do espanhol por um falante brasileiro, o pior empecilho para a
compreensão leitora não é a língua em si, mas a falta de habilidade para enfrentar o
270
desconhecido e a inexperiência em empregar pistas adequadas” (VILLALBA,
GABORDO e MATA, 2012, p.13). Assim, há uma importante compreensão do papel
dos saberes dos alunos, entre os quais se inclui sua própria língua, no desenvolvimento
de sua aprendizagem. Também apresenta-se um reconhecimento do papel desse uso no
desenvolvimento de uma reflexão metalinguística pelos alunos, entretanto, esse
reconhecimento, como se pode ver abaixo, vem acompanhado da ideia de que línguas,
como sistemas homogêneos, representam visões de mundo, o que deve ser percebido
pelos alunos:
entendemos que essa aparente transgressão ajuda a praticar a reflexão
metalinguística e a afinar a percepção de que esses dois sistemas
linguísticos tão próximos, como é o caso do português do Brasil e do
castelhano hispano-americano, representam visões de mundo
diferentes (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.07).
Essa oscilação entre visões que remetem a políticas de recognição e visões que
remetem a políticas de invenção no discurso do manual do professor desse livro fica
evidente na apresentação dos objetivos do livro. A seguir, reproduzem-se tais objetivos,
estando destacados aqueles que remetem, de algum modo, a uma perspectiva inventiva e
distribuída de cognição. É interessante observar como esse é o único livro que apresenta
como objetivo o desenvolvimento de certas habilidades por parte dos alunos:
1. OBJETIVOS
1.1. GERAIS
Contribuir para a educação do jovem como indivíduo leiturizado
capaz de interagir adequadamente com o seu contexto, seguindo os
padrões de conduta estabelecidos historicamente pela sociedade
brasileira.
Contribuir para a aprendizagem da língua espanhola como prática
de interação intercultural com os falantes hispânicos para
desenvolver a capacidade de compreender as diferenças e as
semelhanças linguísticas e socioculturais.
Promover a compreensão de que a sociedade humana se manifesta
por meio de vários tipos de textos, puros ou mesclados, que
demandam respostas adequadas não só do ponto de vista
gramatical, mas principalmente do ponto de vista discursivo,
atendendo às peculiaridades pragmáticas e ideológicas.
Educar os jovens para a solidariedade e a generosidade mediante a
prática de tarefas colaborativas em que o compartilhamento
responsável de informações e experiências deve servir para
produzir os melhores resultados.
1.2. ESPECÍFICOS
Desenvolver a habilidade receptiva de mensagens em língua
espanhola mediante a prática de compreensão auditiva e leitora.
Desenvolver a habilidade produtiva de mensagens em língua
espanhola mediante a prática de produção oral e escrita.
271
Desenvolver as estratégias comunicativas, baseando-se no
conhecimento prévio de mundo e da língua materna, e
apoiando-se na colaboração de outros colegas.
Desenvolver a capacidade de estabelecer relações entre diferentes
visões de mundo e a forma de expressá-las.
Desenvolver a capacidade de usar os novos conhecimentos
linguísticos e sócio-culturais para gerar outros conhecimentos (VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.09).
O trabalho com a leitura, especificamente, é feito, segundo o manual, em diversas
seções. A primeira, “Calentando el motor”, busca “ativar o conhecimento prévio por
meio de comentários gerais em torno do tema a ser trabalhado. É um tipo de
aquecimento que aparece na página de abertura e que pode ser otimizado solicitando-se
aos alunos que busquem as informações pertinentes” (VILLALBA, GABORDO e
MATA, 2023, p.13). A seção “Puerta de acceso”, por sua vez, busca levar o aluno a
“entrar efetivamente no âmbito temático selecionado, cujos textos não são
necessariamente do mesmo gênero exposto no preâmbulo, os quais permitem a primeira
abordagem em termos de compreensão leitora” (VILLALBA, GABARDO e MATA,
2012, p.13), sendo “privilegiadas questões que levem à reflexão baseando-se
principalmente no texto cujas pistas devem ser reconhecidas e aproveitadas”
(VILLALBA, GABARDO e MATA, 2012, p.13).
Já a seção “Explorando el texto” busca “trabalhar a habilidade de lidar com
diferentes tipos de textos (…), relacionando as pistas extraverbais com as verbais”
(VILLALBA, GABORDO e MATA, 2012, p.13) e a seção “Interactuando com el
texto” busca “desenvolver atividades sugeridas pelo tema da unidade que permitam
estabelecer uma ponte entre os novos conhecimentos e a realidade circundante, muitas
vezes por meio de tarefas de pesquisa extraclasse” (VILLALBA, GABORDO e MATA,
2012, p. 14), relacionando-se diretamente com a visão interdisciplinar adotada pela
obra.
Dessa maneira, novamente, vemos mais uma obra cujo trabalho com a leitura está
concebido para o desenvolvimento de práticas integrativas, uma vez que a organização
das tarefas apresentadas aponta para a necessidade de que os alunos e os textos lidos se
integrem para que sejam realizadas.
272
6.2.8. Em resumo
Ao comparamos os manuais dos livros que compõem o corpus desta pesquisa,
torna-se importante ressaltar o papel fundamental que o PNLD desempenhou no
processo de transformação das concepções de trabalho com a leitura neles apresentados.
Nos dois livros produzidos anteriormente ao primeiro PNLD, temos manuais pouco
aprofundados e mais centrados no que denominam de abordagem comunicativista. A
preocupação dos autores sobre o trabalho com a leitura está mais focada na seleção de
textos e em sua “adequação aos alunos” do que na proposta efetiva de trabalho feita
com eles. O livro “Arriba” chega a apresentar uma preocupação com a necessidade de
um trabalho dividido em pré-leitura, leitura e pós-leitura, mas o atribui ao professor,
eximindo-se dessa responsabilidade.
Nos dois livros aprovados no primeiro edital do PNLD, apresenta-se uma
confusão teórica que acaba por construir uma confusão de concepções de leitura (e de
sua aprendizagem). Nota-se nesses livros uma mudança nos discursos em relação à
leitura, estando eles mais desenvolvidos e mais preocupados em explicitar uma
proximidade com o que se diz nos PCN. Entretanto, ao tratar da organização das
atividades de leitura e das concepções envolvidas na produção dessas atividades, os
discursos apontam para uma visão que, novamente, coloca apenas o texto como
elemento central. Assim, não há uma discussão efetiva sobre o aprendizado da leitura e
o texto aparece, na descrição das propostas de atividades, servindo tanto a políticas de
invenção como a políticas de recognição, com essas predominando sobre aquelas. Por
muitas vezes, a ideia de aprendizagem como reprodução, repetição ou recepção passiva
aparecem implicitamente nos manuais dessas obras.
Ao tratar das atividades de leitura, em ambos, novamente, a proposta de um
trabalho com as três etapas da leitura é tomada como responsabilidade do professor e
não das atividades apresentadas nos livros. Essa realidade só é alterada nos livros
produzidos após o primeiro edital do PNLD, começando pelo “Ventana”, que já traz, em
suas concepções, reflexões sobre o papel das atividades do livro no desenvolvimento do
aluno como leitor. Assim, uma preocupação com o desenvolvimento de uma leitura
integrativa e, consequentemente, de uma política de invenção no aprendizado da leitura
pelos alunos começa a aparecer mais concretamente nas obras a partir de então.
Dessa maneira, em diferentes graus, mesmo que não se concretizem nas
atividades a serem analisadas no próximo capítulo desta tese, todos os livros
273
desenvolvidos após os resultados do primeiro edital, em diferentes níveis, assumiram
para si a tarefa de estimular e auxiliar os alunos em sua integração com o material lido,
trabalhando a leitura em três etapas (pré-leitura, leitura e pós-leitura) e se organizando
para o desenvolvimento desse trabalho. Nos dois livros aprovados no segundo edital do
PNLD, essa assunção inclusive vem acompanhada de uma reflexão mais aprofundada
sobre o lugar do aluno, do livro e do professor na construção da aprendizagem em sala
de aula.
Entretanto, não se alteram por completo as visões de aprendizagem postas nos
discursos dos manuais do professor ao longo dos anos, o que, acontece, inclusive,
porque, como visto anteriormente, nem os próprios editais alteram essas concepções.
Assim, intercalam-se posicionamentos que remetem a políticas de invenção, que
aumentam ao longo do tempo, com posicionamentos que remetem a políticas de
reprodução, que, em muitos momentos, se apresentam de forma bastante forte.
A partir dessa percepção, buscando entender melhor esse processo de rupturas e
de permanências que atravessa a recente história do livro didático de espanhol para os
anos finais do ensino fundamental, no próximo capítulo, analiso, então, as atividades
concretamente apresentadas pelos livros, sabendo que elas podem corresponder ou não
ao discurso teórico apresentado nos manuais do professor. Na segunda parte do
capítulo, analiso as respostas dos alunos como forma de entender em que medida essa
história alterou as condições de inte(g)ração estabelecidas entre o aluno e o livro
didático.
274
CAPÍTULO 7: O LIVRO DIDÁTICO DE ESPANHOL E O ENSINO DA
LEITURA INTEGRATIVA: UMA BREVE E RECENTE HISTÓRIA
Nos capítulos anteriores, discuti o papel que o livro didático exerce na escola
brasileira. Como suporte para a construção de affordances utilizado para o
desenvolvimento de processos cognitivos de professores e alunos em sala de aula, tal
ferramenta didática explicita visões de aprendizagem e auxilia na construção de
políticas cognitivas. Tais políticas, por sua vez, são aprendidas pelos alunos, que, a
partir delas, se constroem como aprendizes. Sabendo desse importante papel que o livro
desempenha, principalmente, em situações de maior precariedade em relação ao
trabalho do professor e às oportunidades de aprendizagem do aluno, neste capítulo,
procuro traçar um panorama que leve em consideração: (a) como os livros ensinam os
alunos a se construírem como aprendizes da leitura em espanhol através das atividades
por eles propostas, e (b) como os alunos se integram a essas atividades, ou seja, como
eles participam desse processo de construção e como se colocam como leitores em
função das atividades apresentadas.
Obviamente, não há como analisar aqui como os livros didáticos são usados como
affordances ou como suportes para a construção de affordances em sala de aula, o que
dependeria de uma análise situada de práticas desenvolvidas por alunos e professores
em espaços específicos. Entretanto, é possível através da análise aqui apresentada
encontrar pistas para a compreensão de como os livros didáticos se apresentam a
professores e a alunos, guiando fortemente, como foi possível ver nos capítulos
anteriores, as formas como são utilizados. Nesse sentido, pode-se dizer que há uma
visão pretendida de uso dos livros didáticos na construção de affordances na sala de
aula, uma vez que tais materiais são feitos para cumprirem certos papéis no processo de
ensino-aprendizagem que se instituti nesse espaço. Tais papéis, como estou postulando
ao longo desta tese, se derivam da cadeia reguladora aqui descrita, que envolve os
documentos oficiais e é atravessada pela história do ensino de língua espanhola no
Brasil, pelas condições de trabalho do professor, pela forma como a escola brasileira, de
modo geral, enxerga a aprendizagem, entre outros fatores.
Entretanto, como a cognição é integrativa, distribuída, situada e pode ser
inventiva, esses usos pretendidos pelos livros não necessariamente são desenvolvidos
275
em sala de aula, uma vez que professores e alunos podem utilizá-los de maneiras
diversas. Tais usos acabam, inclusive, fazendo com que os mesmos livros didáticos se
tornem objetos diferentes, dependendo das políticas cognitivas que definam os
processos de integração que se dão entre eles, professores, alunos e outros objetos que
ocupem a sala de aula. Desse modo, há que se lembrar que o livro didático usado para
práticas recognitivas não é o mesmo que usado em práticas inventivas, ainda que, no
plano objeto, sejam o mesmo livro92
.
A partir disso, a análise que será apresentada a seguir torna-se importante por duas
razões. Em primeiro lugar, porque nos mostra como os livros didáticos propõem o
trabalho com a leitura, revelando, assim, essa visão pretendida de uso e que é relevante
de ser entendida, uma vez que, fomenta práticas em sala de aula. Em segundo lugar,
porque, entendendo o que se propõe para o trabalho com a leitura nos livros didáticos,
no breve percurso histórico abarcado por esta tese, é possível pensar novos modelos de
livros didáticos (ou de materiais produzidos por professores para o uso em suas salas de
aula) que proponham um trabalho que auxilie os alunos em seu desenvolvimento e o
professor na mediação desse processo. Além disso, é possível também, a partir dessa
análise, pensar em usos inventivos para o livro didático dentro e fora do espaço escolar.
Assim, os livros podem efetivamente ser usados na construção de affordances para o
ensino e para a aprendizagem do que estou chamando de leitura integrativa, na qual o
leitor se reconhece como parte importante do seu próprio desenvolvimento como leitor.
Não é objetivo desta análise desenvolver profundamente reflexões sobre esses
novos usos. Acredito, porém, que aqui se abrem portas para que elas sejam feitas
posteriormente. Adiante, apresento, então, como os livros didáticos selecionados para a
construção desta tese apresentam o ensino de leitura aos alunos, através da análise das
atividades por eles propostas.
92
Aqui, retomo a discussão realizada no capítulo 3 sobre políticas cognitivas e metacognição. Nesse
sentido, é possível que políticas cognitivas, no nível meta, alterem o modo como utilizamos os objetos
para o desenvolvimento de diferentes práticas de aprendizagem. A separação entre nível objeto e nível
meta se apresenta didaticamente para compreendermos analiticamente o processo. No uso efetivo dos
objetos, entretanto, essa separação não existe. Como apresentado no capítulo 2, conceptualização e
percepção são duas faces de uma mesma moeda. Só concebemos o que percebemos e só percebemos o
que concebemos.
276
7.1. Como os livros didáticos apresentam o ensino de leitura aos alunos?
Como explicado anteriormente, o primeiro foco de análise se encontra nos livros
didáticos selecionados para o desenvolvimento da pesquisa e em suas atividades de
leitura. Assim, em uma primeira subseção, apresento como as unidades dos livros são
organizadas e o lugar que o trabalho com o texto e com a leitura ocupa nelas. Essa
ordenação das atividades no livro e o lugar da atividade de leitura nas coleções
permitem entender as visões de aprendizagem em que os livros se assentam e o papel da
leitura dentro delas. Em seguida, analiso as visões de leitura predominantes nos livros a
partir da contagem e da categorização das questões de leitura apresentadas nos livros e
da análise detalhada de uma atividade de leitura de cada livro didático selecionado para
a pesquisa.
7.1.1. A organização das atividades e o lugar do texto
O primeiro aspecto considerado nessa análise é, então, a forma como as
atividades se organizam nos livros, a fim de que seja possível entender o lugar ocupado
pelos textos nos diferentes livros em relação à organização das sessões que os
constituem. Acredito também que a própria organização das sessões, por si, nos traz
informações sobre como o processo de ensino-aprendizagem da língua espanhola na
escola é visto por cada um dos livros e sobre como se hierarquizam (ou mesmo se
ignoram) os diferentes saberes envolvidos nesse processo.
A seguir, apresento, então, uma descrição de como as unidades e seções dos
livros selecionados para a pesquisa se organizam e do lugar ocupado pelos textos em
cada um deles. Em meio a essa descrição, busco fazer uma análise crítica, tentando
entender como visões de aprendizagem e de cognição e, especificamente, de
aprendizagem da leitura são apresentadas através da forma como as atividades
apresentadas nos livros foram organizadas e propostas aos alunos.
7.1.1.1. “Arriba”
O livro “Arriba” é composto de 9 unidades, cujos títulos representam o tema
desenvolvido em suas seções (“Conociendo el español”, “Y tú, ¿quién eres?”; “Dulce
hogar”, “Nuestra rotina”; “¿Y en tu tiempo libre?”; “Estoy perdido”; “¡Qué hambre!”;
277
“Moviéndonos”; “En el escaparate”). Cada unidade, por sua vez, é composta pelas
seguintes seções:
(a) Abertura – Essa seção é apresentada em uma página de abertura dupla, com o
título da unidade, uma imagem central, os objetivos da unidade (“En esta unidad
aprenderás”) e uma caixa lateral com questões de escuta de uma gravação (“De
entrada”). Em geral, essa gravação apresenta diálogos produzidos originalmente
para o livro. Na página seguinte, apresenta-se o texto que foi lido na gravação.
Em algumas unidades, o texto vem acompanhado de novas questões, neste
momento, já de leitura, uma vez que, segundo as orientações dadas pelo livro, o
aluno deve escutar a gravação novamente, acompanhando-a com a leitura do
texto.
(b) “Pide la palabra” – Essa seção se apresenta a partir da unidade 2, dedicando-se à
apresentação aos alunos de algumas “estruturas comunicativas”, como
saudações e despedidas, por exemplo. Nela, apresentam-se pequenos diálogos
também criados para o livro, que devem ser lidos pelos alunos enquanto escutam
a gravação de sua leitura. Apresentam-se também quadros para a observação das
estruturas enfocadas e exercícios de simulação de uso dessas estruturas.
(c) “En la punta de la lengua” – Seção dedicada ao trabalho com o vocabulário. Em
alguns momentos, são apresentadas listas de palavras e, em outros, textos (orais
e escritos) criados para o livro ou retirados de algum outro meio de divulgação.
Os exercícios dessa seção em geral trabalham com a língua no nível da palavra.
(d) “Descubriendo la gramática” – Essa seção tem como propósito o trabalho com o
que se costuma chamar de elementos gramaticais. Em todas as unidades,
juntamente à seção anterior, é a seção que ocupa o maior número de páginas.
Nela, apresentam-se gravações para que os alunos reproduzam seus conteúdos
(em especial, listas de palavras), além de frases descontextualizadas, tabelas ou
gravações e textos escritos com diálogos criados para o livro, para que se
exemplifiquem os tópicos trabalhados.
(e) “Bolsa de sonidos” – Nessa seção, apresentam-se travalínguas em espanhol e
gravações com a leitura desses travalínguas para que os alunos escutem e
repitam, a fim de que pratiquem a pronúncia de sons específicos.
(f) “Falsos amigos” – Apresentada a partir da unidade 2, essa seção se dedica ao
trabalho com palavras que, supostamente, podem confundir o aprendiz brasileiro
278
por serem semelhantes em sua forma a palavras com significados diferentes em
português. Esse trabalho normalmente é feito com frases e palavras
descontextualizadas e ilustrações.
(g) “Entretextos” – Essa seção, que ocupa no máximo uma página ao final do
capítulo, apresenta pequenos textos retirados de fontes diversas e questões de
leitura.
(h) “Momento de Recreo” – Página final, que não aparece em todas as unidades,
com jogos como forca, “tutti frutti”, tabuleiro, além de adivinhações e piadas e
atividades de desenho.
Com base nessa organização, é possível notar que o trabalho com palavras e
frases descontextualizadas, ou seja, com o vocabulário e com os chamados elementos
gramaticais não inseridos em qualquer tipo de texto, ocupam um espaço muito maior no
livro do que o trabalho com a leitura. Assim, o lugar do texto, na coleção, é ocupado, de
modo geral, por diálogos voltados para o trabalho com o vocabulário ou com elementos
gramaticais específicos e criados especialmente para o livro. Há também o trabalho com
textos de outros gêneros e finalidades, em alguns momentos, mas aqueles predominam,
sobremaneira, em relação a esses outros.
Além disso, mesmo os textos que não são diálogos, em geral, estão a serviço do
trabalho com o vocabulário ou com os elementos gramaticais selecionados para as
unidades. Os nomes das unidades, inclusive, já denunciam que sua organização e sua
seleção se dão em função do vocabulário e dessa gramática descontextualizada
selecionada previamente. A única seção que apresenta um trabalho que, de fato,
pretende desenvolver um trabalho sistematizado com a leitura é a “Entretextos”, que
ocupa a parte final das unidades e, em geral, não ultrapassa o tamanho de uma página do
livro.
Em resumo, mesmo depois de quase dez anos da publicação dos PCN, ainda era
possível encontrar no mercado brasileiro, um livro voltado para o trabalho escolar que
não tinha o texto como elemento central do processo de ensino e aprendizagem do
espanhol como língua estrangeira. Nessa obra, então, o texto, em sua maioria,
artificialmente produzido, é usado, prioritariamente como pretexto ou como forma de
ilustrar usos artificiais de palavras e expressões selecionadas pelas autoras do livro
previamente. Nessa organização, transparece uma visão de política de cognição como
279
recognição e se nota, assim, uma visão predominantemente gramaticalista de ensino de
língua, em que a língua, isolada de seus usos ou em usos artificialmente produzidos, é
tomada como elemento central e dado, sem qualquer possibilidade de in(ter)venção por
parte do aluno.
7.1.1.2. “Radix”
O livro “Radix” é composto de 8 unidades, chamadas de “módulos”, sendo duas
de revisão. Seus títulos, como no livro anterior, representam o tema do vocabulário
central a ser trabalhado na unidade (“Presentaciones”, “Los días de la semana”, “La
família”, “Nuestro cuerpo”, “El vestuario”, “La casa y sus partes”). Todas as unidades,
com exceção das duas de revisão, são compostas pelas seguintes seções:
(a) Abertura – Página de abertura dos módulos, em que se apresentam os
objetivos da unidade (“Aquí vas a aprender...”), fotografias que remetam ao
tema da unidade e algumas questões sobre as imagens ou sobre os temas
nelas representados (“¿Empezamos?”).
(b) Em seguida, na página ao lado, apresenta-se uma seção (na primeira unidade,
são duas), que varia de título segundo o tema trabalhado (“Saludos y
despedidas”, “Conociendo la familia”, “Buscando un piso”, etc.). Nessa
seção, apresenta-se um texto (dialogado ou não) que deve ser escutado e lido
pelo aluno e se remete ao tema da unidade. Em seguida, apresentam-se
questões de leitura/escuta sobre o texto em uma subseção intitulada “Sobre
el texto”. A essa subseção, acompanham-se outras, que variam de unidade
para unidade: “Pratica oralmente”, com frases que devem ser usadas pelos
alunos em situações criadas para o uso em sala de aula; “Amplía tu
vocabulario”, com o vocabulário a ser trabalhado na unidade; “Para que
sepas”, também com um trabalho dedicado ao vocabulário. Todas elas
remetem a expressões ou frases usadas no texto que abre a seção.
(c) “¿Quieres aprender? Gramática” – Essa seção está dedicada ao trabalho com
as chamadas estruturas gramaticais, apresentadas por meio de quadros e
tabelas e acompanhadas de uma subseção intitulada “Practica”, com
exercícios que, em geral, são frases com lacunas a serem preenchidas ou
frases a serem criadas pelos alunos com os tópicos gramaticais estudados.
(d) “¿Quieres aprender? Fonética” ou “¿Quieres aprender? Fonética y
Ortografía” – Essa seção se dedica ao trabalho com os sons da língua
280
espanhola e com suas representações na escrita. Apresentam-se palavras ou
frases que devem ser escutadas pelos alunos, regras de pronúncia ou de
ortografia e frases para que o aluno leia depois da escuta.
(e) “¿Entiendes lo que oyes?” – Seção dedicada a compreensão auditiva, na qual
os alunos devem escutar alguns diálogos produzidos originalmente para o
livro e completar frases com as palavras escutadas ou diálogos com as frases
escutadas.
(f) “¡Diviértete!” – Seção dedicada a atividades supostamente lúdicas, como
reprodução de travalínguas, atividades de leitura de quadrinhos, piadas, e
jogos como forca, quebra-cabeças.
(g) “Leyendo” – Essa é a seção dedicada exclusivamente à leitura. Nela, são
apresentados textos essencialmente literários acompanhados de questões de
leitura a serem respondidas pelos alunos. Interessante observar como o
layout da seção é diferente das outras, inclusive a cor da página em que se
encontra. Essa diferença pode indicar que a seção se apresenta como um
material extra de finalização da unidade.
(h) Além disso, em diversas seções, apresentam-se caixas intituladas “¿Sabías
que...?”, com exemplos de variação linguística ou “curiosidades” sobre os
tópicos trabalhados e “¡Ojo!”, com algum ponto que as autoras do livro
consideram que deva ser focado.
(i) As unidades de revisão são formadas por uma seção de abertura
(“¿Empezamos?”) na qual os alunos devem conversar sobre as imagens
apresentadas; uma seção de escuta acompanhada de perguntas a serem
respondidas pelos alunos; uma seção de revisão dos tópicos gramaticais; e
uma seção final com a leitura de piadas.
Sobre o lugar ocupado pelo texto nesse livro, então, pode-se notar que, na
verdade, são dois, de naturezas diferentes. O primeiro é a abertura da unidade, através
de textos criados para o livro com a função de trabalhar o vocabulário e o tema da
unidade. O segundo é a seção “Leyendo”, em que textos literários são apresentados
acompanhados de questões de leitura. Ambas as seções, em todos os módulos, não
chegam a ultrapassar duas páginas de tamanho. Cabe dizer também que, em outras
seções, aparecem outros textos, como também diálogos feitos para o livro, ou poemas e
281
tirinhas em quadrinhos retirados de outras fontes. Entretanto, a leitura desses textos não
é sistematizada, uma vez que sua função é apenas exemplificar os tópicos lexicais ou
gramaticais trabalhados. Novamente, os títulos das unidades denunciam que a
organização do livro e, consequentemente, a seleção dos textos se dá em função dos
tópicos gramaticais e de vocabulário selecionados previamente e não o contrário – ou
seja, o vocabulário e a gramática sendo trabalhada em função dos textos.
A partir dessa organização, muito próxima à do livro anterior, pode-se observar
que há uma forma de conceber o aprendizado de línguas estrangeiras que se repete. Tal
forma é marcada por um trabalho que prioriza as palavras, as expressões e as frases
descontextualizadas, a partir da crença de que o domínio da língua viria do menor nível
para o maior nível. Não à toa os tópicos e temas trabalhados nos dois livros são muito
semelhantes. A abordagem desses tópicos e temas também é muito semelhante: com
base na apresentação de quadros, tabelas e textos produzidos para os livros com
palavras, expressões e frases destacadas e exercícios que solicitam, de diferentes modos,
a repetição desses elementos.
O texto, novamente em sua maioria artificialmente produzido, é usado, como
pretexto ou como ilustração de usos artificiais de palavras e expressões selecionadas
pelas autoras do livro. Vê-se assim o cruzamento de uma perspectiva behaviorista com
uma proposta gramaticalista, disfarçada de comunicativa, apesar de os dois livros
citarem os PCN como documento norteador. Nesse cruzamento, o texto, se não é
pretexto ou ilustração, é elemento extra no processo de ensino-aprendizagem, ocupando
espaço semelhante ao das supostas atividades lúdicas.
Nessas duas obras, anteriores ao PNLD, manifesta-se uma organização que
aponta para uma visão de aprendizagem como repetição do já dito e a interação é posta
como momento de reprodução. Segue-se um modelo que fora, durante muito tempo,
predominante nos chamados cursos livres de línguas. Dessa forma, pode-se notar que a
criação dos PCN, por si, não foi capaz de alterar, mesmo quase dez anos depois de sua
publicação, a forma como a aprendizagem de línguas estrangeiras era vista pelo ensino
de espanhol na escola brasileira. A partir dos próximos livros, pode-se observar se,
então, a entrada dessa disciplina no PNLD foi capaz de alterar essa situação.
7.1.1.3. “Entérate”
O livro “Entérate” é composto de 8 unidades de conteúdos, além de apresentar
ao final um “Apéndice”, com exercícios complementares de compreensão auditiva, de
282
prática de pronúncia, passatempos e uma seção de leitura com uma narrativa maior
(“Celebrar el cumpleaños en España”). Os títulos das unidades, como nos livros
anteriores, também fazem referência aos temas trabalhados nos vocabulários das
unidades e às estruturas gramaticais enfocadas nelas (“¡Bienvenidos/as al curso de
español!”, “¡Qué bien se está entre amigos!”, “Así es donde vivo”, “Hogar, dulce
hogar”, “Más vale prevenir que curar”; “Cada cosa a su tiempo”, “Rutina, rutina,
rutina”, “Vamos a celebrar...”). Cada uma dessas unidades é subdivida em unidades
menores, que tratam de temas específicos relativos ao tema maior das unidades que as
unem. Por exemplo, a unidade 2 – “¡Qué bien se está entre amigos!” – é composta pelas
subunidades “Nos encontramos en el aula...”, “Los/as compañeros/as del “cole”,
“Los/as nuevos/as amigos/as”.
Entre essas subunidades, aparece, em diversos momentos, mas de forma não
necessariamente regular, uma subunidade chamada “Gramática”. Essa subunidade se
constrói de diferentes maneiras ao longo do livro, dedicando-se essencialmente ao
trabalho com um tópico gramatical específico. Esse tópico, em geral, é apresentado por
meio de tabelas, regras breves e/ou exemplos de frases. Dentro dela, podem aparecer
exercícios de diferentes tipos.
Com exceção da primeira unidade, que é uma unidade de apresentação composta
por um jogo de sete erros, um mapa-múndi com informações sobre diversos países, um
jogo de perguntas e respostas, e uma questão final (“Estudio español porque...”), as
unidades (e subunidades, inclusive as chamadas de “Gramática”) do livro são compostas
pelas seguintes seções, que se apresentam de forma variada, tanto em relação à ordem
como em relação à quantidade:
(a) Abertura – Toda unidade abre com algum tipo de jogo: jogo dos sete erros,
caça-palavras, achar os intrusos, labirinto, palavras cruzadas, etc.
(b) Hablar – As seções dedicadas ao trabalho com a fala apresentam atividades
de tipos variados, tais como, por exemplo, organizar a lista dos alunos da
turma em ordem alfabética, elaborar diálogos ou discutir com colegas a
partir de questões referentes à temática de um texto lido. Para realizar
algumas dessas tarefas, o livro oferece possibilidades de perguntas e
respostas que podem ser usadas pelos alunos.
(c) “Leer” – Na seção de leitura, aparecem textos criados especialmente para o
livro, como uma lista de chamada de uma turma de uma escola “hispana”,
283
anúncios de busca de amizades, caixas de texto com os dias da semana etc.,
ou textos literários escritos originalmente em outros suportes e incluídos no
livro especificamente para o trabalho com a leitura ou para o trabalho
conjunto com outras habilidades, a partir de atividades diversas. Esses textos
são acompanhados de algumas questões a serem respondidas pelos alunos.
(d) “Escribir” – Esta seção apresenta tarefas variadas com diferentes atividades
consideradas pelo livro como tarefas de escrita. Entre elas, podemos citar:
colocar palavras em ordem alfabética, completar ou escrever frases com
elementos gramaticais anteriormente apresentados, criar anúncios buscando
amigos, completar um jogo de palavras cruzadas, organizar uma agenda das
atividades dos próximos dias.
(e) “Escuchar” – Dedicada à compreensão oral, trabalha com a escuta da leitura
em voz alta de textos escritos originalmente em outros suportes ou textos
dialogados criados especialmente para o livro. Esses textos são
acompanhados de exercícios de completar lacunas com letras ou palavras
escutadas, exercícios de verdadeiro ou falso, questões de múltipla escolha,
etc. Alguns textos aparecem transcritos e são usados também na seção
“leer”. Além disso, também são inseridas nessa seção frases que devem ser
escutadas para que se completem as lacunas com elementos gramaticais
anteriormente apresentados ou mesmo palavras para que os alunos as
reconheçam.
(f) “Taller de creación” – Apresentam-se ao final de cada duas unidades, com
tarefas de produção a serem desenvolvidas por grupos de alunos ou pela
turma inteira. Buscam levar os alunos a produzirem: um mural ou cartaz com
nacionalidades, um trabalho sobre uma família e seu entorno, a confecção de
um convite.
Nessa obra, já é possível notar um momento de transição. O livro não mais se
organiza como os anteriores, sendo o primeiro livro a se dividir em seções por
habilidades trabalhadas (leitura, fala, escrita e escuta). Os textos apresentados já são de
natureza diversa, porém o lugar ocupado por eles se mostra de um modo difuso. As
atividades de escuta, de leitura e de escrita permeiam todo o livro, o que poderia levar à
conclusão de que os textos também permeiam toda a obra. Entretanto, em meio a textos
284
literários ou mesmo a textos criados especialmente para o livro, aparecem frases soltas e
descontextualizadas, pequenos parágrafos que não chegam a constituir um texto, listas
de palavras, etc. Todos ocupando os mesmos espaços, a depender das unidades em que
se encontram.
Em geral, mesmo os textos literários são apresentados como meio para que os
alunos completem lacunas a partir do que escutam nas gravações ou para a prática dos
elementos lexicais e gramaticais estudados. Interessante observar que a maior parte dos
textos literários incluídos no livro se encontra ao final, na unidade denominada de
“Apéndice”, e, dentro dela, na seção “Ejercicios complementarios de Comprensión
Auditiva”. Ao final do livro, aparece ainda um texto extra – um conto de 10 páginas,
aparentemente produzido para fins didáticos, intitulado “Celebrar el cumpleaños em
España”, acompanhado de uma chamada “Actividades postlectura”.
Dessa forma, se, por um lado, é importante observar que o contato do aluno com
textos não artificiais e de diferentes gêneros é maior nesse livro do que nos anteriores,
por outro, é preciso ressaltar que esse contato ainda se dá dentro do mesmo modelo de
ensino e dentro da mesma concepção de aprendizagem. Esses textos ainda são
selecionados em função dos elementos gramaticais e do vocabulário a serem
trabalhados nas unidades. O trabalho com esses elementos e com o vocabulário, apesar
de mais disperso ao longo das unidades, ainda é baseado no mesmo modelo de repetição
dos itens focalizados pelas autoras da coleção. Inclusive, os temas e tópicos lexicais e
gramaticais trabalhados também são muito próximos dos selecionados pelos livros
anteriores. Mantém-se, portanto, uma organização que ainda remete a políticas
recognitivas, em um ensino predominantemente gramaticalista, centrado nos elementos
linguísticos selecionados para o trabalho nas unidades do livro.
7.1.1.4. “Saludos”
O livro “Saludos” é composto por 8 unidades, um glossário e 4 unidades extra
apresentadas ao final e intituladas “Actividades de lectura”. Os títulos das unidades,
como nos livros anteriores, fazem referência aos tópicos lexicais e/ou gramaticais
trabalhados, de forma até mais restrita do que no livro anterior (“Hola, ¿qué tal?”,
“¿Cómo somos?”, “Mi família es así”, “A la escuela”, “A la mesa”, “Me gustan los
animales”, “Todos los días pasa lo mismo”, “¿Qué está haciendo la gente?”).
Diferentemente do livro “¡Entérate!”, também aprovado no mesmo edital, todas as
285
unidades desse livro se apresentam de uma mesma maneira, no que se refere à
organização e à apresentação de suas seções aos alunos. São elas:
(a) “Así se dice” – Essa é a seção de abertura das unidades. Ela se apresenta em
página dupla, com fotos de crianças ao fundo e pequenos textos, em primeira
pessoa, em que essas crianças se apresentam em relação ao tema da unidade.
Os textos são lidos em uma gravação que deve ser escutada pelos alunos.
(b) “Así lo dices” – Seção dedicada ao trabalho com a leitura/escuta dos textos
anteriormente apresentados, com questões a serem respondidas
discursivamente pelos alunos. Ao final dessa sequência de questões, inclui-
se uma que solicita ao aluno a produção de um pequeno texto, a partir do
modelo lido. Podem ser incluídas nessa seção também exercícios de
vocabulário, a partir dos textos apresentados na abertura da unidade.
(c) “Charla” – Seção dedicada ao trabalho com a compreensão e com a
produção oral. Os alunos devem escutar um diálogo criado especialmente
para o livro e responder a questões de escuta. Apresenta-se o diálogo
transcrito para que o aluno complete as lacunas com as palavras que estão
faltando. Podem apresentar-se questões de leitura/escuta ou não. Também se
incluem exercícios para que os alunos pratiquem o uso de expressões
apresentadas no livro ou a discussão sobre questões relativas à temática da
unidade.
(d) “Y canta” – Essa seção aparece em apenas duas unidades do livro. Nela,
apresentam-se canções compostas especialmente para o livro e que devem
ser escutadas pelos alunos.
(e) “Como se usa” – Essa é a seção dedicada ao trabalho com os tópicos
gramaticais escolhidos para serem desenvolvidos nas unidades. Todas se
iniciam com uma tirinha ou charge na qual se exemplifica o tópico (ou os
tópicos) trabalhado na sessão. Depois da tirinha ou da charge, podem
aparecer ou não algumas questões de leitura a serem respondidas oralmente
com foco no tópico gramatical exemplificado. Em seguida, apresentam-se
questões para que os alunos pratiquem o uso dos elementos estudados, em
geral, exercícios de relacionar itens, formar frases e/ou de completar lacunas.
Também se incluem questões em que os alunos são levados a produzirem
pequenos parágrafos. Os elementos gramaticais são sistematizados em
286
tabelas e quadros dispostos nas laterais das páginas. Charges, tirinhas e
pequenos textos de outros gêneros também podem aparecer ao longo dessa
seção, como base para exercícios de sistematização dos tópicos gramaticais
estudados.
(f) “Algo más” – Nessa seção, são trabalhados temas diversos, a partir de textos
criados para o livro ou anteriormente publicados em outros suportes. Entre
esses temas, encontram-se questões de pronúncia, em especial, escuta da
leitura de textos escritos, repetição de palavras e leitura em voz alta, além de
charges, jogos de lógica, adivinhações.
(g) “Lee y reacciona” – Nesta seção, são apresentados alguns textos adaptados
de outras fontes, acompanhados de questões de leitura de diversos tipos e
atividades de produção de pequenos textos a partir do que foi lido.
(h) “Proyecto” – A cada duas unidades, é apresentado um projeto, com
diferentes atividades: um festival de poesia, um álbum de fotos, um livro de
receitas e transformar uma fábula em uma tirinha.
(i) “Repaso” – A cada duas unidades, apresentam-se exercícios de revisão de
diferentes tipos: relacionar itens, caça-palavras, palavras cruzadas, completar
tabelas de conjugação, escrever ou produzir oralmente frases e pequenos
textos, completar lacunas, adivinhações.
A partir da análise da obra e da descrição apresentada anteriormente, podemos
observar que o texto ocupa lugar central em algumas seções do livro. Nas seções “Así se
dice” / “Así lo dices”, na seção “Charla” e na seção “Y canta” se apresentam textos
criados especialmente para o livro. Porém, muitos deles novamente servem basicamente
para o aprendizado de determinadas estruturas linguísticas, que seriam o foco das
unidades. A seção “Lee y reacciona” também tem o texto como elemento central. Nela,
se incluem textos extraídos de outros suportes, adaptados ou não e se apresenta um
trabalho mais sistematizado com a leitura. Em outros momentos, os textos também se
fazem presente, mas são mais explicitamente postos para exemplificar certos usos
gramaticais, lexicais e/ou de pronúncia. Ao final do livro, aparecem quatro apêndices
denominados “Actividades de lectura”, em que se apresentam textos e atividades sobre
esses textos.
287
Mais uma vez, é possível notar uma proposta de coleção na qual o aluno pode ter
uma relação maior com textos variados, como preconizam os PCN e o edital do PNLD,
mas essa relação continua acontecendo dentro do mesmo modelo de ensino-
aprendizagem e manifesta a mesma política cognitiva. Os textos prosseguem, em sua
maior parte, ocupando o lugar de pretextos para a apresentação de elementos lexicais e
gramaticais. O trabalho com esses elementos continua também baseando-se no modelo
da repetição. Os temas e tópicos lexicais e gramaticais trabalhados também continuam
muito próximos dos selecionados pelos livros anteriores. A seção dedicada à leitura de
textos não artificialmente produzidos para o livro também continua ocupando poucas
páginas. No caso desse livro, especificamente, é interessante observar como a leitura
não aparece nos momentos de revisão, o que demonstra que o foco central do trabalho
do livro não é esse.
Dessa forma, observando as duas coleções aprovadas no PNLD 2011, é possível
notar que o texto entra de forma mais presente nos livros didáticos, a partir da entrada
das línguas estrangeiras no PNLD. Entretanto, o cruzamento de uma perspectiva
behaviorista com um ensino gramaticalista continua prevalecendo, mesmo que,
novamente, os PCN sejam citados como documento norteador. Assim, o texto deixa de
ser tratado como um elemento extra no processo de processo de ensino-aprendizagem,
mas seu lugar central ainda é de pretexto para o ensino de gramática ou de vocabulário.
O primeiro edital do PNLD, portanto, conseguiu mudar quantitativamente o
trabalho com os textos, mas não qualitativamente a estrutura dos livros e o lugar do
texto dentro dela. Tampouco conseguiu mudar a visão de aprendizagem proposta por
esses materiais: continua-se acreditando que a aprendizagem se dá pela repetição e a
interação continua sendo colocada como momento de reprodução.
Assim, a perspectiva escolar de trabalho com a língua espanhola, nesse edital,
ainda não conseguiu se livrar da tradição das práticas desenvolvidas nas décadas
anteriores, como se pôde ver no histórico apresentado no capítulo 3. O ensino
prosseguiu sendo o mesmo do século passado. Nesse sentido, cabe destacar que tanto os
PCN como os editais do PNLD apresentam concepções que oscilam entre uma
perspectiva recognitiva de aprendizagem e uma perspectiva inventiva, predominando
muito mais aquela do que essa. Também cabe ressaltar, mesmo assim, a decepção
encontrada pelos avaliadores do primeiro edital em relação às obras inscritas, como
apontou González (2010).
288
7.1.1.5. “Ventana”
O livro “Ventana”, como apontado anteriormente, não aparece na lista dos
aprovados em nenhum dos dois editais envolvidos nesta tese. Ele é composto de 8
unidades, sendo duas de “Repaso”. Além dessas unidades, apresentam-se ainda outras
duas intituladas “Proyecto interdisciplinario”, um “Cuaderno de ejercicios” e um de
“Apéndices”. Os títulos das unidades, como nos livros anteriormente analisados, fazem
referência aos temas nelas trabalhados e apresentam uma relação direta com os
conteúdos lexicais focalizados (“El mundo habla español”, “Hola, ¿qué tal?”, “Hora de
aprender”, “Lazos de família”, “Cómo somos”, “Mi casa, tu casa”). Todas as unidades
desse livro se organizam segundo um mesmo padrão, com as mesmas seções
organizadas de uma mesma maneira, inclusive em relação ao tamanho e número de
páginas que ocupam em cada unidade. São elas:
(a) “Abertura” – A abertura da unidade se dá em página dupla com uma
grande imagem, que se relaciona ao seu tema, além de três subseções: “Serás
capaz de...”, que apresenta os objetivos da unidade; “¿Qué sabes?”, em que se
propõem questões sobre os conhecimentos prévios dos alunos acerca do tema
tratado ao longo da unidade; “A empezar”, na qual os alunos devem ouvir uma
gravação (que podem ser diálogos produzidos especialmente para o livro ou
textos de gêneros diversos retirados da internet e/ou de outras fontes) e
responder a questões sobre essa gravação.
(b) Logo após a página dupla de abertura, apresenta-se a versão escrita do
texto ouvido acompanhada de questões de leitura.
(c) “Cajón de letras” – Sessão dedicada ao trabalho com o vocabulário,
apresentado geralmente por meio de listas de palavras e exercícios que solicitam
sua repetição.
(d) “Acércate” – Sessão dedicada ao trabalho com os elementos gramaticais
selecionados. Em geral, esses elementos são apresentados por meio de tabelas,
quadros e listas de palavras. Apresentam-se também exemplos de usos por meio
de ilustrações tratadas pelo livro como se fossem textos: em realidade, são cenas
isoladas nas quais os personagens usam algum ou alguns dos elementos
trabalhados na seção em frases apresentadas em balões. Os exercícios que
acompanham as explicações e apresentações dos conteúdos, em geral, não saem
289
do nível da frase e trabalham com o preenchimento de lacunas, a escrita e a
reescrita de frases.
(e) “Lengua en uso” – Essa seção apresenta determinadas frases ou
expressões que se possam dizer em espanhol para determinados objetivos (“para
pedir permiso”, “para presentar a otra persona”, “para preguntar grados de
parentesco o relación”, etc.) e exercícios de completar diálogos apresentados por
meio de ilustrações e de criação de diálogos com colegas de classe. Nessa seção,
também se apresentam gravações com monólogos ou diálogos criados
especialmente para o livro e exercícios de escuta desses textos.
(f) “Contextos” – Seção em que se trabalha a leitura de um gênero textual
específico, com questões de leitura do texto lido e uma proposta breve de
produção de um texto de mesmo gênero pelos alunos.
Há também unidades que fogem a esse padrão dentro do livro, uma vez que
propõem trabalhos específicos:
(g) “Proyecto interdisciplinario” – Um dos projetos busca levar os alunos a
investigarem sobre os imigrantes que vivem em sua comunidade e a apresentar
os resultados de suas pesquisas, feitas por meio de entrevistas, aos colegas de
turma. No segundo, os alunos devem pesquisar sobre os diferentes tipos de casas
existentes no mundo e compartilhar os resultados da pesquisa com os colegas.
(h) “Cuaderno de ejercicios” – Apresentam-se exercícios de revisão de tipos
variados, entre eles, algumas questões de leitura de pequenos textos
originalmente apresentados em outros suportes.
(i) “Apéndices” – Nos apêndices, apresentam-se “fichas de estudio” dos
tópicos lexicais e gramaticais trabalhados nas unidades” e uma “autoevaluación”
sobre esses itens; uma seção denominada “¡Fíjate en la pronunciación!”, com
alguns trava-línguas para que os alunos os leiam e ouçam uma gravação na qual
eles são lidos; um “Glosario”; uma seção denominada “Para ir más allá”, com
sugestões de filmes, livros, sites e canções sobre os temas das unidades.
Assim, com base nessa configuração, é possível notar que o texto, nessa coleção,
possui lugares bastante delimitados, apresentando-se como elemento central na abertura
e no encerramento das unidades. Na abertura, apresenta-se o mesmo texto em uma
290
gravação e por escrito e um trabalho com a escuta e com a leitura desse texto e, no
encerramento, apresenta-se um trabalho sistematizado com o texto escrito através de um
determinado gênero textual selecionado. Além disso, ele aparece também, mas de forma
menos sistematizada nas gravações apresentadas na seção “Lengua en uso”, e no
“Cuaderno de ejercicios” apresentado ao final do livro.
Pode-se observar, então, que, pela primeira vez, o texto deixa de ocupar o lugar
de pretexto para o ensino de elementos gramaticais e lexicais. É a primeira vez que o
texto chega a ser trabalhado, em uma seção própria para isso, como efetivamente texto,
a partir da ideia de ensino de gêneros textuais. Além disso, ainda que, na primeira seção,
os textos tenham sido selecionados ou criados em função do vocabulário neles
apresentado, nota-se um trabalho com a leitura e com a escuta que extrapola o pretexto
para o aprendizado de palavras e de estruturas gramaticais. Entretanto, o trabalho com
os itens lexicais, com as estruturas e elementos gramaticais ainda se mantem no mesmo
padrão de prática reprodutora. Os temas e tópicos lexicais e gramaticais trabalhados
seguem semelhantes aos dos livros anteriores.
Apesar do trato com o texto se apresentar de uma forma diferente nesse livro, ele
ainda ocupa lugares isolados dentro das unidades. Assim, se, por um lado em relação à
abordagem do texto, há um avanço, por outro, há um retrocesso, na medida em que não
há diálogos estabelecidos de maneira sistematizada entre as seções. Assim, gramática e
vocabulário são trabalhados aqui como elementos descontextualizados, sem que estejam
inseridos efetivamente em textos analisados pelos alunos. Os textos, principalmente os
da última seção, desse modo, podem, voltar a ser entendidos, por um professor que
adote uma prática gramaticalista, como elementos extras. Nesse sentido, é importante
observar que as unidades de revisão trabalham especificamente com os itens gramaticais
e lexicais apresentados nas unidades anteriores, o que revela o lugar de prioridade que o
livro dá ao trabalho com eles em relação ao trabalho com a leitura ou com a produção.
Dessa vez, então, apresenta-se uma proposta que permite ao aluno ter uma
relação diferente com os textos lidos, tomando-os efetivamente como objeto de
aprendizagem, mas não há como afirmar que essa relação se construa, a partir de uma
política cognitiva diferente, antes de se fazer uma análise detalhada desse trabalho. O
que se pode afirmar é que, de modo geral, a visão de ensino de língua estrangeira
predominante é a mesma, construída pelo cruzamento de uma perspectiva behaviorista a
uma proposta gramaticalista, posto que se continua acreditando, de modo geral, que a
291
aprendizagem se dá pela repetição e a interação ainda é vista como espaço para a
reprodução. Mesmo que, novamente, os PCN sejam citados como documento norteador,
o trabalho com o texto parece deslocado da proposta geral do livro. Mantem-se, como
comentado anteriormente, uma perspectiva escolar de trabalho com a língua espanhola
presa à tradição das práticas desenvolvidas nas décadas anteriores, ainda que
complementada por uma nova abordagem sobre o texto.
7.1.1.6. “Cercanía”
Parto, então, para os livros aprovados no edital do PNLD 2014, na tentativa de
verificar se, após um segundo processo de seleção, esse lugar do texto foi, enfim,
alterado. O livro “Cercanía” também é composto de 8 unidades, além de algumas seções
ao final intituladas “Chuleta linguística: ¡no te van a pillar!”, “Para ampliar: ver, leer oír
y navegar”, “Glosario” e “Referencias bibliográficas”. Os títulos das unidades, como
ocorre em outros libros, fazem referência aos temas nelas trabalhados (“Identidad: ¡a
comparar los otros conmigo!”, “Cine en casa: ¡a convivir con la familia y la pandilla”,
“Noticias de nuestro entorno: ¡a cuidar el medio ambiente!”, “Autoestima en test: ¡a
gustarse y a cuidarse!”, “Recetas para disfrutar: ¡a distribuir la comida!”, “Reglas para
un juego limpio: ¡a tener deportividad!”, “Derecho y justicia: ¡a protestar en contra de
los prejuicios!”, “Itinerarios de viaje: ¡a planificar las vacaciones!”). É interessante ver
como esses títulos trazem outra perspectiva para o centro das unidades: há uma
proposição de ações para os alunos e eles parecem trazer os gêneros textuais para um
lugar de foco e não o léxico ou “estruturas comunicacionais” como nos livros anteriores.
Todas as unidades do livro se organizam segundo um mesmo padrão, com as
mesmas seções organizadas de uma mesma maneira. São elas:
(a) Abertura – A abertura da unidade se dá em página dupla, como em outros
livros já analisados e é composta por um quadro grande com imagens e
pequenos textos referentes ao tema da unidade; pelos objetivos da unidade na
subseção “En esta unidad...”, pela subseção “¡Para empezar!, com questões
sobre as imagens e pequenos textos de abertura e questões de conhecimento
prévio sobre o tema da unidade, além de uma caixa (“Transversalidad”) com
a explicitação do tema transversal tratado na unidade.
(b) “Lectura” – A seção de leitura se divide em subseções, a saber: “Almacén de
ideas”, dedicada ao trabalho de ativação e de construção de conhecimentos
prévios e/ou à construção de hipóteses sobre o que será lido no texto
292
principal a ser lido na subseção “Red (con)textual”. Esse trabalho pode se
dar, inclusive, por meio da leitura de outros textos que, de alguma maneira,
se relacionam com os textos principais. Essas duas seções são acompanhadas
da seção “Tejiendo la comprensión”, em que se apresentam questões de
leitura sobre o texto lido.
(c) “Escritura” – A seção de escritura também se divide em subseções, a saber:
“Conociendo el gênero”, na qual os alunos leem e analisam um texto
representativo do gênero textual a ser produzido por eles; “Planeando las
ideas”, em que os alunos são levados a refletirem sobre como serão os textos
que produzirão, a partir de algumas questões propostas pelo livro ou da
leitura de outros textos que os façam refletir sobre esse planejamento; “Taller
de escritura”, momento em que os alunos devem produzir os textos a partir
das instruções apresentadas pelo livro; “(Re)escritura”, quando os alunos são
instruídos a revisarem seus textos a partir das orientações apresentadas pelo
livro.
(d) “Vocabulario en contexto” - Essa seção, na verdade, apresenta-se como
subseções dentro das seções de “Lectura” e “Escritura”. Nela, apresentam-se
alguns itens lexicais a partir dos textos lidos.
(e) “Gramática en uso” – Essa seção também apresenta-se como subseção das
seções apresentadas anteriormente. Nela, são trabalhados alguns tópicos
gramaticais, a partir de exemplos retirados dos textos. Inicialmente,
apresentam-se algumas questões que levam os alunos a analisarem esses
exemplos. Em seguida, apresenta-se a sistematização desses tópicos
gramaticais a partir de tabelas e listas de exemplos. Por fim, apresentam-se
exercícios, em geral, também de completar lacunas com os itens gramaticais
estudados.
(f) “Habla” – Essa é a seção do livro dedicada à prática da produção oral. Ela
também se divide em subseções, a saber: “Lluvia de ideas”, momento em
que os alunos são levados a ativar e/ou construir conhecimentos prévios
sobre a produção oral que desenvolverão através da leitura de textos, de
exercícios focados no vocabulário que usarão; “Rueda viva:
comunicándose”, momento em que os alunos devem produzir o texto
oralmente, interagindo com os colegas de classe; “A concluir”, subseção em
293
que os alunos devem sumarizar parte dos conhecimentos construídos em
interação com os colegas.
(g) “Escucha” – Seção dedicada ao trabalho com a compreensão auditiva. Como
as outras seções, essa também se divide um subseções: “¿Qué voy a
escuchar?”, também dedicada à ativação e construção de conhecimentos
prévios e/ou à construção de hipóteses sobre o que ouvirão; “Escuchando la
diversidad de voces”, momento em que os alunos ouvem a gravação e
respondem a algumas questões de identificação; “Comprendiendo la voz del
otro”, em que os alunos devem responder às questões de escuta; “Oído
perspicaz: el español suena de maneras diferentes”, subseção dedicada ao
trabalho com a percepção dos sons que formam a língua espanhola, a
variação de pronúncias e suas relações com a escrita, em especial, a
ortografia.
(h) “Culturas em diálogo – nuestra cercanía”: Essa seção, apresentada ao final
das unidades, trabalha o conhecimento de aspectos culturais específicos dos
países em que a língua espanhola é falada. Nessa seção, podem aparecer
alguns textos ou as informações são dadas por meio de frases e parágrafos
criados pelos autores do livro.
(i) “¿Lo sé todo? (Autoevaluación)” – Apresenta questões de autoavaliação
sobre os diferentes elementos trabalhados na unidade: “Lectura”,
“Escritura”, “Escucha”, “Habla”, “Gramática”, “Vocabulario”, “Cultura”,
“Reflexión”.
(j) “Glosario virtual” – Apresentam-se algumas palavras através de imagens e
de pequenos parágrafos.
(k) “Repaso: ¡juguemos con el vocabulario y la gramática!” – A seção de
revisão, apresentada a cada duas unidades, traz alguns jogos para que os
alunos revisem os conteúdos lexicais e gramaticais vistos nas unidades
anteriores.
(l) Ao final, se apresentam ainda a “Chuleta lingüística: ¡no te van a pillar!”,
pequena gramática para consulta dos alunos; “¡Para ampliar!: ver, leer, oír y
navegar”, apresenta dicas de outras fontes de consulta aos alunos;
“Glosario”, pequeno glossário de uma página e as “Referencias
Bibliográficas”
294
Pode-se observar, com base nessa descrição, que esse livro se organiza de uma
forma completamente diferente da dos livros anteriormente analisados. Nele,
definitivamente, o texto ocupa lugar central em sua organização, uma vez que as quatro
seções principais se organizam em função dele: duas de compreensão e duas de
produção. Além disso, observa-se uma tentativa de que a gramática e o vocabulário
sejam ensinados a partir dos textos lidos. Essa tentativa se mostra mais claramente no
fato de que tanto a gramática como o vocabulário são trabalhados em subseções dentro
das quatro seções citadas anteriormente. Isso também comprova o lugar central do texto
na organização do livro, ainda que, muitas vezes, para o trabalho dessas subseções, os
textos sejam usados apenas como pretextos ou como fontes de exemplos não analisados
propriamente em função dos sentidos construídos por eles nos textos.
É importante ressaltar que se reconhece, nessa organização, que a aprendizagem
se constrói também com base no que o aluno já sabe e não apenas no que o livro traz de
conhecimentos novos, tendo em vista o fato de que todas essas seções se organizam em
três etapas: uma inicial que serve para a ativação e construção de conhecimento prévio
para o desenvolvimento das tarefas, uma segunda com tarefas de leitura, fala, escrita ou
escuta e uma terceira com atividades de pós-leitura, de reescrita e/ou de avaliação do
que foi feito. Além disso, o fato de o vocabulário e de os elementos gramaticais estarem
inseridos dentro das grandes seções focadas nas quatro habilidades mostra também uma
busca por integrar esse trabalho ao trabalho com o texto e, dentro das unidades, de se
fazer um trabalho integrado entre todas as seções. Ao final de tudo, encontra-se ainda
uma proposta de autoavaliação que busca abarcar todo o trabalho desenvolvido ao longo
da unidade.
Dessa forma, é possível dizer que há, enfim, uma ruptura com a tradição advinda
de uma abordagem behaviorista e gramaticalista, posto que esse é o primeiro livro a
romper efetivamente com o padrão organizacional que aparecia nos livros anteriores. Os
momentos de interação, centrados na compreensão e produção de textos orais e escritas,
parecem sair do modelo de reprodução e caminhar para a abertura a modelos de
invenção, que, aqui, aconteceriam a partir das tarefas postas pelo livro. Não há como
negar a presença de atividades que ainda partem do modelo de reprodução,
principalmente nas seções de gramática e vocabulário, em que as tarefas propostas ainda
se aproximam do mesmo modelo usado nos livros anteriores. Entretanto, esses
295
conteúdos já não são postos como centrais na organização do livro. Cabe, em seguida,
avaliar como efetivamente o trabalho com a leitura acontece no livro.
7.1.1.7. “Formación”
O livro “Formación” é composto de 4 unidades, organizadas em função de
objetivos específicos e de um objetivo geral para o livro, apresentados no sumário. Os
títulos das unidades fazem referência aos temas nelas tratados: “Mi mundo y yo”
(“Objetivo: Elaborar un blog”), “En América Latina” (“Objetivo: Elaborar un texto
descriptivo”), “Formas de vivir” (“Objetivo: Describir un barrio”), “Las ciencias
nuestras de cada día” (“Objetivo: Describir un plato típico regional”). O objetivo geral
do livro é: “Al término del año lectivo, el alumno deberá ser capaz de elaborar una
receta culinaria, describiendo cada etapa de realización”. A organização interna das
unidades não se repete entre elas, porém todas são compostas pelas mesmas seções, que
variam de tamanho, número e ordem, ao longo do livro. São elas:
(a) Abertura – Cada unidade abre em página única em que se apresenta uma
ilustração, o número e o título da unidade, os temas nela trabalhados e seu
objetivo.
(b) “Calentando el motor” – Essa seção abre todas as unidades e apresenta
algum trabalho inicial com o tema a ser desenvolvido: a imagem de fictícios
autores da coleção, um jogo de buscar elementos em uma imagem, a leitura
do poema “A casa” para que o aluno a desenhe, um infográfico com a
explicação do ciclo da água. Não necessariamente essa seção cria ou ativa
conhecimentos prévios para o desenvolvimento específico das tarefas
seguintes.
(c) “Escuchando” – Essa seção está dedicada ao trabalho com a compreensão
auditiva e aparece em distintos momentos das unidades. Em geral, são textos
escritos e lidos para a gravação. Nessa seção, podem incluir-se as
transcrições dos textos ouvidos ou não, a depender da atividade. Esses textos
podem ter sido criados pelos autores do livro ou selecionados de outras
fontes de consulta.
(d) “Puerta de acceso” – Seção dedicada à leitura, traz alguns textos produzidos
pelos autores do livro e/ou retirados de outros suportes e questões sobre eles.
Pode-se desenvolver em uma mesma seção o trabalho com mais de um texto
296
ou com um texto só. Alguns dos textos trazidos podem ter sido apresentados
anteriormente na seção “Escuchando”.
(e) “Explorando el texto” – Essa seção desenvolve um trabalho a partir dos
textos lidos, mas não necessariamente relativos à ele, uma vez que, além de
questões sobre a leitura dos textos, podem-se apresentar questões que o
tenham como pretexto para o trabalho com temas que de alguma maneira se
relacionem com eles ou com os usos de determinadas estruturas
comunicativas. Nessa seção, podem-se apresentar também outros textos para
o desenvolvimento desses aspectos.
(f) “Practicando la lengua” – Essa seção se dedica ao uso de alguns elementos
linguísticos selecionados pelos autores do livro. Esses elementos são, em
geral, apresentados ao início da seção e alguns exercícios apresentados são:
completar as lacunas deixadas em textos criados especialmente para o livro
ou retirados de outras fontes com os elementos apresentados, transformar
frases e criar frases ou pequenos textos usando-os. Além disso, algumas
questões de análise do uso desses elementos podem se apresentar em
algumas seções. Também se apresentam algumas atividades lúdicas nessa
seção.
(g) “Interactuando con el texto” – A partir de algum tema tratado no texto,
desenvolve-se algum trabalho que extrapole sua leitura (por exemplo: nomes
e apelidos em espanhol; o tango na Argentina; etc.). Nessa seção, podem-se
apresentar também outros textos para o desenvolvimento desses aspectos e
questões relativas à sua leitura.
(h) “Punto de apoyo” – Seção também dedicada ao uso de alguns elementos
linguísticos específicos. Esses elementos são apresentados em quadros ao
início da seção e praticados por meio de exercícios de formação de frases.
Alguns itens lexicais também são trabalhados nessa seção por meio da
formação de listas de palavras e/ou frases.
(i) “Produciendo un texto propio” – Seção dedicada à produção escrita, que, em
realidade, é o objetivo da unidade. A seção apresenta instruções que
orientam o aluno nessa produção.
297
(j) “Puerta de salida” – Seção que encerra a unidade, traz alguns jogos,
charadas, canção, leitura de um conto, problemas de lógica e sugestões de
leitura.
A partir dessa descrição, é possível observar que a estrutura e a organização
desse livro também são bastante distintas dos livros anteriores, uma vez que ele é o
primeiro a fugir completamente do modelo padronizado entre as unidades. De início, é
interessante observar que se apresenta uma proposta direcionada para objetivos
previamente estabelecidos que se sobrepõem à aprendizagem de conteúdos específicos.
Dessa maneira, os conteúdos lexicais, gramaticais e temáticos se encontram no livro, ao
menos teoricamente, em função desses objetivos postos. Tais objetivos, como se pôde
ver anteriormente, estão baseados na produção de textos, o que demonstra também o
lugar central que eles ocupam na organização do livro.
As seções, ainda que nem sempre façam referência direta aos textos
apresentados, muitas vezes, usando-os como pretextos para o trabalho com outros
temas, questões, etc., se organizam em função deles. Tais temas são principalmente
apresentados na seção “Puerta de acceso” (textos escritos) e na seção “Escuchando”
(textos orais). De diferentes maneiras, as outras seções, com exceção da “Puerta de
salida”, partem das seções em que os textos são apresentados para desenvolverem os
trabalhos propostos.
Essa estrutura do livro, com objetivos, temas abordados e organização bastante
diferente das anteriores também nos revela a busca por uma prática de aprendizagem de
línguas estrangeiras diferente do que a tradição dos cursos de línguas impôs ao longo
dos anos. Entretanto, como no livro anterior, a abordagem de alguns itens ainda
permanece muito próxima a práticas tradicionais, embora eles também aqui não sejam
postos como elementos centrais dentro das unidades e na coleção em sua totalidade.
Sem uma análise detalhada das atividades não é possível afirmar que o modelo
reprodutor tenha sido abandonado, mas a organização das questões e o lugar do texto,
disperso ao longo das unidades, sem um limite específico de páginas para esse trabalho,
demonstra essa intenção. Essa intenção, por si, revela a busca por uma perspectiva
inovadora dos autores do livro.
298
7.1.1.8. Em resumo
Antes de analisar as questões de leitura, especificamente, é interessante observar
como o lugar do texto foi se alterando nos materiais que se incluem nesta pesquisa ao
longo dos anos. Essa mudança vai se revelar também mais adiante na identificação da
crescente quantidade, ao longo dos anos, de questões de leitura apresentadas nos livros
analisados. A disposição dos textos nos livros, como se pode ver anteriormente, foi se
alterando com o tempo, o que alterou também a própria formatação das unidades dos
livros. Enquanto que, nas primeiras obras, o texto se apresentava em uma primeira seção
– normalmente sendo transcrições de diálogos presentes nos CDs dos livros e
produzidos especialmente para eles – ou última, quase como um anexo sem relevância,
aos poucos, a quantidade e a qualidade dos textos foram sendo ampliadas nas obras,
ainda que nem sempre isso represente uma maior integração entre o trabalho com a
leitura e o trabalho com as outras habilidades.
A partir da análise feita nas subseções anteriores, é possível afirmar que, se o
texto entra de forma mais presente nos livros didáticos de espanhol a partir do primeiro
PNLD, é apenas no segundo edital que vai acontecer uma mudança efetiva no lugar que
ocupam dentro das obras. Isso porque é apenas nesse momento que as obras abandonam
o modelo trazido ao longo de décadas do século passado e, consequentemente,
abandonam, ao menos na organização da proposta de ensino, o cruzamento de uma
perspectiva behaviorista com uma proposta gramaticalista, posta como comunicativa.
Assim, os elementos gramaticais, o vocabulário e as estruturas comunicativas são
colocadas em segundo plano e o texto é alçado à posição de foco dentro da proposta dos
dois livros aprovados. O trabalho com os elementos sistêmicos parte dos textos lidos e
caminha em direção aos textos produzidos, mas ainda não é possível encontrar uma
integração efetiva entre esse trabalho e o trabalho com o texto (seja na compreensão,
seja na produção).
Nesse sentido, é interessante observar que, somente após o segundo edital do
PNLD e o processo de avaliação acumulado desde o edital anterior, a estrutura dos
livros e o lugar do texto dentro dela se alterou qualitativamente, adequando-se ao que
propunham os PCN. Assim, somente quase vinte anos depois da publicação dos PCN,
foram entrar nas salas de aulas das escolas públicas do Brasil, livros didáticos que
colocam o texto como elemento central para o ensino de línguas. Não é possível, porém,
afirmar ainda que a política cognitiva proposta por esses materiais também tenha se
299
transformado, o que será analisado mais detalhadamente adiante, a partir das atividades
de leitura apresentadas nos livros. Lembrando que os PCN e os editais do PNLD
oscilam entre políticas de recognição e políticas de invenção, predominando os modelos
de recognição, pode-se hipotetizar que essa oscilação também se apresente nas
atividades propostas pelos livros, o que poderá ser verificado nas seções seguintes.
7.1.2. O que se faz com a leitura: níveis e estratégias de leitura trabalhados
Para desenvolver a análise do trabalho que se faz com a leitura nos livros
didáticos selecionados para a pesquisa, utilizei-me da categorização estabelecida por
Applegate et al. (2002), apresentada anteriormente. Como já comentado, essa
classificação coloca a inferência como elemento central para a classificação das
questões de leitura e para a organização do trabalho didático com ela. Assim, o plano
inferencial – e tudo o que o envolve – é colocado, nessa classificação, como ponto de
referência do nível de agentividade do leitor requerido pelas questões que se dirigem a
ele.
As categorias postas por Applegate et al. (2002) foram adaptadas em Vargas
(2012a) para uma categorização das questões propostas por livros didáticos de Língua
Portuguesa, uma vez que poucas eram as questões inferenciais presentes nos livros
analisados. Como entre os livros selecionados para o desenvolvimento desta tese a
realidade não foi diferente, utilizei essa categorização para classificar as atividades
apresentadas neles:
(a) questões de nível literal – correspondem às mesmas apresentadas por
Applegate et al. (2002);
(b) questões de nível inferencial – incluem, na categorização de Applegate et al
(2002), as questões de baixo nível inferencial, de alto nível inferencial e as
inferenciais globais;
(c) questões de nível literal-inferencial – questões subdivididas em duas ou
mais, sendo pelo menos uma de nível literal e/ou pelo menos outra de nível
inferencial; e
(d) questões de ativação de conhecimento prévio – não apresentadas em
Applegate et al. (2002), são aquelas que não exigem a leitura do texto para serem
respondidas, muitas vezes caracterizadas como as chamadas perguntas de opinião.
300
As questões de ativação de conhecimento prévio foram divididas quanto à
posição do trabalho com a leitura em que se apresentam. Como bem mostrou Botelho
(2015), seu momento ideal de apresentação é no trabalho de pré-leitura, quando este
tipo de questão permite a ativação ou a construção de conhecimentos que serão usados
na leitura dos alunos. Assim, como visto no capítulo 4 desta tese, eles podem integrá-los
mais facilmente às informações apresentadas na linearidade do texto – o que, por
consequência, propicia a geração de inferências mais significativas. Partindo desses
critérios, alcançamos, em uma análise quantitativa, os seguintes resultados:
Tabela 2 - Distribuição dos tipos de questão de leitura nos livros analisados
Livros
Tipos de Questões
Co
nh
ecim
ento
Pré
vio
(an
tes)
Co
nh
ecim
ento
Pré
vio
(d
epo
is)
Lit
era
l
Lit
era
l
Infe
ren
cia
l
Infe
ren
cia
l
To
tal
Arriba 1 2% 6 11% 36 67% - - 11 20% 54
Radix 34 20% 16 9% 110 65% 3 2% 8 5% 171
Énterate - - 11 20% 37 67% - - 7 13% 55
Saludos - - 12 7% 88 55% - - 62 38% 162
Ventana 34 27% 3 2% 64 51% - - 25 20% 126
Cercanía 42 17% 19 8% 56 23% 13 5% 113 47% 243
Formación 7 3% 62 26% 106 45% 1 0,5% 59 25% 235
Logo de início, pode-se observar o aumento considerável no número de questões
de leitura apresentadas, ao longo do tempo, nos diversos livros, o que, por si, já
demonstra o aumento progressivo do lugar dedicado ao trabalho com a leitura nos livros
analisados. Observa-se, porém, que o total de questões presentes do livro “Projeto
Radix” poderia distorcer essa percepção, tendo-se em vista o fato de que ele é o terceiro
livro com maior número de questões, ainda que seja o segundo mais antigo. Isso se dá
porque nele se apresentam muitas perguntas para cada texto, mas, como se pode ver na
tabela, elas essencialmente pedem apenas a reprodução de determinados trechos dos
textos lidos pelos alunos. Considerando-se o espaço físico ocupado pelas seções de
301
leitura, é possível observar que são feitas muitas perguntas para textos pequenos, o que
faz com que boa parte dos textos sejam reproduzidos nas respostas dos alunos.
Em relação ao trabalho com o conhecimento prévio dos alunos nas obras
analisadas, é possível notar que houve mudança ao longo dos anos, ainda que não tenha
sido efetivamente progressiva. Aqui, é importante lembrar que esse trabalho é essencial
para que se possa desenvolver um bom trabalho com uma leitura integrativa, auxiliando
o aluno em seu processo de inferenciação. Na maior parte dos livros, incluindo alguns
dos aprovados nos dois editais do PNLD, não há um trabalho sistematizado com o
conhecimento prévio dos alunos anteriormente à leitura dos textos. Isso demonstra em
que medida as obras (não) reconhecem e valorizam os saberes trazidos pelos alunos
para a sala de aula, o que define, em grande medida as condições de intersubjetividade
postas pelos livros didáticos e a centralidade do modelo recognitivo – os sentidos estão
nos textos apenas. Somente nos livros “Ventana al Español” e “Cercanía” é possível
encontrar uma constância em relação a essas atividades, posto que todos os textos
trabalhados de ambos os livros são antecipados por questões de pré-leitura, o que se
comprova pelo percentual que essas questões representam em relação ao todo desses
livros.
É importante ressaltar que o livro “Projeto Radix” também apresenta uma certa
constância em relação ao trabalho com o conhecimento prévio, porém, o trabalho
desenvolvido é de outra natureza: todas as unidades abrem com uma proposta de
discussão sobre o tema a ser trabalhado nelas e é acompanhada de um trabalho de
escuta/leitura de diálogos ou pequenas narrativas e descrições criados especialmente
para o livro sobre tais temas. Assim, a discussão fica restrita ao tema do texto
apresentado a seguir, que é artificialmente produzido para o livro. Na seção específica
de leitura, não há qualquer trabalho com os conhecimentos prévios anteriormente à
leitura dos textos apresentados aos alunos.
Outro estudo seria necessário para detalhar as estratégias trabalhadas nessas
questões. Entretanto, de forma geral, pode-se dizer que elas desenvolvem
principalmente um trabalho temático em relação ao texto, ou seja, propõem aos alunos
perguntas sobre os temas trabalhados nos textos. Relativamente poucas são as perguntas
focadas em estratégias de formulação de hipóteses ou de estabelecimento de objetivos
de leitura, o que poderia contribuir ainda mais para tornar os alunos leitores cada vez
mais agentivos (cf. GERHARDT, BOTELHO e AMANTES, 2015) e para a construção
302
de inferências mais significativas, direcionadas e controladas em função de objetivos
específicos (cf. GERBER e TOMITCH, 2008; ROSCIOLI e TOMITCH, 2014;
ROSCIOLI, TOMITCH e FARIAS, 2015).
Portanto, no que se refere ao trabalho com o conhecimento prévio, ainda que os
PCN ressaltem sua importância em diversos momentos, como visto anteriormente,
somente em um livro produzido em 2011, dentre os selecionados para a pesquisa, é
possível encontrar uma sistematização efetiva. Assim, pode-se notar a influência do
PNLD nesse processo, mesmo que ele não tenha garantido a presença do trabalho com o
conhecimento prévio nos dois livros aprovados no segundo edital. Nesse sentido, é
importante ressaltar que o livro “Formación en español” propõe a presença de uma
seção de abertura denominada “Calentando el motor”. Entretanto, essa seção se dedica a
levar os alunos a uma discussão inicial sobre o tema e a proposta da unidade e não a
fazer um trabalho especifico com os conhecimentos prévios dos alunos em relação a
algum texto que se apresente na seção seguinte.
Ainda sobre o trato com o conhecimento prévio, é importante observar a grande
quantidade de questões que buscam sua ativação depois dos alunos terem desenvolvido
uma primeira leitura do texto. Dentro dessa categoria, encontram-se as chamadas
perguntas de opinião, que acabam solicitando aos alunos respostas que ignoram a leitura
do texto. Geralmente, são questões que solicitam o relato de alguma experiência do
aluno ou alguma opinião sobre o tema do texto, mas não efetivamente sobre o texto
lido. Dessa maneira, os textos podem ser ignorados para o desenvolvimento dessas
tarefas e elas, como atividades de leitura perdem seu sentido. O lugar delas deveria ser
antes e não depois da leitura inicial do texto, mesmo que ele volte a ser lido pelo aluno
durante a feitura das questões, uma vez que assim os conhecimentos prévios dos alunos
poderiam ser ativados (ou construídos) para serem melhor integrados às informações
trazidas pelos textos.
Em relação às questões inferenciais, a diferença quantitativa entre as obras
produzidas anteriormente ao primeiro PNLD (mesmo as aprovadas nesse edital de
2011) e as produzidas posteriormente a esse PNLD é bastante considerável, por duas
razões. Em primeiro lugar, porque o número de questões literais reduz-se bastante, o
que quer dizer que as obras mais recentes apresentam uma maior preocupação em
extrapolar em suas atividades os limites da linearidade do texto e, em segundo lugar,
303
por que o número de questões inferenciais aumentou consideravelmente nas obras mais
recentes.
Pode-se observar, desse modo, que a desproporção entre as questões literais e as
questões inferenciais nas primeiras obras é bastante significativa, chegando a 65%
contra 5% no livro “Radix”, com apenas 8 questões inferenciais. Antes da primeira
edição do PNLD, esse e o livro “Arriba” apresentam o maior índice de questões literais.
Nesse, o comparativo é de 67% literais para 20% inferenciais. Mesmo nos livros
aprovados pelo PNLD 2011, o índice de questões literais ultrapassa os 50%. O livro
“Entérate”, por exemplo, tem o mesmo índice de questões literais do livro “Arriba”,
além de ter um dos índices mais baixos de questões inferenciais – apenas 13% dentre
todos os analisados. O livro “Saludos” chega a apresentar um índice, em comparação
aos outros livros, alto de questões inferenciais – 38% –, mas o índice de questões literais
ainda é alto também – 55%.
Em comparação ao livro “Ventana”, poderia dizer-se que o percentual do livro
“Saludos” é ainda relevante, já que nele apenas 20% das questões são inferenciais.
Entretanto, é preciso observar que esse índice se apresenta mais baixo nesse livro
devido à quantidade considerável de questões de ativação de conhecimento prévio
apresentadas no momento de pré-leitura – um índice bastante relevante (27%),
praticamente inexistente nos outros livros. Além disso, em relação às questões literais,
ele apresenta índice maior apenas do que os aprovados no segundo edital (51%), o que
representa a interferência do PNLD nesse processo de transformação do trabalho com a
leitura.
Se se observam os números do “Formación”, aprovado no PNLD 2014, vemos
que a porcentagem dele (45%) é bem próxima a do Ventana (51%), sendo menor
também por causa do índice de questões de conhecimento prévio, postas, entretanto, em
sua maioria, após a leitura do texto, o que não contribui para o processo de integração
do leitor com o texto durante sua leitura. Assim, é importante observar que, mesmo após
o segundo edital, ainda encontra-se aprovado um livro que possui apenas 25% de
questões inferenciais.
Por fim, cabe observar a distribuição equilibrada entre os tipos de questões no
livro “Cercanía”, cujo trabalho com a leitura é formado em sua maior parte por questões
inferenciais (47%), além da considerável quantidade de questões de ativação de
conhecimento prévio presentes anteriormente à leitura do texto (17%), o que pode ser
304
um importante fator a contribuir nos processos de inferenciação desenvolvidos pelos
alunos que interagem com seus textos. Observa-se ainda que ele apresenta o menor
percentual de questões literais (23%), bem distante dos demais, sendo inclusive o único
que tem uma quantidade menor de questões literais do que inferenciais.
A partir dessa análise, é preciso observar, então, como as práticas de ensino de
leitura apresentadas nos livros, principalmente em relação ao plano inferencial de
leitura, ainda oscilam entre a busca por um trabalho com a leitura que integre os saberes
dos alunos aos saberes apresentados no texto e a busca por um trabalho centrado no
controle da leitura dos alunos. Tal controle só é possível dentro de um modelo
reprodutor, focado em questões literais, que ignoram os saberes e as experiências dos
alunos e apenas exigem a repetição de informações explicitamente apresentadas na
linearidade dos textos. Da mesma maneira, a falta de sistematização do trabalho com o
conhecimento prévio revela a pouca relevância dada pelos livros aos processos
cognitivos desenvolvidos pelo leitor em uma leitura integrativa.
Portanto, ainda que a estrutura e o lugar do texto tenham sido alterados ao longo
do tempo e que o resultado desse processo apareça nos livros aprovados no segundo
edital – PNLD 2014 –, o trabalho efetivo com a leitura ainda não conseguiu
efetivamente livrar-se de uma visão reprodutora de aprendizagem. Observando-se os
níveis de leitura solicitados pelas questões, nota-se, então que a interferência do PNLD
na história recente dos livros didáticos de espanhol alterou, mas não ainda de modo
significativo o trabalho com o plano inferencial de leitura, uma vez que, mesmo no
último PNLD, apresentou-se um livro com alto índice de questões literais e de questões
de ativação de conhecimento prévio não localizadas no momento de pré-leitura.
Como representações de políticas cognitivas e como suportes para a construção
de affordances que são usados pelos alunos para que aprendam como devem se
comportar como aprendizes em sala de aula, os livros didáticos acabam contribuindo
para a formação de aprendizes que não se integram ao que se traz de novo nesse espaço.
Com exceção do “Cercanía”, nessa recente história e em relação às aulas de leitura, os
livros didáticos contribuíram para a formação de aprendizes que aprenderam que
aprender é reproduzir um conhecimento previamente construído.
Ainda assim, não se pode negar que há um aumento no número de questões
inferenciais nos livros, o que leva à percepção de que há algum movimento de
reconhecimento do aluno como participante ativo no processo de leitura, ainda que se
305
possa problematizar a forma como essas questões são apresentadas, o que será feito
mais adiante. Entretanto, esse aumento não se apresenta de modo progressivo nem é
acompanhado de uma diminuição considerável de questões literais e de um aumento do
trabalho com o conhecimento prévio dos alunos.
7.1.2. O que se faz com a leitura: níveis e estratégias de leitura trabalhados –
exemplos
Para explicar melhor o que a tabela anterior demonstra através de números, trago
nesta subseção um exemplo de atividade de cada livro analisado. Dessa forma, é
possível ver de maneira detalhada como o trabalho com o texto foi sendo alterado ao
longo do tempo e em que medida eles foram reconhecendo o papel agentivo que o leitor
deve ter em seu processo de leitura. É importante destacar que, mesmo que selecionados
com critérios, se trata apenas de exemplos, uma vez que os limites de tempo e espaço
para a produção desta tese não permitem detalhar mais a apresentação dos dados.
7.1.2.1. “Arriba”
A primeira atividade analisada foi retirada do livro “Arriba” (RINALDI e
CALLEGARI, 2005, p.117). Localizada na seção “Entretextos”, ela se desenvolve a
partir de um texto sobre o desperdício de alimentos, aparentemente criado
especialmente para o livro, já que sua fonte não é citada.
Observa-se inicialmente uma questão de ativação de conhecimento prévio,
apresentada anteriormente à leitura do texto: ¿Te acuerdas de haber desperdiciado
algún alimento esta semana?. Ainda que não direcione a leitura do aluno para a
formulação de hipóteses sobre o texto a ser lido, para o estabelecimento de objetivos de
leitura ou que traga informações relevantes para auxiliar o aluno em sua geração de
inferências (cf. BOTELHO, 2010; 2015; GERHARDT, BOTELHO e AMANTES,
2015), é interessante notar a presença desta questão na atividade, principalmente porque
essa é a única questão de pré-leitura apresentada no livro, ou seja, é a única questão que
traz em si a noção de que, de alguma forma, é preciso motivar o aluno à leitura do texto.
308
Em seguida, apresentam-se três questões de múltipla escolha, que apenas
solicitam ao aluno a seleção de informações explicitamente apresentadas na linearidade
do texto e duas questões que solicitam a seleção e explicitação de conhecimentos
prévios dos alunos, sem que se faça qualquer tipo de trabalho de integração entre as
informações apresentadas pelos alunos antes da leitura do texto e as informações
trazidas pelo texto. Assim, o aluno ou reproduz o que foi dito no texto ou reproduz os
conhecimentos que já tinha mesmo antes da leitura do texto.
Dessa forma, é possível notar uma prática de ensino de leitura baseada em uma
política de recognição. As experiências e os saberes dos alunos, bem como o texto, já
estão dados antes do momento da leitura. Segundo as atividades, nenhum conhecimento
novo pode surgir dessa experiência de inte(g)ração, ou, se pode, não é considerado
como algo que deve ser trabalhado em sala de aula. Não é tratado como relevante para a
prática da leitura na escola esse movimento de integração. A atividade de leitura parece,
assim, ser um pretexto para a aprendizagem, aparentemente contextualizada, de
vocabulário referente a alimentos.
7.1.2.2.. “Radix”
Apresento agora uma atividade apresentada pelo livro “Radix” (GARCÍA e
HERNÁNDEZ, 2006, p.124-125). Esta atividade se apresenta na seção “Leyendo”,
dedicada exclusivamente à leitura no final da unidade, e apresenta a história de Laurita,
uma menina que fazia desenhos na parede de casa, enquanto estava sozinha. De início,
já é possível observar que não há nenhuma atividade de pré-leitura, o que, por si, já
prejudica o trabalho com o plano inferencial de leitura.
Observa-se que a maior parte das questões se mantém em nível literal, exgindo a
cópia do texto, como, por exemplo, em:
a) ¿Qué hace Laurita?;
b) ¿Dónde habían ido los padres de Laurita?;
c) Retira del texto la frase que demuenstra que a Laurita le gusta dibujar.
O mesmo padrão se repete nas outras questões, exceto na última, que exige do
aluno a ativação de um conhecimento prévio, que poderia ser exigido em um momento
de pré-leitura:
i) ¿Y a ti te gusta dibujar? ¿Dónde dibujas? ¿Qué dibujas?.
311
Assim, é possível observar, nas duas atividades analisadas dos dois livros que
formam parte do corpus “pré-PNLD”, o mesmo padrão de direcionamento das
atividades: inicia-se o trabalho com atividades de seleção de informações literalmente
apresentadas nos textos e finaliza-se com atividades de ativação de conhecimento prévio
que independem da leitura dos textos. Esse padrão, inclusive, se reproduz em boa parte
das atividades apresentadas nos dois livros.
7.1.2.3. “Entérate”
A terceira atividade se encontra no livro “Entérate” (BRUNO, TONI e ARRUDA,
2009, p.35-37) e está incluída na unidade “Dónde vivo hay de todo”. Ela objetiva
trabalhar, ao mesmo tempo, a leitura e a compreensão auditiva. Inicialmente, os alunos
devem escutar dois poemas – um de Antonio Machado e outro de Rafael Alberti – e
completar as lacunas deixadas no poema com os verbos “tiene” ou “hay”. Assim, é
possível notar que os textos, de início, se apresentam como um pretexto para o ensino
desse tópico gramatical. Associando essa tarefa ao título da unidade, pode-se inferir que
esse seja o real objetivo para o trabalho com esses textos.
Abaixo de cada um dos poemas, apresentam-se caixas de texto com informações
sobre os autores dos poemas. Entretanto, não há nenhum direcionamento para a leitura
dessas informações, tampouco para a integração entre elas e os poemas, o que comprova
que, para os autores do livro, essa informação não é relevante para o desenvolvimento
das tarefas (cf. BOTELHO, 2010). Dessa maneira, informações que poderiam ser
relevantes para a ativação ou para a construção de conhecimentos prévios dos alunos
antes da leitura do texto, ou que poderiam ser utilizadas no processo de construção de
novas leituras após uma leitura inicial do texto, são ignoradas. Os textos não são
tratados nas atividades de leitura como passíveis de se integrarem também para a
construção de novos saberes.
Em seguida, são feitas as perguntas de leitura ao aluno. Novamente, o mesmo
padrão observado nos livros anteriores se reproduz: primeiramente, são feitas duas
perguntas literais de múltipla escolha sobre o poema de Antonio Machado. Elas
solicitam, portanto, a reprodução do poema:
1. En la Plaza hay un/a: a) jardín. / b) vivienda. / c) centro comercial.;
2. La dama vivía en un/a: a) casa. / b) piso. / c) castillo.
315
Posteriormente a essas duas questões são feitas duas perguntas inferenciais.
Entretanto, como se apresenta nas respostas sugeridas aos alunos, essas questões
solicitam apenas que os alunos descubram as inferências geradas pelos autores do livro,
e não que pensem sobre suas próprias inferências:
3. Se dice en el poema que el caballero se lleva la plaza, la torre, el balcón, la
dama y la blanca flor porque: a) es fuerte y poderoso / b) es secuestrador / c) la dama
da vida a la plaza.;
4. El poema describe un/a: a) ciudad / b) barrio / c) pueblo.
Essas respostas não se encontram na linearidade do texto e é preciso construir
inferências para que se pense sobre elas. Entretanto, o livro desconsidera o fato de que
as inferências geradas pelos autores não necessariamente são as mesmas geradas pelos
alunos e tratam essas questões da mesma forma como as que exigem apenas a seleção
de informações explícitas, o que pode levar os alunos a confundirem as inferências que
constroem com uma possível leitura literal e, consequentemente, a confundirem também
a natureza desses tipos de perguntas que solicitam diferentes tipos de respostas (cf.
VARGAS, 2012a).
Ademais, isso revela que, ainda que as questões inferenciais sejam postas no
livro, as condições de intersubjetividade postas por ele impedem que elas sejam
plenamente desenvolvidas, uma vez que a agentividade do leitor, seus conhecimentos,
suas experiências e a forma como ele lê o texto não são reconhecidos. Assim, são
inseridas questões inferenciais dentro de uma política cognitiva centrada na recognição,
e elas se transformam em questões tão reprodutoras quanto as literais, com o aluno
aprendendo que ler é sempre reproduzir o pensamento do outro, estando ele explícito no
texto ou não e nunca criar, em uma política inventiva, seu próprio pensamento sobre o
texto.
As questões sobre o poema de Rafael Alberti são formuladas de forma a serem
respondidas discursivamente. Ainda assim, seis delas são também literais:
1. ¿Qué hay em Roma?;
2. ¿Qué hay en la calle?;
3. ¿Qué hay en la casa?;
4. ¿Qué hay en la alcoba?;
5. ¿Qué hay en la cama?;
6. ¿Qué hay en el corazón de la dama?
316
E a última solicita a ativação de um conhecimento prévio do aluno, que
independe do desenvolvimento de sua leitura do poema:
7. Roma, ¿qué es? ¿Una ciudad, un pueblo o um barrio?.
Assim, novamente, repete-se o padrão anteriormente analisado.
7.1.2.4. “Saludos”
Em seguida, apresenta-se uma das atividades de leitura apresentada no livro
“Saludos” (MARTIN, 2010, pp. 108-110). Trata-se de uma atividade de leitura de um
texto especialmente criado para o livro que abre a Unidade 7 – “Todos los días pasa lo
mismo”. O texto apresenta a rotina de uma menina cuzquenha e está escrito em primeira
pessoa. Como no livro anterior, primeiramente, os alunos deveriam escutar a descrição
da rotina da menina para depois ler o texto e responder as questões apresentadas na
seção “Así lo dices”. Mais uma vez, observando-se as questões e sua relação com o
título da unidade, é possível observar que o texto está ocupando esse lugar como
pretexto para que o aluno aprenda certas estruturas que lhes permita falar de sua própria
rotina – o que lhes é solicitado na questão final.
Nessa atividade são feitas 10 perguntas classificadas como literais e, por fim,
seguindo o padrão já presente em outros livros, uma questão de ativação de
conhecimento prévio, que independente da leitura do texto. Interessante observar como
o trabalho de seleção de informações e o trabalho com o conhecimento prévio são
separados pelo número das questões:
1. Contesta a las preguntas sobre la rutina de Lucía:
a) ¿A qué hora se levanta de lunes a viernes?;
b) ¿Qué hace de las ocho a las doce y media, de lunes a viernes?;
c) Y qué hace después del almuerzo?;
d) ¿A qué hora hace los deberes?;
e) ¿A qué hora cena?;
f) ¿Qué hace antes de acostarse?;
g) ¿Y a qué hora se acuesta?;
h) ¿Qué le gusta hacer los sábados por la mañana?;
i) Y por la tarde, ¿qué hace?;
j) ¿Qué suele hacer los domingos?;
2. Y tu rutina, ¿cómo es.
320
Como no livro anterior, é possível perceber que o texto, criado para o próprio
livro, está aqui nessa atividade como um pretexto para o trabalho com as construções
linguísticas nele utilizadas. Entretanto, ao serem apresentadas como questões de leitura
ao aluno, elas também contribuem para a formação do aluno como leitor-reprodutor.
Assim, mais uma vez, não se apresentam propostas de integração entre o conhecimento
prévio do aluno e as informações trazidas pelo texto. Ainda que não haja incoerência
entre a proposta da seção e o trabalho que se desenvolve na atividade, isso não nos
impede de questionar a forma como o texto está sendo tratado e como este trabalho está
sendo desenvolvido. Inclusive, o próprio manual do professor desse livro, como
apresentado anteriormente, explicita o fato de que é preciso superar uma visão de
trabalho com a leitura como mero pretexto para o aprendizado de estruturas gramaticais
e vocabulário:
É importante que, no âmbito da leitura, o aluno possa perceber que
‘lemos para compreender o significado e não para aprender palavras
ou gramática’, como aponta Scott (1986). É preciso compreender,
portanto, a leitura de língua espanhola como uma prática social
(MARTÍN, 2010, p.7).93
Assim, ainda que exista uma tentativa talvez louvável de se trabalhar certas
estruturas linguísticos a partir da leitura de um texto, o trabalho com a leitura integrativa
não pode ser dispensado em nome dessa vontade, visto que, assim, pode-se contribuir
para a construção de concepções equivocadas do que é a leitura em língua estrangeira
para um aluno que está se construindo como leitor nessa língua – e em sua própria
língua, como é o caso de um aluno do 6º ano.
Em uma breve síntese, podemos dizer que se apresenta, essencialmente, nas
atividades dos livros didáticos apresentados até aqui, um padrão de atividade no qual os
livros não reconhecem os alunos como sujeitos de seu processo de construção como
aprendizes de uma língua estrangeira, e, consequentemente, as questões de leitura
deixam de desenvolver as capacidades cognitivas dos alunos enquanto leitores.
93
Em relação a essa citação, é importante observar que, ao isolar o aprendizado de palavras e da
gramática do aprendizado da leitura como prática social, o autor do livro ignora o fato de que a leitura
pode e deve ser vista também como uma atividade metalinguística, no sentido de que é preciso trabalhar a
leitura em sala de aula para que o aluno não apenas aprenda conceitos, mas também para que compreenda
como se lê e como pode se tornar um melhor leitor (cf. GOMBERT, 2003, entre outros).
321
7.1.2.5. “Ventana”
A próxima atividade foi retirada do livro “Ventana” (ALMEIDA e
AMENDOLA, 2011, pp.40-41) e se apresenta na seção “Contextos”.
Figura 16 - Atividade de leitura do livro "Ventana" - 1a página
323
Nela, se trabalha com o gênero textual Tira Cômica, a partir de duas tirinhas –
uma do Gaturro e outra da Mafalda. Nessa atividade, antes de qualquer interação com os
textos principais, é apresentado um pequeno texto sobre o gênero a que eles pertencem,
seguido de duas questões de pré-leitura, que ativam o conhecimento prévio do leitor
sobre a estrutura do gênero e seu uso pelos alunos:
a.¿Leen habitualmente tiras cómicas? ¿Cuáles?;
b. ¿Qué es lo más importante en una tira: el texto o la imagen?.
Apesar de essas questões auxiliarem o professor em seu trabalho de orientação à
leitura dos alunos, na medida em que podem saber o que seus alunos já sabem sobre o
gênero, nenhuma das questões aponta efetivamente para os textos a serem lidos, o que
auxiliaria os leitores em seu processo de integração com eles. Posteriormente, o livro
apresenta uma questão de nível literal, para que o aluno aponte a que tiras se referem as
frases citadas e duas questões de nível inferencial, focadas na intertextualidade entre as
tiras lidas e um texto lido na abertura da unidade:
4. ¿Te acuerdas de Andy, el alumno del colegio español que conocimos al inicio
de la unidad? Su evaluación depende de varios criterios, ¿verdad? ¿En cuál de ellos
Felipe, el personaje de la tira 2, no sacaría una buena nota?;
5. ¿Crees que a Gaturro le gustaría participar de las actividades deportivas del
colegio de Andy? ¿Por qué?
Nessas questões, deixa-se de lado o nível literal da leitura e pede-se ao aluno que
ative informações do conhecimento prévio e as articule às informações apresentadas em
dois textos, de forma a estabelecer julgamentos sobre os textos lidos. Entretanto,
observam-se no livro duas formas de tratar esse tipo de questão: para a primeira,
apresenta-se uma resposta que, na verdade, mais uma vez, representa apenas uma das
inferências possíveis (“Felipe no sacaría una buena nota en el requisito de prestar
atención en clase.”) - a selecionada pelos autores do livro.
Dessa forma, o livro apresenta uma inferência construída por seus autores como
sendo a correta sem que se justifique essa possibilidade de resposta ou chame a atenção
para o fato de que outras respostas são possíveis e devem ser justificadas pelos alunos,
com base em seu conhecimento prévio e no texto lido. Para a segunda, apresenta-se a
possibilidade de uma “Respuesta libre”, acompanhada de uma possível inferência:
“Sugerencia de respuesta: No, a Gaturro no le gustaría participar de las actividades
deportivas del colegio de Andy porque es muy perezoso”.
324
Assim, é possível notar um problema muito comum no trabalho com a leitura
inferencial: quando questões inferenciais são propostas, não se sabe o que fazer com
elas, justamente porque os livros ainda não alteraram as condições de intersubjetividade
postas neles para a interação com os alunos. Partindo de uma mesma visão de
aprendizagem, norteados para uma mesma política cognitiva, essas questões passam a
ser trabalhadas de maneira confusa e não conseguem desfazer a percepção do aluno de
que ler é repetir o que já foi dito. Esse trabalho com o plano inferencial acaba por
caminhar em direção ou a uma resposta correta que não pode ser criada pelo aluno ou a
questões que, por aceitarem qualquer resposta como correta, passam a ser irrelevantes.
Isso se comprova nos gabaritos apresentados, que ora apelam para uma “resposta
pessoal”, que aponta muito mais para um “vale tudo” por parte do leitor do que para
uma leitura integrativa de fato; ora apresentam possibilidades de resposta, que, na
verdade, são inferências geradas por seus autores tidas, portanto, como corretas. Isso
quando não apontam respostas que recorrem à linearidade do texto para questões que
desenvolveriam um alto potencial de explicitação de processos inferenciais – o que não
é o caso da atividade analisada, mas também pode acontecer. Assim, ainda que se fuja
da “Resposta Pessoal” como gabarito, não se apresenta aos professores como eles
poderiam trabalhar a multiplicidade de respostas possíveis e que critérios poderiam
adotar para o desenvolvimento das habilidades trabalhadas em cada questão. Tampouco,
apresenta-se aos alunos como eles poderiam explicitar seus processos inferenciais e
pensar metacognitivamente sobre eles.
Posteriormente, apresenta-se uma questão com três subitens voltados para a
compreensão do gênero trabalhado que apenas solicitam a seleção de informações
apresentadas explicitamente nos textos. Trata-se, portanto, de questões literais, uma vez
que não exigem qualquer nível de inferência por parte dos alunos e trabalham com a
estrutura dos gêneros de maneira passiva:
6. A continuación tienes algunos de los recursos empleados en las tiras cómicas.
Extrae de las tiras de la página anterior un ejemplo de cada recurso:
a. Dos tipos de globo para expresar lo que piensa o dice el personaje.
b. Palabras que imitan sonidos.
c. Juegos de palabras.
325
7.1.2.6. “Cercanía”
Por fim, apresento as atividades dos livros aprovados no PNLD 2014. A seguir,
apresento a do livro “Cercanía” (COIMBRA, CHAVES e ALBA, 2012, p.72-74).
Figura 18 - Atividade de leitura do livro "Cercanía" - 1a página
328
Ela se encontra na seção “Lectura”, que, como visto anteriormente, se subdivide
em três: “Almacén de ideas”, “Red (con)textual” e “Tejiendo la comprensión”. A
atividade foca na leitura de um teste de revista que trata de temas como a beleza e a
autoestima. Inicialmente, apresentam-se uma série de questões de pré-leitura, que
devem ser respondidas oralmente:
1.¿Qué piensas sobre la vanidad?;
2. ¿Qué papel cumplen los medios de comunicación en el establecimiento del
“ideal de belleza”? ¿Cómo reacciona la sociedad frente a eso?;
3. En muchas revistas de belleza y salud, se encuentran tests para verificar
cómo está tu cuerpo, tu salud, tu mente, entre otras temáticas. ¿Sueles hacer tests de
revistas? ¿Crees que son eficaces?;
4. Si fueras a hacer un test sobre tu autoestima, ¿cuál de los siguientes
resultados esperarías encontrar? ( ) Vivo a gusto conmigo mismo / ( ) Un día me
gusto, el otro, no. / ( ) Me hago críticas todo el tiempo. / ( ) Me creo muy importante y
mejor que los demás.
É interessante observar que as perguntas tratam dos temas a serem abordados
nos testes de forma crítica, levando os alunos a refletirem sobre questões sociais
relativas à beleza e a saúde, mas também focam nos modos como esse gênero circula na
sociedade e em como eles podem reproduzir informações equivocadas. Além disso, a
questão 4 solicita uma formulação de hipótese, que vai ser confirmada ao final da leitura
do texto. O gabarito dessas questões alterna a Respuesta personal com instruções para o
professor, como, por exemplo:
Es bueno señalar que los chicos y las chicas están siendo constantemente
bombardeadas con informaciones que muchas veces los llevan a creer que lo único
importante es la apariencia (…).
De certo modo, é possível notar que essas questões de pré-leitura também
apresentam um objetivo para a leitura do texto, além do que aparece explicitamente para
o aluno: pensar criticamente sobre o texto que vai ser lido, o que auxilia o aluno em seu
processo de integração com o que vai ser lido. Essa proposta se complementa com as
orientações para os alunos dadas antes da leitura do texto (e consequente realização do
teste):
Ahora vas a hacer un test autodiagnóstico de autoestima sacado de la revista
Todos Amigos, año X, n.7, abril de 1997. Es importante saber que los resultados son
329
preliminares y para un diagnóstico es preciso consultar a un profesional. Al leer, no te
olvides de mirar el diccionario de términos que aparece al lado del test.
Assim, ao mesmo tempo em que guia o aluno para a leitura do texto, o
enunciado apresenta possibilidades de estratégias de leitura, tais como o
estabelecimento de um objetivo de leitura e o uso de dicionários, e alerta sobre a forma
como o texto deve ser encarado pelo aluno. Nas orientações ao professor, pede-se que
ele converse com os alunos sobre a forma como esse tipo de texto circula na sociedade.
Quanto às perguntas de leitura, observa-se, inicialmente, uma questão literal (questão
1), que serve de apoio para uma questão inferencial que a segue (questão 2):
1. ¿Cuál es el resultado de tu test?
2. ¿Estás de acuerdo con tu resultado del test? ¿Crees en los resultados de ese
tipo de tests? ¿Por qué?
Em seguida, apresenta-se uma questão que se divide em duas perguntas – uma
literal e uma inferencial:
¿Cuál es el ave de la foto? ¿Qué relación hay entre ella y el tema del test?
Nesse sentido, é possível observar como as questões literais podem servir de base
para questões inferenciais, na medida em que elas enquadram os fragmentos do texto
que devem ser observados para que os alunos construam inferências ou explicitem
inferências já construídas a partir deles. Assim, ainda que não levem os alunos a
pensarem metacognitivamente sobre esse processo, essas questões auxiliam o aluno a
construir uma nova forma de lidar com o texto, não utilizando-o apenas para reproduzir
informações explicitamente apresentadas.
Em seguida, a atividade apresenta uma questão voltada para a compreensão da
estrutura do gênero, em nível inferencial:
En ese test, ¿cuál es la función de los íconos?
Nela, é possível ver a diferença de abordagem da proposta pelo livro anterior, uma
vez que aqui, pede-se que o aluno identifique um elemento da estrutura do texto e que, a
partir dessa identificação, infira sua função. Depois, o livro propõe duas questões sobre
o uso dos pontos de interrogação e uma questão inferencial final:
Basándote en el contenido del test, formula otro título.
Observando os gabaritos das questões, pode-se notar que eles ou apontam, mais
uma vez, para a Respuesta personal, acompanhadas de possibilidades de respostas ou
apresentam respostas com inferências dos autores dos livros. Novamente, então, apesar
330
da boa progressão das atividades, não há um direcionamento ao professor de como ele
pode trabalhar com as inferências dos alunos, tampouco há nas próprias perguntas,
direcionamentos ao aluno de como ele deve explicitar as inferências geradas e justificá-
las com base na integração entre seu conhecimento prévio e as informações do texto, ou
seja, com base não apenas em uma leitura integrativa, mas também na reflexão sobre
seu próprio processo de leitura.
7.1.2.7. “Formación”
Posteriormente, analisamos uma atividade presente no livro “Formación”
(VILLALBA, GABARDO e MATA, 2012, p.7). Essa atividade se encontra na seção
“Puerta de acceso” e se constrói com base em uma tirinha da Mafalda, de Quino, em
que ela dialoga com a pequena Libertad sobre seu tamanho. É possível notar, em relação
a essa atividade, que não há qualquer tipo de trabalho de pré-leitura, nem em relação ao
tema trabalhado no texto nem quanto a algum tipo de direcionamento a ser dado à
leitura do aluno, o que não contribui para o processo de integração do aluno com o texto
lido, tampouco para a construção de inferências mais significativas ao longo da leitura.
Observando o texto e percebendo o quanto ele depende de informação do conhecimento
prévio para ser entendido, pode-se imaginar a falta que um trabalho de pré-leitura dele
faz aos alunos que têm que responder às questões apresentadas no livro.
As perguntas que surgem após a leitura da tira podem ser divididas em dois
grupos. Primeiramente, se apresentam três questões literais:
1.¿Quiénes están hablando?;
2. ¿Cómo se llama la niña pequeña?;
3. ¿Qué comentario hace Mafalda (la chica más alta) antes de preguntar el
nombre de la pequeña?)
A essas questões se seguem três questões inferenciais:
4. ¿Qué pretende indicar el autor de la tira al establecer una relación entre el
tamaño y el nombre de Libertad?;
5. ¿Por qué dice Libertad en el último globito: “Sacaste ya tu conclusión
estúpida? Todo el mundo saca su conclusión estúpida cuando me conoce.”?;
6. Por el comentario de Libertad a Mafalda, ¿cómo calificarías a Libertad:
tonta, estúpida, grosera, educada, inteligente, triste? Justifica su respuesta.
331
Figura 21 - Atividade de leitura do livro "Formación"
Nota-se que existe uma intenção dos autores do livro em encaminhar as
perguntas literais de forma a auxiliar os alunos em suas respostas para as perguntas
inferenciais. Entretanto, isso não aparece explicitamente nem para alunos nem para
332
professores ao longo da atividade. Há que se observar também que, assim como ocorre
em outros livros, nessa atividade, apresentam-se diferentes tratamentos para questões
inferenciais: para as questões 4 e 5, a resposta do gabarito é uma única inferência
construída pelos autores do livro, sem haver qualquer problematização em relação a
isso.
Na pergunta 5, apresenta-se uma sugestão ao professor:
Argentina, en la época de las tiras de Mafalda, vivia una dictadura. Durante ese
período, no había libertad de expresión ni de oposición al régimen político. Lo mismo
pasó en Brasil.
Essa sugestão contem uma informação que poderia ter sido trabalhada em um
momento de pré-leitura, por exemplo, de forma a que o aluno pudesse integrar mais
informações à sua leitura. Na pergunta 6, por fim, apresenta-se como sugestão ao
professor um possível encaminhamento para o trabalho com as inferências dos alunos:
Es posible que haya otras respuestas. Discutan las razones dadas por cada
alumno, sin imponer una sola respuesta, ya que es una cuestión de punto de vista.
Sobre essa questão, não se pode negar que esse tipo de direcionamento pode
trazer novas perspectivas para o trabalho com as inferências em sala de aula. Entretanto,
é importante destacar que ela não alerta para o fato de que as inferências precisam ter
um suporte também nas informações do texto e não depender apenas de um ponto de
vista, o que pode ser entendido como uma simples opinião sem embasamento na
integração entre o leitor e o texto.
A diferença entre uma abordagem e a outra é crucial para a formação de um
leitor crítico, autônomo e reflexivo, uma vez que, assim, ele é ensinado a criticar o que
lê a partir de conhecimentos construídos em função de uma integração com o texto e
não de juízos embasados apenas no conhecimento prévio. Nesse sentido, trata-se
também de uma diferença entre políticas cognitivas, posto que uma opinião que parte
dos conhecimentos prévios apenas representa uma visão de aprendizagem que acredita
em um mundo previamente construído e que é da integração que se deriva uma
aprendizagem inventiva.
7.1.2.8. Em resumo
A partir da trajetória demonstrada por essas atividades, não se pode negar o
importante papel desempenhado pelo PNLD e por seu processo de avaliação na
transformação das atividades de leitura apresentadas nos livros didáticos de espanhol.
333
Observando as atividades de leitura apresentadas nos livros analisados, que
correspondem a um interessante panorama da produção de materiais didáticos voltados
para o ensino de língua espanhola no Brasil, pode-se perceber que a situação do trabalho
com a leitura já se alterou de maneira significativa, sendo possível encontrar atividades
em que se encontrem um maior número de questões inferenciais e a presença de
questões literais atuando como suporte para as inferenciais.
Considerando os exemplos anteriormente apresentados, mas também observando
os livros em sua totalidade, é possível notar que, assim como já notei em Vargas
(2012a) em relação aos livros de Língua Portuguesa, em nenhum deles, há um trabalho
de ensino de leitura propriamente dito, visto que não há orientações para o aluno de
quais estratégias ou habilidades de leitura ele poderia desenvolver ao longo das
atividades, muito menos sobre como fazer para respondê-las e, assim, desenvolver suas
capacidades como leitor.
As questões de leitura postas como nos exemplos anteriores apenas avaliam
possíveis estratégias ou habilidades que os alunos já tenham desenvolvido ou venham a
desenvolver por meio das tentativas e dos erros que vão cometendo conforme vão
realizando-as. Essa visão de ensino (e, consequentemente, de aprendizagem) de leitura
reforça uma visão behaviorista (ou neobehaviorista, nas palavras de Litowitz, 1993,
apud KIRSHNER e WHITSON, 2009) de aprendizagem em que o aluno aprende por
repetição e erro, de forma passiva.
Dessa maneira, mesmo que haja questões que estimulem ou reconheçam a
integração como construção de conhecimento, a aprendizagem da leitura, em si, se dá
dentro de uma prática comportamental, pois o aluno precisa aprender a lidar com essas
questões sem que haja qualquer reflexão sobre esse processo de aprendizagem. Isso se
manifesta também na (não) progressão em relação aos tipos de questões de leitura que
são trabalhadas ao longo das unidades dos livros – sempre se repetem os mesmos
modelos de questões que trabalham as mesmas habilidades de forma aleatória,
independentemente dos textos trabalhados.
Em relação às questões inferenciais, como se pode ver anteriormente, apresentam-
se, basicamente, dois problemas que dificultam o trabalho do aluno ao respondê-las: a)
não guiam o aluno-leitor a sistematizar seu processo de explicitação de inferências e, b)
ainda que as questões considerem um trabalho inferencial com a leitura dos textos, o
334
gabarito, de modo geral, aceita qualquer resposta como possível ou se aferra a uma
única possibilidade de leitura do texto – a do autor do livro didático.
Assim, não se estimula, de fato, uma integração entre os saberes trazidos pelos
alunos e saberes trazidos pelo livro didático, já que as respostas dadas pelos gabaritos
ignoram as possibilidades de integração entre os conhecimentos prévios dos alunos e os
textos dos livros. Dessa forma, muitas vezes, a proposta das questões é anulada, já que
se contraria os princípios de um trabalho de leitura desenvolvido no plano inferencial.
Poucas são as atividades, de modo geral, que levam o aluno a ativar seu conhecimento
prévio de uma melhor maneira e que validam esse conhecimento para que, a partir dessa
validação, ele possa alcançar uma integração com o texto, focada em um objetivo de
leitura.
Entendo que isso aconteça porque atravessam essa discussão políticas cognitivas,
que, como já analisado no capítulo anterior, oscilam entre recognição e invenção tanto
nos Parâmetros Curriculares Nacionais como nos editais do PNLD e, assim, aparecem
também nos livros didáticos. Na apresentação das atividades de leitura predomina
assim, o modelo, já tradicional, da recognição, que vai sendo adaptado, na forma, em
função das novas propostas teóricas postas nos documentos oficiais. Altera-se, assim, a
forma como o texto é apresentado, mas não se altera a forma como o aluno aprende a
ser leitor desses textos.
Além disso, acredito também que o apagamento dos conhecimentos derivados dos
estudos em cognição e sua relação com a leitura fez com que não se olhasse
efetivamente, ao longo dos anos, para as atividades de leitura apresentadas aos alunos
em sala de aula. Ao apresentar-se como partindo de teorias sociointeracionistas e
discursivas, os editais focam mais nos textos apresentados do que no que se faz com ele.
Assim, sem que uma discussão sobre a aprendizagem seja apresentada nos editais, não
se enfoca em como tais teorias podem se transformar em atividades didáticas que
ensinem ao aluno formas de se relacionar com o texto, com a língua, com a leitura.
Igualmente, postulo que esse apagamento histórico fez com que a formação dos
professores e, consequentemente, de quem faz e de quem avalia esses livros (tanto para
a avaliação do PNLD como para o uso em sala de aula) deixasse de prepará-los para a
avaliação e produção de atividades de leitura centradas nos processos desenvolvidos
pelos alunos e não nas informações (linguísticas, textuais, genéricas, temáticas,
contextuais etc.) trazidas nos textos lidos. Acredito que é justamente a inserção dos
335
estudos em cognição que permite o desenvolvimento efetivo de uma discussão sobre
aprendizagem, tendo em vista que as teorias linguísticas diversas, de modo geral, não
trazem consigo pressupostos de como se aprendem as práticas que podemos
desenvolver com a linguagem, principalmente, em contexto escolar.
7.2. Como os alunos se integram às atividades de leitura dos livros didáticos?
Neste momento da tese, analiso, então, para finalizar os planos de análise
anteriormente apresentados, as respostas dos alunos para as questões de leitura dos
livros didáticos. Dentro desse parâmetro, é importante considerar o fato de que, no
momento de aplicação das atividades, apenas dois livros estavam em circulação nas
escolas públicas brasileiras – os aprovados na edição de 2014 do PNLD. Para o
desenvolvimento desta etapa de análise, eu selecionei, então, uma atividade de cada um
dos dois livros anteriores ao primeiro PNLD e uma atividade dos dois livros aprovados
no PNLD 2014.
Dessa forma, levando-se em conta a oscilação com que se construiu essa breve
trajetória dos livros didáticos de espanhol, apresentada nas seções anteriores, acredito
que essa análise restrita aos primeiros e aos últimos livros consegue apresentar um
panorama comparativo interessante sobre a capacidade de essas atividades validarem as
inferências construídas pelos alunos e lhes auxiliarem nesse processo de construção ou
de explicitação. Como se trata de atividades pontuais e não de um trabalho progressivo,
não há como avaliar a capacidade dos livros de auxiliarem os alunos em seu
desenvolvimento metacognitivo, mas é possível verificar se as atividades apontam para
esse caminho ou não.
Para o desenvolvimento dessa análise, trabalhei com as mesmas categorias
apresentadas anteriormente, tanto em relação às questões como em relação às respostas
dos alunos: a) ativação de conhecimento prévio; b) literal; c) literal-inferencial; e d)
inferencial. As questões e as respostas dos alunos serão agrupadas nessas categorias e
analisadas comparativamente entre si e entre elas e o gabarito apresentado pelos livros.
Para o desenvolvimento da análise, foi importante dividir as respostas literais que
atendem ao gabarito e as que não atendem. Destaco ainda que, como essas atividades
foram aplicadas em dias diferentes de aula, não necessariamente o número de alunos
336
que as responderam será o mesmo para todas. Além disso, os alunos foram autorizados
a responderem as questões na língua de sua preferência (português, espanhol ou
misturando as duas).
7.2.1. Atividade do livro “Arriba”
A atividade selecionada do livro “Arriba” se encontra na seção “Entretextos”, ao
final da unidade 6: “Estoy perdido”. Os objetivos da unidade são apresentados na
imagem abaixo. Nela, é possível observar que não há qualquer objetivo proposto que
envolva habilidades de leitura, o que pode levar à compreensão de que o texto está
apenas servindo a esses objetivos “comunicativos”, centrados no uso de certas
expressões. Ou, como postulado anteriormente, que a atividade de leitura se encontra ao
final justamente por ser uma atividade extra sem qualquer relação com o trabalho
desenvolvido na unidade e que, portanto, pode ser facilmente dispensada.
Figura 22 - Objetivos da unidade 6 - "Estoy perdido" do livro "Arriba"
A atividade se apresenta em uma única página (RINALDI e CALLEGARI,
2004, p. 102), como se pode ver na figura 23. Logo de início, se pode notar que não há,
antes do texto, qualquer questão de pré-leitura. Entretanto, aparece para o professor uma
instrução logo abaixo do texto:
Explícales que el barrio de La Boca está en Buenos Aires, Argentina y
diles que se acuerden del equipo de fútbol Boca Juniors. Ofréceles
ayuda con el vocabulario si hace falta, o diles que consulten un
diccionario o el glosario del final del libro. Después de la lectura, diles
que contesten a las preguntas de comprensión (RINALDI e
CALLEGARI, 2004, p. 102).
338
A partir dessas orientações, é importante observar que o trabalho com o
conhecimento prévio é tratado com o mesmo peso que orientações que não fazem falta
ao trabalho do professor, como a de que ele precisa pedir aos alunos para que façam a
atividade, por exemplo. Nota-se também que o livro acredita que o conhecimento prévio
é dado e, por isso, comum a todos, uma vez que ele parte do pressuposto de que os
alunos já conhecem o time Boca Juniors, e, por isso, o professor apenas precisa lhes
lembrar disso.
Além disso, como se poderá ver a seguir, essa informação não faz qualquer
diferença no desenvolvimento da atividade. Inclusive, a informação de que o bairro está
na Argentina já aparece no texto, não precisando, assim, ser apresentada pelo professor.
Deveria, na verdade, ser feito um trabalho maior anteriormente à leitura do texto que
fosse além dessa identificação e que efetiassem contribuísse para a ativação / construção
de conhecimentos prévios que pudessem auxiliar os alunos em suas leituras.
Todas as questões que seguem à primeira leitura do texto são questões literais,
com respostas facilmente localizáveis no texto:
a) ¿Dónde surgió el barrio La Boca, que está en Buenos Aires?
Alrededor del primer puerto natural.
b) ¿De qué país eran los principales inmigrantes del nuevo barrio?
De Italia.
c) ¿Qué hay en la escuela Pedro de Mendoza?
Hay una escuela primaria, un museo y un teatro.
d) ¿Qué hay de especial en las casas de la calle Garibaldi?
Son hechas de chapa y pintadas de varios colores alegres como verde,
amarillo, rojo, celeste, naranja, azul.
e) ¿En la calle Caminito pasan coches? ¿Por qué?
No, porque es una calle peatonal, o sea, en ella sólo se puede caminar.
Em relação a essas atividades, as respostas dos alunos foram classificadas de
acordo com o quadro abaixo:
Tabela 3 - Respostas da atividade de leitura selecionada do livro "Arriba"
Qu
estã
o Respostas
To
tal
Conhecimen
to Prévio
Literal igual
ao gabarito
Literal
diferente do
gabarito
Literal-
inferencial
Inferencial Branco
A - - 12 60% 8 40% - - - - - - 20
B - - 16 80% 4 20% - - - - - - 20
C - - 20 100% - - - - - - - - 20
339
D - - 12 60% 8 40% - - - - - - 20
E 3 15% - - 13 65% - - 4 20% - - 20
Como todas as questões são literais e, portanto, exigem dos alunos a seleção de
informações explicitamente apresentadas no texto, a maior parte das respostas dos
alunos cumpriram com o esperado pelo livro, sendo também literais. Entretanto, é
interessante observar que, nem sempre, essa seleção correspondeu ao que o livro
apresentou como gabarito, o que revela o caráter seletivo de qualquer leitura.
Observando questão por questão, é possível entender melhor como essas respostas
foram selecionadas pelos alunos.
Em relação à primeira questão, 8 respostas são diferentes da esperada pelo livro
e 12 correspondem ao gabarito, não necessariamente com resposta idêntica à proposta
pelo livro, mas indicando, de alguma maneira, que La Boca surgiu perto ou nos
arredores de um porto natural. As respostas que se diferiram disso podem ser divididas
em dois grupos. O primeiro grupo é composto por 5 alunos que responderam
“Argentina”, que, apesar de não corresponder ao gabarito proposto, também responde
corretamente à questão. Aqui é interessante observar que estes alunos, ao invés de
utilizarem o frame centro-periferia para responderem uma questão sobre a espacialidade
do bairro, utilizaram o frame de contêiner, uma vez que esse bairro se encontra dentro
de um país. Essas respostas, inclusive, apresentam um padrão mais prototípico para a
questão “Onde?” do que a sugerida pelo gabarito. O segundo grupo apresenta respostas
que selecionaram palavras ou trechos aparentemente aleatórios do texto:
2 – La boca es un barrio lleno de sorpresas e historia.
10 – escuela
20 – Escuelas
Essas respostas demonstram que os alunos não entenderam a questão ou não
entenderam o texto. Entretanto, é interessante observar que, mesmo assim, a estratégia
selecionada por eles foi a seleção e a cópia de algum fragmento do texto, o que
demonstra que esse modelo de interação com o texto e com as questões do livro didático
foi aprendido ao longo de seus anos de escolaridade.
Na segunda questão, além dos 16 alunos que responderam como o gabarito,
indicando que os imigrantes eram italianos, apresentaram-se 4 respostas diferentes
dessa. Duas delas propõem que os imigrantes eram da Argentina, e duas delas que eles
340
eram da Argentina e da Itália, o que demonstra, provavelmente, apenas a incompreensão
do que significa a palavra “inmigrante”, ainda que o mesmo frame de nacionalidade
tenha sido ativado em todas as respostas.
Na quarta questão, encontram-se 12 respostas semelhantes à proposta pelo
gabarito, indicando, de alguma maneira, uma das duas características nele apresentadas
para as casas da rua Garibaldi: serem feitas de chapas metálicas e serem coloridas.
Outras seis respostas foram também literais, mas apresentaram outra característica que,
segundo os alunos que as responderam, tornariam as casas dessa rua especiais: o fato de
haver uma linha de trem passando no meio da rua. Outras duas selecionaram
características de outra rua – a Caminito: a presença de uma feira artesanal e de um
teatro. Em relação a essas outras respostas, é interessante observar como elas ampliam,
em relação à proposta do gabarito, o frame de “casa especial” ao trazerem para essa
caracterização também elementos externos a essas casas e que se encontram ao redor
delas. Assim, muitos, por exemplo, consideram mais especial o fato dessas casas
estarem em uma rua em que passa uma linha de trem do que o material com que elas foi
feito e as cores com que foram pintadas. Muito provavelmente, isso se dê em função da
sua própria experiência com elementos que compõem o seu frame “casa”,
A quinta questão apresenta resultados mais interessantes. Para entendê-los, é
preciso observar que a questão exige um conhecimento lexical de uma palavra
específica, uma vez que a resposta sugerida pelo gabarito traz a necessidade de que o
aluno saiba o significado de “peatonal” e saiba que esse tipo de rua é exclusivo para
pedestres. Assim, a resposta depende tanto do conhecimento lexical de “peatonal” como
da ativação do frame de rua para pedestres (“calle peatonal”) pelos alunos, algo
incomum em nossas cidades e inexistente nas regiões próximas a que os alunos vivem.
Além disso, ainda que a questão não aponte explicitamente para nenhum fragmento do
texto, como nas anteriores, sua resposta exige o reconhecimento e a seleção de um
fragmento do texto. Sem, entretanto, conhecerem o significado dessa palavra e sem
serem direcionados pela pergunta a qualquer fragmento do texto, os alunos receberam a
questão de diferentes modos, e nenhum deles deu a resposta esperada pelo gabarito.
Do total de 20 alunos, 13 selecionaram outras informações para justificar sua
resposta, 4 deram respostas inferenciais e 3 apenas ativaram seu conhecimento prévio,
ignorando informações dadas pelo texto. Das 13 respostas literais, 9 indicaram que não
poderia passar carros ali, porque a rua é um museu ou uma feira de artesanatos a céu
341
aberto. Dessa maneira, a experiência dos alunos com museus ou feiras, e a ativação
desses frames em sua memória, fez com que eles chegassem à conclusão esperada pelo
gabarito. Outras quatro indicaram também que não, pois há uma linha de trem no meio
dela, confundindo a Rua Garibaldi com a Rua Caminito. As respostas que demonstram
apenas a ativação de conhecimento são de duas naturezas diferentes. Duas delas partem
apenas da forma da palavra “peatonal”, traduzindo-a por “pantanal” e apontando que
não poderia passar carros na rua por isso. Assim, ignoram-se outras informações do
texto que comprovam que não havia um pantanal ali. A outra resposta igualmente
ignora informações do texto e diz que:
19 – Sim, porque era uma rua normal.
Já as respostas inferenciais podem ser divididas em dois grupos. No primeiro
dele, encontram-se duas respostas baseadas em inferências lexicais, que fazem
referência ao tamanho da rua em função de seu nome estar no diminutivo. Assim, a
palavra “Caminito” ativou ou criou um frame de “rua pequena” e fez com que eles o
opusessem, através de um processo inferencial ao frame de “rua onde passam carros”.
Considerando-se as localidades em que esses alunos vivem, em bairros pobres ou
favelas, é possível que conheçam ruas pequenas (estreitas) nas quais, de fato, é
impossível que carros passem.
16 – Não, porque o caminho é muito pequeno.
18 – Não, porque o caminho é muito pequeno.
As outras duas respostas justificaram o fato de passar carros na rua Caminito
pelas coisas que atrairiam a ida de pessoas até ela. Dessa forma, passariam carros ali
porque essa seria uma das formas de se chegar até essas coisas. Sem o conhecimento do
que seria uma rua “peatonal”, lexicalmente e experiencialmente, os alunos construíram
inferências mais globais a partir de outros elementos apresentados no texto, ativando o
frame de trajetória e negando, assim, a possibilidade de que não passem carros em uma
rua com tantos atrativos.
3 – Sim, porque eles querem i ao museu Caminito.
9 – Sim, porque tem muitas coisas que algumas pessoas gosta.
Nessa atividade, assim, é possível observar pequenos caminhos tomados pelos
alunos que rompem com a lógica reprodutiva em relação ao trabalho com a leitura
proposto pelo livro, mesmo que a atividade não tivesse pensado neles. Dessa forma,
ainda que o livro se proponha a construir políticas de recognição em sala de aula e
342
fomentar uma visão de leitura como repetição do que já foi dito, alguns alunos
romperam com essa lógica e buscaram apresentar respostas que demonstrassem algum
nível de reflexão sobre o que leram. Como se pode ver, isso se deu em uma proporção
muito pequena, o que demonstra por um lado que os alunos, mesmo estando no 6º ano
de escolaridade, aprenderam que, na escola, ler é repetir e cumpriram com o esperado
na maior parte das questões, mesmo quando selecionavam outros fragmentos que não o
esperado pelo gabarito. Nesse sentido, não reproduziram o que se esperava, mas
reproduziram o comportamento esperado do aprendiz escolar.
7.2.2. Atividade do livro “Radix”
A atividade selecionada do livro “Radix” já foi apresentada anteriormente e se
encontra na seção “Leyendo”, ao final do módulo 6: “El vestuario”. Os objetivos da
unidade são apresentados na imagem abaixo. Nela, como no livro anterior, é possível
observar que não há objetivos propostos para as atividades de leitura. Todos fazem
referência direta a conhecimentos lexicais, gramaticais e ortográficos. Assim,
novamente, pode-se entender que o texto está apenas servindo a esses objetivos ou,
como antes, que a atividade de leitura pode ser considerada uma atividade extra
facilmente dispensada.
A atividade apresentada, no livro, em duas páginas, propõe ao aluno as seguintes
questões:
a) ¿Qué hace Laurita?
Laurita hace dibujos en la pared.
b) ¿Dónde habían ido los padres de Laurita?
Habían ido a trabajar.
c) Como siempre, ¿con quién se quedaba Laurita?
Se quedaba sola, con Humo, su gato gris.
Figura 24 - Objetivos do Módulo 6 – “El vestuario” do livro "Radix"
343
d) Retira del texto la frase que demuestra que a Laurita le gusta
dibujar.
“¡Qué lindo era hacer dibujos de colores!”
e) ¿A qué compara Laurita los lápices de color?
A caramelos.
f) (...)
g) ¿Cómo era aquella mañana?
Aquella mañana era mojada y solitária.
h) ¿Dónde pintaba Laurita y qué pintaba?
En una de las paredes, y pintaba patos, trenes, barcos y manigotes.
i) ¿Y a ti te gusta dibujar? ¿Dónde dibujas? ¿Qué dibujas?
Respuesta Personal.
Tem-se, então, sete questões de nível literal e uma questão, ao final, que solicita
apenas a ativação de conhecimento prévio dos alunos. A questão f não foi analisada
porque é uma questão de múltipla escolha. Em relação a essas atividades, as respostas
dos alunos foram classificadas de acordo com o quadro abaixo:
Tabela 4 - Respostas da atividade de leitura selecionada do livro "Projeto Radix"
Qu
estõ
es Respostas
Tota
l
Conhecimen
to Prévio
Literal
igual ao
gabarito
Literal
diferente do
gabarito
Literal-
inferencial
Inferencial Branco
A - - 25 96% 1 4% - - - - - - 26
B 1 4% 25 96% - - - - - - - - 26
C 1 4% 25 96% - - - - - - - - 26
D - - 10 38% 13 50% - - - - 3 12% 26
E - - - - 25 96% - - - - 1 4% 26
G - - 8 31% - - 3 12% 11 42% 4 15% 26
H 1 4% 24 92% - - - - - - 1 4% 26
I 26 100% - - - - - - - - - - 26
Em relação às três primeiras questões, pode-se observar que as respostas dadas
pelos alunos manifestam um comportamento muito parecido: em todas três, apenas um
aluno deu uma resposta diferente da esperada pelo gabarito. Para a primeira questão,
apenas um aluno não respondeu que Laura desenhava ou pintava e focalizou outra parte
do texto, apontando que:
25 – Laurita ficava com o gato dela quando a mamá y papá ia trabajar.
344
Já para as outras duas questões, na verdade, as respostas que se diferenciam da
esperada do gabarito vêm de um mesmo aluno e se derivam, muito provavelmente, de
dificuldades de leitura mais básicas ou de falta de interesse na tarefa:
2 – b) A escola.
2 – c) Senhora Remedios.
Em relação à questão “d”, aparece já um dado interessante, uma vez que a maior
parte das respostas dadas não corresponde à proposta pelo gabarito, ainda que sejam
também literais. O mais significativo é que a maior parte delas selecionou um mesmo
fragmento do texto – a primeira frase dele: “Voy a hacer dibujos en la pared”. Nesse
sentido, é interessante observar como esses alunos buscaram na fala da própria
personagem a comprovação de que ela gostava de desenhar. Ainda que tanto esses como
os que corresponderam ao gabarito tenham selecionado fragmentos do texto, cada um
dos grupos de alunos evidenciou um caminho de comprovação, a partir de sua própria
concepção de “demonstrar”.
Ao ativarem o frame correspondente a essa ação, dez alunos selecionaram o
mesmo fragmento proposto pelo gabarito, buscando a demonstração do conteúdo
proposto pela questão, outros dez alunos selecionaram o fragmento anteriormente
citado, buscando a demonstração de que Laurita havia falado algo em relação ao
conteúdo proposto pela questão. Além desses, dois alunos selecionaram outros
fragmentos, muito provavelmente guiados pelo uso da palavra “gosta” na questão e da
palavra “gustaba” no texto. Esses dois alunos copiaram em suas respostas, então, o
fragmento “Le gustaba sin embargo pensar en esos brillantes lápices de aceite que
tenían algunos chicos”. Outros três deixaram a questão em branco, o que também é
significativo se observarmos que esse é, até então o índice de não respostas mais alto,
justamente em uma questão com mais respostas diversas, ainda que todas literais.
A questão “e” traz um dado interessante também, uma vez que nenhuma das
respostas dadas pelos alunos estava de acordo com o gabarito, ainda que, com exceção
de uma única resposta em branco, todas elas também tenham sido também literais. O
gabarito esperava que os alunos entendessem que Laurita compara os lápis de cor com
balas (“caramelos”). Provavelmente, sem entenderem que “caramelos” eram balas, de
modo geral, e que a lista apresnetada eram sabores dessas balas, quatro dos alunos
apresentaram os sabores de bala citados ao longo do texto em suas respostas: “frutilla,
menta, chocolate, limón, dulce de membrillo, coca-cola”. Outros 17 alunos
345
categorizaram essas palavras, buscando frames que pudessem ser compostos pelos
sabores de balas citados ao longo do texto, e responderam que ela comparava os lápis a
“comidas”, “gostos”, ou “sabores”. Dois alunos disseram ainda que ela os compara a
“frutas”, focalizando mais as frutas citadas do que os outros sabores. Outros três alunos
selecionaram ainda outros fragmentos, sendo dois deles outros materiais que a Laurita
usava para desenhar no texto, fugindo, assim, dos frames ativados pelos colegas nas
respostas anteriores:
23 – Negro y azul.
20 – Compara com giz, carvão e tijolos.
10 – Ao tijolo pedra e giz.
A questão “g” é a que traz a maior diversidade de respostas. Nela, apenas 7
alunos disseram que a manhã era “molhada e solitária” como apontava o gabarito
proposto pelo livro didático. Quatro alunos deixaram a questão em branco. Além desses,
8 alunos selecionaram a informação de que a manhã era “molhada” e responderam que
era uma manhã chuvosa, de chuva ou com muita chuva, explicitando aí uma inferência
de baixo nível. Dessa forma, a ideia de “manhã molhada e solitária” apresentada no
texto ativou o frame de “manhã chuvosa”, levando-os a essa explicitação. Outros 6
alunos também deram respostas inferenciais, sendo 3 delas apoiadas em trechos
selecionados do texto e também copiados nas respostas. Nesses casos, a ativação do
frame “solidão” fez com que os alunos o integrassem às suas experiências com esse
frame e fizessem os julgamentos apresentados em suas respostas:
24 – A manhã dela era um pouco bom por que sempre os pais delas
saia é ela ficava em casa.
25 – Era ruim por que ela ficava sozinha.
22 – Uma manhã triste como siempre.
As outras respostas inferenciais não aparecem explicitamente respaldadas em
fragmentos do texto, mas são passíveis de terem sido derivadas da integração entre os
conhecimentos prévios dos alunos e o texto lido. Os alunos podem ter ativado outros
frames a partir de outros fragmentos do texto, como os de diversão, em função dos
desenhos, ou de rotina, por exemplo e tê-los integrado com suas experiências:
21 – manera
23 – bem, boa, cauma, como outra qualquer
26 – normal
Nas questões anteriores, como no livro anterior, foi possível observar que,
mesmo em questões literais, não há como garantir que os alunos selecionem os mesmos
346
fragmentos selecionados pelos autores dos livros didáticos. Aqui, é possível ver que,
além disso, não é possível garantir que, para uma questão literal, não haja respostas
inferenciais. Nesse sentido, pode-se observar, então, que, mesmo em questões literais e
mesmo em tarefas centradas em práticas reprodutoras, os alunos podem fugir do que se
espera e resgatar a natureza inferencial de qualquer leitura ao formular suas respostas.
Assim, mesmo que o livro não espere, alguns alunos se colocam como agentes de sua
leitura e, nesse momento, se permitem ir além do que está explicitamente apresentado
no texto, demonstrando que o que ali está não dá conta de expressar o que é pedido pela
questão.
Prosseguindo, as questões “h” e “i” não fogem do esperado. Para a segunda,
como se tratava de uma questão de ativação do conhecimento prévio, os alunos fizeram
o que se esperava deles e ativaram seus conhecimentos para responderem à questão.
Para a questão anterior, a grande maioria dos alunos selecionou o mesmo fragmento
esperado pelo gabarito do livro didático. Apenas um aluno deixou a questão em branco
e outro deu uma resposta que apenas representou a ativação de seu conhecimento
prévio, ignorando informações dadas pelo texto:
2 – Na escola ela pintava desenhos.
De forma geral, então, em relação a esse livro, é possível observar que a maior
parte dos alunos fez o que se esperava deles, selecionando fragmentos explicitamente
apresentados no texto para comporem suas respostas, uma vez que todas as questões,
com exceção da última, eram questões literais. Entretanto, ainda assim, foi possível
observar que mesmo a seleção de informações pode ser imprevisível dependendo da
questão que é proposta aos alunos, e que, além disso, eles podem ir além do que lhes é
proposto, se entendem que apenas a extração de um fragmento do texto não dá conta de
explicar o que se pede.
Tudo isso revela o potencial inventivo dos alunos em oposição às restrições
impostas por uma prática centrada na recognição, na ideia de leitura como reprodução
do que já foi dito. Mesmo que não haja crença em qualquer possibilidade de
agentividade por parte do leitor no desenvolvimento de sua tarefa, os alunos
demonstram que podem ser agentivos em suas leituras e criar sentidos que vão além da
recepção do que está explícito. Vamos observar agora como eles reagem a atividades
mais inferenciais, propostas pelos dois livros aprovados no PNLD 2014.
347
7.2.3. Atividade do livro “Cercanía”
A atividade aplicada do livro “Cercanía” se encontra na Unidade 2, intitulada de
“Cine en casa: ¡a convivir con la familia y la pandilla!”. Os objetivos desta unidade são
apresentados na imagem abaixo:
Figura 25 - Objetivos da Unidade 2 - "Cine en casa: a convivir con la familia y la pandilla!" do livro
"Cercanía"
Assim, é possível ver que, diferentemente dos livros inicialmente analisados, há
uma ampliação de objetivos para além do aprendizado de estruturas da língua, ainda que
tais objetivos também se apresentem. Entretanto, nenhum desses objetivos envolve
habilidades ou competências de leitura. Na verdade, excluindo-se os elementos
estruturais, não há nenhum objetivo linguístico ou de aprendizado da linguagem. Todos
são objetivos que podemos chamar de temáticos, envolvendo questões relativas à
família e ao cinema.
A atividade de leitura aplicada se adéqua perfeitamente a esses objetivos, uma
vez que envolve as duas temáticas centrais da unidade: o cinema e a família, ao solicitar
que os alunos leiam a capa e a contracapa de um DVD. É interessante observar que,
diferentemente das outras atividades aplicadas, essa apresenta um objetivo de leitura
para o aluno: “elegir si se quiere ver o no la película”. A última pergunta da atividade
toda, inclusive, retoma esse objetivo. Entretanto, como se pode ver, as questões parecem
tomar caminhos dispersos, nem sempre encaminhando o aluno para o alcance desse
objetivo. Assim, se entrecortam questões literais, inferenciais e de ativação de
conhecimento prévio que buscam fazer com que o aluno pense sobre o gênero textual,
sobre o filme apresentado e sobre a leitura de uma capa e contracapa de um DVD, como
forma de decidir se quer ou não assistir ao filme.
351
A partir delas, é possível observar que há ainda outro objetivo de leitura, que é a
compreensão da estrutura do gênero sinopse de filme, mas esse objetivo não é
explicitado ao aluno. Nesse sentido, pode-se notar que se explicita um objetivo de
leitura em termos do que o texto apresenta, mas não se faz o mesmo em função de um
processo de aprendizagem (cf. NELSON e NARENS, 1996).
É possível ver que a atividade, como todas as atividades do livro, é dividida em
três partes: a primeira trabalha com a pré-leitura, a partir da leitura de uma capa de
DVD. A segunda é o momento da primeira leitura do texto e a terceira é o momento em
que as questões de leitura aparecem, podendo levar ou não o aluno a fazer novas leituras
dos textos em função do que se pergunta. Para o desenvolvimento da análise aqui
apresentada, também trabalharei com a divisão proposta pelo livro. Assim, num
primeiro momento, trabalho com a análise das questões de pré-leitura e depois com as
questões de leitura do texto principal.
No momento de pré-leitura, parece que um novo objetivo de leitura se coloca,
mas esse objetivo é retomado somente ao final da atividade toda. Antes do aluno ler a
capa do DVD, pergunta-se a ele: “¿Sabes qué es una familia ensamblada? Mira la tapa
del DVD de la película Míos, tuyos, nuestros y haz hipótesis”. Aqui é interessante que
leva-se o aluno a pensar sobre um termo que não aparece no texto, de modo bastante
artificial, posto que o trabalho com a inferência lexical precisa ser feito a partir do que
aparece no texto. No caso da atividade, da forma como o enunciado está colocado,
parece que o texto está ali para servir a esse conhecimento lexical. Depois, esse
levantamento de hipótese não é retomado. Faz-se apenas uma observação ao professor:
Probablemente los alumnos todavía no conocen el significado del
verbo ensamblar. Pero algunos elementos de la tapa del DVD pueden
ayudarles a comprender que ensamblar significa “unir, juntar, ajustar”.
El uso de los pronombres míos y tuyos remite a la junción (unidad) a
partir del posesivo nuestros.
As questões de pré-leitura, a partir da leitura da capa, são postas assim:
1. Básandote en la tapa, la película es esencialmente: ( ) de horror. (x)
de comedia. ( ) de aventura. ( ) de ciencia ficción. ( ) de amor.
2. ¿Qué elementos te permiten inferir el género de la película?
La pelota, el skate, el cerdo comiendo pizza, los hijos intentando salir,
la frase “¡qué locura!”, las expresiones de los padres.
3. ¿Qué esperas ver en esa película? ¿Cómo debe ser su trama?
Por la tapa, se espera ver una película entretenida con mucho lío, pues
las expresiones en el rostro de los padres son de susto. Están
intentando cerrar las puertas para que sus hijos no se encuentren.
352
Además hay un cerdo comiendo una pizza. Son dos padres y 18 hijos;
probablemente, habrá problemas.
Assim, notam-se duas questões inferenciais – a primeira e a terceira – e uma
questão literal que busca justificar a primeira questão literal. A terceira questão também
é derivada das duas anteriores. Em relação à primeira, todos os 18 alunos que
responderam a atividade disseram que o filme seria um filme de comédia. Para as outras
duas questões, a classificação das respostas ficou assim:
Tabela 5 - Respostas dos alunos à atividade de pré-leitura do livro Cercanía
Qu
estõ
es
Lit
era
is Respostas
To
tal
Conhecimen
to Prévio
Literal igual
ao gabarito
Literal
difer. do
gabarito
Literal-
inferencial
Inferencial Branco
2 - - 4 22% 11 61% 2 11% 1 6% - - 18
Qu
estõ
es
Infe
ren
c.
ais
Conhecimen
to Prévio
Literal Literal-
inferencial
Inferencial
igual ao
gabarito
Inferencial
difer. do
gabarito
Branco
Tota
l
3 - - 1 6% - - - - 17 94% - - 18
Pode-se ver, assim, que boa parte das respostas dadas pelos alunos não atendeu
ao esperado pelo gabarito do livro, mesmo que todos tenham identificado que se trata de
um filme de comédia. Esse é um dado interessante, inclusive, porque o livro não
apresenta qualquer flexibilização em relação às respostas esperadas, o que contraria a
essência de um trabalho com a construção de conhecimento prévio e com o plano
inferencial de leitura, esperado em um modelo de três etapas como esse.
Sobre a primeira, apresentam-se apenas duas respostas literais-inferenciais, em
que aparece uma inferência construída pelos alunos acompanhada de informações
extraídas da linearidade do texto:
3 – Eu que todos são bagunceiros que são 18 nem uma casa.
7 – Por causa que eles querem se “livrar” das pessoas, pelas caras
deles, e pela frase ali no canto.
Além dessas, como resposta não literal, aparece uma resposta que foi
classificada como inferencial, apesar de o aluno ter acreditado que dava uma resposta
literal, uma vez que ele diz que, na capa do DVD, há uma informação que, em nível
explícito, não existe:
353
9 – Porque eu acho que filme de comédia porque a capa está falando
que é de comédia
Dentre as respostas literais, aparecem 4 que, de algum modo, correspondem a
elementos apresentados no gabarito da questão:
13 – Pela cara deles e das crianças.
12 – Pela cara deles e das crianças.
11 - ¡qué locura!
4 – Pelo jeito que a cara deles eles estão.
Ainda que elas correspondam parcialmente ao gabarito, pode-se notar que
nenhuma delas explica realmente porque elas embasam a inferência construída de que
se trata de um filme de comédia. Na verdade, o gabarito, ao focar exclusivamente na
linearidade do texto, também não o faz. Entre as respostas que não correspondem ao
gabarito, vê-se a mesma situação, com algumas respostas pouco precisas:
18 – pela capa
16 – pela foto e pelo nome
15 – Os elementos que me fais acha que esse filme é de comedia é por
que tem um homem e uma mulher fazendo senas engrasadas.
17 – pela foto engraçada
14 – a foto aparece muita gente
10 – eles segurando a porta
8 – gênero textual
1 – a capa de um DVD
5 – dois pais segurando a porta
6 – é muita familia
2 – que eles estão fugindo dos filos
Assim, a maior parte dos alunos foi capaz de responder à questão, apresentando
elementos da capa do DVD que fizeram com que, ao integrá-los às suas experiências,
ativassem o frame de filme de comedia. Entretanto, sem que a questão peça e ensine o
aluno a explicitar a integração entre seus conhecimentos prévios e as informações do
texto, não aparecem respostas que efetivamente expliquem as inferências construídas,
ou seja, que expliquem o processo em sua totalidade e não que apenas apontem para a
linearidade do texto.
Na questão 3, inferencial, acontece o mesmo: explicitam-se inferências, mas
não se explicam como elas foram construídas. O curioso é que o gabarito dessa questão
aponta para movimentos integrativos, explicitando inferências e elementos do texto que
as embasam. Entretanto, isso não aparece na questão, o que nos leva mais uma vez à
percepção de que há uma naturalização do aprendizado da leitura e de que o livro
acredita que o aluno deva aprender as habilidades de leitura que ele lhes exige apenas
354
por tentativa e erro. Assim, nenhuma das respostas acompanha o gabarito. Nos
exemplos abaixo, é possível ver como as respostas dos alunos se constroem de forma
vaga ou focadas simplesmente na ideia de comédia ou na ideia de família com
problemas, ou seja, apresentando apenas, e novamente, o frame ativado a partir da
leitura da capa do DVD ou apenas o resultado do processo de integração entre ele e o
conhecimento prévio, mas nunca o processo em si:
6 – muita comédia
5 – Uma familia com muitas dificuldades na familia
2 – uma familia muito bagunçada.
1 – um filme engraçado
10 – Muito engraçada. Muita palhaçada.
17 – muito legal, muita diversão.
15 – Espero ver uma familia com varios filhos com problemas de
convivência um com o outro.
9 – muito engrasada
12 – Uma familia muito maluca.
Além delas, há uma resposta literal que seleciona um fragmento do texto que
aparece na capa: “8 - 18 hijos, uma casa...¡qué locura!”. Assim, é possível observar que,
apesar de partir uma ideia interessante – a ativação e construção de conhecimentos
prévios por parte dos alunos a partir da leitura da capa do DVD –, o trabalho de pré-
leitura pouco contribuiu para o desenvolvimento da leitura da sinopse, a não ser pelo
fato de os alunos terem hipotetizado que se trata de um filme de comédia – algo pouco
retomado nas questões seguintes.
Na etapa seguinte, aparece o enunciado que propõe efetivamente um objetivo
para a leitura do texto pelo aluno:
En la contratapa de un DVD aparece la sinopsis de la película, que nos
cuenta un poco sobre la historia que se verá. Pero, además de la
sinopsis, hay otras informaciones, tales como idiomas, subtítulos,
duración, escenas extras, entre otras. Pon atención en todo y, al final
de las actividades, vas a decir si quieres ver o no esa película.
Entretanto, ao mesmo tempo em que apresenta um objetivo específico para a
leitura dos alunos, o enunciado se contradiz ao pedir a eles que ponham atenção em
tudo, como se, para cumprir esse objetivo específico, fosse necessário fazer uma leitura
detalhada de toda a contracapa do DVD. Essa contradição em relação às instruções
acaba por negar a possibilidade de o aluno desenvolver estratégias, habilidades e
competências de leitura relativas ao cumprimento de um objetivo para sua leitura, o que,
consequentemente, atrapalha seus processos inferenciais.
355
As questões sobre a leitura do texto principal – a contracapa do DVD –
apresentam também o trabalho com diferentes níveis de leitura e diferentes objetivos.
Entretanto, não há uma progressão entre as questões em direção ao objetivo pretendido
pela atividade, como se pode ver abaixo:
1. Por la sinopsis ¿qué quiere decir el título de la película Míos, tuyos,
nuestros?
Un hombre soltero tiene sus propios hijos y forman una familia; una
mujer soltera tiene los suyos y forman otra familia. Si se unen estas
dos famílias en una sola, el hombre y la mujer ya no podrán hablar
sólo de “mis hijos”y “tus hijos”sino también de “nuestros hijos”.
2. ¿Qué informaciones hay en la sinopsis? ¿En ella se debe elogiar o
criticar el filme?
La sinopsis presenta de forma objetiva y sintética la estructura
narrativa de una película, a partir de su trama principal, destacando los
elementos de espacio/tiempo, personajes y situaciones clave. La
sinopsis debe elogiar el filme para que las personas quieran verlo.
3. ¿Se puede contar el desenlace? ¿Por qué?
No se puede contar el desenlace ya que el lector, si sabe el desenlace,
problablemente, no querrá ver la película. Hay que mantener la
curiosidad de ver en qué acaba todo.
4. Según la sinopsis, ¿los hijos están de acuerdo con el matrimonio?
¿Qué hacen?
En la sinopsis se dice que las dos famílias chocan desde el primer
momento, de modo que los hijos traman un plan para sabotear el
matrimonio.
5. La película Míos, tuyos, nuestros es esencialmente una comedia.
En la sinopsis, ¿cuál es la expresión que aparece relacionada con la
risa?
La expresión es “reír a carcajadas”.
6. ¿Cómo imaginas que será el final de la película?
Las respuestas son personales, pero los alumnos tienen que decir si la
pareja se mantendrá o no, o sea, si los hijos conseguirán o no sabotear
el matrimonio.
7. ¿Qué otras informaciones da la contratapa? Anota los elementos
más importantes.
Actores principales: Dennis Quaid y Rene Russo
Idiomas: español, inglés, catalán e italiano
Subtítulos: español, inglés, portugués, italiano, holandês, e hindu
Duración: 84 minutos
8 ¿Qué elementos extras trae el DVD? ¿Para qué sirven?
Los elementos extras son: comentarios del director, escenas
eliminadas, cómo se hizo la película, el trailer del cine y algunos
documentales. La función de esos extras es añadir informaciones
sobre la película, su temática, su técnica y exponer puntos de vista de
los que trabajaron en la película, su temática, su técnica y exponer
puntos de vista de los que trabajaron en la película sobre el proceso de
trabajo a lo largo de las grabaciones.
9. La película trata de una familia ensamblada, esto es, formada por
personas que fueron casadas y que tienen hijos de otro matrimonio.
¿Conoces alguna familia así?
Respuesta personal.
356
10. ¿Te dan ganas de ver la película? Si vas a alquilarla, ¿qué tal hacer
palomitas para comer mientras te diviertes con tus amigos?
La respuesta es personal, si al alumno le gustan películas de comedia
le darán ganas de ver la película.
Como as questões aparecem de modo não progressivo, para facilitar a
compreensão de como os alunos lidam com os diferentes tipos de questões, na tabela
abaixo e na análise que se segue a ela, agrupei as questões de ativação de conhecimento
prévio, as questões literais, as questões inferenciais e as questões literais-inferenciais.
As respostas dos alunos foram classificadas assim, segundo cada tipo de questão:
Tabela 6 - Respostas dos alunos à atividade de leitura do livro "Cercanía"
Qu
estõ
es
Lit
era
is Respostas
To
tal
Conhecimen
to Prévio
Literal igual
ao gabarito
Literal
difer. do
gabarito
Literal-
inferencial
Inferencial Branco
4 - - 18 100% - - - - - - - - 18
5 - - 6 33% 7 39% - - - - 28 % 18
7 - - 18 100% - - - - - - - - 24
Qu
estõ
es
Infe
ren
c.
ais
Conhecimen
to Prévio
Literal Literal-
inferencial
Inferencial
igual ao
gabarito
Inferencial
difer. do
gabarito
Branco
Tota
l
1 - - 14 78% - - 3 17% 1 5% - - 18
6 - - - - - - 4 22% 11 61% 3 17% 18
10 - - - - - - 18 100% - - - - 18
Qu
estõ
es
C.
Pré
vio
Conhecimen
to Prévio
Literal Literal-
inferencial
Inferencial
Branco
Tota
l
2 9 50% 3 17% 3 17% 2 11% - - 18
3 18 100% - - - - - - - - 18
9 18 100% - - - - - - - - 18
Qu
estõ
es
Lit
. In
f. Conhecimen
to Prévio
Literal igual
ao gabarito
Literal
diferente
do
gabarito
Inferencial
diferente do
gabarito
Literal
Inferencial
igual ao
gabarito
Literal
Inferencial
igual ao
gabarito
To
tal
8 1 5% 10 56% 1 5% 1 5% 2 11% 3 17% 18
357
Em relação às questões literais, é possível notar que, em duas delas, na 4ª e na 7ª
questões, todos os alunos atenderam ao que se esperava, localizando as informações
solicitadas no texto. Em uma delas, porém, há uma dispersão interessante entre as
respostas. Na questão que pede que os alunos localizem uma expressão relacionada ao
riso – questão 5 – 6 alunos selecionaram o fragmento esperado e outros 7 selecionaram
outros fragmentos, inclusive da capa do DVD, como se pode ver abaixo. Dessa forma,
sem talvez saberem o que significa a expressão “reir a carcajadas”, eles buscaram no
texto elementos que também estivessem relacionados ao frame de “riso”:
9 – Por causa do final.
10 – Eles seguram a porta cheia de filhos.
5 – Un viudo conochos hijos, dirige un lugar como se fuera un buque
de guerra.
6 – perturba
18 – del caos más absoluto
13 – en esta comedia
15 – en esta comedia
Além desses alunos, outros 5 deixaram a questão em branco. Sobre essa questão,
é importante salientar que ela poderia justamente servir como forma de levar o aluno à
comprovação da hipótese anteriormente levantada sobre o gênero do filme. Entretanto,
esse trabalho não foi feito, e a própria questão já confirma que se trata de um filme de
comédia, sem que o aluno seja levado a buscar essa informação. Como está posta, a
questão parece estar mais interessada em trabalhar apenas um conhecimento lexical
específico do que uma habilidade de leitura.
Em relação às questões inferenciais, apenas em uma delas todos os alunos
responderam o esperado pelo gabarito: justamente, na questão final que solicitava que
os alunos dissessem se querem ver o filme ou não. Isso aconteceu porque o gabarito
exigia apenas um sim ou não, sem qualquer tipo de justificativa em relação à resposta
dada. Do total de alunos, 5 disseram que não desejariam ver o filme e 13 disseram que
sim. O interessante é que, mesmo sem que a questão solicitasse, 2 alunos justificaram
suas respostas.
4 – Sim, pois parece emocionante.
7 – Tenho vontade de assistir o filme e faria pipoca porque o filme
parece legal e acompanhado com pipoca melhor ainda.
Quanto à questão 1, também inferencial, é possível notar que a maior parte dos
alunos a entendeu como sendo uma questão literal, apenas traduzindo o título para
“meus, teus, nossos” e / ou copiando palavras da sinopse que remetam a esses
358
pronomes, a partir do frame de família – foco do filme e de sua sinopse apresnetada na
contracapa do DVD, tais como “filhos / hijos” ou “familia / família”. Apenas três
alunos explicitaram a mesma inferência sugerida pelo gabarito, também a partir da
ativação do mesmo frame.
15 – Porque os filhos são dele e também tem os dela ai junta tudo vira
nosso.
7 – Primeiro, ele tem os filhos dele (míos) e ela tem os dela (tuyos) e
depois todos se junta (nuestros).
6 – Os filhos dele e os filhos dela juntos.
Além desses, outro aluno explicitou outra inferência, diferente das sugeridas
pelo gabarito, mas ainda dentro do mesmo frame, o que comprova que os alunos se
mantiveram em raciocínios próximos para responder à questão, inclusive, em relação ao
fato de não terem dado o detalhamento esperado pelo gabarito do livro.
1 – Parece ser uma família muito engraçada.
A questão 6 apresenta um gabarito interessante, porque ele solicita dos alunos
algo que não aparece na pergunta. A pergunta pede apenas que os alunos digam como
imaginam que será o final do filme e o gabarito pede que eles digam necessariamente se
o casal ficará junto ou não. Por conta disso, apenas 4 alunos corresponderam ao que o
gabarito sugeria:
5 – Eles se casam.
8 – O casamento dos pais vai acabar.
6 – O casamento vai acabar
15 – O casal vai resolver os problemas dos filhos e ficar juntos
Os outros alunos deram respostas diversas, tais como. Aqui, é interessante
observar como nas respostas anteriores o foco está no frame de casamento e de casal,
como esperava o gabarito, e, nas seguintes, no frames de família e de felicidade:
1 – Com todo mundo feliz.
6 – muito ruim.
7 – eu acho que eles vão acabar virando uma família unida e legal.
10 – Todos se separam.
2 – Eu imagino a familia inteira feliz.
3 – Eles se dão bem
18 – Um final feliz, com muito amor.
Assim, como a questão não orienta os alunos nesse processo, o que poderia ser
feito, inclusive, a partir da verificação de que realmente se trata de um filme de
comédia, as respostas, novamente, se apresentam de forma bastante vaga e sem
359
nenhuma justificativa, independentemente de estarem de acordo com o gabarito ou não.
Ainda se somam a essas respostas três outras deixadas em branco.
Entre as questões de ativação de conhecimento prévio, é possível notar que, em
duas delas, todos os alunos ativam seu conhecimento prévio para respondê-las. Uma
delas – a questão 9 – é uma questão como as que se apresentaram nos primeiros livros.
Ao final da atividade de leitura, pede-se para o aluno dizer se ele conhece uma família
“ensamblada”, após a própria questão dar a definição do termo. Dez alunos disseram
que não e 8 que sim. Nenhum deles justificou a resposta, mesmo porque a questão não
exigia isso.
As outras duas questões, na verdade, poderiam atuar como questões inferenciais
se remetessem à integração entre os conhecimentos prévios dos alunos e a leitura do
texto. São duas questões centradas na estrutura do gênero “sinopse de filme”.
Entretanto, como elas não fazem qualquer referência – nem em seus gabaritos – ao texto
lido, elas acabaram se tornando questões de ativação de conhecimento prévio, uma vez
que exigiriam do aluno um saber prévio sobre o gênero lido. Obviamente, os alunos
poderiam utilizar a leitura do texto para inferir informações sobre os gêneros, mas as
questões não parecem organizar-se em função disso. Assim, o livro parece esperar que
os alunos já saibam como se estrutura o frame “sinopse de filme” e não que construa
esse conhecimento em inte(g)ração com o texto.
Na questão 2, metade dos alunos ativou seu conhecimento prévio, respondendo
apenas à segunda parte da pergunta e dizendo que a sinopse deve elogiar ou criticar o
filme, sem qualquer justificativa, uma vez que a questão também não a exigia. Desses,
apenas 2 disseram que a sinopse deveria criticar o filme, fugindo do que o gabarito
esperava deles. Outros três trazem respostas literais, selecionando fragmentos do texto
lido:
16 – español, inglés
8 – tem que é de comedia e que tem cenas eliminadas
13 – O filme vai te fazer rir e ele é divertido.
Outros três dão respostas literais-inferenciais, respondendo às duas perguntas
propostas. Aqui cabe ressaltar que o julgamento sobre se a sinopse deve elogiar ou
criticar o filme pode ser, na verdade, apenas a ativação de um conhecimento prévio que
o aluno já possuía antes de ler o texto. Nessas três, é interessante observar como o frame
de família, central na construção do filme, se evidencia.
360
18 – Elogiar mostrando como uma família com rotina diferente junta a
outra.
7 – Um par de pais (divorciados) resolvem se casar, os filhos de um
não corresponde ao jeito de ensinar aos filhos do outro e todos os
filhos fazem de tudo para eles se separarem. A sinopse deve elogiar o
filme.
2 – Que é uma família bem complicadar, crítica.
Outras duas respostas foram classificadas como inferenciais, mas, como nas
anteriores, pode ser que elas apenas representem o conhecimento prévio dos alunos
sobre o gênero lido. Nelas, diferentemente das anteriores, o frame de família é ignorado
e os alunos focam apenas na estrutura do gênero:
1 – Tem as informações do filme todo menos o final. elogiar.
17 – elogiar. Tem que fala sobre oque tem no filme.
Em relação à terceira questão, todos os alunos responderam ativando seu
conhecimento prévio, sem fazer qualquer referência ao texto lido, dizendo que uma
sinopse não pode contar o final de um filme. Dessa forma, os alunos ativam o frame
“assistir a um filme” e constroem seus julgamentos a partir disso e de suas próprias
experiências com esse frame. Nenhum deles, porém, deu a justificativa proposta pelo
gabarito de que as pessoas deixariam de querer ver o filme por isso, o que, inclusive, é
algo bastante pessoal. Abaixo, apresentam-se alguns exemplos de respostas:
13 – Não, porque já vai saber o final.
1 – Não. Porque o filme vai ficar sem graça.
7 – Não, para deixar o telespectador curioso.
11 – Não, porque estraga.
12 – Não. Porque conta o final.
5 – Não. Porque não. Porque a sinopse só fala sobre o filme.
3 – Não, porque se leu não viu.
4 – Não. Para a história ficar mais emocionante.
Por fim, encontra-se a questão 8, classificada como uma questão literal-
inferencial. Trata-se também de uma questão sobre a estrutura do gênero lido. Nela,
pede-se para o aluno identificar alguns elementos extras presentes no DVD e pensar
sobre sua função. Para essa questão, mais da metade dos alunos apenas citaram (todos
ou alguns) os elementos extras presentes no DVD, dando, portanto, uma resposta literal
que está de acordo com a parte literal do gabarito. Além desses, um aluno apenas ativou
seu conhecimento prévio (4 – a locadora para que nunca viu); um aluno deu uma
resposta literal diferente do que gabarito previa (7 – comentários servem para saber o
que as pessoas acharam do filme); dois deram respostas inferenciais semelhantes à
proposta pelo gabarito (8 – para saber mais sobre como o filme foi feito; 1 – Para a
361
gente conhecer mais sobre o filme.) e três deram uma resposta literal-inferencial
próximas à proposta pelo gabarito.
5 – Comentarios do diretor, cenas eliminadas com comentarios
opcionais. Por tras das câmeras e trailer do filme e servem para contar
mais sobre o filme.
13 – Comentarios del director, escenas eliminadas, Cómo se hizo:
detrás de las câmeras, trailer del cine, documentales. Servem pra gente
saber mais do filme.
18 - Comentarios del director, escenas eliminadas, Cómo se hizo:
detrás de las câmeras, trailer del cine, documentales, 18 hijos – 1
guión: escribiendo “míos, tuyos, nuestros”, casting de las dos famílias,
em el interior del faro, puesta en escena de velero, consejos para
jóvenes actores. Dizer como o filme foi feito e agente ter mais
informação dele.
Ao analisar-se a organização do livro e a diversidade de níveis de leitura
trabalhados por ele, é possível observar que a proposta de trabalho com a leitura desse
livro é mais bem desenvolvida que a dos demais, uma vez que ele trabalha, em todos os
textos lidos, com a leitura em três etapas, articula essa leitura ao trabalho com outros
aspectos da linguagem e desenvolve questões de leitura em níveis diversos, priorizando
os níveis inferenciais ao nível literal de leitura. Entretanto, ao observar-se
detalhadamente essa atividade, a partir das respostas dadas pelos alunos, é possível
notar que, se por um lado há muitos avanços nesse trabalho, por outro há permanências
que impedem o desenvolvimento do aluno como leitor.
Com base na tabela anterior e nas respostas dos alunos às atividades, pode-se
perceber a confusão que se estabelece quando as questões fogem, em seus enunciados,
do padrão escolarmente estabelecido de reprodução, solicitando dos alunos respostas
que explicitem processos inferenciais e formulações de hipóteses. Isso se dá, inclusive,
porque as próprias questões aparecem de forma desorganizada, apontando para
objetivos diversos e não solicitando dos alunos a explicação para suas respostas. As
questões literais não direcionam o aluno claramente para as questões inferenciais e as
questões inferenciais não mostram para o aluno como ele deve explicitar suas
inferências e justificá-las. O trabalho na seção de pré-leitura tampouco é retomado ao
longo da atividade de leitura e as questões, de modo geral, parecem não se direcionar
para o objetivo de leitura apresentado ao aluno.
7.2.4. Atividade do livro “Formación”
362
Nesse momento, apresento, então, os resultados da aplicação das atividades
propostas pelos livros aprovados no PNLD 2014 e produzidos quase dez anos depois
dos apresentadas anteriormente. A atividade selecionada do livro “Formación en
Español” se encontra na Unidade 1 – “Mi mundo y yo”. Essa unidade apresenta como
temas trabalhados os seguintes: “Identidad personal, características físicas y
psicológicas, nacionalidades, familia”. Além disso, ela também apresenta um objetivo
para o aluno: “Elaborar un blog”, porém, aparentemente, a atividade selecionada não
apresenta nenhuma relação direta com esse objetivo. Essa atividade já foi analisada
anteriormente e se baseia em uma tirinha da Mafalda, de Quino:
En parejas
1 - ¿Quiénes están hablando?
Dos chicas / niñas.
2 - ¿Cómo se llama la niña pequeña?
Libertad. / Se llama Libertad.
3 - ¿Qué comentario hace Mafalda (la chica más alta) antes de
preguntar el nombre de la pequeña?
¡Qué chiquita sos!
4 - ¿Qué pretende indicar el autor de la tira al establecer una relación
entre el tamaño y el nombre de Libertad?
Ambos / Los dos son cortos y pequenos.
5 - ¿Por qué dice Libertad en el último globito: “¿Sacaste ya tu
conclusión estúpida? Todo el mundo saca su conclusión estúpida
cuando me conoce.”?
Porque se imagina que igual que todo el mundo Mafalda piensa que la
niña es tan chiquita como la libertad. Sugerencia al professor(a):
Argentina, en la época de las tiras de Mafalda, vivía una dictadura.
Durante esse período, no había libertad de expresión ni de oposición al
regimen político. Lo mismo pasó em Brasil.
6 – Por el comentario de Libertad a Mafalda, ¿cómo calificarías a
Libertad: tonta, estúpida, grosera, educada, inteligente, triste? Justifica
tu respuesta.
Inteligente, porque percibe inmediatamente la posible conclusión de
Mafalda. Sugerencia al professor(a): es posible que haya otras
respuestas. Discutan las razones dadas por cada alumno, sin imponer
una sola respuesta, ya que es una cuestión de punto de vista. Se puede
repetir esse procedimiento con la tira Mafalda (B).
É interessante observar, antes de tudo, que essa é a primeira atividade de leitura
com a qual o aluno se depara ao usar esse livro. Assim, considerando que a língua
espanhola dificilmente está no currículo dos anos iniciais, essa pode ter sido a primeira
atividade de leitura em espanhol de muitos alunos brasileiros. Observa-se que, mesmo
assim, não há qualquer trabalho com o conhecimento prévio dos alunos, nem mesmo
enunciados que antecedam o desenvolvimento da atividade pelo aluno. Assim, pode-se
363
pensar que o livro toma como já aprendido pelo aluno o que ele deve fazer para realizar
a atividade, o que de fato se confirma no momento da aplicação. Os alunos já teriam,
assim, aprendido o comportamento que devem assumir diante de um texto em sala de
aula, independente de qual seja e do suporte em que esteja.
Como observado anteriormente, pode-se notar na ordenação das perguntas um
desejo de apresentar inicialmente questões literais que ajudassem os alunos na tarefa de
responderem às questões inferenciais que seguem às literais. Têm-se, então, 3 questões
literais seguidas de 3 questões inferenciais. Entretanto, não há uma relação direta entre
elas nem há um encadeamento que faça o aluno perceber como as primeiras questões
podem ajudá-lo na tarefa de responder às questões mais inferenciais seguintes. Também
não há qualquer trabalho de ensino aos alunos sobre como eles devem se comportar ao
responderem essas questões, uma vez que as perguntas são apresentadas de modo
bastante direto. Há apenas algumas sugestões ao professor nas duas últimas perguntas.
Nesse sentido, é importante observar que, ainda que as três últimas questões sejam
literais, apenas a última apresenta uma orientação de aceitação a respostas diferentes da
esperada pelo gabarito do livro.
Tudo isso acaba se manifestando nas respostas dadas pelos alunos, que nos
ajudam a entender os problemas apresentados nas questões. Como nessa atividade,
aparecem questões literais e questões inferenciais, a categorização das respostas foi feita
de modo diferente para cada grupo de atividades, uma vez que o gabarito dessas
questões também é de natureza diferente.
Tabela 7 - Respostas da atividade de leitura selecionada do livro "Formación"
Qu
estõ
es
Lit
erais
Respostas
To
tal
Conhecimen
to Prévio
Literal igual
ao gabarito
Literal
difer. do
gabarito
Literal-
inferencial
Inferencial Branco
1 - - 9 38% 14 58% - - - - 1 4% 24
2 - - 24 100% - - - - - - - - 24
3 1 4% 20 83% 2 - - - - 1 4% 24
Qu
estõ
es
Infe
ren
c.
ais
Conhecimen
to Prévio
Literal Literal-
inferencial
Inferencial
igual ao
gabarito
Inferencial
difer. do
gabarito
Branco
To
tal
4 - - 3 13% - - - - 20 83% 1 4% 24
364
5 - - 9 38% - - - - 16 67% - - 24
6 - - 2 8% 3 13% - - 13 54% 6 25% 24
Em relação às três primeiras questões literais, é possível notar um padrão de
respostas que se diferencia entre a primeira e as outras duas questões. Na primeira
questão, observa-se um maior número de respostas literais diferente da sugerida pelo
gabarito. Todas elas citaram o nome de Mafalda ou o nome dela e de Libertad. Nesse
sentido, é interessante que o gabarito do livro suponha que os alunos ignorem essa
informação e descrevam apenas as personagens como duas meninas, como se não
tivessem saído do primeiro quadrinho da tira. O livro parece pressupor que o caminho
reprodutor do aluno, ao responder à questão, o leve a ignorar o que já tenha lido e as
inferências que tenha construído globalmente para responder à atividade na ordem dos
quadros apresentados na tirinha.
Por outro lado, pode-se destacar também o número relevante de alunos que
reproduziu o comportamento esperado pelo livro, ignorando as outras informações
apresentadas na linearidade do texto. Sobre isso, cabe ressaltar que 9 alunos disseram
que apenas Mafalda estava falando, o que mostra que eles associaram a pergunta
apresentada na primeira questão apenas ao primeiro quadrinho em que se encontra uma
fala, tendo em vista o fato de que Libertad fala até mais que Mafalda na tirinha inteira.
Para a segunda questão, todos os alunos responderam como o gabarito sugeria,
uma vez que se trata de uma informação bastante pontual e muito facilmente localizada
no texto. Em relação à terceira questão, apenas quatro alunos não copiaram ou
“traduziram” o trecho pedido pelos autores do livro. Desses, um deixou a resposta em
branco, duas disseram que Mafalda perguntou o nome de Libertad, repetindo o que a
pergunta já havia dito e um deles deu uma resposta que sugere uma ativação de
conhecimento prévio em relação ao tamanho da personagem.
5 – Uma das alegrias de ser eu.
Em relação às três questões inferenciais, também se apresentam resultados muito
próximos, com a maior parte dos alunos elaborando respostas inferenciais que não
correspondem às propostas pelos gabaritos. Sobre isso, cabe destacar que, em nenhuma
das três questões, os alunos apresentaram respostas semelhantes às sugeridas pelo
gabarito, o que demonstra, por um lado, mais uma vez, o caráter subjetivo e
365
imprevisível do processo inferencial e, por outro, a dificuldade do livro em orientar os
alunos a alcançarem a leitura por ele desejada.
Sobre a questão 4, um aluno não respondeu e três deram respostas literais,
respondendo com uma descrição da personagem a partir de elementos explicitamente
apresentados no texto:
7 – E que ela é pequena e o nome dela é Libertad.
8 – Porque ela é bem pequenina.
10 – Porque ela es pequenina.
Entre as respostas inferenciais, 8 delas disseram que o autor da tira estabeleceu
uma relação entre o tamanho e o nome de Libertad “para que não zombem dela”. Outras
respostas inferenciais também caminharam para a construção de uma “moral” para a
história contada na tirinha. Dessas, quatro respostas focaram na existência da liberdade:
9 – porque parece que os anões não tem liberdade.
16 – que ela é solta, tem, liberdade.
18 – ele está indicando que a menina grande acha que tem liberdade e
que a menina pequena não tem
4 – Que ela tem liberdade pra fazer o que quer.
É possível identificar que, ainda que também sejam respostas inferenciais, essas
trazem um caráter mais descritivo que “moralesco”. Outras oito trouxeram também
lições focadas no tamanho da personagem:
23 – Que ser pequeno não tem ploblema nenhum
22 – Não importa o tamo e sim a amizade
13 – Não importa o tamanho mas sim a amizade.
12 – Por que não importa o tamanho, mais sim a amizade entre duas
pessoas.
11 – Que não depende do tamanho, cada um tem algo de especial.
6 – Por que ela ser pequena soão pela ela que ser livre
3 – mesmo ela sendo pequena ela tem liberdade
2 – Que ela é pequena por fora e não por dentro.
Observando essas respostas, é possível perceber nelas que os alunos tentam
encaixar a leitura em um padrão provavelmente construído em seu processo de
escolaridade. Sem terem conhecimentos prévios, ou tendo poucos conhecimentos, sobre
o contexto de produção da tirinha ou sobre a possibilidade de que a liberdade de alguém
seja pequena, os alunos não conseguiram associar a ideia de pequenez ao frame de
“liberdade”. Assim, ativaram o frame interacional a que estão acostumados, ao
responderem atividades como essa e o sobrepuseram à leitura da tirinha, buscando
construir lições que teriam sido pretendidas pelo autor do texto – lições essas, inclusive,
muito mais próximas à vida de crianças do 6º ano do ensino fundamental do que a
366
inferência desejada pelo gabarito do livro. A partir de suas experiências, os alunos
associaram à ideia de criança pequena a frames negativos como o de ofensa ou de
bullyng e buscaram construir morais que desconstruíssem essa relação.
Obviamente, não há problema nenhum em um livro querer fazer com que os
alunos saiam de uma leitura focada em suas experiências e produzam inferências como
as propostas pela atividade. Entretanto, o trabalho precisa também conduzir o aluno
nesse processo de integração entre mais elementos do texto, do contexto de produção da
obra e de seu conhecimento prévio. A ausência desse trabalho se nota também no
encaminhamento das questões seguintes.
Para a questão 5, nove alunos deram respostas literais, descrevendo ou narrando
elementos ou cenas da tirinha:
2 – Porque a menina ficou pensando porque liberdade.
7 – porque ela achar todo mundo tira conclusão estubita.
8 – Porque Libertad é muito pequenina
1 – Por que ela é pequena
10 – Porque libertad e muito pequenina
22 – Porque ela chamou a menina de pequena
13 – Porque chamou a menina de pequena.
9 – Porque ela tem uma cara de lerda , e a menina pequena já viu a
menina grande.
18 – Porque ela é pequena.
Assim, nota-se, nessa questão, o maior número de respostas literais entre as
questões inferenciais, o que também demonstra a dificuldade da questão em orientar o
aluno para a explicitação de seus processos inferenciais. O gabarito, inclusive, ao fechar
apenas uma possibilidade de inferência já demonstra a incapacidade da questão se
orientar para o desenvolvimento dos alunos enquanto leitores. Entre as respostas
inferenciais, oito delas apontam que a razão para a fala de Libertad seria o fato das
pessoas a acharem muito pequena, seguindo com os mesmos frames ativados na questão
anterior. É interessante observar que essa inferência é parte importante do processo de
construção do sentido pretendido pela questão, uma vez que o aluno precisa, em
primeira instância, reconhecer que “a conclusão estúpida” se refere ao tamanho da
personagem. Entretanto, era preciso que eles associassem o tamanho ao frame de
liberdade, o que não aconteceu.
Outros quatro alunos também fazem referência ao tamanho de Libertad, mas
retomam a lição construída na questão anterior e dizem que Libertad disse a fala citada
na questão para que ninguém a chame mais de pequena. Outras três respostas mostram
367
inferências que se aproximam das anteriores, construídas a partir dos mesmos frames,
mas trazem outros elementos:
4 – Porque todas as pessoas que conhecem ela já jugão ela, ou seja
taram conclusões estúpidas.
16 – Porque ela acha que ela ficou com preconceito do nome dela.
11 – Porque todos acham o nome dela inadequado para ela.
Por fim, em relação à última questão, é importante esclarecer que efetivamente
apenas um aluno deixou a resposta em branco. Outros cinco entraram nessa categoria
por terem escolhido um dos adjetivos apresentados no enunciado da questão, mas não
terem justificado sua escolha. Dentre os que justificaram suas escolhas, dois recorreram
a elementos explícitos no texto para fazê-lo. Esses dois alunos disseram que Libertad é
“pequena e parece um bebê”, apenas descrevendo-a como ela aparece na imagem da
tirinha. Os outros que fizeram suas escolhas e as justificaram também se dividem em
subgrupos. Três deles deram respostas que foram classificadas como literais-
inferenciais, porque os alunos utilizaram informações explícitas para justificar suas
escolhas:
7- Eu acho ela grosseira e mal educada porque ela é baixinha.
11- Grosseira. “Todo mundo tem essa conclusão estupida, quando me
conhece”.
16 – Grosseira e triste por que ela e groseira por que todo mundo tira
uma conclusão estupida do seu nome e por isso ela e triste.
Observando essas duas respostas, é possível notar que as justificativas não
explicam as opções dos alunos, tendo em vista que elas precisariam explicitar uma
integração entre essas informações e seu conhecimento prévio, mas é possível observar
que todos seguem a mesma cadeia inferencial derivada da ativação de frame
anteriormente apresentada. Dentre os alunos que explicitaram essa integração, dois
parecem ter priorizado mais as informações de seus conhecimentos prévios em
detrimento das informações trazidas pelo texto e não conseguiram justificar plenamente
o julgamento feito, mas novamente percebemos os mesmos frames sendo ativados.
6 – Normal, igual a todos ela só é pequena nada demais.
18 – Educada. Porque ela tem a parencia especial que a menina grande
não tem.
O interessante é que os alunos que explicitaram a integração entre conhecimento
prévio e linearidade do texto caminharam por duas direções. Nenhuma delas
corresponde à inferência sugerida pelo livro como resposta no gabarito. Entre elas, 4
alunos disseram que Libertad é uma menina grosseira pelo que ela disse à Mafalda:
368
3 – Groseira porque foi logo dando fora na outra menina
4 – Grosera. Porque ela agil de enguinorancia com a menina.
9 – Crosera, porque a Mafalda só bergunta o nome dela com
educação.
10 – Grosera, porque ela no 4 quatradinho ela fala com o gento
grosero.
Além desses 4, outro aluno disse que a menina era grosseira e inteligente
justificando essas avaliações inferencialmente:
2 – Eu acho ela grosera e inteligente pelo fato de ter reparado que a
menina estava fazendo “buling” com o seu nome, etc.
Outros seis alunos disseram que Libertad era uma criança triste e justificaram
suas escolhas com a inferência de que ela sofre por todos a chamarem de pequena.
5 – Triste, porque todos que chamam ela chamão de pequenina.
17 – Triste porque tos que chamam ela de pequenina.
20 – Triste. Porque todos que chamam ela de pequena.
19 – Triste. Porque todos chamam ela de pequenina.
21 – Triste. Porque todos que chamam ela chamam de pequena.
12 – Inteligente e triste. Porque ela está certa e porque todo mundo
chama ela de pequena.
Ao observar as respostas inferenciais, é possível notar que os sentidos
produzidos pelos alunos para o texto lido foram bastante diferentes dos sentidos
esperados pelo livro, uma vez que nenhum deles associou a ideia de pequenez ao frame
de liberdade. Ao mesmo tempo, é possível notar como as questões foram pretendendo
conduzir os alunos a construírem esses sentidos sem dar suporte para que eles
entendessem esse processo de construção. Não é possível saber se os sentidos
construídos ao longo da tarefa mudaram a leitura inicial dos alunos, mas é possível
notar que as questões não orientam o aluno em seu processo de construção de
inferências ou de explicitação de inferências construídas anteriormente. Isso faz com
que as respostas dos alunos apresentem muito precariamente (quando o fazem) a
integração entre o conhecimento prévio deles e as informações trazidas pelo texto.
Outro problema que se apresenta, nesta atividade, é derivado da ausência de um
trabalho de ativação ou construção de conhecimento prévio anterior à leitura do texto.
Sem qualquer orientação sobre sua leitura, sem qualquer trabalho com informações que
o aluno precisa saber antes de lê-lo, é possível notar que as leituras dos alunos não se
afastam muito de suas experiências prévias de vida e de interação com outros textos.
Assim, a atividade não faz com que eles se aprimorem como leitores nem que
desenvolvam outros conhecimentos, ainda que se deparem com um texto novo
369
produzido em um contexto muito distante deles. Desse modo, pode-se observar que,
como dito anteriormente, não basta entregar bons textos aos alunos. O trabalho de
leitura desenvolvido ao longo das atividades é fundamental para o desenvolvimento do
aluno como leitor. Para que uma prática inventiva aconteça, o aluno não pode direcionar
seu olhar para o texto, considerando que ele mesmo, o aluno, já está pronto, mas para
que ele faça isso, é preciso que a atividade o ensine a fazê-lo.
Essa situação se agrava quando os gabaritos das atividades não se abrem para a
possibilidade de que outras respostas apareçam, o que faz com que o livro considere
como erradas leituras legítimas derivadas de um trabalho precário desenvolvido pelo
livro. Assim, o livro exige dos alunos o que não lhes dá. Nesse sentido, é importante
ressaltar que não é a leitura dos alunos que está equivocada. Não há problema algum em
relação às inferências construídas pelos alunos que efetivamente se integraram ao texto,
uma vez que elas se derivam da articulação entre os elementos presentes no texto e de
seus conhecimentos prévios. Isso não significa, porém, que não seja função do livro
ampliar as possibilidades de leitura dos alunos, o que poderia ser feito se a tarefa os
encaminhasse, de uma melhor maneira, nesse processo de integração.
Com base nisso, é possível perceber, então, que a construção de políticas
cognitivas envolvidas no ensino de leitura não depende apenas da presença de questões
inferenciais ou não. Ainda que, ao responderem essas questões, grande parte dos alunos
efetivamente saia de uma visão de leitura como reprodução de informações
explicitamente apresentadas no texto, o que é importante, por outro, eles não aprendem
a desenvolver um olhar inventivo sobre o texto. Não há sequer qualquer tipo de
aprendizado de qualquer habilidade ou competência nova de leitura por parte dos
alunos, que, inclusive, trazem para a leitura desse texto padrões de leitura já
estabelecidos anteriormente, sem que, sequer, pense sobre isso antes, durante ou depois
de sua leitura.
7.2.5. Em resumo
Tudo isso faz com que as respostas dos alunos, em sua absoluta maioria,
independentemente de corresponder ou não aos gabaritos propostos, se apresentem de
forma muito precária e a atividade seja desenvolvida apenas como mais uma atividade
de leitura sem que habilidades, competências e estratégias de leitura tenham sido
370
desenvolvidas junto aos alunos de forma metacognitiva. Postulo aqui que isso se dá
porque as políticas cognitivas que atravessam esse livro são as mesmas que atravessam
os livros anteriores e são as mesmas que atravessam os documentos oficiais aqui
analisados – os PCN e os editais do PNLD –, predominando os modelos recognitivos
sobre os modelos inventivos.
Dessa forma, novas formas de trabalhar a leitura aparecem, mas a visão de
aprendizagem (e de ensino, consequentemente) da leitura permanece a mesma: acredita-
se que o aluno deve aprender apenas desenvolvendo atividades diversas, respondendo às
mais diversas questões, sem que ele reflita sobre o que está aprendendo, ou seja, sem
que ele de fato seja tomado como ativo nesse processo. Assim, a leitura integrativa
também fica impedida de se desenvolver, e predomina uma visão recognitiva sobre uma
visão integrativa e inventiva de aprendizagem.
Ainda que as questões inferenciais apareçam, e sejam diversas, nos últimos
livros, elas também entram na lógica de um mundo dado, pronto, que precisa ser
recebido pelo aluno enquanto aprendiz de leitor. Isso se comprova em dois momentos:
quando os gabaritos não reconhecem a diversidade de respostas que uma questão
inferencial pode gerar e quando as questões inferenciais são tratadas como questões de
conhecimento prévio sem que se remetam ao texto lido e à sua integração com os
conhecimentos trazidos pelo aluno.
Esse panorama pode ser compreendido como fruto do percurso histórico
apresentado no capítulo 3 desta tese, tanto em relação à história da disciplina “Língua
Espanhola” na escola brasileira como em relação à história do livro didático no Brasil.
Além disso, também é fruto da precariedade que se dá em relação ao trabalho com a
leitura na escola brasileira, apresentada no capítulo 4. O ensino de língua espanhola só
recentemente começa a se pautar pela educação linguística dos alunos, e a reconhecer
todo o debate proposto pela Linguística Aplicada em torno das práticas de letramento
escolar. Até o momento de produção dos últimos materiais analisados para esta tese,
ainda não havia conseguido transformar, efetivamente, as políticas cognitivas que se
manifestam nas práticas de leitura propostas pelos livros didáticos voltados para o
ensino fundamental.
Nesse sentido, é importante lembrar também que o aluno cuja cognição busquei
entender, na análise anteriormente apresentada, é considerado um self situado (SINHA,
1999; GERHARDT, 2013), que cogniza em diversos ambientes de maneiras diferentes.
371
Assim, considerando a existência de um plano meta da cognição, acredito que o aluno
cogniza no espaço da sala de aula de uma forma que não é a mesma que ele realiza em
outros espaços, fora dela. Assim, os resultados anteriormente apresentados descreveram
somente aspectos do que podemos chamar de cognição escolar. Essa consideração não
ignora, porém, o fato de que essa cognição pode ser levada para outros espaços, uma
vez que a escola é a agência de letramento prestigiada em nossa sociedade (KLEIMAN,
1995). Entretanto, ao definirmos problemas na construção da cognição escolar,
entendendo-os sempre como problemas no nível meta, é possível pensar formas de
melhorar sua qualidade, o que pode ser feito com propriedade quando se reconhece a
realidade situada – distribuída – da cognição (VARGAS, 2012a).
Cabe explicitar, porém, que não espero que os alunos, em uma única leitura em
uma única atividade, resolvam, ao desenvolver as tarefas, todos os seus problemas de
leitura, ou melhor, todos os problemas de ensino de leitura dos quais tenham sido
vítimas ao longo de sua escolarização. Acredito que todas as questões propostas, em
uma atividade de leitura devam ser discutidas em sala de aula, de forma conjunta,
ouvindo o maior número de alunos possível e fazendo com que eles escutem as
respostas dos colegas e pensem sobre elas. Afinal, entendendo que a cognição é
distribuída e que, portanto, os significados construídos em grupo são diferentes dos
construídos individualmente, os alunos podem, também em conjunto, pensarem sobre
suas respostas e sobre as respostas dos colegas.
Dessa forma, acredito que podemos contribuir para a formação de leitores
críticos conscientes de como se desenvolve seu processo de leitura e, portanto,
assumindo uma postura mais agentiva em sua integração com o texto. Além disso, como
citado anteriormente, esse tipo de trabalho permite o desenvolvimento de uma cultura
do pensar em sala de aula, que rompe com o padrão de reprodução. Mais do que
atividades avaliativas, baseadas apenas na correção das respostas dos alunos para
questões produzidas por quem não conhece de fato quem vai respondê-las, dessa
maneira, as atividades de leitura passam a ser a base para que os alunos pensem sobre
suas próprias respostas e sobre as respostas dos colegas e para que os professores
percebam e contribuam para o desenvolvimento de seus alunos como leitores.
Assim, os resultados da aplicação de uma atividade podem levar o professor a
produzir novas atividades, focadas em um ou outro aspecto que considere mais
relevante para o desenvolvimento de seus alunos, focadas no trabalho com um
372
conhecimento que perceba que deveria ter sido trabalhado anteriormente, com o
desenvolvimento de propostas mais coletivas que acompanhem as tarefas inicialmente
pensadas, entre tantas outras possibilidades, mesmo que utilizando o livro didático
como um suporte para isso.
373
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como apontado na introdução desta tese, assumo este trabalho como sendo o
resultado – sempre provisório – de uma pesquisa em Linguística Aplicada. Nesse
sentido, seguindo as bases teórico-éticas descritas no primeiro capítulo, todo o
movimento de pesquisa aqui apresentado se deu em função da busca por, nas palavras
de Moita Lopes (2006, p.86), “criar inteligibilidades sobre a vida contemporânea ao
produzir conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar para que se abram alternativas
sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem”.
Entendendo que, no mundo de hoje, a escola, em especial a escola pública, ainda
tem um papel fundamental na construção das possibilidades de vidas dos alunos que
estão à margem dos processos de globalização e que, no Brasil, ela tem cumprido muito
precariamente seu papel, foi minha intenção, em cada capítulo, em cada seção e em
cada subseção anteriormente apresentados, problematizar o objeto central desta tese – o
trabalho com o plano inferencial de leitura nos livros didáticos de língua espanhola. Tal
objeto, por sua vez, não foi escolhido aleatoriamente. Ele foi fruto de minhas
experiências em sala de aula e de meu processo de formação como pesquisador dentro
dos estudos em cognição. Sua escolha se deu justamente porque, tanto em meus estudos
como em minha prática como professor em diferentes etapas de ensino, ele se mostrou
um importante instrumento para a ruptura com uma lógica escolar, que, buscando o
controle sobre a aprendizagem dos alunos, gera o silêncio e a exclusão em sala de aula
Considerando que a sala de aula pode – e deve – ser um espaço de voz para os
alunos e de construção crítica de questionamento da realidade que lhes traz sofrimento,
não foi meu objetivo encontrar soluções rápidas e resolver todos os problemas
apresentados pela educação brasileira. Entretanto, acredito que, colocando o foco sobre
o plano inferencial de leitura e tudo que o envolve no ensino da língua espanhola, pude
trazer questionamentos relevantes para a situação que hoje se apresenta na escola
brasileira e vislumbrar alternativas para que o pensamento e a linguagem dos alunos
apareça nesse espaço de outra maneira: de maneira que eles se vejam como agentes de
seus processos de construção de sentidos e, por isso mesmo, agentes de seus processos
de criação de si e do mundo.
Nesse caminho, me vi obrigado a trazer à tona os estudos em cognição, uma vez
que a percepção da precariedade que existe hoje na escola brasileira e, em especial, no
374
ensino de espanhol dentro dela, em relação ao objeto desta pesquisa, só foi possível por
conta da existência desses estudos e de tudo que aprendi ao me relacionar com eles.
Sabendo do lugar de margem que eles ocupam hoje no discurso sobre o ensino de
línguas no Brasil, me detive na apresentação detalhada de alguns de seus princípios
mais direcionados às questões que envolvem esta tese, de forma que fosse possível
advogar por sua inclusão em uma Linguística Aplicada comprometida com as demandas
sociais contemporâneas.
Aqui, cabe esclarecer que não é meu desejo que os estudos em cognição ocupem
lugar central dentro da Linguística Aplicada. Ao contrário, reconhecendo a necessidade
de desenvolvermos pesquisas cada vez mais inter/trans/multi/indisciplinares, meu
desejo foi – e é – simplesmente reivindicar um lugar também para tais estudos, em meio
a tantos outros que compartilhem com eles as mesmas preocupações. Nesse sentido,
parto da ideia de que não é possível tratar de práticas de ensino e de aprendizagem,
ignorando os princípios expostos ao longo desta tese sobre a cognição humana. Da
mesma forma como, por exemplo, não foi possível, para mim, entender o trabalho com
o plano inferencial de leitura em livros didáticos sem me voltar também para a sócio-
história do ensino de língua espanhola na escola brasileira e da trajetória do livro
didático no Brasil.
Ao partir do arcabouço teórico-ético da Linguística Aplicada e ao me guiar pelos
princípios dos estudos em letramentos e pela noção de educação linguística, a leitura foi
aqui tratada como uma prática social, e como uma prática social que pode ser utilizada
para o nosso próprio desenvolvimento metacognitivo. Assim, ela se torna um meio
importante para nossos processos de construção de sentidos e, consequentemente, para
nossa formação cidadã crítica. Através de uma visão de cognição como social e cultural,
intersubjetival, corporificada, baseada em frames e desenvolvida por meio de
mesclagens conceptuais, ou seja, através de uma visão de cognição distribuída, foi
possível compreender efetivamente como as práticas de letramento não são neutras e
como o ser humano se insere no mundo da leitura com toda sua potência cognitiva
plenamente desenvolvida (ou em desenvolvimento), independentemente de sua relação
com ela.
Ao entender que a leitura – assim como a escola – não está a serviço da
formação de seres mais inteligentes, mas sim da formação de seres que pensem sobre
como podem usar melhor sua inteligência, é possível, portanto, pensar caminhos que
375
levem, de fato, a que os aprendizes de uma língua estrangeira (ou mesmo a materna),
como defende Rajagopalan (2013a), dominem a língua aprendida sem serem dominados
por ela. Entretanto, tais caminhos não são os mesmos pelos quais nossos estudantes
estão passando na escola de hoje.
O panorama apresentado nesta tese mostra justamente o contrário e só foi
possível entender esse panorama devido à inserção do conceito de políticas cognitivas.
Ao mostrar que práticas de ensino trazem consigo visões de aprendizagem e, por isso,
manifestam políticas da cognição, também ensinando-as aos aprendizes, Kastrup (2005,
2012, 2005) me ofereceu o suporte necessário para entender tal panorama histórico
descrito e analisado anteriormente, em suas diferentes instâncias de construção.
Historicamente, foi possível observar, por exemplo, que o ensino de língua
espanhola, em todas as abordagens inseridas na escola brasileira sempre esteve voltado
para os modelos de recognição, ou seja, para as práticas de aprendizagem pela
reprodução. O aluno nunca foi considerado agente de seu processo de aprendizagem de
uma língua estrangeira. A língua, sempre tão distante dele, foi sempre oferecida a ele
como pronta e ele também sempre foi tratado como ser pronto, acabado e fechado em si
mesmo. Nunca lhe fora dada a chance de estabelecer uma relação inventiva com essa
língua. Ainda que, recentemente, os discursos apontem, de modo bastante tímido, para
práticas inventivas, até o momento em que os materiais e documentos aqui analisados
foram produzidos, tal panorama não se alterou.
Igualmente, a trajetória do livro didático nos mostrou que seu papel em sala de
aula sempre foi o de exercer o controle sobre as relações de intersubjetividade postas
neste espaço. O modelo de livro didático que hoje circula na escola brasileira se
desenvolveu justamente para suprir a precariedade do trabalho e da formação do
professor em um momento de expansão da escola pública. Logo, o livro didático serve à
precariedade da escola brasileira, que não pode ser ignorada. A compreensão dessa
trajetória me fez construir essa pesquisa através da busca de um duplo olhar sobre esse
objeto: de um lado, não cair em um discurso fácil que recrimine sua presença em sala de
aula e que busque sua exclusão, de outro, não recair em uma crítica que culpabilize o
professor pelos problemas que venham a ocorrer em seu uso e que jogue sobre ele toda
a responsabilidade do processo de seleção e de uso dessas obras.
Nesse sentido, estou de acordo com Lerner (2004), quando ele cita que, em um
país como o Brasil, onde existe uma política pública em relação ao livro didático, nós
376
temos a obrigação de entregar um livro de qualidade a todos os alunos de nosso sistema
escolar público. A isso acrescento: um livro que respeite os alunos como pessoas que
constroem conhecimentos dentro e fora da escola. Por isso, não posso aceitar
argumentos que justifiquem a ausência de determinadas práticas nos livros em função
da presença do professor em sala de aula. Obviamente, acredito e confio nas
potencialidades inventivas do professor em sala de aula. Entretanto, isso não pode
minimizar a luta para que os materiais didáticos sejam o mais próximo possível do que
desejamos em um plano ideal e que, portanto, facilitem o trabalho do professor no
(re)conhecimento de seus alunos como sujeitos de sua aprendizagem.
Cabe, então, também dizer que não foi minha intenção atacar os autores ou as
editoras que produziram os livros aqui analisados pelos problemas anteriormente
apresentados. Justamente por entender todo o panorama histórico que leva à inserção
desse objeto na sala de aula brasileira tal e como ele se apresenta hoje e por entender a
trajetória da inserção do livro didático de língua espanhola nesse panorama, é que não
posso deixar de enxergar esses objetos como manifestando visões de aprendizagem, de
interação, de linguagem etc, de um tempo, de uma cultura. Por isso, postulei aqui um
caminho costurado por objetos que chamei de reguladores. Sem buscar personalizar a
discussão, foi minha intenção entender como se construíram os modelos de livros
didáticos de espanhol apresentados entre 2004 e 2012 para que seja possível pensarmos
em modelos diferentes.
Inclusive, ao longo desta tese, como disse em sua apresentação, pude vivenciar a
experiência de produzir um material didático e sentir diretamente, em meu trabalho, o
peso dessas trajetórias histórica e culturalmente produzidas. Sei, inclusive, que a
coleção que produzi, juntamente às outras autoras dela, não resolveu todos os problemas
levantados nos capítulos anteriores. Entretanto, sei também que esse meu movimento de
pesquisa me fez enxergar esse trabalho com outros olhos e, nesse sentido, pude
contribuir, como foi possível, para a construção de rupturas nesses percursos históricos
– do livro didático no Brasil e do ensino de língua espanhola na escola brasileira –,
entendendo que elas também podem ser (re)inventadas sempre.
Como dito anteriormente, o ensino de leitura foi focalizado por mim porque
acredito que ele consegue, na escola de hoje, ser uma porta para um processo de início
de reconstrução da realidade anteriormente apresentada. Parto do princípio de que a
leitura em língua espanhola, diferentemente do trabalho com outras habilidades, pode
377
ser trabalhada em qualquer sala de aula de qualquer escola brasileira hoje, e pode,
portanto, ser um meio para que a educação linguística em língua espanhola se
desenvolva minimamente neste espaço. Para isso, porém, torna-se necessário incluir
verdadeiramente os alunos e possibilitar o exercício do agenciamento de seus processos
de aprendizado (GERHARDT, 2013) ou, em outras palavras, proporcionar-lhes a
capacidade de desenvolver formas de resistência para que decidam o que é melhor para
si (RAJAGOPALAN, 2003).
O plano inferencial de leitura tornou-se, assim, um suporte ótimo para a
compreensão dessas possibilidades. Entendendo a leitura como construção de sentidos
que parte da integração conceptual entre os conhecimentos prévios do leitor e das
informações explicitamente apresentadas no texto, o plano inferencial de leitura surgiu
como o que melhor manifesta esta visão de leitura que denominei de integrativa. Dentro
dessa visão, o processo inferencial pode ser tratado como a manifestação dessa natureza
integrativa, bem como a comprovação dessa perspectiva sobre o processo leitor. Nela,
nem leitor nem texto se sobrepõem: ambos se integram para a construção de novos
sentidos – as inferências construídas. Esses sentidos se guiam pelos objetivos do leitor,
pela situação de leitura, pelos conhecimentos prévios de quem lê e pelas próprias
informações que o texto traz.
Caberia, portanto, à escola ensinar ao aluno o que ele pode fazer, em seus
múltiplos caminhos, com essa sua capacidade, integrando a essa visão de leitura às
possibilidades oferecidas pelos estudos em metacognição e sua articulação com a noção
de cognição distribuída e com a perspectiva oferecida por Kastrup (2005, 2012, 2015)
de cognição inventiva. Encarando, assim, a metacognição como experiência de
problematização, é possível pensar em caminhos de ensino de leitura diversos que fujam
do modelo de “tentativa e erro” trazido pelos dados analisados nesta tese. Para isso,
seria necessário fugir das políticas de recognição, que predominam tanto nos materiais
didáticos como nos documentos oficiais que norteiam sua produção.
Como visto nos capítulos de análise, os Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Estrangeira trazem consigo uma visão de ensino e de aprendizagem de língua
ainda muito pautada em modelos recognitivos, uma vez que, em poucos momentos, o
aluno é tratado como sujeito de seu processo de aprendizagem. Nele, tanto o aluno
como o mundo com que ele interage são tomados como prontos, pré-construídos e em
poucos momentos, é possível notar concepções que considerem a possibilidade de
378
criação de novos sentidos, tanto dos alunos para consigo mesmos, como do mundo em
que se encontram. Ao dissociar processos sociais de processos cognitivos, e focar nos
primeiros, o documento deixa de entender que “a significação, na linguagem humana, é
uma representação mental produzida para e pelos seres humanos” (SALOMÃO, 1998,
p.262). E, assim, deixa de auxiliar o professor que o lê na construção de práticas que
coloquem o aluno no centro do processo de aprendizagem e não uma língua tomada
dentro de uma visão homogeneizadora e externa aos falantes.
Essa visão acaba por se reproduzir nos editais que guiam o processo de avaliação
dos livros didáticos de língua espanhola nos PNLD 2011 e PNLD 2014. Em ambos, é
possível notar a predominância de uma visão de aprendizagem como reconhecimento de
um mundo dado, mesmo quando aparecem objetivos que visam à reflexão, à construção
de conhecimento e ao desenvolvimento da consciência crítica. Tais objetivos parecem
remeter a uma ideia de reflexão e crítica como algo que já existe e não como sentidos
construídos pelo aprendiz. Ao se tratar da leitura, especificamente, é possível notar, por
exemplo, uma preocupação muito maior com a forma como os textos se apresentam aos
alunos do que com as atividades que se realizam a partir deles. Tal preocupação revela a
predominância de uma visão que trata o texto como elemento central e não o aluno, em
sua relação com esses textos. Assim, a formação crítica do leitor aparece em critérios de
avaliação diversos sem que se estabeleça uma relação entre ela e as atividades que são
desenvolvidas nos livros.
Ainda que o segundo edital aponte mais diretamente para a avaliação das
atividades, elas ainda são tratadas pontualmente, como se não estivesse nelas a
capacidade de fazer com que o leitor efetivamente encare sua leitura como um momento
de criação e que desenvolva práticas inventivas – e não reprodutivas – de leitura. Ao
longo desta tese, porém, espero ter conseguido mostrar que são as atividades,
efetivamente, que auxiliam os alunos na construção de sua relação com os textos lidos.
Por conta de toda a trajetória anteriormente descrita, são as atividades apresentadas nos
livros didáticos que ensinam para o aluno como ele deve se comportar como leitor,
como aprendiz e, daí, podemos prosseguir: como deve se comportar como cidadão,
como trabalhador etc.
Entretanto, não se pode negar o importante papel que cumpriram historicamente
para o ensino de línguas no Brasil os PCN e o processo de avaliação do PNLD – esse
atuando, inclusive, mais fortemente do que aquele, como foi possível ver na análise dos
379
livros selecionados para esta tese. Comprovando-se assim o caminho regulador que
postulei ao longo da tese, os modelos de livros apresentados inicialmente foram
completamente alterados em sua proposta didática, em sua organização, no lugar que
dedicam ao texto e ao trabalho com as diferentes habilidades linguísticas.
Os editais também fizeram com que os livros assumissem seu papel efetivo de
intervenção nas práticas de sala de aula e que tal papel fosse problematizado ao longo
dos discursos apresentados nos manuais do professor. Assim, por exemplo, os livros
foram deixando de responsabilizar o professor pelo trabalho com as três etapas de
leitura e foram assumindo para si essa responsabilidade, ainda que nem todos o tenham
feito de igual modo. As concepções teóricas também foram se transformando e os
discursos apresentados aos professores passou a ser mais bem desenvolvido e melhor
fundamentado em teorias que focalizam a interação e não a reprodução.
Ao analisar as atividades, porém, foi possível notar que, ainda que tenham
alterado em sua forma de organização e apresentação ao aluno, as políticas cognitivas
que as embasam não se alteraram. Em função disso, tem-se positivamente uma melhora
no trabalho com a leitura, inclusive marcada quantitativamente pelas questões de leitura
e pela quantidade e diversidade de textos apresentados aos alunos. Além da maior
quantidade total de questões nos livros mais recentes, também se apresenta neles um
aumento de questões inferenciais e uma diminuição de questões literais. Essa melhora,
porém, não se dá de forma progressiva e oscila entre os livros.
Tal oscilação também é notada no trabalho com o conhecimento prévio dos
alunos e é, justamente, nesse trabalho que mais se manifesta a pouca relevância dada
pelos livros aos saberes trazidos pelos alunos para a realização de sua integração com o
texto. Como aponta Gerhardt (2010, pp.260-261),
Ora, já se atestou mais de uma vez a dificuldade de a escola, em
especial a escola pública de países emergentes como o Brasil,
reconhecer a realidade em que se encontram os alunos; o que se
verifica a rigor é o trato único e restrito aos conhecimentos validados
pela instituição escolar. (...) o estabelecimento de quais conceitos são
merecedores de aprendizado na escola está inserido num universo de
práticas escolares que orientam nossa observação de todos os
referenciais pertinentes ao universo escolar: como serão vistos, que
valor terão, o que eles representam no universo fora da escola, que
status conferirão aos alunos que os possuírem.
Somente dois livros apresentam um trabalho constante de pré-leitura e,
inclusive, um dos dois mais recentes não traz essa sistematicidade em relação à ativação
380
ou construção de conhecimentos prévios antes da leitura dos textos. Além disso, mesmo
nos livros mais recentes, permanecem questões de ativação de conhecimento prévio
após a leitura inicial do texto e sem que exijam do aluno qualquer articulação com o
texto lido. Não se estimula assim, ao longo das atividades, a efetiva integração entre
leitor e texto, ainda que questões inferenciais apareçam com mais frequência.
Sobre as questões inferenciais, inclusive, é possível notar também problemas
que revelam o lugar que é dedicado ao aluno no livro didático. A maior parte delas não
auxilia os alunos em seu processo de explicitação de inferências, o que faz com que suas
respostas explicitem precariamente as articulações feitas entre o conhecimento prévio
deles e o texto lido. Ademais, observando seus gabaritos, é possível notar que ou se
trabalha com um genérico “resposta pessoal”, como se valesse qualquer tipo de resposta
para essas questões, ou se trabalha com um gabarito fechado que apresenta somente
uma inferência possível – a dos autores do texto, ignorando-se todas as demais
possibilidades que possam surgir a partir da relação de diferentes leitores com esses
textos. Dessa forma, os alunos são ensinados que a leitura inferencial se constrói da
mesma maneira que uma leitura literal – através da reprodução do pensamento do outro,
estando ele explícito ou não.
Portanto, mesmo em questões inferenciais, o aluno é ensinado a repetir,
ignorando-se o fato de que é “a atividade inferencial por trás das trocas comunicativas
cotidianas (...) que possibilita essa reinvenção de novos significados e conceitos”
(VANIN, 2009, p.57). Com seu pensamento sendo tratado como “erro”, reforça-se a
cadeia de silenciamento e de sofrimento a que esses alunos estão submetidos, não
apenas em sala de aula, porque, como defendi anteriormente, um ensino baseado no
controle e na repetição forma sujeitos reprodutores e pouco críticos em relação não
somente aos textos que leem, mas a toda a realidade com que se deparam nos mais
diferentes espaços de sua existência.
Tal cadeia de silenciamento se manifesta nas respostas dadas por eles às
questões dos livros. Tais respostas me mostraram que não basta haver questões
inferenciais. Essas questões precisam guiar os alunos efetivamente em seu processo de
integração com o texto ou na explicitação desse processo. Se por um lado, apresenta-se
um alto número de respostas que fogem ao gabarito proposto pelos livros, o que mostra
que os alunos nem sempre aceitam esse lugar de reprodução, por outro, elas também
demonstram que os alunos não sabem explicar as inferências que constroem, tratando-as
381
como se fosse simplesmente uma informação literal. Dessa forma, também não há
leitura crítica, uma vez que sequer o aluno consegue descolar o que construiu em
integração com o texto do que efetivamente está na linearidade do texto.
Tudo isso acontece porque o trabalho de pré-leitura é precário e, mesmo quando
acontece, não é retomado ao longo da atividade de leitura. Além disso, questões literais
e questões inferenciais são apresentadas de forma desorganizada, sendo tratadas como
se requeressem o mesmo tipo de comportamento cognitivo. A isso, se soma a má
elaboração das questões inferenciais e seu pouco direcionamento ao aprendiz do que ele
deve fazer com elas. Ademais, quase não se apresentaram questões que propusessem
objetivos concretos de leitura para os alunos e que se guiassem por tais objetivos. Em se
tratando de uma tese sobre cognição distribuída, não posso deixar de falar ainda do
pouco estímulo aos alunos a que busquem construir, em grupos, sentidos para os textos
lidos, ignorando-se o fato de que o outro também faz parte da nossa cognição e que
podemos nos usar uns aos outros para pensarmos melhor.
Assim, em resumo, temos, ao longo desta tese, a apresentação de um breve e
recente panorama histórico que, apesar das alterações por que tenha passado ao longo
dos últimos anos, não se transformou efetivamente para que novas visões de
aprendizagem adentrassem o espaço da sala de aula e alterassem a prática do ensino de
leitura e, especificamente, o trabalho desenvolvido com o plano inferencial. Essa não
transformação se dá porque as políticas cognitivas que embasam esses trabalhos são as
mesmas.
Como afirma Daher (2006, p.3, tradução minha), “a política não se resume a
discursos oficiais, a encontramos no modo de proceder, nas lutas, em estratégias visíveis
e dizíveis de produções singulares e coletivas”94
. Assim, dentro de uma mesma política
de recognição, o aluno é tomado como pronto e como fator não relevante para a
proposta da construção didática. A língua, por sua vez, é também tomada como dada
previamente à sua aprendizagem pelos alunos. Assim, como o foco central está na
língua (seja na forma de elementos gramaticais descontextualizados, seja na forma de
textos), o ensino é o mesmo porque a língua é a mesma ao longo dos anos.
94
Original: “La política no se resume a discursos oficiales, la encontramos en la manera de proceder, en
las luchas, en las estrategias visibles y “decibles” de producciones singulares y colectivas” (DAHER,
2006, p.03).
382
Além disso, dentro dessas políticas, em nível macrossocial e em nível
microssocial, na interação em sala de aula, é papel do livro didático controlar o trabalho
do professor e é papel do professor controlar como os alunos reagem a esse trabalho.
Esse controle, pautado apenas no certo e no errado, e desconsiderando os processos de
aprendizagem do estudante e seu desenvolvimento como aprendiz, como leitor, como
cidadão, se contrapõe ao fazer didático com o plano inferencial de leitura, uma vez que
tal plano manifestaria justamente a não capacidade de se controlar os diferentes sentidos
produzidos pelos diferentes sujeitos em diferentes situações.
Retomando as questões propostas por Pennycook (2006) e adaptadas ao final do
primeiro capítulo desta tese, é possível responder, então, que a estrutura de controle e de
reprodução que se manifesta nas salas de aula como estruturas de poder afetam não só o
acesso dos alunos aos textos, mas também a forma com que eles interagem com os
textos trazidos para a sala de aula. Além disso, ao aprenderem que ler é repetir, os
alunos aprendem também que a leitura em língua estrangeira não tem qualquer função
em sua vida social, o que reduz também sua motivação para que busquem textos em
língua espanhola fora do espaço escolar. Dessa forma, se agrava mais ainda a situação
de exclusão desses alunos em uma sociedade cada vez mais globalizada, em que a maior
interação entre culturas traz “consequências diretas sobre a vida e o comportamento
cotidiano dos povos” (RAJAGOPALAN, 2003, p.23).
Mais uma vez, apresenta-se a comprovação de que “as propostas ligadas ao
letramento, no livro didático, não minimizaram seu caráter normalizador, regulador e
objetivante de forma social escritural por excelência” (ROJO e BATISTA, 2003, p.19).
Logo, ainda não houve uma quebra no padrão de material didático que visa à formação
de aprendizes reprodutores, impedidos de criarem e pensarem com qualquer nível de
agentividade sobre seus próprios processos (sócio)cognitivos e metacognitivos.
Sendo silenciados em suas leituras em sala de aula, os alunos são ensinados que
os sentidos que constroem, antes, durante ou depois das leituras, são sempre errados, ou
pior, que nem merecem ser ditos. Assim, não somente suas leituras são invalidadas
como eles mesmos são invalidados em sua própria existência. Utilizando os termos de
Pennycook (2006), pode-se dizer assim que, as relações de domínio que se sobrepõem
aos alunos na escola, em especial na pública, agravam a situação de disparidade delem
em relação aos que ocupam os espaços de poder; apagam as diferenças entre os sujeitos,
uma vez que todos são obrigados a construírem os mesmos sentidos em busca da
383
correção escolar e, por fim, eliminam o desejo desses aprendizes de ocuparem posições
de sujeito e interpretações (de texto e de mundo) diferentes das que lhes são
apresentadas.
É preciso romper com essa lógica urgentemente, principalmente, se
considerarmos que essa também é a lógica dos movimentos de ataque a uma educação
pública de qualidade denunciados na apresentação desta tese e em tantos outros
trabalhos. Como aponta Rajagopalan (2012, p.110):
O professor que se atreve a criar um espaço dentro de sala de aula para
que seus alunos possam discutir livremente própria vida fora da sala
de aula e procurar relacionar o que se aprende nos livros à realidade
que eles vivem no seu dia a dia é visto com desconfiança e tachado de
agente provocador ou alguém que confunde a nobre tarefa de educar
com a prática nefasta de “fazer cabeças”, de doutrinar.
Portanto, sem temer a desconfiança citada por ele, temos que pensar em uma
nova prática de trabalho com o plano inferencial de leitura em livros didáticos. Essa
nova prática exige pensar em novos objetivos para o ensino de língua espanhola, novos
objetivos para a presença do livro didático em sala de aula, novos objetivos para o
trabalho do professor e novos objetivos para a escola, que, por sua vez, deveria, assim,
estar preocupada não com o controle do que está certo ou errado, mas com o
desenvolvimento metacognitivo dos estudantes, em diferentes situações de
aprendizagem inventiva. Tal desenvolvimento precisa, para isso, ser visto como parte da
formação crítica e cidadã dos estudantes, reconhecendo-se, desse modo, que essa
formação não se dá somente de fora para dentro, mas também de dentro para fora, em
movimentos integrativos que levam à invenção de si e do mundo.
384
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, A. P.; AMENDOLA, R. (eds) Ventana al español 1. Livro do Professor.
São Paulo: Moderna/Santillana, 2011.
APPLEGATE, M. D., QUINN, K. B., APPLEGATE, A. J. Levels of thinking required
by comprehension questions in informal reading inventories. The Reading Teacher, 56
(2): 174-180, 2002.
ASSIS, J. F.; SILVA, J. V. A. Interculturalidade no livro didático de espanhol: o ponto
de vista do professor e dos alunos. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 50, pp. 114-129,
2015.
BAGNO, M.; RANGEL, E. de O. Tarefas da educação linguística no Brasil. Revista
Brasileira de Linguística Aplicada, v.5, n.1, pp.63-81, 2005.
BAPTISTA, L. M. T. R. Traçando caminhos: letramento, letramento crítico e ensino de
espanhol. In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino Médio – Coleção
Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2010, pp.119-136.
BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Introdução. In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M.
Espanhol: Ensino Médio – Coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010, pp.9-12.
BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Elaboração de materiais didáticos para o ensino de
espanhol. In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino Médio – Coleção
Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2010, pp.85-118.
BATISTA, A. A. G. A avaliação dos livros didáticos: para entender o Programa
nacional do livro didático (PNLD). In: ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. (org) Livro
didático de Língua Portuguesa, letramento e cultura da escrita. São Paulo: Mercado
de Letras, 2003. pp. 25-68.
BATISTA, A. A. G. O Processo de escolha de livros e seus condicionantes: um estudo
exploratório. In: BATISTA, A. A. G.; COSTA VAL, M. G. (org) Livros de
Alfabetização e de Português: os professores e suas escolhas. Belo Horizonte: Ceale;
Autêntica, 2004. pp. 29-74
BATISTA, A. A. G. O conceito de “livros didáticos”. In: GALVÃO; A. M. O.;
BATISTA, A. A. G. Livros escolares de leitura no Brasil – elementos para uma
história. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2009, pp. 41-74.
BATISTA, A. A. G.; COSTA VAL, M. G. Livros Didáticos, controle do currículo,
professores: uma introdução. In: BATISTA, A. A. G.; COSTA VAL, M. G. (org)
Livros de Alfabetização e de Português: os professores e suas escolhas. Belo
Horizonte: Ceale; Autêntica, 2004. pp. 9-28.
BOTELHO, P. F. Textos factuais e problematizantes em livros didáticos de
História: leitura e metacognição. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas
385
(opção: Língua Portuguesa). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2010.
BOTELHO, P. F. Aspectos da leitura em livros didáticos de Língua Portuguesa –
conhecimento prévio, ensino e metacognição. In: III SIMPÓSIO INTERNACIONAL
DE LETRAS E LINGUÍSTICA, 2011, Uberlândia, Anais...Uberlândia, 2011.
BOTELHO, P. F. Conhecimento prévio e atividades escolares de leitura - uma
abordagem cognitiva e metacognitiva. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas
(opção: Língua Portuguesa). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2015.
BRÄKLING, K. L. A gramática nos LDs de 5ª a 8ª séries: “que rio é este pelo qual
corre o gânges?” In: ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. (org) Livro didático de Língua
Portuguesa, letramento e cultura da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. pp.
211-252.
BRANDÃO, H. M. B.; MARTINS, A. A. A leitura literária no PNLD diante dos PCNs:
pretextos versus contextos ou “a escolinha do professor Raimundo”. In: ROJO, R.;
BATISTA, A. A. G. (org) Livro didático de Língua Portuguesa, letramento e
cultura da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. pp. 253-276.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. Lei nº 9.394/96, de 20 de
dezembro de 1996.
BRASIL, Secretaria de Educação. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental – língua estrangeira. Brasília: Secretaria de
Educação Fundamental, 1998.
BRASIL. Decreto nº 7.084, de 27 de janeiro de 2010. Dispõe sobre os programas de
material didático e dá outras providências, 2010. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7084.htm>. Acesso
em: 14/05/2016.
BRUGMAN, C.; LAKOFF, G. Radial network - Cognitive topology and lexical
networks. In: GEERAERTS, D. (ed.) Cognitive linguistics: basic readings. Berlin:
Mouton de Gruyter, 2006, pp.109-140.
BRUNO, F. A. T. C. Os gêneros orais em aulas de ELE: uma proposta de abordagem.
In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino Médio – Coleção
Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2010, pp.221-232.
BRUNO, F. A. T. C; ARRUDA, S. A. F.; MENDES, M. A. A. Español: ¡Entérate! –
6º ano. Manual do Professor. São Paulo: Saraiva, 2009.
CARNEIRO, C. F. S.; COSTA, E. G. M.; FERNANDES, K. C. Leitura e escrita de
gêneros textuais em livro didático de espanhol. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.18,
n.2, pp. 379-402, 2015.
CAVALCANTI, M. C. A propósito da lingüística aplicada. Trabalhos em Lingüística
Aplicada. n. 7, pp. 5-12, 1986.
386
CELADA, M. T.; GONZÁLEZ, N. M. L. Los estudios de Lengua Española en Brasil.
Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, 2000, pp.35-58.
CHIKALANGA, I. A suggested taxonomy of inferences for the reading teacher.
Reading in a Foreign Language. Hawaii, v. 8, n. 2, pp.697-709, 1992.
COIMBRA, L; CHAVES, L. S.; ALBA, J. M. Cercanía: espanhol, 6º ano. Manual do
Professor. São Paulo: Edições SM, 2012.
CORACINI, M. J. F. Leitura: decodificação, proceso discursivo...? In: CORACINI, M.
J. F. (org). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira.
Campinas, SP: Pontes, 2002, pp.13-20.
COSCARELLI, C. V. Reflexões sobre as inferências. In: VI CONGRESSO
BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA, 2002, Belo Horizonte, Anais... Belo
Horizonte, 2002.
COSTA, E. G. M. Gêneros Discursivos e leitura em língua estrangeira. Revista do
GEL, São Paulo, v.5, n.2, pp.181-197, 2008.
COSTA, E. G. M. Da decodificação à leitura crítica: por onde transita o livro didático
de espanhol?. Revista X. v. 1, n. 1, pp.59-77, 2011.
DAHER, D. C. Enseñanzas del español y políticas lingüísticas en Brasil. Revista
Hispanista, Niterói, n.27, 2006.
DELL’ISOLA, R. L. P. A avaliação da leitura de textos no ensino de Língua
Portuguesa. In: DELL’ISOLA, R. L. P.; MENDES, E. A. M. (org.). Reflexões sobre a
Língua Portuguesa: ensino e pesquisa. Campinas, SP: Pontes, 1997.
DELL’ISOLA, R. L. P. Leitura: inferências e contexto sociocultural. Belo Horizonte,
MG: Formato, 2001.
DIAS, R. O. Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In: DIAS, R. O.
(org.). Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. pp.25-
41.
DIAS, R. O.; SCHEINVAR, E. Pósfácio. In: DIAS, R. O. (org.). Formação inventiva
de professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. pp.25-41.
DIRVEN, R. Major strands in Cognitive Linguistics. In: IBAÑEZ, F. R. M.; CERVEL,
M. P. (eds.) Cognitive Linguistics Internal Dynamics and Interdisciplinary
Interaction. Berlin - New York: Mouton de Gruyter, 2005, pp. 17-68.
DUQUE, P. H. Por uma abordagem ecológica da linguagem. Pontos de Interrogação,
v. 5, n. 1, jan./jul. pp.55-78, 2015.
DUQUE, P. H. Discurso e cognição: uma abordagem baseada em frames. Revista da
Anpoll, Florianópolis, n. 39, pp. 25-48, 2015.
DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva: em busca de uma arquitetura de
linguagem compatível com modelos de armazenamento e categorização de experiências.
Natal / RN: EDUFRN, 2012.
387
ERES FERNÁNDEZ, I. G. M. La producción de materiales didácticos de español
lengua extranjera en Brasil. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos. Suplemento
El hispanismo en Brasil. Madrid: Consejería de Educación y Ciencia en Brasil, 2000,
pp.59-80.
ERES FERNÁNDEZ, I. G. M. Materiais Didáticos de Espanhol: entre a quantidade
e a diversidade. Relatório final de pesquisa não financiada. Universidade de São Paulo,
2012.
FAUCONNIER, G. Mental Spaces. Cambrigde: Cambrigde University Press, 1994.
Fauconnier, G. Mappings in Thought and Language. Cambridge: Cambridge
University Press, 1997.
FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think. New York, Basic Books, 2002.
FERRARI, L. V. A linguística cognitiva e o realismo corporificado: implicações
filosóficas e psicológicas. Veredas – Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v.5,
n.2, pp.23-29, 2001.
FERREIRA, R. M. Questões de leitura no livro didático de espanhol. Dissertação de
Mestrado em Letras Neolatinas (opção: Estudos Linguísticos, Língua Espanhola).
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
FERREIRA, S. P. A.; DIAS, M. G. B. B. A leitura, a produção de sentidos e o processo
inferencial. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 3, p. 439-448, set./dez. 2004.
FILLMORE, C. Frame semantics - Frame semantic. In: GEERAERTS, D. (ed.)
Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006, pp.373-400.
FREITAS, L. M. A. Entre lembranças e esquecimentos: relato memorialístico sobre o
ensino de espanhol no Rio de Janeiro. Hispanista, v.12, n.46, 2011, pp.1-25.
FREITAS, L. M. A.; BARRETO, T. A. Construindo uma história: a APEERJ e o ensino
de Espanhol no Brasil. Anuario brasileño de estudios hispánicos, 2007, pp. 65-69.
FREITAS, L. M. A.; VAZQUEZ, R. P. Língua Estrangeira e Língua Portuguesa no
edital do PNLD 2011: aproximações e distanciamentos. Revista Práticas em Educação
Básica, v.1, n.1, 2016, pp. 1-26.
FULGÊNCIO, L.; LIBERATO, Y. A leitura na escola. São Paulo: Contexto, 1996.
FULGÊNCIO, L.; LIBERATO, Y. Como facilitar a leitura. São Paulo: Contexto,
2003.
GALVÃO; A. M. O.; BATISTA, A. A. G. O estudo dos manuais escolares e a pesquisa
em história. In: GALVÃO; A. M. O.; BATISTA, A. A. G. Livros escolares de leitura
no Brasil – elementos para uma história. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras,
2009, p. 11-40.
GARCÍA, M. L. A. J.; HERNÁNDEZ, J. S. Projeto Radix - Espanhol 5a série. Livro
para análise do professor. São Paulo: Scipione, 2005.
388
GEERAERTS, D. A rough guide to Cognitive Linguistics. In: GEERAERTS, D. (ed.)
Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006, pp.1-28.
GEERAERTS, D. Prototype theory - Prospects and problems of prototype theory. In:
GEERAERTS, D. (ed.) Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de
Gruyter, 2006, pp.141-166.
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GERBER, R.M.; TOMITCH, L. M. B. Leitura e cognição: propósitos de leitura
diferentes influem na geração de inferências? Acta Scientiarum (UEM), v. 30, pp. 139-
147, 2008.
GERHARDT, A. F. L. M. Os saberes acumulado e processual, a leitura e o
desenvolvimento cognitivo. In: 54º SEMINÁRIO DO GEL – Grupo de Estudos
Linguísticos do Estado de São Paulo, 2006, Araraquara, Anais... Araraquara, SP, Brasil,
2006.
GERHARDT, A. F. L. M. Uma visão sócio-cognitiva da avaliação em textos escolares.
Educação e Sociedade. Campinas, v. 27, n. 97, pp.1181-1203, 2006.
GERHARDT, A. F. L. M. Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado.
Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 15, n. 44, pp. 247-263, 2010.
GERHARDT, A. F. L. M. Learning in Cognitive Niches, In: KLOOS, H. (Ed.), InTech,
Current Topics in Children's Learning and Cognition, 2012. Disponível em:
http://www.intechopen.com/books/current-topics-in-children-s-learning-and-
cognition/learning-in-cognitive-niches. Acessado em: 10 de julho de 2013.
GERHARDT, A. F. L. M. As identidades situadas, os documentos curriculares e os
caminhos abertos para o ensino de língua portuguesa no Brasil. In: GERHARDT, A. F.
L. M.; AMORIM, M. A.; CARVALHO, A. M. (orgs.). Linguística aplicada e ensino:
língua e literatura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013, pp.77-113.
GERHARDT, A. F. L. M. A cognição estendida e a pesquisa em ensino. In:
RODRIGUES, M. G. S.; ALVES, M. da P. C.; CAMPOS, S. F. (Org.). Ensino de
língua portuguesa: gêneros, textos, leitura e gramática. Natal - Rio Grande do Norte:
Editora da Universidade do Rio Grande do Norte, 2014.
GERHARDT, A. F. L. M. É de pessoas que se trata: o lugar da Linguística Cognitiva
numa Linguística Aplicada Indisciplinar, 2017 (a sair).
GERHARDT, A. F. L. M.; ALBUQUERQUE, C.; SILVA, I. A cognição situada e o
conhecimento prévio em leitura e ensino. Ciências & Cognição, v.14, n. 2, pp. 74-91,
2009.
GERHARDT, A. F. L. M.; BOTELHO, P. F.; AMANTES, A. M. Metacognição,
objetivos de leitura e atividades didáticas de língua portuguesa. Revista Brasileira de
Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, pp. 180-208, 2015.
GERHARDT, A. F. L. M.; VARGAS, D. S. A pesquisa em cognição e as atividades
escolares de leitura. Trabalhos em Linguística Aplicada (UNICAMP), v. 49, pp. 145-
166, 2010.
389
GIBBS, Jr. R. W.; COLSTON, H. L. Image schema - The cognitive psychological
reality of image schemas and their transformations. In: GEERAERTS, D. (ed.)
Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006, pp.239-268.
GOMBERT, J. E. Atividades metalingüísticas e aprendizagem da leitura. In: MALUF,
M. R. (org.). Metalinguagem e aquisição da escrita: Contribuições da pesquisa para a
prática da alfabetização. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, pp. 19-63.
GONZÁLEZ, N. M. Iniciativas para a implantação do espanhol: a distância entre o
discurso e a prática. In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino Médio –
Coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2010, pp.25-54.
GRIFFITH, P. L.; RUAN, J. What Is Metacognition and What Should Be Its Role in
Literacy Instruction? In: ISRAEL, S; BLOCK, C; BAUSERMAN, K; KINUCAN-
WELSH, K. (Eds.). Metacognition in literacy learning. London: Lawrence Erlbaum,
2008. pp. 03-19.
GUADELUPE, L. C.; SILVA, M. C. A interculturalidade no ensino-aprendizagem de
espanhol como língua estrangeira: os gêneros como mediadores culturais. Pesquisas em
Discurso Pedagógico, n.2, pp.1-15, 2013.
GURECKIS, T. M.; GOLDSTONE, R. L. Thinking in groups. In: DROR, I. E.;
HARNAD, S. (eds.). Cognition Distributed. Amsterdam/Philadelphia: Johns
Benjamins Publishing Company, 2008, pp.99-116.
HUTCHINS, E. Distributed cognition. In: N. J. Smelser; P. B. Baltes. (Orgs.).
International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences. Oxford: Elsevier
Sciences Ltd. Disponível em <http:/ww.telelearning-
pds.org/coa/distributed_cognition.pdf>. Acessado em 15 de abril de 2014.
JOHNSON, M. The body in the mind: the bodily bases of meaning, imagination and
reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.
KASTRUP, V. Políticas Cognitivas na Formação do Professor e o Problema do Devir-
Mestre. In: Educação & Sociedade, v.26 n.93. Campinas: Cedes, 2005, p.1273-1288.
KASTRUP, V. Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In: DIAS,
R. O. (org.). Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012.
pp.52-60.
KASTRUP, V. A cognição contemporânea e a aprendizagem inventiva. In: KASTRUP,
V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E. Políticas da Cognição. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2015.
KATO, Mary A. No mundo da escrita: Uma perspectiva psicolinguística. São Paulo:
Ática, 1986.
KATO, M. A. A aprendizagem da Leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
KIRSHNER, D.; WHITSON, J. Editor’s introduction to Situated Cognition: social,
semiotic and psychological perspectives. In: KIRSHNER, D.; WHITSON, J (eds.).
Situated Cognition: social, semiotic and psychological perspectives. New York:
Routledge, 2009.
390
KLEIMAN, A. Oficina de leitura: teoria e prática. 8. ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.
KLEIMAN, A. Texto e Leitor: Aspectos Cognitivos da Leitura. Campinas, SP: Pontes,
2010.
KLEIMAN, A. Apresentação. In: KLEIMAN, A. (Ed.). Os significados do
Letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995, pp.7-11.
KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In:
KLEIMAN, A. (Ed.). Os significados do Letramento. Campinas: Mercado de Letras,
1995, pp. 15-64.
LAGARES, X. C. O espaço político da Língua Espanhola no mundo. Trabalhos em
Linguística Aplicada, n. 52.2, pp. 385-408, 2013.
LAJOLO, M. Do mundo da Leitura para a Leitura do Mundo. São Paulo: Editora
Ática, 2000.
LANGACKER, R. W. Cognitive Grammar - Introduction to Concept, Image, and
Symbol. In: GEERAERTS, D. (ed.) Cognitive linguistics: basic readings. Berlin:
Mouton de Gruyter, 2006, pp.29-68.
LEFFA, V. J. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolinguística. Porto Alegre:
Sagra-Luzzatto, 1996.
LEFFA, Vilson J. Metodologia do ensino de línguas. In BOHN, H. I.; VANDRESEN,
P. Tópicos em lingüística aplicada: O ensino de línguas estrangeiras. Florianópolis:
Ed. da UFSC, 1988. pp. 211-236.
LERNER, D. O livro didático e a transformação do ensino da língua. In: BATISTA, A.
A. G.; COSTA VAL, M. G. (org) Livros de Alfabetização e de Português: os
professores e suas escolhas. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2004. pp. 115-136.
LUNA, J. M. O Army Method e o desenvolvimento da Linguística Aplicada nos Estados
Unidos. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v.12, n.1, pp.31-
48, 2012.
MARCUSCHI, L. A. Exercícios de compreensão ou copiação. Em aberto. Brasília, ano
16, n. 69, pp.65-82, 1996.
MARCUSCHI, L. A. Dimensão discursiva das atividades de categorização e
referenciação. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPOLL, 2002, Porto Alegre, Anais...
Porto Alegre, 2002.
MARCUSCHI, L. A. Compreensão de texto: algumas reflexões. In. DIONISIO, A. P. &
BEZERRA, M. A. (orgs.) O livro didático de Português: múltiplos olhares. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2003.
MARTIN, I. Saludos: curso de lengua española. Libro 1. 6º ano. Manual do Professor.
São Paulo: Editora Ática, 2010.
MEC/FNDE/SEB. 2008. Edital de convocação para inscrição no processo de
avaliação e seleção de coleções didáticas para o programa nacional do livro
391
didático - PNLD 2011. Disponível em:
<ftp://ftp.fnde.gov.br/web/livro_didatico/edital_pnld_2011_consolidado.pdf>. Acesso
em: 12/03/2016.
MEC/FNDE/SEB. 2011. Edital de convocação para inscrição no processo de
avaliação e seleção de coleções didáticas para o programa nacional do livro
didático - PNLD 2014. Disponível em:
<http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/165-editais?download=8046:pnld-2014-
edital-consolidado-3-alteracao>. Acesso em: 12/03/2016.
MENEZES, V.; SILVA, M. M.; GOMES, I. F. Sessenta anos de Lingüística Aplicada:
de onde viemos e para onde vamos. In: PEREIRA, R. C.; ROCA, P. Linguística
aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009, pp.25-50.
MIRANDA, N. S. Domínios conceptuais e projeções entre domínios: uma introdução
ao Modelo dos Espaços Mentais. Veredas: revista de estudos linguísticos. Juiz de Fora,
v 3, n 1, 1999, pp. 81-95.
MIRANDA, N. S. O caráter partilhado da construção da significação. Veredas: revista
de estudos linguísticos. Juiz de Fora, v. 5, n. 1, 2001, pp. 57-81.
MIRANDA, N. S.; BERNARDO, F. C. Frame, discurso e valores. Cadernos de
Estudos Linguísticos, Campinas, v.55, n.1, pp.81-98, 2013.
MOITA LOPES L. P. Oficina de Linguística Aplicada: a natureza social e
educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de
Letras, 1996.
MOITA LOPES, L. P. Introdução: Uma linguística aplicada mestiça e ideológica –
interrogando o campo como linguista aplicado. In: MOITA LOPES, L. P. (org.) Por
uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, pp. 13-
44.
MOITA LOPES, L. P. Linguística Aplicada e vida contemporânea: problematização dos
construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (org.) Por uma
Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, pp. 85-107.
MOITA LOPES, L. P. Introdução: Fotografias da Linguística Aplicada brasileira na
modernidade recente: contextos escolares. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.).
Linguística Aplicada na Modernidade Recente. Festschrift para Antonieta Celani.
1ª.ed. São Paulo: Parábola, 2013, pp. 15-37.
MOREIRA, H. N. As relações entre os modos visual e verbal em atividades de
compreensão leitora: um estudo da multimodalidade em coleções didáticas de
espanhol / língua estrangeira. Dissertação de mestrado em Linguística Aplicada.
Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Fortaleza, 2013.
MOREIRA, A. F. B.; CANDAU, V. M. Indagações sobre currículo: currículo,
conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2007.
MOURA, M. L. S; CORREA, J. Estudo psicológico do pensamento – De W. Wundt a
uma Ciência da Cognição. Rio de Janeiro, EdUERJ, 1997.
392
NELSON, T. O. Consciousness and metacognition. American Psychologist, v.51, n.2,
p. 102–116, 1996
NELSON, T. O.; NARENS, L. Metamemory: A theoretical framework and new
findings. In: G. H. Bower (Ed.). The psychology of learning and motivation. New
York: Academic Press, 1990. p. 1–45.
NELSON, T. O.; NARENS, L. Why investigate metacognition. In: METCALFE, J.;
SHIMAMURA, A. P. (eds.). Metacognition – knowing about knowing. Cambridge,
Massachusetts: The MIT Press, 1996.
PAIVA, V. L. M. O. História do Material didático de língua inglesa no Brasil. In:
DIAS, R.; CRISTÓVÃO, V. L. L. O livro didático de língua estrangeira: múltiplas
perspectivas. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p.17-56.
PARAQUETT, M. O papel que cumprimos os professores de Espanhol como língua
estrangeira (ELE) no Brasil. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos
Interamericanos, n. 38, pp. 123-137, 2009.
PARAQUETT, M. As dimensões políticas sobre o ensino da língua espanhola no
Brasil: tradições e inovações. Hispanista - Revista electrónica de los Hispanistas de
Brasil. v. X. n. 37, 2009.
PARAQUETT, M. Multiculturalismo, inter-culturalismo e ensino/aprendizagem de
espanhol para brasileiros. In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino
Médio – Coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2010, pp.137-157.
PARAQUETT, M. A América Latina e materiais didáticos de espanhol como LE. In:
SCHEYERL, D & SIQUEIRA, S. (eds). Materiais didáticos para o ensino de línguas
na contemporaneidade: contestações e proposições. Salvador: EDUFBA, 2012.
PENNYCOOK, A. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P.
(org.) Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial,
2006, pp. 67-83.
PERINI, M. A leitura funcional e a dupla função do texto didático. In: ZILBERMAN,
R.; SILVA, E.T. (orgs). Leitura: Perspectivas Interdisciplinares. São Paulo, Ática,
1988.
PIMENTA, R. O. C. Aspectos cognitivos da compreensão textual no PISA 2000 e no
processo ensino-aprendizagem brasileiro. In: PINTO, A. Tópicos em cognição e
linguagem. Recife: Editora universitária da UFPE, 2006. pp. 111-126.
PONTE, A. S. A variação linguística na sala de aula. In: BARROS, C. S.; COSTA, E.
G. M. Espanhol: Ensino Médio – Coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010, pp.157-174.
RAJAGOPALAN, K. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão
ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
393
RAJAGOPALAN, K. Repensar o papel da linguística aplicada. In: MOITA LOPES, L.
P. (org.) Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial,
2006, pp. 149-168.
RAJAGOPALAN, K. O ensino de línguas estrangeiras como uma questão política. In:
MOTA, K.; SCHEYERL, D. (orgs.). Espaços Linguísticos: resistências e expansões.
Salvador: Ed.UFBA, 2006.
RAJAGOPALAN, K. Política de ensino de línguas no Brasil. In: MOITA LOPES, L. P.
(Org.). Linguística Aplicada na Modernidade Recente. Festschrift para Antonieta
Celani. 1ª.ed. São Paulo: Parábola, 2013, pp. 144-161.
RAJAGOPALAN, K. O ensino de línguas como parte da macro-política linguística. In:
GERHARDT, A. F. L. M.; AMORIM, M. A.; CARVALHO, A. M. (orgs.). Linguística
aplicada e ensino: língua e literatura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013, pp.47-73.
RANDI, J.; GRIGORENKO, E. L.; STERNBERG, R. J. Revisiting Definitions of
Reading Comprehension: Just What Is Reading Comprehension Anyway? In: ISRAEL,
S; BLOCK, C; BAUSERMAN, K; KINUCAN-WELSH, K. (Eds.). Metacognition in
literacy learning. London: Lawrence Erlbaum, 2008. pp. 19-40.
RICHARDS, J. C.; RODGERS, T. S. Enfoques y métodos en la enseñanza de
idiomas. Segunda edición actualizada. Madrid: Edinumen, 2003.
RINALDI, S.; CALLEGARI, M. V. Arriba – vol.1. Libro del Profesor. São Paulo:
Editora Moderna, 2005.
RODRIGUES, F. S. C. Leis e línguas: o lugar do espanhol na escola brasileira. In:
BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino Médio – Coleção Explorando o
Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010, pp.13-
24.
ROHRER, T. Embodiment and Experientialism. In: GEERAERTS, D.; CUYCKENS,
H. (eds.). The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. New York: Oxford
University Press, 2010, pp. 25-48.
ROJO, R. O Perfil do livro didático de Língua Portuguesa para o ensino fundamental (5ª
a 8ª séries). In: ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. (org) Livro didático de Língua
Portuguesa, letramento e cultura da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. pp.
69-99.
ROJO, R. H. R. Fazer linguística aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação
sofrida e leveza de pensamento. In: MOITA LOPES, L. P. (org.) Por uma Linguística
Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, pp. 253-276.
ROJO, R. H. R. Materiais didáticos no ensino de línguas. In: MOITA LOPES, L. P.
(Org.). Linguística Aplicada na Modernidade Recente. Festschrift para Antonieta
Celani. 1ª.ed. São Paulo: Parábola, 2013, pp. 163-196.
ROJO, R.; BATISTA, A. A. G. Apresentação – Cultura da escrita e livro escolar:
propostas para o letramento das camadas populares no Brasil. In: ROJO, R.; BATISTA,
A. A. G. (org) Livro didático de Língua Portuguesa, letramento e cultura da
escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. pp. 7-24.
394
ROSCIOLI, D. C.; TOMITCH, L. M. B. The effect of genre expectation on EFL
Brazilian students’ inference generation and reading comprehension. Revista do GEL,
São Paulo, v. 11, n. 1, p. 73-109, 2014.
ROSCIOLI, D. C.; TOMITCH, L. M. B.; FARIAS, P. F. The effect of reading goal on
inference generation while reading poetry. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos.
Juiz de Fora, v.19, n. 2, pp. 136-157, 2015.
SALOMÃO, M. M. M. Gramática e interação: o enquadre programático da hipótese
sócio-cognitiva sobre a linguagem. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos. Juiz de
Fora, v. 1, n. 1, pp. 23-39. 1997.
SALOMÃO, M. M. M. O papel da gramática na construção do sentido. In: VALENTE,
A. (org.). Língua, Linguística e Literatura. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998, pp.261-277.
SALOMÃO, M. M. M. A questão da construção do sentido e a agenda dos estudos da
linguagem. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos. Juiz de Fora, v. 3, n. 1. pp.61-79,
1999.
SALOMÃO, M. M. M. Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o estudo
sociocognitivo da referência. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v.44,
pp.71-84, 2003.
SCHWARTZ, B. L.; PERFECT, T. J. Introduction: toward an applied metacognition.
PERFECT, T. J.; SCHWARTZ, B. L. (Eds.). Applied Metacognition. Cambridge:
University Press, 2002, pp.01-14.
SCLIAR-CABRAL, L. Introdução à Psicolinguística. São Paulo: Ática, 1991.
SEBOLD, M. M. R. Q. A produção editorial para o ensino/aprendizagem de espanhol –
LE no Brasil. Anuario brasileño de estudios hispánicos, 1998, pp. 65-69.
SCHERER, A. E. A história e a memória na constituição do discurso da Linguística
Aplicada no Brasil. In: CORACINI, M. J.; BERTOLDO, E. S. O desejo da teoria e a
contigência da prática: discursos sobre e na sala de aula (língua materna e língua
estrangeira). Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003, pp. 61-83.
SILVA, D. N. ‘A propósito de Linguística Aplicada’ 30 anos depois: quatro truísmos
correntes e quatro desafios. D.E.L.T.A., 31-especial, pp.349-376, 2015.
SINHA, C. Situated Selves: learning to be a learner. In: BLISS, J.; SALJO, R.; LIGHT,
P. (orgs.). Learning Sites: Social and Technological Resources for Learning. Oxford:
Pergamon, 1999. pp. 32-48.
SINHA, C. Biology, Culture and the Emergence and Elaboration of Symbolization. In
SALEEMI, A. P.; BOHN, O. S; GJEDDE, A. (eds.). In Search of a Language for the
Mind-Brain: Can the Multiple Perspectives Be Unified? Aarhus: Aarhus University
Press, 2005, pp.311-335.
SINHA, C; JENSEN DE LOPÉZ, K. Language, culture and the embodiment of spatial
cognition. Cognitive Linguistics, n. 11, pp.17-41, 2000.
SOARES, M. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1997.
395
SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica,
1998.
SOLÉ, Isabel, Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1992.
SZUNDY, P. T. C.; NICOLAIDES, C. S. A “ensinagem de línguas no Brasil sob a
perspectiva da Linguística Aplicada: um paralelo com a história da ALAB. In:
GERHARDT, A. F. L. M.; AMORIM, M. A.; CARVALHO, A. M. (orgs.). Linguística
aplicada e ensino: língua e literatura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013, pp.7-46.
TEDESCO, S. Mapeando o domínio de estudos da psicologia da linguagem: por uma
abordagem pragmática das palavras. In: KASTRUP, V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E.
Políticas da Cognição. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2015.
TOMASELLO, M. Piagetian and Vygotskian approaches to language acquisition.
Human development, n.39, pp.269-276, 1996.
TOMASELLO, M. The Cultural Origins of Human Cognition. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1999.
TUGGY, D. Schematic network - Ambiguity, polysemy, and vagueness. In:
GEERAERTS, D. (ed.) Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de
Gruyter, 2006, pp.167-184.
VANIN, A. A. Língua, cognição e cultura: uma relação indissociável. Letrônica. v. 2,
n. 1, pp. 42 - 59, julho 2009
VARGAS, D. S.; SARMENTO, T. M. P. S; GERHARDT, A. F. L. M.; REBOLLO
COUTO, L. (Re)pensando atividades escolares de leitura em Espanhol-LE. In: I
CONGRESSO INTERNACIONAL DE PROFESSORES DAS LÍNGUAS OFICIAIS
DO MERCOSUL, 2010, Foz do Iguaçu, Anais... Foz do Iguaçu, 2011.
VARGAS, D. S. O ensino de leitura no ensino médio: uma análise do plano inferencial
em livros didáticos. Anais do SETA (UNICAMP), v. 5, pp. 236-251, 2011.
VARGAS, D. S. O plano inferencial em atividades de leitura: livro didático,
cognição e ensino. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (opção: Língua
Portuguesa). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
VARGAS, D. S. O Plano Inferencial em Atividades Escolares de Leitura: o livro
didático em questão. Intercâmbio, v. 25, pp. 126-152, 2012.
VARGAS, D. S. Contribuições cognitivistas para o ensino de leitura em espanhol na
Escola brasileira: o plano da compreensão metalinguística. Abehache: Revista da
Associação Brasileira de Hispanistas, v. 4, pp. 127-146, 2013.
VARGENS, D. P. M.; FREITAS, L. M. A. Ler e escrever: muito mais que unir
palavras. In: BARROS, C. S.; COSTA, E. G. M. Espanhol: Ensino Médio – Coleção
Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2010, pp.191-220.
396
VILLALBA, T. K. B.; GABARDO, M.; MATA, R. R. R. Formación en Español:
lengua y cultura – Descripción. 6º ano. Manual do Professor. Curitiba: Base Editorial,
2012.
VIGOTSKI, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
ZHANG, J.; PATEL, V. Distributed Cognition, Representation, and Affordance. In:
DROR, I. E.; HARNAD, S. (eds.). Cognition Distributed. Amsterdam/Philadelphia:
Johns Benjamins Publishing Company, 2008, pp.137-144.