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nova Economia_Belo Horizonte_18 (2)_167-190_maio-agosto de 2008 O “Outubro” de Marx João Antonio de Paula Professor do CEDEPLAR/FACE/UFMG Resumo Este artigo discute um momento decisivo da crítica da economia política desenvolvida por Marx. Trata-se da escolha, algo abrupta, do conceito de mercadoria, como ponto de par- tida do livro Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859. Sabe-se que até poucos me- ses de entregar seu texto para o editor Marx pensava iniciar seu livro com um capítulo so- bre o valor, à semelhança do que fizera Ri- cardo em seus Princípios. As implicações teó- ricas e metodológicas desta escolha são hoje bastante conhecidas. Este texto busca situar as circunstâncias e significados do conceito de mercadoria na obra de Marx. Abstract This article examines a decisive moment in the critique of political economy developed by Marx, which is the somewhat abrupt choice of the concept of merchandise as a starting point for the book Contribution to a Critique of Political Economy, of 1859. It is known that up until a few months before he delivered his text to the publisher, Marx thought about beginning his book with a chapter on value, similar to what Ricardo had done in his Principles. The theoretical and methodological implications of this choice are well known today. This text seeks to situate the circumstances and meanings of the concept of merchandise in Marx’s work. Palavras-chave marxismo, o conceito de mercadoria, crítica da economia política. Classificação JEL B14; B31 Key words Marxism, concept of merchandise, critique of political economy. JEL Classification B14; B31

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Page 1: O “Outubro” de Marx

nova Economia_Belo Horizonte_18 (2)_167-190_maio-agosto de 2008

O “Outubro” de Marx

João Antonio de PaulaProfessor do CEDEPLAR/FACE/UFMG

ResumoEste artigo discute um momento decisivo dacrítica da economia política desenvolvida porMarx. Trata-se da escolha, algo abrupta, doconceito de mercadoria, como ponto de par-tida do livro Contribuição à Crítica da EconomiaPolítica, de 1859. Sabe-se que até poucos me-ses de entregar seu texto para o editor Marxpensava iniciar seu livro com um capítulo so-bre o valor, à semelhança do que fizera Ri-cardo em seus Princípios. As implicações teó-ricas e metodológicas desta escolha são hojebastante conhecidas. Este texto busca situaras circunstâncias e significados do conceitode mercadoria na obra de Marx.

AbstractThis article examines a decisive moment in thecritique of political economy developed by Marx,which is the somewhat abrupt choice of theconcept of merchandise as a starting point for thebook Contribution to a Critique ofPolitical Economy, of 1859. It is known thatup until a few months before he delivered his textto the publisher, Marx thought about beginninghis book with a chapter on value, similar towhat Ricardo had done in his Principles. Thetheoretical and methodological implications ofthis choice are well known today. This text seeksto situate the circumstances and meanings of theconcept of merchandise in Marx’s work.

Palavras-chavemarxismo, o conceitode mercadoria, críticada economia política.

Classificação JEL B14; B31

Key words

Marxism, concept of merchandise,critique of political economy.

JEL Classification B14; B31

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Até quase às vésperas da publicaçãodo livro Contribuição à crítica da economia políti-ca, em 1859, que é a primeira manifestaçãosistemática da crítica da economia política,Marx ainda planejava iniciar sua obra comum capítulo sobre o “Valor”, como Ricar-do o fizera em seu “Principles”.

Esse fato está longe de ser irrisóriosobretudo, se se levar em conta que, em1858, Marx já se acreditava habilitado paraapresentar sua “crítica da economia polí-tica”, isto é, uma obra que efetivamente“superaria” a longa e gloriosa trajetória da-quela disciplina. Trata-se, nesse sentido, desurpreender o momento da história da cons-trução da obra de Marx em que ele “desco-briu” a chave da abóbada, a peça que possi-bilitava o travamento e a solidez da monu-mental estrutura.

Muitos estudiosos da obra de Marxdestacaram a importância do capítulo inicialde O capital, o capítulo sobre a mercadoria,para a efetiva materialização da “exposi-ção” dialética da “crítica da economia polí-tica”. Há, nesse capítulo, a apresentação da“totalidade” das manifestações da realidadecapitalista tal como essa pode “aparecer”num primeiro movimento de totalizaçãoconceitual, cujo âmbito abarca a mercado-ria tomada em sua imediaticidade fenomê-nica, como produto do trabalho humanoconcreto, como objeto dotado de utilidade,que, apesar de sua irredutível especificidade

como valor de uso, ainda assim é trocado,isto é, igualado a outros valores de uso, pelasuperveniência da dimensão trabalho abs-trato contida em todo trabalho social.

De fato, tanto a primeira seção doLivro I de O capital, seus três primeiros capí-tulos, quanto o primeiro capítulo, quanto aprimeira oração do capítulo inicial, perfa-zem, cada um no seu nível de abstração,tanto mais alto quanto mais inicial a abor-dagem, o conjunto do movimento do capi-tal como “totalidade simples”, que sepõe, inicialmente, como mercadoria, no pro-cesso de circulação, que vai dar origem aodinheiro, o qual é a manifestação mais ge-nérica da riqueza capitalista, a forma mais“universal” que o capital pode assumir noâmbito da troca de mercadorias.

Com efeito, todas as manifestaçõesda “forma” mercadoria estão postas desdeo capítulo inicial de O capital. A mercadoriaapresenta-se, sucessivamente, como formasimples, fortuita, e singular do valor; comoforma extensiva do valor; como forma ge-ral do valor; como forma dinheiro; e comoforma preço do valor, prefigurando, pormeio dessas metamorfoses conceituais, omovimento real da mercadoria no âmbitoda circulação das mercadorias, isto é, antesque se ponham, em todas as suas media-ções, as manifestações concretas da merca-doria que vai se tornar capital.

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É vertiginoso o ritmo e a amplitudeconceitual da primeira oração de O capital:nas cinco linhas, 36 palavras, a súmula, ri-gorosa de uma longa exposição, que vai sedesdobrar em três livros, em 2.580 páginas:a “odisséia da mercadoria”, o inventário desuas formas e metamorfoses até sua plenarealização como capital e seus disruptivosdesdobramentos.

Como no início da Odisséia, de Ho-mero, em poucas linhas, a extraordináriaaventura do herói e de seus companheiros:

As aventuras do herói engenhoso, que,após saquear a sagrada fortaleza de Tróia,errou por tantíssimos lugares vendo as ci-dades e conhecendo o pensamento de tantospovos e, no mar, sofreu tantas angústiasno coração, tentando preservar a vida e orepatriamento de seus companheiros [...](Homero, 1997, p. 9).

Para lembrar Moses Finley, é preci-so ver o mundo do Odisseu como, de algu-ma forma, o nosso mundo, mundo em quese substituíram os fados e as suscetibilida-des de deuses caprichosos, pelos tambémimplacáveis desígnios do capital, que se seimpôs como deus profano e mesquinho.

É certo que essa propriedade desintetizar num único gesto rápido e abran-gente todo um mundo não é exclusividadeda epopéia. É isso que também nos dão,

por exemplo, Kafka e Tolstoi. Em Meta-morfose, lê-se:

Quando Gregor Samsa despertou, certamanhã, de um sonho agitado, viu que setransformara, em sua cama, numa espéciemonstruosa de inseto (Kafka, 1969, p. 13).

E nessa frase insinua-se, mais que a estra-nheza, a terrível presença de um mundocapaz de transformar o homem em inse-to. Em Ana Karênina, de Tolstoi, a primei-ra frase do romance é a síntese de umamoral desencantada: “Todos os gênerosde felicidade se assemelham, mas cadainfortúnio tem o seu caráter particular”.

Grandes livros, a epopéia homérica,a novela de Kafka, o romance de Tolstoi,são impensáveis sem as suas frases iniciais.É esse também o caso da primeira frase deO capital. E, no entanto, a “descoberta” dosignificado metodologicamente indispen-sável da mercadoria como ponto de parti-da do capital só se deu, de fato, quandoMarx já havia “descoberto” todo o essenci-al de sua “crítica da economia política”.Esse fato, ao lado de reafirmar as diferen-ças entre “o modo de investigação” e “omodo de apresentação” do conhecimento,do ponto de vista dialético, também subli-nha a importância da reconstituição doprocesso de elaboração da “crítica da eco-nomia política”.

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Não é o caso aqui de falar-se emsurgimento inesperado da categoria “mer-cadoria” na obra de Marx. Com efeito, oque é preciso reconhecer é o fato de que a“crítica da economia política” não se apre-sentou completa e acabada de uma vez portodas, senão que se processou por etapasmarcadas pela operação de “superação” dascategorias da Economia Política: da rejei-ção à aceitação da teoria do valor-trabalho;a criação do conceito de “força-de-traba-lho” e a sua distinção do conceito de “tra-balho”; a criação do conceito de mais-valia;a criação do conceito de modo de produção;a “superação” da teoria do valor-trabalhopela criação da teoria da forma do valor edo fetichismo da mercadoria (Mandel, 1968;Rubel, 1970; Rowthorn, 1972; Rubin, 1974;Coutinho, 1997; Rosdolsky, 2001).

Ainda que dando respostas diferen-tes à problemática do valor, ainda que mo-vido por perspectiva radicalmente distintada de Ricardo, do ponto de vista político eideológico, o projeto teórico de Marx, mes-mo depois do crucial ajuste de contas como conjunto da “Economia Política” repre-sentado pelos “Grundrisse”, redigidos en-tre 1857 e 1858, ainda continuava referen-ciado ao que os grandes clássicos, AdamSmith e David Ricardo em destaque, havi-am consignado. Se a ruptura com o univer-so conceitual da “Economia Política” já se

processara, se Marx já podia denominarsua obra de “crítica da economia política”,num sentido dialeticamente rigoroso, essa“crítica” ainda não superara, inteiramente,as marcas da “forma” como a Economia Po-lítica clássica apresentara o conteúdo des-sa disciplina.

Para lembrar uma diferenciação bá-sica, para o discurso dialético, trata-se desurpreender em Marx, até 1858, a incom-pletude do projeto da “exposição” (Dars-tellung) da “crítica da economia política”,em descompasso com a realização da “crí-tica da economia política” do ponto de vis-ta de seu conteúdo, do desvelamento de suaestrutura, dinâmica e contradições, que, des-de os Grundrisse, já é possível tomar como,no essencial, realizada. Isto é, os Grun-drisse são o termo do esforço de apropria-ção crítica do conteúdo da “Economia Po-lítica”, iniciado por Marx em Paris, em1844. O material dos Grundrisse, publica-do como livro em 1939, dá conta da “supe-ração” (aufhebung) da trama conceitualcaracterística da “Economia Política”, me-diante uma operação em que, num mesmomovimento crítico, há conservação do nú-cleo racional de certas categorias, postoque dotadas de universalidade; há abando-no de outras categorias, porque irremedia-velmente aistóricas e comprometidas coma ordem burguesa; há o melhoramento de

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algumas outras categorias, aperfeiçoadas emcapacidade heurística; e, finalmente, há a in-venção de categorias e questões novas pe-lo influxo da pesquisa orientada pela dialé-tica, tal como Marx a transfigurou.

Neste texto, surpreende-se o mo-mento em que se dá a complementação da“crítica da economia política” representa-do pela adoção de um “método de exposi-ção” que respeitou as exigências do discur-so dialético, isto é, que é

a explicitação racional imanente do pró-prio objeto e a exigência de só nela incluiraquilo que foi adequadamente compreen-dido (Mümller, 1982, p. 17).

Esse momento-chave e roteiro da“exposição” da “crítica da economia políti-ca” está sintetizado na escolha da categoria“mercadoria” como “ponto de partida”,necessário e rigoroso, tanto da Contribuiçãoà crítica da Economia Política, de 1859, quantode O capital, em 1867.

Chamou-se a esse momento, ao mo-mento-chave da escolha da “mercadoria”como ponto de partida da exposição dacrítica da economia política, o “Outubro”de Marx, numa metáfora que remete aotambém decisivamente disruptivo repre-sentado pelo “outubro vermelho” da Re-volução Russa. Para insistir na metáfora,diga-se que a escolha da “mercadoria” co-mo ponto de partida da exposição da críti-

ca da economia política significa afirmarque a superação do capitalismo e suas ma-zelas passa pela superação da “mercadoria”e das suas condições de produção e repro-dução, isto é, pela superação do capital e detodas as implicações de seu domínio sobrea vida econômica, política, social e cultural.

1_ A mercadoria e a Odisséia

Foi o filósofo tcheco Karel Kosik quemnos deu a bela imagem da “mercadoria”como “ersatz” do Odisseu da epopéia ho-mérica. Diz Kosik que tanto Marx quan-to Hegel, antes dele, foram tributários deuma época cultural que tomou a “odis-séia” como motivo simbólico, que influ-enciou a filosofia, a literatura e a ciência.Diz Kosik:

Este motivo próprio da época da obra lite-rária, filosófica e científica é a ‘odisséia’.O sujeito (o indivíduo, a consciência indi-vidual, o espírito, a coletividade) deve an-dar em peregrinação pelo mundo econhecer o mundo para conhecer a si mes-mo. O conhecimento do sujeito só é possívelna base da atividade do próprio sujeito so-bre o mundo; o sujeito só conhece o mundona proporção em que nele intervém ativa-mente, e só conhece a si mesmo medianteuma ativa transformação do mundo (Ko-

sik, 1976, p. 165).

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Essa metáfora que aproxima a “mer-cadoria” do Odisseu homérico tem umsignificativo rendimento conceitual. Tantoquanto o herói da Guerra de Tróia, a “mer-cadoria” perambula pelo mundo e nessaperegrinação transforma, pela experiência,e enriquece o mundo que toca, resultandodaí, que, ao final da jornada, tanto o heróiquanto o mundo estejam alterados, irreco-nhecíveis quando comparados com o queeram no início da jornada. E, no entanto,deformados, metamorfoseados, eles, a mer-cadoria e o Odisseu, são os mesmos queiniciaram o périplo, apesar de agora apre-sentarem-se transformados, seja como oforasteiro maltrapilho que chega a Itaca,mas que ainda é Ulisses, seja como O capi-tal, que não é, apesar de seu fastígio, senão“coleção de mercadorias”.

Lembre-se, mais um pouco, da Odis-séia. Ela registra os dez anos posteriores aofim da Guerra de Tróia, que também dura-ra dez anos, em que o herói, Ulisses, vagapelo mundo como condenação por suaofensa ao deus Posseídon. Diz Finley:

Havendo ofendido ao deus Posseídon, teveque vagar por outros dez anos antes de serresgatado, em grande parte por intervençãode Palas Atena, e de poder voltar à Itaca.Foi esta segunda década que deixou seupovo perplexo. Ninguém em toda Héladesabia o que havia acontecido ao Odisseu,se havia morrido em sua viagem de regres-

so de Tróia, se estava vivo em algum lugardo mundo exterior. Esta incerteza estabe-leceu a base do segundo tema do poema, ahistória dos pretendentes (Finley, 1961, p. 56).

Há outra implicação conceitual im-portante decorrente da utilização da metá-fora da Odisséia para apreender a “exposi-ção” da crítica da economia política. Ulis-ses incógnito e irreconhecível em sua pró-pria casa, depois dos longos anos de ausên-cia, envelhecido e enriquecido de experiên-cias, só é, afinal, reconhecido por uma cica-triz. Erich Auerbach relata assim a passagem:

Os leitores da Odisséia lembram da bempreparada e emocionante cena do cantoXIX, na qual a velha ama Euricléia re-conhece Ulisses, que regressa à sua casa, ede quem tinha sido nutriz, por uma cica-triz na coxa. O forasteiro tinha-se granje-ado a benevolência de Penélope; segundo oseu desejo, ela ordena à governanta que lhelave os pés, segundo é usual nas velhas es-tórias, como primeiro dever de hospitali-dade para com o viandante fatigado.

[...] Logo que a anciã apalpa a cicatriz, eladeixa cair o pé na bacia, com alegre sobres-salto; a água transborda, ela quer prorrom-per em júbilo; com silenciosas palavras delisonja e ameaça Ulisses a contém; ela co-bra ânimo e oprime o movimento. Penélope,cuja atenção tinha sido desviada do acon-tecimento, aliás, pela previdência de Ate-néia, nada percebeu (Auerbach, 1971, p. 1).

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O que se quer apontar aqui é que oreconhecimento de Ulisses, o que permiteque ele seja reconhecido, ou seja, sua iden-tidade, sua íntima e indescartável natureza,não está em sua aparência, em seu aspectofenomênico imediato. De fato, a essência doherói, sua verdadeira essência, só é possívelser vislumbrada pelo que nele é defeito, de-formação: a cicatriz que o singulariza.

Na exposição da crítica da economiapolítica, é preciso reconhecer o mesmo mo-vimento. O “Capital”, termo da odisséiada categoria mercadoria, apresenta-se, à pri-meira vista, como tendo muitas outras di-mensões que a de simples mercadoria pro-saica e banal. E, no entanto, o capital, po-deroso senhor do mundo burguês, não émais que mercadoria, mercadoria que semultiplicou, que foi acumulado. O capital,como Ulisses, só revela sua natureza es-sencial, sua identidade efetiva, pela irrup-ção de uma modalidade específica de pre-cariedade. No caso do capital, essa defor-midade decorre de sua insopitável busca daacumulação, de sua incontornável avidezcompulsória pelo lucro, de que resultam asuperprodução de mercadorias, a supera-cumulação, a crise, a qual é, assim, o equi-valente funcional da “cicatriz de Ulisses”, apresentificação de sua inescapável condi-ção de “coisa”, que por algum tempo é ca-paz de transcender sua inerte condição e

como que adquirir vida, multiplicar-se co-mo valor e como riqueza, por absorvertrabalho, por ser trabalho humano coagu-lado, sob a forma de mercadoria, mas, que,no entanto, não pode assegurar para sem-pre seu conteúdo valor, seja porque a con-corrência entre os capitais força uma per-manente desvalorização das mercadorias,seja porque essa mesma insofreável con-corrência leva à superprodução de valoresde uso, que, assim acrescidos, não podemser sancionados pela base real de valoriza-ção, que é dada pela dimensão valor de tro-ca, ou valor propriamente dito.

Foi também Karel Kosik quem mos-trou as consonâncias entre o tema da “odis-séia” referido tanto ao “romance de for-mação”, seja em sua vertente francesa, como Emílio, de Rousseau, seja em suas mani-festações alemãs, com Goethe e Novalis,quanto às obras no campo filosófico e ci-entífico como a Fenomenologia do Espírito, deHegel, e O Capital, de Marx (Kosik, 1976,p. 166).

Kosik diz que terá sido Josiah Roy-ce, em texto de 1919 – “Lectures on Mo-dern Idealism” – o primeiro a apontar aconexão entre a Fenomenologia do Espírito deHegel e o “Bildungsroman alemão” (Ko-sik, 1976, p. 166). Antes disso, no início doséculo XIX, Pushkin, o grande poeta rus-so, diz Georg Lukács, já estabelecera a rela-

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ção entre a literatura de Goethe e a literatu-ra da antiguidade clássica. Pushkin disse ser“o Fausto a Ilíada da vida moderna”, nosentido em que, diz Lukács:

Transcende os marcos do ‘pequeno mun-do’ da tragédia de Margarida e chega ao‘grande mundo’ de domínio da vida pelohomem moderno (Lukács, [s. d.], p. 69-70).

Mesmo Novalis (Georg Friedrichvon Hardenberg), um dos grandes nomesinauguradores do romantismo alemão, quereprovava seus compatriotas do períodoiluminista por seus excessos cerebrinos, re-conhece em alguns deles uma característicadecisiva:

Poucos artistas existentes entre nós, tãoúnicos, tão extraordinários, que, com segu-rança, podemos contar que entre nós sãocriadas as obras artísticas mais brilhantes,pois enquanto enérgica universalidade ne-nhuma nação pode competir conosco (Nova-

lis, 1984, p. 129).

É esta “enérgica universalidade”o que anima tanto a obra de Goethe quantoa de Novalis quanto a de Hegel, para tomartrês grandes autores que, tendo sido con-temporâneos (Goethe – 1749-1832; Hegel– 1770-1831; Novalis – 1772-1801), realiza-ram obras em muito diversas do ponto devista de suas motivações e conteúdos, ain-da que igualmente exemplares em buscar

fazer da vida intelectual um testemunho dodesejo de melhoramento da humanidade.

Não será equívoco ver a mais exem-plar manifestação daquela “enérgica univer-salidade”, no campo da literatura, na trilogiade Wilhelm Meister, de Goethe. O primeirolivro A missão teatral de Wilhelm Meister, tam-bém conhecido como Ur-Meister, foi escri-to entre 1777 e 1785, e só publicado em1911; o segundo, Os anos de aprendizado deWilhelm Meister, foi publicado entre 1795 e1796; o terceiro, Os anos de peregrinação deWilhelm Meister, foi publicado entre 1827 e1829. Nos três livros, em particular no se-gundo, que é o, formalmente, mais bemacabado, estão interligadas todas as gran-des questões de sua época. Para dizer comMárcio Suzuki:

O romance não é, na verdade, a narrativada vida de uma única personagem, mas deuma ‘individualidade plural’, e nisso resi-de a genialidade de Wilhelm Meister : [...]A individualidade construída pelo roman-cista não é uma pálida imagem do criador,mas a coesão orgânica interna de um cará-ter plural: [...] (Suzuki, 1998, p. 114).

Esse caráter plural do personagem,que, sendo uno, é capaz de abrigar o múlti-plo, faz da “forma romance” a epopéiapossível de um tempo marcado pela aliena-ção absoluta, a alienação imposta pela divi-são do trabalho e pela truncada sociabilida-de capitalista.

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Friedrich Schelegel (1772-1829), ou-tro grande nome do romantismo alemão,filósofo, crítico e romancista, também des-tacou, no Wilhelm Meister, de Goethe, a ca-pacidade do escritor de construir uma indi-vidualidade, que se fraciona, que se divideem várias pessoas, e assim capacita-se a re-presentar o mundo em sua multiplicidade(Schlegel, 1994, p. 144). Ou como disseMárcio Suzuki:

O romance é por isso a forma mais ade-quada para a Darstellung da dupla sé-rie da reflexão: o indivíduo pelejando con-cretamente na vida, espelhando em si ummundo inteiro se une ao narrador onisci-ente e distante num todo orgânico (Suzuki,

1998, p. 115).

O ciclo de Wilhelm Meister marcouuma geração, ensejou “réplicas” como a deNovalis e seu Heinrich von Ofterdingen, “roman-ce de formação”, que restou incompleto,foi publicado postumamente, em 1802. Mo-tivou tradução filosófica, que levou aindamais longe aquela enérgica universalidade,que é a Fenomenologia do Espírito, de Hegel,publicada em 1807, e que é “o romance deformação” da consciência: “A viagem daconsciência natural que atinge à verdadeiraciência” ou a “viagem da alma que atraves-sa a série das suas formas como uma sériede etapas”, a fim de que, “com plena expe-riência de si mesma”, possa alcançar o “co-

nhecimento daquilo que ela é por si mes-ma” [...] (Hegel, apud Kosik, 1976, p. 166).

Sabe-se que o Heinrich von Ofterdin-gen, de Novalis, é a resposta do romantismoao “romance de formação” classicista deGoethe, que teria desvalorizado a poesia,ao privilegiar, quase que exclusivamente, osgrandes problemas políticos e sociais daépoca. O herói de Novalis, um trovador doséculo XIII, que vivia na corte de Frederi-co II, é também um odisseu, um homemque viaja, vive, experimenta. Mas, ao con-trário da Wilhelm Meister, cuja peregrina-ção e aprendizagem têm um sentido públicoe civil, trata-se da busca do aperfeiçoa-mento teatral com o propósito de educa-ção nacional e universal, o herói de Novalispersegue o inefável, a mística “flor azul”,essência do poético, manifestação de umideal irredutível à razão luminosa e diurnade Goethe.

É como parte dessa mesma matriz,que gerou Wilhelm Meister, de Goethe, quenasceu a Fenomenologia do Espírito, de Hegel.Essa matriz, esse solo ideológico, político ecultural é o mesmo que nutriu a RevoluçãoFrancesa e sua profunda influência sobre opensamento alemão. Diz Lukács:

O velho Hegel, o mesmo cujas palavras so-bre a vitória inevitável da prosa capitalis-ta acabamos de escutar, diz o seguinte so-bre o período da Revolução Francesa: ‘Tra-ta-se de uma magnífica aurora. Todos os

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seres cogitantes celebraram esta época. Na-quele tempo reinava uma sublime emoção,um entusiasmo do espírito estremeceu omundo como se houvesse chegado o momen-to da verdadeira reconciliação entre o divi-no e o mundo’ (Lukács, 1972, p. 61).

A Revolução Francesa permitiu quese vislumbrasse um mundo redimível. Éessa a motivação, a força imantadora quefez luzir a razão, que, ousando se pôr nomundo e a tudo revelar, abriu caminho pa-ra a postulação da plena emancipação hu-mana. Nesse sentido, vejam-se tanto os“romances de formação”, como a Fenome-nologia do Espírito, de Hegel, como os sinaisda abertura de uma nova jornada da huma-nidade, auspiciosa porque liberta das amar-ras do Antigo Regime. A Fenomenologia, no-va odisséia, faz da consciência o herói pere-grinador, que, experimentando o mundo, orevela, transforma-o, transformando-se tam-bém nessa mesma interação. Diz Lukács:

Na Fenomenologia, Hegel expõe o pro-cesso através do qual a consciência do ho-mem surge da interação entre suas apti-dões internas e o mundo ambiente, o qualfoi em parte gerado por sua própria ativi-dade, em parte dado por natureza; alémdisso, expõe como a consciência – após in-ter-relações análogas mas do tipo mais ele-vado – se desenvolve até chegar à auto-consciência; e mostra também como, dessedesenvolvimento do homem, deriva o espí-

rito enquanto princípio determinante docaráter essencial do gênero humano (Lukács,

1979, p. 31).

Reconhecer “afinidades eletivas” en-tre A Odisséia, os “romances de formação”e a Fenomenologia do Espírito não parece ofe-recer dificuldades maiores. Mais desafianteé incluir nessa série, como faz Karel Kosik,o livro O capital como compartilhando omesmo universo espiritual daquelas outrasobras, todas elas “odisséias singulares”. Naepopéia homérica, o herói em sua “volta”para casa perlabora um caminho, que é co-mo uma enciclopédia da antiguidade clássi-ca, um inventário daquela “bela totalidade”em que o sujeito e o mundo pareciam con-denados à perfeita fusão. Nos “romancesde formação”, o sujeito, herói prosaico emsua presentificação burguesa, educa-se pa-ra criar e recriar o mundo. O Emílio, deRousseau, o Wilhelm Meister, são a postula-ção da possibilidade de um mundo efetiva-mente humanizado. A Fenomenologia do Es-pírito é a epopéia da “enérgica universalida-de” posta como sujeito –

como processo de ‘formação’ (cultura ouBildung) do sujeito para a ciência. E en-tende-se que a descrição desse processo de-va referir-se necessariamente às exigênciassignificativas daquela cultura que, segun-do Hegel, fez da ciência ou da filosofia aforma rectrix ou a enteléquia da sua his-tória: a cultura do Ocidente (Vaz, 1992, p. 11).

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Kosik nos convida a pensar O capitalcomo uma odisséia:

A odisséia da praxis histórica concreta, aqual passa de seu elementar produto detrabalho através de uma série de formasreais, nas quais a atividade prático-espiri-tual dos homens é objetivada e fixada naprodução, e termina a sua peregrinaçãonão com o conhecimento daquilo que ela épor si mesma, mas com o a ação prático-revolucionária que se fundamenta nes-te conhecimento (Kosik, 1976, p. 166).

Nessa nova epopéia é, sobretudo,surpreendente a escolha do sujeito, do he-rói encarregado de desvelar o mundo. Nummundo, o do pleno domínio do capital, emque tudo foi coisificado, em que as coisasparecem personalizadas e as pessoas coisi-ficadas, neste mundo de “perfeita venalida-de e de total manipulabilidade”, como ocaracterizou Kosik, a forma possível de re-produção categorial deste mundo é a queconvoca um sujeito impessoal, a mercado-ria, e que acompanha e descreve todo o iti-nerário de sua presentificação no mundo:

A mercadoria, que a princípio se manifestacomo objeto exterior ou como coisa banal,desempenha na economia capitalista a fun-ção de sujeito mistificado e mistificador,cujo movimento real cria o sistema capita-lista. Quer o sujeito real deste movimentoseja o valor ou a mercadoria, o fato é que

os três volumes teóricos da obra de Marxacompanham a ‘odisséia’ deste sujeito, ouseja, descrevem a estrutura do mundo(economia) capitalista tal como o seu mo-vimento real a cria (Kosik, 1976, p. 164-165).

Essa questão, a possibilidade de afir-mar a legitimidade heurística da mercado-ria como ponto de partida de O capital re-mete, então, a uma exigência de ordem ló-gica-conceitual forte, é isso que se vai fazerem seguida.

2_ A questão do ponto departida da ciência

Esta questão, a do ponto de partida legí-timo, isto é, não arbitrário ou tautológico,da ciência, da filosofia, foi a que Hegel sepropôs resolver para afirmar a superiori-dade de seu “sistema filosófico” em rela-ção aos que o precederam, em particularcom relação ao criticismo kantiano, quereivindicava ter encerrado, definitivamen-te, a longa vigência da metafísica.

A resposta de Hegel é escandalosa-mente simples e potente. Com efeito, He-gel dirá que a solução de Kant para cance-lar a metafísica ao negar a possibilidade deconhecimento da “coisa-em-si” baseava-seem operação que acabava por pressupor al-go que explodiria, de imediato, a fortalezalógica que Kant imaginara ter construído.

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Kant construiu seu “sistema” comocrítica, seja da tradição metafísica, seja doracionalismo cartesiano, seja do empiricis-mo humano. É bastante forte a influênciade Hume sobre o pensamento de Kant.Menos óbvia, mas não menos importante,é a presença de Rousseau entre as fontesformadoras do criticismo kantiano. Contu-do, é em Rousseau que Kant vai buscar otempero que o capacitará a ir além da “purareflexão”, da investigação que se compra-zia com a pura especulação. Diz Kant cita-do por Cassirer:

Eu mesmo sou, por inclinação, um pesqui-sador. Sinto uma grande sede de conheci-mento e a afanosa inquietude de seguiradiante, e qualquer progresso produz emmim uma grande satisfação. Houve umtempo em que acreditava que tudoisto podia constituir a honra da hu-manidade e em que se desprezava a plebeignorante. Porém Rousseau livrou-medo meu erro. Aquela quimérica superi-oridade desapareceu; eu aprendi a honraro homem e considerar-me-ia muito abaixode qualquer operário se não acreditasseque os esforços do pensamento podem darum valor aos demais e contribuir para res-taurar os direitos da humanidade.

A missão da filosofia já não consiste, ago-ra, em enriquecer ao homem com um tesou-ro enganoso de saber especulativo, senãoem circunscrever-lhe a órbita de seu desti-

no moral e necessário (Kant apud Cassirer e

Cassirer, 1956, p. 558 e 559, v. 2).

O projeto “crítico” de Kant desdo-brou-se na tríade: “crítica da Razão Pura”,“crítica da Razão Prática” e “crítica do Juí-zo”, que configuram respectivamente: umaepistemologia, uma ética e uma estética.

Para Kant, tratava-se na “crítica daRazão Pura” de buscar estabelecer as con-dições de possibilidade do conhecimento apartir da depuração de todos os pressupos-tos que não fossem perfeitamente legíti-mos, no sentido de que imunes tanto ao so-lipsismo cartesiano quanto aos impasseslógicos do empiricismo de Hume. Levadasàs últimas conseqüências as exigências hu-meanas, que pretendem livrar o pensamen-to de todo o engano das falsas pressuposi-ções, acaba por estabelecer a “crença” comoúnico e efetivo fundamento da filosofia.

Kant buscou fundar sua crítica combase em pressupostos perfeitamente legíti-mos, irretorquíveis e incontrastáveis, que elechamou de juízos sintéticos a priori, que“não são conceitos empíricos, derivados deexperiências externas”, senão que intuiçõesque antecedem, no sujeito, a qualquer repre-sentação. Diz Hegel citando Kant: “Pois,para relacionar minhas sensações com algoexterior a mim, pressuponho o espaço”.Em termos parecidos fala Kant do tempo:

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Para poder representar algo externo emdistintos lugares ou tempos, é necessárioque preceda à representação do espaço e dotempo; dito de outro modo, esta representa-ção não pode tomar-se da experiência, se-não que a experiência só é possível por meiodesta representação pré-estabelecida.

Isto é,

o tempo e o espaço que poderiam aparecercomo o objetivo, posto que o modo particu-lar de realizá-lo corresponde já de prontoao sentimento subjetivo, não são nada em-píricos, senão que a consciência tem já, ne-la mesma, o espaço e o tempo (Kant apud He-

gel e Hegel, 1977, p. 425-426, v. 3).

Estabelecidos os pontos de partidanecessários e irretorquíveis, o espaço e o tem-po, Kant julgou ter cancelado todas as es-córias da velha metafísica, convocando co-mo suporte de sua filosofia crítica a magní-fica ciência newtoniana, única a autorizar,legitimamente, a operação com as categori-as tempo e espaço.

Foi exatamente nesse ponto queKant reputava a base de seu sistema, a con-vocação da ciência newtoniana, que Hegelviu falha comprometedora. Disse Hegel:“Kant quer afastar a metafísica, para istomobilizou a ciência, a matemática, a física”.Ora, tanto a matemática, quanto a física,quanto qualquer ciência, é certo, pressu-põem alguma filosofia, alguma concepção

de mundo, mesmo quando essa não é ex-plicitada, sugerida, mesmo quando não setem consciência de sua incancelável pre-sença, mesmo quando se a rejeita. De talmodo, que a operação crítica kantiana quebuscou interditar a metafísica, pela convo-cação da ciência, ao fazê-lo acabou por re-introduzir a metafísica em condição aindamais problemática porque de modo clan-destino e inconsciente.

A solução desse impasse, o modonecessário legítimo e não arbitrário de ex-posição da ciência, diz Hegel, é tomar co-mo ponto de partida a totalidade, o todo talcomo aparecer num primeiro momento, co-mo abstração, como pura universalidade,como totalidade simples, a qual medianteum complexo de mediações, mediante a pe-regrinação do conceito, mediante o ingentetrabalho do conceito, desdobrar-se-á emparticularidade e, finalmente, em singu-laridade, no concreto universal. Eis ocaminho da consciência, o caminho doconceito, o caminho da filosofia:

A consciência, ao abrir caminho rumo àsua verdadeira existência, vai atingir umponto onde se despojará de sua aparência:a de estar presa a algo estranho, que é sópara ela, e que é como um outro. Aqui aaparência se torna igual à essência, demodo que sua exposição coincide exata-mente com esse ponto da ciência autêntica

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do espírito. E, finalmente, ao apreendersua verdadeira essência, a consciência mes-mo designará a natureza do próprio saberabsoluto (Hegel, 1992, p. 73).

Na Ciência da Lógica, Hegel estabele-ce as condições para o começo da ciência.Diz ele:

Dito conceito, por si mesmo, é tão simples,que este começo, como tal, não precisa ne-nhuma preparação, nem introdução maisampla. [...] (Hegel, 1968, p. 72).

E, no entanto, esse conceito, esse pontode partida, simples, singelo, deve ser ca-paz de conter todas as determinações es-senciais do ser, tal como essas determi-nações podem aparecer no momento emque o ser é pura consciência imediataem-si, que ainda não saiu de si para seapresentar como consciência-fora-de-si, e que ainda espera a realização daodisséia do conceito, que é quando a cons-ciência-fora-de-si reconhece-se comomomento alienado da consciência, quepara realizar-se tem que sair de si mesma,pôr-se no mundo, como natureza e histó-ria, para nessa condição e mediante a ex-plicitação de suas intrínsecas possibilida-des desalienar-se, descobrir-se capaz dereintegrar-se, reintegração que é a reali-zação do saber absoluto.

Muitos autores consignaram, e o pró-prio Marx o registrou em carta, o quanto

lhe fora útil a retomada da Lógica de He-gel no processo de redação de O capital. Maisque um detalhe, essa questão, a importân-cia da forma dialética de exposição de O ca-pital, é crucial, definindo, de fato, tanto a di-ferença específica do projeto marxiano comrelação às outras teorias, quanto o alcance edesdobramentos de seu pensamento.

Neste texto, argumenta-se que a es-colha da mercadoria como ponto de par-tida de O capital é o momento-chave, efe-tivamente, consolidador do específico daexposição dialética da crítica da economiapolítica. Kosik aponta com clareza as con-dições que a mercadoria tem que satisfazerpara ser o ponto de partida necessário da“odisséia”, que é O capital. Diz Kosik:

A mercadoria pôde servir de ponto de par-tida da exposição científica porque já seconhecia o capitalismo no seu conjunto. Doponto de vista metodológico isto significa odescobrimento de uma conexão dialéticaentre um elemento e a totalidade, entre umembrião não desenvolvido e o sistema de-senvolvido e o sistema desenvolvido e umfuncionamento (Kosik, 1976, p. 164).

O capital tem sido visto como repo-sição do tema da “odisséia”, como “ersatz”de um “romance de formação”. Cessamaqui as analogias. Ao fim e ao cabo, en-quanto na “odisséia” e nos “romances deformação” o tema da jornada é o apazigua-

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mento do herói, sua reconciliação consigomesmo em O capital, não há possibilidadede solução que não seja a destruição não sódo “herói problemático”, a mercadoria, ede todas as formas de sua presentificação(valor, dinheiro, capital), bem como dasinstituições que o engendram e lhe dão su-porte: o Estado burguês, a propriedade pri-vada, as classes sociais, a divisão do traba-lho e o trabalho alienado.

À “descoberta-eleição”, por Marx,da mercadoria como ponto de partida daexposição da crítica da economia políticavai chamar-se, aqui, “Outubro” de Marx.

3_ O “Outubro” de MarxEm 1850, já morando em Londres, Marxretomou seus estudos de economia polí-tica. Em 1851, teve início a colaboraçãosistemática de Marx e Engels para jornaisdos Estados Unidos, em particular, o NewYork Daily Tribune, e o Die Revoluti-on, editado em alemão, em Nova York,por Joseph Widemeyer, onde Marx pu-blicou, por exemplo, O 18 Brumário deLuis Bonaparte. Obrigado, a partir de1851, por dever de ofício, a acompanharos acontecimentos econômicos e políti-cos, além de suas responsabilidades e ta-refas como dirigente político, Marx fezdessas exigências a matéria-prima de umatarefa intelectual enciclopédica, cujo resul-

tado é a crítica da economia política, en-tendida como movimento de superação daordem social capitalista em sua totalidade.

Como jornalista, responsável por co-brir aspectos da vida política e econômicanão só da Europa, Marx foi obrigado auma rotina de trabalho, de coleta e análisede dados, que o mantiveram atualizado so-bre as principais questões do seu tempo.Suas constantes visitas ao Museu Britâni-co e à sua notável biblioteca armaram-nopara a tarefa ciclópica de realizar uma se-gunda “crítica da economia política”, queele iniciara em 1847, com Miséria da Filoso-fia, Trabalho assalariado e capital, e que depoisde exaustivos estudos ele se apressou emconcluir, “antes do dilúvio”, que é comoele antevia que seria a “crise econômica ini-ciada em 1857”. Diz Rosdolsky:

É relevante lembrar que a decisão de redi-gir os Grundrisse e a pressa febril com quea tarefa foi cumprida (o enorme manuscri-to foi concluído em nove meses, entre julhode 1857 e março de 1858) decorreram es-pecialmente do advento da crise econômicade 1857. Tal crise encheu de esperanças o‘partido dos dois homens na Inglaterra’,como Gustav Mayer, biógrafo de Engels,denominara os dois amigos. Era naturalque ‘antes do dilúvio’ – ou seja, antes docomeço da esperada revolução européia –Marx quisesse colocar no papel pelo me-nos os traços fundamentais de sua teoria(Rosdolsky, 2001, p. 25).

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O resultado desse trabalho é o livroGrundrisse der Kritik des Politischen Oekonomie(Fundamentos da Crítica da Economia Política),cuja primeira edição teve início em 1939.

A importância dos Grundrisse pa-ra uma justa compreensão do significadoda “crítica da economia política” de Marxfoi estabelecida por Rosdolsky, que afir-mou a existência de dois momentos naconstrução da “crítica da economia políti-ca”, uma primeira fase, de 1844 e 1846, e asegunda fase, representada pelas obras de1847/49 (Miséria da Filosofia; Trabalho assala-riado e capital e Manifesto comunista), em que:

Já (se) revela toda a estatura de Marx, uminvestigador independente, original em eco-nomia, consciente ao mesmo tempo de suaproximidade e de sua profunda oposição àeconomia clássica. Em alguns temas eleainda não superara as concepções de Ri-cardo, que mais tarde reconheceria como er-rôneas ou parciais, como por exemplo a teo-ria do dinheiro ou a da renda da terra.Tampouco tinha elaborado, nessa época,sua teoria específica sobre o lucro. Mesmoassim, ‘em torno de 1848 estavam traça-das as linhas fundamentais da teoria damais valia, pedra angular de sua doutrinaeconômica. Restava a tarefa de desenvolvera teoria em detalhes, processo que podemosacompanhar nos Grundrisse’ (Rosdolsky,

2001, p. 21-22).

Para Rosdolsky, desde maio ou ju-nho de 1851, Marx já se sentia autorizado aredigir sua “crítica da economia política”(Rosdolsky, 2001, p. 22), tarefa a que ele sededicou, a partir daí, mas cujos resultadosse perderam, restando, afinal, apenas o tex-to dos Grundrisse que foi redigido a partirde julho de 1857.

As obras de economia política deMarx, elaboradas entre 1847/49, foram ca-racterizadas por Maurício Coutinho comode “transição” e caracterizavam-se ainda,no fundamental, pela ausência da noção decapital, que viria a desempenhar o papelcentral na pluramente constituída críticamarxiana (Coutinho, 1997 p. 41). Tem ra-zão Maurício Coutinho tanto em enfatizar acentralidade da categoria capital para a crí-tica da economia política quanto em apon-tar as diversas dimensões do conceito decapital: a) como gerado pelo trabalho e co-mo antítese deste; b) como determinadohistoricamente; c) como “adiantamento” ecomo valor; d) como processo de produ-ção de valor excedente mediante a explora-ção do trabalho; e) como sujeito (Couti-nho, 1997, p. 47-53).

Será nos Grundrisse que essas di-versas manifestações do capital, efetivamen-te, apresentar-se-ão plenas de significadospermitindo o desenvolvimento conceitual deoutras dimensões do capital que se é força

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expansiva, valor que se autovaloriza, é tam-bém força destrutiva, que, ao realizar-se,cria as condições para a sua desaparição,pela “dissolução do modo de produção eda forma de sociedade baseada no valor datroca”. Nas palavras de Marcos Muller, naapresentação do livro de Jorge Grespan –O negativo do capital –,

o conceito de crise é inerente ao conceito decapital e deriva da sua estrutura contradi-tória, de modo que ele se constitui correlati-vamente à determinação progressiva e às for-mas de manifestação da contradição ima-nente do capital (Müller, 1998, p. 14-15).

Em março de 1858, Marx encerroua redação dos Grundrisse. Estão postosali os “fundamentos” da “crítica da econo-mia política”, seus elementos principais.Mais que isso, os Grundrisse, que não fo-ram redigidos para publicação imediata,permitem-se avançar temas que demanda-riam estudos e desdobramentos conceitua-is posteriores como os referentes aos “li-mites históricos da lei do valor”:

Conforme o plano original de Marx, o úl-timo livro de sua obra deveria investigaros fatores que prenunciam a ‘superação doque existe’ e impulsionam o ‘surgimento deuma nova forma histórica’. Deveria com-por-se da transição ao socialismo... (Rosdo-

lsky, 2001, p. 345).

Os Grundrisse constituem a pri-meira exposição de conjunto da “crítica daeconomia política”, a primeira em que Marxdemonstrou ter se apropriado, dialetica-mente, de todo o material produzido pelaeconomia política clássica superando-a, sen-do a marca distintiva dessa superação a cen-tralidade e a reconceptualização, que Marximpõe ao conceito de capital. É certo que oconceito de capital já aparecera antes naobra de Marx, desde 1847, no Trabalho assa-lariado e capital, Marx já antevira o conceitode mais-valia. Diz Mandel:

É em Trabalho Assalariado e Capitalque Marx pressentiu pela primeira vez oessencial de sua teoria da mais-valia, semutilizar esse termo e sem exprimir-se demaneira precisa. O Capital... se conservae aumenta por sua troca com o trabalhovivo... O operário recebe meios de subsis-tência em troca de seu trabalho, mas o ca-pitalista, em troca de seus meios de sub-sistência, recebe trabalho; a atividade pro-dutiva do operário não somente destitui oque ele consome, mas dá ao trabalho acu-mulado um valor maior do que aquele queele possuía antes (Mandel, 1968, p. 56).

Essa “intuição” do conceito de mais-valia se dá num contexto em que a diferen-ciação conceitual, decisiva, entre trabalho eforça de trabalho ainda não foi estabeleci-da, sendo nesse sentido, o modo possível

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de expressar a mais-valia a partir de umabase conceitual ainda não de todo especifi-camente marxiana.

Os Grundrisse representam, nessesentido, o locus de materialização da críti-ca da economia política na medida em queé o locus da materialização dos conceitosespecificamente marxianos de capital emais-valia.

Em 11 de março de 1858, Marx es-creve a Lassalle dando conta do plano deredação de sua “Economia Política” comochamava, às vezes, seu trabalho, que deve-ria incluir seis livros. Em 2 de abril de 1858,em carta a Engels, ele precisa o conteúdodos seis livros que seriam: 1) Do capital; 2)Propriedade da terra; 3) Trabalho assalariado; 4)Estado; 5) Comércio internacional; 6) Mercadomundial. Sendo que o livro O capital dividir-se-ia em quatro partes: a) capital em geral;b) concorrência; c) o crédito e d) o capitalpor ações. O plano de redação estabeleciaque o material seria publicado em fascícu-los, sendo o primeiro – “o capital em ge-ral”, subdividido em 1) “Valor”; 2) “Di-nheiro”; 3) “Capital”. Esse plano de re-dação foi alterado, resultando de fato napublicação de um primeiro fascículo – pu-blicado em 1859, que é a Contribuição à Críti-ca da Economia Política, que continha o mate-rial referente ao valor e ao dinheiro, e naredação de um segundo fascículo, que aca-

bou não sendo publicado, ficando inédito,constituindo-se nos cadernos de I a V en-feixados sob o título geral de Manuscritos de1861-63, num total de 23 cadernos, que in-cluem o material que foi publicado porKantsky com o título de Teorias da Mais-Valia (Cadernos de VI a XV e XVIII) e umconjunto de textos (Cadernos XVI e XVII,XXIX, XX, XXI, XXII e XXIII), que fo-ram utilizados por Marx e por Engels paraa redação e edição dos Livros I, II e III deO capital (Marx/Engels, 1974c, p. 76-81;Marx, 1979).

Tendo publicado a Contribuição à Crí-tica da Economia Política, em 1859, Marx fi-cou o ano de 1860 inteiramente absorvidona tarefa de se defender das acusações ca-luniosas de Karl Vogt, que, se prosperas-sem, trariam sérios prejuízos para o partidode Marx e Engels. Em 1861 retoma a sua“crítica da economia política” em um es-forço sistemático e abrangente que incluirámesmo uma “história crítica do pensamen-to econômico” a partir de sua decisiva des-coberta, que é o conceito de mais-valia, quefunciona como parâmetro de aferição dosconteúdos efetivamente científico-raciona-is da economia política. Que Marx, entre1861 e 1863, se disponha a elaborar uma“história crítica do pensamento econômi-co” é a prova, se ainda restasse dúvida, deque ele considerava, em 1861-63, completa

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sua teoria, sua “crítica da economia políti-ca”, capacitando-o a confrontar-se com omelhor da economia política clássica deum ponto de vista superior, porque, tendoabsorvido o que do racional e científico es-se pensamento produziu, rejeitou o quemerecia ser rejeitado desse pensamento, aomesmo tempo que introduziu um pontode vista, categorias e perspectivas radical-mente novos. É esse, por exemplo, o casoda Teoria do Valor, destacado por IzaakRubin, em que Marx não só dá respostasmais adequadas, teoricamente superiores,às dimensões substância e medida do va-lor, quanto inventa uma problemática no-va, especificamente marxiana, que é a refe-rente à forma do valor (Rubin, 1974).

Em 4 de outubro de 1864, numacarta a Kliengs, Marx diz que esteve doentedurante o período de 1863/64, o que o im-pediu de terminar o livro O capital:

Agora espero terminá-lo, ao fim de unstantos meses e, acertar, no plano teórico,um golpe na burguesia que ela jamais po-derá responder (Marx/Engels 1974c, p. 113).

De fato, o livro em questão foi publi-cado em 1867, o Livro I de O capital, mas nãotrouxe apenas o referente ao capítulo sobreo capital, projetado para ser o segundo fas-cículo da Crítica da Economia Política, publica-da em 1859. Este novo O capital, cujo plano

Marx estabeleceu em carta a Kugelmann,em 13 de outubro de 1866, ficou assim:

Livro I. Processo de Produção do Capital;Livro II. Processo de Circulação do Capi-tal. Livro III. Formas do Processo de Con-junto. Livro IV. Contribuição à Histó-ria da Teoria [...] Acredito ser necessáriocomeçar ab ovo no primeiro livro, isto é,resumir em um só capítulo o referente àmercadoria e ao dinheiro de minha primei-ra obra editada por Duncker (Contribui-ção à Crítica da Economia Política)(Marx/Engels, 1974c, p. 120).

Resuma-se, então, o que importapara este texto: com a Contribuição à crítica daEconomia Política, de 1859, Marx completousua “segunda navegação”, deu-se a transi-ção da “Revolução de Fevereiro” para a“Revolução de Outubro”.

Assume-se aqui que há um mo-mento, identificável factualmente, em queMarx, definitivamente, completou o quefaltava para a exposição do específico deseu pensamento, de sua “crítica da econo-mia política”, num movimento conceitualque, enlaçando o conjunto da exposição,lhe dá o sentido sistêmico rigoroso, que lheconfere elegância e consistência. A exce-lência do itinerário conceitual construídopor Marx apresenta-se, exemplarmente, naprimeira frase, tanto da Contribuição à críticada Economia Política, de 1859, quanto do Li-

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vro I de O capital, de 1867, que estabelecemas condições de legitimidade do ponto departida dos dois livros, que é a análise damercadoria. É preciso, nesse caso forte-mente, levar a sério o quanto ele continuouvalorizando a exposição dialética, que eleaprendeu de Hegel e “superou”, e as estri-tas exigências que o método dialético im-põe quanto “ao ponto de partida”, quantoàs “condições de possibilidade” da exposi-ção dialética que obriga a que “o ponto departida da ciência” sendo simples e imedia-to, prescindindo de qualquer preparaçãoou introdução, seja ele próprio “totalidade”tal como essa pode ser apreendida imedia-tamente, antes que se lhe solicite, que se ma-nifestem suas diversas possibilidades, que,estando presentes desde o início, em germe,só podem manifestar-se na medida da ex-trinsecação de seus conteúdos, como umaplanta que:

não se perde numa transformação indefi-nida. Do seu germe, em que todavia se nãodistingue nada, sai uma multiplicidade, queno entanto já lá estava, inteiramente conti-da, se não de modo desenvolvido, pelo menosimplícito e idealmente (Hegel, 1974, p. 342).

São essas estritas exigências de rigorexpositivo que Marx se impôs na redaçãode O capital, e que ele resolveu pela escolhada mercadoria, como ponto de partida deO capital, na medida em que a mercadoria,

como a semente que prefigura a planta, é ocapital tomado em sua forma elementar deexistência. Diz Marx na Contribuição à críticada Economia Política:

À primeira vista, a riqueza burguesa apa-rece como uma enorme acumulação de mer-cadorias, e a mercadoria isolada como seumodo de ser elementar (Marx, 1974a, p. 141).

Em O capital, Livro I, a questão rea-parece ainda mais desenvolvida:

A riqueza das sociedades onde rege a pro-dução capitalista configura-se em ‘imensaacumulação de mercadorias’, e a mercado-ria, isoladamente considerada, é a formaelementar dessa riqueza. Por isso, nossainvestigação começa com a análise da mer-cadoria (Marx, 1968, p. 41).

Em texto de 1882, considerado pormuitos como o testamento intelectual deMarx – Glosas Marginais ao “Tratadode Economia Política” de Adolph Wag-ner –, ele é enfático ao dizer:

O senhor Wagner esquece também quepara mim não são sujeitos nem o ‘valor’nem o ‘valor da troca’, senão que é so-mente a mercadoria (Marx, 1977, p. 171).

Seria ocioso trazer aqui toda umaabundante comprovação da centralidadeda categoria mercadoria na “crítica da eco-nomia política” de Marx. É exatamente porestar ciente da centralidade do conceitode mercadoria na “crítica da economia

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política” de Marx, que é desconcertantedescobrir que só é quase às vésperas da pu-blicação da Contribuição à crítica da EconomiaPolítica, que Marx faz da “mercadoria” oponto de partida de sua “crítica”. Isto é,tendo iniciado sua crítica à economia polí-tica em 1847, Marx manteve parte do voca-bulário típico dessa corrente, mesmo ten-do rompido e superado o essencial de suasteses e conteúdos, como é o caso da cons-trução do conceito de mais-valia que ele, em-brionariamente, já desenvolvera nos anos1847/48. No entanto, para quem se apóiaem certas lições centrais de Hegel, comoaquela que manda não separar forma deconteúdo, não é irrelevante constatar atardia incorporação do conceito de merca-doria como ponto de partida da “crítica daeconomia política”.

Com efeito, manter o valor, comoMarx o fez até 1858, como ponto de parti-da da crítica é ainda não ter finalizado adefinitiva superação da economia políticaclássica, é ainda se manter, no campo deuma “duplicidade de poderes”, o poder deSmith e Ricardo confrontado pelo novopoder da teoria da mais-valia, numa situa-ção ambivalente em que, por um lado a teo-ria já está, no essencial, desenvolvida, masainda continuava a ser exposta de um mo-do impróprio para uma perspectiva teórica,que se baseia na idéia de que, se há algo

novo a ser dito, este novo deve ser expres-so a partir de uma forma nova. No espe-cífico do que se discute aqui, a questão foiposta com exatidão por Marcos Lutz Muller:

Dialética significa n’ O Capital primeira-mente e, também, predominantemente, o mé-todo/modo de ‘exposição’ crítica das cate-gorias da economia política, o método de ‘de-senvolvimento do conceito de capital’ a partirdo valor, presente na mercadoria, enquantoela é a categoria elementar da produção ca-pitalista que contém o ‘germe’ das categoriasmais complexas (Müller, 1982, p. 19-20).

É possível acompanhar o itinerárioda construção da crítica da economia polí-tica de Marx por meio de sua correspon-dência. Assim, em carta para Engels, de 2de abril de 1858, depois da redação dosGrundrisse, que foram redigidos entre ju-lho de 1857 e março de 1858, referindo-seao seu plano de redação de sua “EconomiaPolítica”, Marx toma o valor como pontode partida da primeira seção do capital, OCapital em geral, “O Valor – reduzidopura e simplesmente a quantidade de tra-balho, o tempo como medida do trabalho”(Marx/Engels, 1974c, p. 77). Colocar a ques-tão nesses termos, expor sua “Crítica daEconomia Política” desse modo, significanão ter rompido ainda com o modo como aeconomia política clássica expunha os seusresultados. A correspondência de Marx so-

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bre temas econômicos registra o envio decartas em 9 de abril de 1858, para Engels;em 31 de maio de 1858, também paraEngels; em 12 de novembro de 1858, paraLassalle. É nesta última carta que Marx ex-plicita algo decisivo para o que se está argu-mentando aqui. Explicando a Lassalle as ra-zões do atraso no envio dos originais de Con-tribuição à crítica da Economia Política, Marxalega, depois de falar das agruras de sua saú-de precária e de suas dificuldades de sobre-vivência material, diz:

Porém, a verdadeira razão é a seguinte: amatéria a tinha diante de mim, tudo se re-duzia a uma questão de forma (grifo meuJ.A.P.). Em tudo o que escrevia ficavamanifesto em meu estilo minha enfermida-de de fígado. E tenho duas razões paranão tolerar que motivos de ordem médicavenham estropiar esta obra:

1. É o resultado de quinze anos detrabalho e, conseqüentemente, o fruto domelhor período de minha vida.

2. Apresenta, pela primeira vez, CI-

ENTIFICAMENTE, um ponto de vis-ta importante sobre as relações sociais. De-vo, pois, a nosso partido não depreciar acausa com um estilo deslustrado e falso,que é reflexo de um fígado doente. Não as-piro a elegância da exposição, senão só aescrever em meu estilo habitual, o que metem sido impossível durante os meses desofrimento, ao menos sobre este tema...(Marx/Engels, 1974c, p. 82-83).

Nessa carta a referência à forma e adiscussão que se segue, que está centradano estilo da exposição, parece circunscre-ver a questão a uma dimensão limitada ebanal da problemática da forma. Contudo,na carta seguinte de Marx, para Engels, em29 de novembro de 1858, ele diz:

Minha mulher está copiando de novo o ma-nuscrito, que não poderá sair antes do fimdo mês. As razões do atraso são: grandesperíodos de indisposição física, situaçãoque terminou agora com o inverno. Dema-siados problemas domésticos e econômicos.Finalmente: a primeira parte resultou maisimportante devido a que, dos dois primeiroscapítulos o primeiro (A MERCADORIA),não estava escrito em absoluto no projetoinicial, e o segundo (O DINHEIRO, ouA CIRCULAÇÃO SIMPLES) não esta-va escrito mais que em esquemas muitobreves que depois foram tratados com maisdetalhes do que eu pensara no princípio...(Marx/Engels, 1974c, p. 83).

É nessa carta de 29 de novembro de1858 que aparece, pela primeira vez, a Mer-cadoria como ponto de partida da “Críti-ca da economia política”. Tal inovação naexposição, a substituição do VALOR pelaMERCADORIA é mais que uma questãode estilo, de forma no sentido trivial do usoda palavra. É uma REVOLUÇÃO, é, de fato,o “Outubro” de Marx, a definitiva comple-mentação de sua superação da economiapolítica clássica. Começar com a MERCA-

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DORIA significa não só superar os termosda exposição de Adam Smith e Ricardo, domelhor da economia política, como colo-car a superação da forma mercadoria, docapitalismo, enfim, como objetivo indes-cartável da crítica da economia política, dopensamento e da prática do marxismo.

Começar a “crítica da economia po-lítica” pela mercadoria, significa, de fato,uma revolução conceitual que terá decisi-vas implicações teóricas, políticas, ideológi-cas e culturais. A escolha da mercadoria co-mo ponto de partida de O capital é, na ver-dade, um giro ontológico, que resultará emimportantes requalificações do marxismo.

Começar com a mercadoria, reco-nhecer nela o valor da sociabilidade capitalis-ta, reconhecer nela a manifestação exemplare inescapável do deletério, despótico e alie-nante da ordem social capitalista, é apontarpara a incontornável necessidade de supe-ração do mundo da mercadoria, como con-dição para a emancipação humana. Comefeito, ao fazer da mercadoria a força re-gente da sociedade capitalista e ao reconhe-cer essa força regente como a matriz gera-dora das iniqüidades características da or-dem social capitalista, Marx afasta qualquerpossibilidade de conciliação e de acomoda-ção à ordem burguesa, fazendo da supera-ção do mundo das mercadorias a pré-con-dição para a construção do mundo comoefetiva morada do homem humanizado.

Nesse sentido, a centralidade atribuí-da por Marx à necessidade de superação domundo das mercadorias, como pré-condi-ção do projeto emancipatório, é a mais con-tundente crítica tanto aos críticos quanto aossupostos adeptos de Marx que fizeram desua obra e de suas propostas uma sorte de“teoria da modernização”. É isto que JoséGuilherme Merquior identificou na visãode Ernest Gellner sobre o marxismo:

O que a ética protestante foi o marxismoseria hoje, isto é, um movimento social per-feitamente ascético e até repressivo queconduz de uma maneira até brutal deter-minada forma de modernização social rá-pida, uma determinada forma de indus-trialização forçada e acelerada e assim pordiante (Merquior, 1981, p. 13).

Marx não é o teórico da moderniza-ção, não buscou reformar ou construir o ca-pitalismo onde ele não estava. Seus com-promissos com a revolução socialista eramabsolutamente incontornáveis, e essa radi-calidade se manifesta, exemplarmente, emtoda as dimensões da vida social. Trata-se dedenunciar a mercadoria não só por suas im-plicações econômicas, mas de reconhecer oquanto sua lógica e suas exigências coloni-zaram deleteriamente a vida social, a vidapolítica e a vida cultural, transformadas emreinos da venalidade e da manipulabilida-de, da mentira e da impostura, da opressãoe da miséria, da exploração e da destruição.

João Antonio de Paula 189

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Referências bibliográficas

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Artigo recebido em fevereiro de 2008;aprovado em abril de 2008.