o nÚcleo atÓmico - casa da química | química para tudo e … · 2011-01-05 · irradiacão de...

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12 Ora o comportamento dos átomos reais é muito di- ferente do atrás descrito. Em primeiro lugar porque nos seus estados permanentes possuem dimensões e frequências fixas. Em segundo lugar porque, se num processo molecular é irradiada energia, os átomos re- gressam aos seus estados de equilíbrio, retomando as dimensões que tinham antes. Por outro lado, a ener- gia que seria irradiada durante o processo de colapso atrás descrito seria muitíssimo maior do que aquela que é irradiada nos processos atómicos normais. Finalmente, o ponto es- sencial da teoria de Planck é que a irradiacão de energia por um sis- tema atómico não tem lugar da forma contínua prevista pela elec- trodinâmica ordinária, mas sim por emissões distintas de quanta, possuindo um quantum de radiação de frequência v a energia de hv, em que h é a constante universal de Planck. Considerações deste género le- varam Bohr a concluir que o mode- lo atómico de Rutheford representa um aspecto essencial da estrutura da matéria, mas que não se lhe po- dem aplicar as leis da electrodinâ- mica ordinária. Em 1913, numa série de três trabalhos monumen- tais, Bohr mostrou que podia expli- car facilmente as regras empíricas que governavam a riquíssima feno- menologia dos espectros ópticos da radiação produzida por descargas eléctricas em gases, que se tinham mantido, até então, indecifráveis, postulando o seguinte: a) O equilíbrio dinâmico dos siste- mas atómicos em estados esta- cionários é descrito pela mecâ- nica ordinária, mas a passagem descoberta do núcleo atómico pode situar-se nas últimas semanas do ano de 1910, quando, ao analisar os estranhos resultados obtidos por colaboradores seus em experiências de dispersão de raios alfa pela matéria, Ernest Rutherford chegou à con- clusão que eles eram facilmente explicados se o áto- mo, em vez de ser uma esfera de carga positiva uniforme dentro da qual se moviam electrões, como se julgava na altura, possuisse uma estrutura nuclear planetária. De acordo com a teoria de Ru- therford, o átomo é constituído por um núcleo central, carregado posi- tivamente, rodeado por um sistema de electrões que, apesar de se repe- lirem mutuamente, são conserva- dos juntos uns dos outros pela força atractiva do núcleo; a carga negati- va total do sistema de electrões é igual à carga positiva do núcleo que tem dimensões muitíssimo inferio- res às do próprio átomo, mas con- tem praticamente toda a sua massa. O modelo atómico de Ruther- ford apresentava uma dificuldade muito séria: de acordo com as teo- rias da época, o sistema de electrões não poderia ser estável. Na verda- de, para um electrão se manter a uma certa distância do núcleo sob o efeito da sua atracção, tem de girar continuamente em torno dele, como fazem os planetas relativa- mente ao sol. Mas, segundo a elec- trodinâmica clássica, as cargas aceleradas irradiam energia electro- magnética. Perdendo continuamen- te energia por irradiação, o electrão descreveria, com frequência cres- cente, órbitas cada vez mais próxi- mas do núcleo, acabando por se precipitar sobre ele. O Núcleo Atómico é a pedra angular da estrutura da matéria que nos é familiar. Com a sua descoberta, em finais de 1910, iniciou-se um período extremamente fecundo de desenvolvimento das ciências físicas, durante o qual se têm feito descobertas extraordinárias sobre a estrutura da matéria, as leis e forças da Natureza, a constituição e génese do Universo. O NÚCLEO ATÓMICO J. N. URBANO A Licenciado pela Universidade de Coimbra, dou- torado em Física Teórica pelas Universidades de Oxford e Coimbra, J. N. Urbano é professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecno- logia da Universidade de Coimbra. A sua acti- vidade científica – iniciada sob orientação de Sir Rudolf Peierls – tem-se repartido pela Fí- sica Nuclear (movimentos colectivos de sistemas de muitos corpos) e pela fronteira desta área com a Física das Partículas (propriedades está- ticas e dinâmicas dos nucleões e seus isóbaros). J. N. Urbano é Presidente do Conselho Directi- vo da FCTUC e Presidente da Direcção do Ins- tituto Pedro Nunes.

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Ora o comportamento dos átomos reais é muito di-ferente do atrás descrito. Em primeiro lugar porquenos seus estados permanentes possuem dimensões efrequências fixas. Em segundo lugar porque, se numprocesso molecular é irradiada energia, os átomos re-gressam aos seus estados de equilíbrio, retomando asdimensões que tinham antes. Por outro lado, a ener-gia que seria irradiada durante o processo de colapsoatrás descrito seria muitíssimo maior do que aquela que

é irradiada nos processos atómicosnormais. Finalmente, o ponto es-sencial da teoria de Planck é que airradiacão de energia por um sis-tema atómico não tem lugar daforma contínua prevista pela elec-trodinâmica ordinária, mas simpor emissões distintas de quanta,possuindo um quantum de radiaçãode frequência v a energia de hv, emque h é a constante universal dePlanck.

Considerações deste género le-varam Bohr a concluir que o mode-lo atómico de Rutheford representaum aspecto essencial da estruturada matéria, mas que não se lhe po-dem aplicar as leis da electrodinâ-mica ordinária. Em 1913, numasérie de três trabalhos monumen-tais, Bohr mostrou que podia expli-car facilmente as regras empíricasque governavam a riquíssima feno-menologia dos espectros ópticos daradiação produzida por descargaseléctricas em gases, que se tinhammantido, até então, indecifráveis,postulando o seguinte:

a) O equilíbrio dinâmico dos siste-mas atómicos em estados esta-cionários é descrito pela mecâ-nica ordinária, mas a passagem

descoberta do núcleo atómico pode situar-se nasúltimas semanas do ano de 1910, quando, aoanalisar os estranhos resultados obtidos por

colaboradores seus em experiências de dispersão deraios alfa pela matéria, Ernest Rutherford chegou à con-clusão que eles eram facilmente explicados se o áto-mo, em vez de ser uma esfera de carga positivauniforme dentro da qual se moviam electrões, comose julgava na altura, possuisse uma estrutura nuclearplanetária.

De acordo com a teoria de Ru-therford, o átomo é constituído porum núcleo central, carregado posi-tivamente, rodeado por um sistemade electrões que, apesar de se repe-lirem mutuamente, são conserva-dos juntos uns dos outros pela forçaatractiva do núcleo; a carga negati-va total do sistema de electrões éigual à carga positiva do núcleo quetem dimensões muitíssimo inferio-res às do próprio átomo, mas con-tem praticamente toda a sua massa.

O modelo atómico de Ruther-ford apresentava uma dificuldademuito séria: de acordo com as teo-rias da época, o sistema de electrõesnão poderia ser estável. Na verda-de, para um electrão se manter auma certa distância do núcleo sob oefeito da sua atracção, tem de girarcontinuamente em torno dele,como fazem os planetas relativa-mente ao sol. Mas, segundo a elec-trodinâmica clássica, as cargasaceleradas irradiam energia electro-magnética. Perdendo continuamen-te energia por irradiação, o electrãodescreveria, com frequência cres-cente, órbitas cada vez mais próxi-mas do núcleo, acabando por seprecipitar sobre ele.

O Núcleo Atómico é a pedra angular da estrutura da matéria que nos é familiar.Com a sua descoberta, em finais de 1910, iniciou-se um período extremamente fecundo

de desenvolvimento das ciências físicas, durante o qual se têm feito descobertasextraordinárias sobre a estrutura da matéria, as leis e forças da Natureza,

a constituição e génese do Universo.

O NÚCLEO ATÓMICO

J. N. URBANO

A

Licenciado pela Universidade de Coimbra, dou-torado em Física Teórica pelas Universidades deOxford e Coimbra, J. N. Urbano é professorcatedrático da Faculdade de Ciências e Tecno-logia da Universidade de Coimbra. A sua acti-vidade científica – iniciada sob orientação deSir Rudolf Peierls – tem-se repartido pela Fí-sica Nuclear (movimentos colectivos de sistemasde muitos corpos) e pela fronteira desta áreacom a Física das Partículas (propriedades está-ticas e dinâmicas dos nucleões e seus isóbaros).J. N. Urbano é Presidente do Conselho Directi-vo da FCTUC e Presidente da Direcção do Ins-tituto Pedro Nunes.

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dum sistema dum estado estacionário para outronão pode ser tratada nessa base;

b) O processo de transição entre dois estados estacio-nários é acompanhado pela emissão (ou absorção)de radiação monocromática para a qual a relaçãoentre a frequência e a quantidade de energia é da-da pela teoria de Planck;

c) Os estados estacionários dum sistema constituídopor um electrão ligado ao núcleo são aqueles paraos quais o momento angular do electrão em tornodo núcleo é igual a um múltiplo inteiro de h/(2π),onde h é a constante de Planck.

Para além de pressupor que a electrodinâmica clás-sica não era aplicável a sistemas atómicos, a teoriaquântica de Bohr possuia dois ingredientes que repre-sentavam uma quebra radical com as teorias clássicas.Um deles era o postulado de que, dentre a multidãocontínua dos estados permitidos pela mecânica clássi-ca, na natureza só ocorrem alguns, os que pertencema um conjunto discreto, determinado pelas suas regrasde quantização. O outro consistia em não associar afrequência da radiação emitida a uma frequência pró-pria de vibração do sistema emissor, mas sim a umadiferença de energias próprias do emissor.

Em 1914 Franck e Hertz confirmaram experimen-talmente a existência da quantização da energia dos es-tados atómicos, prevista por Bohr. Mas, não obstantetodo o seu sucesso, a teoria de Bohr era conceptual-mente insatisfatória, porque, para além de misturar leisclássicas com regras de quantização «ad hoc», não es-clarecia a relação entre os mecanismos de emissão eabsorção de radiação pelos sistemas atómicos e a elec-trodinâmica clássica. Além disso, apesar das engenho-sas generalizações a que foi sujeita, a teoria de Bohrrevelou-se incapaz de explicar detalhes importantes dafenomenologia dos espectros atómicos e moleculares.Para ultrapassar estas dificuldades desenvolveu-se, du-rante a década dos anos vinte, uma teoria quântica in-teiramente nova que, no entanto, manteve o essencialdos postulados de Bohr.

Com o advento da nova teoria quântica iniciou-seum dos mais interessantes períodos da história da ciên-cia. Todas as propriedades dos sistemas físicos foramde novo estudadas à luz dessa teoria, recebendo mui-tas delas, pela primeira vez, explicação adequada. Alémdisso foram previstos ou descobertos muitos fenóme-nos importantíssimos que não se enquadravam nas teo-rias clássicas.

A título de exemplo, a nova mecânica quântica per-mitiu compreender os mecanismos das reacções quí-micas e nucleares e os fundamentos das propriedadeseléctricas, magnéticas, ópticas e mecânicas da maté-ria, nos mais diversos estados e condições, tendo aber-to assim o caminho para os desenvolvimentostecnológicos que alteraram profundamente as condi-ções de vida do homem nos últimos quarenta anos.Forneceu também o formalismo indispensável para quese pudesse iniciar, em bases sólidas, o estudo do nú-cleo atómico como um sistema em si mesmo.

Os núcleos atómicos possuem um número muitovariado de constituintes que interagem através de for-ças muito diversas. Apresentam, por isso, uma feno-menologia riquíssima que tem sido intensamenteinvestigada tanto teórica como experimentalmente,com resultados assinaláveis. Para esse efeito foram cria-dos ou refinados métodos e técnicas teóricas e expe-rimentais, que também se têm mostrado úteis noutrosdomínios de investigação.

Ao investigar a estrutura interna dos núcleos ató-micos e as forças que actuam entre os seus constituin-tes, fizeram-se descobertas extraordinárias sobre aspropriedades e a estrutura última da materia, as leise as forças da Natureza e a constituição e a génese doUniverso. Estas descobertas alargaram as fronteiras doconhecimento a regiões de cuja existência nem sequerse suspeitava, num processo fascinante que está longede se poder considerar concluído.

O IMPACTO SOCIAL DOS ESTUDOS NUCLEARES

Contudo, não são apenas aspectos de natureza cientí-fica que conferem importância especial aos estudos so-bre o núcleo atómico. De facto, na investigação dassuas propriedades e nalgumas das suas aplicaçõesmanifestaram-se pela primeira vez muitos dos aspec-tos que caracterizam o processo científico nas socie-dades industrializadas do mundo de hoje.

A Ciência Moderna permitiu o desenvolvimento detecnologias que asseguram, numa medida nunca antesatingida ou sequer imaginada, a satisfação das neces-sidades básicas do Homem. Algumas dessas tecnolo-gias assentam em propriedades nucleares e muitasoutras só foram possíveis após a formulação da mecâ-nica quântica que, como vimos, surgiu na sequênciada descoberta do núcleo atómico.

Infelizmente, nem todas as consequências das apli-cações das tecnologias modernas são benéficas. Há de-senvolvimentos tecnológicos que estão a alterar, numaextensão ainda difícil de avaliar, as condições ambien-tais onde se desenvolveram as espécies vivas. Outroshá que ameaçam a continuidade da própria vida na Ter-ra. A este propósito é difícil deixar de se fazer uma re-ferência muito especial a certas aplicações nucleares.

Foram, aliás, as consequências desastrosas dessasaplicações que levaram o cidadão comum a alterar asua atitude, tradicionalmente benevolente e mesmo re-verencial, para com a ciência e os cientistas.

O reconhecimento do enorme potencial bélico e ener-gético das reacções nucleares contribuiu, mais do quequalquer outro factor, para o conceito de investigaçãode interesse estratégico, deixando o respectivo pro-cesso de ficar sob a exclusiva responsabilidade doscientistas que a praticam.

Tal como Francis Bacon havia previsto, “conheceré poder”. O poder resulta, por um lado, da produçãode riqueza excedentária através do aperfeiçoamento

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dos processos de fabrico e, pelo outro, da posse de ar-mas de destruição mais eficazes do que as daqueles quenão têm acesso ao conhecimento. Por esta razão, aciência encontra-se, cada vez mais, sob o controle dopoder político. Também neste particular, os estudossobre o núcleo atómico foram pioneiros da situaçãoque actualmente se vive nas sociedades industria-lizadas.

Foi também nos estudos sobre as propriedades nu-cleares que se iniciou a escalada dos orçamentos paraa investigação, com a consequente alteração da tradi-cional relação do processo científico com as restantesactividades sociais. Na verdade, para se desvendaremos segredos do núcleo atómico foi necessário construirgrandes infraestruturas, de manutenção e funciona-mento extremamente onerosos. A disponibilização dasverbas necessárias foi justificada pelo reconhecimen-to do interesse estratégico da investigação nuclear. Estereconhecimento estende-se, actualmente, a outros do-mínios científicos, cuja investigação tem sido dotadade orçamentos gigantescos. Como consequência, cer-tos domínios da investigação científica estão fora doalcance não só do investigador solitário, como de ins-tituicões isoladas e até dum só país, o que alterou irre-versivelmente as relacões tradicionais do processocientífico com as restantes actividades sociais.

Finalmente, a ciência nuclear colocou, pela primei-ra vez na história, o Homem perante o fracasso dosseus referenciais éticos tradicionais, que se têm reve-lado incapazes de lidar com a situação criada pelo aces-so fácil a meios de destruição generalizada.

Há pois variadíssimas razões, tanto de ordem cien-tífica como social, para tornar interessantíssimo umpercurso ao longo da história do desenvolvimento dosconhecimentos sobre o núcleo atómico, começandocom os antecedentes da sua descoberta e terminandocom uma perspectiva dos eventuais desenvolvimentosfuturos. Todavia o percurso é tão longo e tão diversi-ficado que por força da índole deste trabalho faremosapenas algumas brevíssimas paragens em pontos esco-lhidos mais ou menos ao acaso, deixando de fora mui-tos outros igualmente fascinantes.

A DESCOBERTA DO NÚCLEO ATÓMICO

O núcleo atómico foi descoberto na Universidadede Manchester, nas últimas semanas de 1910, por Er-nest Rutherford, em condições que serão melhor apre-ciadas inserindo a actividade deste genial cientista noambiente científico da sua época.

Ernest Rutherford (Fig. 1) nasceu na Nova Zelân-dia em 1871, tendo iniciado a sua carreira científicaestudando a magnetização do ferro. A alteração do re-gulamento da Universidade de Cambridge, abrindo estaprestigiada instituição a estudantes licenciados por ou-tras universidades, permitiu-lhe iniciar, em 1895, es-tudos de pós-graduação no Laboratório Cavendish, soba orientação do Prof. J. J. Thomson.

Em 8 de Novembro desse ano, Roentgen abalou omundo com a descoberta dos Raios X e Rutherford,tal como toda a gente, passou também a investigar es-ses raios misteriosos, abandonando os seus estudos so-bre magnetismo. Em colaboração com J. J. Thomson,começou por medir a ionização produzida pelos raiosX em gases, para o que utilizou um dos seus famososmétodos, conceptualmente muito simples, mas extre-mamente eficazes.

Entretanto, em 1896, Becquerel descobriu a ra-dioactvidade. Ao tomar conhecimento desta descober-ta, Rutherford passou a aplicar a técnica que vinhausando no estudo dos raios X para medir a ionizaçãoproduzida pela radiação de Becquerel. Em l898 des-cobriu, nessa radiação, os raios alfa e beta, naquela quefoi apenas a primeira duma extensa série de descober-tas sensacionais no domínio da Radioactividade, ciên-cia que ocupou a melhor parte de 20 anos do seu laborcientífico.

Fig. 1 – Ernest Rutherford (1871-1937), um dos mais geniais físi-cos experimentais de todos os tempos. Dotado duma intuição pro-digiosa fez, com instrumentos de concepção muito simples,descobertas cruciais em radioactividade, física atómica e física nu-clear. Depois de esclarecer que a radioactividade resulta da trans-mutação natural dos elementos, usou os raios alfa para revelar aestrutura dos átomos e para desintegrar os núcleos. Nos três labo-ratórios que dirigiu rodeou-se de colaboradores brilhantcs que dei-xaram o seu nome associado ao desenvolvimento da ciência doséculo XX.

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Em l898 Rutherford aceitou um lugar de profes-sor de física na Universidade de McGill, no Canadá,onde se manteve até 1907. O salário era baixo, maso laboratório era, no género, dos mais bem equipadosdo mundo, graças à generosidade do excêntrico mi-lionário do tabaco, Macdonald.

Durante a sua estadia em McGill, Rutherford de-senvolveu uma actividade científica brilhante tendo,nomeadamente, clarificado a complexa fenomenolo-gia da radioactividade e descoberto a lei do decaimentoradioactivo e a transmutação natural dos elementos,o que lhe valeu ser galardoado, em 1908, com o pré-mio Nobel da Química.

A partida de Rutherford de Cambridge para McGilldeu-se um ano após J. J. Thomson ter feito uma das ou-tras descobertas cruciais sobre a estrutura da matéria,que marcaram indelevelmente o último decénio do sé-culo dezanove. Referimo-nos à descoberta do electrãona radiação catódica. O impacto que esta e as outrasdescobertas tiveram na comunidade científica da épocapode ser avaliado pelos seguintes passos duma alocu-ção feita por Soddy, em 28 de Março de 1901, peran-te a Sociedade de Física na Universidade de McGill:

“Avanços recentes, relacionados com a descober-ta das radiações dos tipos catódicos, Roentgen e Bec-querel, levaram os físicos a acreditar que estão a lidarcom partículas de matéria mil vezes mais pequenas quea massa absoluta do átomo. Tão certos estão eles dainterpretação dos seus resultados experimentais e dapossibilidade de os explicarem pelas teorias actuais quealguns deles abandonaram definitivamente a noçãocorrentemente aceite sobre a estrutura da matéria, ten-do atacado a teoria atómica que, como todos sabem,tem constituído o alicerce da química desde o tempode Dalton até hoje. Teorias físicas como esta, para alémda imensa satisfação que dá aos seus promotores, de-vem ser ignoradas pela maioria dos químicos.”

“O Professor Rutherford pode ser capaz de nosconvencer que a matéria que ele conhece é a mesmaque nós conhecemos ou, possivelmente, admitirá queo mundo com que lida é um mundo novo que precisaduma Química e duma Física próprias. Em qualquercaso, estou certo que os químicos continuarão a acre-ditar nos átomos como identidades concretas e per-manentes, senão imutáveis, certamente ainda nãotransmutáveis”.

É interessante notar que, quando proferiu estas pa-lavras, o grande químico Soddy já se encontrava a co-laborar com Rutherford, a pedido deste, nasexperiências que levaram à descoberta da Lei da Ra-dioactividade e da Transmutação Radioactiva naturaldos elementos!

Em 1907 Rutherford rumou para Manchester, aconvite de Schuster, para ocupar o lugar de professorque este deixara vago, reformando-se mais cedo queo habitual. Schuster acreditava que “a reputação daUniversidade e o seu poder de atrair estudantes

depende inteiramente da investigação realizada nosseus laboratórios”. Por isso não só convenceu Ruther-ford a trocar McGill por Manchester como convenceuas autoridades locais a atribuirem a Rutherford um sa-lário bastante superior ao praticado na época e afornecerem-lhe os meios humanos e materiais neces-sários para manter em funcionamento um importantelaboratório de investigação no domínio da radioacti-vidade.

Rutherford tirou bom proveito dos meios que lheforam proporcionados, mas teve de travar uma lutamuito intensa para que, em Janeiro de 1908, o Institu-to de Rádio de Viena lhe facultasse uma peça impor-tantíssima para as suas investigações: uma fonteradioactiva equivalente a 290 mg de rádio.

Tal como havia feito em McGill, Rutherfordrodeou-se em Manchester de cientistas brilhantes. Umdeles foi o assistente pessoal de Schuster, um jovemalemão chamado Hans Geiger, que deixou o seu no-me ligado aquela que pode ser considerada como o ar-quétipo das máquinas da era nuclear: o contador deGeiger.

Geiger envolveu-se nos estudos que levaram a des-coberta do núcleo atómico duma maneira assaz pro-saica. Vendo-se confrontado com a necessidade deencontrar um assunto para iniciar um jovem estudan-te nas lides da investigação, sugeriu a Rutherford: “Nãoacha que o Ernest Marsden, a quem já treinei nos mé-todos da radioactividade, deve começar a fazer inves-tigação?”. Ao que o célebre professor terá respondido:“Por que não deixá-lo verificar se alguma das partícu-las alfa é difundida segundo ângulos grandes?”.

O resultado desta investigação foi publicado em1909. Geiger e Marsden verificaram, sem que o sou-bessem explicar, que, na verdade, uma pequena frac-ção das partículas alfa dum feixe que incidia numaplaca metálica era deflectida sob ângulos muito gran-des, chegando algumas delas a ser detectadas no localdonde partiam (Fig. 2).

Este resultado era de facto muito surpreendente,porque as partículas alfa eram tão pesadas (possuiam4 vezes a massa do átomo de hidrogénio, ou seja cer-ca de 8.000 vezes a massa do electrão) e iam anima-dos de velocidades tão grandes (cerca de 16.000 km/s)que deviam atravessar a fina folha metálica sem sofre-rem desvios apreciaveis da sua trajectória. Em vez dis-to, o que por vezes se passava, na sugestiva imagemde Rutherford, era como se ao disparar um canhão de15 polegadas contra uma folha de papel a bala voltas-se para trás reflectida pelo papel!

Rutherford não era forte em matemática. Mas eracurioso e não se envergonhava, sendo já então reco-nhecido como um dos mais brilhantes cientistas do seutempo, de assistir às aulas dos seus colegas. Aprendeudesse modo o suficiente de teoria das probabilidadespara poder concluir que a probabilidade duma dessasgrandes deflexões resultar de sucessivas pequenas de-flexões era demasiadamente pequena para explicar a

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fracção das partículas que apresentavam aquele com-portamento.

Perante este resultado, num golpe de génio, partiudo princípio que a deflexão duma partícula alfa era ori-ginada pela sua colisão com um único átomo da fo-lha. Contudo, para a poder fazer recuar, o átomo tinhade possuir uma estrutura interna diferente da que en-tão se admitia.

As ideias sobre a estrutura atómica dominantes naépoca eram as de J. J. Thomson. De acordo com esteprestigiado cientista, o átomo era constituído por umaesfera de carga eléctrica positiva distribuida uniforme-mente, dentro da qual se moviam os electrões em ór-bitas circulares. Com base neste modelo era possívelcalcular as modificações introduzidas no movimentoduma partícula alfa pela presença mais ou menos pró-xima dum átomo. Ora as deflexões assim calculadas

podiam ser, quanto muito, de alguns graus, mas nun-ca tão grandes quanto as reveladas nas experiências deGeiger e Marsden.

Usando o seu modelo atómico com núcleo centrale estrutura electrónica planetária, que inventou parao efeito, Rutherford explicou facilmente as grandes de-flexões sofridas pelas partículas alfa. Os electrões doátomo, por serem muitíssimo mais leves que as partí-culas alfa, perturbam pouco o movimento destas. Asque passam longe do núcleo não sofrem, portanto,grandes deflexões. São as que passam perto do núcleoque são mais desviadas, devido às grandes forças quese estabelecem entre duas cargas electricas quando es-tas se aproximam uma da outra. As partículas alfa queembatem directamente sobre o núcleo podem mesmoser obrigadas a voltar para trás se a carga do núcleotiver o mesmo sinal que a da partícula alfa e se a suamassa for maior que a desta partícula.

Fig. 2 – Hans Geiger (1882-1945), acompanhado por Rutherford, conta, no Laboratório de Manchester, através dum microscópio, o númerode impactos sobre um ecran de fluoreto de zinco das partículas alfa que, emanadas duma fonte radioactiva, são difundidas por uma folhametálica segundo um determinado ângulo. Alterava-se o ângulo de contagem movendo-se o ecran e o microscópio, solidariamente, em tornodum eixo vertical que passa pelo ponto de impacto do feixe incidente com a folha metálica. Foi a percentagem «demasiadamente» elevadade partículas desviadas segundo ãngulos grandes, observada por Geiger e Marsden, que levou Rutherford a concluir que os átomos possuemum núcleo central.

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Partindo desta imagem e dos resultados das expe-riências de Geiger e Marsden, Rutherford fez uns cál-culos simples donde concluiu: a carga do centrodifusor é positiva e igual – em unidades da carga doelectrão – ao número atómico do átomo: a sua mas-sa é igual à do próprio átomo; as suas dimensões sãocerca de 10.000 vezes inferiores às do átomo. Estavaassim descoberto o núcleo atómico!

Pode dizer-se que o núcleo atómico foi descober-to acidentalmente, porque foi encontrado sem ser pro-curado. Todavia a sua descoberta não surgiu por acaso,mas sim como a consequência dum projecto de inves-tigação bem delineado, excepcionalmente executado,superiormente conduzido e genialmente interpretado.Pelas circunstâncias em que ocorreu e pela importân-cia de que se revestiu, essa descoberta constitui um dosmaiores triunfos do Método Científico Moderno quehavia sido estabelecido, séculos antes, por Galileo Ga-lilei, Francis Bacon, René Decartes e Isaac Newton, en-tre outros, e no qual o Homem encontrou um meiosurpreendentemente eficaz de interrogar a natureza,descobrir a sua constituição, inventar as suas leis e do-mar as suas forças.

1932O INÍCIO DA IDADE DE OURO

DA FÍSICA NUCLEAR

Existem na história da ciência períodos singular-mente fecundos durante os quais ocorrem observaçõesexperimentais ou surgem teorias que alteram qualita-tivamente o estado do conhecimento do mundo quenos rodeia. Tais observações ou teorias constituempontos de viragem e estabelecem o enquadramento dosfuturos desenvolvimentos.

Um dos exemplos mais significativos dum dessesperíodos é o que compreende os anos 1808-1810, duran-te o qual John Dalton apresentou “Um Novo Sistemadas Ciências Químicas” que estabeleceu definitivamen-te a teoria atómica da matéria. Sobre esta base erigiram--se uma Ciência e uma Indústria Química excepcio-nalmente florescentes, que influenciaram decisivamen-te o desenvolvimento da ciência e da sociedade até aosnossos dias.

Outro exemplo significativo, a que já nos referimos,é o que compreende os anos de 1895 a 1897, duranteos quais, em rápida sucessão, Roentgen descobriu osraios X, Becquerel a radioactividade e J. J. Thomsono electrão.

No mesmo sentido, o ano de 1932 assume especialsignificado para o progresso da Física Nuclear. Duranteesse ano realizaram-se as primeiras desintegrações nu-cleares provocadas por partículas aceleradas artificial-mente, descobriu-se o neutrão e foi publicado oprimeiro trabalho teórico moderno sobre a estruturados núcleos atómicos. A estes acontecimentos estão as-sociados, respectivamente, os nomes de Cockcroft eWalton, de Chadwick e de Heisenberg.

Cockcroft, Walton e Chadwick faziam parte daequipa de Rutherford. Os trabalhos experimentais queos tornaram famosos vieram dar resposta a anseios eprevisões do grande cientista. O mesmo não acontececom o trabalho teórico de Heisenberg, com o qual onúcleo perde, definitivamente, a simplicidade ruther-fordiana. No seu conjunto, estes três trabalhos consti-tuem um ponto de viragem da Física Nuclear,marcando o início da segunda e mais importante fasedo desenvolvimento desta ciência. Por isso, cada umdeles merece, de per si, uma referência especial.

COCKCROFT E WALTON E OSACELERADORES DE PARTÍCULAS

Em 28 de Abril de 1932 a Sociedade Real de Lon-dres realizou um encontro sobre a estrutura dos nú-cleos atómicos. O discurso inaugural ficou a cargo deRutherford que passou em revista o progresso feito du-rante os últimos três anos no ataque experimentalàquele que, em sua opinião, era o problema central daFísica: a estrutura do núcleo atómico.

Ao sumariar o seu discurso, Rutherford manifestou--se admirado pela rapidez do progresso realizado, afir-mando que ele “será ainda muito mais rápido quandose puderem obter no laboratório fontes poderosas, mascontroláveis, de átomos animados de grandes veloci-dades e de radiação de frequências muito elevadas, pa-ra bombardear a matéria”. Mostrou-se, a estepropósito, esperançado nas experiências de Tuve,Hafstad e Dahl, no Laboratório de Magnetismo Terres-tre de Washington, e de Cockcroft e Walton no Labo-ratório Cavendish da Universidade de Cambridge, asquais provavam que era possível, usando alta tensão,produzir artificialmente um feixe de protões com ener-gias individuais de cerca de 1 MeV. Referiu-se tambéma outros métodos para produzir átomos de grandes ve-locidades, entre os quais destacou o desenvolvido porLawrence e Livingston, da Universidade da Califórnia,que, com acelerações múltiplas, tinham obtido protõescom energias de 1 MeV e se afirmavam capazes de ob-ter átomos com energias muito maiores. Anunciou, emadenda, os resultados de Cockcroft e Walton das pri-meiras reacções nucleares provocadas com partículasaceleradas artificialmente.

As experiências de Cockcroft e Walton foram rea-lizadas no Laboratório Cavendish da Universidade deCambridge, com um aparelho que podia fornecer umpotencial constante de 600 000 a 800 000 volts. Estesinvestigadores produziam protões num tubo de des-carga auxiliar, os quais eram, depois, acelerados pelaalta tensão, num tubo vazio. Obtinham, deste modo,feixes estáveis de protões rápidos com energias até600 000 eV. O material a ser bombardeado era colo-cado dentro dum tubo, fazendo 45 graus com a direc-ção do feixe.

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Não foi, com certeza, por acaso que as primeirasreacções nucleares provocadas com projécteis acele-rados artificialmente ocorreram num laboratório diri-gido por Rutherford. Na verdade, a violência dascolisões nucleares tinha ficado gravada no seu espíri-to desde o momento em que se apercebeu que o re-cuo das partículas alfa observado por Geiger e Marsdenera motivado por uma colisão entre dois núcleos, ten-do começado imediatamente a pensar na hipótese deproduzir projécteis acelerados artificialmente. Já em1913 afirmava que “no momento presente, o desen-volvimento de máquinas eléctricas com a tensão maiselevada possível é uma questão de premente impor-tância”. Este seu desejo teve, no entanto, de aguardaraté 1929 para poder começar a ser concretizado. Atéficarem disponíveis os feixes de partículas aceleradasartificialmente usaram-se os projécteis fornecidospela natureza, no decaimento radiactivo.

Entre estes o papel mais importante foi desempe-nhado pelas partículas alfa. Rutherford tinha-as iden-tificado, logo no início da sua carreira, como átomosde hélio que tinham perdido dois electrões e, depoisda descoberta do núcleo atómico, como os núcleos doátomo de hélio. Possuindo 4 vezes a massa do hidrogé-nio e sendo emitidas com velocidades da ordem degrandeza de 16 000 km/s, elas constituiam um instru-mento de prova formidável para testar a estrutura damatéria. No entanto, como possuem uma carga eléc-trica dupla e de sinal contrário da do electrão, não con-seguem vencer a repulsão do campo eléctrico dosnúcleos mais pesados, não podendo, por isso, pene-trar no seu interior. Foi isto que aconteceu nas expe-riências de Geiger e Marsden. No entanto elas podempenetrar nos núcleos dos elementoss mais leves. Foiassim que Rutherford provocou, em 1917-1918 a primei-ra transformação artificial dum elemento e que Bothee Becker, primeiro, e Irene e Joliot Curie, em seguida,efectuaram as experiências que levaram à descobertado neutrão.

A primeira transformação artificial dum elementofoi a última grande experiência que Rutherford reali-zou em Manchester. Em 1919 ocupou um lugar de Pro-fessor no Laboratório Cavendish, em Cambridge, onde,como o fizera em McGill e Manchester, se rodeou decientistas de extraordinária envergadura e, como nãopodia deixar de ser, reorganizou o laboratório para in-vestigação em radioactividade.

Do seu programa fazia parte o velho sonho de ul-trapassar as limitações impostas pela natureza, acele-rando artificialmente os projécteis para investigar aestrutura do núcleo atómico. Em 1929 a tecnologia daprodução de altas tensões tinha atingido o grau de de-senvolvimento suficiente para o concretizar e, nesseano Cockroft e Walton iniciaram, no Laboratório Ca-vendish, a construção da sua máquina (Fig.3). Nessemesmo ano Van de Graaf construiu, em Princeton, oprimeiro gerador electrostático do tipo que é conhe-cido pelo seu nome e Lawrence e Livingston inicia-

Fig. 3 – Uma fotografia, tomada em 1931, da máquina acelera-dora de partículas construída no Laboratório Cavendish por Cock-croft e Walton. Com esta máquina aqueles investigadores provoca-ram, em 1932, as primeiras reacções nucleares com projécteisacelerados artificialmente, abrindo o caminho que levou à desco-berta da estrutura do protão e do neutrão. Os geradores de Cockcroft--Walton são ainda hoje usados na primeira fase da aceleração deprotões em máquinas gigantescas.

ram, na Universidade da Califórnia, o desenho do pri-meiro ciclotrão utilizável em estudos nucleares.

Construída a máquina aceleradora, Cockcroft eWalton iniciaram imediatamente uma série de expe-riências sensacionais em que vários elementos forambombardeados com protões de energias que podiamatingir 600 000 eV. O primeiro elemento a ser exami-nado foi o lítio que, absorvendo o protão incidente,se quebrou em duas partículas alfa. Foi esta a reacçãoque Rutherford anunciou na referida conferência.

Comentando este resultado e referindo-se a os de-mais métodos para acelerar iões, Rutherford afirmouque eles abriam um novo e vasto campo de investiga-ção sobre a estrutura do núcleo atómico. Mais uma vezRutherford demonstrava grande clarividência nas suasprevisões. Se pecou, foi por defeito, pois tanto os ge-radores electrostáticos de Van de Graaf como os ci-clotrões permitiram que os estudos das propriedadesnucleares se mantivessem, durante algumas décadas.nas fronteiras do conhecimento. O que nem o próprioRutherford terá imaginado, é que as máquinas acele-radoras em que manifestava tanta esperança iriam, trêsdécadas depois, revelar a existência dum mundo sub--nuclear riquíssimo, até então completamente desco-

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nhecido e que, sem elas, teria ficado, para sempre, ig-norado.

Os aceleradores de partículas dos dias de hoje na-da têm a ver, aparentemente, com os de Cockcroft eWalton. São instrumentos enormes cujo planeamen-to, construção, funcionamento e manutenção exigemo concurso de meios humanos e materiais que estãoao alcance apenas dos países mais ricos do mundo. Noentanto estas infraestruturas gigantescas são afinal ani-madas pelo mesmo espírito que animou Rutherford:penetrar cada vez mais fundo no seio do microcosmos,usando projécteis cada vez mais precisos, com ener-gias cada vez maiores.

CHADWICK - A DESCOBERTA DO NEUTRÃOE A CONSTITUIÇÃO DO NÚCLEO ATÓMICO

A descoberta do neutrão, em 1932, constituiu umpasso gigantesco no sentido do esclarecimento de ques-tões tão importantes como a da constituição do nú-cleo atómico e a do mecanismo do decaimento beta.No que se segue, referir-nos-emos apenas à primeiradestas questões.

A questão da constituição do núcleo atómicocolocou-se imediatamente após a sua descoberta. A hi-pótese de que todos os elementos seriam constituídosa partir dum elemento primordial, o hidrogénio, eramuito aliciante. Ela havia sido adiantada por Prout,num escrito anónimo publicado em 1815, mas o factodos pesos atómicos não serem múltiplos inteiros dodo hidrogénio desacreditou a ideia que, no entanto,nunca foi complementamente abandonada, dada a suaextrema simplicidade e beleza conceptual.

Em 1917, num laboratório vazio por causa da gran-de guerra, Rutherford prosseguiu experiências que ti-nham sido iniciadas anos antes por Marsden, paraverificar se núcleos de hidrogénio podiam ser extraí-dos de algumas substâncias radioactivas. A descriçãodestas experiências foi publicada em 1919. O seu prin-cipal resultado, “... o átomo de azoto é desintegradosob as intensas forças desenvolvidas numa colisão pró-xima com uma partícula alfa...” é outra das grandescontribuições de Rutherford para o esclarecimento daestrutura da matéria. Mas ele conclui também que a“partícula de hidrogénio que é libertada era uma par-te constituinte do núcleo de azoto”.

Em 1920, ao rever os seus trabalhos sobre a desin-tegração atómica e discutindo as suas implicações, Ru-therford afirmava que “aparentemente os núcleoscontêm electrões e também partículas de hidrogénio”que baptizou de protões, em parte para homenagearProut, em parte também para os não confundir comelectrões positivos, que, segundo julgava, talvez umdia viessem a ser descobertos, como de facto aconte-ceu, por sinal também no ano de 1932.

Considerações sobre as massas e as cargas envolvi-das, permitiram estabelecer um modelo muito simples

Fig. 4 - James Chadwick (1891-1974), estudante e colega de Ru-therford, foi um dos maiores físicos nucleares. A sua descoberta doneutrão, em 1932, iniciou a física nuclear moderna.

para a constituição dos núcleos atómicos com base emprotões e electrões: um núcleo contém tantos protõesquanto o número de massa do elemento e tantos elec-trões quantos forem necessários para ajustar a cargatotal do núcleo ao número atómico do elemento.

Todavia, com o advento da mecânica quântica, estemodelo viu-se confrontado com uma dificuldade denatureza fundamental. Na verdade o modelo atribui umvalor errado ao spin do núcleo do isótopo de númerode massa 14 do azoto e prevê que ele obedece a umaestatística diferente daquela que determina o seu com-portamento nas moléculas. Este facto foi apontado porFowler no referido encontro da Sociedade Real de Lon-dres, em Abril de 1932.

Sabia-se que tanto o protão como o electrão tinhamspin 1/2 h/(2π) e obedeciam à estatística de Fermi.Ora as regras para determinar o spin e a estatística desistemas quânticos constituídos por partículas de spin1/2 h/(2π) obedecendo à estatística de Fermi, são asseguintes:

1.a – Se o sistema possui um número par de partícu-las, obedece à estatística de Bose e o seu spin émúltiplo inteiro de h/(2π);

2.a – Se o sistema possui um número ímpar de partí-culas, obedece à estatística de Fermi e o seu spiné um múltiplo semi-inteiro de h/(2π).

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Se o núcleo do isótopo de número de massa 14 doazoto for composto de protões e electrões, terá 14 pro-tões e 7 electrões, isto é, conterá ao todo 21 partícu-las de spin 1/2 h/(2π). Portanto, o seu spin será ummúltiplo semi-inteiro de h/(2π) e a sua estatística a deFermi. As determinações experimentais apontam na di-recção oposta. Esta questão foi resolvida com a des-coberta do neutrão.

No trabalho de revisão de 1920, atrás referido, Ru-therford previu a existência duma partícula com mas-sa igual à do protão, mas sem carga eléctrica, queresultaria da junção dum protão e dum electrão. Pre-viu também que, se tal partícula existir, “os seus cam-pos externos serão praticamente nulos, excepto muitopróximo do núcleo, e em consequência poderá ser ca-paz de se mover livremente através da matéria. Serámuito difícil detectar a sua presença por meio dum es-pectroscópio... Por outro lado, ela entrará facilmentena estrutura dos átomos, e poderá ser ou captada pelonúcleo ou desintegrada pelo seu campo intenso, don-de escapará um átomo de hidrogénio carregado, ou umelectrão, ou ambos”.

Esta previsão de Rutherford revelou-se muito im-portante, não tanto pela sua originalidade – Harkinsadianta-se-lhe neste aspecto – mas porque familiari-zou os seus colaboradores com a ideia da possibilida-de de existir uma partícula com aquelas propriedades.

Em carta datada de 1924 e dirigida a Rutherford,Chadwick, que acompanhou o seu mestre na mudan-ça de Manchester para Cambridge, afirmava que con-tinuava a pensar no neutrão e que o deviam procurarseriamente.

Em 1930 gerou-se grande interesse em torno da de-sintegração por meio de partículas alfa de elementosleves, tais como o berílio e o boro. Este interesse foimotivado pela descoberta, feita por Bothe e Becker em1928, de que esses elementos emitiam uma radiaçãomuito penetrante, aparentemente electromagnética, dotipo da radiação gama, que possuía mais energia queas partículas alfa incidentes. Essa energia tinha forço-samente de provir da desintegração nuclear. Em 1932Irene e Joliot Curie descobriram que essa radiação pos-suia a propriedade surpreendente de ejectar protõescom altas velocidades de materiais contendo hi-drogénio.

Chadwick (Fig. 4) interessou-se vivamente pela des-coberta de Irene e Joliot Curie, passando a examinarcom grande detalhe as propriedades da radiação de Bo-the e Becker, usando um contador de válvulas. Obser-vou assim que ela ejectava partículas não apenas dohidrogénio, mas também do hélio, lítio, berílio, etc.e que, em todos os casos, as partículas ejectadas eramprodutos de recuo dum processo de colisão. Concluique, para a energia e o momento serem conservados,era impossível atribuir a ejecção das partículas aorecuo produzido num choque com um quantum de

radiação. Verificou, finalmente, que “uma explicaçãosatisfatória era obtida supondo que a radiação consis-te não de quanta mas de partículas de massa 1 e cargazero, os neutrões”.

A descoberta do neutrão por Chadwick permitiuesclarecer imediatamente a velha questão da compo-sição dos núcleos atómicos. Assim vários físicos, Iwa-nenko, o próprio Chadwick e Heisenberg, fizeramnotar, ainda durante o ano de 1932, que a dificuldadedo spin do azoto 14 era removida se o núcleo fosseconstituído apenas por protões e neutrões, e se o neu-trão tivesse spin 1/2 h/(2π) e obedecesse à estatísticade Fermi. Citando Heisenberg:

“As experiências de Curie e Joliot e a sua interpre-tação por Chadwick mostraram que um novo e fun-damental componente, o neutrão, desempenha umpapel importante na estrutura dos núcleos. Isto suge-re que os núcleos atómicos são constituídos por pro-tões e neutrões, mas não contêm quaisquer electrões”.

... “Partimos do princípio que os neutrões obedecemà estatística de Fermi e têm spin 1/2 h/(2π). Esta supo-sição é necessária para explicar a estatística do núcleode azoto e é consistente com os resultados empíricossobre os momentos nucleares”.

Com a constituição dos núcleos esclarecida e os fei-xes de partículas aceleradas artificialmente disponíveisnos laboratórios, faltava apenas estabelecer o enqua-dramento para o tratamento teórico do núcleo atómicopara que a Física Nuclear entrasse na segunda e maisfecunda fase do seu desenvolvimento. Este enquadra-mento foi definido por Heisenberg, em 1932, da for-ma que passamos a relatar.

HEISENBERG E A FÍSICA NUCLEAR TEÓRICA

Heisenberg foi um dos cientistas que desempenhoupapel mais relevante na conceptualização e formula-ção da teoria quântica moderna. Desempenhou tam-bém um papel fundamental no desenvolvimento daFísica Nuclear. Na verdade, entre outras contribuiçõesvaliosas, em trabalhos que efectuou durante o ano de1932 “Sobre a Estrutura dos Núcleos Atómicos” apre-sentou várias ideias que serviram de base para as ulte-riores investigações teóricas sobre as forças e aestrutura nucleares.

Algumas dessas ideias referem-se à constituicão donúcleo atómico e às propriedades do neutrão e já fo-ram citadas. Outra das ideias fundamentais avançadaspor Heisenberg foi a de que a estrutura nuclear podeser descrita pela mecânica quântica não relativista, emtermos das interacções entre as partículas nucleares.

Com base nestas hipóteses, Heisenberg passou ausar a conhecida metodologia da investigação teóricados sistemas de partículas para descrever a estruturanuclear, ou seja:

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Fig. 5 – Werner Heisenberg (1901-1976), cerca de 1924. A sua des-coberta da mecânica das matrizes e da relação de comutaçâo entrecoordenadas conjugadas conhecida pelo seu nome constitui a pri-meira forma completa da nova mecânica quântica. Em 1932 Hei-senberg produziu o primeiro trabalho teórico da física nuclearmoderna, que estabeleceu o padrão das investigações futuras.

– Em primeiro lugar postulou uma função hamil-toniana para um sistema de neutrões e protões;

– Em seguida aplicou as regras da mecânica quân-tica para deduzir propriedades mensuráveis dosnúcleos;

– Depois, colocado perante a impossibilidade deencontrar soluções exactas das equações quân-ticas, experimentou métodos de aproximaçãoperturbativos e semi-clássicos;

– A seguir comparou os resultados assim obtidoscom os valores determinados experimen-talmente;

– Finalmente discutiu os limites da validade dafunção hamiltoniana donde partiu.

Ao formular a função hamiltoniana Heisenbergapresentou também ideias inovadoras que se vierama revelar de grande importância.

Assim, sabendo-se, na altura, muito pouco sobreas forças nucleares, Heisenberg foi buscar à Física ató-mica o conceito de forças de permuta, o qual, aindaque deficientemente fundamentado neste seu primei-ro trabalho, acabou por se revelar indispensável paraa descrição das forças nucleares.

Além disso, como estas forças, por si só e na for-ma que Heisenberg lhes deu, se revelaram incapazesde explicar o fenómeno da saturação, Heisenberg in-

troduziu o conceito de caroço repulsivo, isto é, supôsque os nucleões passam a repelir-se violentamentequando a distância entre eles se torna inferior a um cer-to valor. Esta ideia, que foi abandonada por se ter ve-rificado que outro tipo de forças de permuta produziaa saturação, revelou-se muito útil vinte anos mais tar-de para explicar certos aspectos dos resultados das ex-periências de dispersão protão-protão a altas energias,não havendo hoje dúvidas sobre a existência do caro-ço repulsivo na interacção nucleão-nucleão e haven-do até ideias sobre a sua origem.

Finalmente, na formulação da sua função hamilto-niana, Heisenberg usou uma linguagem matemáticacomplicada, baseada no conceito de spin isotópico queentão inventou, o qual, no contexto da sua teoria nu-clear, era absolutamente desnecessário. Todavia, maistarde, quando ficou estabelecido que as forças nuclea-res são independentes da carga do nucleão, o spin iso-tópico revelou-se ser não só muito útil para descreveras propriedades nucleares, mas absolutamente indis-pensável para a descrição, tanto fenomenológica co-mo teórica, das propriedades das partículaselementares.

Nos trabalhos acima referidos, Heisenberg atacouo problema geral da estabilidade dos núcleos, pondoalguma ênfase na estabilidade especial do núcleo dehélio e também na estabilidade dos núcleos das sériesradioactivas. As limitações da função hamiltoniana deque partiu e dos métodos que tinha ao seu dispor paraaplicar as regras da mecânica quântica não permitiamobter resultados inteiramente satisfatórios. Não obs-tante, aqueles trabalhos constituiram referências indis-pensáveis das investigações teóricas que se lhesseguiram.

YUKAWA E AS FORÇAS NUCLEARES

Estabelecida a composição do núcleo atómico, aprimeira questão que se colocou aos investigadores,tanto experimentais como teóricos, foi a de determi-nar as características das forças responsáveis pela suaestabilidade. Era evidente, à partida, que não se trata-va de nenhuma das forças conhecidas. De facto, tantoas forças gravitacionais, responsáveis pela arquitectu-ra do universo, como as electromagnéticas, que asse-guram a estrutura dos edifícios atómicos e moleculares,são demasiadamente fracas para explicar a extraordi-nária estabilidade dos núcleos, manifestada, por exem-plo, nas enormes energias envolvidas nas reacçõesnucleares.

No estudo das forças nucleares seguiram-se quatrolinhas principais de investigação, a saber:

a) A colisão entre núcleos;b) A observação das propriedades nucleares;c) A observação do comportamento dos sistemas

de dois nucleões, no estado ligado (deuterão) eem colisão;

d) As teorias de campo.

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Com as experiências iniciais de desintegração nu-clear provocada, Rutherford iniciou a primeira destaslinhas de investigação. O trabalho pioneiro de Heisen-berg, a que já nos referimos, iniciou a segunda. Wig-ner deu início à terceira com dois artigos, escritos em1932 e 1933, intitulados respectivamente “Sobre o de-feito de massa do Hélio” e “Sobre a dispersão de neu-trões por protões”. Finalmente, num artigo publicadoem 1935 “Sobre a interacção das partículas elementa-res’’, Yukawa apresentou a primeira teoria de campodas forças nucleares. É sobre a teoria de Yukawa quenos vamos concentrar. Convém, no entanto, começarpor analizar a teoria de Heisenberg das forças depermuta.

Heisenberg foi guiado pelo seguinte mecanismo deformação do ião da molécula de hidrogénio: quandoum átomo de hidrogénio (electricamente neutro) e oseu ião (o protão, carregado positivamente) são colo-cados a uma certa distância um do outro, o electrãodo átomo é atraído pelo ião, transformando-se o áto-mo em ião e o ião em átomo. Este processo repete-seperiodicamente, mantendo-se o átomo e o ião ligadosum ao outro por efeito do campo do electrão. Tudose passa como se o átomo e o ião permutassem perio-dicamente a sua natureza. A força de ligação, que de-pende das distâncias entre o átomo e o ião, éproporcional à frequência de permuta.

Heisenberg admitia que, em condições favoráveis,o neutrão se podia separar num protão e num electrão.Então, por analogia com o ião da molécula de hidro-génio, quando um neutrão e um protão são colocadosa uma distância um do outro comparável com as di-mensões nucleares, a carga negativa começa a trocarde lugar com uma frequência que depende da distân-cia entre o neutrão e o protão. Entre estas partículascria-se assim uma força cuja intensidade é proporcio-nal à frequência de permuta.

Heisenberg estava consciente das dificuldades dese considerar o neutrão como uma partícula compos-ta dum protão e dum electrão, porque, se assim fosse,de acordo com as regras que já atrás referimos o neu-trão devia obedecer à estatística de Bose e ter spin ze-ro, o que não acontece. Por isso não avançou naexploração desta ideia, supondo, em vez disso, que aforça de permuta era uma propriedade fundamentaldo par neutrão-protão. Veremos adiante que existeuma outra razão para não se decalcar o mecanismo depermuta das forças nucleares pelo do ião da moléculade hidrogénio.

A teoria de Heisenberg foi aperfeiçoada por váriosautores, no sentido de explicarem, nomeadamente, asingular estabilidade do núcleo de hélio e a saturaçãodas forças nucleares isto é, o facto de ser limitado onúmero de nucleões, com que uma deles pode intera-gir simultaneamente (designam-se por nucleões, indis-criminadamente, os protões e os neutrões). Osaperfeiçoamentos eram, no entanto, puramente espe-culativos, isto é, procuravam-se tipos de interacçãoque, introduzidos nas equações de movimento do sis-

Fig. 6 – Hideki Yukawa (o terceiro da esquerda) com E. Fermi,E. Segré e G. C. Wick, em 1948. Yukawa apresentou, em 1935, aprimeira teoria de campo das forças nucleares. A sua previsão queos quanta do campo nuclear deviam possuir massa foi confirmada,doze anos depois, nos traços deixados por radiação cósmica numaemulsão fotográfica, por Lattes e colaboradores. Wick interpretoua relação de Yukawa entre o alcance das forças e a massa dos quan-ta do campo partindo das relações de incerteza de Heisenberg.

tema de nucleões, reproduzissem as propriedades nu-cleares. Foi Yukawa, em 1935, que pela primeira vez,estabeleceu uma teoria fundamental das forças nuclea-res, usando a teoria de campos.

A parte inovadora do trabalho de Yukawa “Sobrea Interacção das Partículas Elementares” foi supor que,à semelhança do que acontece com a interacção entrecargas eléctricas, a força que um neutrão exerce sobreum protão depende da acção que é exercida sobre es-te último pelo campo criado pelo primeiro, evice-versa.

No entanto existem duas diferenças essenciaisentre estes dois tipos de força. A primeira refere-se àsintensidades: as forças nucleares são muitíssimo maisintensas que as electromagnéticas. Esta diferençamanifesta-se, por exemplo, na enorme disparidade dosvalores das energias envolvidas nas reacções nu-cleares e nas reacções químicas. A segunda refere-seaos alcances: enquanto que as forças electromag-néticas, embora decresçam rapidamente com a distân-cia, fazem sentir a sua acção até ao infinito, as nu-cleares só alcançam alguns fermis (1 fermi == 0,0000000000001 cm é a unidade que se utiliza nadescrição dos fenómenos à escala nuclear e sub--nuclear).

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A fim de tomar em conta a primeira daquelas dife-renças, Yukawa acoplou o campo nuclear às suas fon-tes muito mais fortemente que no caso do campoelectromagnético. E tratou da segunda introduzindoum termo de massa na equação de campo nuclear, es-colhendo o valor da massa de maneira a que a soluçãoestacionária tivesse o alcance pretendido.

A fim de dar uma interpretação física ao termo demassa, Yukawa socorreu-se outra vez da analogia como campo electromagnético. Os quanta do campo elec-tromagnético são os fotões. A equação do campo elec-tromagnético não tem termo de massa porque os fotõesnão possuem massa. Os quanta do campo nuclear de-viam portanto ser partículas cuja massa é igual à quetem de ser introduzida na equação de campo para seobter o alcance desejado. Depois dumas contas sim-ples Yukawa conclui que a massa dos quanta do cam-po nuclear deveria ser cerca de 200 vezes a massa doelectrão. Este valor situa-se entre o das massas do elec-trão e do protão. Por isso chamou-se aos quanta docampo nuclear mesotrões ou mesões.

A relação estabelecida por Yukawa entre a massado mesão e o alcance das forças nucleares tem um sig-nificado físico baseado no princípio de incerteza deHeisenberg, tal como foi feito notar por Wick, em1938. O citado princípio faz depender, por exemplo,a incerteza associada a uma determinação do valor daenergia dum sistema do tempo de que se dispõe paraa observação: o produto da incerteza pelo tempo deobservação não pode ser inferior a h/(2π). Portantode quanto mais tempo se dispuzer menor poderá sera incerteza do valor determinado.

Na teoria de Yukawa, a interacção entre um pro-tão e um neutrão resulta duma sucessão de processoselementares de emissão dum mesão por uma das par-tículas e absorção pela outra. Mas, tal como se passacom os fotões que medeiam a força electromagnética,os mesões em trânsito entre os nucleões não são reais,mas sim virtuais. Na verdade, se eles fossem reais ha-veria três estados distintos – a saber: um inicial, an-tes do mesão ser emitido por uma das partículas; umintermédio, com o mesão em trânsito; e um final, de-pois do mesão ser absorvido pela outra partícula – queevoluiriam duns para os outros sem interferência ex-terna, mas em que o estado intermédio possuiria umaenergia diferente da dos estados inicial e final.

Para não haver violação da conservação da ener-gia é indispensável que o tempo que o mesão leva apercorrer a distância entre os dois nucleões seja insu-ficiente para detectar experimentalmente a sua presen-ça. Ora para se detectar a presença do mesão a margemde erro da energia tem de ser inferior à energia cor-respondente à sua massa em repouso. Inversamente,para se não poder concluir que a partícula vai em trân-sito, a margem de erro tem de ser superior à energiacorrespondente à sua massa em repouso.

Conclui-se assim que quanto mais pesados foremos quanta dum campo mais curta tem que ser a sua via-gem e mais pequeno é o alcance das forças. Como os

fotões não possuem massa em repouso, as forças elec-tromagnéticas podem alcançar até ao infinito. Porqueas forças nucleares possuem um alcance finito, os quan-ta do campo, os mesões, possuem massa.

Um quantum virtual emitido por uma partícula po-de ser absorvido por ela própria. As partículas estãoassim constantemente rodeadas por uma nuvem de me-sões de campo virtuais. Os mesões virtuais podemtornar-se reais fornecendo ao sistema energia pelo me-nos igual à sua massa em repouso, o que se consegueperturbando bruscamente a partícula, fazendo-a, porexemplo, chocar com outra partícula.

O facto da interacção entre os dois núcleos ter ori-gem em processos de emissão e absorção de quanta vir-tuais constitui mais um argumento para não se levarmuito longe a analogia com o mecanismo electrónicoda ligação do ião da molécula de hidrogénio, pois oelectrão encontra-se aqui num estado real.

Além de massa, Yukawa previu que os quanta docampo nuclear deviam possuir carga eléctrica, a quetransportam do protão para o neutrão ou vice versa.Deviam pois ser partículas carregadas com carga posi-tiva ou negativa, igual, em valor, à carga do electrão.A ideia, atrás exposta, duma partícula poder ela pró-pria absorver os mesões que emite, não foi considera-da por Yukawa, como não foi considerada a hipótesede haver interacção entre dois protões ou dois neu-trões. Não foi por isso prevista inicialmente a existên-cia de quanta do campo nuclear desprovidos de cargaeléctrica. No entanto teve que se admitir que eles exis-tiam quando se constatou que as forças nucleares nãodependem da carga dos nucleões (isto é, as forças deinteracção são as mesmas entre dois protões, dois neu-trões ou entre um neutrão e um protão).

Finalmente, e pelo mesmo argumento já invocadopor Heisenberg, Yukawa previu que os quanta do cam-po nuclear, a existirem, deviam obedecer à estatísticade Bose e ter spin nulo.

Levou algum tempo até que as previsões de Yuka-wa fossem confirmadas. Em experiências realizadas emcâmara de nevoeiro por Anderson e Neddermeyer(1938) e Street e Stevenson (1937) foi detectada a pre-sença dum mesão, isto é, de uma partícula desconhe-cida possuindo uma massa de valor compreendidoentre a do electrão e a do protão. No entanto essa par-tícula interagia muito fracamente com os núcleos e, poresta razão, não podia ser um quantum do campo deYukawa. Sabe-se hoje que essa partícula era um elec-trão pesado, ou muão.

Foi apenas em 1947, que Lattes e seus colaborado-res encontraram em emulsões fotográficas evidênciaincontroversa da existência do mesão de Yukawa (hojechamado mesão pi ou pião). Esta descoberta mostroua justeza do metodo de aproximação de Yukawa aoproblema das forças nucleares e iniciou uma nova fa-se experimental, em que se começaram a usar mesõespara estudar as propriedades nucleares, em particularas características das forças fortes. Esta fase não ter-

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minou ainda, havendo actualmente um renovado in-teresse na física das energias intermédias, devido à dis-ponibilização de feixes de mesões estranhos.

As ideias originais de Yukawa foram intensamenteexploradas, inventando-se outros tipos de mesõespara explicar determinados aspectos das forças nuclea-res. A permuta de piões dá conta da parte de maioralcance das forças nucleares. Outros piões, de maiormassa, da parte intermédia, outros ainda da parte demenor alcance. Construiram-se assim, bocado a boca-do, potenciais de permuta de um bosão que se têm re-velado muito úteis para a determinação daspropriedades dos núcleos atómicos. Os seus parâme-tros são ajustados de modo a reproduzir os dados dacolisão nucleão-nucleão em vários domínios de ener-gia. No entanto, as forças que actuam entre dois nu-cleões no interior dum núcleo são diferentes das queactuam entre dois nucleões isolados.

A modificação da interacção de dois nucleões napresença de terceiros constitui uma alteração drásticaao velho princípio de Newton sobre a resultante dasforças que as partículas dum sistema exercem sobreuma delas. O facto de se terem de considerar forçasde três ou mais corpos significa que o núcleo não é osistema simples que Heisenberg imaginava, sendo ne-cessário também entrar directamente em conta coma dinâmica dos graus de liberdade mesónicos, o quetem sido feito com algum sucesso.

Mas, mesmo assim, o mistério das forças nuclearesencontra-se longe de se poder considerar desvendado.Na verdade, os nucleões e os mesões não são partícu-las elementares, mas sistemas muito complexos cons-tituídos a partir de campos quarkónicos e gluónicos,cujo comportamento é determinado pela Cromodinâ-mica Quântica, – a teoria fundamental das interacçõesfortes, de que as forças nucleares são apenas uma ma-nifestação. Simplesmente ainda não se sabe resolveras respectivas equações de campo no regime de ener-gias em que os quarks se agrupam em nucleões emesões.

MODOS DE MOVIMENTO COLECTIVOSE INDIVIDUAIS

Não é possível, mesmo que se pudessem traduziras forças de interacção dos nucleões em termos dumaenergia potencial, resolver exactamente as equaçõesde movimento da esmagadora maioria dos núcleosexistentes na Natureza, por serem sistemas de muitoscorpos. É necessário, portanto, recorrer a modelos querepresentem apenas alguns aspectos específicos dacomplexa fenomenologia nuclear.

Um dos primeiros modelos a ser ensaiado foi o decamadas, por causa do seu sucesso na descrição daspropriedades atómicas. Este modelo pressupõe que osnucleões se movem independentemente uns dos ou-tros, num campo de forças central que representa, em

média, a acção exercida pelos restantes nucleões sobrecada um deles.

No átomo, o campo médio é determinado essen-cialmente pela atracção electrostática do núcleo que,por ser muitíssimo mais pesado que o resto do siste-ma, constitui um centro de forças natural em torno doqual se movimentam os electrões. A repulsão que so-bre cada electrão exercem os restantes traduz-se essen-cialmente na atenuação da atracção do núcleo. A quenão é tida em conta pelo campo médio pode ser trata-da por métodos de aproximação perturbativos.

O modelo atómico de camadas permitiu explicaras propriedades químicas dos elementos e, em parti-cular, fundamentar o Quadro dos Elementos de Men-deléef. De acordo com esse modelo, ao construir-seum átomo a partir dos seus ingredientes, colocam-seos electrões nos estados determinados pelo potencialmédio, começando pelos que correspondem a ener-gias mais baixas.

De acordo com o Princípio de Exclusão de Pauli,não é possível colocar mais do que dois electrões emcada orbital disponível e, mesmo assim, eles têm quealinhar os seus momentos magnéticos intrínsecos demodo a anularem-se mutuamente. Quando todos os es-tados disponíveis com uma certa energia estiveremocupados diz-se que se encheu uma camada electróni-ca. O electrão seguinte ocupará um dos orbitais do pró-ximo nível energético. E assim sucessivamente até seesgotarem todos os electrões que constituem o átomo.

Os electrões da última camada são os que se encon-tram mais fracamente ligados, sendo por isso os quese envolvem nas reacções químicas. Elementos cujosátomos apresentam configurações orbitais semelhan-tes na última camada possuem propriedades químicassemelhantes. Resultam daqui as regularidades reflec-tidas no Quadro de Mendeléef. Os átomos em que to-da as as camadas estão completas (os gases nobres) sãoparticularmente estáveis; aqueles a quem falta apenasum electrão para completar a última camada ou pos-suem um só electrão nessa camada são particularmen-te reactivos.

Elsasser, em 1933 e 1934, descobriu que os núcleosque apresentavam números especiais de neutrões eprotões formavam configurações particularmente es-táveis, o que sugeria que os nucleões, tais como os elec-trões no átomo, se dispunham em camadas. Contudoas suas observações não foram tomadas em devida con-ta, talvez por não se vislumbrar justificação para a apli-cabilidade do modelo de camadas aos nucleões.

Na verdade, todos os componentes do núcleo pos-suem massa semelhante, não podendo atribuir-se a ne-nhum deles o papel desempenhado pelo núcleo noátomo. Além disso as forças nucleares são intensíssi-mas e de muito curto alcance, em comparação com asatómicas, que são fracas e de longo alcance. Qualquerperturbação causada a um dos nucleões devia, por con-seguinte, estender-se, repercutir-se intensamente so-bre os seus vizinhos até que o excesso de energia se

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distribuisse por todo o núcleo. Ora este mecanismo dis-sipativo é característico dos sistemas que exibem mo-dos colectivos de movimento, como uma gota líquida,e não dos sistemas que exibem modos individuais,como os átomos.

As dúvidas sobre a aplicabilidade do modelo de ca-madas ao núcleo atómico foram reforçadas com a des-coberta feita por Amaldi e colaboradores no Institutode Física de Roma, em 1935, de que os neutrões len-tos são muito mais eficazes que os rápidos em produ-zir certas reacções nucleares. Em particular, a secçãoeficaz para a captura de neutrões pelos núcleos, queé da ordem das dimensões nucleares para partículascom energias elevadas, aumenta para além da área nu-clear quando os neutrões são retardados por substân-cias ricas em hidrogénio.

Este resultado, em si mesmo, está de acordo comas previsões da mecânica quântica e o primeiro mo-delo nuclear usado para o explicar foi precisamenteo de camadas. No entanto este modelo prevê que assecções eficazes dos processos de captura e de disper-são de neutrões lentos pelos núcleos devem ser da mes-ma ordem de grandeza quando, na realidade, oprimeiro processo é muitíssimo mais eficaz que o se-gundo. O modelo nuclear em camadas é também in-capaz de explicar o comportamento selectivo dacaptura quando os neutrões passam através de absor-ventes diferentes.

Para explicar estes comportamentos estranhos,Niels Bohr introduziu, em 1936, o conceito de núcleocomposto, segundo o qual o neutrão capturado cons-titui com o núcleo alvo um sistema meta-estável, quedepois decai sem guardar memória da forma como foicriado. Na base deste conceito encontra-se o mecanis-mo dissipativo atrás referido que, na sua forma extre-ma, idealiza o núcleo como uma gota líquida.

Bohr e Kalckar, em 1937, compararam pela primei-ra vez a dinâmica dum núcleo à de uma gota líquida.Os movimentos mais importantes duma gota são os devibrações de superfície. A fórmula que dá a frequên-cia dos vários modos de vibração em função da massada gota e do coeficiente de tensão superficial havia si-do deduzida em 1879 por Rayleigh. A sua aplicaçãoao caso dum núcleo tem de ter em conta o efeito darepulsão colombiana entre os protões, que reduz asfrequências de vibração. O efeito do campo colombia-no torna-se muito importante para os núcleos mais pe-sados, impondo restricções sérias à sua estabilidadecontra as deformações de superfície. Os núcleos quese encontram nos limites destas condições podempartir-se em consequência duma pequena perturbaçãoexterior. Foi assim que Niels Bohr e Wheeler apresen-taram, em 1939, uma discussão detalhada do mecanis-mo da fissão que tinha sido descoberta recentementepor Hahn, um dos primeiros estudantes de pós--graduação estrangeiros a trabalhar com Rutherford emMcGill, e Strassman.

Fig. 7 – Niels Bohr (1885-1962), na altura em que desenvolvia asua teoria quântica do átomo, baseada no modelo nuclear planetá-rio proposto por Rutherford. As dificuldades surgidas com a aplica-ção da teoria de Bohr levaram à formulação da nova mecânicaquântica, para cuja interpretação Bohr contribuiu decisivamente.Niels Bohr foi uma das personalidades mais marcantes da ciênciado século XX.

O sucesso das aplicações dos modelos do núcleocomposto e da gota líquida, aliado ao grande peso cien-tífico do nome de Bohr, fez esmorecer, por uns tem-pos, a ideia de que os protões e os neutrões se podiamestruturar por camadas de energia. No entanto a ideianunca foi completamente abandonada. Em finais dosanos quarenta Maria Mayer (Fig. 8) conseguiu juntar evi-dência experimental suficiente para demonstrar que aspropriedades nucleares apresentam regularidades pró-prias dum modelo de partículas independentes, sen-do mesmo possível identificar os “números mágicos”de neutrões e de protões que correspondem a cama-das cheias. Em 1949 e 1950 ela própria e, independen-temente, Haxel, Jensen e Suess, mostraram que ainclusão dum termo de ligação entre os momentos an-gulares orbital e intrínseco no campo médio nuclearpodia explicar quantitativamente não só a excepcio-nal estabilidade dos núcleos que possuiam númerosmágicos de neutrões e protões, mas também proprie-dades magnéticas dos núcleos e os seus spins.

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Fig. 8 – Maria Mayer estudando uma tabela de núcleos na Univer-sidade de Chicago. O estudo sistemático das propriedades dos nú-cleos atómicos levou-a a formular, em 1949, o modelo nuclear de ca-madas, que tem alguma semelhança com o modelo atómico deBohr e explica muitas das regularidades daquelas propriedades.

O modelo nuclear de camadas revelou-se extrema-mente importante para o desenvolvimento dos estu-dos nucleares. Com o aperfeiçoamento das máquinasaceleradoras e das técnicas de detecção de partículase de radiação, acumulou-se evidência indesmentível daexistência de modos individuais de excitação nuclear,em conformidade com o modelo de camadas. Mas, poroutro lado, os dados empíricos também não deixavammargem para dúvidas sobre a importância dos aspec-tos colectivos da estrutura nuclear.

Para além da fissão, a reacção ordenada dos nu-cleões a estímulos exteriores foi claramente evidencia-da nos valores dos momentos quadripolares de muitosnúcleos, que podem assumir valores 20 vezes superio-res aos previstos pelo modelo de partículas indepen-dentes, e também na ocorrência de transições gama denatureza eléctrica quadripolar, com tempos de vidacem vezes mais curtos que os estimados por essemodelo.

A relação entre os modos colectivos e individuaisfoi esclarecida pelas investigações teóricas de A. Bohre Mottelson (Fig. 9), em 1952 e 1953, os quais tive-ram a ideia brilhante de descrever os núcleos como umaestrutura de camadas capaz de rodar livremente noespaço e de oscilar em forma e tamanho. Osmovimentos colectivos do campo médio nuclearrefletem-se assim no movimento individual dos nu-cleões, e vice-versa. Este sistema possui muitas analo-gias com as estruturas moleculares, em que os electrõesse movem independentemente uns dos outros no cam-po dos núcleos atómicos, os quais podem vibrar entresi e rodar como um todo no espaço, de acordo comuma dinâmica que, por sua vez, depende também daconfiguração electrónica.

Fig. 9 – Aage Bohr (à esquerda) e Ben Mottelson em Copenhaga. Os dois notáveis cientistas unificaram as visões aparentemente antagónicasdos modelos nucleares de camadas e da gota líquida, tendo contribuído bastante para o esclarecimento dos papéis desempenhados pelos mode-los individuais e pelos modos colectivos na dinâmica do núcleo atómico.

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A aquisição de deformações permanentes por par-te dos núcleos atómicos compreende-se partindo doprocesso de enchimento de camadas atrás descrito,tendo em conta que, ao contrário do que se passa comos átomos, a interacção residual dos nucleões é atrac-tiva. Nas camadas completas, as orientações das órbi-tas dos nucleões ficam distribuídas uniformemente noespaço, o que confere forma esférica ao núcleo. Masquando existem nucleões em camadas incompletas, assuas órbitas procuram, dentro das limitações impos-tas pelo Princípio de Pauli, sobrepor-se o mais possí-vel para que os nucleões tirem proveito da atracçãoresidual, o que confere à última camada uma forma as-férica que, por arrastamento, deforma também as ca-madas interiores. Nos átomos, a natureza repulsiva dainteracção residual obriga os electrões a manterem-seo mais possível afastados uns dos outros, o que favo-rece as formas esféricas em todas as circunstâncias.

Esclarecida a interrelação dos movimentos colec-tivos e individuais, ficava ainda por justificar a valida-de do modelo de partículas independentes no caso dosnúcleos atómicos. Limitações de espaço não nos per-mitem entrar nesta questão fundamental da Física doNúcleo Atómico. Referiremos apenas o papel desem-penhado pelo Princípio de Pauli.

O Princípio de Exclusão de Pauli proibe que duaspartículas idênticas ocupem o mesmo estado quânti-co. Quando dois nucleões colidem entre si na presen-ça dos outros nucleões do núcleo, a maior parte dosestados que eles poderiam ocupar se estivessem isola-dos já se encontram ocupados por outros nucleões. Co-mo consequência, um nucleão pode percorrer grandesdistâncias comparadas com as dimensões nucleares,sem ser perturbado no seu trajecto.

OS NUCLEÕES E OS SEUS CONSTITUINTES

Uma molécula separa-se nos seus átomos consti-tuintes com energias da ordem de alguns electrões-volt.

Podem extrair-se electrões dum átomo bombar-deando-o com radiação ou com partículas possuindoenergias da ordem das dezenas de electrões-volt.

Conseguem-se arrancar nucleões a um núcleo fa-zendo incidir sobre ele feixes de partículas com ener-gias individuais da ordem de grandeza dos milhões deelectrões-volt.

Bombardeando os nucleões com partículas acele-radas com as maiores energias de que é possível ac-tualmente dispôr, eles nem se partem nos seusconstituintes, nem ficam intactos! Na verdade, nos des-troços dessas violentíssimas colisões tem-se encontra-do de tudo: desde o próprio nucleão, aos mesões docampo nuclear até partículas estranhas muito mais pe-sadas do que as que colidiram entre si. Mas nunca seencontrou algo que se possa identificar com um cons-tituinte elementar do nucleão. E, no entanto, acredita--se firmemente que eles existem.

Trata-se duma situação que é inteiramente nova noprocesso de encontrar os constituintes últimos da ma-téria. O seu esclarecimento, durante a década dos anossessenta, é uma história fascinante que terá, contudo,de ser lida noutro local (vide, e.g., as sugestões paraoutras leituras no final deste artigo). As conclusões aque se chegaram são, no entanto, essenciais para secompreender o que se sabe e também o muito que ain-da se não sabe sobre os nucleões e as forças nucleares,isto é, sobre os próprios fundamentos dos núcleos ató-micos e das propriedades que se lhes conhecem.

Segundo as teorias actuais os nucleões são consti-tuídos principalmente à custa de dois tipos de quarks,o quark «u» e o quark «d», ligados entre si pelos bo-sões do campo das forças fortes, ou sejam os gluões.Os mesões pi serão também constituídos pelo mesmotipo de quarks, embora em composição diferente (trêsquarks no caso dos nucleões, um quark e um antiquarkno caso dos mesões).

Os quarks e os gluões interagem entre si de acordocom a teoria da Cromodinâmica Quântica. Existe al-guma semelhança entre a Cromodinâmica Quântica ea mais familiar Electrodinâmica Quântica. Tanto umacomo a outra possuem como ingredientes as fontes eos bosões do campo. Na Electrodinâmica Quântica asfontes são as cargas eléctricas e os bosões do campo

Fig. 10 – Murrey Gel-Mann (1929), um dos mais brilhantes físicosda presente geração. A descoberta, feita em 1961, juntamente comNéeman, de que as partículas que interagem fortemente (ou hadrões)se podem ordenar de acordo com as representações do grupo desimetria SU(3), levou-o a propôr em 1963, simultaneamente com,mas independentemente de G. Zweig, que os hadrões são todos elesconstituídos por partículas ainda mais elementares, a que Gel-Mannchamou quarks.

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são os fotões. No caso da Cromodinâmica Quântica,as fontes são as cores e os bosões de campo são osgluões. Mas existe uma diferença fundamental entre asduas teorias que torna as equações de campo da Cro-modinâmica muito mais difíceis de resolver que as daElectrodinâmica: enquanto os fotões não possuem car-ga eléctrica, os gluões possuem cor. Por esta razão, aocontrário do que se passa com os fotões, os gluões sãofontes de si mesmos.

Uma outra razão da dificuldade de aplicar a Cro-modinâmica Quântica é a forte dependência da inte-racção quark-gluão da quantidade de movimentotransferida, Q. Para valores de Q muito elevados a in-teracção é muito pequena e é possível aplicar técnicasquânticas perturbativas. Mas para pequenos valores deQ o regime é fortemente não perturbativo e não se co-nhecem ainda técnicas que permitam uma solução,mesmo aproximada, das equações de movimento nesteregime. Ora é esse precisamente o regime que interes-sa à física nuclear porque é aí que surge o confinamentoda cor e os nucleões ganham estrutura.

A propriedade do confinamento da cor significaque não há objectos isolados coloridos («cor» é aquientendida como a carga da cromodinâmica, isto é, asfontes dos gluões). Esta propriedade explica a impos-sibilidade de se extrair um quark dum nucleão, por-

que os quarks possuem cor. Mas num processo de co-lisão entre partículas que interagem fortemente é pos-sível obter essas partículas e ainda, por exemplo, umpião desde que se disponha de energia suficiente, por-que um gluão pode originar um par quark-antiquarkda mesma maneira que um fotão pode originar um parelectrão-positrão.

Um dos problemas ainda em aberto no que toca àFísica Nuclear é o de fundamentá-la a partir da Cro-modinâmica Quântica, começando por construir osnucleões a partir dos quarks e dos gluões. A resoluçãodas equações da Cromodinâmica Quântica “à forçabruta” não tem encontrado o sucesso esperado, nãoobstante os poderosíssimos meios de cálculo actual-mente disponíveis. Têm-se feito alguns progressosusando modelos que representam um estado intermé-dio entre a cromodinâmica pura e a física nuclear. En-tre estes destacam-se os que constroem os nucleõesinteiramente à custa de bosões e os que os consideramcomo solitões de campos quarkónicos e mesónicos eminteracção. Tem-se, desta maneira, reproduzido mui-tas das propriedades estáticas e dinâmicas dos nu-cleões, mas a l igação destes modelos com aCromodinâmica Quântica é ainda bastante ténue.

Outra questão interessante que continua em aber-to é a de saber se existirão nos núcleos, pelo menos

Fig. 11 – Quando se lança um protão contra outro protão, na tentativa de libertar os quarks que eles contêm, o que acontece é que nenhumquark é libertado. Em vez disso, mais partículas são criadas a partir de energia disponível. Nesta fotografia, tirada na câmara de bolhas dehidrogénio de 75 cm do Fermilab, um protão de 300 Gev, entrando pelo lado esquerdo, bate num protão do líquido, produzindo um chuveirode 26 partículas carregadas, quase todas elas piões. Os rastos curvos e espiralados correspondem a electrões cujas trajectórias, por correspon-derem a partículas muito mais leves que os hadrões, são facilmente encurvadas pelo campo magnético da câmara.

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em condições extremas, manifestações directas dosgraus de liberdade quarkónicos e gluónicos. Mas, pa-ra além destas questões fundamentais, a entrada emfuncionamento de máquinas aceleradoras com ener-gias intermédias e a invenção de técnicas mais pode-rosas de investigação teórica reabriram o interessenalgumas velhas questões da física nuclear, em espe-cial as relacionadas com a descrição relativista dos nú-cleos e com a dinâmica dos campos mesónicos. Poroutro lado o núcleo atómico continua também a ser

um bom laboratório para se testar a teoria standard dasinteracções electrofracas e as suas possíveis extensões.

A Cromodinâmica Quântica e a sua unificação comas outras teorias básicas das forcas da Natureza permite--nos ter uma ideia precisa, ou pelo menos julgar quea temos, do que aconteceu no primeiro segundo de-pois do Big Bang. Mas, não o devemos esquecer, con-tinuam por esclarecer os mecanismos da formação dosnúcleos atómicos que, afinal, constituem 99% da mas-sa total do Universo!

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SUGESTÕES DE LEITURA

REFERÊNCIAS