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7/13/2019 UMA INTERPRETAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E TEOLOGIA A PARTIR DA HERMENÊUTICA , ELTON VITORIA… http://slidepdf.com/reader/full/uma-interpretacao-das-relacoes-entre-filosofia-e-teologia-a-partir-da-hermeneutica 1/24  Atualidade Teológica  Ano XV nº 38, maio a agosto/2011 273 Uma interpretação das relações entre filosofia e teologia a partir da hermenêutica  Elton Vitoriano Ribeiro Resumo A teologia como hermenêutica da palavra de Deus e da existência hu- mana é ato de interpretação do evento Cristo . Interpretação que acontece na relação entre a experiência cristã fundamental e a experiência humana hoje, e que prossegue numa dimensão de transformação da prática dos cristãos em vista de uma fé mais libertadora, caminhante na esperança, geradora de cari- dade. Minha reexão neste artigo se desenvolverá em unidades concêntricas: a partir de uma abordagem mais abrangente sobre as relações entre losoa e teologia, aprofundarei a questão hermenêutica e sua relação com a teologia. Para terminar, apresentarei a teologia hermenêutica iniciação ao mistério de Deus em nossas vidas. Mistério narrado nas Escrituras e nas vivências das comunidades cristãs, e interpretado em Igreja por homens e mulheres que zeram de suas vidas uma adesão dinâmica e sempre renovada a Jesus Cristo.  Palavras-chave : Filosoa, Teologia, Hermenêutica Abstract Theology as Hermeneutics of the Word of God and human existence is an act of interpretation of the Christ event. Interpreting what happens in

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  • Atualidade Teolgica Ano XV n 38, maio a agosto/2011 273

    Uma interpretao das relaes entre filosofia e teologia a partir

    da hermenutica

    Elton Vitoriano Ribeiro

    Resumo

    A teologia como hermenutica da palavra de Deus e da existncia hu-mana ato de interpretao do evento Cristo. Interpretao que acontece na relao entre a experincia crist fundamental e a experincia humana hoje, e que prossegue numa dimenso de transformao da prtica dos cristos em vista de uma f mais libertadora, caminhante na esperana, geradora de cari-dade. Minha reflexo neste artigo se desenvolver em unidades concntricas: a partir de uma abordagem mais abrangente sobre as relaes entre filosofia e teologia, aprofundarei a questo hermenutica e sua relao com a teologia. Para terminar, apresentarei a teologia hermenutica iniciao ao mistrio de Deus em nossas vidas. Mistrio narrado nas Escrituras e nas vivncias das comunidades crists, e interpretado em Igreja por homens e mulheres que fizeram de suas vidas uma adeso dinmica e sempre renovada a Jesus Cristo.

    Palavras-chave: Filosofia, Teologia, Hermenutica

    Abstract

    Theology as Hermeneutics of the Word of God and human existence is an act of interpretation of the Christ event. Interpreting what happens in

  • Atualidade TeolgicaRevista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio / Brasil274

    the relationship between the fundamental Christian experience and human experience today, and continuing transformation into a dimension of the practice of Christian faith in light of a more liberating walker in hope of generating charity. My reflection in this article will develop in concentric units: from a more comprehensive approach to the relations between philosophy and theology, hermeneutics delve into the issue and its relationship with theology. To conclude, I present the theology hermeneutics as initiation to the mystery of God in our lives. Mystery narrated in Scripture and in the experiences of Christian communities, and interpreted by the Church for men and women who made their lives a dynamic and constantly renewed adherence to Jesus Christ.

    Keywords: Philosophy, Theology, Hermeneutics

    Compreender a f crist adentrar-se no mundo da interpretao, mundo da hermenutica, mundo humano. A teologia como hermenutica da palavra de Deus e da existncia humana ato de interpretao do evento Cristo. In-terpretao que acontece na relao entre a experincia crist fundamental e a experincia humana hoje, e que prossegue numa dimenso de transformao da prtica dos cristos em vista de uma f mais libertadora, caminhante na esperana, geradora de caridade. Minha reflexo neste artigo se desenvolver em unidades concntricas: a partir de uma abordagem mais abrangente sobre as relaes entre filosofia e teologia, aprofundarei a questo hermenutica e sua relao com a teologia. Para terminar, apresentarei a teologia hermenuti-ca como mistagogia, ou seja, iniciao ao mistrio de Deus em nossas vidas. Mistrio narrado nas Escrituras e nas vivncias das comunidades crists, e interpretado em Igreja por homens e mulheres que fizeram de suas vidas uma adeso dinmica e sempre renovada a Jesus Cristo.

    1. As relaes entre filosofia e teologia

    A teologia catlica sempre defendeu a necessidade da reflexo filosfica como um momento interno da prpria reflexo teolgica1. Negar isto poderia 1 Cf.: M. NDONCELLE, Teologia e Filosofia ou as metamorfoses duma ancilla, Concilium, 6, 1965, 69-77. PP. JOO PAULO II. Carta Apostlica Fides et Ratio: sobre as relaes entre f e razo, So Paulo, Loyola, 1998. P. GILBERT, Actualit dune philosophie Chrtienne, Raison Politiques, nov. 2001, 1-7. A. GUGGENHEIM, Lenseignement de la philosophie dans une Faculte de thologie, Nouvelle Revue thologique, 126, 2004, 412-419. M. A. OLIVEIRA, necessrio filosofar na teologia:

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    significar a prpria negao da universalidade da revelao de Deus. Em lti-ma instncia, terminar-se-ia por adotar uma posio fidesta, fundamentalista ou mesmo agnstica. Assim, recorrer reflexo filosfica significa procurar uma linguagem mais universal para falar sobre os dados da palavra revelada. Necessidade prpria da revelao de Deus em Jesus Cristo apesar de sua par-ticularidade scio-histrica.

    Nesta relao frutuosa da filosofia com a teologia, penso que a filosofia tem a misso de iluminar a f com a luz da razo. Isto significa, entre outras questes, compreender o carter histrico do conhecimento humano, apreciar e valorizar a solido e o silncio necessrios a toda reflexo, dispor e estru-turar a mente humana para o duro, srio e exigente labor teolgico. Ainda, a filosofia apresenta seu valor para a reflexo teolgica porque ela convida a pensar sempre mais. A filosofia convida a pensar precisamente ali onde ou-tras disciplinas cessam seu discurso. Neste momento que a filosofia interroga, questiona. No momento onde as outras cincias oferecem uma resposta, a filosofia suspeita, duvida e pergunta mais, nunca satisfeita com uma soluo particular para um problema especfico. Eis a tarefa da filosofia.

    Por outro lado, o caminho da filosofia tambm o caminho da autocons-cincia pessoal. A filosofia adentra-se nas questes fundamentais que caracteri-zam o prprio percurso da existncia humana, com as quais a teologia tambm vai se deparar. Perguntas como quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que existir depois da vida? Estas e outras questes to-cam no cerne da existncia humana e do sentido da vida assim como a vivemos.

    Alm das questes existenciais, o caminhar filosfico o caminhar procura da verdade. Do ser humano, pode-se dizer, aquele ser que procura, incansavelmente, a verdade. Diante desta questo ningum pode, sinceramente, permanecer indiferente. Tanto que na vida humana se descobrimos que algo falso logo o rejeitamos, por outro lado, se descobrimos que algo verdadeiro o acolhemos. Assim, indagar sobre a questo da verdade revelada em Jesus Cristo, tarefa da teologia, no poder ser levada a cabo sem a companhia, questionadora e reflexiva, da filosofia.

    unidade e diferena entre filosofia e teologia em Karl Rahner, Perspectiva Teolgica, 36, 2004, 15-32. V. DRAN CASAS, Filosofia ad maiorem Dei Gloriam, Gregorianum, 85/1, Roma 2004, 32-48. P. GILBERT, Un cadet, un an, un fils unique Revista Catalana de Teologia, XXXIII/1, 2008, 93-107. P. ROYANNAIS, Penser philosophiquement la thologie, Recherches de Science Religieuse, Janvier-Mars 2010, 11-30. V. HOLZER, Philosopher lintrieur de la thologie, Recherches de Science Religieuse, Janvier-Mars 2010, 59-84. PUTALLAZ, F. X., De certains prsupposs philosophiques aux chois hermneutiques, Revue Thomiste, Avril Juin, 2010, 307-324. HUMBRECHT, T. D., Interprter lhermneutique, Revue Thomiste, Avril Juin, 2010, 325-341.

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    De tudo o que disse parece-me claro que para a teologia, na sua elaborao reflexiva sobre a compreenso da palavra revelada, luz da f e no contexto atual, a filosofia dever ser companheira sempre presente. Evidentemente, existe a questo sempre atual acerca do tipo de reflexo filosfica que estar sendo propcia reflexo teolgica. Quer dizer, que filosofia, que escola de pensamento, que autores ajudaro o telogo no seu trabalho? Uma pista para tal questionamento encontro na Carta Apostlica Fides et Ratio de Joo Paulo II quando diz: A palavra de Deus revela o fim ltimo do homem, e d um sentido global sua ao no mundo. Por isso, ela convida a filosofia a empenhar-se na busca do fundamento natural desse sentido, que a religiosidade constitutiva de cada pessoa. Uma filosofia que quisesse negar a possibilidade de um sentido ltimo e global seria no apenas imprpria, mas errnea2.

    Parece-me que uma filosofia radicalmente relativista, pragmatista ou nii-lista, seria inadequada teologia. Uma filosofia de alcance ontolgico, capaz de transcender os dados empricos e partir em busca do absoluto e da abertura radical do ser humano ao transcendente a que melhor desempenha a funo de caminhar junto com a reflexo teolgica. Nesta busca de uma reflexo filosfica que contribua reflexo teolgica, a hermenutica tem sido uma das principais alternativas contra o fundamentalismo e o relativismo, como pretendo mostrar. Por isso, meu trabalho aqui ser o de acompanhar a passa-gem da hermenutica geral (filosfica), hermenutica particular (teolgica) e aprofundar algumas reflexes que iluminem o trabalho teolgico. A partir da filosofia defendo que a hermenutica, presente tanto na teologia quanto na filosofia, que permite construir um discurso, uma reflexo, que no trabalhe em regime de exceo, mas que tenha algo relevante a dizer aos homens e mulheres de nosso tempo.

    2. Uma narrativa da questo hermenutica

    A palavra hermenutica esteve sempre associada arte de interpretar. Ini-cialmente foi compreendida como uma simples disciplina auxiliar, como um conjunto de regras para bem interpretar textos3. Etimologicamente, hermenu-2 JOO PAULO II. Fides et Ratio, 81. No tratarei aqui de questes que mereceriam uma atenta considerao como o respeito, necessrio e frutfero, da autonomia do discurso teolgico e filosfico, bem como do esclarecimento epistemolgico entre o sentido ltimo (filosfico) e sua nomeao crist (teolgico).3 Cf.: W. JEANROND, Introduction lhermneutique thologique dveloppement et signification, Paris, Ed. Du Cerf, 1995, 7-9.

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    tica vem do verbo grego hermeneuein, do substantivo hermeneia, que geral-mente foi traduzido por interpretao. Segundo Coreth4, a hermenutica deve ser compreendida, num sentido mais amplo, como significar, declarar, anun-ciar, interpretar, esclarecer e traduzir, como tornar compreensvel e conduzir compreenso. Por outro lado, uma opinio que no encontra consenso entre os fillogos5, mas que ilustra admiravelmente a compreenso da palavra herme-nutica, diz respeito associao hermenutica ao deus grego Hermes. Hermes tinha por funo trazer e traduzir as mensagens divinas para os seres humanos, ou seja, tinha como funo fazer a hermenutica das palavras dos deuses.

    O emprego da palavra hermenutica ganhou fora no domnio teolgico como arte da compreenso, como doutrina da boa interpretao no sentido utilizado pela interpretao das Escrituras, de uma interpretao correta e objetiva6. Depois, a partir dos sculos XVII e XVIII, a palavra aparece empregada em outros campos do saber humano como a filologia e o direito, para citar dois exemplos. Porque a hermenutica diz respeito arte de interpretar, isto , porque diz respeito interpretao feita pelo ser humano, ela pode transformar-se num problema filosfico. Ao contrrio da interpretao na literatura, na arte e no direito, que possuem um corpo de obras determinadas, a hermenutica filosfica se interessa pelos princpios hermenuticos da interpretao em si mesmos. Assim, pretendo agora discutir o percurso terico moderno da formao da questo hermenutica na filosofia comeando por Schleiermacher.

    Nos incios do sculo XIX, Schleiermacher trabalha a idia de uma hermenutica universal7. A hermenutica ser apresentada por ele como uma disciplina que, perguntando pelas condies genricas da compreenso do ser humano, dever estabelecer as regras que permitem a compreenso objetiva. Compreenso objetiva no apenas de textos cientficos setorizados, como por exemplo, textos religiosos, literrios, jurdicos, mas de quaisquer pensamentos postos ao entendimento atravs de palavras. Desta forma, Schleiermacher aparece como o pai da hermenutica moderna porque indaga pelas possibilidades da compreenso objetiva. Ele toma o primeiro passo em 4 Cf.: E. CORETH, Questes fundamentais de hermenutica, So Paulo, EPU/Edusp, 1973, 1.5 Cf.; J. GRONDIM, Luniversalit de lhermeneutique, Paris, Presses Universitaires de France, 1993, 10.6 Cf.: E. CORETH, Questes fundamentais de hermenutica, 2. O debate sobre como se deve interpretar a Bblia anterior ao surgimento do conceito filosfico de hermenutica evidentemente. Isto fica claro ao percebermos as vrias escolas e correntes de exegese bblica no antigo judasmo, no que concerne interpretao do Antigo Testamento.7 Cf.: F. SCHLEIERMACHER, Hermenutica: arte e tcnica de interpretao, Rio de Janeiro, Vozes, 1999, 33.

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    direo a uma metodologia hermenutica geral que procurada no prprio ato de compreender. A interpretao, segundo Schleiermacher, dever evitar o excesso da interpretao gramatical que leva ao pedantismo, e o excesso da interpretao psicolgica que leva nebulosidade8.

    Para Schleiermacher, a interpretao ser compreendida no meramente como uma questo de aplicar regras cientficas. Ela ser um ato criativo que sempre parte de uma idia prvia, de uma intuio inicial, e nunca termina, mas permanece sempre como algo provisrio. Por isso, no podemos compre-ender um texto sem o compararmos com outros semelhantes, e sem a intuio inicial a respeito da totalidade do texto para podermos compreender as partes. H um crculo virtuoso entre o todo e as partes. Na construo reflexiva de Schleiermacher existe o elemento crtico de busca de superao de todo mal entendido, e o elemento romntico, do desejo de compreender o autor melhor do que ele compreendeu-se a si mesmo.

    A reflexo filosfica sobre a hermenutica de Dilthey9 assumir grande parte das teses de Schleiermacher, direcionando-as, porm, rumo a uma fundamentao epistemolgica das cincias do esprito. Dilthey ir propor a distino entre cincias naturais, que trabalham com elementos a-histricos e busca explic-los, e as cincias do esprito, que trabalha com elementos histricos e busca, por sua vez, compreend-los. Assim, para Dilthey, a her-menutica apresentaria mtodos para se alcanar uma interpretao obje-tivamente vlida das expresses da vida interior10. A hermenutica seria o fundamento para as cincias do esprito. Isto porque, o que torna possvel este compreender histrico o fato de que o sujeito e o objeto so ambos histricos. Contra o romantismo de Schleiermacher, Dilthey levanta a tese de que no existe um acesso imediato interioridade do outro. A compre-enso tem, necessariamente, que passar pela interpretao das mediaes, isto dos signos, que expressam a vida11. Sendo assim, a vida pode ser compreendida graas ao que se expressa atravs dos signos, atravs da in-terpretao destes signos.

    Heidegger rompe com as preocupaes objetivantes anteriores. Ele vai radicalizar a experincia hermenutica como um modo de ser do ser humano,

    8 Cf.: P. RICOEUR, Du Texte laction. Essais dhermneutique II, Paris, Ed. Du Seuil, 1986, 78-80.9 Cf.: W. DILTHEY, Hermeneutics and the Study of History, New Jersey, Princeton University Press, 1996, 229-258.10 Cf.: R. PALMER, Hermenutica, Lisboa, Ed. 70, 1997, 16.11 Cf.: P. RICOEUR, Du Texte laction, 81-87.

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    realizando assim um giro ontolgico na concepo de hermenutica12. Desta forma, para Heidegger as coisas que se do no mundo, no so compreendidas como que a partir de uma apropriao intelectiva do ser humano mediante a dicotomia sujeito-objeto. Invertendo a perspectiva so os fenmenos que implicam a potencialidade de se revelarem tal como so, independentemente de nosso subjetivismo. Por isso, a hermenutica passa agora a significar uma fenomenologia da existncia, uma anlise das possibilidades que o ser tem de existir e de se manifestar atravs dos fenmenos que se do no tempo. Para ele, a compreenso deixa de ser uma propriedade para se tornar um modo de existncia, isto , um elemento constitutivo do ser humano, um elemen-to anterior e mais profundo do que qualquer preocupao com a atividade interpretativa como tal. A hermenutica alcana com Heidegger toda a radi-calidade filosfica e passa a ser um problema ontolgico. A compreenso uma experincia ontolgica universal. importante ressaltar no pensamento de Heidegger a questo do crculo hermenutico. O crculo hermenutico a estrutura antecipatria do prprio compreender. Assim, diante do absoluta-mente novo, sempre trato de compar-lo a algo j compreendido para poder interpret-lo de alguma maneira. Desta forma, o crculo hermenutico que torna possvel a interpretao.

    Gadamer, perguntando pelo que significa compreender aps as questes levantadas por Heidegger, isto , buscando compreender o que seja a compreenso, retoma a discusso sobre a prpria possibilidade da filosofia13. Em seu af filosfico, ele vai dar um giro hermenutico ao sustentar que a possibilidade da compreenso depende sempre da situao hermenutica, isto , do horizonte histrico em que encontra o sujeito que se pe a compreender. A compreenso depende sempre de um constante dilogo com a tradio que se faz presente no horizonte da pr-compreenso em que se forma, ontologicamente, a compreenso individual. Por isso, a hermenutica, na concepo de Gadamer, no deve mais ser vista como um discurso sobre mtodos de conhecimento objetivo, como era para Schleiermacher e Dilthey. Tambm no busca formular uma lista de regras interpretativas. Gadamer reflete sobre as condies de possibilidade da compreenso em geral. Compreenso enraizada em pr-conceitos e profundamente condicionada pelo passado. Gadamer quer libertar a hermenutica da tentao iluminista

    12 Cf.: M. HEIDEGGER, Ser e Tempo, Petrpolis, Vozes, 15 ed, 2005, 68-69.13 Cf.: H.-G. GADAMER, Verdade e Mtodo, Petrpolis, Vozes, 4 ed, 2002. H.-G. GADAMER, Lart de comprendre: hermeneutique et tradition philosophique, Paris, Aubier, 1982, 27-47.

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    que oculta compreenso ao esquecer a histria, absolutizando o mtodo. Para Gadamer, mtodo no caminho para verdade. Por isso ele no se preocupa com os problemas da formulao de princpios interpretativos corretos. Ele pretende esclarecer o prprio fenmeno da compreenso. Vale dizer, como possvel a compreenso, no s nas humanidades, mas em toda a experincia humana no mundo? Desta forma, o problema da hermenutica relativo prpria existncia humana.

    Gadamer aproveita de Heidegger a ideia de que no h compreenso sem pr-compreenso. Por isso, vai reabilitar em seu pensamento os conceitos de pr-juzo, autoridade e tradio, conceitos que haviam adquirido um signifi-cado pejorativo com a ideia, moderna, de um sujeito autnomo e emancipado de seu passado. Assim, a vinculao com a histria resgatada no fenmeno da compreenso, ou seja, toda compreenso historicamente situada. No que exista um determinismo da histria, do passado. Para Gadamer, do pas-sado, de alguma forma, que depende os interesses que o presente guia investigao histrica.

    Neste percurso histrico que estou propondo o prximo pensador Ricoeur. Ele vai chegar reflexo hermenutica a partir de seu projeto de abordar o problema do mal na existncia humana. Para Ricoeur, a filosofia no chega pela pura reflexo realidade do mal, mas ela precisa dar a volta, tomar o caminho longo da interpretao, da hermenutica, pela linguagem simblica com a qual o ser humano confessa o mal. Mas, a linguagem simblica opaca, tem duplo sentido, est situada numa determinada cultura particular e, sendo assim, sua interpretao sempre questionvel. Diante disso a filosofia tem que mudar seu mtodo e converter-se em uma interpretao da linguagem simblica, isto , em hermenutica. A hermenutica buscar decifrar os nveis de significado ue se manifestam e ocultam nos smbolos14 e nas criaes humanas15.

    Para Ricoeur, a hermenutica ser um exerccio de suspeita, de compreenso do ser atravs da interpretao da linguagem. Exerccio que caminhar pela via longa e que dever estar sempre em dilogo com as vrias disciplinas que

    14 Importante lembrar que para Ricoeur os smbolos ao mesmo tempo em que revelam e manifestam, tambm ocultam. Esta questo clara no pensamento dos mestres da suspeita (Nietzsche, Marx e Freud) que descobriram distintas maneiras em que, atravs dos smbolos, a conscincia oculta, dissimula, mascara e falsifica o sentido. Por isso, o smbolo no se esgota numa nica interpretao. O smbolo se apresenta como uma fonte inesgotvel de possibilidades. Assim, o smbolo s funciona quando sua estrutura interpretada. Quer dizer, necessitamos de uma hermenutica mnima para que o smbolo funcione.15. Cf.: P. RICOEUR, Le conflit des interpretations, Paris, Ed. Du Seuil, 1969, 16-17.

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    praticam a interpretao de uma maneira metdica. Por isso, ele vai realizar seu projeto num constante dilogo com a histria, a exegese bblica, a psicanlise, a poesia. Desta forma, Ricoeur estrutura a entrada da hermenutica na filosofia em trs etapas16. Primeiro a etapa semntica que se ocupa em definir os smbolos, os distintos mtodos de interpretao e suas articulaes. Depois, a etapa reflexiva que a partir da linguagem simblica, critica a pretenso filosfica de fundar tudo no eu. Finalmente, a etapa existencial que consiste em elaborar um pensamento filosfico acerca do ser do homem e do ser em geral. A partir desta reflexo, Ricoeur construir uma hermenutica textual onde o texto entendido como produto de uma mltipla distanciao17: (1) em relao inteno do autor, (2) em relao s condies psicolgicas e sociolgicas de sua produo, (3) em relao situao comum ao autor e os destinatrios, e finalmente (4) em relao aos seus destinatrios originais.

    A distanciao, num primeiro momento reclama um mtodo (anlise estrutural) que recupera o significado objetivo e a referncia do texto mesmo, isto , desentranha a estrutura do texto. Num segundo momento reclama uma compreenso, onde o leitor vai expor-se ao texto, apropriar-se do significado do texto, receber do texto um novo si mesmo, onde o leitor re-contextualizar e atualizar para si mesmo e para seu presente o significado do texto.

    A partir desta abordagem, Ricoeur provoca um deslocamento da reflexo hermenutica. O primeiro deslocamento diz respeito situao de oposio entre o explicar e o compreender. Ricoeur quer reconciliar verdade e mtodo. Para isso, ele vai recolher de Heidegger a lio de despsicologizar o compreender histrico para o mundanizar; ou seja, a situao daquele que compreende em relao ao mundo precede o conhecimento do mundo como objeto. Ricoeur quer promover um tipo de leitura que renuncie de vez o desejo de alcanar um querer dizer do autor para ater-se objetividade do texto. Como Gadamer, para Ricoeur, o que o leitor tem diante de si no o autor, mas o mundo do texto, e a explicao ser o caminho obrigatrio da compreenso.

    O segundo deslocamento diz respeito questo da mediao do texto. Para Ricoeur o evento da palavra s existe no nvel do discurso. Discurso que sempre mensagem a respeito de alguma coisa. Ora, se anlise estrutural pertence imanncia do texto, ao discurso pertence o fazer advir um mundo, o mundo do texto. O discurso que faz o evento da palavra permanecer 16 Cf.: P. RICOEUR, Le conflit des interpretations, 14-24.17 Cf.: P. RICOEUR, Du Texte laction, 111.

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    na forma de escritura. A escritura a obra que assegura a funo de mediao prtica entre a palavra e o sentido. Desta forma o texto ganha vida prpria, independente do autor e poder ser lido em contextos diferentes, e consequentemente, suscitar mltiplas leituras.

    Portanto, para Ricoeur o texto tem a pretenso de dizer alguma coisa so-bre a realidade, ou seja, ele exprime certo mundo que ultrapassa o meramente lingustico e fenomenolgico e toca numa ontologia da linguagem. O mundo do texto ou a coisa do texto , propriamente, o mundo que o texto desdobra diante de si18. Segundo Geffr, Ricoeur mantm distncia de uma herme-nutica tradicional que acredita poder colher um sentido objetivo do texto, encontrando o querer dizer do autor. Mas ele guarda a distncia tambm do estruturalismo, para o qual o sentido a compreender so as estruturas do texto e os mecanismos de seu funcionamento19.

    Neste deslocamento provocado por Ricoeur importante explicitar o lugar da relao entre a apropriao do texto e a compreenso de si. De um lado, apropriar-se do texto no mais compreender o texto tornando-se contemporneo da inteno do autor. H uma autonomia em relao ao autor. Por outro lado, h tambm uma renncia pretenso da conscincia de ser autofundadora e de estar na origem do sentido. Ora, o discurso consiste em que algum diz alguma coisa sobre alguma coisa. Este sobre alguma coisa uma funo referencial inalienvel do discurso. Nesta apropriao subjetiva do texto pelo leitor, compreender torna-se compreender-se diante do texto. Da que hermenutica ser decifrar a vida no espelho do texto. Isto possvel porque o texto, assim como o smbolo, d que pensar, para falarmos como Ricoeur. Mas, sobretudo, d que viver. D que pensar porque d que viver. um pensamento que alimenta a vida e descobre a riqueza inesgotvel da vida. Em torno de um texto lido um mundo se desdobra, mundo que

    18 U. VASQUEZ - J. B. LIBNIO, A Instruo sobre a Teologia da Libertao Aspectos hermenuticos, Perspectiva Teolgica, 42, 1985, 151. Os autores explicitando esta questo dizem: Como conhecido, Paul Ricoeur situa seu projeto hermenutico na trajetria filosfica que vai de Schleiermacher a Gadamer, passando por Dilthey e Heidegger. Para evitar as diversas aporias que se tm apresentado hermenutica ao longo da histria da filosofia e que se resumem na antinomia explicar ou compreender e atualmente entre estruturalismo e interpretao ou entre crtica das ideologias e hermenutica, Paul Ricoeur elaborou uma teoria hermenutica que ele denomina centrada no texto. S a partir da efetuao de discurso como texto possvel superar o subjetivismo psicologista da hermenutica romntica como tambm integrar a anlise estrutural ou a crtica das ideologias como etapas necessrias ao processo hermenutico. A explicao e a compreenso situam-se assim num nico arco hermenutico que combina as duas atitudes opostas numa concepo global da leitura como retomada do sentido: no prprio corao da leitura onde, indefinidamente, se opem e se conciliam a explicao e a compreenso.19 C. GEFFR, Como fazer teologia hoje: Hermenutica Teolgica, So Paulo, Paulinas, 1989, 50.

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    proposto ao leitor para que ele o habite. E ao fazer sua habitao, o mundo do texto passa a tornar o mundo do leitor, onde ele compreende a si mesmo pela mediao do texto.

    Mas a histria no termina aqui. No debate filosfico atual, a hermenutica acusada, s vezes, de certo subjetivismo e relativismo, ou de um conservadorismo e uma submisso cega tradio. Para alguns autores, a hermenutica continua ligada ao pensamento metafsico ao buscar sempre encontrar a inteligibilidade do ser sob o sensvel ou de restaurar continuidade do sentido acima de distncia cultural ou histrica20. No pretendo entrar aqui no debate filosfico atual sobre o lugar da hermenutica. Entendo ser importante retomar algumas consideraes acerca do desenvolvimento da questo hermenutica a partir do vis de Ricoeur que constri seu pensamento:

    1) trabalhando a questo da oposio entre explicar e compreender, a explicao um caminho obrigatrio para a compreenso21, (2) trabalhando a questo da oposio entre distncia e proximidade, pela mediao do texto um mundo desdobra-se diante do leitor22 e (3) trabalhando a questo da arti-culao entre a apropriao do texto e a compreenso de si, compreender compreender-se diante do texto23.

    A partir destas consideraes anteriores, toda forma de compreenso historicamente situada. O horizonte histrico de toda compreenso demons-tra que o acesso do ser humano ao mundo se d a partir de um ponto de vista determinado, de sua situao hermenutica que sempre um posicionar-se perante os fenmenos. possvel falar de um horizonte curto que supervalo-riza o que est mais prximo, e de um horizonte mais largo que no se deixa limitar pelo que est mais prximo, mas busca ver para mais alm. Logo, toda forma de compreender est enraizada na situao hermenutica do sujeito. A prpria compreenso o modo de ser da existncia humana no mundo, e sua possibilidade s se d dentro do horizonte histrico.

    O horizonte histrico dinmico e em constante formao. Desta for-ma, o ser humano, ao interpretar qualquer fenmeno j possui antecipa-damente uma pr-compreenso do mesmo, isto , um pr-conceito, uma antecipao de seu sentido influenciada pela tradio, pelas suas experin-cias, seu modo de vida, pela situao hermenutica em que est inserido.

    20 C. GEFFR, Como fazer teologia hoje, 31.21 P. RICOEUR, Du Texte laction, 137. 22 Cf.: P. RICOEUR, Du Texte laction, 137-182.23 Cf.: P. RICOEUR, Du Texte laction, 183-211.

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    Portanto, possvel concluir que a compreenso humana possui uma tempo-ralidade intrnseca. Por isso, importante tomar a srio a condio histrica de toda compreenso.

    Neste compreender, o crculo hermenutico o momento estruturalmente ontolgico da compreenso, na medida mesma em que caracteriza a estrutura de toda compreenso. O crculo hermenutico ocorre no instante em que o sujeito, atravs de sua pr-compreenso, participa na construo do sentido do objeto, ao passo que o prprio objeto, no desenrolar do processo hermenutico, modifica a compreenso do intrprete. Neste movimento de compreenso, o processo vai-se estabelecendo em patamares mais profundos de interpretao que, por sua vez, lanaro novas luzes sobre os pr-conceitos, e assim sucessivamente rumo a uma compreenso mais aprofundada. Segundo Coreth24, o que temos uma espiral hermenutica. Nesta circularidade de compreenso entre o horizonte daquele que compreende com o horizonte em que adveio o objeto temos uma fuso de horizontes. Logo, a compreenso se d como evento no momento em que h uma interao entre o mundo que se conhece e o mundo que se prope a conhecer.

    A compreenso ocorre sempre atravs de uma mediao em que o fe-nmeno nunca visto em sua presena, mas sempre representado. Em toda atividade de compreenso, eu encaminho-me ao objeto com certo olhar. O objeto por mim apreendido sob determinado foco e no na totalidade de seu sentido. Meu acesso ao objeto sempre indireto. Eu chego a algo, mas enquanto algo. No conheo o objeto em sua plenitude. Posso, assim, concluir que o mesmo evento ou o mesmo texto no esgotvel em sua plenitude de sentido. Ele pode ser compreendido e interpretado sob diversos aspectos, em vrias relaes ou direes de sentido. Isto , h uma pluralidade de camadas de sentido. Por isso, tanto mais se alcanar o sentido pleno, quanto mais se levar em conta as vrias camadas de sentido, integrando-as numa unidade. Esta integrao, enquanto as maneiras de interpretar no se contradizem, no se excluem, mutuamente se completam.

    Com isto no quero dizer que estamos deriva, sem qualquer possibili-dade de conhecimento das coisas. Apenas importa constatar que meu acesso a elas sempre mediado, e que atravs da mediao que posso alcanar a verdade. Esta verdade, este sentido, vem como revelao em virtude do jogo de velamento e desvelamento, de ocultao e desocultao. Ainda, a possibi-

    24 Cf.: E. CORETH, Questes fundamentais de hermenutica, 90.

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    lidade de acesso ao sentido das coisas um caminhar por entre vus. um constante projetar e reprojetar de sentidos. um constante testar os meus pr-conceitos em face da prpria presena do todo. Portanto, a atividade in-terpretativa re-conhecimento que carrega sempre uma parcela de criao. Na finitude histrica de minha experincia sou consciente de que, depois de mim, outros compreendero de maneira diferente. Sendo assim, o fenmeno da compreenso realiza-se numa fuso de horizontes na qual o mundo do ob-jeto interpretado apresenta-se intermediado pela sua histria. Quer dizer, pelo passado que chega atravs da tradio a que perteno em uma fuso com meu horizonte atual. Tambm, a compreenso possui um carter dialgico que se d pela dialtica da pergunta e resposta. Por isso, interrogar-se abrir-se ao conhecimento.

    O meio pelo qual ocorre compreenso a linguagem. a linguagem que me abre ao mundo. atravs dela que vivencio o mundo e nada existe para mim que seja exterior a ela. Na linguagem o mundo do ser humano que transmitido. ele que existe por meio da linguagem; ou seja, na lin-guagem que se d a potencialidade humana do compreender o que em si partilhado em vivncias diversas e horizontes distintos. Assim, o que se com-preende pela linguagem no s uma experincia particular, mas o mundo no qual a linguagem se revela.

    3. Interfaces entre hermenutica e teologia

    Toda a minha argumentao at aqui foi uma tentativa de explicitar que o ser humano um ser de linguagem. Na linguagem o ser humano vive e interpreta sua existncia. Mais que um sistema de sinais, a linguagem o evento de uma palavra que possui uma intencionalidade significante. Por isso, o ser humano sempre diz algo sobre algo. Como ser de linguagem o ser hu-mano interprete, faz hermenutica, l a vida no espelho do texto. Ora, se a interpretao uma dimenso irrenuncivel da existncia humana, o discurso teolgico tambm ser interpretativo.

    Para Geffr, a teologia hermenutica da palavra de Deus e da existn-cia humana25. Nesta afirmao h, evidentemente, um risco que o prprio risco da interpretao. Mas, o risco de, por falta de audcia e lucidez, apenas se transmitir um passado morto no menos grave do que o erro que se pode

    25 C. GEFFR, Como fazer teologia hoje, 5.

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    advir de uma interpretao incorreta. Para a teologia, urge correr o risco. Mas, este risco no ingnuo ou desprovido de razes. o risco da inter-pretao criativa que busca retomar, sem repetio, a mensagem crist que s fiel a si mesma medida que gera novas figuras histricas na forma de prticas novas e libertadoras.

    Assim, a teologia , do comeo ao fim, um empreendimento hermenu-tico. Para falar como Schillebeeckx26: compreendo cada vez mais a funo presente da teologia como correlao crtica e mtua entre a interpretao da tradio crist e a interpretao de nossa experincia humana contempor-nea27. Por isso, o ensinamento do telogo dever ser uma espcie de media-o entre o ensinamento magisterial da Igreja e a vivncia irredutvel do povo cristo. O telogo possui a exigente vocao de propor prticas significativas para a Igreja, e ser na prtica dos cristos que o telogo encontrar o lugar teolgico engendrado de dados para a interpretao criativa da f.

    Para mim, assumir o risco de interpretao no cristianismo tambm rein-terpretar sem cessar a boa nova da salvao luz da experincia do sofrimento da humanidade. Sobre essa dimenso prtica do cristianismo, penso que, em uma rpida anlise de nosso mundo contemporneo globalizado, possvel per-ceber uma injustia estrutural que mata e faz sofre milhares de pessoas. Acredito que o cristianismo pode dar sua contribuio para a emergncia de outro mundo. Mundo onde o ser humano seja respeitado em sua dignidade. Mundo onde a contemplao dos rostos humanos deve nos questionar sobre o chamado de Deus para uma humanizao sempre maior. Certamente a teologia no dispe de uma receita mgica para construir outro mundo mais justo e mais humano. Mas, a esperana crist vive na certeza de que o Esprito de Deus est continuamente trabalhando para renovar, no corao humano, o desejo de transformao e vida. Por exemplo, Geffr28 sugere aos cristos uma purificao da memria sobre os erros do passado, um verdadeiro respeito e promoo do humano, uma busca de um mundo onde a lgica do amor gratuito, do perdo, da compaixo, da justia estejam sempre a favor de todos, em especial dos mais desfavorecidos.

    Penso ser importante esclarecer que a orientao hermenutica uma 26 Vale ainda lembrar que para Schillebeeckx no existe um contedo puro da f, suscetvel de uma formulao atemporal, independente do modus cum quo especfico, que so as categorias historicamente limitadas de um tempo e lugar particular. O contedo dinmico da f atingido somente numa interpretao nova e fiel, expressa em termos da nossa prpria situao histrica concreta. A f sempre se realiza como um entender interpretativo. Cf.: E. SCHILLEBEECKX, Cinco problemas que desafiam a Igreja de hoje, So Paulo, Herder, 1970, 15.27 Cf.: C. GEFFR, Como fazer teologia hoje, p.7.28 Cf.: C. GEFFR, O Deus de Jesus e os possveis da histria, Concilium, 308, 2004, 74-83.

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    dimenso interior da prpria razo teolgica, isto , uma maneira de se fa-zer teologia como leitura interpretativa de textos que maneira da teologia crist desde as suas origens29. A razo teolgica como razo hermenutica ter que superar o apego razo especulativa, entendida no sentido de co-nhecimento terico, e buscar a aproximao compreenso histrica30. A razo teolgica trabalhar com os critrios de uma cincia hermenutica no sentido moderno da palavra. Nesta perspectiva, fazer teologia ter como ponto de partida o texto. Texto que est vinculado tradio e a lingua-gem, a um horizonte de interpretao e a uma cultura. Texto que, segundo Tracy31, manifesta sempre uma pluralidade de sentidos. Texto que resiste a uma interpretao que fecha, isto , a uma interpretao que coloca fim a pluralidade de interpretaes.

    No caso da interpretao crist, o telogo ir utilizar-se da longa e rica tra-dio textual do cristianismo para poder aceder experincia fundamental da salvao que nos oferecida por Deus em Jesus Cristo. Desta forma, a interpre-tao hermenutica crist ter a tarefa de elucidar a experincia fundamental. Neste contexto importante a compreenso da funo da experincia, isto por-que, o cristianismo no consiste numa mensagem que deva ser acreditada, mas, propriamente, numa experincia de f que se traduz numa mensagem. Assim, estar em presena do horizonte de interpretao da tradio crist participar de um acontecimento vivo, dinmico. Acontecimento inserido no corao da histria e que ser, por sua vez, lido numa dada situao histrica particular.

    Ainda, a hermenutica teolgica no pode ser unicamente uma her-menutica que procura simplesmente interpretar textos. Ela deve conduzir a certa prtica eclesial, social, cultural e mesmo poltica. O telogo respon-svel no se contentar apenas em propor novas e instigantes interpretaes da mensagem crist. Ele dever levar a srio os sujeitos histricos concretos, conduzindo a certo fazer, isto , a um buscar certas transformaes da prtica dos cristos em vista do Reinado de Deus.

    De toda a anlise anterior assinalo alguns elementos importantes para a compreenso da tarefa teolgica. A teologia passa cada vez mais a ter uma conscincia de que a Palavra de Deus testemunha da plenitude do Evangelho que de origem escatolgica32. Entendo que a Revelao no comunicao 29 Cf.: C. GEFFR, Croire et interprter. Le tournant hermneutique de la thologie, Paris, Du Cerf, 2001, 7.30 Cf.: C. GEFFR. Sentido e no-sentido de uma teologia no-metafsica, Concilium, 6, 1972, 783-792.31 Cf.: D. TRACY, The Analogical Imagination, London, SCM Press Ltd, 1981, 408.32 Aqui entendo que o contedo essencial do Evangelho (da Boa Notcia) o advento do Reinado de Deus na pessoa de Jesus Cristo: Cumpriu-se o tempo, e o reinado de Deus aproximou-se: convertei-vos e crede

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    de um saber fixado33. Ela ao de Deus na histria. Histria que vivida e interpretada na experincia de f do povo de Deus. Logo, toda Escritura j interpretao e a Revelao atinge sua plenitude, seu sentido e sua atualidade somente na f que a acolhe.

    Ora, compreender a teologia como hermenutica teolgica levar a srio a historicidade do ser humano como sujeito interpretante. Da a possibilidade de dizer que a teologia interpretao do significado atual do Evento Jesus Cristo a partir das diversas linguagens da f suscitada por Jesus, por exemplo, presentes nos evangelhos34.

    Importante ainda lembrar o papel da Tradio. O telogo recebe o texto de uma comunidade, a Igreja. Uma comunidade que est em continuidade com a comunidade primitiva que produziu o texto. Desta forma, a leitura crente da Escritura sempre leitura hermenutica no sentido em que hoje interpretamos o texto dentro da mesma Tradio na qual ele foi escrito. A continuidade de sentido est atrelada continuidade histrica. A referncia origem do sentido, a do evento fundador, essencial. A transmisso desta mensagem no mera repetio, ela atualizao sempre nova do que foi manifestado em Jesus Cristo.

    Neste contexto hermenutico, o objeto da teologia no uma palavra ori-ginria, plena de sentido, da qual o texto seria apenas um eco. Tambm no evento histrico descrito segundo os padres modernos da historiografia. O objeto da teologia um texto como ato de interpretao histrica e como nova estruturao hermenutica do mundo. O texto remete a algo diferente dele. Re-mete a um tipo de mundo que possui alcance relevante para quem interpreta.

    Algumas consequncias desta reflexo. Em primeiro lugar, o objeto ime-diato do trabalho teolgico no uma srie de proposies cuja inteligibilidade procurada. um conjunto de textos compreendidos no horizonte hermenuti-co aberto pela revelao. A teologia, em seu labor para nomear Deus, deve res-

    no evangelho (Mc 1,15). Ou seja, o Reinado de Deus torna-se dinamicamente presente com e na pessoa de Jesus Cristo (Mt 12,28). Mas tambm, os discpulos recebem de Cristo a tarefa de continuar sua misso (Mt 28, 19-20; Jo 20, 21-23). Por isso, na era apostlica o evangelho a obra da evangelizao (1Cor 9, 14-18; Fl 4, 3.15); a prpria mensagem pregada (Rm 1, 3-9.16); toda a realidade crist (Rm 1, 16). O Evangelho da pregao de Jesus torna-se, ento, pregao sobre Jesus.33 Para Libnio, h um crculo hermenutico entre dogma e escritura. Tanto um quanto outro do testemunhos da plenitude da palavra de Deus, embora a escritura seja a autoridade ltima norma normans non normata em relao s novas escrituras que ela suscitou na Igreja. Cf.: J. B. LIBNIO, Eu creio, ns cremos, So Paulo, Loyola, 2000, 353-366.34 Cf.: R. J. JUNGES, Evento Cristo e Ao Humana, So Leopoldo, Ed. Unisinos, 2001, 89-130. C. PALCIO, Pressupostos teolgicos para contemplar a vida de Jesus, ITAICI, 52, Junho 2003, 05-21.

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    peitar a estrutura originria da linguagem da revelao e no reduzi-la, imedia-tamente, a um contedo proposicional35. Isto porque, a estrutura da confisso de f est, inexoravelmente, ligada estrutura da linguagem na qual se exprime36. O texto bblico revelao para ns porque ele desdobra um ser novo diante de ns e no porque teria sido escrito sob o ditado de Deus37. A apropriao do texto bblico coincide no s com uma nova compreenso de si, mas tambm com uma nova possibilidade de existncia38, com a vontade de fazer existir um mundo novo, ajudar na construo do reinado de Deus. Por exemplo, para Ge-ffr, no h revelao sem converso pessoal e inaugurao de uma nova prti-ca tica e social. A prxis crist, a partir da teologia hermenutica, o lugar de produo da mensagem crist. , tambm, o lugar de verificao dessa mesma mensagem. criadora de novas possibilidades de existncia, desde que, se as-suma o risco da interpretao, o risco de antecipar o futuro numa prtica de es-perana, alicerada na f, geradora de caridade. Por fim, a teologia diz sempre, numa diferena histrica, a verdade que lhe confiada. Esta situao histrica a obriga a um constante ato de interpretao tanto na ordem da confisso, quanto na da prtica que parte integrante do mesmo ato de crer39.

    Entendo ainda ser necessrio dizer algumas palavras sobre a questo da tradio. Quem diz tradio no diz simplesmente transmisso de um dado vlido em todos os tempos e lugares. A teologia vive de uma origem, o Evento Jesus Cristo como evento fundador. O novo testamento testemunho deste evento fundador, no como um texto que nos entregue imediatamente em seu 35 Esta uma discusso com a filosofia analtica. Para esclarecimentos ver: A. T. QUEIRUGA, Fim do Cristianismo pr-moderno. So Paulo, Paulus, 2003, 69-104.36. Aqui importante lembrar que, como nos ensina Ricoeur, a nomeao de Deus polifnica, e seguindo a particularidade prpria de cada enunciado bblico que inseparvel de seu ato que podemos elaborar uma teologia diversificada do nome de Deus. Ver: P. RICOEUR, Nomear Deus, Nas Fronteiras da Filosofia, So Paulo, Loyola, 1996, 189-195.37 Aqui Geffr recorda a lio de Rahner de que Deus o autor da escritura no sentido em que ele autor da f da Igreja primitiva, ou seja, aquele que rene a comunidade, de cuja f encontra sua expresso e sua objetivao na escritura. Ver: C. GEFFR, Como fazer teologia hoje, 57. Tambm, neste mesmo sentido afirma a Dei Verbum (DV, III, 11) que as coisas divinamente reveladas, que se encerram por escrito e se manifestam na Sagrada escritura, foram consignadas sob inspirao do Esprito Santo. (...) Escritos sob a inspirao do Esprito Santo (cf. Jo 20, 31; 2Tim 3, 16; 2Ped 1, 19-21; 3, 15-16), eles tm Deus como autor e nesta sua qualidade foram confiados mesma Igreja. Na redao dos livros sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu fazendo-os usar suas prprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele prprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores (...). [grifo meu].38 possvel elucidar a questo dizendo que compreender-se diante do texto no se entregar a uma compreenso puramente intelectual do texto, mas tornar real uma nova possibilidade de existncia e fazer, conseqentemente, existir um mundo novo.39 Ato de crer que inclui um ato de compreenso que, por sua vez, repousa sobre pr-compreenses. Ato de compreenso que situa todo o trabalho de interpretao no interior de uma tradio interpretativa, consequentemente, situando assim, o ato de crer no interior do trabalho interpretante da comunidade crist.

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    sentido completo e definitivo. Ele ato de interpretao, e a distncia que nos separa deste evento a condio de um novo ato de interpretao para ns hoje. Assim, na constituio da tradio crist h, uma dialtica de continuidade e ruptura. Nesta dialtica, voltar para a origem encontrar um ato que deve ser retomado de maneira sempre criativa e no repetido de maneira literal. Portan-to, o cristianismo tradio porque vive de uma origem primeira que dada. Mas, ao mesmo tempo ele produo, porque essa origem s pode ser redita historicamente numa interpretao criativa. Interpretao que por sua vez ter uma determinada recepo dentro de um contexto eclesial especfico.

    Na compreenso do pensamento teolgico como aqui desenvolvi, a teo-logia ser sempre um movimento contnuo de interpretao. Fazer teologia inserir-se num movimento de interpretao, no crculo hermenutico teolgi-co. Crculo este que consiste na interdependncia entre a interpretao sempre renovada da Escritura e Tradio e as novas perguntas suscitadas pela prtica histrica. Desta forma, o crculo hermenutico da teologia crist um crculo aberto a sempre novas atualizaes de sentido. Atualizaes onde a fidelidade s Escrituras e Tradio crist40, no fecham nem isolam o crculo, mas ao contrrio, o obriga a sempre se abrir a novos horizontes de interpretao.

    Por exemplo, o acontecimento pascal41 como narrado nos evangelhos, deve ser compreendido na dinamicidade do crculo hermenutico. Ele no um ponto de partida absoluto, mas se refere a uma histria de f que j interpretada. Histria que proclama que Jesus o Messias. Mas, a palavra messias, dentro da expresso Jesus Cristo, adquire sempre um significado para quem a interpreta. Significado que fruto da obra de infinitas retomadas de sentido que no cessam de colocar o crente na dinmica hermenutica de compreender sua existncia crist luz do acontecimento pascal42. E, na medida mesma em que o crente avana na escuta do texto, ele vai corrigindo, isto , modificando sua pr-compreenso.

    40 Evidentemente, ao falar de Tradio crist sempre fica a questo acerca do discernir os aspectos evanglicos dos aspectos eclesisticos. Este tema no o desenvolvo aqui, vale lembrar que, segundo a Dei Verbum (DV, II, 7-8) a Tradio um dom que transmitido e que se insere em um processo histrico que garante o seu progresso. Tambm, Escritura e Tradio brotam da prpria fonte divina, mantm uma ligao e uma comunicao mtua. A Escritura a Palavra de Deus por ter sido escrita por inspirao, e esta transmitida integralmente pela Sagrada Tradio (DV, II, 9). 41 Cf.: C. PALCIO, Que significa crer em Jesus Cristo hoje? Prembulos para uma f sensata e responsvel, Rev. Horizonte, n.1, 1997, 41-54.42 Para uma potica e brilhante elucidao sobre esta questo ver a argumentao de L. Boff em A Estrutura pascal da existncia humana A Paixo, a Morte e a Ressurreio na vida de cada pessoa, em: L. BOFF, Via Sacra da Ressurreio, Petrpolis, Vozes, s/d, 09-26.

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    A partir deste caminho hermenutico que estou apresentando, pode sur-gir a questo acerca da possibilidade de re-interpretar a unidade crist sem negar a abertura a novidade e a diversidade presentes historicamente no cora-o da f, ou seja, a relao da unidade crist com a pluralidade de vivncias da f crist. Ora, para elucidar tal questo eu penso que se deve partir da referncia nica ao Evento Cristo. A maneira crist de viver a f encontra sua referncia ltima no acontecimento Jesus confessado como o Cristo. Em regime cristo o critrio de discernimento de toda autocomunicao de Deus Jesus Cristo. Cristo a norma ltima da f crist.

    Na dinamicidade caracterstica da teologia como hermenutica, penso ser possvel vislumbrar traos de um caminho de reflexo que poder ajudar a correr o risco da interpretao. O ponto de partida ser o da pluralidade de testemunhos presentes dentro do campo hermenutico aberto pelo Evento Cristo. Estes primeiros testemunhos so atos de interpretao das primeiras comunidades crists suscitados sob a ao do Esprito Santo. Ao que tam-bm se faz presente na histria da experincia de f da Igreja. Assim, a teolo-gia como hermenutica ser sempre um novo ato de interpretao do Evento Cristo na base da correlao crtica entre a experincia crist fundamental, testemunhada pela tradio e a experincia humana de hoje43.

    Desta argumentao que venho conduzindo, penso que o caminho her-menutico, caminho de interpretao inerente ao ato de inteleco da f, deve apresentar as seguintes relaes entre os trs modos de tempo prprios da histria. O passado visto como memria crtica, como lugar gerador da pr--compreenso prpria de todo ato de interpretar. O presente o momento de compreender a experincia humana luz da palavra de Deus. O futuro o horizonte da promessa de realizao da palavra.

    Neste movimento hermenutico, alguns critrios ajudam a pautar o caminho. Primeiro os critrios lingusticos que so critrios que dizem respeito ao sentido de todo enunciado. So os recursos analticos-lingusticos aplicados hermenutica teolgica. As reflexes advindas das cincias da linguagem, do estruturalismo, da fenomenologia da linguagem, da filosofia analtica e da ontologia da linguagem. Segundo, os critrios teolgicos que so os critrios que dizem respeito questo do sentido e da verdade do enunciado teolgico. Trabalham diretamente com a experincia crist, so eles a Escritura44, a

    43 C. GEFFR, Como fazer teologia hoje, 68.44 No tratarei aqui da importante questo da hermenutica bblica. Para tal esclarecimento ver: U. SCHNELLE, Introduo Exegese do Novo Testamento, So Paulo, Loyola, 2004, 151-182. PONTIFCIA

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    Tradio, a Ortoprxis crist, o Consensus Ecclesiae, e o Magistrio. Por fim, o critrio pastoral ou de atualizao que trata da relao entre o enunciado e a experincia, entre a pergunta humana e a resposta da revelao. um critrio de preocupao pastoral, onde as frmulas e enunciados devem ser respostas a perguntas feitas hoje. Este critrio quer salvar a atualidade da palavra de Deus em cada momento. Portanto, este possvel caminho que apresento, poder ajudar a traar uma rota de investigao e elucidao dos crculos hermenuticos da reflexo teolgica.

    4. Concluso

    Tentei apresentar um percurso de interpretao das relaes entre filoso-fia e teologia a partir da questo hermenutica. Eu no poderia terminar sem argumentar brevemente acerca da atual produo teolgica que se encontra em um horizonte de reflexo plural, rico em formas de vida, expresses cultu-rais e maneiras de compreenso da dimenso religiosa do ser humano. Nesta multiplicidade, a tarefa da teologia de dar razes de nossa esperana (1Pd 3,15) continua desafiante e necessria.

    Penso que nesta pluralidade o ato cristo no se situa num vazio conceptual. A prpria reviravolta provocada pelo pensamento hermenutico permite falar de uma proposta para a teologia que no caia num dogmatismo estril, nem num fidesmo paralisante. Para a hermenutica teolgica, falar de Deus tambm falar do ser humano que fala de Deus. um falar que deve manifestar a pertinncia do mistrio cristo para a inteligncia e a prtica dos homens e das mulheres contemporneos. Assim, a f crist proclama que o mandamento do amor a Deus semelhante ao mandamento do amor ao prximo. F crist que se compreende nos seguimento e adeso a uma pessoa: Jesus Cristo. Ento, o ponto de partida da teologia ser sempre um evento concreto, ou seja, o evento da revelao cumprida e realizada em Jesus Cristo. Por isso, a teologia deve ser compreendida como um interpretar a escritura da revelao de Deus na histria, dentro de uma tradio, atualizando-a para os homens e mulheres de hoje. A teologia hermenutica atualizante da palavra de Deus e da existncia humana.

    Assim, quando lemos as Escrituras, quando re-lemos as nossas experincias de vida, quando nos defrontamos com estes textos com simpatia,

    COMISSO BBLICA. A Interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo, Paulinas, 1994, 87-88.

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    imaginao e amor, para falar como Ricoeur, que vo fazendo e re-fazendo nosso horizonte, nos defrontamos com a questo da intriga. A intriga, segundo Lvinas45, a relao entre os termos onde um e outro no so unidos nem por uma sntese do entendimento, nem pela relao do sujeito ao objeto e, no entanto, um imprescindvel ou significante para o outro, sendo que eles esto ligados entre si sem que o saber possa esgot-los ou desvel-los. Ora, eu entendo que interpretar a Escritura, interpretar as experincias de vida luz da Escritura, para agir com sentido, um ato inesgotvel de intriga, assim como inesgotvel a maravilha e a novidade da ao humana inspirada pelo Esprito de Deus. O interpretar, o ler d-se na relao de intriga onde o aproximar-se da Escritura, um ir-se configurando, numa verdadeira fuso de horizontes, ao Cristo Jesus. Configurao que ao apresentar um modelo de humanidade, interpela nossa prpria humanidade a um agir com sentido, no mundo, com os outros. um passar do texto ao e da ao ao texto, neste crculo virtuoso que o compreender-se (compreender a vida) iluminados pela Palavra de Deus.

    No final destas reflexes pergunto: como traduzir para os homens e as mu-lheres contemporneos a f crist? F crist que fundamentalmente experin-cia da misteriosa gratuidade de Deus. Gratuidade que se revela na encarnao onde se opera uma transformao radical do imaginrio a respeito da onipotn-cia divina, que se transforma em certa impotncia diante da histria. F crist que nasce de um ato de interpretao, feita pela primeira comunidade crist, do Evento Jesus Cristo como evento de salvao da parte de Deus para ns.

    Este desafio, assim eu entendo, deve ser enfrentado partindo da experincia humana de busca de sentido. Isto porque, a pergunta humana neste mundo pergunta pelo sentido da realidade e da existncia. Assim, a f crist se apresenta como uma resposta humana que tenta articular um sentido nico e definitivo, mas o qual s se atinge mediatizado pela interpretao na comunidade daqueles que crem. Esta interpretao produz uma resposta humana que, ao se tornar teologia, fala de Deus a partir da humanidade e divindade de Jesus Cristo. O mtodo para tal teologia ser o hermenutico porque ele corresponde natureza mesma da palavra de Deus que escritura de um testamento interpretado e da f crist. Por este motivo a verdade revelada no ser nunca uma verdade morta, mas sempre uma verdade viva, sempre transmitida numa mediao histrica e que precisa ser atualizada sem cessar.

    Penso que, todo trabalho da hermenutica teolgica ser o da interpreta-

    45 Cf.: E. LVINAS, En dcouvrant lexistence avec Husserl et Heidegger, Paris, Libraire J. Vrin, 1988, 255.

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    o. Interpretao que quer fazer emergir desse encontro um sentido que leve o crente a uma prxis em favor dos outros, como maneira de atualizar a expe-rincia de f. Esta atualizao acompanhada de uma celebrao do mistrio de Deus em nossas vidas. a dimenso celebrativa, litrgica. Liturgia que no seu constante repetir de gestos, oraes e louvores, conduz a experimentar o mistrio de Deus em nossas vidas. Experincia de f que vivida sob o signo da adeso pessoal e comunitria a uma pessoa que no pode ser decifrada, mas que convida ao seu seguimento na histria.

    Desta forma fica claro que a f crist , fundamentalmente, aderir a Jesus Cristo. No um objeto de uma doutrina racional, mas , no seu aspecto dinmico e existencial um seguir a Jesus Cristo na histria. Por isso, o especfico da revelao crist o dom misterioso que Deus faz de si mesmo aos homens e mulheres. Dom que dado, no atravs da comunicao de verdades e segredos, mas atravs do dom ltimo de uma pessoa: Jesus, o Cristo. Portanto, para a hermenutica teolgica, a Escritura Crist compreendida como fruto do dilogo entre Deus e o ser humano. Dilogo onde Cristo o mediador absoluto, que nos revela por seu Esprito que somos todos filhos de Deus e irmos uns dos outros.

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    Elton Vitoriano RibeiroDoutor em Filosofia

    Professor de Filosofia na FAJE: Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologiae-mail: [email protected]

    Artigo Recebido em 26/04/2011Artigo Aprovado em 23/06/2011