o papel do enem na valorizaÇÃo da diversidade e as

9
1445 O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS CONTRIBUIÇÕES DO MULTILETRAMENTO THE ROLE OF ENEM IN THE VALORIZATION OF DIVERSITY AND THE CONTRIBUTIONS OF THE MULTILITERACIE Mauricio Alves de Souza Pereira Unimontes [email protected] RESUMO Este texto traz à baila algumas considerações sobre o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem –, relativamente às propostas de redação dos últimos anos, as quais aludiram a temáticas que, por envolverem minorias sociais, são pouco discutidas na sociedade, especialmente nas escolas, locais em que essas abordagens deveriam ocorrer. À luz disso, pretendemos discutir de que modo e em que medida esses assuntos promovem certa valorização das diversidades e con- tribuem para a minimização das desigualdades construídas histórica e socialmente. De mais a mais, ensejamos, ainda, mostrar como a pedagogia dos multiletramentos – cuja proposta abarca a multiplicidade cultural das populações – pode contribuir para repensar as aulas de linguagens, especialmente a produção de textos, bem como dar continuidade a esse trabalho de valorização das diversidades na escola. Palavras-chave: Enem. Redação. Valorização das diversidades. Multiletramento. INTRODUÇÃO A sociedade brasileira, de um modo geral, é marcada por diversas desigualdades cons- truídas histórica e socialmente. Por muito tempo – e ainda hoje, em maior ou menor grau – observa-se uma forte exclusão de alguns grupos sociais, entre os quais podemos destacar as mulheres, os negros, os homossexuais, as pessoas com deficiência, os indígenas, os imigrantes, entre tantos outros que, apesar de tantas garantias legais que lhes asseguram o direito à dignida- de, ainda sofrem o peso do preconceito e da violência cotidianos. Caracterizada por um forte tradicionalismo, a sociedade brasileira, vide as instituições sociais formadoras, das quais enfatizamos a escola, negligenciaram e ainda negligenciam as- suntos que contemplam as diversidades, nas quais se encaixam os grupos sociais supracitados. Com efeito, a ausência dessa abordagem fez com que muitas ideologias se cristalizassem so- cialmente e contribuiu para que, hoje, elas ainda permaneçam e sejam reproduzidas. Voltando-nos estritamente às escolas, sabemos que temas como racismo, bullying, ho- mofobia, gênero, intolerância religiosa e outros tantos ainda são tabus na sala de aula, seja pela despreparo docente, seja pela resistência familiar. Por mais que os documentos que parametri- zam o ensino nacionalmente aludam a uma preparação discente que envolva a diversidade e o

Upload: others

Post on 16-Oct-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1445

O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS CONTRIBUIÇÕES DO MULTILETRAMENTO

THE ROLE OF ENEM IN THE VALORIZATION OF DIVERSITY AND THE CONTRIBUTIONS OF THE MULTILITERACIE

Mauricio Alves de Souza PereiraUnimontes

[email protected]

RESUMO

Este texto traz à baila algumas considerações sobre o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem –, relativamente às propostas de redação dos últimos anos, as quais aludiram a temáticas que, por envolverem minorias sociais, são pouco discutidas na sociedade, especialmente nas escolas, locais em que essas abordagens deveriam ocorrer. À luz disso, pretendemos discutir de que modo e em que medida esses assuntos promovem certa valorização das diversidades e con-tribuem para a minimização das desigualdades construídas histórica e socialmente. De mais a mais, ensejamos, ainda, mostrar como a pedagogia dos multiletramentos – cuja proposta abarca a multiplicidade cultural das populações – pode contribuir para repensar as aulas de linguagens, especialmente a produção de textos, bem como dar continuidade a esse trabalho de valorização das diversidades na escola. Palavras-chave: Enem. Redação. Valorização das diversidades. Multiletramento.

INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira, de um modo geral, é marcada por diversas desigualdades cons-truídas histórica e socialmente. Por muito tempo – e ainda hoje, em maior ou menor grau – observa-se uma forte exclusão de alguns grupos sociais, entre os quais podemos destacar as mulheres, os negros, os homossexuais, as pessoas com defi ciência, os indígenas, os imigrantes, entre tantos outros que, apesar de tantas garantias legais que lhes asseguram o direito à dignida-de, ainda sofrem o peso do preconceito e da violência cotidianos.

Caracterizada por um forte tradicionalismo, a sociedade brasileira, vide as instituições sociais formadoras, das quais enfatizamos a escola, negligenciaram e ainda negligenciam as-suntos que contemplam as diversidades, nas quais se encaixam os grupos sociais supracitados. Com efeito, a ausência dessa abordagem fez com que muitas ideologias se cristalizassem so-cialmente e contribuiu para que, hoje, elas ainda permaneçam e sejam reproduzidas.

Voltando-nos estritamente às escolas, sabemos que temas como racismo, bullying, ho-mofobia, gênero, intolerância religiosa e outros tantos ainda são tabus na sala de aula, seja pela despreparo docente, seja pela resistência familiar. Por mais que os documentos que parametri-zam o ensino nacionalmente aludam a uma preparação discente que envolva a diversidade e o

Page 2: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1446

respeito a ela, na prática ainda se observam metodologias conteudistas e que pouco promovem a consciência humana com relação à necessidade de convívio e respeito com o diferente.

Por outro lado, o Exame Nacional do Ensino Médio, doravante Enem, criado inicial-mente como instrumento de avaliação do desempenho dos estudantes ao fi nal da educação bá-sica, hoje, além de ser a principal porta de entrada para o ensino superior, é uma forte infl uência no processo de ensino na educação básica, na medida em que as escolas tentam ofertar aos alunos os conteúdos com os quais eles vão se deparar no exame.

A Redação – uma das cinco áreas componentes do Enem –, nos últimos anos, tem de-monstrado certa preocupação com temas cujas discussões foram negligenciadas durante muitos anos, a exemplo das temáticas mencionadas anteriormente, sobretudo no contexto escolar. Ao exigir de milhões de indivíduos a escrita de um texto relativo à violência contra a mulher, à in-tolerância religiosa, ao preconceito racial e à educação de surdos, o Enem denota que o trabalho com a pluralidade – seja de gênero, seja de credo, seja étnico-racial, seja de defi ciências – deve ser trazido à baila na sociedade, mormente no âmbito educacional.

Nesse particular, podemos trazer à esteira desta discussão a pedagogia dos Multiletra-mentos, que, ao pensar a linguagem a partir de sua multiplicidade, descrevendo argumentos que se colocam diante da ordem cultural, institucional e global emergente, muito tem a contribuir para o trabalho com a questão da diversidade na escola.

Por força disso, este texto visa elucidar o papel do Enem na valorização da diversidade a partir das propostas de redação dos últimos anos, bem como pensar de que forma e em que medida o multiletramento pode auxiliar no trabalho com essa temática tão importante para a minimização das desigualdades engendradas na sociedade.

O ENEM, A REDAÇÃO E AS TEMÁTICAS DAS DIVERSIDADES

A partir da década de 1960, com as reformulações por que passou o sistema de educa-ção brasileiro, as universidades começaram a adotar como critério de ingresso conhecimentos das áreas tidas até então como base: tal como português e matemática. Foi nesse contexto que surgiram os vestibulares, provas nas quais o indivíduo necessitava demonstrar conhecimento por meio de questões objetivas para ter acesso ao ensino superior.

Com o desenvolvimento tecnológico, a chamada sociedade da informação começou a requerer das pessoas conhecimentos não somente voltados a conteúdos específi cos, mas à capa-cidade de manejar com profi ciência as tecnologias e solucionar situações do cotidiano. Diante disso, a escola passou a ser vista como um dos agentes formadores do indivíduo para essas questões pragmáticas com as quais nos deparamos recorrentemente.

Seguindo essa perspectiva, a década de 1990, no Brasil, foi um período de muita efer-vescência, sobretudo no cenário educacional. A aspiração a uma nação desenvolvida por meio da educação e a criação da Lei de Diretrizes e Bases operou mudanças, por exemplo, no Ensino Médio, o qual passou a ser considerado um período de fi nalização, em que o aluno deveria estar preparado tanto para o mercado de trabalho quanto para ingressar no ensino superior.

O Enem emerge nesse contexto de mudanças do fi nal do século XX, com o intuito de avaliar o desempenho dos discentes no fi m da educação básica, de modo a analisar se foram

Page 3: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1447

alcançadas as competências e habilidades necessárias para o exercício pleno da prática cidadã. O certame foi se modifi cando e crescendo ao longo dos anos e, hoje, é o segundo maior exame de acesso ao ensino superior do mundo – o qual dá oportunidade às pessoas a ingressarem em faculdades públicas e particulares como bolsistas.

Devemos dar destaque ao aperfeiçoamento realizado no Enem em 2009, quando as questões do exame foram divididas em quatro matrizes curriculares: i) linguagens, códigos e suas tecnologias; ii) ciências humanas e suas tecnologias; iii) ciências da natureza e suas tecno-logias; e iv) matemática e suas tecnologias. Cada matriz é composta por 45 questões de múltipla escolha, totalizando 180 questões. Além disso, é requestada a produção de uma redação, na mo-dalidade dissertativa-argumentativa, abordando um tema específi co defi nido pela banca, sendo ele de ordem social, política, científi ca ou cultural.

Os temas abordados na redação são, de modo geral, assuntos da atualidade com os quais os alunos se deparam em seu dia a dia. Tendo em vista que esses temas são foco desta discussão, observemos uma cronologia das abordagens, desde 1998 – ano da criação do exame: 1998: Viver e aprender;1999: Cidadania e participação social;2000: Direitos da criança e do adolescente: como enfrentar esse desafi o nacional;2001: Desenvolvimento e preservação ambiental: como conciliar os interesses em confl ito?;2002: O direito de votar: como fazer dessa conquista um meio para promover as transformações sociais que o Brasil necessita?;2003: A violência na sociedade brasileira: como mudar as regras desse jogo;2004: Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação;2005: O trabalho infantil na sociedade brasileira;2006: O poder de transformação da leitura;2007: O desafi o de se conviver com as diferenças;2008: Como preservar a fl oresta Amazônica: suspender imediatamente o desmatamento; dar in-centivo fi nanceiros a proprietários que deixarem de desmatar; ou aumentar a fi scalização e aplicar multas a quem desmatar;2009: O indivíduo frente à ética nacional;2010: O trabalho na construção da dignidade humana;2011: Viver em rede no século 21: os limites entre o público e o privado;2012: Movimento imigratório para o Brasil no século 21;2013: Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil;2014: Publicidade infantil em questão no Brasil;2015: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira;2016: Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil;2016 (segunda aplicação): Caminhos para combater o racismo no Brasil;2017: Desafi os na formação educacional de surdos no Brasil.

Muito embora todos os temas já abordados tenham trazido à tona assuntos importantes, que promovem, direta ou indiretamente, a conscientização da população com relação a discus-sões que necessitam serem feitas na sociedade, consideramos que, nos últimos anos, o exame

Page 4: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1448

tem apontado para a necessidade de a escola trabalhar com tópicos que, até então, ainda são considerados tabus socialmente – muito especialmente nas escolas.

Sabemos que as mulheres, após anos de luta e garantia de direitos, ainda são vítimas da violência – seja física, seja psicológica – e isso se deve à retrógrada visão que ainda existe sobre a sobreposição do masculino em detrimento do feminino. Essa questão, recorrente na sociedade, é nova e ainda pouco falada nas escolas, conforme aponta Henriques et. al (2007), que assim se posiciona:

Não por acaso, é muito recente a inclusão das questões de gênero, identidade de gênero e orientação sexual na educação brasileira a partir de uma perspectiva de valorização da igualdade de gênero e de promoção de uma cultura de respeito e reconhecimento da diversidade sexual. Uma perspectiva que coloca sob suspeita as concepções curri-culares hegemônicas e visa a transformar rotinas escolares, e a problematizar lógicas reprodutoras de desigualdades e opressão (HENRIQUES, 2007, p. 11).

Entendemos, assim, que a temática da violência contra a mulher pode ter sido um mote

para ampliar na sociedade, especialmente na educação básica, a discussão a respeito da igual-dade de gênero. Essa ideia pode ser reforçada, ainda, observando-se uma das questões da prova de Ciências Humanas, que trouxe à baila um trecho da obra de Simone de Beauvoir,

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econô-mico defi ne a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualifi cam de feminino (BEAUVOIR, 1967, p. 9).

Essa questão expôs nas mídias digitais diferentes posicionamentos, contra e a favor, do uso dessa autora em um exame da educação básica. Enfatizamos as apologias negativas à autora, segundo as quais se incita, com essa discussão, a pedofi lia e o ódio contra os homens, denotando como muitos indivíduos ainda se mostram complacentes ao preconceito com rela-ção ao gênero feminino, um dos motivos que leva à violência – temática trazida pela redação. Inclusive, cabe enfatizar que mais de dez mil textos foram anulados, sendo um dos motivos o desrespeito aos direitos humanos, o que expôs a vasta quantidade de pessoas que não compre-endem o assunto. Nessa senda, coadunamos com a visão de Martins (2016), para quem

[...] o Enem, como um dos principais instrumentos de avaliação da educação no Bra-sil, ao apresentar uma questão relacionada à Beauvoir e as lutas dos movimentos feministas para que milhões de estudantes das redes públicas e particulares de ensino brasileiro tenham que pensar ler e responder a respeito, contribuiu para o acesso ao conhecimento tanto do movimento social e suas/es principais pensadoras/es quanto para o acesso aos conhecimento disseminados pelos feminismos que buscam construir uma sociedade igualitária entre os gêneros (MARTINS, 2016, p. 57).

Com isso, reconhecemos que, pela repercussão do tema relacionado às mulheres, tanto na prova de Ciências Humanas quanto na proposta de redação, o Enem abriu um interessante espaço de discussões e apontou para a necessidade de se falar em igualdade de gênero nas salas

Page 5: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1449

de aula. De outra parte, ressaltamos a temática cobrada em 2016, acerca da intolerância religiosa

no Brasil, que também causou forte repercussão no cenário educacional e nas mídias de modo geral.

Embora o Brasil seja um país teoricamente laico, a prática expõe a sobreposição de algumas religiões em detrimento de outras e uma série de barreiras com relação a algumas cren-ças, sobretudo as de religiões de matrizes africanas, as quais, conforme foi trazido nos textos de apoio da proposta de redação, apresentam maior número de denúncias por violência. Isso porque, conforme assevera Barreto (2009),

O preconceito relativo às práticas religiosas afro-brasileiras está profundamente arrai-gado na sociedade brasileira por essas práticas estarem associadas a negros e negras, grupo historicamente estigmatizado e excluído. Os cultos afro-brasileiros seriam con-trários ao “normal e natural” cristianismo europeu. (BARRETO, 2009, p. 26)

Desse modo, cremos que, por mais um ano, o Enem apontou para as escolas a necessi-dade de se pensar no respeito às diversas manifestações religiosas, visto que muitas instituições ainda valorizam uma crença hegemônica e exclui outras. Essa postura, além de operar para a construção de uma escola não-inclusiva, inibe a oportunização para os discentes de conheci-mentos relacionados a outras religiões.

Em outro viés, no mesmo ano, 2016, dada a necessidade de reaplicação do exame a al-guns alunos, o Enem também trouxe à tona uma questão relacionada à diversidade: o racismo. Por mais que seja um assunto que hoje tenha ganhado certa visibilidade, há, ainda, posturas intolerantes para com os negros.

Por mais que haja a Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a qual altera a Lei de Di-retrizes e Bases da Educação Nacional (nº. 9.394/96), estabelecendo a inclusão obrigatória no currículo ofi cial das redes de ensino da temática “História e Cultura AfroBrasileira”, que enseja, por um lado, despertar a consciência dos indivíduos para o afrodescendente, na escola, ainda há a criação e perpetuação de vários estereótipos envolvendo a pessoa negra.

Assim, ao fazer menção a esse tema tão importante, o Enem enfatiza a necessidade de que essa pauta esteja sempre presente na prática de sala de aula, e não somente nos currículos, pois conforme apontam Silva, Souza e Oliveira (2014)

A escola, como instituição social responsável pelo processo de socialização, tem um importante papel sobre a formação da consciência histórica educandos, e para desmis-tifi car os estereótipos raciais, os livros didáticos são ferramentas políticas e cultural, disponibilizadas aos professores e aos alunos, que pode colaborar com processo de desmistifi cação da História do Negro no Brasil, desde que esse recurso não reprodu-za no uso pedagógico, os conceitos e ideologias de senso comum e da ideologia do branqueamento, onde o negro é visto como sujeitos ex-escravizados pelos europeus e incapazes de “produzir cultura”. (SILVA; SOUZA; OLIVEIRA, 2014, p.4).

Por fi m, ressaltamos o assunto trazido pelo Enem em 2017, que também abriu espaço para o pensamento da diversidade, especialmente da inclusão do defi ciente, ao abordar os desa-

Page 6: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1450

fi os para a formação educacional de surdos. Trata-se de um assunto pouco discutido na socie-dade, mormente nas escolas, que muitas vezes não estão preparadas para receber alunos com necessidades educacionais especiais.

Nos dias atuais, muito se discute sobre uma escola verdadeiramente inclusiva, e isso passa pelo crivo do conhecimento dos alunos acerca dessa inclusão, bem como respeitar e saber lidar com a diversidade, pois como assevera Crochik (2012),

Ao contrário de algumas tendências que defendem que a diversidade é de origem e assim deve se perpetuar, em nossa perspectiva, a educação deve transformar o edu-cando, caso contrário não pode cumprir seus objetivos. Mais do que isso, é por meio da educação, da formação, que podemos ser diversos, diferençados; sem a formação somos semelhantemente grosseiros, rudimentares, primitivos (CROCHIK, 2012, p. 42).

Dessa forma, ao pensar na questão do surdo, e restringir esse tema à sua formação educacional, o Enem mais uma vez, ao nosso ver, pôs em voga a necessidade do respeito, da atenção e da valorização da diversidade.

De acordo com o pensamento de Aquino (1998),

[...] a escola é o lugar não só de acolhimento das diferenças humanas e sociais en-carnadas na diversidade de sua clientela, mas fundamentalmente o lugar a partir do qual se engendram novas diferenças, se instauram novas demandas, se criam novas apreensões acerca do mundo já conhecido (AQUINO, 1998, p. 138).

Por tudo isso, acreditamos que o Enem, a partir das problemáticas emergentes que ele tem trazido à tona nos últimos anos, colabora para que a sociedade, especialmente as institui-ções escolares, se abra para discussões pouco enfatizadas e importantes para a valorização das diversidades.

A PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS: UM NOVO OLHAR PARA O TRABA-LHO COM LINGUAGENS

Neste momento, pretendemos voltar nossas discussões às propostas voltadas para o tra-balho com a produção de textos (redação) nas escolas e pensar em que medida a pedagogia dos multiletramentos pode auxiliar na renovação dessas propostas, dada a necessidade de mudan-ças, bem como evidenciar como essa pedagogia contribui para a valorização das diversidades – que, como já apontamos, vem sendo trazida nos últimos anos pelo Enem.

As mudanças pelas quais a sociedade passou – em seus valores e nas formas de comu-nicação em geral – apontam para a necessidade de novos caminhos de ensino, de modo que enfatizamos o ensino das linguagens. A pedagogia dos multiletramentos, ou teoria dos multili-teracies, surge nesse contexto de (necessidade de) mudanças.

Essa pedagogia surgiu em 1996 quando o New London Group (NLG) reúne-se para discutir a pedagogia dos letramentos tendo em vista a inefi cácia nos resultados educacionais nos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido.

Page 7: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1451

O NGL, pioneiro desse novo conceito, trouxe contribuições importantes para repensar a prática pedagógica em linguagens. Rojo (2012, p. 2) pontua que os autores, cuja maioria se originava de países em que o confl ito cultural se apresenta escancaradamente em termos de lu-tas entre gangues, massacres de rua, perseguições e intolerância, apontavam para o fato de que o não tratamento dessas questões em sala de aula contribuía para o aumento da violência social e para a falta de futuro da juventude.

Ainda para essa autora,

[...] o Grupo também apontava para o fato de que essa juventude – nossos alunos – contava já há quinze anos com outras e novas ferramentas de acesso à comunicação e à informação e de agência social, que acarretavam novos letramentos, de caráter mul-timodal ou multissemiótico. Para abranger esses dois “multi” – a multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e a multimodalidade dos textos por meio dos quais esta se comunica e informa, o grupo cunhou um termo ou conceito novo: multiletramentos (ROJO, 2012, p. 2).

Outros autores que contribuíram para pensar na necessidade de reformular o trabalho com linguagens foram Kalantzis e Cope, com a publicação de Literacies, em 2012. De acordo com esses linguistas, a matriz tradicional que a escola preserva e a visão do professor para lidar com as linguagens não prepara o aluno para a sociedade do século XXI, marcada por profundas mudanças e diversidades.

Em Literacies, os autores reforçam que o velho currículo (old basics), centrado no ensino da norma padrão e em que eram considerados competentes aqueles que fossem capazes de extrair do texto os sentidos pretendidos pelo autor, produziu pessoas com habilidades para um determinado tipo de sociedade. Eles argumentam que a herança do modelo de educação dessa ‘velha’ escola ou pedagogia em determinados aspectos não corresponde ou não é adequada ao cenário de diversidade social e de modos de construção de sentido da sociedade de hoje (SILVA, 2016, p. 16).

Dessa forma, a pedagogia dos multiletramentos vai pensar as aulas de linguagens não mais como únicas e exclusivamente voltadas para a metalinguagem, mas sim para entender como essa linguagem deve servir para o indivíduo ser sujeito ativo e compreender os processos sociais num mundo que se modifi ca com frequência. Enfatizando o momento de produção de textos, ressaltamos que a visão do multiletramento vai pensar a aula como um momento de refl exão, que entende a escrita como uma prática social – e política. Assim, se pensarmos nas propostas temáticas que o Enem tem abordado em suas últi-mas edições, somos levados a crer que é necessária uma reformulação no que se refere à visão tradicional atribuída às aulas de escrita, visto que ela deve refl etir a produção de textos sobre temas signifi cativos, isto é, caracterizar uma Prática Situada, em que o aluno seja capaz também de discutir assuntos de importância social. Nesse diapasão, a pedagogia dos multiletramentos, que entre outros aspectos visa à mul-ticulturalidade, tende a contribuir não só para um processo de ensino-aprendizagem signifi ca-tivo, mas também – e talvez principalmente – para que seja possível descontruir (pre)conceitos

Page 8: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1452

edifi cados historicamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, procuramos mostrar como as temáticas de redação das últimas edições do Exame Nacional do Ensino Médio trouxeram à sociedade a refl exão a respeito da necessidade de que temas ainda considerados tabus – como desigualdade de gênero, intolerância religiosa, racismo e defi ciências – ganhem maior evidência, especialmente no contexto escolar, visto que o Exame se volta para indivíduos que estão em fase de conclusão da educação básica.

A produção textual de textos dissertativos pressupõe um conhecimento amplo de mun-do, e não apenas de regras de escrita. Sabe-se que o processo de construção de textos argumen-tativos perpassa por uma formação crítica individual pautada em todas as áreas do conhecimen-to: seja das Ciências Humanas, seja das Ciências Exatas, seja das Ciências Biológicas; dessa forma, há que se pensar nas aulas de Linguagens não só como um momento de estudos fechado em regras e técnicas de escrita, mas também como uma oportunidade de interligar e articular os conhecimentos obtidos e, além disso, disponibilizar alguns conceitos importantes que auxiliam na construção de um percurso crítico e argumentativo.

Trabalhar com Linguagens, portanto, especialmente com a produção textual dissertati-va, requer um trabalho interdisciplinar, que abarque todas as esferas do conhecimento e, prin-cipalmente, a multiculturalidade existente na nova sociedade – proposta característica do que chamamos multiletramento.

Assim, consideramos que a pedagogia dos multiletramentos pode contribuir não só para que se solidifi que nas escolas uma prática pedagógica situada, signifi cativa para a aprendiza-gem dos alunos, mas também para que se possa fomentar a criticidade e, principalmente, o respeito às diversidades.

REFERÊNCIAS

Aquino, Julio Groppa. Ética na escola: a diferença que faz diferença. Em J. G. Aquino (Co-ord.), Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 135-151). São Paulo: Summus, 1998.BARRETO, Andreia. Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em Gê-nero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. Versão 2009. – Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM, 2009.BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2a ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.CROCHIK, José Leon. Educação inclusiva e preconceito: desafi os para a prática pedagógi-ca. In: O professor e a educação inclusiva: formação, práticas e lugares.Salvador: 2012.MARTINS, Cíntia Gonçalves. Simone de Beauvoir na Prova do Exame Nacional do Ensino Médio – Enem e a Repercussão na Mídia: a importância dos estudos de Simone de Beau-voir sobre a condição das mulheres na formação das/os educandas/os da educação básica.

Page 9: O PAPEL DO ENEM NA VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E AS

1453

Monografi a apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2016. OLIVEIRA, E. S.; SANTOS, M. A. S.; SILVA, A. G. A. O livro didático: Um Estudo da Abordagem da História do Negro em São Luís do Quitunde. In: VII Semana Internacio-nal de Pedagogia, Alagoas, 2014. Disponível em:< http://epeal2014.dmd2.webfactional.com/trabalhos-identifi cado/63-Com-identifi ca.pdf>. Acesso em 20 jul. 2018. ROJO, Roxane. Pedagogia dos Multiletramentos: Diversidade cultural e de linguagens na escola. In: ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo (orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.SILVA, Themis Rondão Barbosa da Costa. Pedagogia dos multiletramentos: principais pro-posições metodológicas e pesquisas no âmbito nacional. In: Revista Letras, Santa Maria, v. 26, n. 52, p. 11-23, jan./jun. 2016.