o Ódio

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O Ódio por Rodrigo Carreiro O francês Mathieu Kassovitz é muito mais conhecido como ator do que como diretor. Ele ganhou fama internacional como o galã ingênuo e sonhador do colorido “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain” (2001). Curiosamente, a produção que lhe deu fama é diametralmente oposta ao estilo de filmes que ele escolheu dirigir. Nada de imagens lúdicas e personagens fofinhos. “O Ódio” (La Haine, França, 1995), segundo e melhor longa-metragem com a assinatura de Kassovitz, é um filme agressivo, rústico e estiloso, o filme cruza os estilos de Martin Scorsese e Spike Lee para compor um retrato visceral da verdadeira panela de pressão em que vive a juventude dos subúrbios de Paris. Repleto dos excessos estilísticos típicos de um cineasta talentoso mas ainda imaturo, “O Ódio” transpira agressividade por todos os poros. Trata-se de uma produção que consegue alcançar o mérito de ser relevante, ao mesmo tempo, dos pontos de vista universal e local. É um filme universal porque tematiza com perfeição o cotidiano da juventude contemporânea de baixa renda – uma multidão de jovens cheios de agressividade reprimida, sem qualquer perspectiva de futuro positivo. E é local porque retrata, com muita propriedade, o confuso panorama étnico e racial que permeia todas as capitais européias, invariavelmente habitadas por descendentes de povos colonizados pelas grandes potências. Um cenário perfeito para o crescimento surdo de diversos tipos de preconceito, todos prestes a explodir. O roteiro, escrito por Kassovitz, retrata um dia na vida de três jovens que moram no mesmo conjunto habitacional miserável em Paris. Eles pertencem a etnias diferentes, mas são muito amigos. Vinz (Vincent Cassel) é judeu. Hubert (Hubert Kounde), negro. Säid (Saïd Taghmaoui), descendente de árabe. Eles acabam de passar uma noite terrível. Os jovens da vizinhança tiveram um confronto violento com a polícia, e um amigo do trio está hospitalizado, entre a vida e a morte, por causa de excessos numa sessão de torturas cometida pelos policiais. Enfurecidos, os três rapazes vagam pela vizinhança, sem nada para fazer e sem destino, cometendo pequenos delitos, invadindo festas burguesas ou encontrando amigos ao acaso. Um deles tem um revólver carregado. Eles pensam em matar um policial, caso o amigo hospitalizado morra. Kassovitz fez um filme irado, cheio de energia, que captura perfeitamente o clima explosivo das periferias das metrópoles do Velho Mundo. Na estrutura narrativa e no tom agressivo, a influência clara vem dos filmes de Spike Lee, em particular da obra-prima “Faça a Coisa Certa” (1989). A temática racial está presente, a atmosfera de tensão borbulhante também, e toda a ação dramática se passa num único dia. Já na estética, Kassovitz bebe da fonte de Martin Scorsese – há citações visuais de “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, por exemplo, além de um trabalho de câmera brutal e ao mesmo tempo gracioso. O filme utiliza técnicas do cinema verité (câmera na mão, imagens em preto-e-branco), mas acrescenta a elas montagem veloz, truques visuais como câmera dividida (split screen) e efeitos sonoros que aumentam a sensação geral de nervosismo.

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O Ódio

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O Ódiopor Rodrigo Carreiro

O francês Mathieu Kassovitz é muito mais conhecido como ator do que como diretor. Ele ganhou fama internacional como o galã ingênuo e sonhador do colorido “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain” (2001). Curiosamente, a produção que lhe deu fama é diametralmente oposta ao estilo de filmes que ele escolheu dirigir. Nada de imagens lúdicas e personagens fofinhos. “O Ódio” (La Haine, França, 1995), segundo e melhor longa-metragem com a assinatura de Kassovitz, é um filme agressivo, rústico e estiloso, o filme cruza os estilos de Martin Scorsese e Spike Lee para compor um retrato visceral da verdadeira panela de pressão em que vive a juventude dos subúrbios de Paris.

Repleto dos excessos estilísticos típicos de um cineasta talentoso mas ainda imaturo, “O Ódio” transpira agressividade por todos os poros. Trata-se de uma produção que consegue alcançar o mérito de ser relevante, ao mesmo tempo, dos pontos de vista universal e local. É um filme universal porque tematiza com perfeição o cotidiano da juventude contemporânea de baixa renda – uma multidão de jovens cheios de agressividade reprimida, sem qualquer perspectiva de futuro positivo. E é local porque retrata, com muita propriedade, o confuso panorama étnico e racial que permeia todas as capitais européias, invariavelmente habitadas por descendentes de povos colonizados pelas grandes potências. Um cenário perfeito para o crescimento surdo de diversos tipos de preconceito, todos prestes a explodir.

O roteiro, escrito por Kassovitz, retrata um dia na vida de três jovens que moram no mesmo conjunto habitacional miserável em Paris. Eles pertencem a etnias diferentes, mas são muito amigos. Vinz (Vincent Cassel) é judeu. Hubert (Hubert Kounde), negro. Säid (Saïd Taghmaoui), descendente de árabe. Eles acabam de passar uma noite terrível. Os jovens da vizinhança tiveram um confronto violento com a polícia, e um amigo do trio está hospitalizado, entre a vida e a morte, por causa de excessos numa sessão de torturas cometida pelos policiais. Enfurecidos, os três rapazes vagam pela vizinhança, sem nada para fazer e sem destino, cometendo pequenos delitos, invadindo festas burguesas ou encontrando amigos ao acaso. Um deles tem um revólver carregado. Eles pensam em matar um policial, caso o amigo hospitalizado morra.

Kassovitz fez um filme irado, cheio de energia, que captura perfeitamente o clima explosivo das periferias das metrópoles do Velho Mundo. Na estrutura narrativa e no tom agressivo, a influência clara vem dos filmes de Spike Lee, em particular da obra-prima “Faça a Coisa Certa” (1989). A temática racial está presente, a atmosfera de tensão borbulhante também, e toda a ação dramática se passa num único dia. Já na estética, Kassovitz bebe da fonte de Martin Scorsese – há citações visuais de “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, por exemplo, além de um trabalho de câmera brutal e ao mesmo tempo gracioso. O filme utiliza técnicas do cinema verité (câmera na mão, imagens em preto-e-branco), mas acrescenta a elas montagem veloz, truques visuais como câmera dividida (split screen) e efeitos sonoros que aumentam a sensação geral de nervosismo.

Graças ao roteiro firme, que guarda surpresas arrojadas para o terceiro ato, e às atuações brilhantes e despojadas do elenco semi-desconhecido, “O Ódio” oferece um dos panoramas mais abrangentes, complexos, inteligentes e apocalípticos da vida da juventude contemporânea européia. É, também, o tipo de filme que dá margem para uma reflexão importante sobre a decadência do nível de vida nas cidades, neste século XXI. Basta comparar com “Juventude Transviada” (1955) ou “Sem Destino” (1969), clássicos que radiografaram com precisão os dilemas jovens de gerações anteriores, para ver o quanto a civilização se deteriorou. Não é uma obra perfeita, mas tem enorme relevância cultural – e não são muitos os filmes que alcançam tal status. O Ódio (La Haine, França, 1995)Direção\ Roteiro: Mathieu KassovitzElenco: Vincent Cassel, Hubert Kounde, Saïd TaghmaouiDuração: 97 minutos