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Página1 VII Simpósio Nacional de História Cultural HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES Universidade de São Paulo – USP São Paulo – SP 10 e 14 de Novembro de 2014 O PARQUE DOM PEDRO II PELAS LENTES DE SEUS USUÁRIOS (1920-1950) Vanessa Costa Ribeiro * A presente comunicação pretende discutir a apropriação do espaço do Parque Dom Pedro II, região localizada entre a colina central de São Paulo e o bairro operário do Brás, por meio da análise de um conjunto de 101 fotografias tiradas por usuários deste território e fotógrafos ambulantes, no período de 1920 a 1950. A Várzea do Carmo, atual Parque Dom Pedro II, sempre foi alvo direto ou indireto dos principais projetos urbanísticos criados pelo poder público paulista. Nas primeiras décadas do século XX, tentou-se por meio de iniciativas pontuais sanear e embelezar a várzea alagadiça do Rio Tamanduateí. Nesse período, a construção de um parque pode ser apontada como a principal estratégia criada pelo poder público para a transformação deste espaço e sua incorporação ao território da cidade até então restrita a região do triângulo central 1 . Já a partir da década de 1930, com a publicação do Plano * A autora, Vanessa Costa Ribeiro, é bacharel e licenciada em História pela Universidade de São Paulo (2006). Em 2012, obteve o título de mestre em História Social pela mesma universidade, onde apresentou a dissertação “Várzea do Carmo a Parque Dom Pedro II: de atributo natural a artefato - Décadas de 1890 a 1950”. Tem experiência na área de História, com ênfase em Cultura Visual, atuando principalmente nos seguintes temas: São Paulo, Várzea do Carmo, Parque Dom Pedro II, Fotografia e Imaginário Urbano. Atualmente coordena a Ação Educativa do Museu de Arte Sacra de São Paulo. 1 A partir da década de 1880 o debate sobre o saneamento e embelezamento da Várzea do Carmo, local considerado insalubre devido às constantes cheias do Rio Tamanduateí, ocupa as páginas dos principais jornais da capital. Na década de 1910, após um intenso debate do qual participaram a iniciativa privada, o poder público estadual e municipal optou-se pela construção de um parque na Várzea do Carmo conforme prescrição feita pelo arquiteto paisagista francês Joseph Antoine Bouvard. Embora o projeto

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VII Simpósio Nacional de História Cultural

HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO,

LEITURAS E RECEPÇÕES

Universidade de São Paulo – USP

São Paulo – SP

10 e 14 de Novembro de 2014

O PARQUE DOM PEDRO II PELAS LENTES DE SEUS USUÁRIOS

(1920-1950)

Vanessa Costa Ribeiro*

A presente comunicação pretende discutir a apropriação do espaço do Parque

Dom Pedro II, região localizada entre a colina central de São Paulo e o bairro operário do

Brás, por meio da análise de um conjunto de 101 fotografias tiradas por usuários deste

território e fotógrafos ambulantes, no período de 1920 a 1950.

A Várzea do Carmo, atual Parque Dom Pedro II, sempre foi alvo direto ou

indireto dos principais projetos urbanísticos criados pelo poder público paulista. Nas

primeiras décadas do século XX, tentou-se por meio de iniciativas pontuais sanear e

embelezar a várzea alagadiça do Rio Tamanduateí. Nesse período, a construção de um

parque pode ser apontada como a principal estratégia criada pelo poder público para a

transformação deste espaço e sua incorporação ao território da cidade – até então restrita

a região do triângulo central1. Já a partir da década de 1930, com a publicação do Plano

* A autora, Vanessa Costa Ribeiro, é bacharel e licenciada em História pela Universidade de São Paulo

(2006). Em 2012, obteve o título de mestre em História Social pela mesma universidade, onde

apresentou a dissertação “Várzea do Carmo a Parque Dom Pedro II: de atributo natural a artefato-

Décadas de 1890 a 1950”. Tem experiência na área de História, com ênfase em Cultura Visual, atuando

principalmente nos seguintes temas: São Paulo, Várzea do Carmo, Parque Dom Pedro II, Fotografia e

Imaginário Urbano. Atualmente coordena a Ação Educativa do Museu de Arte Sacra de São Paulo.

1 A partir da década de 1880 o debate sobre o saneamento e embelezamento da Várzea do Carmo, local

considerado insalubre devido às constantes cheias do Rio Tamanduateí, ocupa as páginas dos principais

jornais da capital. Na década de 1910, após um intenso debate do qual participaram a iniciativa privada,

o poder público estadual e municipal optou-se pela construção de um parque na Várzea do Carmo

conforme prescrição feita pelo arquiteto paisagista francês Joseph Antoine Bouvard. Embora o projeto

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de Avenidas2, as áreas do Parque Dom Pedro II tornaram-se alvos de obras que visavam

expandir a malha viária urbana a fim de realizar a ligação da região central com os novos

bairros, surgidos na região leste da cidade. Nas décadas seguintes, gradualmente, por

meio da construção de um complexo de viadutos e da Avenida Radial Leste, o Parque

Dom Pedro II torna-se um não-lugar – condição que mantém até a atualidade apesar dos

projetos que buscam “requalificá-lo” por meio de iniciativas no âmbito da cultura.3

O termo não-lugar advém da compreensão desse espaço urbano enquanto um

local em que não se permanece, isto é, que abriga atividades, equipamentos e grupos

sociais cuja transitoriedade os define. E, por isso mesmo pode ser continuamente

modificado pelas obras da administração pública. A localização de um dos maiores

terminais de ônibus da capital nessa área é emblemática dessa condição de

transitoriedade. A análise das fotografias produzidas pelos particulares no período de

1920 a 1950 ajudam-nos a conhecer os grupos envolvidos com esse espaço que por meio

da construção de memórias individuais e coletivas transformaram-no em um lugar da

experiência4 e também a entender o processo de desestruturação das redes sociais ali

existentes.

de parque tenha sido aprovado pela Lei Municipal nº1793 em 1914, apenas nos primeiros anos da

década de 1920 o parque foi entregue ao público pela empreiteira particular, contratada pela Prefeitura,

com as obras de ajardinamento inconclusas.

2 Em 1930 tornou-se pública a primeira versão do Plano de Avenidas (1924-1930), elaborado pelos

engenheiros Ulhoa Cintra e Francisco Prestes Maia. Essa versão continha uma série de propostas de

intervenção na área do Parque Dom Pedro II, tais como: alargamento do sistema viário nos três eixos

correspondentes aos antigos aterros (da Mooca ou Tabatinguera, do Carmo e do Gasômetro) e sua

transformação em amplas avenidas radiais: alargamento de todo sistema viário perimetral ao parque e

intervenção nas duas praças semicirculares que ligavam o parque à Ladeira General Carneiro (KLIASS:

1993, p.129).

3 São exemplos dessas iniciativas a transformação do Palácio das Indústrias no Espaço Catavento em

2009, museu de ciências da natureza e humanas, a recente demolição do lote urbano em que se

localizava o Edifício São Vito enquanto parte de um extenso projeto de revitalização da várzea do Rio

Tamanduateí e os projetos do Museu de História do Estado de São Paulo e do Museu da Polícia/Fábrica

de Cultura que ocuparão respectivamente a antiga Casa das Retortas e o Quartel da Polícia. Essas

iniciativas buscam agregar novos valores ao espaço na tentativa de atrair investimentos turísticos e

imobiliários, conforme a lógica de “cidades globais”.

4 O conceito de lugar da experiência foi formulado pelo geógrafo Yi-FuTuan (TUAN: 1983). Para esse

autor, o lugar representa a segurança e a pausa. E, em contraposição, o espaço representa a amplitude

e a liberdade de ação. Neste sentido, um lugar atinge realidade concreta quando nossa experiência com

ele é total, isto é, através de todos os sentidos, como também com a mente ativa e reflexiva. Quando

residimos por muito tempo em determinado lugar, podemos conhecê-lo intimamente, porém a sua

imagem pode não ser nítida, a menos que possamos também vê-lo de fora e pensemos em nossa

experiência. A outro lugar pode faltar o peso da realidade porque o conhecemos apenas de fora– através

dos olhos de turistas e da leitura de um guia turístico. Sugiro que os representantes do poder público

experenciaram a Várzea do Carmo sobretudo de maneira conceitual, portanto para esses agentes a

Várzea não se configurou enquanto um lugar da experiência.

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Para dar conta da análise deste grupo de fotografias criou-se um vocabulário

controlado, que permiti quantificar e também apontar a recorrência de determinados

descritores icônicos e formais. No grupo de descritores icônicos controlaram-se os

seguintes aspectos: abrangência espacial, infraestrutura (processos/serviços,

comunicações, mobiliário urbano e paisagismo), estruturas/funções arquiteturais,

elementos móveis (gênero/idade, personagens, transporte, indumentária/objetos),

temporalidade, atividade e evento. Já no grupo de descritores formais verificaram-se o

enquadramento, o arranjo, a articulação dos planos, os efeitos, a estrutura e o formato das

fotografias.

Essa metodologia, baseada nas propostas do trabalho das historiadoras Solange

Ferraz de Lima e Vânia Carneiro Carvalho (CARNEIRO e LIMA: 1997), permite não só

a análise quantitativa dos registros, mas também a compreensão da mobilização de

determinados recursos da linguagem fotográfica por seus produtores. Em última

instância, sua aplicação possibilitou o estabelecimento de padrões visuais de

representação da Várzea do Carmo nas fotografias pertencentes aos antigos usuários e

moradores desse espaço.

No período que abarca as décadas de 1920 a 1930, apenas um único padrão de

representação foi identificado – o padrão figurista (figura 1), isto é, aquele em que

prevalecem as tomadas pontuais em que se destaca a representação da figura humana. O

enquadramento, na maior parte dos casos, é feito de um ponto de vista central. O arranjo

é discreto e raramente se utilizam efeitos fotográficos característicos do movimento de

fotografia moderna5. Em todas as fotografias analisadas os retratados estão posando.

Nesse padrão a figura humana não é representada enquanto um elemento móvel,

isto é, um transeunte que confere transitoriedade ao motivo fotografado. Pelo contrário,

trata-se da razão do registro fotográfico. Quanto ao gênero/idade destes personagens, 43%

são crianças, 32% homem, 24% mulheres e apenas 1% idosos.

5 O movimento de fotografia moderna, também conhecido como straight photography, teve como um de

seus percussores o fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz (1864- 1946). Seus adeptos, nas primeiras

décadas do século XX, exploraram as singularidades da técnica fotográfica, obtidas pelos efeitos de

contraste de tom, contraste de escala, valorização da forma pela fragmentação e inversão de escala dos

motivos fotografados.

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Entre as atividades detectadas neste período predominam as atividades de lazer,

a saber: 71% carnaval6, 16% futebol7, 3% passeio ao Parque Dom Pedro II e 2% festas

de confraternização dos funcionários da San Paulo Gas Co. Em 8% identificou-se uma

atividade de cunho religioso, a procissão de Nossa Senhora da Casaluce. Se levarmos em

conta o fato de que neste período a procissão não só era um momento em que o fiel

expressava sua devoção, mas também era um espaço de sociabilidade, em que se

encontrava a vizinha, em que grupos de amigos tocavam e as moças desfilavam a procura

de namorados, podemos afirmar que nos registros produzidos pelos usuários do parque

neste momento o Parque Dom Pedro II tratava-se de uma área privilegia de lazer para os

que moravam nos bairros de seus arredores.

Já no período entre as décadas de 1940 e 1950 foram detectados para além do

padrão figurista, presente em 65% dos registros, os padrões mercadoria, coexistência,

retrato e aglomeração, com respectivamente, 18%, 8%, 6% e 3%.

Todas as fotografias do padrão mercadoria foram produzidas pelos proprietários

do Parque Shanghai8. Os registros das atrações do parque de diversões privilegiam as

tomadas que singularizam o produto fotografado assim como nas fotografias dos

mostruários das exposições industriais que circularam nas páginas da revista A Cigarra.

Como por exemplo, na figura 2, em que se fotografa um brinquedo na ausência dos

frequentadores do parque de diversões. O contraste de escala entre o brinquedo, no centro

da fotografia, e os postes de iluminação, ao seu redor e sobretudo, as árvores do Parque

Dom Pedro II, dispostas ao longo do último plano, tornam a atração ainda mais

6 Trata-se da prática carnavalesca do corso, desfile de automóveis abertos, caminhonetes e caminhões

enfeitados com flores de papel, arcos de bambu, bandeirinhas coloridas, recobertos com colchas e

tapeçarias, nos quais iam famílias numerosas, grupos de amigos, colegas de trabalho ou vizinhos num

passeio carnavalesco que, a partir das seis horas da tarde, iniciava-se no Parque Dom Pedro II e se

estendia pela Avenida Rangel Pestana, até o Largo da Concórdia. Ali os carros faziam a volta e

retornavam pela mesma avenida até o início do trajeto, encetando-o novamente. Nas décadas de 1920 e

1930, período de auge desse folguedo que passou a atrair além das populações dos bairros adjacentes –

Mooca, Pari, Belém, Tatuapé e Penha – foliões de pontos mais distantes da cidade – Lapa, Pinheiros e

Pirituba –, o percurso foi estendido até o Largo São José do Belém, por meio da Rua Celso Garcia, para

dar conta do grande afluxo de veículos e de foliões (SIMSON: 2007).

7 A temática do futebol refere-se às fotografias do time de funcionários da San Paulo Gas Company, cujo

campo ficava na região do Parque Dom Pedro II. Este time participou da liga de futebol operário,

disputando partidas com agremiações de outras empresas, como por exemplo, a Companhia de

Máquinas Piratininga e as Empresas Matarazzo Reunidas.

8 O parque de diversões Shanghai localizava-se no Parque Dom Pedro II, próximo à baixada do Glicério.

Os proprietários do parque de diversões eram de origem alemã e possuíam outras unidades nas cidades

de Porto Alegre, Brasília e Rio de Janeiro. Atualmente apenas a unidade carioca subsite ao pé da colina

da Igreja da Penha.

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excepcional. O uso do formato retângulo vertical confere dinamismo ao registro uma vez

que se opta pela ausência de usuários no registro fotográfico do brinquedo em ação.

No padrão coexistência (figura 3) os elementos paisagísticos do Parque Dom

Pedro II aparecem em primeiro plano, emoldurando os arranha-céus da região próxima

ao antigo triângulo central, dispostos no plano de fundo. Os edifícios mais representados

são o Banco do Estado de São Paulo, Banco do Brasil e Martinelli. As tomadas

privilegiam o ponto de vista parcial, os enquadramentos variam entre os pontos de vista

central, diagonal e ascensional. Os arranjos são discretos ou rítmicos, neste último a

repetição de determinado elemento figurativo e a presença de linhas diagonais conferem

uma sensação de dinamismo a fotografia. Geralmente são empregados os efeitos de

contraste de tom e contraste de escala. Essa fotografia realizada pelo proprietário de uma

banca de secos e molhados do Mercado Municipal mobiliza descritores formais e icônicos

semelhantes aos utilizados nos cartões postais fotográficos, produzidos pelas editoras

Fotopostal Colombo e Fotolabor, principais editoras de postais nas décadas de 1940 e

1950. Nesse momento privilegia-se a tomada do Parque Dom Pedro II, em que o parque

deixa de ser o principal motivo fotografado e se torna um ornamento da cidade moderna,

cujo ícone máximo é o arranha-céu. Essa forma de representação é muito semelhante às

imagens da cidade de Nova York deste mesmo período, cujos arranha-céus são

emoldurados pelo Central Park.

No padrão retrato (figura 4) elege-se sempre como motivo fotografado um

edifício público, no caso o Palácio das Indústrias, sede da Assembleia Legislativa neste

momento. Neste padrão as tomadas são pontuais, o motivo fotografado é emoldurado

pelo parque e geralmente o arranjo dado é discreto. Mais uma vez percebe-se que o autor

da fotografia, novamente o dono da banca de secos e molhados do Mercado, utiliza como

referência visual para seu registro fotográfico os elementos mobilizados em cartões

postais, sobretudo daqueles que circularam nas décadas de 1920 e 1930, em que a

representação de um edifício público é indício da concretização do processo de

transformação da “insalubre” Várzea do Carmo em um parque pelo poder público, que

ali se faz representar a partir da imponência da arquitetura eclética do edifício ora do

Palácio das Indústrias ora do Mercado Municipal.

Por fim, no padrão aglomeração (figura 5) a abrangência é parcial e o arranjo

dado ao motivo fotografado é caótico. A sensação de abundância desta imagem advém

da aglomeração de expectadores durante a cerimônia de inauguração dos novos balcões

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frigoríficos das bancas de carne e derivados no Mercado pelo governador Ademar de

Barros em 1948. Muito provavelmente o fotógrafo planejou esta tomada para dar maior

credibilidade à figura de Ademar de Barros, conhecido por ser um governo populista.

Esse registro foi feito por um fotógrafo contratado pelo periódico luso-paulistano A Voz

de Portugal a fim de ilustrar uma reportagem sobre o certame uma vez que uma empresa

de descendentes portugueses fora encarregada da construção dos novos balcões de carne

“modernos” e “higiênicos” 9.

Entre as temáticas fotografadas no período das décadas de 1940 e 1950 têm-se

representado em 33% dos registros o passeio ao Parque Dom Pedro II, mesma

porcentagem que se verifica a representação de atividades relacionadas ao universo do

trabalho10, 23% passeio no Parque de Diversões Shangai, 6,4% eventos excepcionais11,

3% futebol e 1,6% carnaval. As atividades relacionadas ao lazer aparecem em 60,6% dos

registros, decréscimo considerável se recordar de que nas décadas de 1920 e 1930, todos

registros referem-se à essa temática.

Também se nota a inversão dos personagens que lá circulavam, agora são

representados homens em 43% dos registros, seguidos de mulheres em 29% e 18% de

crianças.12 Pela primeira vez, nas fotografias dos usuários do parque, verifica-se a

presença de transeuntes, personagem que nos indica a transitoriedade das práticas no

espaço.

9 Essa fotografia me foi cedida pela moça, que na fotografia corta a fita de inauguração do balcão, filha

do espanhol proprietário da banca de carne inaugurada e que atualmente é uma das mammas da festa de

San Gennaro, por isso considerada no âmbito dos registros produzidos por usuários do Parque. Também

me foi entregue a o recorte do jornal.

10 Trabalho no Mercado e no Parque de Diversões Shangai. Nestes registros nunca se trata de fotografar

os trabalhadores em ação, mas sim posando junto às bancas ou as atrações do parque de diversões.

11 A saber: campanha de arrecadação de banha enlatada pelos proprietários de boxes do Mercado para

enviar às tropas dos pracinhas brasileiros encaminhados para Itália, por ocasião da II Guerra Mundial e

inauguração da nova sede social do clube de futebol dos funcionários da San Paulo Gas Company,

localizada na Rua do Gasômetro, n.100.

12 A porcentagem restante refere-se à ausência de personagens nos registros.

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Vale dizer ainda que nas décadas de 1940 e 1950, verifica-se a presença de carros

e ônibus nos registros fotográficos dos usuários, mas ao contrário das décadas anteriores

em que se tratavam dos automóveis enfeitados para o desfile do corso carnavalesco do

Brás, são carros e ônibus estacionados ou circulando nos arredores do Parque Dom Pedro

II. Em ambos os períodos aqui analisados, verifica-se a ausência de veículos em 70% do

conjunto fotográfico.

A variação de padrões visuais nos registros dos usuários nas décadas de 1940 e

1950 bem como a redução das atividades de lazer, o surgimento de atividades

relacionadas ao universo do trabalho e a redução do número de crianças representadas

são indícios do processo de resignificação das áreas do Parque Dom Pedro II, encabeçado

por ações do poder público, que deixa de compreendê-lo e representá-lo enquanto um

artefato – a Várzea transformada em Parque – para se tonar um ornamento da metrópole,

por isso passível de desestruturação em virtude da necessidade de expansão,

diversificação e circulação de mercadorias e pessoas que requer a metrópole moderna, tal

qual a se alardeava construir pelos jornais, cartões postais e álbuns fotográficos

publicados em função do IV Centenário do aniversário de São Paulo.

Apresentados esses dados surge uma problemática fundamental para

compreensão do processo de transformação e degradação das áreas do Parque Dom Pedro

II – se esse território era o principal equipamento de lazer dos habitantes dos bairros

operários além-Tamanduateí, Brás, Mooca e Belenzinho, como se verifica nos registros

fotográficos dos usuários do Parque doravante analisados, porque se desagregou sem

nenhuma mobilização significativa dos grupos que o freqüentavam. Os conceitos de

pedaço, mancha e circuito formulados pelo antropólogo José Magnani ajudam-nos a

refletir sobre esta questão.

O termo pedaço é utilizado pelo antropólogo para designar o espaço ou um

segmento dele que se torna um ponto de referência para distinguir determinado grupo de

0%

20%

40%

60%

Crianças Homens Mulheres Ausente

1920-1930

1940-1950

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frequentadores como pertencentes a uma rede de relações em função da presença regular

de seus membros que criam um código de reconhecimento e comunicação cujo

determinante é o espaço. A Mancha equivale a um grupo de equipamentos, os quais, seja

por competição seja por complementação, concorrem para o mesmo efeito: constituir

pontos de referência para a prática de determinadas atividades.

As marcas dessas duas formas de apropriação e uso do espaço – pedaço e

mancha – na paisagem mais ampla da cidade são diferentes. No primeiro caso, em que o

fator determinante é constituído pelas relações estabelecidas entre seus membros (como

resultado do manejo de símbolos e códigos), o espaço como ponto de referência é restrito,

interessando mais a seus habitués. Com facilidade muda-se de ponto, quando então se

leva junto os pedaços. A mancha, ao contrário, sempre aglutinada em torno de um ou

mais estabelecimentos, apresenta uma implantação mais estável tanto na paisagem como

no imaginário. As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de

uma multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de acesso, o

que garante uma maior continuidade, transformando-a, assim, em ponto de referência

físico, visível e público para um amplo número de usuários (MAGNANI: 2000, 2002).

Em função das atividades detectadas nos registros fotográficos dos usuários

desse espaço podemos afirmar que o território do Parque Dom Pedro II era um pedaço

para aqueles que o freqüentavam e se faziam representar pelos registros fotográficos

analisados. As obras de construção de um complexo de viadutos e também da Avenida

Radial Leste para além da transformação do bairro do Brás em uma região sobretudo

comercial e da mudança das indústrias para outros terrenos mais distantes em função do

barateamento dos lotes mais afastados e da possibilidade de interligação pelas rodovias

fizeram com que essas populações migrassem para outros espaços, levando consigo seus

pedaços já que estavam organizadas sobretudo em função de redes familiares e de

trabalho.

Os equipamentos presentes na região do Parque Dom Pedro II – o Palácio das

Indústrias e o Mercado, não eram singulares o bastante para seus usuários a fim de

estabelecer uma mancha. Talvez porque ao Mercado associava-se à noção de trabalho e

não de lazer. Por sua vez, o Palácio das Indústrias era apenas um elemento figurativo

plasticamente representado nas fotografias e no qual se adentrava apenas para realização

de um serviço burocrático que estava a cargo das funções da Assembléia Legislativa.

Desta forma, o parque urbano não teve impacto suficiente para se tornar um ponto de

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referência. Vale dizer que nas fotografias realizadas pelo poder público nesse período, o

espaço assumia uma nova função, cedendo lugar às obras de interligação da malha de

transporte urbano que visavam resolver o problema da interligação dos bairros com a

região central da cidade, principal preocupação dos urbanistas e também dos

representantes do poder público a partir da década de 1950.

Para concluir, a noção de circuito que também designa um uso do espaço e de

equipamentos urbanos – possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade por

meio de encontros, comunicação, manejo de códigos – porém, de forma mais

independente com relação ao espaço, sem se ater à contigüidade, como ocorre na mancha

ou no pedaço. Mas tem, igualmente, existência objetiva e observável: pode ser levantado,

descrito e localizado ajuda-nos a compreender as transformações da atividade

carnavalesca e o fim do corso do Brás.

O carnaval, evento com a maior representatividade entre as fotografias de

particulares nas décadas de 1920 e 1930, a partir desta última década passa por um

processo de homogeneização cultural, resultante de sua incorporação pelos meios de

comunicação de massa (rádio e, posteriormente televisão) que transformam este fato

cultural em uma mercadoria, amplamente veiculada e consumida por todas as camadas

sociais urbanas (SIMSON: 2007). Assim cria-se um circuito carnavalesco que tem como

modelo o carnaval carioca, organizado pelas escolas de samba dos folguedos negros, claro

que devidamente estilizados a fim de se tornar um produto de massas. Desta maneira o

corso do Brás, divertimento pontual e frequentado sobretudo pelos habitués do espaço

formado sobretudo por grupos operários imigrantes e seus descendentes, vai pouco a

pouco se enfraquecendo, já que os comerciantes e as rádios que o patrocinavam

gradualmente passaram a se desinteressar por esse evento, preferindo o carnaval das

escolas de samba que atingia um número maior de consumidores e ouvintes.

No jogo de forças do qual esse território é resultado, podemos afirmar a partir da

análise desse conjunto iconográfico que a memória dos grupos sociais nele representado

foi superposta pela memória construída pelos representantes da administração pública

que observaram a Várzea do Carmo de uma maneira conceitual e pragmática. A imagem

que se tem do Parque Dom Pedro II no imaginário coletivo contemporâneo é herdeira da

representação desse espaço pelas fotografias do poder público do período de 1930 a 1950.

Isto é, associa-se a esse espaço a noção de transitoriedade, fruto das constantes

intervenções ali realizadas. Como dito anteriormente, hoje se agrega a essa imagem a

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ideia de abandono, fruto das novas lógicas de concepção do planejamento urbano que

buscam “requalificar” a área e para tal alardeiam seu esvaziamento, ignorando os grupos

sociais que lá habitam.

A imagem desse espaço enquanto uma área de lazer subsiste apenas nos registros

fotográficos e lembranças de seus antigos usuários que ainda residem nas proximidades

da região e que se referem ao tempo de outrora saudosamente e o caracterizam como um

momento em que se podia passear no parque e brincar o carnaval nas ruas – situação que

seus descendentes, filhos e netos, não experienciam e, na maioria das vezes, nem

imaginam que esses personagens vivenciaram. O saudosismo da fala dos antigos usuários

desse espaço deve ser entendido enquanto um reflexo da situação vivida por eles no

presente, em que a maior parte dos espaços públicos de lazer foi deixada de lado e

substituída pelos “espaços públicos privados”, shopping centers, e pelas tecnologias da

televisão e internet. Esses espaços contemporâneos privilegiam o individualismo e as

relações organizados em prol do consumo, por isso geralmente vão de encontro às

experiências de parentesco e vizinhança dos grupos que se faziam representar nas

fotografias analisadas.

Por fim, cabe dizer que a maior parte desses personagens que nos cedeu às

fotografias, ainda hoje participa de redes de solidariedade, só que não mais organizados

em função do território do Parque Dom Pedro II, mas em função de comunidades

religiosas italianas que organizam as festividades em homenagem à San Gennaro e à São

Vito.

FIGURAS

FIGURA 1

Corso carnavalesco no Pq. D. Pedro II- Grupo do Mão Zôio

Década de 1930

Acervo Fundação Energia e Saneamento

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FIGURA 2

Tirolesa, atração do Parque Shanghai

Década de 1950

Acervo Karmatique Imagens

FIGURA 3

Fotografia tirada pela família Chiappetta durante

passeio no Pq. D. Pedro II

1951

Acervo Karmatique Imagens

FIGURA 4

Fotografia tirada pela família Chiapeta

durante passeio no Pq. D. Pedro II

1951

Acervo Karmatique Imagens

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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razão urbana à lógica do consumo. Campinas/São Paulo; Mercado de Letras/ Fapesp,

1997.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

KLIASS, Rosa Grena Alembick. Parques urbanos de São Paulo e sua evolução na

cidade. São Paulo: Pini, 1993.

MAGNANI, J. Guilherme. Na Metrópole: Textos de Antropologia Urbana. São Paulo:

Edusp, 2000.

______________. “De perto e de dentro: notas para uma antropologia urbana”. RCBS,

vol.17, n.49, junho 2002.

FIGURA 5

Inauguração dos novos balcões frigoríficos para bancas de carne e derivados do Mercado

1948

Fotografia cedida por Yvone Martinez

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3

MARTINS, Ismênia de Lima e CORTE, Andréa Telo da. “Imigração, cidade e memória”.

In: AZEVEDO, Cecília (org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro:

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