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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CLEIDE LACERDA DE BRITO O OLHAR DO EDUCADOR SOCIAL SOBRE A PERCEPÇÃO DA VIOLÊNCIA DOS JOVENS NA RUA VITÓRIA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CLEIDE LACERDA DE BRITO

O OLHAR DO EDUCADOR SOCIAL SOBRE A PERCEPÇÃO DA

VIOLÊNCIA DOS JOVENS NA RUA

VITÓRIA

2007

2

CLEIDE LACERDA DE BRITO

O OLHAR DO EDUCADOR SOCIAL SOBRE A PERCEPÇÃO DA

VIOLÊNCIA DOS JOVENS NA RUA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais.Orientadora: Profª. Drª. Juçara Luzia Leite.

VITÓRIA

2007

3

CLEIDE LACERDA DE BRITO

O OLHAR DO EDUCADOR SOCIAL SOBRE A PERCEPÇÃO DA

VIOLÊNCIA DOS JOVENS NA RUA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais.

Aprovada em 26 de Outubro de 2007.

COMISSÃO EXAMINADORA:

______________________________

Profª Drª Juçara Luzia LeiteUniversidade Federal do Espírito Santo Orientadora

______________________________

Profª Drª Janete Luzia Leite

Universidade Federal do Rio de Janeiro

______________________________

Prof. Dr. Hiran Pinel

Universidade Federal do Espírito Santo

______________________________

Prof. Drª Luiza Mitiko Camacho

Universidade Federal do Espírito Santo

4

A Lais e a Aldo Lacerda (in memorian). Nunca, por mais que

eu viva, conseguirei dizer o quanto vos amo.

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, por seu amor incondicional.

Aos jovens que participaram desta pesquisa e que infelizmente não puderam ter

seus nomes divulgados. A vocês minha eterna gratidão.

A Professora/orientadora Juçara Luzia Leite por acreditar em mim mais que eu

mesma.

Ao PPGE-Programa de Pós-graduação em Educação, pela oportunidade que me

proporcionou de continuar minha formação.

A toda a minha família, em especial a minha mãe Anália pelos cuidados com Lais e

a Eudásio, Cláudio, Flávio, Fábia e Fátima. Sem o apoio de vocês eu não teria

conseguido.

A todos os meus amigos que sempre me incentivaram e principalmente a Sandro

Nandolpho pelo incentivo desde o inicio e a Jair M. Paiva por seu apoio, carinho e

paciência nos intermináveis finais de semana lendo, revisando, corrigindo. Muito

Obrigada! Amo vocês.

Aos educadores sociais do Projeto Abordagem de Rua/PMS, pelo aprendizado de

todo dia, pela possibilidade do diálogo e pela compreensão quando precisei me

ausentar.

A todos os profissionais do CMEI Ana Maria C. Colares especialmente a professora

e amiga Quezia Silveira Lima, pelo carinho e incentivo.

E ao meu amor. Como disse G. Rosa, o amor é um descanso pra alma, um alívio na

loucura.

6

Ah que medo de começar. Sem falar que a história me

desespera por ser simples demais. O que me proponho a

contar parece fácil e a mão de todos. Mas a sua

elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o

que está apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos

duros enlameados apalpar o invisível na própria lama

(Clarice Lispector).

7

RESUMO

Este trabalho começou a ser elaborado a partir de um diário de campo escrito entre

os anos de 1990 e 1994, período em que começamos a trabalhar como Educadores

Sociais no extinto IESBEM (Instituto Espírito-santense do Bem Estar do Menor). Foi

neste período que se deu o primeiro contato com um grupo de 40 meninos e

meninas de rua no centro de Vitória. Esse encontro nos proporcionou uma maior

aproximação com o mundo juvenil, sobretudo dos jovens que fazem das ruas seu

local de moradia. A convivência cotidiana, o contato com suas histórias nos

estimulou a, para além da relação de trabalho, observar seus hábitos, sua

linguagem, seus desejos e demandas, possibilitando um aprendizado que nos

deram as condições humanas e teóricas para desenvolvermos um trabalho no

Projeto Abordagem de Rua no município da Serra-ES, desde 2001, época em que o

município ocupou um lugar, muito pouco privilegiado, de uma das cidades mais

violentas do Brasil. Diante desse título, a Serra começou a desenvolver trabalhos e a

implementar políticas públicas que ajudassem a diminuir o índice de violência em

seus bairros, sobretudo entre os jovens. O intuito desta pesquisa foi buscar, no

relato desses jovens, suas percepções sobre violência, construídas a partir de suas

experiências no dia-a-dia das ruas do município da Serra. Para a sua elaboração

utilizamos como referencial teórico as contribuições trazidas pela Fenomenologia

Existencial de Maurice Merleau-Ponty, que nos possibilitaram compreender o

fenômeno violência vivido pelos sujeitos pesquisados. Durante o trabalho,

descobrimos que os sujeitos desta pesquisa se construíram no decorrer do processo

de fala e de escuta, e ambos, sem qualquer pretensão de neutralidade, objetivismos

ou linearidades, trouxeram à baila suas histórias, suas tristezas, seus desejos e

junto com ela a imagem da cidade, do cheiro das ruas e de suas formas de

resistências. O resultado é a descoberta de que a rua não é só violenta, ela também

é palco de relações de amor, afeto, amizade e coragem. Coragem dos que insistem

em continuar vivos.

PALAVRAS-CHAVE: Educador social, Percepção, violência, juventude.

8

ABSTRACT

The present work started to be elaborated from a daily of field written between the

years of 1990 and 1994 period where I started to work as Social Educator at IESBEM

(Instituto Espírito-santense do Bem Estar do Menor) was in this period that happened

my contact with a group of 40 boys and girls from streets in Vitória downtown. This

meeting provided a bigger approach to me with the youthful world, over all of the

young that makes of the streets its housing place. The daily experience, the contact

with its histories had stimulated me, beyond the work relation, to observe its habits,

its language, its desires and demands making possible a learning that human beings

and theoreticians had given to me to the conditions to develop a work as Social

Educator in the Project Boarding of Street in the city of Serra since 2001. Period

where the city was considered one of the most violent cities of Brazil. Because of this

Serra started to develop works and to implement public politics that helped to

diminish the index of violence in its quarters, mainly among the teens. The intention

of this research was to search, in the story of these young people, its perceptions on

violence, constructed from its experiences in day-by-day on the streets of the city of

Serra. For its elaboration I used as referential theoretician the contributions brought

from Fenomenologia Existencial by Maurice Merleau-Ponty who made possible to

understand the violence phenomenon lived for the searched citizens. During this

work we discovered that the citizens of this research had constructed themselves in

the process of speaking and listening, and both without any pretension of neutrality,

objectivism or linearities its histories, its sadness, its desires together with the image

of the city, the smell of the streets and its forms of resistance. The result is the

discovery of that the street is not only violent it is also a place of love, affection,

friendship and courage relations. Courage of the people that insist on their survival.

Key-words: Social Educator, perception, violence, youth.

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12

I – DE ESPELHOS E SUAS REFLEXÕES: TENTATIVAS TEÓRICAS E OLHARES

SOBRE JUVENTUDE E VIOLÊNCIA ...................................................................... 20

1.1 - Objeto e suas nuances ..................................................................................... 20

1.2 - Violência: o dilema da (in)definição ................................................................. 22

1.3 - “Juventudes”: Um espelho de mil faces ........................................................... 32

1.4 - Desfazendo nós da violência e juventude ........................................................ 38

1.5- Juventude / violência / Pedagogia de rua.......................................................... 46

1.6 – A opção teórico-metodológica pela fenomenologia existencial de Merleau-

Ponty ........................................................................................................................ 49

CAP II – DIÁLOGOS E TESSITURAS: ENTRE RUÍNAS E CONSTRUÇÃO DE UM

PROJETO ................................................................................................................ 57

2.1 – Marcos referenciais de um traçado metodológico ........................................... 57

2.2 – O Projeto: de cacos e construção ................................................................... 66

2 3 - Formação do educador: limites e desafios na pedagogia nas calçadas........... 81

2.4 – O relato de Educador Social: entre ruínas e descobertas ............................... 73

CAP III – A PAISAGEM DE UMA PESQUISA ........................................................ 92

3.1 – Contexto histórico-político da cidade da Serra ................................................ 93

3.2 – Perfil sócio-econômico .................................................................................... 95

3.3 - O Projeto da rede local de atenção à criança e adolescente na Serra .......... 102

3.4 – Olhando e percebendo a cidade ................................................................... 115

10

CAP IV – A PERCEPÇÃO DE VIOLÊNCIA DOS JOVENS NA RUA: O OLHAR DO

EDUCADOR SOCIAL ............................................................................................ 122

4.1 – Metamorfoses do olhar .................................................................................. 122

4.2 – Entrevistas: Ouvindo vozes........................................................................... 126

4.3 - As Unidades de Sentido.................................................................................. 154

Concluindo?............................................................................................................. 166

Referências ............................................................................................................ 170

Bibliografia .............................................................................................................. 175

11

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa insere-se no âmbito dos estudos desenvolvidos junto ao PPGE, na

linha História, Sociedade, cultura e Políticas Educacionais. Seu objetivo é mostrar a

percepção de violência que os jovens moradores de rua possuem a partir de

situações de violência por eles experienciadas. O presente trabalho busca a

compreensão do fenômeno violência a partir dos sujeitos que a sofrem ou a

praticam, amparada na perspectiva metodológica da fenomenologia existencial de

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).

Este trabalho investiga jovens moradores de rua que escolheram como espaço de

moradia as ruas de Laranjeiras. Situado às margens da BR-101-Norte, no município

da Serra, esse bairro encontra-se em franca expansão econômica e imobiliária.

A cidade da Serra compõe a região metropolitana de Vitória, que inclui os municípios

de Vitória, Vila Velha, Cariacica, Viana, Guarapari e Fundão. Conforme dados do

IBGE de 2006, é o segundo município do Espírito Santo em população, contando

407.448 (quatrocentos e sete mil e quatrocentos e quarenta e oito) habitantes. A

motivação de ter sido escolhida como lócus desta pesquisa se deu devido ao alto

índice de violência urbana que esta cidade ostentou nos últimos anos no cenário

nacional, incidindo, com particular gravidade, sobre Laranjeiras e suas imediações.

Em que pese a vasta literatura produzida sobre a violência, suas múltiplas

expressões e presença endêmica na história do Brasil (PINHEIRO, 1996),

esperamos que este trabalho se justifique pela proposta metodológica que, tomando

12

por base a fenomenologia, se propõe não uma perspectiva causal de visada do

fenômeno mas, sem deixar de reconhecer seus condicionantes sócio-históricos,

busca compreendê-lo como fenômeno vivido, experienciado e relatado pelos sujeitos

concretos. Neste sentido, pensamos que Merleau-Ponty nos aponta tal caminho:

[A fenomenologia] É a ambição de uma filosofia que seja uma ‘ciência exata’, mas é também do relato do espaço, do tempo, do mundo ‘vividos’. É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo possam dela fornecer (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 2).

A pesquisa utiliza uma abordagem compreensiva que enfatiza as manifestações da

vida social dos sujeitos e suas percepções sobre o vivido. É de natureza qualitativa e

os critérios utilizados para a coleta de dados obedeceram a princípios que

procuraram ser fiéis às leituras sobre a transposição do método fenomenológico na

filosofia para o contexto de uma pesquisa empírica.

Ao privilegiar a rua como espaço de observação, deparamo-nos com dificuldades

várias, tais como: horários em que os sujeitos estavam dispostos a nos conceder as

entrevistas, a escolha de lugares que oferecessem segurança, tanto para os jovens

como para o pesquisador, já que muitos deles têm passagem por instituições e

delegacias, sendo por isso considerado suspeitos em potencial. Acresça-se a isso

as desistências em dar entrevistas, temendo ter nomes divulgados ou sofrerem

represálias por parte de companheiros de rua.

Iniciamos nossa pesquisa com o objetivo de entrevistar 08 (oito) jovens e ao final

dela havíamos colhido 05 (cinco) depoimentos.

13

As categorias (violência, juventude, percepção, educador social) que compõem o

corpo teórico desta dissertação, discutidas a luz da opção teórica pela

fenomenologia, não ganharam um cunho explicativo e tão pouco causal, mas se

preocuparam em compor um texto dialógico, respeitando um dos passos propostos

pela fenomenologia existencial, a epoqué, ou seja, colocar em suspensão todo

conhecimento acerca daquele objeto.

Os sujeitos pesquisados possuem idades entre 18 e 21 anos, 04 (quatro) do sexo

masculino e 01 (uma) do sexo feminino; atualmente moram ou já moraram na rua e,

todos sem exceção, sofreram ou já cometeram algum tipo de violência.

Esta pesquisa nasceu da soma de indagações pessoais e profissionais que surgiram

a partir do nosso trabalho com jovens moradores de rua no município da Serra e

com profissionais, chamados também de educadores de rua, que percorrem praças,

becos, pontes, terminais rodoviários em busca de crianças e jovens que, silenciados

por sua condição social, de gênero ou etnia, perambulam pelas ruas da maioria das

cidades brasileiras.

Um pouco da trajetória desses profissionais será contada em um dos capítulos deste

trabalho, através da caracterização do educador social. Como toda profissão, a de

Educador Social nasceu de um contexto histórico e da produção igualmente histórica

da “instituição menino de rua” a partir do inicio da década de 1980.

O surgimento dessa “instituição” provocará o nascimento de outra, o “educador

social”. Ambos, meninos e educadores, se encontraram no “espaço rua” e

14

construíram práticas cotidianas de controle e de fuga, pautados em saberes

institucionais e populares, ora fortalecidos ora desmantelados...

Esses atores, afastados por questões sócio-econômicas que não temos a pretensão

de discutir no presente trabalho, se encontraram na interseção da vivência do

educador e dos jovens com o fenômeno violência. Na rua eles se encontram,

ambos, com concepções diferenciadas do que seja violência.

Nesse encontro cotidiano, de jovens e educadores que, de forma singular, vivenciam

situações de violência, foram sendo construídas formas de perceber a rua e suas

veredas, o educador aprendendo com o menino os caminhos tortuosos e as

relações estabelecidas para a manutenção de suas vidas, a lição de sobrevivência

na rua sendo a primeira etapa de sua formação.

Acreditamos na relevância deste trabalho e na contribuição que este pode oferecer

para a reflexão do trabalho dos educadores sociais, sobretudo, dos que atuam nas

ruas.

Os procedimentos utilizados para a realização desta dissertação serão

desenvolvidos em dois momentos, a saber:

- Durante a pesquisa, realizada entre agosto de 2006 e maio de 2007, um diário de

campo foi produzido para anotar as impressões do pesquisador durante a pesquisa

que, por ser fenomenológica, trazia a necessidade não só de registrar os

15

depoimentos dos jovens, mas também de observar o local onde vivem, suas

relações, seus gestos.

- O resgate da história do Educador Social na década de 1990 em Vitória. Para isso

nós utilizamos o nosso diário de campo produzido entre os anos de 1990 e 1994,

período que trabalhamos como Educador Social em Vitória.

A importância do diário de campo foi fundamental no processo de escrita deste

trabalho por revelar não só lembranças do itinerário percorrido pelos sujeitos da

pesquisa, mas por auxiliar no processo de reflexão da própria produção teórica.

Quanto à utilização de diário de campo, Mateus (2003) afirma:

Pode-se observar em alguns diários de campo uma espécie de jogo de espelhos, o que nos remete à produção de uma forma de reflexão própria do escrever. A feitura do diário de campo acaba por auxiliar também na desnaturalização de algumas construções cientificas, dentre elas a de uma suposta neutralidade por parte do pesquisador, sendo o diário uma forma de constituição da história subjetiva do mesmo, além de ser uma forma de restituição da pesquisa de campo (MATEUS, 2003, p. 19).

Quanto às entrevistas com os sujeitos, elas foram gravadas e depois transcritas,

dando origem a um terceiro documento que foi utilizado para a produção escrita de

vários títulos e subtítulos desta dissertação. Portanto, esse trabalho possui dois tipos

de relato, o dos jovens através das entrevistas, e a do pesquisador através do diário

de campo produzido no percurso de toda a sua história profissional e no caminho

trilhado durante a realização das entrevistas.

Esse trabalho não parte de uma hipótese explicativa, do ponto de vista causal, do

fenômeno, mas não desconsidera o fato de que os jovens que vivem nas ruas, que

estão alijados das condições dignas de sobrevivência, que sofrem preconceitos

16

devido a sua condição de morador de rua, possuem uma percepção diferenciada de

violência e que, devido a essa percepção criaram outras formas de lidar com a

violência em seu cotidiano.

Quanto à disposição e a organização desta dissertação nós a dividimos em quatro

capítulos.No primeiro capítulo, De espelhos e suas reflexões: Tentativas teóricas

e olhares sobre juventude e violência, nós apresentamos as definições teórico-

conceituais das categorias violência e juventude e esclarecemos a nossa opção pela

fenomenologia-existencial de Maurice Merleau-Ponty.

No segundo capítulo, Diálogos e tessituras: Entre ruínas e construção de um

projeto, buscamos explicar a metodologia utilizada para a realização da coleta de

dados (diário de campo, entrevistas, descrição do grupo pesquisado etc.), o papel do

educadora social nos dois municípios (Serra/Vitória) e a nossa opção geográfica

pela Serra.

No terceiro capítulo, A paisagem de uma pesquisa, nós realizamos a

contextualização sócio-política e histórica do município da Serra/ES, bem como sua

proposta e estrutura para atendimento às crianças e adolescentes em situação de

risco social.

No quarto capítulo, A percepção de violência dos jovens na rua nós buscamos

resgatar os conceitos de “olhar” e “perceber” na fenomenologia e seu uso na

compreensão do fenômeno violência. Registramos nesse capítulo os relatos sobre

17

violência, colhidos nas entrevistas e anotadas no diário de campo, para extrairmos

as unidades de sentido.

18

A verdadeira viagem de descoberta consiste não em

procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos

(PROUST, 1871-1922).

19

I – DE ESPELHOS E SUAS REFLEXÕES: TENTATIVAS TEÓRICAS E

OLHARES SOBRE JUVENTUDE E VIOLÊNCIA

1.1O Objeto e suas nuances

Esta pesquisa não tem a pretensão de ser um estudo sobre a condição juvenil e

tampouco um tratado sobre violência; o que queremos é fazer um relato situado

temporal e geograficamente da história de jovens, especialmente em situação de

rua, envolvidos com violência em seu cotidiano. Aguçar o olhar para compreender

que redes de relacionamento são tecidas no seu dia a dia, como se movem pela

cidade, que relações estabelecem com os demais personagens da rua – o policial, o

segurança particular, os mendigos, os traficantes, os assaltantes - os “tios” e “tias”

voluntários e educadores de rua.

O que pretendemos, através destes relatos, é identificar as experiências com

violência vividas por esses jovens nas ruas e, a partir de suas histórias,

compreender a dinâmica complexa e misteriosa de seu cotidiano e de suas

percepções com o que chamamos violência. Esforço de compreender contando

histórias.

Nosso objetivo aqui é discutir as categorias violência e juventude, focando leituras

em autores que privilegiem em suas obras este debate, sem deixar de abordar

essas categorias em obras que as tratem de forma mais genérica.

20

Não pretendemos, devido a vários limites, entre os quais o fator tempo, resgatar o

conceito de juventude e violência e tão pouco dar-lhes uma definição teórica. Essas

categorias serão abordadas de forma singular, privilegiando o relato e as histórias

contadas por jovens moradores de rua, e analisadas à luz da fenomenologia. O que

queremos é compreender, através de relatos de jovens, o que é ser jovem nas ruas

violentas do município da Serra, por acreditarmos que só eles podem nos dizer o

que é sofrer violência.

Violência e juventude, independentemente da conceituação que empregamos para

essas duas categorias, correspondem, respectivamente, a algo vivido,

correspondem a uma experiência da qual se tem ou teve consciência.

Essas experiências possuem um conjunto de significações, e não são apenas

seqüência de fatos meramente quantificáveis, comumente vistos em trabalhos que

privilegiam dados quantitativos.

Assim, estamos diante dos fenômenos violência/juventude no plano da experiência

humana e, como tal, devem ser apreciados como objeto de compreensão para que

possam revelar a dramaticidade histórica do sujeito pesquisado.

Em nosso trabalho não poderíamos ignorar as pesquisas atualmente desenvolvidas

no Brasil, sobretudo aquelas que tratam essas categorias como fenômenos que

atravessam as relações sociais contemporâneas, fenômenos cujas facetas são

objeto de reflexão por parte de várias áreas do saber; no entanto, privilegiaremos

nessas leituras trabalhos de fundo fenomenológico.

21

Em nossas leituras sobre juventude nos acercamos de autores como Coimbra

(2003) e Nascimento (2003), que tecem interessante reflexão acerca das teorias que

contribuíram para o fortalecimento da associação pobreza/violência atribuída aos

jovens, sobretudo a partir das teorias higienistas. Destacam a contribuição da

medicina e da biologia, ao enfatizar as mudanças hormonais e físicas com a

propensão à violência. Essas “características” foram assimiladas como fazendo

parte da natureza dos jovens, se cristalizaram e se tornaram inquestionáveis até o

início do século XX.

Ainda sobre juventude dialogaremos com Ribeiro (1997), que analisa a experiência

de viver a juventude nos tempos sombrios do denominado “novo economicismo”.

1.2 Violência: o dilema da (in)definição(discutir como fenômeno social)

Ainda iniciando este capítulo, trazemos para o debate as dificuldades de definição

do conceito violência, como nos esclarece Michaud (1989):

Como definir o que não tem nem regularidade nem estabilidade, um estado inconcebível no qual, a todo momento, tudo (ou qualquer coisa) pode acontecer? Como transgressão das regras e das normas, a ‘violência’ deixa entrever a ameaça do imprevisível. Num mundo estável e regular, ela introduz o desregramento e o caos (MICHAUD, 1989, p. 12-13).

Uma superexposição na mídia, na imprensa e no cotidiano das cidades vem

banalizando o conceito de violência e os atos violentos, dificultando assim a

compreensão do fenômeno. Essa superexposição cria discursos e práticas que,

aliadas à idéia de insegurança que se encontra no centro do debate sobre violência,

não contribuem para o debate crítico e tão pouco permitem avaliações no campo da

22

igualdade social, dos direitos humanos e dos valores que permeiam nossa

sociedade. Diante disso o termo parece se esvaziar de seu sentido. É preciso então

refletir sobre o que é violência e o discurso sobre a violência.

Para começar um diálogo sobre violência precisamos definir de qual violência iremos

tratar, afinal não se trata de um conceito fácil e possui definição teórica ampla,

dificultando assim seu entendimento, como nos aponta Waiselfisz (1998):

A noção de violência é, por princípio, ambígua. Não existe uma violência, mas multiplicidade de atos violentos, cujas significações devem ser analisadas a partir das normas, das condições e dos textos sociais, variando de um período histórico a outro.

A violência é um dos eternos problemas da teoria social e da prática política. Na história da humanidade, tem-se revelado em manifestações individuais ou coletivas.

Chesnais (1981), em Historie de la violence, apresenta as múltiplas formas de violência registradas em diferentes épocas e sociedades, privada e coletivamente. Distingue desde a violência sexual até a criminal, os conflitos de autoridade e as lutas pelo poder estatal (WAISELFISZ, apud CASTRO, 1998, p. 144-145).

Também não se pretende aprofundar o debate conceitual no plano epistemológico

da violência em si, nem remeter às análises desenvolvidas por autores que a

adjetivaram como: urbana, doméstica, racial. A intenção nesse capítulo é tratar do

tema violência associado à juventude, considerando interesses e questões que

busquem pistas para dar conta da diversidade de discursos reflexivos sobre

violências corporificadas em uma geração – Juventude – quando se discute o

envolvimento de jovens em episódios violentos. Mas para efeito desta pesquisa nós

adotamos as idéias de alguns autores que apontam alternativas para este dilema

conceitual da seguinte forma:

Ainda que existam dificuldades e diferenças naquilo que se nomeia como violência, alguns elementos consensuais sobre o tema podem ser delimitados: noção de coerção ou força; dano que se produz em indivíduo

23

ou grupo social pertencente a determinada classe ou categoria social, gênero ou etnia. Define-se violência como o fenômeno que se manifesta nas diferentes esferas sociais, seja no espaço público, seja no espaço privado, apreendido de forma física, psíquica e simbólica (WAISELFISZ, apud CASTRO, 1998, p. 145).

Ives Michaud (1989) lança mão do latim para explicar o tema. VIOLENTIA que,

traduzindo, significa força ou violência, a partir do verbo VIOLARE, transgredir,

profanar, tratar com violência. Aprofundando um pouco mais o sentido etimológico, o

núcleo da palavra violência é VIS, que caracteriza a idéia de força, vigor, potência,

emprego da força, e, por outro lado, quantidade, abundância, essência de algo.

A violência é, portanto assimilada ao imprevisível, à ausência de forma, ao desregramento absoluto. Não é de espantar se não podemos defini-la. Como as noções do caos, de desordem radical, de transgressão, ela, com efeito, envolve a idéia de uma distância em relação as normas e as regras que governam as situações ditas naturais, normais ou legais (MICHAUD, 1989, p. 12).

Na mesma linha de Michaud, Marilena Chauí acrescenta aspectos éticos ao nosso

termo. Ela busca a palavra latina violência, VIS, para defini-la como sendo “tudo o

que abrange a força para ir contra a natureza de algum ser” (CHAUÍ, 1998, p. 33).

Nesse sentido, todas as manifestações de coação, constrangimento, tortura,

brutalizações, violações, sevícias, abusos físicos e psíquicos contra alguém

produzindo, assim, opressão, intimidação, medo e terror; é violência de “um contra

todos”, de “um contra um” e de “todos contra todos” (CHAUÍ, 1998, p. 33-34).

Na mesma vertente, Alba Zaluar expõe seu entendimento apropriando-se da origem

latina do termo – VIOLENTIA – constituído da idéia de VIS como força, vigor, emprego

da força física ou os recursos do corpo em exercer a sua força vital. Para a autora,

essa força ganha status de violência quando ultrapassa limites socialmente

estabelecidos, regras e convenções que ordenam as relações (ZALUAR, 1999, p. 8-

9).

24

Ao tomar esse caminho a autora incorporou “atos” ou “estados” de violência ao

âmbito das sociedades democráticas, como sendo um descumprimento de regras,

entendendo que é a percepção do limite (do sofrimento que provoca) que vai

caracterizar um ato como violento ou não, com variações culturais e históricas.

Com base no entendimento desses autores, a violência pode ser praticada pelo

Estado, pelas instituições (escolas, presídios, hospitais, etc.), grupos sociais e

religiosos, organizações públicas e privadas, sistemas de comunicação, econômico,

pessoas, enfim, por todos que formam a sociedade humana. Porém, quando

pensamos em violência, em geral limitamo-nos a vê-la apenas como atos de

criminalidade, assalto, armas, sangue, morte. É preciso forçar a retina para enxergá-

la como resultante da dinâmica social.

Temos aqui duas tarefas: a de enxergar a violência e ao mesmo tempo falar dela,

criar um discurso sobre ela como nos propõe Flavia Schilling:

Mesmo com grande esforço e enorme sensação de cansaço, o nosso desafio é tentar inventar novas palavras de recuperar palavras um pouco esquecidas. Exercitar o olhar informado, detectar a multidimensionalidade da violência, onde ocorre, como ocorre, a quem envolve e como agir, como reparar os danos (SCHILLING, 2004, p. 33).

O caráter multidimensional do objeto se traduz na quantidade de estudos feitos

sobre o tema, em que destacamos: a violência no contexto da redemocratização,

violência e corrupção, violência nas prisões, violência e imagem, a violência do rap

na periferia, exclusão territorial e violência, homicídios em São Paulo, o massacre de

Eldorado de Carajás, violência doméstica etc.

25

A violência se apresenta com suas múltiplas facetas, em suas variadas formas

(físicas, psicológica, emocional, simbólica) com uma variedade de atores (sujeitos)

em diferentes dimensões (macro e micro) e que se relacionam de maneiras

peculiares nos deixando uma só certeza: em todas há vitimas e agressores.

A multidimensionalidade da violência e sua complexidade estão postas. Como

vamos enfrentá-la e dar conta de suas múltiplas dimensões não pode ser simples. A

resposta a um desafio dessa proporção deve ser na mesma medida complexa,

dialogando de maneira diferente com suas múltiplas facetas.

Para Marilena Chauí (1996/1997) no estado em que nos encontramos hoje, o grau

de violência que atinge o nosso país aponta para a quebra de um preconceito: o

mito de que somos pacíficos, povo ordeiro e “manso” por natureza. Um dos

preconceitos mais arraigados em nossa sociedade é o de que “o povo brasileiro é

pacífico e não violento por natureza”, preconceito cuja origem é antiqüíssimo,

datando da época da descoberta da América, quando os descobridores julgavam

haver encontrado o Paraíso Terrestre e descreveu as novas terras como primavera

eterna e habitada por homens e mulheres em estado de inocência. É dessa “Visão

do Paraíso” que provém à imagem do Brasil como “país abençoado por Deus” e do

povo brasileiro como cordial, generoso, manso, sem preconceito de classe, raça e

credo. Diante dessa imagem, como encarar a violência real existente no país?

Exatamente não encarando, mas absorvendo-a no preconceito da não-violência

(Chauí, apud Schilling, p. 40). Esse preconceito forjou no povo brasileiro uma

espécie de aversão ao conflito. Conflito gerador de debates.

26

O tema ganhou relevância social, política e acadêmica devido a sua invasão no

nosso cotidiano. A violência parece ocupar todos os espaços, nossas casas, os

jornais, a TV, o cinema, as praças, bares, instituições públicas, escola, enfim ela

tomou proporções gigantescas nos últimos anos.

A situação na qual se encontra a infância e a adolescência, principalmente no Brasil,

é digna de grande preocupação, tanto por parte dos poderes públicos constituídos,

quanto pela sociedade civil organizada. Na Serra essa realidade não é muito

diferente. De acordo com dados do Censo/IBGE, existiam na Serra, em 1991,

97.668 crianças e adolescentes. Atualmente, os dados do Censo 2000 apontam

cerca de 117.347 crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 17 anos. Isso

significa um crescimento de 20.759 crianças e adolescentes no Município em um

período de nove anos.

Dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indicavam, em 1991,

que a Serra tinha 24,9% de sua população com idade inferior a 18 anos em situação

de indigência. Pela situação de gravidade do quadro social, sobretudo o quadro de

desemprego, podemos inferir que da População Infanto-Juvenil existente no

Município, 30% encontra-se em situação de vulnerabilidade social, ou seja,

aproximadamente 35.228 crianças e adolescentes encontram-se em situação de

risco pessoal e social. Esses grupos, que não têm acesso aos bens culturais e

materiais, sofrem com a discriminação e com a indiferença presente nos bairros

onde residem, nas escolas, nos espaços de lazer, nas empresas onde buscam a

oportunidade do primeiro emprego e nas ruas, que muitos transformaram em

espaços de moradia.

27

Camacho (2000) discute a categoria violência ligada ao conceito de intolerância. A

intolerância ao diferente como o lugar de “nascedouro da violência”. Sua tese de

doutorado aponta para uma violência gerada nas relações entre os indivíduos.

Esta seria uma das causas a serem consideradas no interior das manifestações de violência entre os jovens estudantes das escolas pesquisadas. A essas diferenças ditas “naturais” somam-se as diferenças sociais e culturais, para engrossar o rol das diversidades não toleradas. A maioria das agressões praticadas nas escolas é motivada pela heterofobia, ou seja, pela estranha recusa da diferença, pela raiva, pelo desprezo, pela rejeição, enfim, pela não aceitação daquele que o agressor julga diferente de si. É sabia a letra daquela canção que diz: ‘é que Narciso acha feio o que não é espelho’ (CAMACHO, 2000, p. 203 ).

A intolerância ao diferente liga-se diretamente à discriminação. Discriminação aos

negros, aos pobres, aos homossexuais, aos índios e a grupos socialmente

vulneráveis. A manifestação comportamental de tudo isso é discriminação e uma

das formas de expressão dessa discriminação é a violência (CAMACHO, 2000, p.

207).

Entretanto, diante dessa invasão a voz parece calar e o nosso olhar sobre a

violência parece “sujo e de baixa voltagem” (RESENDE). Uma espécie de

insensibilidade assola os nossos dias tomando a morte de meninos em chacinas

urbanas, crimes cometidos por policiais, mortos por balas perdidas, seqüestro e

rebeliões em presídios, acontecimentos “corriqueiros” e “normais”, num cotidiano de

problemas públicos e interesses privados.

Olhar, há muito tempo, deixou de ser apenas uma função de um dos sentidos.

Vemos o que a cultura e a sociedade permitem que se veja. Perceber não é uma

28

tarefa apenas do cognitivo, tem também uma dimensão emotiva, simbólica,

valorativa (SOARES, 2005).

Admitindo que a violência contemporânea possua tradução polifônica e caráter

múltiplo, colocando no centro do debate questões como direitos fundamentais,

valores universais, liberdades individuais e coletivas, gostaríamos de fazer um

parêntese. Mesmo sabendo que a violência é praticada por vários grupos, o que nos

interessa aqui é a violência experenciada por jovens, moradores de rua, e, por fim,

saber que percepções construíram a respeito dela. Um dos jovens entrevistados por

nós se espanta quando lhe esclarecemos o objetivo da entrevista.

A rua não é violenta, é mais seguro viver aqui que no bairro onde minha mãe morava. Já tem uns cinco anos que moro direto na rua. Vai lá em Feu Rosa e você vai ver o que é medo, perigo de morte...(Mauro, 12/09/2007).

Os jovens entre 15 e 24 anos, aos quais são atribuídos o maior número de

homicídios assaltos, envolvimento no tráfico, chacinas são, ao mesmo tempo,

algozes e vítimas, pois conforme Walselfisz, baseando-se no Mapa da Violência III -

Unesco, se “a taxa global de mortalidade da população brasileira caiu de 633 em

100 000 habitantes em 1980 para 573 em 2000, a taxa referente aos jovens cresceu,

passando de 128 para 133 no mesmo período” (WAISELFISZ, 2002, p. 25).

O estudioso aponta, ainda, para o que ele denomina “novos padrões de mortalidade

juvenil”: mais do que doenças e epidemias, clássicas causas de mortalidade, temos

agora “causas externas”, como homicídios e acidentes de trânsito:

Se no conjunto da população brasileira tais causas dizimariam, em 2000, cerca de 12% da população entre 15 a 24 anos, as causas externas seriam responsáveis por cerca de 70% dos óbitos. Os homicídios causariam a morte de 4,7% da população total, sendo 39,2% de jovens. Os acidentes

29

de trânsito seriam causa da morte de 3,0% da população, atingindo cerca de 14,2% dos jovens (Waiselfisz, 2002 apud CASTRO, p. 25).

Desfazer os nós que atam juventude e violência não é tarefa das mais simples,

porém, cremos na desnaturalização possível de tal liame. Para tanto, torna-se

necessário contextualizar e definir, ainda que em linhas gerais, o conceito juventude.

Como veremos, ‘juventudes’.

1.3 “Juventudes”: Um espelho de mil faces

O conceito juventude pode ganhar conotações diversas. A definição utilizada pela

OMS (Organização Mundial da Saúde) e por diversos órgãos públicos no Brasil

privilegia o recorte etário, que tem grande valor, mas que não contribui para a

precisão conceitual que se faz necessária em nossa pesquisa.

Esses órgãos definem por juventude o grupo de indivíduos situados na faixa etária

entre 15 e 24 anos. Quanto ao aspecto sociológico, tal grupo se encontra em

processo de preparação para desempenho do papel de adulto, tanto no aspecto

profissional quanto no familiar.

O recorte da OMS parece sugerir uma homogeneidade que nega a diversidade

desse grupo e sua pluralidade. Essa diversidade pode ser observada tanto na

amplitude do leque etário (de 15 a 17, adolescentes; de 20 a 24, adultos), como em

outras variáveis como escolaridade, gênero, renda, classe, região, etnia, etc.

30

Em nosso estudo, antes de tudo, reconhecemos que os jovens são desiguais e por

isso não podemos falar de Juventude, mas “juventudes”, múltiplas e singulares. Se o

grupo é heterogêneo, duas perguntas são pertinentes: o que os diferencia e o que

os aproxima? O que os aproxima, respondendo superficialmente à indagação, é a

sua “identidade em obras” (Soares, 2005, p. 199). Estão todos, independentemente

de sua condição social, de gênero ou etnia, em processo de construção de suas

identidades, processo de construção que se inicia na adolescência. Adolescer vem

do verbo adoler, que significa ir de encontro à dor, época da vida em que os conflitos

dolorosos e aparentemente insolúveis aparecem.

A construção da identidade começa na adolescência com as mudanças físicas que

ocorrem no corpo, como nos esclarece Camacho (2000):

Os adolescentes precisam da forma para poderem se entender como pessoas. Por estarem envolvidos no processo de construção da identidade, a forma é muito importante e passa a ser essencial. A aparência física pode definir uma série de coisas, como ser valorizado/desvalorizado/ridicularizado, aceito/rejeitado, amado/desprezado, perseguido/bajulado, ou seja, pode definir se ocorrerá uma discriminação positiva ou negativa (CAMACHO, 2000, p. 235).

Em consonância com o pensamento de Camacho, Soares discorre sobre as

dificuldades enfrentadas pelos adolescentes:

Sabemos todos, na própria pele – e na de nossos filhos - como é difícil a adolescência. Cobranças fuzilam de todos os lados: porque não se é mais criança; porque ainda não se é adulto. As auto-imagens vacilam, tremem, sem nitidez, mergulham na fantasia temerária, recuam encharcadas de medo e insegurança, diluem-se na imaterialidade de quase tudo (SOARES, 2005, p. 205).

31

Por outro lado, dentre os aspectos que diferenciam alguns jovens de outros, está o

acesso que alguns têm a bens de consumo (culturais e materiais) que outros não

têm. A questão da semelhança e da diferença está intimamente ligada à construção

da identidade. Parte também dessa premissa o pensamento de Soares (2005):

[...] identidade é uma palavra enigmática: por um lado, significa a originalidade de alguém, a singularidade que torna cada pessoa incomparável e única; por outro lado, adquire o sentido oposto ao designar a semelhança que aproxima duas pessoas. Dois exemplos, inversos e complementares: ‘Mario se identifica com Raul Seixas, sente uma profunda identidade com tudo que ele disse e pensou’. Ou: ‘o processo de construção da identidade é doloroso porque envolve conflitos. Uma criança só se torna uma pessoa dotada de consciência de si e de identidade própria, ao romper os laços de dependência com os pais e conquistar sua autonomia. Por isso, afirmar-se é sempre traumático, ainda que seja saudável’. Diferenciar-se e igualar-se, mirar-se nos outros e apartar-se deles são duas faces da mesma moeda, dois momentos complementares do jogo de espelhos em que nos formamos (SOARES, 2005, p. 205).

A construção da identidade, ainda que dependente do grupo social ao qual o jovem

pertence, parece ser um processo que merece a nossa atenção como educadores,

pais e pesquisadores, pois algo os aproxima em sua diversidade: no dizer de Soares

(2005), sua identidade em obra, fazendo-se, como possibilidade aberta.

Participamos, enquanto sociedade, da construção da identidade dos jovens e por

isso temos que assumir o compromisso ético de não desistir deles:

[...] Ninguém cria sozinho ou escolhe para si uma identidade como se tirasse uma camisa do varal. Não é algo que se vista e leve para casa. Não se porta ou carrega uma identidade, como se faria com uma carteira, um vestido ou um terno. [...] Por isso, construir uma identidade é necessariamente um processo social, interativo, de que participa uma coletividade e que se dá no âmbito de uma cultura e no contexto de um determinado momento histórico (SOARES, 2003, p. 206).

Em que espelhos os jovens têm se mirado? E, ao se olharem, quais imagens eles

têm visto? O que eles vêem são os inúmeros problemas, muitas incertezas e poucas

32

garantias: a pobreza e a desigualdade, as dificuldades de acesso a uma educação

de qualidade que, por sua vez, impossibilita-lhes a inserção no mundo do trabalho, a

precariedade dos espaços de socialização, áreas de lazer, esporte, descrédito

completo das instituições públicas, desinteresse pela vida política, ou seja: falta

completa de perspectiva para o futuro.

O que temos visto é uma grande preocupação em como criar políticas públicas que

ajudem a eliminar a violência, mas a perspectiva é sempre a da segurança, ou seja,

como fazer para diminuir a maioridade penal, ou como transformá-los em

trabalhadores o quanto antes. Compreender o papel da juventude deveria ser um

pouco mais complexo que mandá-los para a cadeia mais cedo ou criar cursos

profissionalizantes.

Distinguir qual o papel desse grupo na condução da história hoje, no presente, e não

num porvir, para possibilitar sua participação ativa, pessoal e coletiva na história a

partir de seus próprios anseios e demandas, é de importância vital para eles e para

nós.

Ao optarmos pela persistência e pela sua inclusão como parceiros indispensáveis na formulação de nosso próprio futuro, impomo-nos também o dever de nos aproximarmos deles, reconhecê-los em suas manifestações típicas, particulares, idiossincráticas. Descrevê-los nas manifestações mais arcaicas de sentimentos desejos, frustrações, ciumeiras, nervosismos, exibicionismos, enfim nesse complexo amálgama emocional e racional em meio ao qual eles se debatem, a ensaiarem, ao modo que permitimos, o papel que desempenharão em nosso contexto social (MILITO; SILVA, 1995, p. 70).

Sabemos que literalmente o espelho não existe, mas ao se olharem o que os jovens

querem não é uma imagem de si mesmos, o que interessa mesmo é a imagem, o

33

reflexo que os “outros” vêem. Esses “outros” são a sociedade, fonte da imagem

esperada deles (SOARES, 2005).

Outro fator que contribui para esse entendimento é o fato de os jovens se

reconhecerem como diferentes dos outros grupos etários. Eles se vêem como

diferentes, com interesses distintos e, em decorrência disso, se comportam com

ousadia e sem nenhum temor. Acreditam que sua condição de jovem é permanente

ou que serão jovens eternamente.

A categoria Moratória Vital é entendida como crédito temporal, vinculado ao aspecto

corporal e sua vitalidade. “Essa moratória se identifica com a sensação de

imortalidade tão própria dos jovens” (Camacho):

Essa sensação e essa forma de se situar no mundo se associam com a falta de temeridade de alguns atos gratuitos; com condutas auto-destrutivas, que colocam em risco a saúde que eles julgam inesgotável; com a audácia e o lançar-se em desafios; e com a exposição a acidentes, e a excessos de todo tipo. A esse respeito corre a mitologia da cultura juvenil de valorizar o morrer jovem, ou seja, morrer jovem para não envelhecer, para permanecer sempre jovem e, portanto, imortal. Essa Moratória é comum aos jovens de todas as classes sociais e está vinculada a idéia de risco (CAMACHO, Acesso em 08 set. 2007).

Dessa forma, outra questão se coloca: que olhar temos da juventude? É claro que

conforme as “juventudes” olhadas construímos olhares diferenciados. Neste caso,

de acordo com os objetivos da pesquisa – a percepção dos jovens moradores de rua

acerca da violência - vamos nos ater a um grupo de jovens que vivem nas ruas de

um bairro comercial do município da Serra.

34

1.4 Desfazendo nós: violência e juventude

A partir da segunda metade da década de 80, com a declaração do Ano

Internacional da Criança e da Juventude, o mundo passou a produzir um discurso

sobre a juventude, discurso esse que enaltecia o papel dos jovens como geração

responsável pela continuidade da vida social. E, por acreditarmos nisso, forjamos

mecanismos de controle e vigilância que acabou por produzir “verdades” e a partir

dessas verdades começamos a ver os jovens como indivíduos mais contestadores

e, por conseqüência, mais violentos.

No Brasil, os jovens que perambulavam pelas ruas de grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo, cometendo pequenos delitos, eram descritos pelas autoridades como perigosos, delinqüentes e, embora seus delitos fossem de gravidade menos do que os praticados por adultos, havia maior preocupação na repressão aqueles do que a esses (FRAGA, 2003, p. 11).

O elevado índice de morte de indivíduos entre 15 e 24 anos mostra como essa

associação macabra entre juventude e violência tem contribuído para legitimar o que

podemos afirmar, sem exagero algum, ser um verdadeiro genocídio contra os

jovens.

Buscamos o estudo da vinculação direta entre violência/juventude nos textos de

Ribeiro e Lourenço (2003) quando afirmam:

Múltiplas faces da violência encontram-se condensadas na figura do jovem objetivado, naturalizado, tão diferente dos jovens condutores da ação dirigida ao futuro, construído por numerosas representações sociais e experiências históricas. Ao jovem naturalizado pelo desinvestimento social corresponde a idéia mais difundida de violência. Antigas imagens de rebeldia somam-se a novas representações sociais para construir uma reflexão estagnada do ‘ser jovem’, colaborando para ampliar as ameaças que cercam a juventude das classes populares (RIBEIRO; LOURENÇO, 2003, p. 46).

35

Quando olhamos, quando ainda não ocorreu o fenômeno da invisibilidade (Soares,

2005) nossos olhos só captam a imagem perversa da delinqüência. Nessa imagem,

os “jovens” ocupam o lugar “privilegiado” de produtores de violência. A imagem que

ocultamos, convenientemente, é a de que antes de serem produtores, os jovens são

as principais vitimas da violência. Os discursos pautados no binômio

juventude/violência têm contribuído efetivamente para o aumento da violência contra

jovens. Esses discursos são veiculados pela mídia que encontram seus aliados nos

habilidosos agentes invisíveis do genocídio perpetrado aos jovens pobres no Brasil.

A ‘juvenilização’ da violência não é um fenômeno recente, ela começou com alertas sobre o aumento do envolvimento de jovens em situações de violência, a partir dos anos 80. Culpabilizada por abuso de drogas; explosão das taxas de crime; gravidez entre adolescentes; vício do fumo e outros problemas sociais e econômicos, os jovens são o bode expiatório de políticos, a mídia dominante e vários intelectuais conservadores e liberais... (Giroux, 2000, Apud CASTRO, 2002, p. 93).

Ao mantermos teimosamente a imagem dos jovens como indivíduos mais sujeitos a

prática de violência nós autorizamos a prática da exclusão, e essa exclusão pode

ser feita mediante as práticas de extermínio (físico), confinamento (unidades de

recuperação) ou a prática de segregar incluindo.

A segregação que inclui conta com o apoio do direito positivo que forjou ao longo

das reformas neoliberais a noção de cidadania atrelada ao conceito de condição

legal (Gentili, 2001). De acordo com essa concepção, os jovens estão bem

assistidos, seus direitos políticos (participação) estão garantidos através do voto a

partir dos dezesseis anos e seus direitos sociais (moradia, saúde, segurança, lazer,

etc.) resguardados pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). No entanto,

essa condição permanece em constante debate acerca de sua aplicação. Alguns

36

grupos reclamam do não cumprimento da lei quanto às políticas de atendimento à

criança e ao adolescente e outros grupos reclamam do excesso de direitos que os

“menores” adquiriram, sobretudo, quando se trata de adolescentes infratores.

A novidade e a perversidade dessa nova exclusão social reside no fato de que

alguns grupos sociais vão se tornando desnecessários política, econômica e

socialmente. Diante disso vão se tornando alvos fáceis para uma possível

eliminação física, aumentando vertiginosamente o número de vitimas jovens

(Waiselfisz, 2002).

Eis aí o princípio do genocídio que consiste em cometer, com a intenção de destruir,

no todo ou em parte, contra grupo étnico, nacional ou religioso, qualquer dos

seguintes atos:

“1.Matar membros do grupo;

2.Causar-lhes lesão grave à integridade física ou mental;

3.Submeter o grupo a condições de existência capazes de destruí-lo

fisicamente, no todo ou em parte [...]” (FERREIRA, 1998).

Nós produzimos historicamente o binômio juventude/violência. Estamos agora,

tentando desfazer o nó, tentando desmontar essa engrenagem que depois de

acionada parece sem retorno.

São incontáveis as vezes em que ouvimos a palavra violência associada aos jovens

no nosso cotidiano. Mortos a tiros em confronto com a polícia, encontrados mortos

em terrenos baldios e matagais, envolvidos em assalto e queima de ônibus, fazendo

37

arrastão ou trote nas universidades, mataram pais, irmãos e avós, colocaram fogo

em índio, mataram mendigos, agrediram professores... No fim das contas, o

cotidiano aponta para uma violência especifica: a morte. E para autores/vítimas:

jovens.

Segundo Coimbra e Nascimento (2003) diferentes características têm sido atribuídas

à juventude no decorrer do século XX que, por serem consideradas como parte de

sua natureza, acabaram se tornando inquestionáveis. Para as autoras, será a partir

de várias produções teóricas ocorridas no referido século que os jovens, sobretudo

os pobres, serão associados à periculosidade, criminalidade e desumanidade:

Majoritariamente, na sociedade capitalista, o jovem tem sido enquadrado na categoria de ser em formação, em crescimento, em desenvolvimento. Tal período da vida, considerado de transição, carrega certas marcas que têm sido afirmadas como elementos de sua natureza. Algumas práticas, baseadas nos conhecimentos hegemônicos da Medicina e Biologia entre outros, têm afirmado, por exemplo, que determinadas mudanças hormonais, glandulares e físicas, típicas dessa fase, são responsáveis por certas características psicológico-existenciais próprias da juventude (COIMBRA; NASCIMENTO, 2003, p. 19-20).

O alerta sobre o aumento de envolvimento de jovens em situações de violência,

como vítimas ou agressores, ecoa mais forte em distintos países, a partir dos 80.

Ainda que vários estudos sejam anteriores a esta data, confundindo-se preocupação

com os jovens, com preocupação da segurança, contra os jovens, ou seja, a

“demonização da juventude” (CASTRO, 2002).

No caso do Brasil, distintos estudos vêm dando visibilidade ao crescimento das

mortes por violência entre jovens. Zaluar (1994, 1998 e 2001), pioneira nos estudos

38

contemporâneos sobre violência e pobreza no Brasil, recusa a associação entre

pobreza e violência.

Houve um duplo reducionismo: o de confundir pobreza ou a desigualdade social com a privação absoluta na sua manifestação concreta mais evidente - a fome; o de reduzir cidadania aos direitos sociais. No primeiro caso, a redução negou as profundas transformações nos padrões de consumo das famílias de trabalhadores pobres, o que explica a privação relativa a outros grupos e categorias sociais, bem como os conflitos intrafamiliares e intergeracionais na sociedade de consumo... Faltou uma visão integrada de cidadania, especialmente as dirigidas aos jovens, isto é, as educacionais (ZALUAR, Apud CASTRO, 2002, p. 182).

As perguntas são pertinentes porque detectamos que durante as entrevistas feitas

com os jovens moradores de rua, sujeitos desta pesquisa, no período de dez meses

a palavra violência sequer se apresentava como um problema como é para nós.

O que nos pareceu é que no cotidiano desses jovens ela é banal, é licita, e que

essa “coisa” que nos inquieta é uma elaboração muito particular e de alguns grupos.

...vivo na rua desde moleque, a rua é a moradia de muita gente, não tenho medo de ser assaltado, ou ser morto na rua, já quem mora em casa vive cheio de grade. Já apanhei da policia, já levei tiro e quase morri, mas eu não saio daqui não, se tiver que morrer quero morrer na rua... (Bino, 12/09/2006).

O que faz com que “Bino” se sinta tão “confortável” na rua, aparentemente sujeito a

todo tipo de violência desde pequeno?

A violência para nós parece algo que vem de fora do nosso contexto, invade nosso

cotidiano como algo externo a ele. Já para os nossos sujeitos ela está diluída, sem

uma forma, sem um nome: “A violência, em primeiro lugar, não constitui uma matéria

oferecida à reflexão nem um objeto que se oferece a um observador. Ela está escrita

no lugar de onde falo” (CERTEAU, 1996, p. 88).

39

Na rua, a violência, de tão evidente, torna-se invisível aos olhos daqueles que

convivem com ela todo dia.

Certa vez, encontramos um menino de rua com a cabeça raspada e com desenhos geométricos feitos a navalha, deixando seu crânio à mostra; achamos a cena horrível e de uma crueldade atroz. Levamos o garoto para o conselho tutelar, fomos ao posto médico e depois para a DPCA (Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente) para registrar a denúncia e no meio do caminho o menino recuou, dizendo que nós estávamos fazendo ‘tempestade em copo da d‘água’ (DIARIO DE CAMPO, 7 DE OUTUBRO DE 2002).

Ou seja, nas ruas, a tolerância à violência faz parte do manual de regras de

sobrevivência que é decorado pelos nossos jovens moradores de rua,

convenientemente aceita pelos indivíduos que fazem da rua seu lar, e, assim, ela vai

ganhando pouca, ou quase, nenhuma importância.

Durante a coleta de dados essas questões iam povoando nosso imaginário,

assombrando o sono e tornando cada vez mais necessária a imersão pessoal do

pesquisador no universo da pesquisa, o compartilhar os espaços e os tempos dos

“meninos”. Era preciso perambular pela cidade, sentar no meio-fio, tornar-se familiar

a ponto de não ser mais visto. Diferentes formas de pensar a rua, o perigo, o medo,

a vida, fazíamos dos encontros um descoberta dos limites da formação dos

educadores. Descobrimos, no exercício temporário de pesquisadores, outras

possibilidades de ver a rua, os jovens que vivem nela, as relações construídas nesse

cotidiano de poucas certezas e muitas possibilidades.

40

1.5 Juventude/Violência/Pedagogia de Rua

A preocupação com a relação entre juventude e violência se estende também para a

preocupação com o estado das políticas públicas e, entre estas, com a educação.

Abordaremos neste item o trabalho desenvolvido nas ruas pelos profissionais que se

denominam educadores sociais ou educadores de rua, entendendo que esse

trabalho é de cunho pedagógico.

O concurso para o cargo de educador social, realizado em 2004 no município da

Serra, exigia que os candidatos ao cargo possuíssem o curso de magistério. As

quarenta vagas foram preenchidas por profissionais, em sua maioria, graduados em

diferentes licenciaturas: pedagogia, história, geografia, educação física, entre outros.

Esses profissionais não receberam qualquer formação que os capacitasse para o

trabalho nos projetos, ficando a cargo de si mesmos a sua formação.

Não faremos aqui uma análise da formação dos educadores sociais, sobretudo

daquele que atuam nas ruas. Queremos, com base na nossa experiência como

educador e nas observações tecidas por Pinel (2000), Mateus (2003) e Milito e Silva

(1995) rastrear questões, temas e discussões que nos permitam uma visão, mesmo

que panorâmica, da mentalidade desses profissionais sobre o seu oficio e sua

formação ligada à educação não formal.

41

O processo de formação do educador começa no seu primeiro contato com os

meninos/meninas de rua.

Esse singular paradoxo. Ao se aproximar do menino, jogue fora o mapa e a bússola. Quem é, ele só diz, quando diz, à custa de muita atenção, de um se debruçar sobre ele, dias e dias de compromisso assumidos. Quem conhece o menino de rua é o educador de rua (MILITO; SILVA, 1995, p. 144).

Desfazer-se do “mapa e da bússola” parece sugerir um abandono voluntário em

nome de um aprendizado novo. Diante do abandono do seu saber acadêmico e da

ausência momentânea de ferramentas de trabalho, alguns sentimentos começam a

povoar o cotidiano do educador social.

Sentimentos de impotência, frustração e angústia muitas vezes tomavam conta de alguns ‘educadores’ da equipe, quando se percebiam lidando com forças bastante resistentes que produziam além da ‘instituição menino de rua’, a ‘instituição abordagem’, a ‘instituição formação’ e a própria ‘instituição educador social’ (MATEUS, 2003, p. 53).

A sua formação é solitária, feita na rua, ao lado dos sujeitos a quem atende e em

meio aos conflitos da rua. Segundo Pinel (2000) o oficio do educador é guiado pela

relação com o “outro”:

O sentido de ser educador está entranhado no mais profundo ‘eu’ de quem, responsável e conscientemente, optou por ser. O oficio do educador de rua traz consigo um instrumento de significado relevante ao ser, permitindo-lhe enfrentar a dor com dignidade, voltando-se para o outro (PINEL, 2000, p. 358).

E nessa relação de alteridade vai construindo os fundamentos da pedagogia de rua,

conhecendo as veredas tortuosas do seu oficio.

Utilizamos a palavra ‘desbravar’ como característica desses educadores-depoentes. Ao fazê-lo, estamos privilegiando um dos sentidos dado por Ferreira (1986): ‘explorar (terras desconhecidas)’ (p.548). Explorar é investigar, verificar sentindo os sentidos. Abrir caminhos em áridas selvas de concreto. Marcar com sua humanidade tanta desumanidade. Preparar o terreno para o cultivo. Domar pedagogicamente algo que ameaça destruir: desbravadores anônimos da pedagogia (PINEL, 2000, p. 348).

42

As reflexões dos autores acima afirmam que o trabalho do educador social exige

uma postura de compreensão dos fenômenos que ocorrem na rua. Que explicações

causais não dão conta da complexidade do real e que sua formação não passa

somente por uma escolha intelectual, trata-se de uma escolha ética e uma postura

critica frente à realidade.

O trabalho na rua e as dificuldades encontradas no dia-a-dia, tais como droga,

violência, desabrigo, família, reintegração, parceria com conselhos tutelares etc., são

discutidos hora no espaço institucional, hora no calor emocional dos atendimentos

feitos na rua.

1.6 – A opção teórico-metodológica pela Fenomenologia existencial de

Merleau-Ponty

Ao fazermos a opção teórica pela Fenomenologia fomos buscar o entendimento do

que seria a Fenomenologia. Assim nos esclarece Petrelli:

A Fenomenologia é, então, uma ciência descritiva do objeto (realidade) considerado, em ‘si-mesmo’, na sua essência. É uma ciência descritiva da realidade, de seus objetos e fatos. Como significativos de algo que abstrai e transcende a pura materialidade significante. E, sendo uma ciência dos objetos e dos fatos da realidade, de como esses se apresentam à consciência de quem os experienciam, é, então, a ciência de uma realidade significante “para mim”, “para nós” ou “para eles” (PETRELLI, 2001, p. 17).

A proposta de estudar a realidade de jovens moradores de rua nos empurrava para

uma opção teórica que considerasse relevante o estudo sobre uma realidade distinta

como a dos moradores de rua e que propiciasse a busca não de um dogma sobre

43

um determinado ponto nebuloso, mas que garantisse para o pesquisador e seus

sujeitos de pesquisa um diálogo, se possível um encontro, pautado na alteridade.

Diante deste desejo optamos pela abordagem teórica feita pelo filosofo francês

Maurice Merleau-Ponty. A escolha por esse autor e seu arcabouço teórico se deu

pela escolha do tema, pela opção de pesquisar o mundo da rua - os jovens que

vivem nela num determinado espaço - ou seja, nossa pesquisa optou pelo que

Merleau-Ponty chama de “mundo-da-vida”.

Sua mais importante obra, Fenomenologia da Percepção, nos deu as ferramentas

na busca da compreensão da dinâmica da realidade humana como uma trama, uma

rede de significações:

A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua ‘facticidade’ (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 1)

Merleau-Ponty parte da análise do “ser-no-mundo” para nos aproximar da

compreensão do Ser Humano como Ser Histórico. Para ele é possível encontrar

uma trama do sensível (BONOMI, 2001). O mundo perceptível não é um universo de

objetos e tão pouco de individualidades, o percebido não se dá em si mesmo, mas

num contexto. É na trama do sensível da realidade das ruas que queríamos

encontrar a percepção de violência.

Nossa proposta de pesquisa tem como ponto de partida a percepção que jovens

moradores de rua têm sobre a violência que sofrem e que praticam. Nesse caso a

dimensão do Outro não poderia ser perdida de vista. Esse Outro que buscamos

44

como interlocutor, como sujeito que fala e que produz texto tanto quanto o

pesquisador que o estuda só poderia estar situado numa perspectiva

fenomenológica.

Para Merleau-Ponty a questão da alteridade está no centro do debate filosófico

sobre objetivismos cientifico e o subjetivismo filosófico. A renúncia à dicotomia

sujeito-objeto tornará possível o surgimento da intersubjetividade. Para o filósofo

francês a intersubjetividade se dá na relação com o outro.

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 18).

Por isso ver (percepção) o que o outro vê pressupõe um encontro. Esse encontro é

mediado pelo corpo em sua organização, segundo a qual os olhos vêem, as mãos

tocam, as pernas se movem. Experenciamos o mundo com a própria carne.

Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de um certo mundo, sou dado a mim mesmo como um certo poder sobre o mundo; ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo( MERLEAU-PONTY, 1994, p. 474, grifo nosso).

Além do corpo outro objeto cultural desempenha papel central na percepção do

outro: a linguagem.

Na experiência do diálogo, constitui-se um terreno comum entre outrem e mim, meu pensamento e o seu formam um só tecido, meus ditos e aqueles do interlocutor são reclamados pelo estado da discussão, eles se inserem em uma operação comum da qual nenhum de nós é o criador (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 474-475).

45

Adotar uma perspectiva dialógica, o que não quer dizer uma recusa ao texto

monológico, que tem seu valor e sua potência, optar por uma proposta metodológica

no trabalho de campo nos fez refletir acerca da investigação, uma maneira de

interrogar e não um método ou modelo de pesquisa.

Se nossa problemática específica fosse a concepção de alteridade teríamos que

partir de uma teoria geral que examinasse todo o campo filosófico da alteridade, dos

pré-socráticos a Deleuze e especificamente, toda a fenomenologia - de Husserl até

Lévinas - mas esse não é o caso. Então buscaremos dar ao conceito de alteridade

uma noção sincrética: o outro é o meu interlocutor, aquele a quem me dirijo em

situação de campo e de quem falo no texto (AMORIM, 2001).

Diante disso, se tornou fundamental entendermos a diferença, colocada pela

fenomenologia, entre compreensão e interpretação. A fenomenologia não se propõe

a interpretar o objeto, mas compreendê-lo. A postura compreensiva tem íntima

ligação com a opção fenomenológico-existencial de localizar seu objeto no mundo e

de buscar as percepções desses sujeitos no “mundo da vida”, no vivido concreto,

busca incessante pela essência encravada, manifesta e perceptível quando

retornamos às “coisas mesmas”.

O que seria então compreender? O método fenomenológico nos aponta algumas

posturas que devem ser levadas em conta: as construções explicativas devem dar

lugar à descrição do que se passa, partindo sempre do ponto de vista daquele que

vive a situação concreta. Há aí um claro rompimento com o princípio causal muito

46

utilizada pelo positivismo e pelo marxismo. Não trabalha com hipóteses a priori e

não exige que se chegue a conclusões definitivas.

Coloca-se dessa forma toda teoria acerca do objeto em suspensão, sustentando

assim, não uma neutralidade, mas a construção de juízos que seriam prejudiciais

para uma pesquisa científica. O que a fenomenologia nos propõe não é a

neutralidade, sabemos que ela não é possível, o que ela nos propõe é uma

objetividade possível na subjetividade (Jardim, 2004).

Assim sendo, concordamos com Moreira (2002), quando afirma que estamos diante

de uma ciência rigorosa que não se propõe exata; que parte do relato do tempo e do

espaço não como conceitos abstratos, mas como experiência vivida, que é o

reencontro da ciência com o mundo, dele apartado há muito tempo, numa

perspectiva filosófica.

É o estudo da essência (essência que está na percepção da consciência) que não

esta desgarrada da existência, mas atrelada a ela pela facticidade, conforme

Merleau-Ponty (1994).

Dessa forma, após estas breves explicações, compreendemos que o referencial

fenomenológico nos possibilitou buscar uma compreensão do objeto pesquisado: a

percepção de violência.

A escolha pela leitura da obra de Merleau-Ponty se justifica pela relevância de sua

contribuição para muitos problemas filosóficos atuais, mas, sobretudo pela

articulação por ele feita entre a fenomenologia e a existência explicitando um estilo

47

de pensamento que procura um sentido do sujeito, da história, do mundo e da

própria filosofia.

Acercamos-nos, prioritariamente, das obras de Merleau-Ponty, especialmente

Fenomenologia da Percepção (1994) que nos forneceu as ferramentas para o

entendimento da Fenomenologia enquanto ciência. A leitura dessa obra, intensa e

densa, nos apresentou a consciência com um novo significado bem diferente do

empirismo e do racionalismo. A consciência para Merleau-Ponty é a percepção,

acabando com a dicotomia na experiência sensível/razão no ato de apreensão das

coisas.

Para o filósofo francês, nossas experiências são a fonte de todo conhecimento,

sendo este adquirido no mundo, mundo este que só existe ao nosso redor e que só

passa a existir efetivamente para nós quando, através de nossas experiências, lhe

atribuímos sentido.

Por isso, Merleau-Ponty afirma que

Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu ‘psiquismo’, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência em rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 3).

48

A análise do “Ser-no-mundo”, feita por Merleau-Ponty aproximava-nos da

compreensão do Ser Humano como Ser Histórico. Essa compreensão nos

aproximaria do Outro mediado pelo fenômeno da inter-subjetividade.

O objetivo aqui não é fazer apologia à vida nas ruas. O que pretendemos é, a partir

do referencial teórico da fenomenologia-existencial de Merleau-Ponty, descrever o

cotidiano dos jovens que têm a rua como seu espaço de moradia e que vivem em

seu cotidiano situações de violência. Buscaremos suas percepções sobre violência

através dos relatos dessas experiências e intermediada pela relação intersubjetiva

construída pelo pesquisador com os jovens envolvidos com violência.

A descrição fenomenológica proposta pelo método inspirado no pensamento de

Merleau-Ponty nos oferece a possibilidade de descrever o fenômeno apenas, sem

nenhuma pretensão de explicá-lo ou analisá-lo à luz de teorias que, se valendo de

seus estatutos de verdade, obscurecem a mascaram a realidade vivida pelos

sujeitos, des-historicizando a relação homem-mundo. Para ele todo o saber científico

deriva do mundo vivido, ou seja, dos pensamentos, percepções e vivências que

temos no meio natural.

É, pois, na intersubjetividade, ou seja, na intersecção entre os indivíduos, que o

mundo fenomenológico encontra sentido (Merleau-Ponty, 1994). É, portanto na

perspectiva teórica da fenomenologia existencial que essa pesquisa foi realizada,

sem nenhuma pretensão de traçar o perfil de jovens ditos violentos, mas tentar

compreender sob a ótica dos jovens o que é violência.

49

“Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão!

Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas

pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”

(Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas).

50

CAP II – DIÁLOGOS E TESSITURAS: ENTRE RUÍNAS E

CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO

2.1 – Marcos referenciais de um traçado metodológico

A leitura da obra de Merleau-Ponty nos ofereceu elementos teóricos para chegarmos

a percepção de violência que nossos sujeitos de pesquisa possuíam. Para

iniciarmos a coleta de dados se fizeram necessárias leituras complementares que

fizessem a transposição da fenomenologia para o domínio da pesquisa. Já

havíamos entendido que a passagem de um método filosófico para um método

empírico não se daria de forma tranqüila por se tratar de campos de reflexão

diferentes necessitando, assim, de concessões e adaptações.

Na passagem de um método a outro Moreira (2002) reconhece que várias questões

acerca dessa problemática devem ser discutidas e respondidas e destaca duas que

considera mais urgentes. A primeira é que tipo de situações de pesquisa o método

fenomenológico é apropriado, ou seja, tem melhores condições que outras

metodologias, de orientar o pesquisador na coleta de dados para responder ás

perguntas da pesquisa. A segunda questão diz respeito aos elementos do método

fenomenológico que se conservam quando se transpõe o método filosófico para a

pesquisa empírica, merecendo especial atenção a redução fenomenológica

(epoqué) e a redução eidética (unidades de sentido).

Voltemos à primeira questão proposta por Moreira (2002): Quais os tipos de

fenômenos são mais apropriados para a pesquisa fenomenológica? Diante da

51

questão o autor inverte a ordem da pergunta respondendo que tipo de fenômenos o

método fenomenológico se propõe a investigar.

Na verdade, o método fenomenológico enfoca fenômenos subjetivos na crença de que verdades essenciais acerca da realidade são baseadas na experiência vivida. É importante a experiência tal como se apresenta, e não o que possamos pensar, ler ou dizer acerca dela. O que interessa é a experiência vivida no mundo do dia-a-dia da pessoa (MOREIRA, 2002, p. 108).

Forghieri (1993) também irá destacar a inabilidade do método experimental e dos

métodos observacionais para investigar fenômenos ligados à experiência humana.

[...] As situações que alguém vivencia não têm, apenas, um significado em si mesmas, mas adquirem um sentido, para quem as experiencia, que se encontra relacionado à sua própria maneira de existir.[...] O sentido que uma situação tem para a própria pessoa é uma experiência intima que geralmente escapa à observação [...] pois o ser humano não é transparente; para desvendar sua experiência o pesquisador precisa de informações a esse respeito, fornecidas pela própria pessoa. A investigação desse tipo de experiência, que constitui a vivência, apresenta-se como um desafio para o método experimental que está voltado para a observação de fatos e o significado destes, considerando-os em si mesmos (FORGHIERI, Apud MOREIRA, 2002, p. 109).

Estávamos no caminho certo. Queríamos um método que pudesse nos dar uma

visão do fenômeno e não só do fato, que conseguisse compreender o significado da

experiência, da violência vivida por jovens moradores de rua.

Aqui entra a aplicabilidade do método fenomenológico. Em relação à experiência, os métodos tradicionais vindos das ciências naturais não conseguem responder a perguntas do tipo: o que significa ter tal ou tal experiência? Isso porque as metodologias das ciências naturais são apropriadas para lidar com apenas um lado da polaridade: com o comportamento observável. Segue-se daí a utilização do método fenomenológico (MOREIRA, 2002, p. 112).

A pergunta essencial que não poderia deixar de ser feita para a construção da

metodologia no projeto era: como se pode ter acesso à experiência consciente?

Para Merleau-Ponty o corpo é a mediação entre a experiência e consciência

(MERLEAU-PONTY, 1960/1984). Partindo dessa idéia fomos buscar os passos que

52

a fenomenologia existencial nos indicava como caminho para termos acesso à

experiência consciente.

A fenomenologia estabeleceu três passos reflexivos para o estudo da experiência

consciente. O primeiro passo do método fenomenológico de Husserl sugere a

descrição do objeto da experiência como se se tratasse de um primeiro encontro.

Esse primeiro passo é conhecido como epoché, ou seja, colocar em suspensão todo

conhecimento acerca daquele objeto. É preciso deixar claro que não existe

unanimidade quanto à utilização da epoqué, como nos explica Moustakas (1994):

Na medida em que eu reflito sobre a natureza e o sentido da epoqué, eu a vejo como uma preparação para a derivação de novo conhecimento, mas também como uma experiência em si mesma, um processo de colocar de lado predileções, preconceitos, predisposições, e permitir que as coisas, os eventos e as pessoas entrem de novo na consciência, e olhá-los e vê-los mais uma vez, como se fosse pela primeira vez (MOUSTAKAS, Apud MOREIRA, 2002, p. 114).

O objeto deve ser descrito como se o descritor não soubesse absolutamente nada a

seu respeito, deixando de lado suas preferências, memórias sugeridas pelo objeto

em descrição, desejos, imaginações e valores. Também não estaria preocupado em

descobrir as causas do objeto ou as justificativas de sua existência. Nesse primeiro

momento a descrição deve ser fidedigna. Concluída a descrição, passa-se ao

segundo passo, que é a exploração ou investigação do material descrito; a

condução desse passo se dá através de perguntas à descrição.

Ao esgotar as perguntas possíveis, o pesquisador verifica que partes identificadas

na descrição podem ser retiradas sem comprometer a estrutura ou essência do

objeto. Extraem-se nesse passo as unidades de significação, definindo o que é

53

essencial para a identificação do objeto. Conclui-se o segundo passo com a

preparação de uma nova descrição.

Esta segunda descrição mostra a nova consciência do objeto da experiência. O

objeto está definido, as partes identificadas, e as distinções entre o essencial e o

não-essencial definidas.

O terceiro passo (interpretação) revela o direcionamento da consciência para aquele

determinado objeto da experiência. Na teoria de Husserl, chega-se a este sentido

através das várias modalidades dos processos mentais.

Estes processos são conhecidos como afeição (eu sinto), conação (eu julgo) e

cognição (eu penso). Husserl procurava neste último passo do seu método um eu

submerso na experiência. Desta forma, a investigação chega ao fim com a

descoberta da intencionalidade do outro.

A descrição final do objeto da experiência seria a consciência do pesquisado. O que

possibilita a experiência de acesso à consciência do outro é a intersubjetividade –

uma subjetividade comum a duas ou mais pessoas.

A fenomenologia existencial de Merleau-Ponty preserva os três passos do método

fenomenológico. Contudo, Merleau-Ponty se diferencia invertendo a ordem e

definindo como ponto de partida a descoberta da intencionalidade que Husserl

definiu como ponto de chegada. Merleau-Ponty parte da procura pela

intencionalidade do outro para recolocá-la no mundo. Observar-se, aí, uma virada no

54

campo teórico. A fenomenologia existencial de Husserl idealizara um eu

transcendental, um eu que existisse por definição, aprioristicamente (RIBEIRO JR.,

2003).

Já Merleau-Ponty estava à procura de um eu que existisse no mundo.

O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não ‘habita’ apenas o ‘homem interior’, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco da verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 6).

Nesse momento a fenomenologia transcendental se transforma em fenomenologia

existencial.

A fenomenologia existencial de Merleau-Ponty define como primeiro passo a

descrição do mundo como vivido pelo sujeito. Este mundo preexiste a qualquer

análise que se possa fazer dele. “O real deve ser descrito, não construído ou

constituído. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção às sínteses que

são da ordem do juízo, dos atos ou da predicação” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 5).

A descrição concentra-se, portanto, numa determinada realidade como vivida por

alguém. A tarefa de descrever desvenda a postura de um sujeito em relação ao

mundo em que vive revelando um modo de existir. O resultado é a definição de um

sentido, de uma perspectiva, enfim, de uma intencionalidade (RIBEIRO JR., 2003).

Os resultados são semelhantes ao primeiro passo de Husserl. Definem-se as partes

dessa experiência e distingue-se o essencial do não-essencial.

55

O segundo passo correlaciona-se com o primeiro passo do método de Husserl que

consiste em afastar o a priori. Desta forma, Merleau-Ponty não considera a

existência de uma divisão rígida entre consciência e corpo, eles estão dialeticamente

relacionados, e é através dessas expressões corporais (fala, escrita,

gesto/expressão, escuta, palavra), numa linguagem sensível, que o humano pode

ser compreendido.

O terceiro passo ultrapassa o método de Husserl. Ele não se limita à definição de

um sentido ou intencionalidade, pois especifica um determinado modo de ser e de

relacionar-se com o mundo.

O método fenomenológico não oferece ao pesquisador modelos de entrevista para

serem utilizados no momento de abordagem com o entrevistado. Diante disso foi

necessário fazer leituras que nos oferecessem ferramentas que pudessem ser

usadas no momento da entrevista.

Em primeiro lugar ela não é uma intervenção e por isso não se utiliza de técnicas na

entrevista. O pesquisador deve estar imbuído de uma postura compreensiva e essa

compreensão deve se expandir em todos os níveis, o movimento do corpo, a

expressão do olhar, e o mundo que cerca o espaço de existência do sujeito da

pesquisa. Só assim será possível que o pesquisador penetre no mundo de um

sujeito encarnado como ele, e possa numa postura de compreensão mútua, no

exercício da intersubjetividade, captar o gesto, a fala, o corpo, o sujeito em seu

movimento existencial, não como expressões de um pensamento, mas o próprio

56

pensamento. Não como nuances de um movimento, mas o próprio movimento

existencial.

A entrevista fenomenológica que não se propõe a qualquer tipo de intervenção e

tampouco se utiliza de técnicas, parte da experiência da compreensão.

Compreensão totalizante, atenta aos movimentos do corpo, à expressão do olhar. A

intenção é captar a experiência integral do sujeito que estamos entrevistando, numa

atitude face ao mundo e maneira de existir.

Importante para a entrevista não é só o relato, mas as explicações, os gestos e

objetos que cercam esse entrevistado, pois sua postura no mundo está ligada a tudo

que o cerca.

A entrevista não é apenas o gesto de escutar, mas de perceber o gesto e desvelá-lo,

entendendo-o como gesto-expressão. No momento da entrevista o que for

“percebido” pelo entrevistador pode e deve ser dito no intuito de iluminação da

intersubjetividade. É possível solicitar ao entrevistado a explicitação do sentido do

seu gesto-expressão quando este não estiver suficientemente nítido ao

entendimento do entrevistador. A intenção é captar a coerência de sua realidade no

mundo e a maneira de se posicionar frente a eles. Temos que nos interessar pelo

mundo do entrevistado, ao ouvir histórias, explicações, queixas, temos a

possibilidade de enxergar sua experiência que deve ser considerada em sua

totalidade.

57

O mundo material do sujeito, sua casa, seus móveis, seus documentos, suas cartas,

fotografias, está ligado a ele que o vive e o percebe.

A percepção do gesto do sujeito em seu movimento é efetuar a síntese de transição.

Essa síntese não é precedida por uma tese e tampouco será sucedida por uma

antítese que elabora por sua vez novas teses. A síntese de transição não se faz no

tempo enquanto sucessão, passado, presente e futuro. Não é focalizar suas

queixas, interrogar a natureza de seu problema ou sua capacidade ou incapacidade

de resolvê-lo. Não se trata de medir prós e contras de uma situação vivida pelo

entrevistado, tão pouco efetuar julgamentos acerca de seu caráter, da maneira como

os resolveria no futuro.

Não é descobrir, ou entender se ele é possível de ajustes, de adaptação ao meio

social como se ele fosse modelável, submisso. A síntese de transição não é ativa e

sim passiva, o que não quer dizer imobilidade. É um penetrar no âmago do “ser” do

entrevistado numa estrutura-horizonte e sendo, ao mesmo tempo, visto por ele em

seu movimento para o mundo. Trata-se de um “ver” habitando o mundo. É um

entranhamento na história que ambos assumem e recriam.

Efetuar a síntese de transição é, pois, comprar passagem para entrada no mundo,

um poder se libertar de velhos hábitos e de restos de covardia que amarram o

sujeito na des-historicidade. Trata-se, para o entrevistado, de passar em revista o

passado enquanto fonte de ensinamento e experiência para o futuro, “no presente

sem cessar” da existência.

58

A história é vista como um encontro, nesse encontro a compreensão do outro

implica no respeito a sua alteridade, convite que não poderíamos deixar de aceitar.

Nosso projeto, amadurecido ao longo do percurso de um ano, já apontava

silenciosamente para esse tratamento.

2.2 O Projeto: de cacos à construção

Inicialmente, esse projeto tinha como proposta realizar entrevistas com jovens que

estivessem abrigados em projetos e casas de passagem oferecidas pelo município a

adolescentes e jovens em conflito com a lei.

A proposta era iniciar a coleta de dados em agosto de 2006, com previsão para

terminar em janeiro de 2007 (ou seja, seis meses de coleta) e a redação do texto se

iniciaria em março de 2007, com previsão de conclusão em julho do mesmo ano.

Já havíamos definido os espaços, que eram a Casa de Passagem Feminina e a

Casa de Passagem Masculina, localizadas na sede do município e destinadas ao

atendimento a adolescentes e jovens entre 12 e 18 anos que tinham sofrido

violência ou que estivessem sendo ameaçados em suas comunidades de origem.

Os sujeitos seriam 04 (quatro) jovens do sexo feminino e 04 (quatro) do sexo

masculino. No inicio de setembro começamos as entrevistas, que foram

relativamente fáceis de realizar devido ao trabalho desenvolvido como educadora

59

nos dois projetos em 2004 e 2006 e o contato com esses jovens nas ruas ou em

visitas realizadas com a equipe de abordagem de rua.

Já estávamos na 4ª entrevista quando fomos impedidos de continuar o trabalho

devido à grande quantidade de informações sigilosas que os entrevistados

começaram a compartilhar conosco. O envolvimento como educadora social nessas

instituições dificultava, senão inviabilizava, o distanciamento que seria necessário

para a segurança dos jovens e também a de seus funcionários.

A única alternativa, então, seria ir para as ruas em busca de jovens que sofreram ou

sofrem violência no seu dia-a-dia. Era preciso voltar ao grupo de rua com o qual

havíamos trabalhado em 2002 e 2003, que se abrigava nas imediações do Terminal

de Laranjeiras. Há muito havia perdido o contato com esse grupo de rua. O primeiro

motivo foi a minha transferência de setor de trabalho, uma vez que saí das ruas para

desenvolver outras atividades em uma Casa de Passagem Masculina localizada no

bairro Jacaraípe.

Ao retornarmos ao trabalho nas ruas em 2005, surge a segunda dificuldade, pois a

maioria daqueles que tinham feito parte do grupo já não era atendida pelos projetos

destinados a menores em risco social. Risco social é entendido nesta pesquisa

como exclusão social, que ultrapassa o conceito de desigualdade e que engloba

processos culturais e institucionais, por meio dos quais numerosas parcelas da

sociedade brasileira tornam-se privadas do exercício da cidadania, desassistidas

pelas instituições públicas e desamparadas pelo Estado, ou seja, falta ou

insuficiência da incorporação de parte da população à comunidade política e social

60

(ABRAMOVAY, 1999). Partindo dessa premissa, no caso de jovens que moram nas

ruas, não poderia ocorrer o encerramento de atendimento ao completarem a

maioridade, pois os mesmos permanecem em situação de risco social.

Uma dezena de vezes nos dirigimos às imediações do Terminal de Laranjeiras e do

Supermercado Epa, quando começaram as dificuldades de verdade. O grupo já não

existia mais, pelo menos não enquanto “grupo” que andava junto, se protegia, tinha

um abrigo comum e uma história construída na rua enquanto meninos e meninas de

rua de Laranjeiras.

Fomos à procura de pistas nos arquivos do Projeto Abordagem de Rua. A intenção

era encontrar indícios que apontassem para endereços e vínculos familiares que

pudessem nos levar a alguns membros do grupo (Tino, Bino, Joana, Mauro dos

cachorros, Gui) e saber seus paradeiros. De antemão já sabíamos que estavam

todos com mais de 18 anos e que só com muita sorte estariam ainda vivos.

Os arquivos foram trazendo relatos do trabalho nas ruas. Jovens arrebentados pela

polícia ou por seguranças das redondezas, a morte de tantos outros, a brincadeira,

os cachorros, os trapos, os afetos construídos e os desafetos que duravam apenas

até o dia seguinte.

Cheguei às mediações do terminal às 09h00minh da manhã e os meninos logo apareceram dizendo que ‘Joana’ e ‘Bino’ estavam no Conselho Tutelar com ‘Gui’, ele havia sido espancado à noite pelos seguranças do terminal. Foi um alvoroço só. Enquanto o conselho preparou a papelada para irmos pra DPCA Gui chorava, Mauro cheirava tinner e Jô e Bino brigavam por ciúmes. Todos os dias me pergunto por que volto no dia seguinte. Mas eu sei a resposta ‘cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é’ (Diário de Campo, 18 de novembro de 2002).

61

Entretanto, não tínhamos nenhuma intenção de desistir. Resolvemos ir à noite até os

arredores do Terminal de Laranjeiras a procura dos nossos sujeitos, já que ali tem

um intenso fluxo de pessoas circulando em bares, botecos, esquinas e pontos de

ônibus.

Chegamos a Laranjeiras às 20h00minh de uma sexta-feira. O movimento estava

começando a ficar intenso, os bares se enchendo de trabalhadores com seus

uniformes e botinas, as prostitutas, poucas, circulavam devagar, alunos e pessoas

apressadas passavam alheios ao movimento.

Sentamos num bar próximo a uma loja de departamentos, esperamos que o garçom

viesse à mesa e já estávamos prontos para sair quando vimos atravessar a rua um

dos jovens do grupo.

Mauro e seus cachorros, uns cinco ou mais, mochila velha nas costas, pano úmido

de tinner na boca, olhar triste e apesar de já ter completado a maioridade tinha

espinhas, muitas espinhas, pelo rosto.

Foi nesse momento que nos demos conta de que ali não já não havia mais meninos.

O Estatuto Jurídico já lhes havia conferido a maioridade, agora eram homens e

mulheres, no entanto, sua condição de rua permanecia inalterada. Aos nossos olhos

não lhes faltava nenhuma semelhança com meninos. Onde quer que fossem

levavam consigo algo de puro, de anjos tortos, com seus trapos, cobertores e

cachorros acompanhando-os por toda parte.

62

E só reparamos mais tarde porque nossos atores abrigam sobre os trapos com que perambulam algo assim como um punhal sobre o manto: o tempo. Fingem a eterna infância, mas inconscientemente são corroídos pela obsessão da fugacidade da infância. Pois é assim que todos começam a deixar de ser meninos: quando descobrem que não serão meninos para sempre. Essa angústia não é específica dos meninos de rua, mas de todos os meninos do mundo (MILITO; SILVA, 1995, p. 17).

Depois disso, foi como encontrar a ponta do fio. Mauro revelou o paradeiro de todos

eles, onde estavam, o que estavam fazendo, quem estava cumprindo pena e quem

já havia morrido.

Foi através da ajuda de Mauro que essa pesquisa começou a encontrar seus

sujeitos e, a partir dessas pistas, compreender os caminhos percorridos por esses

sujeitos. E são esses relatos que pretendemos começar a contar agora.

Através dele tivemos notícias de “Gui”, o que nos causou enorme alegria, porque,

especialmente dele tínhamos lembranças de momentos muito especiais do trabalho

na rua. Ele sempre questionou nosso trabalho na rua.

Quando montamos um projeto para tirar os documentos do grupo ele participou de todas as etapas sem questionar. No dia que estavam todos com CIC, CPF e carteira de trabalho ele questionou para quê aqueles documentos serviriam. Como nós não conseguimos passar do ingênuo jargão ‘o documento te torna cidadão’, ele riu alto, rasgou os documentos e os jogou pro alto (Diário de campo, 10 DE JULHO DE 2003).

Nosso colaborador contou que “Gui” estava dormindo em Laranjeiras com um grupo

de mais ou menos seis jovens, falou que ele estava muito debilitado e que já não

podia mais contribuir com o trabalho dele: a prostituição. Disse-nos que era mais

fácil encontrá-lo pela manhã, pois à noite era quase impossível. Esse grupo de

63

jovens moradores de rua era acompanhado pela Abordagem de Rua desde 2001, já

não eram mais assistidos por esse projeto por já terem completado a maioridade.

Esse grupo representava o grande nó da abordagem, todos os problemas que os cercavam, desde o número de componentes (uns 25), a indisposição para o diálogo, sua aspereza, alguns muito arredios, as relações que eles mantinham com outros sujeitos na rua como carroceiros, mendigos, traficantes, policiais, enfim, o que era um “problema” para os educadores era a única forma de sobreviver nas ruas para o grupo. Logo de cara era possível perceber que andavam, educadores e meninos, em direções opostas (Diário de campo, 14 de Maio de 2002).

Dois dias depois dessa conversa voltamos ao nosso ponto de observação que

consistia em pontos estratégicos como as proximidades do Shopping Laranjeiras, os

sinais de transito e o estacionamento de algumas lojas e supermercados.

A espera era sempre longa, já era meio-dia quando resolvemos andar em direção ao

Shopping para diminuir a tensão e espantar o cansaço, quando vimos “Bino” (jovem

que vive nas ruas desde pequeno). Aproximamos-nos, conversamos com ele sobre

a pesquisa. Acabamos marcando uma entrevista para o dia seguinte.

Perguntamos sobre “Gui” e ele disse que ele estava sumido e que talvez estivesse

acamado na casa da avó. Havíamos, em meio a tropeços, encontros e

desencontros, conseguido entrar em contato com “Mauro dos cachorros”, com “Bino”

e era bem possível que através deles fosse possível, em um tempo relativamente

curto, entrar em contato com os outros jovens estando eles na rua ou em casa.

64

2.3 - Formação do educador: limites e desafios na pedagogia das calçadas

(...) Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães de Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil (AMADO, 1937, p. 178).

Esse novo tipo social surgiu no início da década de 90 na efervescência das

discussões sobre a municipalização das políticas de atendimento à criança e ao

adolescente e a produção da instituição “menino de rua” que, segundo Mateus

(2003),

[...] é aceita como natural, não somente pela população em geral, mas também por alguns movimentos sociais que com estes segmentos tentam trabalhar de formas diferentes das tradicionais. Que subjetividades estão sendo produzidas e fortalecidas quando se percebe ‘menino de rua’ como uma instituição, como uma entidade ahistórica e abstrata? Na população em geral constroem-se formas de perceber, pensar, sentir e agir sobre este segmento como se fosse por natureza mau, perverso, desajustado e que, portanto, deve ser ‘tratado’ e até mesmo eliminado, se necessário. Nas próprias crianças e adolescentes que vagueiam pelas ruas estas mesmas subjetividades estão sendo produzidas (COIMBRA; NASCIMENTO, Apud MATEUS, 2003, p. 36).

Ele chegou às ruas, praças e embaixo das pontes quando ela já estava ocupada por

outros atores e por isso foi recebido por olhares desconfiados, olhos de meninos, de

voluntários, que já faziam um trabalho sem serem institucionalizados. Os donos do

“espaço” rua olharam com estranheza aquele novo personagem que começava a

ocupar as ruas de várias cidades, sobretudo as metrópoles brasileiras.

Seu papel, sua função ou sua competência ninguém sabia, talvez nem ele tivesse

clareza disso. Em 1995 arriscaram uma definição “sua missão é articular os dois

mundos, o da casa e o da rua...” (MILITO; SILVA, 1995, p. 62).

65

De alguma forma eles acreditaram na “missão”, que era articular dois mundos até

então inconciliáveis: o do “selvagem” mundo da rua com o mundo “doméstico”. A

idéia de que a rua e seus “habitantes” precisam ser vigiados e controlados não é

recente, data dos movimentos higienistas do início do século vinte.

Um estudo sobre a história da legislação brasileira para a infância e adolescência

analisa algumas práticas e discursos de “especialistas” que têm fortalecido modelos

dominantes de criança, jovem e família, produzindo muitas vezes a exclusão

daqueles que neles não se enquadram:

(...) o comissário de vigilância exercia, no período estudado (1939-1945), atuação relevante junto ao Juizado. Marcado pelas teorias higienistas, racistas e eugênicas, e por práticas moralizadoras, influía diretamente nos destinos das famílias pobres ao diagnosticar os determinantes da ocorrência da doença, da miséria, do abandono e da criminalidade que atingiam o chamado ‘menor’ (COIMBRA, Apud FRAGA; LULIANELLI, 2003, p. 29).

Essa figura policialesca produzia relatórios que subsidiavam as ações de tutela e

internações impetradas pelo Estado contra a população carente.

Outro personagem observado ao longo do estudo citado é o assistente social.

A análise do período seguinte (1974-1983) mostrou o assistente social atuando não só conforme o modelo higienista, que combinava a caridade, a filantropia e o cientificismo, mas também segundo práticas em que outras ‘fisionomias’ se faziam presentes. O modelo que propugnava a salvação do país pela salvação da criança, já anteriormente utilizados pelo comissário de vigilância, assumia outro ‘rosto’ nos anos de 1960 e 1970, com a vigência da Doutrina de Segurança Nacional e com o fortalecimento do tecnicismo. Insere-se aí, perfeitamente, o surgimento do Serviço Social no Brasil, na década de 1940, marcado pelo assistencialismo católico, pelo cientificismo, mas também pela missão de erigir uma nação moderna. Esse modelo de salvação da criança é, também, completamente incorporado pela ditadura militar que se instaura no Brasil nos anos de 1960 e 1970 (COIMBRA, Apud FRAGA; LULIANELLI, 2003, p. 30).

66

E, por fim, ainda segundo Coimbra, na análise dos documentos produzidos por

esses profissionais encontra-se o discurso “psi” que comprova a participação indireta

do psicólogo.

Observamos que o psicólogo tem sido sempre chamado a atuar nos casos considerados mais difíceis, em especial classificados como atos infracionais. Dessa maneira, a demanda endereçada ao psicólogo solicita que ele exerça a função de um perito do individual, assumindo uma postura pretensamente neutra desvendando ‘mistérios’, ‘desejos’ e ‘verdades’ do sujeito (COIMBRA, Apud FRAGA e LULIANELLI, 2003, p. 30).

O assistente social e o psicólogo estavam atuando no campo da assistência à

criança e ao adolescente com seus papéis bem definidos. Entretanto, o educador

social - ou de rua como era chamado - que papel ele desempenhava naquela cena?

Ele seria o espectro do comissário de vigilância com nova roupagem e com as

mesmas funções?

Um estudo feito em 2003 sobre a gênese do Programa Rede Criança da Prefeitura

Municipal de Vitória (PMV) traz algumas reflexões acerca da função do educador

social que atua nas ruas de Vitória no combate ao trabalho infantil e à delinqüência

juvenil, retirando das ruas da capital crianças e adolescentes.

O projeto cidadão tinha, até 1999, dois pontos em que se sustentava: o Projeto Abordagem de Rua, no qual ‘educadores’ sociais, realizavam um mapeamento que dizia respeito a uma observação sistemática e não participante, em que eram registrados o número de crianças, a faixa etária e o sexo, as características físicas e psicológicas, os locais onde se encontravam, seus horários e hábitos, onde dormiam, como se alimentavam, se existiam casos de alcoolismo e drogas, buscando assim a produção de um perfil da criança ou adolescente atendido, para efetuar sua retirada das ruas (MATEUS, 2003, p. 35).

A temática ora investigada nasceu a partir de reflexões acerca do trabalho do

pesquisador como educador social no município de Serra. Esse trabalho foi

desenvolvido no projeto Abordagem de Rua, que faz parte das políticas de

67

atendimento a crianças e adolescente em situação de risco social. A equipe de

educadores é composta por um coordenador, seis educadores e dois motoristas.

Essa equipe circula por todo o município abordando crianças e adolescente que

estejam nas ruas em situações de trabalho, pedindo, morando ou se prostituindo.

Durante a abordagem, o educador procura fazer um vínculo, chamado de namoro

pedagógico, que busca uma aproximação com o intuito de ganhar a confiança do

sujeito abordado. Nos encontros seguintes o educador estreitará esse contato na

tentativa de estabelecer com o indivíduo ou o grupo uma relação de confiança. Essa

relação, baseada no respeito ao Outro, possibilitará a construção de um projeto de

mudança, Isto é, um projeto de vida que ofereça outras alternativas de sobrevivência

que não seja a vida nas ruas.

Sem leme, bússola, navegando à deriva de suas próprias intuições (o menino e o

compromisso, a emoção e o envolvimento, a rua e a experiência cotidiana de

conviver), locado em espaços congestionados por práticas antigas de atendimento

pautado no modelo correcional-repressivo, é que surge esse ator social.

Apesar do tempo (quase duas décadas) em que temos esse profissional circulando

por ruas e instituições de atendimento a criança e ao adolescente, essa profissão só

teria sua legitimação através de concursos públicos muito recentemente. No caso do

município da Serra, o primeiro concurso foi realizado em 2004, com vagas para 40

educadores, para os quais foi exigida a formação no magistério de 2° grau/Ensino

Médio (antigo curso normal).

68

O cotidiano de trabalho do educador social é bastante imprevisível, sobretudo se ele

for feito nas ruas com grupos que, além de estarem socialmente em risco, estão

também em situação de rua, o que agrava a situação.

A rua, com toda a sua dinâmica e sua imprevisibilidade, traz para o trabalho do

educador um elemento constante: a violência.

Diversas crises institucionais resultaram em movimentos contra os regimes de

internato para menores, culminando em movimentos organizados por diversos

setores da sociedade civil que questionavam o modelo correcional punitivo

disseminado pela FUNABEM (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor).

Criada em 1964, a Funabem se justificava pela política de segurança nacional para o menor. Em 1970, a partir da revisão do Código de Menores, são criadas algumas categorias que implicariam a internação do menor. Essa categoria era feita inicialmente por assistentes sociais e depois por equipe multidisciplinar da própria Funabem:a) situação irregular;b) família desestruturada;c) criança abandonada sem família (burguesa);d) criança carente (quando a família não podia proteger);e) menor de conduta anti-social (família não podia controlar os excessos

da criança);f) menor infrator (praticava ações que implicavam envolvimento seu e

de terceiros);g) deficientes físicos e mentais;h) menor ‘perambulante’ (sem oficio, expulso da escola, fugitivo do lar);(...) nesse período, vigorava o modelo correcional-repressivo, que parte do principio de que a ação governamental deveria suprir as lacunas deixados pela família e assumir a educação dos menores incluídos nas categorias irregulares (MILITO; SILVA, 1995, p. 121).

Com a proposta de descentralização advinda com a Constituição de 1998 e a Lei

Orgânica de Assistência Social - LOAS, a política de assistência no Município de

Serra teve que se adequar. Passou, assim, a ser gerida pela Secretaria de

Promoção Social com a participação efetiva da Sociedade Civil e Comunidade em

69

geral, junto ao Conselho Municipal de Assistência Social, criado pela Lei nº 1.868, de

29 de dezembro de 1995.

Situada dentro da Política de Assistência Social, as diretrizes da Política de Atenção

à Criança e Adolescente formalizaram-se através da criação do Conselho Municipal

dos Direitos da Criança e Adolescente, pela Lei n.º 1631/92, alterada pela Lei n.º

2349 de Dezembro de 2000. O Conselho Municipal responsável pela concepção da

política de atenção à criança e ao adolescente é composto por doze membros, dos

quais seis são representantes da sociedade civil e seis do poder público.

A partir desse momento, o atendimento foi municipalizado ou assumido por ONGs

(Organizações não-Governamentais) na execução do trabalho com jovens infratores.

É nesse cenário que surge a função do educador social.

A convivência diária com todo tipo de violência (sexual, física, psicológica, etc.)

poderia apontar dois caminhos no cotidiano desses educadores: o primeiro seria

calcificá-los, endurecendo-os e tornando-os frios e meramente profissionais diante

das histórias, das lágrimas e da dor. O segundo - e esse é o caminho que

acreditamos que foi o percorrido de diferentes formas e sob diversas concepções -

tornando esses educadores sujeitos comprometidos, incomodados, inquietos com a

situação de dezenas de jovens que fazem das ruas seu lugar de moradia.

A aguda imprevisibilidade do trabalho nas ruas é aceita pelos educadores como

parte de sua rotina, no entanto, essa “rotina” às vezes é quebrada por situações e

70

episódios que, mesmo parecendo previsíveis, torna a experiência vivida pelo

educador social algo inusitado1.

A notícia da morte do adolescente esta manhã mexeu com todos os educadores. Voltamos para a Secretaria para dar a notícia a Juliane (coordenadora da Abordagem) e ver que providências deveriam ser tomadas. Nós o conhecíamos, já havíamos feito inúmeras visitas a família dele e acho que devemos ir até a casa de sua família ver como estão, chorarmos com eles, fazer alguma coisa... (Diário de Campo do Projeto Abordagem de rua/PMS, 16 de Junho de 2002).

A morte do garoto caiu no esquecimento como todas as outras que a antecederam e

as que vieram depois mostrando um fracasso coletivo, social e político.

Por que silêncio ao invés de gritos? Porque apatia e não revolta? Foi preciso

perceber que o que aquele grupo pensava sobre a morte, o estupro, o

espancamento, os maus tratos, estava guardado no silêncio que escapava de suas

bocas. O que se sabia sobre violência não era suficiente para compreenderem as

múltiplas facetas no cotidiano das ruas e o que os meninos sentiam diante dela,

como a viam e que percepções construíam não poderiam ser traduzido em palavras,

o que sentiam não era dito.

1 Um exemplo dessa situação pode ser ilustrado pela morte de um dos meninos da rua internado na UNIS (Unidade de Integração Social) em 2003. “Zarolho”, como era chamado na rua, foi espancado, asfixiado e depois teve seu rosto queimado por seus companheiros de cela. Dentro da unidade os jovens se calaram. Ninguém “sabia”, ninguém “viu”. Comportamento inaceitável, mas compreensível diante das denúncias de tortura e maus tratos nesses espaços correcionais.

No entanto, na rua, o mesmo silêncio ocupou o fim de tarde dos meninos (as) de Laranjeiras diante da notícia da morte de “Zarolho”, silêncio esse incompreendido por nós, educadores de plantão naquele dia. Ele não era um garoto que passou um dia na rua, era morador há alguns anos, tinha feito ali laços de amizade, acordos e contratos de convivência que faziam com que ele pertencesse àquele grupo.

Era a primeira vez que presenciávamos a notícia de um óbito e o silêncio falante do grupo nos tirou o sono por dias. Outras mortes se seguiram àquela e todas as vezes em que a notícia chegava ao grupo o tempo parava, a oficina perdia a graça, o futebol esfriava. Mas nenhuma morte era mais sentida do que aquela que ocorria nos espaços correcionais, sendo eles de triagem ou os de cumprimento de pena definitiva. A morte de “Zarolho” sem condições de defesa traduzia algum tipo de fracasso para aquele grupo naquele momento.

71

2.4 - O relato de um Educador social: entre ruínas e descobertas

Faço minhas as palavras de Benjamin ao evocar minha experiência de educadora

social:

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas a exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador (Walter Benjamin, 2000, p. 239 ).

A minha experiência como educadora começou no município de Vitória, durante o

processo de municipalização do atendimento à criança e ao adolescente, convênio

celebrado entre IESBEM (Instituto do Bem Estar do Menor) e a Prefeitura de Vitória.

No inicio da década de 1990, com o objetivo de descentralizar as políticas voltadas

para esse segmento e cumprir o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que

passou a vigorar no inicio daquele mesmo ano. A Capital, que era considerada pelo

Fundo das Nações Unidas como uma das melhores do país para o desenvolvimento

de crianças de zero a seis anos de idade, amargava um número altíssimo de

crianças e adolescentes em situação de rua.

Neste quadro de desigualdade social e miséria urbana, Vitória dividia com outros municípios da Região Metropolitana a procedência do expressivo contingente de crianças e adolescentes ditos em situação de rua na cidade. Paralelo ao levantamento destes dados pela prefeitura, constantes denúncias de espancamentos e extermínios começavam a ter ampla visibilidade na imprensa falada e escrita. Um processo fragmentado, mas em crescimento acelerado de extermínio de crianças e adolescente se moldava. Uma política que contava com o apoio de amplos segmentos sociais, contando sobretudo, com a participação, apoio ou convivência da polícia (MATEUS, 2003, p. 35).

72

Para iniciar o trabalho, foi montada uma equipe multidisciplinar que contava com

pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, oficineiros de capoeira, teatro e dança.

Cheguei na rua num dia de calor intenso, era por volta do meio-dia e havia um

grande alvoroço por ser a hora do almoço. Estávamos na Praça Costa Pereira,

ponto de encontro de um grupo grande de meninos e meninas de rua, e teríamos

que andar até a Praça Oito para pegarmos as marmitas no restaurante Linhares.

Com fome e no corre-corre eu passei despercebida pelo grupo de aproximadamente

30 jovens. Estava assustada, era meu primeiro dia na rua, observei que tinha quase

a idade deles e o pior, não sabia o que estava fazendo ali.

Depois de todos comerem, começaram a fazer algazarra em frente ao restaurante e

o dono pediu gentilmente que nos retirássemos, então voltamos a praça e aí

começaram as oficinas de capoeira e música que chamavam a atenção dos

passantes.

Os meninos que não queriam fazer oficina saíam andando e ganhavam as ruas do

Centro e quando voltavam tinham nos bolsos relógios e bijuterias roubadas. Pensei

que não voltaria no dia seguinte, mas, voltei e daquela vez o grupo notou a presença

de um membro novo na equipe. Perguntaram meu nome para uma assistente social

e ficaram falando a língua do “P” toda vez que eu me aproximava; fingiam que não

me viam ou então eu era motivo de sonoras gargalhadas do grupo de meninas.

O psicólogo me consolou dizendo que eu estava na “berlinda” e que eles iriam me

testar até eu desistir ou ser aceita. Aceitei o desafio movida por um desejo

73

incontrolável de conhecer aquelas pessoas e finalmente compreender o que as

tornava tão resistentes, fortes e determinadas num ambiente tão inóspito como a

rua. Montei, também, a minha estratégia de sobrevivência nas ruas e minha arma

especial era a escuta, podia ficar horas ouvindo os meninos falarem, contarem suas

peripécias, história e anedotas, verdadeiras ou mentirosas, sem me cansar.

Essas histórias fazem parte de um repertório que guardo até hoje em meu diário de

campo com as anotações das reuniões feitas na Praça Costa Pereira. Lembranças

de Márcia e Formigão, que eram amigos de infância num bairro qualquer em

Cariacica que se tornaram companheiros na rua, tiveram dois filhos e comandavam

o grupo de meninos e meninas de rua de Vitória como um pai e uma mãe numa

casa sem portas, paredes ou teto.

Ou ainda a trajetória de “Xuxa” que largou o conforto da casa dos pais em Belo

Horizonte para viver nas ruas de Vitória atrás do seu “Negrete”. Brigona e violenta,

era soro positiva e foi expulsa do grupo porque tinham medo que ela contaminasse a

todos.

Lembro-me de “Andróide” e seu olhar perdido, seu corpo franzino e sua voz

inaudível. Um dia perguntei a razão de seu apelido tão peculiar e me disseram que

ele era chamado assim porque não esboçava qualquer reação se fosse “currado”

pelos meninos em qualquer lugar e a qualquer hora.

As histórias me assustavam e encantavam ao mesmo tempo. A cada dia uma nova

história, com novos personagens e enredo surpreendente. Mas nem só de histórias

74

viviam os educadores, nós tínhamos como objetivo saber quantos meninos e

meninas estavam morando nas ruas, quais seus domicílios de origem e sua relação

com a família e a rua.

Começamos o mapeamento pelo centro da Capital, quais eram os pontos de

encontro de dia e os locais de pernoite. A tarefa que parecia fácil foi revelando

complexa. Os “meninos” conheciam cada canto da cidade, sabiam seu

funcionamento e o que movimentava suas engrenagens. Possuíam a capacidade de

desaparecer por dias e só aparecer quando lhes convinham. Montaram uma rede de

relações com prostitutas, camelôs, policiais e mendigos que lhes garantiam

condições de sobrevivência que nenhum de nós poderia supor.

Eles amanheciam em um determinado lugar e anoiteciam em outro, podiam dormir

embaixo da Segunda Ponte, à vista de todos, ou em uma casa abandonada na Praia

do Canto.

Depois de “apanhar” muito nós fomos aprendendo que seria impossível um

mapeamento que não fosse fruto de um envolvimento com o grupo. Tínhamos de

segui-los para aprender com eles a linguagem da cidade, observá-los com o intuito

de entender sua dinâmica, seu modo de viver e de pensar e, por fim, ouvi-los para

escutar a melodia tristonha de suas histórias.

Guiados por nossos sentidos, fomos nos envolvendo - alguns educadores mais,

outros menos - com o objetivo de retirar daquele grupo as respostas para as

questões que se colocavam à nossa frente naquele caminho totalmente novo e, a

75

partir delas, elaborar as ações para o atendimento a meninos e meninas de rua no

município de Vitória. Enquanto discutíamos que rumo seguir no emaranhado de

descobertas sobre o grupo de rua e as marcas deixadas por suas pegadas pela

cidade, o grupo de educadores sociais começou a ser pressionado a mostrar

números, dados e relatórios que pudessem ser utilizados como subsídio para a

tomada de medidas legais.

Foi nesse momento que o grupo começou a pensar o seu papel, ou pelo menos o

papel que as instituições IESBEM - PMV - Secretaria de Justiça queriam e pagavam

para que ele desempenhasse junto ao grupo de rua, já famoso por seu número,

ousadia e toda espécie de anedotas sobre suas “ações criminosas”.

O que sabíamos, e era só isso que sabíamos, é que era preciso nos posicionar

diante das instituições que respondiam por aquele grupo de profissionais na rua e

diante do grupo de meninos e meninas de rua de Vitória.

Enquanto hesitávamos na produção de relatórios que apontassem a “solução” para

o problema, os jornais e a televisão noticiavam dia e noite a “calamidade” em que se

encontrava o centro da capital sob o domínio de um grupo de “menores de rua”

capazes das maiores atrocidades, entrando em lojas para roubar, atacando

velhinhas, assaltando a mão armada, fazendo sexo e usando drogas em plena luz

do dia.

A sociedade capixaba cobrava soluções para o problema. Diante das pressões, foi

criado, em caráter emergencial, um espaço onde os educadores que estavam nas

76

ruas pudessem levar os meninos para atividades sócio-educativas que os tirassem

da rua e, conseqüentemente, da criminalidade.

Nos primeiros meses do ano de 1990 as portas do “Centro de apoio” foram abertas.

Localizado em uma área em frente ao parque “Tancredão”, o Centro contava com

vários espaços para atividades (arte, dança, biblioteca, vídeo), salas para o

atendimento psicossocial feito pelos técnicos (psicólogos, assistentes sociais e

pedagogos), além de banheiros, refeitório e dormitórios.

Aos educadores sociais cabia a tarefa de acompanhá-los nas atividades recreativas,

de higiene, nas refeições e durante a noite. Enquanto eles se ocupavam da

manutenção do funcionamento do “centro”, zelando por sua ordem, seus conflitos

dormiam.

A abertura do Centro de apoio resolveu parcialmente o problema da circulação do

grupo de meninos pelo centro da cidade, suas novidades ocupavam o grupo o dia

todo, sem falar que encontravam ali comida e abrigo à noite.

Mas não demorou muito para os conflitos surgirem, acostumados a discutirem suas

próprias regras e a tomarem suas próprias decisões sem dar satisfações a ninguém,

o choque com as regras impostas por técnicos e educadores sociais foram

inevitáveis.

Os pactos que foram construídos ou impostos dentro do Centro começaram a ser

quebrados diariamente. Os meninos começaram a usar drogas dentro do espaço,

77

pular o muro para tomar banho de maré (a maré ficava em frente ao Centro, era só

atravessar a rua - uma tentação!), fazer pequenos furtos, comprar drogas. Os

conflitos do lado de dentro eram constantes: queriam almoçar, lanchar e tomar

banho a qualquer hora, quando bem entendessem, tentando recuperar a autonomia

que tinham na rua e recuperar a sua liberdade.

A convivência do grupo de educadores e do grupo de meninos se tensionou de

forma surpreendente. A convivência amistosa se transformou em conflito diário e

constante. Ambos já não se reconheciam.

Alguns educadores abandonaram o projeto, outros foram transferidos e os que

restaram, e eu estava incluída nesse ultimo grupo, tentavam, sem sucesso, ganhar a

confiança do grupo de meninos/jovens de rua que, ao contrário do nosso, não se

dividiu. Mesmo diante dos conflitos, era possível ver sua movimentação: se reuniam

a qualquer hora do dia ou da noite, bastava um sinal e todos iam pulando o muro, e

quando retornavam pareciam mais fortes e unidos, prontos para reivindicarem seus

direitos.

A queda de braço parecia interminável, até que problemas mais graves começaram

a acontecer. A comunidade começou a reclamar da presença dos meninos nas

redondezas e os acusavam de furtos e assaltos. O problema agora não era só

acalmar meninos, polícia e poder público, era também conversar com a comunidade,

negociar um espaço de diálogo onde fosse possível ouvir a todos.

Tendo como foco de atenção o menino das calçadas, o educador de ruamuitas vezes não percebe que o outro pólo fundamental na relação dialógica em que se tenciona o processo educacional (educador/educando) (...) não é exatamente o menino de rua, mas policiais, gringos, transeuntes,

78

residentes, seguranças, comerciantes, famílias que os evitam, espancam ou exterminam (MILITO; SILVA, 1995, p. 53).

Diante de tantos conflitos, que pareciam insolúveis, a diretoria do IESBEM optou por

fechar as portas do Centro de Apoio, os educadores foram colocados em outros

projetos e os meninos e meninas voltaram para as ruas. Muitos morreram, outros

viraram mendigos e outros, lenda.

79

“Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é

forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que

venha armado!” (Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas).

80

CAP III – A PAISAGEM DE UMA PESQUISA

Mapa 1 – Localização do município da Serra no Estado do Espírito Santo na

Região Metropolitana de Vitória

Escala: 1:250

Fonte: Anuário Estatístico do Município da Serra. Serra/ES, 1999.

81

3.1 Contexto histórico-político da cidade da Serra

A Serra não tem nome de cidade, tem nome de obstáculo e talvez isso explique um

pouco de sua história, que tem seu marco inicial em 08 de dezembro de 1556,

quando foi rezada a primeira missa na capela da aldeia de Nossa Senhora da

Conceição. Quatro anos depois surge o pequeno povoado. Tanto a aldeia quanto o

povoado se instalaram inicialmente próximo ao rio Santa Maria, localização que

favorecia o contato com a capital Vitória.

Em 1564 a varíola, doença contagiosa obrigou o povo a se mudar para o outro lado

do morro, onde hoje é a sede do município, deixando para trás mortos, casas e

objetos queimados na esperança de que a doença não os acompanhasse. Tanto os

nativos da aldeia quanto a população do povoado acreditavam que o morro seria um

protetor natural para barrar a propagação da “bexiga”.

Inicialmente o impulso econômico vinha da plantação da cana-de-açúcar, que era

usada para a exportação e na produção industrial de aguardente. Só em 1840

começava o plantio de café.

As duas monoculturas enriqueceram os proprietários de terras que possuíam muitos

escravos. Eles mandavam seus filhos para estudarem em Pernambuco e São Paulo

e ostentavam um padrão de vida de luxo e riqueza.

De 1880 até 1903, foram vinte e três anos de estabilização econômica que

proporcionaram à elite serrana uma vida abastada. Em 1925, o café se desvalorizou

82

e a fama de produtor de grãos especiais, sadios e graúdos, não impediu que a Serra

destruísse e queimasse seus cafezais a pedido do governo federal. Nessa época o

Estado era administrado por Jones dos Santos Neves (1951-1955). A crise do café

enterrou o município em um ostracismo econômico que duraria até 1957.

No final da década de 1950, com o início de uma tímida produção de carvão e o

plantio do abacaxi, a Serra ensaiou seus primeiros passos para o fim da crise. Com

a instalação da CVRD - Companhia Vale do Rio Doce, em 1966, o município

começou a perder seus ares de cidade do interior, conhecendo, a partir dessa data,

uma transformação radical, deixando de ser tipicamente rural, provinciano e cheio de

tradições coronelistas para ser o principal pólo industrial do Espírito Santo.

A aldeia de Nossa Senhora da Conceição da Serra já não era mais a mesma, deixou

de ser aldeia para ser povoado, de povoado para município e de município para

cidade em 6 de novembro de 1875, ou seja, 319 anos após sua fundação

(BORGES, 2003).

3.2 PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO

Até o final da década de 1960, a Serra era um município predominantemente rural.

Sua estrutura econômica estava assentada em pequenas propriedades rurais e 63%

da população se concentrava no campo (Siqueira, 2001). O município se reduzia à

Sede, além de alguns aglomerados ao longo da BR 101 que se estendiam em

direção ao balneário de Jacaraípe, caracterizado por loteamentos irregulares,

pequenos bairros e vilas de pescadores.

83

A partir de 1970, o espaço urbano do município começou a se modificar, com os

primeiros loteamentos de caráter mais urbano que, mais tarde, vieram a se

transformar em bairros. Mas, somente no final da década de 1970, é que os

loteamentos proliferaram, sobretudo em Carapina, nas áreas próximas à Rodovia

BR 101-Norte, e na faixa marítima do município.

Nessa época, iniciou-se a construção de inúmeros conjuntos habitacionais em áreas

próximas à Sede, fator que contribuiu efetivamente para elevar de forma prodigiosa

a população da Serra. É durante esse período que alguns aglomerados carentes

ocuparam o espaço de forma desordenada e irregular, formando favelas e

acarretando inúmeros problemas de ordem social.

A população rural que, como já foi assinalado, em 1960 constituía 63% dos

habitantes locais, diminuiu em 1970 para 54%, quase desapareceu em 1980,

quando atingiu um percentual de apenas 3,0%:

Os indicadores dessa mudança foram a decisão de instalar no município, em inicio dos anos 70, distritos industriais de grande porte, destinados a abrigar o esforço de industrialização por que passaria o Espírito Santo nos anos seguintes – os Centros Industriais de Vitória, CIVIT. Em seguida, a instalação da Companhia Siderúrgica de Tubarão, que engloba também um porto exportador (Praia Mole), o maior investimento industrial já realizado no Estado e um dos maiores no setor siderúrgico no país (SIQUEIRA, 2001, p. 108).

Paralelamente a esse processo, ocorreu a incorporação do território municipal à

expansão do aglomerado urbano da Grande Vitória, o que estimulou a implantação

de grandes conjuntos habitacionais e a expansão do perímetro urbano municipal,

que contribuiu para a redução da população rural.

84

O acelerado desenvolvimento industrial que estava ocorrendo na região de Vitória,

expandiu-se intensamente no município da Serra e estimulou o fluxo migratório para

o município atraídos por uma grande oferta de emprego. No entanto, todo esse

processo desenvolveu-se acompanhado de baixa qualidade de vida da população e

enormes problemas urbanos, uma vez que a Serra não dispunha de infra-estrutura

para suportar a expansão socioeconômica que estava acontecendo (Siqueira, 2001).

A explosão de crescimento ocorreu em função da implantação de grandes projetos

industriais que atraíram número expressivo de trabalhadores sem qualificação

procedentes de estados vizinhos e do interior do estado em busca de trabalho na

etapa das obras de construção civil e que depois de concluídas não foram

absorvidos permanecendo na periferia do Município ocupando o espaço urbano, de

maneira irregular e precária. Esse processo acelerado e desordenado provocou

dilacerações profundas no tecido urbano e nas relações sociais.

Nestes anos, sobretudo na década de 1970 e 1980, o Município foi contemplado

através da Política Nacional de Habitação, com a implantação de conjuntos

habitacionais – Serra Dourada, Porto Canoa , El Dourado , André Carloni, Hélio

Ferraz, Eurico Salles, José de Anchieta, Valparaíso, Maringá, São Domingos, São

Judas Tadeu, São Diogo, Manoel Plaza, Barcelona, Castelândia, Parque Residencial

Laranjeiras, Feu Rosa, Mata da Serra e, mais recentemente, Cidade Continental -

que abrigam, hoje, cerca de 31% da população (IPES, IBGE/Censo 2000).

85

Vale ressaltar que tal ampliação de moradias não foi suficiente para atender a toda

demanda, sobretudo de mão-de-obra desmobilizada, após as etapas da construção

civil e não empregabilidade da mão-de-obra de baixa qualificação.

Neste sentido, houve o surgimento de vários bairros sem a menor infra-estrutura,

tais como Jardim Carapina, Central Carapina, Vila Nova de Colares, José de

Anchieta I e II, Bairro das Laranjeiras, Parque das Gaivotas e em algumas áreas de

preservação ambiental – tais como Nova Carapina, parte de Serra Dourada, Lagoa

de Jacaraípe e Costa Dourada, que iam surgindo de invasões e loteamentos

clandestinos, sem luz, sem rede de tratamento de água e esgoto, com barracos de

madeira, sem escolas, creches e postos de saúde.

Atualmente, a infra-estrutura urbana é inadequada em parte dos bairros da cidade,

mas a Serra não é o município que apresenta as piores condições de infra-estrutura

urbana da Região Metropolitana da Grande Vitória, até porque seu processo de

desenvolvimento industrial induziu investimentos de infra-estrutura em algumas

regiões e vias urbanas do Município. Embora implantados vários conjuntos

habitacionais, a cidade cresceu e continua a apresentar elevadas taxas de

crescimento populacional, o que vem aumentando nos últimos anos o percentual de

população que vive em condições inadequadas de habitabilidade e qualidade de

vida.

86

Ainda hoje é grande o fluxo migratório oriundo de regiões pobres do noroeste de

Minas Gerais e sul da Bahia, contando também com a vinda de pessoas do interior

do estado e de municípios da Região Metropolitana.

A interligação entre o processo de crescimento urbano e o aumento dos problemas urbanos tornara-se visível já no inicio dos anos 80, principalmente quanto à questão da saúde, educação, habitação, as moradias populares não estavam cobrindo a totalidade da população, fato que deu margem à ocupação de áreas periféricas e de morros por ação de invasões, criando favelas habitadas por trabalhadores de baixa renda e migrantes desempregados, que chegavam ao município atraídos pela expansão industrial e pelas ofertas de emprego (SIQUEIRA, 2001, p. 109).

O acelerado crescimento urbano e populacional da Serra se deu de forma

desordenada nas últimas três décadas, passando de 17.286 em 1970 para mais de

407.448 habitantes no ano de 2006 (IBGE, 2000), segundo estimativas que utilizam

a taxa de crescimento de 3,53% ao ano. Com uma população de 117.347 crianças e

adolescentes, essa situação legou ao Município uma série de contradições e

problemas sociais que ainda precisam ser superados, entre eles:

Elevado número de crianças e adolescentes que fazem da rua seu espaço de

moradia e/ ou sustento;

Baixo índice de escolaridade entre os jovens;

Índice elevado de crianças e adolescentes que fazem uso e tráfico de drogas

(SERRA, PM/SEPROM/Fundo Municipal da Assistência Social e Fundo

Municipal da Infância e Adolescência).

Temos ainda que do total registrado em 2000, um percentual de 99,5% (IBGE,

censos 1991 e 2000) da população serrana vive na área urbana. Esta parte da

população se distribui em realidades contrastantes - bairros de grande

desenvolvimento econômico local e concentração de população com maior renda,

87

localizados na região de Carapina, região de Laranjeiras, nos bairros formados pelos

conjuntos habitacionais e também alguns bairros da orla. Em contrapartida o

município apresenta um grande número de bairros formados de maneira

desordenada, com presença de ocupações irregulares e condições de habitações

precárias, construídas de forma irregular, em áreas que oferecem riscos (IBGE,

censo 2000 e SEDUR).

Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), expressos

no Censo Demográfico de 2000 (realizado por domicílio), 80,26% dos moradores do

município da Serra residentes em domicílio particular permanente, possuem

rendimento familiar mensal inferior ou igual a cinco salários mínimos, sendo que

49,74% da população abordada possui rendimento mensal de no máximo dois

salários mínimos. Constatou-se ainda, no mesmo recenseamento, que 38.764

moradores enquadravam-se na categoria “sem rendimento”, o que corresponde a

12,13% da população abordada.

Apesar de ser o segundo município estadual em arrecadação do Espírito Santo,

apresenta um quadro de grande demanda pelos serviços públicos em função da

explosão demográfica ocorrida em meados dos anos 70 até o final dos anos 80,

visto que o vigoroso processo de desenvolvimento econômico do município,

decorrente da atratividade do ambiente local para novos investimentos, não tem sido

capaz de realizar a inclusão social mais ampla da população do município.

88

O Estado do Espírito Santo, e em especial a Região Metropolitana da Grande

Vitória, tem registrado altos índices de violência, o que tem despertado a opinião

pública nacional para a gravidade do problema. Dentre os Municípios da Região

Metropolitana, a Serra tem se mostrado um dos mais vulneráveis, principalmente no

que diz respeito à crianças e adolescentes, com a qual se desenvolve este trabalho.

A escolha do município da Serra não se deu de forma aleatória, mas devido ao

nosso trabalho como Educador Social desde 2001 na Secretaria de Promoção

Social, no projeto “Abordagem de Rua”. Esse projeto faz parte da rede de

atendimento à criança e ao adolescente que estão em situação de rua como já

mencionamos anteriormente. Cabe lembrar que a Serra iniciou a implantação de

políticas públicas para jovens, muito timidamente, em 1997, caracterizando uma

lacuna na implantação de políticas para jovens a partir da década de 1970, quando

se verificou o êxodo rural de 90% da população.

A Serra possui atualmente 118 bairros, o que, em tese, seria um dificultador para a

execução de um programa abrangente de intervenção social, com vistas a atacar a

questão relativa a essa vulnerabilidade social. Porém, segundo os levantamentos

realizados quotidianamente pela SEDIR - Secretaria Municipal de Direitos Humanos

e Cidadania, observamos a existência de bairros onde as questões específicas da

vulnerabilidade social e da criminalidade aparecem de forma mais impactante.

Diante de tal realidade apresentada no Município, a Administração atual elencou,

dentre os 118 bairros existentes, 27 bairros com maior índice de vulnerabilidade;

estes bairros, com condições precárias de infra-estrutura, envolvimento da

população com drogas e altos índices de violência e desemprego são: Planalto

89

Serrano, Cidade Pomar, Belvedere, Divinópolis, Novo Horizonte, Jardim Carapina,

Central Carapina, Cantinho do Céu, Vila Nova de Colares, José de Anchieta I e II,

Bairros das Laranjeiras, Parque das Gaivotas e em algumas áreas de preservação

ambiental – tais como Nova Carapina, parte de Serra Dourada, Lagoa de Jacaraípe,

Portal de Jacaraípe, Costa Dourada, entre outros.

A população destes 27 bairros é de aproximadamente 119.548 habitantes, sendo

que deste total 50.000 habitantes estão na faixa etária de 0 a 17 anos.

3.3 O Projeto da rede local de atenção à criança e adolescente na Serra:

Panorama atual da rede local de atenção à criança e ao adolescente

O atendimento das políticas sociais básicas na área da criança e do adolescente no

Município da Serra é realizado pelas Secretarias de Educação, Saúde, Promoção

Social e Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos.

No que se refere à política de proteção especial, conforme estabelecido no Estatuto

da Criança e do Adolescente, a mesma tem se efetivado sob as diretrizes traçadas

pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONCASE,

através de ações desenvolvidas tanto pelo Poder Público como por Entidades da

Sociedade Civil.

Esta política de proteção especial à criança e ao adolescente funciona efetivando

um trabalho conjunto e complementar, onde cada instituição tem a responsabilidade

de realizar suas atividades em consonância com os outros espaços, o que possibilita

90

uma melhor qualidade do atendimento e um maior conhecimento da população

atendida.

Neste sentido, estão sendo efetivadas ações que garantam o estabelecimento de

uma rede de retaguardas para o encaminhamento das crianças e adolescentes em

condição de extremo risco social, conforme cada situação, para: Abrigos

temporários, Abrigos permanentes, Apoio à família, Programa de Erradicação de

Trabalho Infantil - PETI, Programa Agente Jovem, Programa Sentinela e Programas

de Jornada Ampliada.

Veremos agora uma síntese do documento RECRIA (Rede de Assistência Criança e

ao Adolescente), elaborado pelos técnicos da Secretaria de Promoção Social em

2002 e que é hoje o documento de referência para entendermos como funciona a

rede de assistência a criança e o adolescente do município da Serra.

Abrigos Temporários

Os Programas de Abrigo Temporário atendem a crianças e adolescentes em

situação de risco pessoal e social encaminhados pelo Conselho Tutelar e/ou pelo

Juizado da Infância e Juventude da Serra.

Na implantação dos Programas de Abrigos Temporários, havia uma grande

expectativa referente ao fluxo de entrada e permanência breve. No entanto, esse

fluxo não tem funcionado com a agilidade necessária devido a vários fatores:

morosidade do andamento processual no Juizado da Infância e Juventude, alto grau

91

de fragilidade dos vínculos familiares, envolvimento do pai/padrasto com tráfico de

drogas, demora da retirada do agressor do espaço familiar, casos de alcoolismo

avançado apresentado por algumas mães, entre outras situações.

A prática de trabalho tem demonstrado que é bastante significativo o número de

crianças e adolescentes que, após saírem do abrigo temporário, necessitam ser

atendidos por um abrigo de caráter mais permanente (PMS/SEPROM).

De acordo com a demanda apresentada pelos Conselheiros Tutelares, existe a

necessidade da implantação de uma Casa de Passagem para atender a

adolescentes do sexo feminino na faixa etária de 12 a 17 anos de idade, o que já

vem sendo efetivado com recursos municipais (PMS/SEPROM).

Casas Lares

Trata-se de programas de Abrigo Permanente para crianças encaminhadas pelo

Juizado da Infância e da Juventude da Serra, que não possuem famílias ou que

foram destituídas de sua guarda por representarem ameaça severa à integridade

física e psicológica de seus filhos. Esses abrigos têm por objetivo cumprir o Art. 90

do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/90) no que diz respeito

ao atendimento em regime de abrigo permanente a crianças e adolescentes em

situação de risco social e pessoal. Esses serviços são prestados pela própria

prefeitura ou por entidades filantrópicas conveniadas a seus projetos e devidamente

fiscalizadas pelo CONCASE.

Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano

92

O Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano atende a jovens

adolescentes de ambos os sexos na faixa etária de 15 a 17 anos. Estes

adolescentes são oriundos de famílias com situação de extrema pobreza, residentes

em áreas de baixa renda e com elevados índices de violência, expostos assim a

situação de risco pessoal e social. No município da Serra, o programa atende a 200

adolescentes provenientes dos bairros Jardim Carapina e Planalto Serrano.

As atividades do Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano

são realizadas de forma a desenvolver o processo de conhecimento, ação e

reflexão. Além disso, apresenta-se como uma possibilidade de intervenção na

realidade, proporcionando aos próprios jovens uma maior inserção e participação

social, sendo atores protagonistas da modificação da sua própria realidade, bem

como agente desencadeador de transformação dos jovens da sua comunidade.

O programa tem desenvolvido parcerias com diversas secretarias municipais (Meio

Ambiente, Saúde, Educação, Turismo e Cultura) na realização dos projetos de

intervenção dos jovens nas suas comunidades.

Programa Sentinela

O Programa destina-se a desenvolver medidas de proteção à criança e ao

adolescente, visando à garantia de direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e

do Adolescente - ECA, posto que a população alvo constitui-se de crianças e

adolescentes violadas sexualmente, vítimas de abuso sexual intra ou extra familiar,

bem como de exploração sexual comercial. O Programa Sentinela também realiza o

93

atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência e suas

respectivas famílias, na busca de fortalecimento da sua auto-estima e de alternativas

de vida que lhes permitam construir um processo coletivo, garantindo-lhes seus

direitos de cidadania com dignidade e respeito.

O Município da Serra conta com um Centro de Referência que realiza em média 50

(cinqüenta) atendimentos mensais. Um fator de destaque é a articulação realizada

pelo programa com os diversos municípios da Região Metropolitana.

PETI - Programa de Erradicação de Trabalho Infantil

O PETI foi instituído pelo Governo Federal, visando, em parceria com os diversos

setores dos governos estaduais e municipais e da sociedade civil, eliminar as

degradantes formas de trabalho infantil. Através de uma complementação mensal de

renda, o programa proporciona apoio e orientação às famílias beneficiárias por meio

de oferta de ações sócio-educativas.

Atualmente, o município trabalha com 400 metas, existindo demanda para

ampliação.

Programa Abordagem de Rua

O Programa tem como objetivo a abordagem de crianças e adolescentes

encontrados em situação de rua, visando promover o retorno à família, à escola e à

comunidade, procurando oferecer novas alternativas, a fim de garantir uma melhor

condição de vida. A inserção dessas crianças e adolescentes em Programas Sociais

94

existentes e o acompanhamento psicossocial das famílias envolvidas são alguns dos

encaminhamentos.

O Programa procura desenvolver suas ações estabelecendo continuamente parceria

com Poder Público e a Sociedade Civil, a fim de encontrar alternativas de maior

impacto e modificação na realidade das crianças, adolescentes e suas famílias.

Programa de Capacitação Profissional e Apoio Sócio Educativo – PROCAP

Este programa tem como objetivo principal oportunizar e acompanhar a inserção de

adolescentes no mercado de trabalho como menor aprendiz, visando ampliar suas

chances de empregabilidade para o futuro. Este assegura, ao adolescente assistido,

condições de iniciação e capacitação, pelo e para o trabalho, e contribui para

garantir a freqüência escolar e o desenvolvimento de suas potencialidades.

Núcleo de Apoio à Família

O Núcleo de Apoio à Família é um programa instituído pelo Governo Federal; tem

como objetivo desenvolver ações de apoio a famílias em situação de risco social,

que impulsionem o processo de inclusão social, buscando propiciar novos

aprendizados e favorecer o seu desenvolvimento pessoal, familiar e social.

Este programa desenvolve atividades de atendimento em grupo psicossocial,

acompanhamento através de visitas domiciliares, atividades sócio-educativas com

as famílias com vistas a ampliar o universo informacional e de ação participativa,

95

além de funcionar como um espaço de referência e articulação entre os diversos

serviços de atendimentos sociais.

Programas de Jornada Ampliada

São Programas de apoio sócio-educativo em meio aberto que visam minimizar a

exposição das Crianças e Adolescentes em situação de rua, trabalho infantil, uso e

tráfico de drogas. Os núcleos de Jornada Ampliada buscam o desenvolvimento de

habilidades específicas, auto-estima, senso de organização, solidariedade e

cidadania, com atividades e oficinas, que têm o objetivo de ampliar o universo de

conhecimento cultural, formal, e lúdico. As atividades são desenvolvidas de

segunda-feira a sexta-feira.

Algumas crianças atendidas pelas jornadas fazem parte do PETI – Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil.

Como podemos observar, existem no município 11 (onze) Programas de Jornada

Ampliada, distribuídos nos bairros de Jardim Carapina, Novo Horizonte, Central

Carapina, Nova Almeida, Cascata, Jacaraípe, Vila Nova de Colares e Planalto

Serrano, atendendo a 1.510 crianças e adolescentes.

No entanto, o trabalho tem sido desenvolvido de forma pouco articulada com os

atores das comunidades locais. Assim, frente a esse desafio, a proposta de

enfrentamento é a articulação do trabalho em rede local através da criação do

96

Fórum RECRIA, em cada comunidade onde existem Núcleos de Jornada Ampliada

(RECRIA/SERRA/2002).

Ao analisarmos a população infanto-juvenil da Serra, estima-se que 30% desta

população esteja em situação de vulnerabilidade social, ou seja, 35.204 crianças e

adolescentes.

Além da questão econômica, o risco social configura-se também pelas seguintes

situações: crianças em situação de rua - morando ou trabalhando; crianças

perambulando nas ruas das comunidades, com indícios de ausência da figura e

autoridade familiar, com uso de tinner, cola e outros tipos de drogas; alto índice de

defasagem escolar; crianças oriundas de famílias com elevado grau de violência

doméstica; dentre outras.

Um fato que deve ser destacado diz respeito ao alto índice de defasagem escolar

(idade/série) na faixa etária de 07 a 14 anos, que contribui para o desperdício

financeiro da educação, influencia negativamente na auto-estima do adolescente e

compromete o futuro profissional dos mesmos.

Os Programas de Jornada Ampliada, enquanto ações preventivas de retaguarda e

ponto de apoio para a permanência destas crianças e adolescentes na comunidade,

atende atualmente a 1.510 crianças, número que é insuficiente do ponto de vista

quantitativo. Há necessidade de ampliação do atendimento, com o objetivo de prover

uma rede de proteção a esses meninos (as) em situação de extrema

97

vulnerabilidade, fato que reflete a necessidade de uma intervenção conjunta na

tentativa de buscar alternativas de maior impacto em relação à defasagem escolar e

promoção à cidadania.

Para os 6.596 jovens em situação de risco na faixa etária de 15 a 17 anos, os

atendimentos são ainda mais restritos.

O Município tem enfrentando a dificuldade do grande número de déficit de vagas

para o Ensino Médio. Este tem sido o motivo de audiências públicas com a

participação dos Conselhos Tutelares, Conselho Municipal de Educação,

Organizações de Defesa dos Direitos e a Secretaria Estadual de Educação a fim de

garantir o acesso a Escola.

Outro elemento agravante no que diz respeito ao atendimento das necessidades

nesta faixa etária se remete a ausência de Programas de Qualificação

Profissional. No Município, existe uma Unidade do Serviço Nacional de

Aprendizagem Industrial - SENAI – e um Centro Federal de Educação Tecnológica

do Espírito Santos- CEFETES, que atende a um número insuficiente de jovens, não

atendendo aqueles em situação de Risco Social, tendo em vista os critérios de

seleção exigidos , sobretudo quanto à Escolaridade.

Além disso, em parceria com empresas locais, é desenvolvido o Programa de

Capacitação Profissional Sócio-Educativo, de acordo com a Lei Federal 10.097/00;

no entanto, ainda é restrito o número de vagas oferecidas pelas empresas. No 1º

98

semestre de 2002, o banco de dados do Programa contava com 1.762 inscritos, com

previsão de encaminhamento de apenas de 300 jovens.

Durante a realização das visitas domiciliares, realizadas pela equipe do PROCAP

(Programa de Capacitação Profissional), para elaboração de estudo social e

posterior encaminhamento às empresas, constatou-se um número significativo de

jovens inscritos, envolvidos com uso e tráfico de drogas.

Além destas situações de risco em geral, existem algumas situações específicas que

necessitam, em determinados casos, como os de jovens ameaçados de morte em

suas comunidades, de intervenção imediata, que são os casos levados ao

conhecimento dos Conselhos Tutelares e ao Juizado da Infância e Juventude.

Neste sentido são freqüentes os debates em torno dos seguintes pontos:

a) Necessidade de criação de um Programa de Atendimento a Crianças e aos

Adolescentes que fazem uso de substâncias psicoativas. No Município da Serra

existem algumas iniciativas desenvolvidas por entidades religiosas que trabalham

com a internação, contudo não apresentam trabalho técnico estruturado. Estas

iniciativas restringem-se ao atendimento de adolescentes e adultos.

Ainda é premente a necessidade da implantação de um programa interdisciplinar

para o atendimento a esse público, conforme demanda apresentada pelos

Conselhos Tutelares, Programa Abordagem de Rua e Juizado da Infância e

Juventude no Fórum RECRIA – Rede Integrada de Assistência a Criança e ao

Adolescente - realizado em 2003.

99

O poder público local identifica que, mesmo com a implantação do CAPS –Centro de

Atenção Psicossocial, os casos que demonstram complexibilidade maior no

envolvimento de crianças e adolescentes, tanto no consumo como na

comercialização destas substâncias, ainda carece de um atendimento que vise

garantir a integridade física dos sujeitos envolvidos.

b) Viabilização de alternativas para o atendimento a crianças e adolescentes que

fazem das ruas seu espaço de moradia. De acordo com os indicativos do Programa

de Abordagem de Rua do Município da Serra e de outros municípios da Região

Metropolitana (PMV/SEPROM), existem vários meninos e meninas em situação de

rua que não se adaptaram em nenhuma das propostas oferecidas, uma vez que já

foram atendidos por vários Municípios e Programas sem, contudo, apresentarem

resultados significativos. Nesse sentido, foi elaborada pelas equipes que compõem o

SEPROM/DACA-Departamento de Assistência a Criança e ao Adolescente - uma

proposta para o desenvolvimento de atividades que possibilitem a construção de

alternativas de convivência fora do espaço da rua e posterior retorno à família ou

encaminhamento para casas lares.

c) Ampliação e fortalecimento dos Programas de Jornada Ampliada. Dentre as

várias demandas existentes, destacam-se os Programas de Jornada Ampliada,

destinados a desenvolver ações preventivas e de apoio sócio-educativo às situações

de trabalho infantil, evasão escolar, situação de rua, entre outras.

100

Os 11 Programas de Jornada Ampliada já existentes, que atendem a 1.510 crianças

e adolescentes (PROETO RECRIA/2003) foram implantados em função da realidade

social existente no Município, funcionando como espaço de referência e apoio

educativo para as crianças e os adolescentes atendidos. Estes espaços são

percebidos como pontos de referência para a comunidade local, visto que

observamos um significativo envolvimento e participação da população nas

atividades dos projetos. Assim, dado esse caráter preventivo, a Rede de Atenção a

Criança e Adolescente se estabelece na linha de atendimento desenvolvida pelos

Programas de Jornada Ampliada, visando fortalecê-los, ampliando suas atividades e

número de pessoas atendidas.

d) Criação de Projetos que visem a Capacitação Profissional para Adolescentes

(PROCAP), com o objetivo de fortalecer os atendimentos realizados. Está prevista,

após a implantação do “Centro de Múltiplo Uso” no Município, a ampliação dos

serviços prestados com o oferecimento de cursos abrangendo várias áreas, tais

como Informática, Língua Portuguesa, Noções de Língua Estrangeira, além de

buscar junto a empresas a ampliação do número de vagas para o Programa do

Menor Aprendiz.

Todos os projetos que foram descritos acima compõem o que chamamos de rede de

atendimento a criança e ao adolescente em situação de risco social. Pensamos que

ela está longe de ser suficiente para atender a demanda existente hoje no município

da Serra, mas reconhecemos que sua elaboração e implantação a partir de 2000 é

de vital importância para a diminuição do índice de evasão escolar, violência e

abusos cometidos contra crianças e adolescentes no município citado.

101

3.4 – Olhando e percebendo a cidade

“Escapando às totalizações imaginárias do olhar” (CERTEAU, 1996, p. 172) que

permite que vejamos apenas a superfície geográfica do visível, opaca e cega,

faremos um esforço para enxergarmos o que não se mostra à primeira vista, que

não está lá como os outdoors, mas se esconde no cenário urbano de fachadas,

painéis e letreiros. A cidade nunca se mostra por inteiro, é preciso buscá-la, sentir

seu cheiro, ouvir seu barulho e olhar para ela como se fosse a primeira vez, ou,

como se fosse a última.

Nunca a questão do olhar esteve tão no centro do debate da cultura esociedades contemporâneas. Um mundo onde tudo é produzido para ser visto, onde tudo se mostra no olhar, coloca necessariamente o ver como um problema. Aqui não existem mais véus nem mistérios (PEIXOTO et. al., 1988, p. 361).

Seguindo as indicações de Merleau- Ponty que problematiza o ato de ver e o ato de

olhar, a conjunção do vidente e do visível buscaremos o olhar dos sujeitos dessa

pesquisa sobre a cidade na tentativa, não de similaridades ou antagonismos, mas o

de encontros, encontro de subjetividades, que opere na acumulação, na soma e na

horizontalidade, proporcionando o que Merleau-Ponty chama de “reconhecer a

comunicação das consciências em um mesmo mundo”

Objetos estão diante de mim, eles desenham em minha retina uma certa projeção deles mesmos e eu os percebo. Não se poderá mais tratar de isolar, em minha representação fisiológica do fenômeno, as imagens retinianas e seu correspondente cerebral do campo total, atual e virtual, no qual eles aparecem. O acontecimento fisiológico é apenas o esboçoabstrato do acontecimento perceptivo. Precisamos conceber as perspectivas e o ponto de vista como nossa inserção no mundo - individuo, e a percepção, não mais como uma constituição do objeto verdadeiro, mas como nossa inerência as coisas (MERLEAU-PONTY, 1994, p.469).

A preocupação com o olhar buscará o encontro possível entre o olhar do educador

social e o olhar dos sujeitos dessa pesquisa na tentativa, não de similaridades ou

102

antagonismos, mas o de encontros, encontro de subjetividades, que opere na

acumulação, na soma e na horizontalidade operando o que o filósofo francês chama

de “reconhecer a comunicação das consciências em um mesmo mundo”

(MERLEAU-PONTY,1994, 473). O olhar, neste trabalho, circula pela geografia da

cidade, observa não só contornos arquitetônicos, mas as relações que se

estabelecem no cotidiano de seus habitantes.

A cidade dorme, os garotos dormem, mas o lixo continua acordado; não dorme, mas aduba, alimenta, envenena, ou talvez conte histórias que nos apresenta uma cruel, desconcertante e promissora ferramenta, o cotidiano. Dizem que, conhecendo as cidades, mergulhando em seu cotidiano, saberemos do lixo produzido, dos detritos humanos e inumanos que alimentam, adubam e fortalecem seu caráter. Por meio dos detritos descobriremos outras versões da história. Ouvindo os dejetos, escutaremos projetos das cidades inventadas, projetos fracassados, sociabilidades criadas na resistência em que modos de morar e de sentir não eram construídos no silêncio (BAPTISTA, 1999, p. 98).

Circularemos pelo bairro que esses jovens escolheram para viver, arranjam abrigo,

trabalho e comida. Ali parecem “fincados” no dia-a-dia, sem antes e nem depois,

onde laços de afeto e desafeto parecem ser único ancoradouro.

A sinuosidade das ruas onde morava exigia sagacidade no desmonte de prováveis armadilhas. O que mais amedrontava aos moradores seria caírem nas armadilhas da sina. Se caíssem suas vias transformar-se-iam em previsibilidade e miséria os fixando na retidão do destino. Todo cuidado seria pouco. Na sinuosidade e bifurcações dessas ruas o corpo desbotado gingava, escapava de retidão do destino narrando acontecimentos e combates não exclusivos dele (...). Se não narrasse combatendo enfraqueceria e sofreria. Não só ele, mas muitos. Ruas tortas exigiam dele uma historia feita por ginga (BAPTISTA, 1999, p. 02).

Escolhemos o bairro de Laranjeiras, localizado às margens da BR-101 Norte, e que

teve um crescimento econômico surpreendente nos últimos dez anos. Nesse

sentido, não está estigmatizado pelo senso comum como “lugar de pobreza”. O

bairro possui um comércio aquecido com, bancos, shoppings, terminal rodoviário,

103

lojas de departamento, que dão ao bairro, apesar de bairro residencial, aparência de

centro comercial.

Mas o motivo de nossa escolha se deu devido à permanência de um grupo de

moradores de rua, dos quais oito fazem parte desta pesquisa, que vieram habitar as

ruas de Laranjeiras na década de 1990 e permanecem até hoje. Ou seja, mais de

dez anos de ocupação deste “espaço rua”.

Essa ocupação é percebida a partir da constatação de que, ali na rua, laços foram

construídos, relações sociais foram estabelecidas com outros freqüentadores,

prostitutas, comerciantes, carroceiros, policiais, transeuntes, mas também a criação

de uma “estrutura” que os possibilitou morar de fato. Isto é, esses jovens de rua não

estão de passagem, são moradores, se sentem em casa.

A casa, nesse caso, não é a de alvenaria, mas as relações estabelecidas, os

acordos feitos, as áreas demarcadas para os deslocamentos mais ou menos

seguros, garantindo assim um sentimento de pertencimento. .

A ocupação do espaço público seria modulada, a partir desse raciocínio, pelas relações sociais com os freqüentadores daquele local específico. A natureza das relações excede a do convívio simplesmente amistoso. Existem ali, como de resto em todo lugar, interesses a serem preservados. A paz é garantida pelo cumprimento dos acordos locais, mais ou menos tácitos (MILITO; SILVA, 1995, p. 18).

Interrogamo-nos sobre a lógica dessas ocupações, os significados dos espaços,

roteiros e personagens. Nos relatos dos entrevistados eles contam de que bairros

vieram, falam de suas visitas a familiares e amigos em seus logradouros de origem,

mas deixam bem claro que é ali, em Laranjeiras, que se sentem em casa.

104

...tinha a matinha que ficava entre o Terminal e o supermercado e lá tinha muitos garotos, roupas penduradas e muito lixo. Todos dormiam em cima de umas lajes de cimento e forradas com papelão... (M.J.F.10-09-06).

Ele também nos conta de onde veio:

Tinha uns sete anos. Minha casa ficava em Feu Rosa, na avenida principal, eu morava com minha mãe de criação e o marido dela.

O bairro Feu Rosa tinha nome de bairro das Flores, conjunto habitacional erguido no

inicio da década de 80. Em 1985, uma tragédia no morro do Macaco, em Vitória,

deixou muitas pessoas sem ter onde morar. Diante da calamidade, o bairro foi usado

para alojar os desabrigados.

M. nos conta como ele se lembra de lá:

Minha mãe morava num beco, e nesse beco tinha outras casas. Nossa casa era pequena, com um quarto e uma cozinha, mas eu gostava. Tinha um morrinho onde dava pra descer de bunda no papelão e, quando chovia, de escorregar, nunca mais voltei lá para ver ninguém, acho que não sei mais chegar até a casa onde eu morava. Só fui umas duas vezes para comprar tinner em um material de construção (Mauro, 07/09/06).

Nas entrevistas os jovens relatam experiências de amizade na rua, companheirismo,

fidelidade e ajuda mútua, desmistificando a rua como lugar de perigo, abandono e

violência.

Aqui a gente se ajuda o tempo todo. Quando alguém adoece a gente vai atrás de um comprimido, um chá, e se a situação ficar feia levamos no postinho e depois para a casa de alguém se precisar (J.M.L. 20-10-06).

Casa? Onde? Casa na rua? Difícil pensar que alguém possa viver nas ruas e se

sentir protegido, acolhido. Estabelece-se um paradoxo: enquanto nós nos trancamos

em casas gradeadas, condomínios, fechamos o vidro do carro para nos protegermos

105

de estranhos perigosos e inoportunos pedintes, a população de rua não fica em

abrigos, asilos ou instituições. Entre a rua e as instituições a opção é sempre a

primeira. Os relatos sobre a passagem por abrigos são feitos sem saudosismos.

Já fiquei em todas as ‘casas’ da prefeitura. Fiquei nas de passagem, nos abrigos, na do ‘padre’ e achei todas a mesma merda, você não tem opinião, não pode ver um filme, seus amigos não podem te ver, só sai pra ir ao médico, à igreja, tudo que você fala é errado, tudo é motivo de punição (“Gui”, 28.10.06).

A subcultura da evitação (Milito e Silva, 1995, p. 32) transformada em estilo de vida,

visão de mundo e comportamento de vários grupos na sociedade brasileira,

contrasta com a vida de rua. Talvez isso explique os inúmeros problemas que os

educadores sociais enfrentam no seu dia-a-dia nas ruas. Quando são vistos pela

primeira vez são confundidos com aliciadores de menores, após algum tempo eles

são confundidos com agentes da policia ou do Juizado de menores. Com mais

algum tempo são acionados por comerciantes, familiares e até pela polícia para

recolher os meninos que perambulam pela cidade. Para muitos a função do

educador é limpar ruas, rua considerada violenta, suja e inadequada para os jovens,

mulheres honestas, pessoas idosas. Na rua, estamos de passagem, indo ou vindo

do trabalho, comprando ou pagando contas, indo ou voltando de passeios. Não

vemos a rua como local de permanência, de relações e, tão pouco, de moradia. Já

para aqueles que habitam as ruas ela é espaço de sobrevivência, lugar de múltiplas

possibilidades em todos os sentidos, tanto financeiro como afetivo.

106

“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o

mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por

ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável

não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens”

(Hanna Arendt).

107

CAP IV – A PERCEPÇÃO DE VIOLÊNCIA DOS JOVENS NA RUA: O

OLHAR DO EDUCADOR SOCIAL

4.1 Metamorfoses do olhar

Iniciamos essa pesquisa consciente que a experiência de olhar estaria no centro da

nossa problemática como observadores de uma realidade, e mais, seria na

perspectiva do olhar do educador social que essa realidade seria traduzida. Por isso

fomos buscar auxilio em trabalhos etnográficos que têm privilegiado como

ferramenta de trabalho o olhar.

O senso comum consagra: estou assuntando. Esta expressão brasileiríssima contém um sabor quase felino em suas implicações para a idéia de bote, a idéia de germinação sonsa e preguiçosa de uma atitude clara e rápida. Enfim, observar é um pré-requisito para participação, a interação, o atuar. No caso do antropólogo, profissional de inversões clássicas, tais como exótico-familiar, próximo-distante, selvagem-civilizado, inverte-se a díade e o participar se torna função da observação. Participa-se para. Participa-se, a modular “cada” participação no sentido do aprofundamento da observação, da conquista de novos territórios (MILITO; SILVA, 1995, p. 10).

A melhor forma de iniciar este capítulo, que fala da metodologia utilizada para coleta

de dados dessa pesquisa seria o relato pessoal do percurso feito em busca desses

sujeitos. Sujeitos reais, itinerantes, dotados de nome e história.

Antes de iniciar o relato sobre a busca dos sujeitos da pesquisa gostaríamos de

voltar um pouco ao início deste trabalho que tem como título “A percepção de

violência de jovens moradores de rua”.

108

O que é olhar? É o uso dos órgãos visuais externos que chamamos de olho? Ou é o

movimento interno do ser que se põe em busca de informação e significações?

Busquemos as reflexões do filósofo que dedicou o melhor de seu pensamento ao

enigma do olhar, Merleau-Ponty. Não seria exagero dizer que o pensamento de

Merleau-Ponty é um apelo à fruição do olhar.

No prefácio de Fenomenologia da Percepção (1994), Merleau-Ponty postulava a

necessidade, quase urgente, de o filósofo acolher em si o mundo “já dado”, o mundo

que “já está ai”. Essa realidade (aparentemente familiar e cotidiana) é a escola do

olhar.

O que o filósofo propõe é desfazer corporalmente a distinção clássica entre sujeito e

objeto, carne e espírito. Se o olhar vive mergulhado no espaço aberto da visibilidade,

o que ele propõe é um abrir-se ao olhar do outro e para o outro. O olhar

fenomenológico de Merleau-Ponty consiste em uma descoberta, perfil a perfil, corpo

a corpo com o mundo vivido. Desta forma, Merleau-Ponty confere uma direção

própria ao tratamento do outro. Segundo ele o olhar “envolve, apalpa, esposa as

coisas visíveis”.

Há uma ligação entre o olhar do outro e o meu corpo vivo, que remete a um único

mundo. Nesta perspectiva o outro não vira objeto ao ser olhado por não poder, ao

olhá-lo, ser abarcado por inteiro. Somos ambos “sujeitos anônimos da percepção”,

conforme o pensador:

109

Pela reflexão fenomenológica, encontro a visão não como ‘pensamento de ver’, segundo a expressão de Descartes, mas como um olhar em posse de um mundo visível, e é por isso que aqui pode haver para mim um olhar de outrem, este instrumento expressivo que chamamos de um rosto pode trazer uma existência assim como minha existência é trazida pelo aparelho cognoscente que é meu corpo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 471).

Olhar e ver parecem verbos distintos.

É verdade que a distinção destes verbos parece, de imediato, pautar-se apenas por uma questão de proporção, de dosagem dos elementos neles concorrentes. Diríamos que o bom emprego de um ou outro se recomenda consoante a maior ou menor intervenção e responsabilidade do sujeito no acontecimento da visão, que se guia pela razão da atividade e da passividade do vidente no seu encontro com o mundo. E, neste sentido, concluiremos que, entre o ver e o olhar, transitamos numa escala, que evoluímos de um ao outro numa mesma linha, por gradação. Logo, no entanto, compreendemos que não é isto o que se passa – se observarmos bem. Pois, ao abandonarmos o registro rarefeito das ordens e medidas por aquele mais espesso das experiências, as progressões de quantidade apontam sempre, em cada uma de suas direções, para qualidades diversas; o que ocorre também aqui: o ver e o olhar, na sua oposição, configuram campos de significação distintos; assinalam em cada extremidade do nosso fio justamente “sentidos” diversos (CARDOSO et. al., 1988, p. 347-348).

As entrevistas, que consistiam em ouvir mais que falar, sem que isso negasse um

diálogo com o entrevistado, nos obrigava a definir qual o papel do sujeito que fala e

do sujeito que ouve na pesquisa e para iniciar a problematização fomos buscar em

Merleau-Ponty uma fundamentação acerca da fala.

Se a fala pressupusesse o pensamento, se falar fosse em primeiro lugar unir-se ao objeto por uma intenção de conhecimento ou por uma representação, não se compreenderia por que o pensamento tende para a expressão como para seu acabamento, por que o objeto mais familiar parece-nos indeterminado enquanto não encontramos seu nome,por que o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, como mostra o exemplo de tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o que nele colocarão (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 241).

110

Estava claro que para ele a fala não é a expressão do pensamento mas o próprio

pensamento, ou seja, o sujeito que fala não é falante, é pensante.

A perspectiva dialógica da fenomenologia colocava os sujeitos da pesquisa, tanto

pesquisador como pesquisado, numa relação pautada na alteridade, olhar e ser

olhado, falar e ouvir a fala do outro.

A fala para Merleau-Ponty é adotada de um sentido afetivo que permeia a relação

com o outro.

Assim a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito, mas o consuma. Com mais razão ainda, é preciso admitir que aquele que escuta recebe o pensamento da própria fala (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 242).

Por tanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos pensamentos próprios (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 243).

Amparados pelas contribuições enriquecedoras de Merleau-Ponty fomos em busca

da fala de nossos sujeitos. Fala que é o próprio pensamento e não seu mero

instrumento, daí a possibilidade de “pensar segundo o outro” e enriquecer “nossos

pensamentos”.

4. 2 – Entrevistas: ouvindo vozes

Os relatos que transcrevemos a seguir são histórias contadas durante as entrevistas

pelos sujeitos desta pesquisa. São lembranças traduzidas em vozes, narrados

anonimamente por pessoas que não podem ter seus rostos ou identidades

revelados, o que não as torna menos intensas. Esses relatos vão pouco a pouco se

111

transformando em imagens, sons, cheiros, toques e olhares de quem conta e de

quem escreve, sem a intenção, porém, de afirmá-las enquanto verdadeiras ou

falsas, sem a intenção de interpretá-las, mas buscando compreendê-las como outras

formas de estar no mundo com toda a sua potência de vida Numa narrativa densa

que não esconde o envolvimento do pesquisador, revelando um diálogo pungente,

feito no meio fio, em frente a bares e restaurantes, em casas abandonadas ou em

visitas na casa de suas famílias e, infelizmente, sentada na cama daquele que foi

generoso em se deixar entrevistar poucos meses antes de morrer.

Os nomes próprios ou apelidos citados são fictícios, apenas a inicial dos nomes e

dos apelidos foram mantidos para facilitar a identificação por parte do pesquisador.

A primeira entrevista: “Bino”(26/setembro/2006)

Quando o conhecemos ele era o menino mais alegre da rua, hoje ele parece ter

mais que seus vinte e um anos. Contrário ao que pensamos, a vida na rua não é só

correr da polícia, passar fome, roubar, dormir ao relento e cheirar cola. Partilha de

nosso pensamento Mateus (2003):

A vida dos meninos de poderia ser considerada como carente de inúmeras coisas materiais e em alguns aspectos afetivos, mas nada disso os impede de viver com prazer. A vida, que para muitos parece tão triste e perigosa, para eles muitas vezes é cheia de aventuras. A rigor, a rua tem para esses meninos e meninas a referência da felicidade, do prazer e da liberdade, ao invés da infelicidade a eles atribuída. E por isso, sempre que podem,fogem dos abrigos, asilos, escolas correcionais etc., como forma de resistência à segregação que estão lhes impondo (MATEUS, 2003, p. 59).

Sua história era a de um menino comum, rebelde e inquieto que havia encontrado

na rua o lugar ideal para exercitar sua precoce autonomia, convertida em liderança,

que encantava e assustava os educadores. Cresceu na rua, garantindo sua

sobrevivência impondo sua força física e sua autoridade no grupo de meninos e

112

meninas de laranjeiras. Foi preso poucas vezes, esteve na UNIS por pouco tempo e

se gabava de ter saído de lá vivo e com “moral com os brother”. Teve várias

parceiras na rua, com duas delas teve filhos, um menino, hoje com três anos e um

bebê que estava pra nascer na época que foi entrevistado.

Poucos dias depois de o entrevistarmos ele levou cinco tiros em um balneário

próximo a Laranjeiras, mas sobreviveu e hoje está em casa depois de muito tempo

fora. Infelizmente sua mãe já não o espera no portão, ela faleceu antes do “milagre”

(sua volta) esperado por tantos anos.

No dia seguinte “Bino” estava nos esperando no lugar combinado para a entrevista.

A princípio pareceu tímido e sem vontade de falar e, diante disso fomos obrigados a

puxar assunto falando de seu filho com Joana (jovem que morava na rua e que se

tornou catadora de papel depois que o filho nasceu).

Falou dos anos que está na rua, mas que nunca deixou de freqüentar seu bairro

(Vila Nova) onde sua mãe, irmãos e amigos vivem até hoje. Disse que a vida nas

ruas só é possível quando se perde o medo de morrer:

Quando cheguei na rua me senti muito só mas logo comecei a me virar para conseguir comida. Eu era grande e forte e comecei a merecer o respeito dos muleque. Quando os problemas na rua aumentavam, que a polícia começava a bater todo dia eu ia pra casa, mas eu já usava crak e não podia ficar “sem” e ai eu voltava pra rua.Fui e voltei tantas vezes que nem sei dizer o tanto. Só parei de perturbar minha mãe quando eu já sabia que a rua não era perigosa, que ir para o meu bairro era cada vez mais perigoso. Aí minha mãe me entregou pra Deus.

113

“Bino” é analfabeto funcional, só freqüentou a escola por dois anos (1ª e 2ª séries)

no bairro Vila Nova; sua estadia na rua ele mesmo já perdeu a conta. Começamos a

conversa falando de alguns meninos que fazem opção pelas ruas de Vitória e

falando de sua permanência nas ruas da Serra desde menino.

Fazer o quê em Vitória? Os muleque de lá são tudo abusados. Aqui a gente vive igual família. Fui lá poucas vezes, fui em Vila Velha porque conheço uns muleque de lá, mas não sou de ficar andando muito pra’queles lados de lá e quando aparece alguém de lá a gente falava logo como são as regras aqui.

Bino se sente seguro nas ruas que conhece desde menino, é nela que construiu

seus laços familiares. Nela, a rua, ele parece se sentir “alguém”. A fala do jovem

entrevistado me chamou a atenção pela ênfase e pelo conteúdo. Ele parece se

sentir, mesmo sendo morador de rua, pertencente (munícipe) a um lugar, que é a

Serra.

Ele falou como estava a rua, o que havia mudado e o que se mantinha inalterado.

Não sem antes me lembrar da minha condição de conhecedora das ruas tanto

quanto ele.

Você saca mais de rua do que eu (risos). Você fica dentro da Kombi circulando por vários lugares e eu fico parado. A rua tá tranqüila, só não pode vacilar. Quando eu era menor era mais fácil, conseguia comida em casas e lanchonetes. Agora, ninguém dá comida pra ninguém, se ficar dando bobeira na avenida, os seguranças mete o pau. Você quer saber da mesmice? A droga. Continua tudo igual. Fácil de achar, fácil viciar, fácil “tombar”.

Pedi que comentasse o porquê da expressão (tombar) e o que fazia uma pessoa

“tombar” na rua.

114

Só tomba se não respeitar os limites dos outros. Vigio carro o dia todo, vejo todo o movimento, mas não vacilo. Não me arrisco em ir para outras áreas. (...) No meu bairro tá morrendo os montes. A rua é isso! A única saída é essa, ou você respeita as áreas ou dança. (...) Um monte de gente já morreu. Conhecia todo mundo.

Ele me pergunta se estou gravando e eu digo que sim, mas que vou omitir nomes e

isso o deixou mais seguro para falar de seu envolvimento.

Não sou santo. Já ajudei a matar um X9 aqui na área. Eu não dei a ordem pra execução. Só ajudei. Sabe como é, ás vezes agente não tem escolha. O cara vacilou e as chefias decretaram a queda.

Mesmo temendo ouvir o relato de um crime pergunto se ele pode dizer onde e como

foi.

Onde não dá, mas foi de tiro. Antes nós demos uma surra nele. Quando já tava meio morto nós terminamos com chumbo.

Sabia que ele não contaria detalhes, não me olhou nos olhos nem por um instante.

O assunto foi desviado para o relato de como ele se sentiu na época e como se

sente hoje.

No dia era só ódio, cheiramos antes, de cara não dava. Foi um acerto de contas e nessas horas ninguém fica com dó. Hoje eu não tenho motivo para fazer isso de novo. Tô tranqüilo e já sou maior. Não tenho medo, tenho cuidado pra não cair num cadeião desses aí Mas se fô eu ô ele, aí vai ele.

Desviei o assunto para as regras que mantêm, ou não, a integridade física de quem

está em situação de rua. Peço que ele comente que tipo de situação faz com que

alguém seja jurado de morte na rua.

Não pagar o que deve, entregar os outros, mexer com mulher dos outros. A rua não é violenta, nela ce ta mais seguro que em casa. É claro que pra você, sua família, seus amigos ela é perigosa, você conhece, mas conhece pouco, qualquer vacilo aqui e você ta morto. A violência não atinge quem sabe viver na rua.

115

Peço que ele dê exemplos do que significa “saber viver na rua”.

É conhecer com quem você ta lidando. Se é polícia, se é ladrão, se é “trafica”, se é prostituta. Se é estranho a gente já fica esperto. Todo mundo se conhece aqui. Quando acontece um crime por aqui pode saber é nego de fora. Ninguém é doido de vacilar onde vive.

Encerramos a entrevista sem, entretanto, terminá-la. Afinal, ele precisava vigiar

carros para garantir o sustento e eu lhe havia “roubado” mais de uma hora do seu

tempo. A fala de Bino confirma que há uma rede de relações na rua. Nela, os

indivíduos fazem “contratos” de convivência. Estabelecem pactos de ajuda mútua,

constroem laços de afeto e de cumplicidade. Estão presos por esses pactos, andam

sobre linhas que demarcam territórios.

Pensamos, tolamente, que na rua não é preciso ter raízes, que o fato de morar nela

já nos torna livres para ir, fazer e se comportar como achar mais conveniente.

Parece não ser assim tão simples.

Existem grupos, camadas, setores, (temos que identificá-los) em nossa sociedade que criaram uma fantasmagoria com a matéria-prima do menino “livre” na rua. E essa fantasmagoria contém um forte ingrediente: para ele o mundo não tem mistério. Outro ingrediente não menos forte: seu roteiro não conhece limites e, para ficar ainda em lugar-comum, é ’ivre como um passarinho na verdade, como qualquer ornitólogo sabe, também esse errar na rua sofre a limitação de condicionamentos e restrições que impõem aos vôos dos pássaros roteiros precisos e limitados. Os meninos que transitam nas ruas o fazem em logradouros específicos com acessos e saídas delimitados (MILITO; SILVA, 1995, p. 27).

A conversa com Bino durou uma hora e quarenta minutos sem contar as

interrupções feitas por sua companheira, grávida de 6 meses, e de “Gambá”,

116

companheiro que não parava de chamar para irem conseguir algo para o almoço.

Despedi-me e marcamos a próxima conversa para três dias depois à noite.

O educador social convive com olhares de reprovação, de hostilidade e nesse olhar,

que todos os educadores de rua devem receber todos os dias, há uma espécie de

julgamento sobre a ação do educador.

A expressão ‘alimentar bandidos’ é, ao mesmo tempo, descrição metonímica da atividade de educação na rua e síntese metafórica da convivência e da cumplicidade com o bandido, a insinuar não só aderência cúmplice, mera pusilanimidade, mas também ativa gestão para usar a grosseira expressão policial, dos ‘elementos’ do crime, como fica flagrante em suas variantes: ‘criar bandidos’, ‘criando bandidos’ (MILITO; SILVA, 1995, p. 27).

Alguns dias depois soubemos por um “flanelinha” que Bino havia levado cinco tiros

num balneário próximo a Laranjeiras, estava internado e fora de perigo. Junto com a

notícia dos tiros, veio a do falecimento de sua mãe e que seu filho de três anos, que

ela tomava conta, estava sob os cuidados de uma tia.

Enquanto o contato estava interrompido, começamos a observar em que horário do

dia ficava mais fácil encontrar os outros jovens do grupo. Ficavam todos, à noite,

quase sempre, nas imediações do Shopping Laranjeiras, e de dia, sumiam.

Provavelmente, dormindo escondidos. Fomos à noite para as imediações do

Shopping, andei pelos churrasquinhos, pontos de ônibus e finalmente me sentei

próximo ao terreno baldio onde algumas pessoas estacionam seus carros. Havia

alguns “flanelinhas” que não conhecíamos, mas que provavelmente já sabiam o

117

estávamos fazendo ali. Não parávamos de anotar, não sabíamos a utilidade desse

diário, como iríamos usar, mas na dúvida, íamos anotando as histórias.

O que as histórias trazem para quem as houve ou as lê? A ambivalência em que medraram, as emoções desconcertantes e desconcertadas que se entrelaçaram entre seus atores e suas testemunhas, a possibilidade de integrar o imprevisto, detalhes convocados para compor o quadro (MILITO; SILVA, 1995, p. 13).

Se haveria um grão reluzente (o objeto) que brilharia nessa dissertação, não dava

para sabe, por enquanto, só havia cascas. Cascas que compõem o caos do vivido.

A segunda entrevista: “Mauro” (28/outubro/20006)

Mauro, como uma grande maioria dos sujeitos dessa pesquisa, chegou à rua menino

e hoje ele tem vinte anos. Sua história sempre nos pareceu um grande quebra

cabeças. Foi adotado, ainda pequeno, por uma mulher com graves problemas com

álcool que mantinha contatos com a mãe biológica de Mauro. Seu pai biológico tinha

outra família e chegou a procurá-lo na rua por diversas vezes, no entanto, todas as

vezes que o adolescente aceitava morar com o pai, não permanecia mais que dois

dias e voltava absolutamente deprimido e angustiado, só encontrando alívio no crack

ou tinner. Questionado sobre a não permanência de Mauro em casa, o pai

desconversava, dizia não saber o porquê. Algum tempo depois ficamos sabendo que

um dos meio-irmãos do jovem o havia acusado de tentativa de abuso sexual, que foi

veementemente negado por ele.

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Naquele “dia de cascas” encontramos Mauro e ele perguntou quem esperávamos

para entrevistar. Falamos que poderia ser ele. Ele sempre falou pouco, tímido, o

tempo todo cheirando o paninho com “tinner”, rosto cheio de espinhas.

Naquele dia conversamos sobre sua mãe adotiva, o problema dela com álcool, a

família de seu pai que nunca o havia aceitado e sobre sua mãe biológica que já

havia falecido. Comemos um churrasco e nos despedimos com um encontro

marcado para o sábado às 18:00h no mesmo lugar.

Esperamos uma meia hora interminável até ele chegar. Quando finalmente ele

apareceu, já estávamos acertando uma entrevista com “Tino” para a semana

seguinte, mas desta vez não seria na rua, mas na casa dele em um bairro próximo

ao Terminal de Carapina, assim ficou acertado com um carroceiro amigo dele.

Quando Mauro ouviu o acordo se ofereceu imediatamente para nos acompanhar dia

da entrevista. Pedimos que deixasse qualquer objeto que pudesse nos comprometer

caso fossemos abordados pela polícia e ele se afastou para deixar com outro rapaz

sua velha mochila e retornou dizendo “lá dentro não tem nada, mas se a polícia me

ver com você vai querer mostrar moral e me revistar”.

A fala de Mauro deixa clara a relação que quem está na rua estabelece com

policiais, a de que eles não serão incomodados desde que a função deles não seja

questionada ou colocada à prova.

O policial, um dos atores sociais que compõem a cena de rua, cultiva também a ambigüidade em suas relações com o menino. Ora é o protetor, o cúmplice, ora o espancador, o algoz, o assassino.

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Os educadores costumam dizer que a polícia é ao mesmo tempo invejada e odiada. Não nos parece que entre o policial existam grandes distâncias simbólicas, a sugerirem universos distintos. Parecem falar a mesma língua. Podem estar em posições até antagônicas a maior parte do tempo, mas desconfiamos fortemente que se entendem em um plano subjacente no qual contendores eventuais acatam reverentes as regras da contenda (MILITO E SILVA, 1995, p. 42).

Mauro já fazia uma idéia de que queríamos relatos sobre experiências com violência

na rua e não titubeou na hora de narrar suas vivências.

...eles adoram bater. Batem por nada, já se acostumaram comigo e eu com eles. Mas todas as vezes que tem oportunidade tomam minha garrafinha e derramam o tinner. Sabem que não adianta nada... Quando eu era menor a polícia batia menos. Hoje em dia qualquer vacilo e eles te pegam pra arrebentar. Gostam de humilhar, chama de vagabundo, mendigo, lixo... batem pra dizer que estão trabalhando

Além da polícia ele já sofreu agressões de outras pessoas.

Já apanhei dos caras que vendem droga, dos seguranças do terminal e do shopping. Mas eles vão acostumando com você na rua, chega uma hora que você não incomoda mais ninguém, você não vale nada pra eles se preocuparem...

Fala do medo que ele tem dos estranhos na rua.

Tem menos do que quem não conhece a rua. Não tenho medo das pessoas que vivem na rua, mendigo, prost, nem da polícia eu tenho, mas de playboy e de estranhos eu tenho. Minha vida não vale nada pra eles. Eu não tenho coragem de fazer maldade com ninguém, mas tem gente que tá limpinho e de carrão e mata sem dó.

Tranqüila ou violenta? Depende do ângulo que se olha.

É melhor ficar aqui do que nos bairros. Em Feu Rosa tão matando sem dó. Aqui é mil vezes melhor. Você fica menos envolvido no tráfico, no bairro você é obrigado a se enquadrar, a vender e deve satisfação pra boca.

É mais tranqüilo viver na rua que no bairro onde a família reside.

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Se eu estivesse em Feu Rosa já teria morrido. Os meus colegas, que chegaram a vim pra rua e voltaram pra casa, já morreram faz tempo. No bairro você é alvo fácil. Qualquer vacilo e ta morto, ou por bandido, ou a comunidade, ou polícia.

Mauro nos auxiliou durante toda a coleta de dados e entrevistas, articulava os

encontros, nos falava dos perigos e dava dicas valiosas sobre a rua e o transito por

ela.

A terceira entrevista:”Joana”(12/janeiro/2007)

Foi numa quinta-feira, final de turno da abordagem encontramos Joana e um de

seus filhos no braço em um lugar movimentado de Laranjeiras.

Entramos no supermercado pra comprar bananas e maçãs pro pequeno e

marcamos um encontro pro sábado. No dia marcado fomos nos encontrar com ela.

Chegamos por volta das 14:00h e a encontramos embaixo de uma proteção de

papelão, uma cabana improvisada para proteger sua filha de 6 meses enquanto seu

companheiro vigiava carros. Procuramos um lugar para sentar para fazermos a

entrevista, o bebê havia passado a noite no pronto-socorro e estava “enjoado”.

Ela logo se lembrou das nossas conversas sobre filhos em 2001.

... Lembra tia que você que você falava pra não arrumar filho morando na rua que minha vida ia ficar mais difícil? Pois é, arrumei dois, mas vou sair da rua, só estou aqui para juntar um dinheiro pra construir minha casa em Feu Rosa. Eu e meu marido estamos batalhando pra isso.

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Ela começou a contar sua trajetória de rua enquanto nós gravávamos e tirávamos

das bolsas tudo que fosse colorido e que chamasse atenção do bebê que, devido ao

calor, já mostrava sinais de irritações.

Joana começa a conversa falando um pouco de sua vida antes de sua vinda pra rua.

Vim pra rua com 16 anos. A historia é longa. Fui criada pela minha vó porque minha mãe tinha 16 anos quando me teve. Não tive amor de mãe tive amor de vó. Fugi da casa, em MG, dela pra ficar com meu namorado, mas ele ficou comigo nem um mês. Não tinha pra onde ir e os parentes dele me deixaram ficar, só que um cunhado dele tentou “ficar” comigo e ai eu fugi pra rua.Não cheguei na rua e fui ficando não, ia um dia e passava a tarde, ia umdia e passava a noite e quando o medo passou eu fiquei de vez e não voltei mais.

Ela fala do medo do desconhecido. Do novo.

Tinha medo de viver na rua igual os meninos. De não voltar nunca mais pra casa. Eu tinha medo de dormir, ficava a noite toda acordada com medo de tudo.

Esse “tudo” dilui a idéia de uma corporificação que o educador quer dar a violência.

De tudo! De ser agredida, de morrer. Medo dos meninos não, eles eram os únicos de quem não tinha medo. Claro que a rua tem regras, não dá pra vacilar...

Ela narra um episódio violento que a marcou.

Uma vez chegou uma menina na rua, ela era do interior. Começou a ficar com um dos meninos, todos os outros meninos respeitando ela na boa, as meninas não são obrigadas a ficar com quem não ta afim, mas se escolher tem que dá respeito pro cara que ela ta. Ela se envolveu com um garoto que vinha de vez em quando comprar droga aqui em Laranjeiras. Até aí beleza, era só dispensar um, mas não, ela ficou transando com os dois. Quando o grupo descobriu a trairagem dela ela foi colocada na roda e todos os meninos transaram com ela. Foi de dar dó, depois nós chamamos uma das tias que ajudavam a gente aqui na rua e ela foi socorrida. Nunca mais ela apareceu aqui na rua.

122

Observo ela levantar a blusa para amamentar o bebê. Depois de um tempo ela

começa a contar que sofreu violência sexual na rua.

Com uma semana que eu estava na rua eu fui estuprada por um motoqueiro que comprava droga no local onde a gente ficava. Ele morava em Laranjeiras mesmo, do prédio dele dava pra ver a gente lá na rua. Ele me via chegando de tarde todo dia, depois ele me viu dormindo na rua. Ele me contou tudo isso depois que me estuprou.

Seus olhos olham para um ponto qualquer.

Ele chegou lá no meio da gente, já tinha visto ele por ali conversando com G., com F., tava doidão e perguntou se eu queria dar uma volta de moto com ele e ai eu topei. Ele deu uma volta em Laranjeiras e depois desceu o tobogã de Barcelona e entrou no mato. Começou a falar que gostava de mim, que já estava me vigiando de longe e que queria transar comigo.

Nesse trecho da entrevista ela fala novamente do medo de morrer.

Eu fiquei morrendo de medo dele me matar, olhava pra todos os lados e só via mato, eu a pé e ele de moto. Eu comecei a chorar, ele disse que era pra tirar a roupa pra ele me ver. Me fez chupar ele e fazer um monte de coisas que nem a gente que vive na rua tem coragem.

Joana expressa em sua fala a postura daqueles que sofrem abuso sexual, ou seja, a

impossibilidade de defesa. O abusador era mais forte, poderia correr mais que ela e

contava com o seu medo atroz de perder a vida.

A narrativa era interrompida por longos suspiros.

Ai ele terminou as nojeiras dele e falou que era pra mim subir na moto que ele ia me levar pro terminal. Eu não queria ir e ele começou a gritar comigo, ai eu fui. Quando chegou perto do terminal ele me mandou descer e tirou dez reais do bolso e me deu...

123

A fala foi ficando cheia de rancor. O peito onde a pequena mamava arfava.

O lance do dinheiro foi pior, era como se ele fosse um cliente e eu uma puta, eu não era puta apesar de estar ali na rua com os menino. Eu fui na delegacia, que fica ali de frente pro terminal, e o delegado disse que era impossível registrar queixa porque eu não sabia o nome do estuprador e a placa da moto. Falou assim ‘se você estivesse em casa isso não teria acontecido’.

O sentimento de impotência anda lado a lado com o educador social. Tudo que ele

sabe sobre violência, vida, morte, família, certo e errado parecem ruir, tudo em que

se acredita precisa ser adaptado para uma realidade paralela a sua. Esse

movimento de compreensão da realidade do outro e de mudança de olhar sobre o

mundo mina suas forças e faz com que, muitas vezes, ele se renda ao trabalho de

registro de dados estatísticos, relatórios e atendimentos pessoais, colocando a

reflexão sobre sua prática como educador como questão menor. Talvez seja sua

fuga. É preciso fugir da dor.

A quarta entrevista: “Tino”(15/março/2007)

Na rua esse menino franzino e tímido não tinha apelido, era chamado pelo primeiro

nome e carinhosamente tratado pelos educadores sociais por ser dócil e de fácil

convivência. Sua história de vida, como a de todos os jovens do grupo, era triste. O

pai havia morrido há anos, sua mãe já idosa caíra no alcoolismo desde que ele

podia se lembrar e o único irmão que tinha morou nas ruas de Vitória por longos

124

anos e só voltou quando o vírus HIV lhe tirou as forças e sua única saída era voltar

para casa. A história do irmão de Tino é contada por Mateus (2003):

(...) a família de J. F. S. é completamente carente, tanto na parte financeira quanto humana. Vivem em um cômodo pequeno sem qualquer conforto. Dormem sobre tabuas, a higiene não existe, e comida é coisa rara. A casa localiza-se num bairro carente, com alto índice de criminalidade, drogas e violência. Para agravar a situação, a mãe do adolescente é alcoolista, portanto fica muito tempo fora de casa, ignorando assim, o cuidado com os filhos, deixando-os abandonados á própria sorte. Acostumado com o dinheiro que ganhava nas ruas, com a comida que recebia nos restaurantes e com a vida sem limites que a rua lhe oferecia, o adolescente evadiu da casa da mãe e passou a andar com um grupo de colegas pelas ruas de Vitória. Em dezembro de 1996 após emagrecer e apresentar febrealta, o adolescente foi internado no Hospital das Clinicas e foi confirmado que ele era HIV positivo (...) No período de janeiro de 1996 a março de 1998 o adolescente passou por inúmeros hospitais e casas de acolhida para pessoas portadoras do vírus da AIDS. Neste período, obteve recuperações extraordinárias, indo de 27 para 49 kg. Em todos os estabelecimentos que passou, o adolescente se negava a obedecer normas, não aceitava limites, dificultando o diálogo e o bom andamento dos espaços. Desde que foi diagnosticado o HIV, J. F. S. tem retornado ás ruas sempre que consegue adquirir resistências. Em março 1998, conseguimos resgatar o adolescente, que já estava há três meses nas ruas; este negou-se a tomar medicamentos, quase não falou com os educadores e não mostrava nenhum interesse em continuar vivendo. O fato de conviver com outros pacientes soropositivos, às vezes na fase terminal, deixa-o desanimado, agressivo e sem vontade de viver, pois estes doentes são retratos do que ele será num futuro próximo... (S.R.S. –Educadora Social. Abril/1998. Grifo nosso) (MATEUS, 2003, p. 60).

Hoje, Tino é o único membro de sua família e ao sair das ruas foi acolhido pelo

tráfico do bairro onde reside.

O contato com o jovem foi feito através de Mauro, amigo desde o tempo em que o

jovem morava na rua.

Ele fala um pouco da sua história na rua:

Você sabe mais que eu mesmo. Não me lembro de muita coisa. Não me lembro de natal, festa de aniversário, beijo de professora na escola. Eu e meu irmão vivíamos aos cuidados dos vizinhos, Dona Marta e seu Joel, que davam comida, remédio, carinho... minha mãe tava sempre bêbada...

125

Meu irmão foi morar na rua bem novo, tinha uns dez anos, e eu sai corrido daqui por causa de um vizinho que me ameaçou de morte...Fui pra Vitória, mas meu irmão me batia quando eu aparecia por lá. Fazia eu voltar pra casa no mesmo dia. Eu me enchi daquilo e vim pra Laranjeiras. Lá encontrei pessoas legais e fui ficando. De vez em quando vinha ver minha mãe.

Pergunto quando foi seu retorno para casa.

Quando minha mãe morreu em 2003. Não sei te dizer. Só lembro que voltei pra casa e fiquei morando uns dias no barraco. Comia o que os vizinhos me davam, mas ai eu não agüentei a pressão do crack e voltei pra rua.

A rua e a casa se confundem, ora expulsam, ora acolhem.

Eu voltei pro grupo de Laranjeiras e comecei a sair com os clientes do “gui”. Ele já tava meio queimado com o boato de que tava com aids.

Em nenhum momento Tino associa a prostituição, o uso de droga e o fato de morar

na rua à violência.

]O que rolou de violência comigo foi quando eu comecei a ajudar num comércio aqui em Laranjeiras e o dono me chamou pra morar com ele e eu fui lembra?

Ele começa a falar sobre sua experiência com violência com uma pessoa que o

acolheu.

Primeiro ele me colocava pra fazer todo o serviço pesado. Quando fui morar com ele no início não rolou nada, mas depois ele começou a me procurar no quartinho onde eu dormia.

A percepção de violência vai aparecendo na fala de Tino.

Eu transava com ele normal. Ele só não queria que ninguém soubesse né? Dava uma de machão na frente dos irmãos dele e de noite me procurava. Só que a loja era aqui em Laranjeiras e os meninos vinham me ver de vez

126

em quando e aí ele começou a ficar enciumado, principalmente por causa do Mauro.

A rua é o ponto de referência. É porto seguro.

Nunca perdi o contato com meus amigos de Laranjeiras principalmente o Mauro. To ficando mais aqui no bairro por causa da polícia que vive no meu pé porque eu me envolvi naqueles incêndios a ônibus ano passado lembra?

Tino fala com frieza do episódio com o comerciante.

Pois é, ai o cara começou a querer proibir os meninos de vim me vê. Ameaçava o tempo todo, jogava na cara que eu era de rua, que eu não valia nada e que ia me colocar na rua. Ele era um otário, queria mandar pra rua quem sempre viveu nela. Aí eu não obedeci e ele partiu pra cima de mim de porrada. Todo dia tinha uma briga, todo dia eu apanhava. Eu fugi umas duas vezes pra rua e ele ia me buscar, eu voltava e ai começava tudo de novo. O cara era doido. Um dia a gente cheirou e ele pirou, pegou uma faca e tentou me furar, aí eu fugi, mas não podia ficar na rua senão ele me achava. Vim pro meu bairro e não fui na rua por um bom tempo. Ele fechou a loja e nunca mais eu vi.

A fala de Tino reafirma o que os outros jovens já haviam dito: que a rua, apesar de

ser rotulada de violenta, é muito mais segura para aqueles que conhecem seus

roteiros e códigos; que nos ditos locais “seguros”, como os abrigos, espaços

correcionais e mesmo as residências parece ser mais difícil escapar da violência.

Sem qualquer aviso prévio, ele encerra a entrevista.

Ce tá ligada que eu não tinha que tá te contando nada, só to falando porque o Mauro pediu e eu sei que você é bacana, mas é perigoso pra você tá aqui...

Agradecemos por ele ter concordado em participar da pesquisa. Sabíamos que não

voltaríamos ali de novo. Antes de encerrarmos a conversa, mais dois rapazes

entraram na casa e Tino fez as apresentações. Não podíamos sair enquanto não

recebêssemos um sinal de positivo.

127

Nesse momento os papéis se inverteram, fomos entrevistados pelos dois rapazes

que chegaram, eles queriam saber quem havíamos entrevistado e o que faríamos

com as entrevistas. Uma eternidade se passou. Quando nos despedimos e voltamos

para casa, sentimos o que os meninos tentaram nos dizer durante todo o tempo da

pesquisa: quando estamos diante do perigo, da violência e do medo eminente da

morte, pensamos na vida e não na morte. Ela, a vida, é maior que todas as certezas,

maior que a dor e o sofrimento.

A entrevista a seguir foi feita com um jovem morador de rua que desde 2001 é

soropositivo. Ele nunca aceitou fazer o tratamento oferecido a portadores do vírus

HIV, nunca escondeu que faz programa e que também não usava preservativo com

os seus clientes.

A entrevista foi feita na casa da avó de Gui num bairro próximo ao Terminal de

Carapina, onde ele encontra abrigo quando adoece. Moram na pequena casa de

três cômodos: a avó do jovem, sua mãe com problemas mentais, uma tia com quatro

crianças pequenas e três primos, todos com passagem pela rua.

No início falamos um pouco sobre as lembranças que ambos tínhamos da rua, ele

perguntou por um educador que já não trabalha mais na abordagem, falamos um

pouco das nossas vidas, dos nossos projetos, sonhos...

A quinta entrevista“Gui” (20/abril/2007)

Gui Inicia a conversa se queixando do fato de estar em casa.

128

Já tem um tempão que to aqui, não to agüentando mais ficar aqui. Não faço nada, fico ouvindo minha vó reclamar da vida, do trabalho que nós damos a ela.

Ele se justifica.

Fiquei doente. Mas dessa vez foi grave, to com tuberculose. Quase morri na rua, dei uma febre e fui ao posto e lá eles me mandaram ir pra casa pra tomar o remédio. Também to cansado da rua.

Conversamos sobre a rua, as relações que ele construiu.

Sinto falta dos amigos, do pessoal da casa espírita, da liberdade de fazer o que eu quero. Na rua você não pára, tem coisas pra fazer o dia todo.

Comento sobre o que aconteceu com Bino. Ele afirma que a rua não é mais

perigosa que o bairro onde sua avó mora.

Não! A rua é mais seguro que aqui na casa da minha vó. A gente ouve falar todo dia que deram tiro ali, e mataram três não sei aonde, deram mais tiro lá e mataram mais quatro. O marido da minha tia morreu matado aqui em casa. Os caras chegaram e mandaram ele sair pra fora e ai eles atiraram.

Ele diferencia a violência da rua e a do bairro como se as duas não fossem

similares.

Só morre na rua se vacilar feio. Caguetar, ficar devendo droga. Aqui qualquer coisa dá em morte. Toda confusão dá em morte e a família tem que ficar calada senão morre todo mundo.

Ele fala da relação com seus clientes.

Já apanhei de cliente. Eles combinam um preço e querem pagar outro, ou não querem pagar. Eles querem provar que são homens pra eles mesmos só que tão comendo outro homem. Não to mais fazendo programa, fiquei com medo de uns tempos pra cá.

129

A violência parece vir sempre de fora, ou seja, a rua de todo dia é segura, o que traz

a violência vem de um outro bairro, tem endereço, casa etc. Combinamos o retorno

para a semana seguinte e quando já estávamos na porta “Gui” perguntou se

poderíamos lhe trazer fraldas quando viéssemos vê-lo de novo. Ficamos surpresos

com o pedido, ele não havia nos contado que estava usando fraldas, provavelmente,

com vergonha.

Voltamos no fim da semana seguinte com as fraldas e um pouco de medo do que

iríamos encontrar. O medo se misturou a tristeza assim que o vimos, ele estava mais

debilitado que antes, conversava com uma assistente social do posto de saúde que

foi acionada pelo conselho tutelar para providenciarem a retirada de “Gui” da casa

da sua avó, pois a família achava arriscado mantê-lo na casa devido ao grande

número de crianças convivendo no mesmo espaço que ele. Sua vó afirmava que

não era por causa da AIDS, mas por causa da tuberculose e o fato de “Gui” se

recusar, há três dias, em colher o material para o exame infectológico de controle da

tuberculose e de estar “dando muito trabalho” 2.

Conseguimos visitá-lo mais algumas vezes, estava sempre falando em melhorar e

voltar para a rua, nunca falou em morrer. Não estranhamos esse comportamento,

ele sempre acreditou mais na vida, por mais próximo que estivesse da morte.

Estes são os relatos colhidos entre os meses de setembro/2006 e abril/2007. Eles

são responsáveis pela escrita de todo o texto.

2 Sentei-me na beira da cama e segurei sua mão. Entreguei as fraldas e ele disse todo sério “essas aqui não valem nada, vaza tudo”, eu não sabia se ria ou chorava. Decidi que não o entrevistaria mais, iria visitá-lo, conversaria, mas não faria registros.

130

4.3 As Unidades de Sentido

A leitura para a extração das Unidades de Sentido (US) era o último movimento que

precisávamos realizar para retirar das entrevistas os significados através da

“redução” para, assim, chegar ao núcleo essencial do vivido (HANAN, 1994). Nossa

leitura foi acompanhada por Moreira (2002), que faz um regate da proposta

metodológica de alguns autores que indicam que a feição particular de um método

não depende apenas da área de pesquisa em que será supostamente aplicado, mas

de autor para autor.

O autor elenca, em uma ordem cronológica, a proposta de alguns autores quanto

aos passos que a pesquisa fenomenológica deve seguir.

Van Kaam (1959) é apontado como autor pioneiro em propor um método

fenomenológico para a pesquisa empírica. O autor, em seu método, enfatiza a

palavra “expressão” entendida como “frase” ou “pensamento”.

Em cinco passos ele propõe uma estrutura de análise que possibilita a extração das

US, a saber:

A) Obter um núcleo de experiências comuns.

B) Listar e preparar em agrupamento preliminar rudimentar de cada expressão

apresentada pelos participantes.

C) Redução e eliminação (frase com sentido bem definido).

D) Todos os constituintes descritivos relevantes são juntados em um núcleo, de

forma que expresse o fenômeno comum.

131

E) Identificar os constituintes descritivos por aplicativos.

Este autor centra sua análise na determinação das essências do fenômeno

(experiência) em estudo e em nenhum momento menciona a epoqué (MOREIRA,

2002).

Colaizzi (1978) propõe sete passos que devem ser vistos como típicos, mas não

como definitivos. O método já supõe que a descrição das experiências vividas dos

participantes já foram coletadas e transportas na forma escrita.

A) Ler todas as descrições, de forma a adquirir uma visão geral.

B) Retornar a cada protocolo (descrições) e extrair frases ou sentenças que digam

respeito diretamente ao fenômeno investigado.

C) Colocar em palavras as assertivas (conhecido como “formulação de sentidos”).

D) Repetir o procedimento acima para cada protocolo e organizar os sentidos

formulados em “conjunto de temas”. Teste o conjunto de temas contra os protocolos

originais para validá-los buscando semelhanças e contrastes.

E) Todos os resultados são integrados em uma descrição.

F) Formula-se a descrição do fenômeno em uma declaração de sua estrutura.

G) Retornar o resultado a cada participante para validação em forma de entrevistas

questionando-se sobre a adequação dos resultados.

O método de Colaizzi é de grande popularidade devido à clareza com que é

formulado. Novamente, não há referências à epoqué (MOREIRA, 2002, p 121).

132

Sanders (1982) propõe três componentes fundamentais naquilo que chama de

“estrutura fenomenológica da pesquisa”:

A) Determinação dos limites “do que” e “quem” deve ser investigado.

B) Coleta de dados.

C) Análise fenomenológica dos dados.

A autora alerta para importantes regras para o pesquisador, que deve estar atento

para a quantidade de participantes, trabalhar em profundidade com pequeno número

(de três a seis indivíduos) e, por fim, que não se deve fazer quaisquer

generalizações além do grupo sob estudo (MOREIRA, 2002, p. 122)

Quanto à coleta de dados, Sanders aponta alguns procedimentos que ajudarão o

pesquisador no seu trabalho de investigação em campo:

As entrevistas devem ser gravadas em áudio e transcritas, o estudo deve ser feito

sobre material escrito.

A análise fenomenológica dos dados é o último passo a ser dado pelo pesquisador e

é efetuada nas seguintes etapas, conforme o autor:

- Descrição do fenômeno.

- Identificação dos temas por sua importância e não pela quantidade em que

aparecem.

- Junção dos temas em conjunto de essências para caracterizar o fenômeno.

Embora a seqüência proposta por Sanders não faça menção diretamente à epoqué,

a autora tece algumas considerações acerca do distanciamento que o pesquisador

133

deve ter, evitando pressuposições e idéias preexistentes sobre o fenômeno

investigado (MOREIRA, 2002, p. 122).

A proposta metodológica de Giorgi (1985) é uma das mais conhecidas e utilizadas

no campo da Psicologia Fenomenológica. Seu método é composto por quatro

passos e tem como objetivo a obtenção das “unidades de sentido”.

A) Leitura das entrevistas transcritas.

B) Volta ao texto para buscar as “unidades de sentido” dentro da perspectiva que

interessa ao pesquisador– sociológica, psicológica – sempre com foco no fenômeno

estudado e com o sentido do todo

C) Uma vez delineados as US, o pesquisador corre por todas as unidades de

sentido expressando o que elas contêm.

D) E, por último, o pesquisador sintetiza todas as US transformadas em uma

declaração consistente com relação à experiência do sujeito. Essa declaração vai se

chamar “estrutura da experiência”.

As variantes do método fenomenológico apontadas por Moreira (2003) auxiliaram no

entendimento de que este não possui apenas um formato. Essa leitura nos

possibilitou uma maior segurança no manejo dos textos produzidos a partir das

entrevistas, garantindo uma base para que pudéssemos efetuar a discriminação das

US.

Todas as entrevistas que havíamos conseguido fazer, em todo o percurso de campo

da pesquisa, já haviam sido lidas até a exaustão para a realização de diversas

etapas do trabalho, mas a leitura com o objetivo de extrair as unidades de sentido

134

exigia um cuidado de ourives ao derreter o ouro para retirar outros metais menos

nobres e ter material para fabricar sua jóia. Sendo assim, fomos guiados por Hanan

(1994):

Os relatos eram submetidos á leitura tantas vezes quanto julgasse necessário, procurando apreender a evidência significativa do vivido, tendo mais uma vez o cuidado de não perder a relação parte todo.Ao procurar extrair tais evidências do relato ingênuo, não lhes dei o caráter analítico das Ciências Positivas, pois ‘a natureza do procedimento pretende garantir um total relato dos dados’. Isto resultou na apreensão de, por vezes, vários significados dentro dos textos, o que me levava a, novamente, debruçar-me sobre estes a fim de melhor compreender o seu significado contextualizado no todo (HANAN, 1994, p. 46).

Era comum a todas as entrevistas a menção ao nome casa/rua, violência/medo,

vida/morte. Não foi o número de vezes que essas palavras apareceram nos relatos

que garantiram que elas o estatuto de unidades de sentido. Todas elas eram ditas

com grande carga emocional.

Casa/rua

A casa e a rua como o lugar de origem e marco referencial de suas histórias. A casa

onde moraram era mencionada com certa nostalgia, mas deixavam bem claro que

sua “casa” era a rua.

Voltei muitas vezes pra casa de minha mãe, mas já não ficava sem o crack, sem o grupo. A minha casa agora é a rua.

135

O relato de Bino deixa claro que outra casa precisou ser construída. Estranhamente,

os projetos que funcionam como espaços provisórios de acolhimento, adotam

nomes que fazem alusão a casa: “casa de passagem”, “casa lar”, “casa de acolhida”.

“Lugar de criança não é na rua” falam em uníssono educadores, pais, instituições.

Mas lá está o menino ocupando a rua, subvertendo seus usos. O relato de uma

educadora exemplifica essa subversão:

Sempre tive resistência de fazer plantão nos locais onde eles dormiam. No Leme, dormiam num banco de praça. E fazer um plantão justamente nesse banco que era a casa deles, eu achava que era uma invasão de espaço por mais que fosse um espaço público... Mas a relação que as pessoas tinham com o espaço não era o de um espaço público. Ás vezes, eu chegava no plantão, fingia que batia na porta, ‘dá licença, imaginava uma porta, uma parede que provavelmente aquelas pessoas construíram naquele espaço. ‘Pode entrar, a porta está aberta’ (MILITO; SILVA, 1995, p. 18).

Para nossos jovens a casa é ocupação material e simbólica de um espaço de

moradia. Alem desse espaço geográfico existem também as relações sociais com

outros personagens do espaço rua.

A rua é, para o educador social, um exílio imposto por uma sociedade desigual

àqueles que não têm seus direitos garantidos. Para nossos jovens ela é

possibilidade.

Educadores vêem as ruas como espaços livres, e os jovens aprendem no seu

cotidiano que a rua tem fronteiras, é um território composto de malhas. Pertencer a

esse território exige deles comportamentos específicos e observância de códigos.

136

Estar na rua, morando, trabalhando ou pedindo não quer dizer que esses sujeitos

não possuam residência. A sua não permanência em casa aponta para uma

insubmissão aos códigos impostos por suas famílias.

Voltemos ao tempo de nossas mães. Se fecharmos os olhos podemos ouvi-las

dizendo com seu carinho autoritário “menino, entra” ou “rua não é lugar de criança”.

Em tempos remotos a rua não era segura para “menino”. Hoje a rua não é segura

porque tem meninos. Subversão de um imaginário.

[...] A criança vivida como ameaça. A sociedade que tem medo de crianças. Na belle époque, as crianças eram ninadas, toda uma cadeia de rádios e televisões em todo Brasil encerrava suas transmissões com a apaziguadora cantiga de ninar que convocava o boi da cara preta para pegar o menino que tem medo de careta. Hoje, convertido em ‘menor’, o boi é o menino (MILITO; SILVA, 1995, p. 63).

Medo/violência

A ordem em que as palavras se encontram é proposital. Aqui, jogaremos com a

astúcia das palavras. Não sabemos se é o medo que gera violência ou se é a

violência que gera o medo.

Medo e violência se misturam no cotidiano dos jovens que entrevistamos. Era uma

palavra capturando a linguagem da outra:

Não tenho medo da rua, aqui me sinto seguro. Tenho medo da violência dos estranhos. Quem não me conhece, um policial de outro lugar, um trafica de fora pode achar que a gente é perigoso e já chegar batendo, matando, prendendo...

137

Na fala de Mauro o medo gera violência. Medo do desconhecido, do estranho, do

que não lhe é familiar.

No relato de Bino os dois termos se confundem.

Aqui na rua eu convivo com todo mundo, sou amigo e tal, mas se rolar uma situação de vida ou morte, se for eu ou ele, vai ele.

De que temos medo, afinal?

Temos medo da culpa e do castigo; do perigo e da covardia; do que fizemos e do

que deixamos de fazer; dos medrosos e dos sem medo; das alamedas e dos becos

onde “até a canção medrosa/se parte, se transe e cala-se” (CHAUÍ, 1987, p. 37).

O medo de não poder reagir é maior que o medo do ato violento. “Medo metafísico

sem objeto, tudo e nada lhe servindo para consumar-se até alçar-se ao ápice: medo

do medo” (CHAUÍ, 1987, p. 39).

Pensávamos no inicio da pesquisa, mesmo com toda a exigência que nós nos

fazíamos de não ter hipóteses sobre a percepção que os jovens possuíam sobre

violência, cometemos o pecado de acharmos que ela, a violência possuísse um

“corpo”. Ao longo das entrevistas fomos descobrindo que ela não possui uma

unidade, capaz de reconciliar o que sentimos diante da violência e que percepção

temos dela. A percepção que nossos jovens possuem sobre violência é feita de

multiplicidades e contradições.

138

Se tiver que morrer, quero morrer na rua.

A fala de Bino esclarece o que é violência para ele e seus companheiros de rua. Não

pensam em violência num cotidiano marcado por relações violentas. Violência é

morte. Ela é indomável. É porvir.

Morte/vida

Essas duas unidades aparecem nos relatos num jogo de sentidos. É como se um

fosse o antídoto do outro.

Quando eu melhorar vou pra rua. Minha vida é lá.

Esta fala é de “Gui”, ele a pronunciou no leito, seus últimos dias foram vividos em

uma cama na casa de sua vó. Ele era soropositivo desde 2000. Não falava em

morte, falava na vida. Esse era o seu remédio, o único que aceitou tomar, era esse

que lhe restaurava as forças e lhe descansava a alma. Permitam que falemos dele

com paixão. Paixão que acontece na rua entre educador e menino.

[...] a luta aqui, passional, é combate entre duas paixões em tudo contrárias: fuga da morte e desejo de vida. Só depois que as paixões tiverem decidido o porvir, saberemos se, tristemente, ‘morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas’ (CHAUÍ, 1987, p. 75).

Para o educador viver na rua já é uma espécie de morte. Ao contrário dos nossos

sujeitos de pesquisa, diante da possibilidade de morarmos na rua e morrer, a

escolha é óbvia. É melhor a morte.

139

Para nossos jovens o inverso da sentença é que vale: entre morrer (em seus bairros

de origem) e viver na rua a escolha também é óbvia: é preciso viver!

A morte não está anunciada para aqueles que vivem nas ruas. Viver na rua é um ato

de desafio à morte. É um não à não-existência.

A potência das unidades estão no impacto que elas causam na segura barreira que

erguemos para nos proteger de nós mesmos.

Lição aprendida no texto de Hanan (1994):

Vivenciar os antagonismos entre direito x dever; crime x castigo; certo x errado; bom x mau; vida x morte; torna-se, na maior parte das vezes, desgastante, pois nos chama a um descentramento de nós mesmos em direção ao outro para o qual não nos encontramos preparados, visto que fazemos parte do mesmo mundo físico destas pessoas, e seus apelos geralmente encontram eco em nossos corações que, pensamos, já não mais se abalam com a dor, o sofrimento e a miséria humanos (HANAN, 1994, p. 81).

As unidades de sentido foram retiradas dos relatos e tratadas neste sub-item em

forma de antagonismos com a intenção de potencializar seus múltiplos sentidos,

colocá-las, mesmo que por um breve instante, ao alcance de nossos olhos. Breve

possibilidade de ver o “outro”.

140

Tudo acaba mas o que escrevo continua. O que é bom,

muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está

nas entrelinhas (Clarice Lispector).

141

CONCLUINDO?...

Faltando alguns meses para a conclusão deste trabalho perdemos um dos jovens

que participou da pesquisa. “Gui” faleceu num dia de domingo devido a

complicações decorrentes da AIDS. Choramos sua morte, mas sabemos que

durante sua breve vida nunca pensou na morte, mas na vida.

Escrever a conclusão deste trabalho é, antes de tudo, o exercício de analisar minha

prática como educadora, como pesquisadora e como pessoa que tem o

compromisso de ver e de perceber o outro como sujeito.

Foram dois anos e meio pensando, comendo e respirando “mestrado”. Talvez por

isso essa sensação de esgotamento, mas que não me impedem de ter esperança de

que esse trabalho não foi em vão, que as histórias que foram relatadas aqui falem

mais que da vida nas ruas, de violências, de episódios tristes, mas falem do

inusitado mundo daqueles que mesmo que considerados mortos teimam em

continuar vivos.

Todas estas páginas tentam mostrar a percepção que jovens, moradores de rua,

construíram a partir de suas experiências com as situações de violência no seu

cotidiano.

Não buscávamos personalidades, tão pouco heróis, queríamos humanidades

escondidas sob o óbvio. O cotidiano da pesquisa nos revelou mais que táticas de

142

sobrevivência dos desvalidos, mas, formas de ver a vida, a morte, o medo e a

coragem.

O “chão” desta pesquisa era a própria rua, com seus cheiros, suas cores e atores.

As histórias colhidas através dos relatos ora, era fruto das lembranças dos

entrevistados, ora de fatos vivenciados no dia anterior, ainda cheios de marcas,

perceptíveis no corpo e escondidos na alma.

Durante o percurso fomos percebendo a cidade em sua dimensão geográfica, ruas,

becos, esconderijos, avenidas iluminadas e shoppings. Podemos ver também seus

sujeitos, estudantes, trabalhadores, moradores de rua, prostitutas e policiais, em

movimento frenético de idas e vindas, absortos em seus afazeres. Observamos

como ela se comporta com aqueles que consideram indesejáveis e perigosos para a

ordem estabelecida. Os nossos sujeitos são vistos como “malandros” por suas

atividades e como “animais” por seu comportamento. Os dois adjetivos denotam

capacidade de sobrevivência segundo Milito e Silva (1995):

Assim, por outro lado, malandro é quem luta pela sobrevivência, trabalha desde pequeno, fazendo biscates, pela cidade. Logo, faz-se referência a um relacionamento não canônico com a sociedade, ao invés de uma recusa a essa sociedade, expressa no silêncio, no autismo, na fronteira, na apatia. Lutar pela sobrevivência é uma expressão ((struggle for life) de forte impregnação animal, natural, onde o império do instinto torna toda apropriação legítima em seu desespero de permanecer vivo, de se manter vivo. O animal saudável capaz de tudo, ardiloso, oportunista, capaz do bote e da cilada em nome não da vida, mas de sua vida (MILITO; SILVA, 1995, p. 139).

Sobreviventes é o que são. Capazes de transformar adversidades em alternativas.

Heróis? Também não, mas valentes. O essencial para eles é estar vivos. Não

gozam de boa reputação, são julgados pela aparência, são chamados de

143

“bandidos”. Livres? Misticismo puro. A rua tem regras, e se acaso não tivesse, eles

as construiriam. Afinal, são humanos.

Este trabalho não fala de heroísmos, mas de restos, pedaços colados aqui e ali para

montar um mundo. Vasculhamos registros de uma história não oficial, buscamos

fatos do dia a dia, das mazelas, do excepcional.

Foi necessário documentar suas histórias, para que pudéssemos ouvir suas vozes

antes que se perdessem. Elas não são eternas, mas transitórias e errantes como os

meninos.

O que registramos neste trabalho é muito pequeno diante do que se perdeu por

entre nossos dedos. Ele fala da nossa incapacidade de capturar o que é da ordem

do incompreensível, do transitório, do inenarrável...

Portanto, não nos atrevemos a concluir uma temática inesgotável, caminho que

trilhamos conscientes que não era possível ver seu fim, mas apenas sua travessia...

Terminamos com G. Rosa que sabiamente nos adverte “O real não está na saída

nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia".

144

REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violências nas Escolas. Brasília,

UNESCO, 2002.

ABRAMOVAY, Miriam et. al. Gangues, Galeras, Chegados e Rappers. Juventude,

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