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O nome e o espaço em transformação: o bairro enquanto espaço vivido e apropriado No Brasil, ao longo do século XX, a cidade apresenta-se, segundo a teoria marxista, como local de contradições e conflitos provocados, sobretudo, pela complexificação das relações de produção e pelo crescimento urbano, seguidos da segregação sócio-espacial. A partir da análise de um caso específico, este trabalho propõe analisar as configurações e paisagens da cidade moderna, a partir da utilização do bairro, enquanto categoria de análise histórica. Procura-se enxergar o bairro enquanto local de sociabilidades, espaço vivido e sentido, individualizado pelas imagens mentais e referenciais simbólicos e materiais, que o identifica para seus moradores, deixando de ser somente uma divisão política exterior. Sob esta ótica, o bairro torna-se o espaço da vida, em oposição ao espaço do trabalho, comportando momentos de lazer, interação e solidariedades. Palavras-chave: Bairro; História Urbama; Cidade Este trabalho surgiu a partir de questionamentos sobre a adequação da utilização do conceito de bairro para o estudo de manifestações sociais produzidas por agrupamentos populacionais existentes em cidades brasileiras do final do século XIX e início do século XX. O risco do anacronismo significava aplicar a uma realidade um conceito recente, forjado no contexto específico da atualidade, quando as contradições urbanas se tornaram mais patentes, por volta das últimas décadas do século XX. Sem dúvidas, a utilização da categoria bairro para delimitar uma abordagem histórica tonou- se mais frequente neste período. Da análise dos movimentos sociais urbanos ao estudo de determinadas comunidades, vários trabalhos o privilegiaram como campo de pesquisa. No bairro, em geral, era possível detectar a existência de redes sociais e a manifestação de grupos com problemáticas de imediata expressão espacial como insuficiência dos equipamentos de consumo coletivo, deficiências educacionais e de urbanização. Segundo a maior parte das teorias, tais demandas coletivas ajudavam a produzir entre os moradores vínculos e redes de solidariedade baseadas no contexto de

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Page 1: O nome e o espaço em transformação: o bairro enquanto ... · o bairro enquanto espaço vivido e apropriado No Brasil, ... Para Velho o conceito de bairro é formado em conjunto

O nome e o espaço em transformação:

o bairro enquanto espaço vivido e apropriado

No Brasil, ao longo do século XX, a cidade apresenta-se, segundo a teoria

marxista, como local de contradições e conflitos provocados, sobretudo, pela

complexificação das relações de produção e pelo crescimento urbano, seguidos da

segregação sócio-espacial. A partir da análise de um caso específico, este trabalho

propõe analisar as configurações e paisagens da cidade moderna, a partir da utilização

do bairro, enquanto categoria de análise histórica. Procura-se enxergar o bairro

enquanto local de sociabilidades, espaço vivido e sentido, individualizado pelas

imagens mentais e referenciais simbólicos e materiais, que o identifica para seus

moradores, deixando de ser somente uma divisão política exterior. Sob esta ótica, o

bairro torna-se o espaço da vida, em oposição ao espaço do trabalho, comportando

momentos de lazer, interação e solidariedades.

Palavras-chave: Bairro; História Urbama; Cidade

Este trabalho surgiu a partir de questionamentos sobre a adequação da utilização

do conceito de bairro para o estudo de manifestações sociais produzidas por

agrupamentos populacionais existentes em cidades brasileiras do final do século XIX e

início do século XX. O risco do anacronismo significava aplicar a uma realidade um

conceito recente, forjado no contexto específico da atualidade, quando as contradições

urbanas se tornaram mais patentes, por volta das últimas décadas do século XX. Sem

dúvidas, a utilização da categoria bairro para delimitar uma abordagem histórica tonou-

se mais frequente neste período. Da análise dos movimentos sociais urbanos ao estudo

de determinadas comunidades, vários trabalhos o privilegiaram como campo de

pesquisa.

No bairro, em geral, era possível detectar a existência de redes sociais e a

manifestação de grupos com problemáticas de imediata expressão espacial como

insuficiência dos equipamentos de consumo coletivo, deficiências educacionais e de

urbanização. Segundo a maior parte das teorias, tais demandas coletivas ajudavam a

produzir entre os moradores vínculos e redes de solidariedade baseadas no contexto de

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vizinhança. Neste sentido, a visão do bairro como espaço de vivência e de sociabilidade

tornou-se bastante aceita para as configurações urbanas verificadas em cidades

brasileiras a partir da segunda metade do século XX, no entanto, sua utilização para o

estudo de outras realidades em períodos anteriores foi vista com certa reserva.

Este trabalho parte da premissa de que as deficiências de urbanização passam a

incomodar os moradores a partir do momento em que aquele local faz sentido, é

apropriado, individualizado e aceito como pertencente àquela comunidade, é parte de

sua identidade e interfere até mesmo na forma como o denominam e que este processo

não está restrito à história recente.Desta forma, propõe-seestudar o bairro a partir da

percepção da apropriação que seus habitantes fazem do local onde moram e das

modificações em suas configurações, ocorridas ao longo de determinado período. Tal

exercício será feito com base em breves contribuições conceituais advindas de

disciplinas como a Geografia, a História e a Antropologia, entre outras, e da análise de

um caso específico referente a três bairros da cidade de Juiz de Fora, MG. Foram

analisadas, além de fontes impressas, registros iconográficos que permitiram

acompanhar as mudanças ocorridas no espaço ao longo do tempo e as relações entre o

sujeito e o meio em transformação.

Segundo Marcelo Souza (1988) a geografia urbana clássica descreve o bairro

como uma noção popular que o individualiza, enfatizando a relação do meio físico

(sítio) com a evolução da ocupação humana1. Para o antropólogo Gilberto Velho (1973)

a individualização do bairro também está presente e pode ser feita com base em

considerações funcionais como a presença e especialização de atividades, tipos de

trabalho, paisagem e sua relação com a ocupação histórica do local e do meio natural.

Para Velho o conceito de bairro é formado em conjunto pela subjetividade da

apropriação mental de seus moradores e pela objetividade da dinâmica urbana e sua

materialidade2. A dimensão subjetiva também é abordada pelo urbanista Kevin Lynch

(1959) que enfatiza a imagem que os habitantes fazem da urbe e em tal contexto, um

dos referenciais básicos do citadino, seria o bairro3. Complementando, o historiador

Lewis Munford (1982), em A Cidade na História, oferece subsídios para uma visão

histórica dos bairros, nos marcos da evolução da estrutura e da dinâmica urbana.

Considerando a cidade como o ponto crítico das relações sociais do século XX,

Mumford, aposta em estudos empíricos para a análise social e histórica das cidades e

seus componentes, como os bairros4.

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Aceitando, portanto, o bairro como local individualizado em função de seus

referenciais, um dos aspectos mais notáveis em um processo de apropriação é a forma

como seus habitantes denominam o local onde moram. Seja no século XIX ou no século

XX é possível dizer que o processo de atribuição de nomes a lugares, bairros e ruas

pode acontecer de duas formas: por força da vontade política do governo, por decreto ou

lei municipal e independente da vontade popular ou por apropriação de uma noção

popular de designação que passa a figurar como oficial. Neste caso quando há em

determinado local um referencial, seja ele material, simbólico ou ambos, pode ocorrer a

ampliação da abrangência geográfica de sua designação a toda a região ao seu redor.

Em situações como esta, a materialização do nome ocorre muito mais através de um

processo de origem popular, de utilização e repetição cotidiana deste referencial para

designar o local onde moram ou por onde passam do que por força de uma decisão

externa. É possível que esta dinâmica, apesar de não ser tão visível nas cidades atuais,

onde a maior parte dos novos bairros e ruas surge como loteamentos, com nomes

definidos pelo empreendedor ou pelo governo municipal, estivesse presente na origem

de grande parte dos bairros surgidos no início do processo de urbanização das cidades

brasileiras da contemporaneidade. Os bairros mais antigos possuem muita história para

contar e revelar processos de significação bastante interessantes.

A cidade de Juiz de Fora, MG, foi criada em 1850 e seu núcleo urbano era

formado pela confluência de algumas poucas ruas. Ao redor existiam vilas, povoados e

grandes propriedades de terra. O crescimento populacional foi impulsionado,

principalmente, a partir de 1856 quando, por iniciativa da Companhia União e Indústria,

chegaram na cidade milhares de imigrantes alemães e italianos contratados pela

Companhia para trabalhar na construção de uma estrada que ligaria Juiz de Fora a

Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, “tendo em vista encurtar a viagem entre a

Corte e a Província de Minas”5. Tal empreendimento deu impulso ao crescimento da

cidade uma vez que ocorreu um aumento de quase 30% em sua população.

Com o passar dos anos novos povoados surgiram ao redor do núcleo formado

inicialmente, aumentando a área urbana do município. Os imigrantes que continuaram a

chegar na cidade até, pelo menos, o final do século XIX, instalaram-se em colônias,

como nos bairros São Pedro (Colônia de Cima) e Borboleta (Colônia de baixo), e ainda

em ruas e morros da cidade. Um dos lugares bastante povoados por estes imigrantes foi

a região conhecida como Morro da Gratidão. Tratava-se de um morro, localizado entre

o centro da cidade e a estação de Mariano Procópio, composto por uma rua principal,

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denominada Gratidão, e ruas transversais que surgiam a partir de apenas um de seus

lados, conforme a figura abaixo:

Esta região foi adotada neste trabalho como emblemática do processo de

reconfiguração urbana ocorrida em Juiz de Fora e em muitos outros bairros brasileiros,

alguns centenários, onde a partir, principalmente, da apropriação e sobreposição de

referenciais simbólicos existentes no local houve a delimitação de seus limites e

definição de denominações e locais de encontro e sociabilidades. Isto porque, na década

de 1950, o Morro da Gratidão já não possuía mais esta designação e passou a

compreender três bairros distintos: o bairro Glória ou Morro da Glória; o bairro Santa

Catarina; e o bairro Jardim Glória. A rua do Gratidão também teve seu nome alterado,

desta vez por conveniências políticas para Avenida dos Andradas, como se pode ver na

figura acima.

O nome inicial do lugar, Morro da Gratidão, aparece com diferentes e imprecisas

justificativas, quanto à sua origem, nas fontes encontradas, mas com aspectos de

significação bastante populares. Segundo relatos dos padres redentoristas, que se

instalaram na região em 1894, o nome seria devido à gratidão dos colonos alemães que,

em virtude das promessas feitas, haviam conseguido concluir a viagem. Outra

justificativa encontra-se no “Álbum o Município de Juiz de Fora”, de José Albino

Esteves que traz na seção “Avenidas, ruas, praças, morros e logradouros” a seguinte

descrição: “Gratidão: começa do largo do Riachuelo e termina na estação de Mariano

Procópio. Extensão: 1.900 metros. Dizem que o seu nome é devido a um velho, o

Gratidão, que por lá morou muitos annos e vendia amoras e vasos de barro...” (P.162)

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Em 1877, na referida região da rua do Gratidão ou Morro da Gratidão, a

Companhia União e Indústria, doou um terreno para que fosse construída uma capela,

dedicada a Nossa Senhora da Glória. A construção iniciou-se em 1878 e em 1879 foi

consagrada ao culto. Ao final do século XIX, após insistentes pedidos de Dom Viçoso,

então bispo de Mariana, chegaram ao Brasil os missionários redentoristas vindos da

Holanda. A capela da Glória, em Juiz de Fora, localizada em meio a uma colônia alemã,

despertou a atenção dos religiosos, que resolveram aceitar a missão. Ao chegarem

escreveram carta ao seu superior na Holanda colocando como local de origem “Morro

da Gratidão, Juiz de Fora. (...) Agora a igreja. Está como é de costume aqui em cima

de um morro, mas não muito alto: só 45 degraus6.

Com o tempo, a primitiva capela de Nossa Senhora da Glória se tornava mais

acanhada para acolher os fiéis e a construção de uma nova igreja foi a solução

encontrada. A “rua do Gratidão” iniciava ao pé do morro, terminando do outro lado, e

no topo estava localizada a Igreja, com escadaria que começava na referida rua.A Igreja

da Glória, como atualmente é conhecida, começou a ser construída em 1920. De estilo

neo-romano, a igreja foi concluída em 24 de agosto de 1924. Neste intervalo de tempo

um novo processo de ressignificação ocorreu. Uma primeira referência ao início de uma

mudança da denominação do local está no Álbum do Município de Juiz de Fora, uma

publicação de 1915, que designa a “rua da glória” iniciando na ruado Gratidão e

terminando na dos Artistas, com extensão de 100 metros e o sobre o “Bairro da Glória”

diz: “É outro dos pitorescos arrabaldes da cidade de Juiz de Fora, constituindo hoje

um curato de paz na cidade”7.

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Capela da Glória e ao fundo a nova Igreja sendo construída. Década de 1920. Arquivo Província Redentorista do Rio.

Com o passar dos anos, o então Morro da Gratidão passou a ser conhecido cada

vez mais como Morro da Glória, em referência à Igreja, que assistiu a uma

efervescência religiosa cada vez maior. Um referencial concreto e simbólico começava

a ser construído transformando a Igreja em local de encontro e sociabilidade. A

coexistência de denominações esteve presente durante algum tempo, entre os anos finais

do século XIX e os primeiros anos do século XX, mas definiu-se em um processo que

terminou aproximadamente na década de 1950.

Em correspondência enviada ao Provincial redentorista na Holanda, o Pe.

Mathias Tulkens, missionário redentorista no Brasil descreve os habitantes do local:

“Ao redor da igreja dos alemães, moram alemães, italianos, brasileiros e alguns franceses. Ficaram todos satisfeitos com a minha chegada depois de tanto tempo sem padre. Num domingo convidei todas a crianças de mais de 10 anos para o catecismo: apareceram 100.”8

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Comunhão das Crianças. Adro da Igreja da Glória. 1924. Arquivo Província Redentorista do Rio

Outro referencial importante começou a ser construído no início do século XX: o

Colégio Santa Catarina. Preocupados com a necessidade da assistência educacional

católica aos moradores da cidade, os padres redentoristas intercederam para a vinda das

irmãs de Santa Catarina, que já possuíam uma escola em Petrópolis, RJ, e em fevereiro

de 1900, a pedido do Cônsul alemão George Grande, duas religiosas chegaram a Juiz de

Fora. Após trabalharem durante alguns anos em salas e salões cedidos pelos padres

redentoristas, as irmãs adquiriram um terreno na descida do morro iniciando a

construção do Colégio, inaugurado em 1909. Em 1922, a construção foi ampliada e m

1928, foi oficializado o Curso Comercial e em 1930, o curso de Magistério.9

Colégio Santa Catarina. 1906. Arquivo Província Redentorista do Rio.

A região no entorno do colégio também era considerada, quando de sua

construção, como parte do Morro da Gratidão, mas ali também iniciou-se um novo

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processo de ressignificação que levou os moradores do local a incorporarem o novo

colégio como ponto de referência. Naquela região, não eram muitos os moradores que

podiam arcar com os custos do ensino, mas a bela construção, hoje também tombada

pelo patrimônio histórico do município, marcou a paisagem do lugar e fez com que as

ruas de seu entorno passassem a pertencer ao bairro Santa Catarina.

Durante o avançar do século XX, a próspera cidade de Juiz de Fora e suas

paisagens começaram a se modificar a partir de processos como o desenvolvimento

industrial e tecnológico, o aumento e diversificação populacional e o avanço

educacional mantendo, contudo, referenciais importantes, nos quais as manifestações

religiosas encaixam-se. Como visto anteriormente, a região do morro, apesar de

próxima ao centro, era considerada um arrabalde, ou seja, uma área periférica, e nele

residiam imigrantes recém-chegados e brasileiros, a maior parte prestadores de serviço

como carpinteiros e pedreiros, além de operários. Mas o perfil do bairro haveria de

mudar, atraindo comerciantes, advogados e médicos que passaram a procurar o local

para morar em função de sua proximidade do centro urbano, e um novo bairro

começava a surgir naquela região.

Paulino de Oliveira descreve seu surgimento a partir da década de 1940:

“Volto do Lamaçal ao Zé Weiss, passando pelo morro daGlória e MarianoProcópio. Misturo o Jardim Glória com o morro só para lembrar que este novobairro era mato até 1939. Dez anos antes, Washington Luis teve um banqueteali, oferecido pelo governo de Minas ou, melhor, por Antonio Carlos. Foi àmargem de um lago. Mato e lago eram lugar de recreio... Faço questão de dizer que, para esta rotas "Do Zé Weiss ao Lamaçal", nãorecorri, até agora, ao auxílio de nenhum documento. E não pretendo recorrer,daqui por diante. Só está funcionando a memória. Por isto não assumo, nelas,a responsabilidade quanto as datas exatas dos eventos que citar.10

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Em um período em que novos bairros surgiam a partir de “arruamentos”

promovidos pela prefeitura, o surgimento do bairro Jardim Glória localizado no terreno

existente atrás da Igreja, descendo pelo seu lado direito, aparece com uma perspectiva

mais planejada, mas novamente a referência à Igreja em sua denominação chama a

atenção.

Entre o século XIX e o início do século XX, a configuração urbana que a cidade

apresentava, assemelhava-se com o tipo de cidade pré-capitalista identificada por Souza

e definida, entre outros aspectos, como aquela que passa por um momento de expansão

urbana apoiada em sistemas de transporte como bondes e trens, mas onde existe um

bairro central que concentra comércio e serviços, além de uma população de moradores

que congrega diferentes estratos sociais. Podem existir ainda, os bairros secundários

com um comércio mais restrito e uma fisionomia particular, com “conteúdo simbólico

bem específicoe uma dinâmica fortemente definida pela atração exercida pela igreja

local e pelos festejos...” Esta definição pode ser compreendida através da ilustração a

seguir, onde C é o bairro central e D são os bairros secundários:

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Cidades com este perfil geralmente não possuíam uma expansão baseada em

planejamentos, os governantes locais limitavam-se a produzir “arruamentos” e a maior

parte dos bairros acabavam surgindo de forma espontânea. Ao longo do século XX é

notável uma maior preocupação em regular e controlar esta expansão, inclusive com

regulamentos que versavam sobre como deveria ser o padrão das construções(VER

ALBUM). Os projetos urbanísticos passaram a tentar conciliar a formação e

configuração do sítio inicial, suas paisagens e referenciais, a novas propostas de

ocupação. Esta preocupação com a vivência imediata do homem com o espaço,

valorizando os significados tecidos na relação do morador com o bairro acabou por

influenciar a demarcação de muitos bairros. Isto porque, a produção de simbolismos

atua na reprodução mental que as pessoas fazem do lugar, gerando espaços vistos com

maior apreço em detrimento de lugares que geram repulsa, e ainda na construção e

identificação de referenciais espaciais.

No recorte proposto, a partir da análise das modificações identificadas na

denominação de um lugar específico, é possível notar que alguns pontos foram

reconhecidos como marcos simbólicos definidores do bairro combinados com

delimitadores físicos e polícos. São eles: A Igreja da Glória e o Colégio Santa Catarina,

patrimônios históricos da cidade de Juiz de Fora, erguidos entre o final do século XIX e

início do século XX e apropriados como identitários do lugar; A linha férrea que passa

abaixo do morro, contornando-o e delimitando sua divisa com o bairro Mariano

Procópio é um marco físico existente desde a criação da estrada de Ferro D. Pedro II,

que chegou à cidade por volta de 1883; O paredão vertical do Morro do Imperador é

parte da paisagem natural do local e o separa da parte mais alta da cidade; e finalmente

a rua Paula Lima é definida pela lei estadual n.° 620 de 15 de setembro de 1914, como o

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limite sul do Distrito de Mariano Procópio, do qual o morro fazia parte. A definição de

limites a partir desta perspectiva torna-se mais complexa, uma vez que há uma

combinação de marcos simbólicos, físicos e políticos podendo ainda comportar entre os

habitantes da cidade a concepção de diferentes referenciais eleitos como definidores,

tornando problemático o estabelecimento de limites rígidos.

Conclusões:

Este estudo teve como ponto de partida a análise de uma configuração urbana,

representada por um morro, que surgiu enquanto povoação a partir de algumas poucas

ruas recebendo a denominação de Morro da Gratidão. A nomeação, seja em função da

presença emblemática de um morador específico ou do sentimento coletivo de um grupo

de moradores, denota o aspecto popular da apropriação de uma característica particular

do local para defini-lo e individualiza-lo. Posteriormente, acompanhamos o surgimento

de novos referenciais representado principalmente pela Igreja da Glória, construída no

final do século XIX e ampliada na década de 1920, e também pelo Colégio Santa

Catarina, construído no início do século XX. Ambas são construções grandiosas e

belíssimas, que se destacavam na paisagem do bairro, funcionando como marcos, além

de representarem pontos de encontro de moradores. Neste período o bairro era

composto por uma maioria de trabalhadores, operários, prestadores de serviços e suas

famílias, considerando uma grande quantidade de imigrantes. No entanto, a partir das

primeiras décadas do século XX o perfil do bairro começa a se modificar. A Igreja da

Glória, concluída em 1924, é uma construção imponente e ainda hoje é, ao lado da

Catedral de Santo Antônio, uma das principais da cidade, por seu tamanho e localização

central. Na nova igreja figuram em vitrais e móveis nomes de nobres benfeitores,

pertencentes à elite local, mas também nomes de imigrantes e trabalhadores que

participava dos movimentos religiosos. O bairro Jardim Glória que passa a ocupar toda

a área existente aos fundos da Igreja e se estende aos pés do Morro do Imperador surge

na década de 1940 como um bairro de classe média, mas incorpora ao seu nome um

simbolismo popular anterior.

Desta forma, o breve estudo permitiu através da análise da relação dos

moradores de determinado local com suas paisagens naturais ou edificadas, identificar

um processo que as tornou referenciais simbólicos e materiais em uma dinâmica de

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reconfiguração urbana onde, na ausência de um projeto urbanístico externo, prevaleceu

a apropriação popular de significados e denominações. E onde o esboço de um bairro

com primitivo projeto urbanístico incorporou referenciais anteriores, produzidos no

tempo e no espaço, marcando a relação do homem com o espaço vivido e sentido.

Tais conclusões, porém, não autorizam o uso indiscriminado do conceito para o

estudo de comunidades existentes em cidades do século XIX ou início do século XX,

mas demonstra haver indícios de que o bairro enquanto local de sociabilidade poderia

ser uma realidade presente e que para além de divisões marxistas baseadas na noção de

segregação do espaço urbano, o bairro poderia ser local de lazer e vida social. Além

disto, a apropriação do local onde vivem leva à construção de espaços coletivos bem

vistos por todos os moradores, e se tornam objeto de apreço, defendidos por todos.

Novos estudos sobre o assunto devem ser feitos, com o objetivo de analisar

outrosaspectos referentes à noção de bairro para que se possa afirmar a viabilidade de

sua utilização bairro enquanto categoria de análise histórica.

1 SOUZA, Marcelo José Lopes de. O Bairro contemporâneo: ensaio de abordagem política. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, 51(2), p. 139-172, abr/jun 1989. 2 VELHO, A Utopia Urbana. Rio de Janeiro, Zahar, 1973. 3 LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1982. 4 MUMFORD, Lewis. A Cidade na História. Suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo, Martins Fontes / Editora da UNB, 1982. 5. OLIVEIRA, Paulino de. História de Juiz de Fora. Juiz de Fora, Gráfica Comércio e IndústriaLtda, 1966, p. 45-50. 6Trechos da carta do Pe. Matias Tulkens, publicada na revista holandesaVolks – Missionaris, tomo 15, pág. 563, de 08/11/1894 7ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estdo de Minas, 1915. p. 8Trechos da carta do Pe. Matias Tulkens, publicada na revista holandesa Volks – Missionaris, tomo 15, pág. 563, de 08/11/1894 9Diponível em: http://www.santacatarinajf.com.br/historico.aspAcessado em 24/02/2012 10 OLIVEIRA, Paulino. Crônicas. Disponível em: http://www.artnet.com.br/~arthur/09fabric.html. Acessado em 15/02/2012.