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in í i ' a O nascimento das f á bricas Edgar de Decca hub ê hist ó ria Dentre as utopias criadas a partir cio s é culo XVI * a glorifica çã o tiu soer ec / cuie do trabalho foi a cjui ? se realizou Truitt desgra çã dnmente . . . Ultrapmssando a imagem cri í failit í iiia í jue o pensamento do s é culo ' . M / X produ í iu sobre a f á brica t reduzmdo - a a um acan í edmeni ú tecnol ó gicot o autor reencontra a f á brica cm todos OJ lugares £ momentos onde esteve presente uma í nten ç cJo de org í tru ? ar e disciplinar o rr ã fcdbo a tract ' s de uma sujei çã o camp / eta da figura do pr ó prio rrabainador - ISBN 85 - 11 - 02051 - 9 I 19 0 iA C 0 A i CG 0 19 1 020519 s ii " 78455 CT ^ - , - \ r = * jFfltf í k . - r p * i - - b . I

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•iníi 'a O nascimentodas fábricasEdgar de Decca

hub ê história

Dentre as utopias criadas a partir cio século XVI* aglorificação tiu soer ec/cuie do trabalho foi a cjui? se realizou

Truitt desgraçãdnmente... Ultrapmssando a imagem

criífailitíiiia íjue o pensamento do século '.M/X produíiusobre a fábricat reduzmdo-a a um acaníedmeniú

tecnológicot o autor reencontra a fábrica cm todos OJ lugares£ momentos onde esteve presente uma íntençcJo de orgítru?ar

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Copyright & by Edgar Salvatíori de Deccs. 1962

Nenhuma part* dasfá publicação pode ser gravada,

armazenada em $r$/smas eletrónicos, fotocopiada,reproduzida por meios mecânicos ou OJI OS pwarsquer

i:&r.rj autorização prévia do editor.

ISBN. BEM1-G2051-9Pi meira edlçâo,1982

10a edição, 19D54^ rcimpiesão, £00-1

Revisão- Newton T. L. Sadró e Júlio D. GasparCapa: 123 (antigo 27) Artistas Gráficos

ÍNDICEDJKJPS Internacionais de Calalojíçio na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro,SP, Brasil)

Dacca, Etílgar Salvador dcO nascirneníu daí làbrlcag / Edgar SaWadori de Dacca. -

São Fauln : Brasiknse, 2nn*i. 7introdução •Nunca temos tempo para sonharUma máquina efábrica incrívelA fábrica vitoriosaindicações para leitura . . . . . .

11S3 reimpr d-i tO. ed. da 199bBibliografiaISBN 85^11 02D51-9

416772

1 Fábucas - Historie i Titulo

CDCKH&.*76709J4-2022

Índices gora calálogo sistemático:t . fábricas :Histórias :Economia 330.476703

eriiiíir:i íirasiliesise s .a ,

Itua Ain, 22 - TEIJOPP CP P 03310-01 - 2áo PAJ-:I 6PFontr/F**: ;n ai} siaB- Mfiâ

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livraria brasiliense s.a,

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INTRODUÇÃO

Dentre todas as utopias criadas a partir do sé-culo XVI , nenhuma se realizou tão desgraçadamente

da sociedade do trabalho. Fábricas-prísões,como afabricas-conventos, fábricas sem salário, que aos

ojhos adquirem um aspecto caricatural, fo-Hvery morning just at fiveGotta get up. dead or aliveIt £ hard times in the mill, my loveHard times in the mill

nossosram sonhos realizados pelos patrões e que tornarampossível esse espetáculo atual da glorificação do tra-balho, Para se ter uma idéia da força dessas utopiasrealizadas impregnando todos os momentos da vidasocial a partir do século XVIII, basta considerarmos atransformação positiva do significado verbal da pró-pria palavra trabalho, que até a época Moderna sem-pre foi sinónimo de penalização e de cansaços insu-portáveis, de dor e tie esforço extremo, de tal modoque a sua origem só poderia estar ligada a uni estadoextremo de miséria e pobreza. Seja a palavra latina einglesa labor, ou a francesa travail , ou grega portos

ou a alemá Arbeit . todas elas, sem exceção, asst-

/ ívn morning just at sixDon i that old bell make you sick?It 's HIJRD times in the mill , my loveHard dmes in the mill

.Am t it enough to break your heart?Have ro work all day and at night it s darkIt T hard times in the mill, my loveHard rimes in the mill

( Cauçao de rendeiros — Carolina do Sul — 1890)

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9O Nascimento das FábricasEdgar Sahadori de DeccaA

sociedade, Assim, a f ábrica ao mesmo tempo queCOEIfirmava a potencialidade criadora do trabalhoanunciava a

nalam a dor e o esforço inerentes à condição dohomem, e algumas como ponos t Arbeit têm a ines-

raiz etmològica que pobreza { penia e Armut emgrego e aíeruão, respectivamente).

Essa transformação moderna do significado daprópria palavra trabalho, em sua nova positividade,

representou também o momento em que, a partir doséculo XVI, o próprio trabalho ascendeu da "tnaishumilde e desprezada posição ao nível mais elevado eà mais valorizada das atividades humanas, quando

Locke descobriu que o trabalho era a fonte de toda apropriedade. Seguiu seu curso quando Adam Smithafirmou que o trabalho era a fonte de toda a riqueza,

e alcançou seu ponto culminante no "sistema detrabalho" de Man. onde o trabalho passou a ser afonte de toda a produtividade e expressão da própriahumanidade do homem" (Hannah Arcndt. La Can-íiiciòn Humana , p. 139),

A dimensão crucial dessa glorificação do tra-balho encontrou suporte definitivo no surgimento dafábrica mecanizada, que se tomou a expressão su-prema dessa utopia realizada, alimentando, inclu-

ilusões de que a partir dela não hã

dimensão ilimitada da produtividadehumana através da maquinaria.

Para esse pensamento movido pela crença dopoder criador do Lrabaiho organizado, a presença da

máquina definiu de uma vez por todas a f ábricacorno o lugar da superação das barreiras da própriacondição humana. LlA invenção da máquina a vapore da máquina para trabalhar o algodão", escreviaEngels em 1844, “ deu lugar como é sobejamenteconhecido a uma Revolução Industrial, que trans-

formou toda a sociedade civil." Essa imagem crista -lizada já no pensamento dos homens do século XIXapagou todo o percurso sinuoso da organização do

trabalho da época Moderna, ao reduzir definitiva-mente a f ábrica a um acontecimento tecnológico.

Contudo, os ecos das resistências dos homenspobres a se submeterem aos rígidos padrões do tra -balho organizado são audíveis desde o século XVII ç

assinalam a presença da fabrica a partir de um mar-co distinto daquele definido pelos pensadores do sé-culo XIX.

Aqueles primeiros homens, que se viram cons-trangidos pela pregação moral do tempo ú til c dotrabalho edificante, sentiram em todos os momentosde sua vida co Li dia na o poder destrutivo desse novoprincípio normativo da sociedade. Sentiram na pró-pria pele a transformação radical do conceito detrabalho, uma vez que essa nova positividade exigiu

do homem pobre a sua submissão completa ao maxi -

ma

sive, as novaslimites para a produtividade humana.

Essa descoberta delirante da f ábrica como lu-gar , por excelência, no qual o trabalho pode se apre-sentar em toda a sua positividade não só alimentouas projeçóes dos apologistas da sociedade burguesa ,como também a de seus próprios críticos, na medidaem que ela foi entendida como u momento de umaliberação sem precedentes das forças produtivas da

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Edgar Satvodori de Decca10

do do palrão.lntrojetar um relógio moral no coração de cada

trabalhador Foi a primeira vitória da sociedade bur-a fábrica apareceu desde logo como uniaguesa, e

realidade estarrecedora onde esse tempo util encon -trou o seu ambiente natural, sem que qualquer modi-ficação tecnológica livessc sido necessá ria. Foi alravésda poria da fábrica que o homem pobre, a partir doséculo XVI11, foi introduzido ao mundo burguês,

A reflexão que agora propomos visa ultrapassara imagem cristalizada que o pensamento do séculoXIX produziu sobre a f ábrica, reduzindo-a a umacOíitecimen Lo tecnológico.

Nosso intuito è desfazer o manto da memória dasociedade burguesa e reencontrar a f ábrica cm todosos lugares e momentos onde esteve presente umaintenção de organizar e disciplinar o trabalho atravésde uma sujeição completa da figura do proprio tra-balhador, Por isso, os leitores não devem se sur-preender quando no decorrer do texto encontraremno engenho de açúcar da colónia o esboço da f ábricaque iria produzir o futuro operário europeu.

NUNCA TEMOSTEMPO PARA SONHAR

"Todas as pessoas que se encontram traba-

lhando nos teares mecânicos estão ali de modoforçado,, porque não podem existir de nenhumoutro modo; via de regro são pessoas cujasfiimiiiús foram destruídas e seus interesses ar-

minudos- r . t êm a tendência de ir como peque-nos colónias colonizar esses moinhos." l

Inspetor governamenta] inglês. (1834)

Quando nos defrontamos hoje com a impossibi-lidade de criar situaçftes de conhecimento que inter -rompam ou invertam a lógica de um processo, desig-nado real, podemos nos pergunlar sobre os disposi -tivos que regem a ordem de domínio da sociedade.Sejamos explícitos desde o princípio. Estamos fa-lando, no caso, de uma incapacidade imposta aosocial , por ordem de um determinado domínio que

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130 Nascimento daí FábricasEdgar Salvador! de Decca12

bricar balas, por exemplo, não significa imediata-mente que não tenhamos condições de impor tée-

de produção eficazes para a concorrência noj'eitra dos homens a própria dimensão do pensar.como algo além do já dado.

Dentro daquilo que nos interessa, determinadasrespostas já são bastante conhecidas. Por exemplo,

quando falamos da produção de conhecimentos t.éc-que não conseguem se impor socialmente* bus-

camos a resposta, via de regra, no nível do própriomercado. Assim , lima tecnologia é ineficaz porquenão consegue romper a barreira da concorrência im-posta por uma ordem implacável. Nesse sentido, aconclusão é imediata. Não existem outras tecnologiasalém daquelas conhecidas, porque o próprio mer-cado se responsabiliza em eliminar as "menos efi-cazes". Contudo* deveríamos ser menos ingénuos emquestões que colocam explicitamente em jogo as re-lações de dominação social. Hm outras palavras, asrelações de mercado vão bem ruais além do que aspuras determinações económicas. O estabelecimentodo mercado é também o estabelecimento de um dadoregistro do real. no qual os homens pensam e agemconforme determinadas regras do jogo. Assim, omercado n ão só impõe aos homens determinadastecnologias “ eficazes", como também impede quelhes seja possível pensar outras tecnologias.

Daí falarmos em impotência social. Não é istomecanismo regulado por leis econômicas do mer-

uma esfera de domínio social na qual os

nicasmercado. Um outro mecanismo antecede essa ilusão.O que nos é vetado, antes de mais nada, é justa-mente a possibilidade de pensarmos o ato mesmo depoder fabricar balas. Alguma coisa já se hipostasiou,

ganhou aparência de “ condições objetivas": o fa-bricar balas já encontrou sodalmente um determi-nado estatuto e. a não ser para alguns espíritos recal-citrantes que insistem em fazer festas, balas devem

reconhecidas como produto da eficiência de in-dústrias altamente conceituadas, segundo seus pa-drões de qualidade.

Somos induzidos, então, a pensar dentro deuma lógica definida, que não é ditada por leis demercado, mas sim regida por mecanismos sutis de

controle social. Portanto, vejamos bem o que é essepensar, pois há nisso tudo um modo de pensar , pró-prio da esfera desse controle. Até agora nos referimosà possibilidade de emergência de saberes que inter -rompiam uma lógica de identificação social. Isto é,

um nãvsaber, porque se situava na esfera daquiloque não poderia ser pensado. Pensar, portanto, épensar segundo regras já definidas, e o seu contra-ponto, no nivel da sociedade, é justamente a impos-sibilidade de pensar além das regras.

Portanto, ao falarmos em mercado ou em dmsão social do trabalho não estamos nos referindo âquestão de maior ou menor produtividade do tra-balho, mas sim à apropriação mesma dos saberes.

nicos

ser

mncado, mashomens se véem impossibilitados de pensar além deregistros que se impõem à vista de todos como umaordem natural.

Portanto, quando nos sentimos incapazes dc fa-

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150 Nascimento das Fá bricasEdgar Saívadori de Decca1*reconhecimento supõem a imposição de normas evalores próprios de determinados setores da socie-

dade e que vão aparecer dotados de universalidade.Por exemplo, quando pensamos o desenvolvimentoda ordem burguesa no seio da sociedade feudal, logo

imaginamos a instituição do mercado como esferauniversal]zante e universal!/adora de uma nova or-

Deve, assim, existir um mecanismo social no qualaquele que detém um saber se torna imprescindívelpara a imposição do próprio processo de trabalho, jáque aos outros homens está vetada a possibilidadedesse saber,

Evidenlemeitie. a solução para este impasse nãoé reivindicar um direito para todos produzirem ba-las, já que isto seria uma saída cdulcorada para oproblema. Contudo, até nisso há uma dose de refle-xão. Como restituir aos homens saberes que lhesforam retirados e que hoje servem para reger umaordem de domí nio político, técnico, cultural etc.T quelhes é estranha e an tagônica?

Mas não estamos aqui para oferecer respostasacabadas. Preocupemo-nos mais em levantar algu-mas questões que permitam pensar a problemáticada tecnologia para além dos estreitos limites impos-tos pela lógica da eficácia, da produtividade e daneutralidade. Pensamos, isto sim, na apreensão doproblema como uma estratégia de controle da socie-dade imposta por uma determinada classe no mo-mento mesmo do .seu engendramento e afirmação nomundo.

dem que se impõe.Essa imposição de normas e valores por um

determinado setor da sociedade pode ser percebidadecisiva men te quando tomamos a noção de tempo

útil, produzida pela ampliação da esfera do mercadoe que não só disciplina a classe burguesa comobem procura se imrojetar no âmbito da genie traba-lhadora. Essa introjeção de um relógio moral no

de cada homem demarca decisivamente os dis-

lam-

corpopositivos criados por uma nova classe em ascensão,

Àutodisciplina, controle de si mesmo, critica à ocio-

sidade , são exigências imperiosas para o comercianteenvolve na esfera do mercado, "L Lilize cada

dos minutos como a coisa mais preciosa. H cm-os todos no seu dever. ” Pregações desse tipo

que seumpregue-ou aquelas em que o tempo se relaciona com o di-nheiro nos mostram todo o artefaío moral de umaclasse de mercadores que se impõe a si mesma os cri-térios de sua identificação:

Assim, conceber uma classe de capitalistas euma sociedade capaz de se engendrar e sei' engen-drada por ela supõe, de início, registros determi-nados pelos quais se torne possí vel a criação de ummundo. Isto é, a síxdedade, para se tornar reconhe-cida por ela mesma, passa pelo imperativo de insti-tuição de mecanismos capazes tie identifieá-la.

Contudo, tais mecanismos que permitem esse

“ Recordai quão recompensadora é a Redenção

do Tempo... no mercado, ou no comerciar; nalavoura ou em qualquer ocupação remunera-dora; só nos resta cli/.cr que o homem se torna

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17O Nascimento das Fáb riccisEdgar Salvador: de Decca16

dominantes de toda a sociedade através de um persis-tente e minucioso trabalho de íntrojeção de novasnormas e valores , islo é, pela introjeçao definitiva daimagem do tempo como moeda nó mercado de t ra-balho.

rico quando faz bom uso do seu tempo (E, P.Thompson , hempo, Disciplina de Trabajo y

Capitalismo, p , 280).

ou então;

“ Posto que nosso tempo está redu/.ido a umPadrão, e os Metais preciosos do dia acunhadosem horas, os industriosos sabem empregar cadaparcela de tempt) em verdadeiro benefício deSuas diferentes profissões; e aquele que é pró’digo com suas horas é, na realidade, um perdu-lário, Eu me recordo de uma mulher notável,que era muito sensível ao vaior intrínseco dotempo. Seu marido fazia sapatos e era nm exce-lente artesão, mas não se preocupava com a pas-sagem dos minutos. Em vão ela inculcava-lheque Tempo é dinheiro. Ele linha muita destreza( habilidade! para compreende-!a, e isto foi suaru ína. Quando estava na taverna coin seus ocio-sos companheiros, se alguém observava que o re-lógio havia tocado (dado) onze horas, ele dizia, oque é isso para nós, companheiros? Se ela lhemandava um aviso por seu filho de que já pas-sava das doze horas do dia, ele respondia , diz-lhe que fique tranquila, que as horas não podemser rna Ès. Sc havia dado uma hora, etc aindarespondia, peça - lhe que se console, que n ão po-de ser menos" (E, P. Thompson, p. 283),

"Observai as horas de intercâmbio, atendei aosmercados: há épocas especiais que serão favo-ráveis para despachar vossos negócios com faci-lidade e fartura;bens não duram sempre" ( E. V . Thompson ,

p. 281).Contudo, essa autodisciplina de uma classe de

mercadores que afirma o seu lugar no mundo atravésda instituição do mercado aos poucos transforma-seein um arlefato moral que procura prescrever umanova disciplina para a gente trabalhadora. Nessamedida, o destinatário do discurso moralizante dotempo údl deixa de ser exclusivamente o mercador ea crí tica à ociosidade procura atingir todas as esferasda sociedade,

"Preguiça, silenciosa assassina, não maistenha minha mente aprisionadaNão me deixes nenhuma hora maiscontigo , sonoIraidor' 1 (E. P. T hompsonr p . 282),

Hssa mudança de destinatário do discurso mora-li/ante do tempo útil nos dá a medida de como asideias de uma classe dominante tornaram-se as idéias

as épocas de fazer ou receber1 1

Entretanto, a instituição do mercado também

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Edgar Salvadorí de Decca O Nascimento das Fábricas 19lfl

supõe desde o princípio a divisão social do trabalho,

e portanto a afirmação da ciasse burguesa. O mer-cado transforma-se. assim, em uma entidade uni-versal através da qual os homens se reconhecem a sipróprios c se opõem a qualquer dispositivo imagi-nário que coloque a ordem social fora do âmbiLodesse novo universo.

Mas tenhamos cuidado com essas reflexões. Semercado designa o registro do real, pelo qual a

torne-se também o lugar ( imaginário e real ) ondese opera efetivamente a divisão do social . Em nutraspalavras, a produção histórica de uma classe de pro-prietários dos meios de produção, ao mesmo tempoque uma nutra classe se constiuri como assalariada edespossu ída. decorre de um confronto que, no final,faz. aparecer para os sujeitos sociais a imagem de queexiste a imperíosidade da figura do capitalista, comoelemento indispensável para o próprio processo detrabalho.

essesociedade reconhece a si mesma, isto é, torna-se adimensão normativa a partir da qual os homens pen-sam e agem , lião devemos perder de vista que essauniversalização que ocorre no interior do social re -presenta. fundamentalmente, o modo pelo qual asideias de uma classe dominante se tomam ideiasdominantes para toda a sociedade. Por isso podemosfalar de um imaginário do mundo burguês e, desdejá , descartar a ideia de que, por exemplo, os setoresdominados desla mesma sociedade estejam submetidos a uma enorme mentira ou a um engano uni-versal , isto porque a presença histórica das classesnessa sociedade se dá justamente a partir da univer-salização desse imaginário burguês, e. nessa medida,a produção mesma das classes está intimamente li-gada ao modo pelo qual essa sociedade impõe osregistros do imaginário para o seu próprio reconhe-

Vários autores estudaram esse processo de en-gendramento das relações sociais da ordem burgue-sa. Contudo, nem todos pensaram esse processo,justamente, na dimensão de uma luta.

Stephen Marglin, preocupado com a análise daconstituição do sistema de fábrica , como sistema,por excelência, da divisão e do parcelamento do tra-balho, isto á, como locus privilegiado do controlesocial no âmbito da sociedade burguesa, procurapensar, em seu livro Para que Servem OJ Patrões,quais os caminhos desenvolvidos por um confrontoque produz as classes sociais.

.Seu ponto de partida é, jusíamente, o movi -mento de constituição do mercado no interior daordem feudal e a progressiva constituição da figurado negociante como elemento indispensável para ofuncionamento do próprio processo de produção ar-tcsanal . Em outras palavras, Marglin está preocu-pado em acompanhar o desenvolvimento clássico do“ putting-out system'' r primei ta configuração da pro-dução capitalista. Os passos de Marglin são extre-

cimenlo.Portanto, há uma luta ali mesmo onde as classes

produzem. Isto quer dizer que, se pensarmos nagestação da sociedade burguesa, a ordem do mer-cado, dimensão na qual os homens pensam e agem.sc

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O Nascimento das FábricasEdgar Salvadori de Decca2021

mamente importantes, posto que a interposição dafigura do negociante entre o mercado e a produção

artesanal, segundo ele, representou o momento pelo

qual se impôs a essa produção a figura indispensáveldo capitalista , criando uma hierarquia social sem a

qual, desde então, o próprio processo dc trabalhoíica impossibilitado de existir. Isso ocorreu porque osprodutores diretos, embora dominassem o processode trabalho, se viram obrigados a depender da íigura

do negociante para que sua produção se efetivasse,

uma vez que a cies estava vetado o acesso ao mer-

cado, tanto para a obtenção das mat érias-primas

indispensáveis para a produção como para a comer-cialização de seus produtos.

Este autor, enfatizamos mais uma vczr estápreocupado com o estudo das origens do sistema defábricai posto que aí encontram-se substantivados osvá rios mecanismos de poder que tornam possível aocapitalista o controle sobre o operário. Por isso mes-

mo, seu ponto de partida é o “ putting-out system'1 ,

já que, ai , o pape! imprescindível do capitalista éevidente, embora o trabalhador ainda detenha o do-mínio das técnicas de produção e do processo de

trabalho. Problema bastante importante para a nos-

sa discussão, pois estamos diante de uma situaçãohistórica na qual o domínio da sociedade, emboraesteja deiimiLado pelo dispositivo do mercado, não setransformou ainda em domínio técnico. Em outraspalavras, no interior da sociedade do início do séculoXVI, embora seja imprescindível a figura do capita-list , seu domínio se realizou numa direção que não

Ferreiro forjando mend . ( In: Historia General del Tra-ta ajo.)

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23O Nascimento das FábricasEdgar Salvador: de Decca22

Orar IransFerir esse controle da prod tição quo

PSLAVA nas n ãos dos trabalhadores para as mãos docapitalista n ão significou, absolutamente. segundoMarglin , maior eficácia tecnológica nem tampouco

uma maior produtividade, O que se verificou, istosim , foi uma maior hierarquização e disciplina no

trabalho e a supressão de um controle determinado:o controle técnico do processo de trabalho e da pro-dutividade ditado pelos próprios trabalhadores. En-fatizamos, mais uma vez, que essa transferencia,

ainda conforme esse autor, não significou progressotécnico (coisa que muitos afirmam), resumido nostermos de um desenvolvimento tecnológico que teriaposto por 1erra o ''putting - out system" ante o sistemade fábrica . Muito pelo contrário, Marglin nos mostraque nenhuma tecnologia muito avançada determinoua reunião dos trabalhadores no sistema de f ábrica , eaponta na direção de como esse sistema possibilitou adisciplina e a hierarquia na produção, já que o “ put -ting-out system" , baseatido-se na dispersão dos tra -

balhadores domésticos, criava algo muito problemá -tico para o capitalista , isto é, o desvio de parle daprodução, a falsificação dos produtos, a utilização dematérias-primas de qualidade inferior àquelas forne-cidas pelo capitalista etc. etc , ; enfim, vários tipos de“ sabotagem” .

Contudo, quando Marglin íala de sabotagem,

refere-se à perspectiva dos capitalistas, já que doponto de vista dos trabalhadores domésticos do “ put-ting-out system” cia representava uma resistência àperda do próprio controle do processo de trabalho.

se resume no controle tecnológico do processo pro-

dutivo. No “ putting-out system", o capitalista tem o

acesso ao mercado e veta aos trabalhadores diretosesse contato, mas, ainda assimprocesso de produção. Essa divisão social torna im-

periosa a figura cio capitalista no interior do processo

produtivo, e o trabalhador, distante do mercado ,

tanto para a obtenção de matéria- prima como ma-

téria-prima como para a comercialização de seusprodutos, detém, única e exclusivamente , o controledo processo de trabalho. Claro está . nesse caso, que arazão técnica, estando sob o domínio de quem parti -cipa do processo de trabalho, ainda não representa

instrumento através do qual se possa exercer o

esses últimos ditam o

umcontrole social .

Entretanto, seguindo as pistas do autor, vale apena indagar por que esses trabalhadores foram reu-nidos a partir de um determinado momento num

local de trabalho, constituindo aquilo quemesmoFicou conhecido como sistema de fábrica .

Mais uma vez , Marglin sugere algo muito itn-porianle , Para ele, a reunião dos trabalhadores naíábrica não se deveu a nenhum avanço das técnicasde produção. Pelo contrário, o que estava em jogo

justamente um alargamemo do controle e dopoder por parle do capitalista sobre o conjunto detrabalhadores que ainda detinham os conhecimentostécnicos e impunham a dinâmica do processo produ-

tivo. E isso é muito importante , uma vez que do ladodus trabalhadores estava a resposta ao problema daeficácia técnica c da produtividade.

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250 Nascimento das FábricasEdgar Salvador! de Decca24

no nosso marco organizador desses desejos empre-sariais. Por isso mesmo, embora pudessem ser en-contradas máquinas nas primeiras fábricas, muitorara mente essas máquinas chegaram a sc constituirna razão do surgimento das fábricas, Enfim , o sur-gimento do sistema de fábrica parece ter sido ditadopor uma necessidade muito tnais organizativa do quetécnica , e essa nova organização teve como resultado,

para o trabalhador, toda uma nova ordem de disci-plina durante todo o transcorrer do processo de tra-balho.

Er nesse sentido, o sistema de fábrica repre-sentou , justamente, a perda desse cu ul role pelos tra-balhadores domésticos. Na f ábrica, a hierarquia, adisciplina , a vigilância e outras formas de controletornaram-se tangíveis a tal ponto que os trabalha-dores acabaram por se submeter a um regime detrabalho ditado pelas normas dos mestres e contra-mestres, o que representou, em última instancia, o

domí nio do capitalista sobre o processo de trabalho.Um outro autor , David Dickson, em seu livro

Tecnologia Alternativa , resume muito bem as razõesque tornaram imperativa a constituição do sistemade fábrica. Segundo ele, seria possível enumerar pelomenos quatro razões importantes para o estabele-cimento do regime de fábrica , Em primeiro lugar, os

comerciantes precisavam controlar e comercializarIoda a produção dos artesãos, com o intuito de redu-zir ao mínimo as prá ticas de desvio dessa produção.

Além disso, era do interesse desses comerciantes amaximização da produção através do aumento do

de horas de trabalho e do aumento da velo-

Contucio, esse aulor não pá ra ai. Mostra -nos,

inclusive, como a partir da constituição do sistema defábrica vai se impondo, progressivamente, um deter-minado padrão tecnológico , isto c, um padrão que,acima de Ludo, garantia ordem, disciplina e controlede produção por parte do capitalista. Assim, existemdois pontos fundamentais na constituição do sistemade fábrica: em primeiro lugar , ele não decorreu deurn grande avanço tecnológico; em segundo, as tec-nologias empregadas constiluíram-se em elementosde controle e de hierarquia na produção.

Retomemos David Dickson nos seus argumentossobre o surgimento das f ábricas têxteis durante operíodo de Revolução Industrial. Segundo ele, “ a

da industria têxLil baseada no cstabele-

tiumerocidade e do ritmo de trabalho. Um terceiro ponto

muito importante era o controle da inovação tecno-lógica para que cia só pudesse ser aplicada ito sentidode acumulação capitalista; e. por último, a fábricacriava uma organização da produção queimprescindível a figura do empresário capitalista .

Ê indiscutível que só a concentração do traba-

lhador num mesmo local de trabalho poderia pro-porcionar todas essas vantagens para o empresáriocapitalista. Nesse sentido, a f á brica transformou-se

orgatiizaçaocimento dc f ábricas não foi, como deixam suporalguns historiadores, um desenvolvimento direto apartir de uma base técnica mais eficaz, pelo contrá-rio, muitas das máquinas só foram desenvolvidas eintroduzidas depois que os tecelões já haviam sido

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270 Nascimento das 1' âbricasEdgar Salvador: df > Decca26

conceittrados nas fábricas" i Dickson, p. 58) .Ora, se considerarmos o surgimento da fábrica a

partir de uma necessidade mais organizariva do quet écnica e levarmos em conta ainda as pressões sofri-das peio trabalhador inglês para seguir inexoravel-

mente esse caminho, podemos inclusive compreenderalgumas diferenças entre a industrialização na Ingla -

terra e na França, No caso francês, as Fortes lem -branças da Revolução Francesa influ í ram decisiva-mente para que se retardasse o surgimento das fá-bricas, unia vez que a mera concentração de traba-

lhadores recriava as imagens do perigo que essamassa de homens reunidos podia representar para asinstituições de poder da sociedade burguesa.

Entretanto, não foi apenas a indústria têxtil in-glesa que adotou o regime de fábrica muito maiscomo novo marco de organização do trabalho do que

por impériosidade técnica. Para Dickson, Lambemno ramo da cerâmica podemos encontrar exemplos

semelhantes de adoção do regime de fá brica. Já nasegunda metade do século XVIII, Josiah Wedgwood

esi abcleda uma grande fábrica no Mid landes, convencido de que , 4 o único modo possível pelo qual sepodia obrer os modelos e as quantidades de bensnecessá rios,cado, era através de uma divisão do trabalho cuida-

dosa mente calculada, implicando a separação de ro-dos os diferentes processos nos quais sc baseava aprodução tie cerâmica1'. E isto, sem duvida, só podiaser conseguido através da imposiçãode uma f érreadisciplina fabril. Nas f ábricas de Wedgwood foi de-

deví do ao rápido crescimento do roer-

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29Nascimento das FábricasEdgar Salvadori de Decca28

las que tomaram inevit ável a concentração das ativi-dades produtivas sob a forma de fábricas. Dicksonafirma , por exemplo, que “ ura tear holandês quepodia tecer de modo simult âneo vinte e quatro tirasestreitas, e uma complexa estrutura manual para aelaboração do ponto para o tecido de malha para aconfccçlo de calças e meias , ambos instrumentosperfeílamente adaptados à indústria doméstica, fo-ram abandonados rapidamente dando lugar a má-quinas rtiíis amplas, cuja superioridade mecânicaeliminou paulatinamente as formas tradicionais dcprodução manual” (Dickson, p, 60), E acrescenta ,“ os exemplos mats importantes destas inovações me-cânicas foram a estrutura hidráulica de Arkwright(1768b desenhada a fim de utilizar a energia hidráu-lica para a fiação de algodão, o Lear mecânico deCartwright (17S4) , que podia funcionar por meio dcrodas hidráulicas, ou de m áquinas a vapor, e asmáquinas intermitentes de fiar, de Crompton, desen -volvidas em J 779 e capazes de produzir fios fortes efinos apropriados para numerosos upos dc elabo-rações têxteis. A comparativamente ampla produçãodessas máquinas representou uma rápida superaçãoda capacidade das pequenas correntes dc água quefaziam funcionar os moinhos. Em 1875 se realizou oúltimo passo lógico ao se adaptar a máquina devapor de Watt às funções de proporcionar energiapara aquelas outras máquinas. Cada um desses de-senvolvimentos foi crucial no que se refere ao esta-belecimento do sistema fahrii , e contribuiu para aefetivação de uma disciplinarizaçâo geral na força de

senvolvido um sistema de fichas, além da criação deumaamplac detalhada série de instruções relativas ádisciplina do trabalhador dentro da fábrica, estabe-lecendo inclusive a categoria especial dos capatazesresponsáveis pela vigilância do processo de trabalho.

Assim como os tecelões, os ceramistas não esta-vam acostumados com esse novo tipo de disciplina.Segundo um historiador inglês, “ os ceramistas ha-viam gozado dc uma independência durante muitotempo para aceitar amavelmente as regras Wedg-wood procurava implantar, a pontualidade , a pre-sença constante, as horas prefixadas, as escrupulosasregras de cuidado c de limpeza, a diminuição dodesperdício, a proibição de bebidas alcoólicas” . Masapesar de todas as resistências desse trabalhador an-te o regime fabril, Wedgwood , aferrado em seusprincípios, afirmava , após 10 anos de existência desua fábrica, que havia transformado esses "traba -lhadores lentos e bêbados e in úteis” em um "magní-fico conjunto de mãos",

Mas próprias palavras de Wedgwood, a f á bricase materializa como uma nova organização do tra-balho, sem a necessidade de ocorrência de qualquertransformação profunda do aparato tecnológico. En -tretanto, ainda podemos avanç ttr alguns esclareci-mentos a respeito do uso das máquinas durante aRevolução Industrial. Tanto Dickson como Marglinnos fazem supor que as máquinas criadas e usadasdurante os anos cruciais da revolução industrial nãoforam apenas e tio-somente aquelas que substituí-ram o trabalho manual, mas, principalmen te, aque-

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310 Nascimento das FábricasEdgar Salvador: de Decca30

as motivações que levaram os trabalhadores a des-truir o maquinário das instalações fabris, -Se. de umlado, esse movimento de resistência visava invesLircontra as novas relações hierárquicas c autoritáriasintroduzidas no interior do processo de trabalho fa-bril . e nessa medida a destruição das máquinas fun-cionava como mecanismo de pressão contra a novadireção organi/ativa das empresas, de outro lado,

in úmeras atividades de destruição carregaram impli-citamente uma profunda hostilidade contra as novasmáquinas e contra o novo marco organizador daprodução que essa tecnologia impunha. Nesse caso,

"as máquinas não só supunham uma ameaça comrespeito aos postos de trabalho, mas contra todo ummodo dc vida que compreendia a liberdade, a digni-dade- e o sentido de parentesco do artesão" ( Dickson,p. 61), Os destruidores de máquinas da região doLancashire nos anos de J 778 a 1780 ilustram , inclu -sive, a maneira criteriosa de como essa luta era de-sencadeada não contra a mecanização em geral , mascm direção a determinadas m áquinas em particular."Estes destruidores de máquinas distinguiram enlreaqudes tornos de fiar que tinham vinte e quatro oumenos lusos, apropriados para a produção domés-tica , e que não destruíam, e entre aqueles outrosmais amplos, apropriados exclusivamente pum a suautilização em fábricas , que destru íam" ( Dickson.p. 62).

trabalho. De acordo com Ashton, "foi somente sob oimpacto de poderosas forças, atrativas ou repulsivas,que o trabalhador ou artesão inglês se Lransformoucm mau-de-obra fabril" (Dickson, p. 60). Por isso

Revolução Industrial foi vitoriosa , uma vezmesmo aque representou unia mudança crucial não apenasaparato técnico produtivo, mas, principalmente, nasestratégias de administração das empresas íabris,hm outras palavras, o êxito da revolução estava inti-ma mente ligado à afirmação de novas relações dcpoder hierá rquicas e autoritárias.

Alguns historiadores ingleses afirmam mesmoexito alcançado por alguns empresários capi-

no

que o1alistas, em meio a tantos fracassos que rodearam asprimeiras tentativas de instalação das fábricas, de-veu -se muito mais à qualidade de direção dessasempresas do que a uma substancial mudança dcqualidade do trabalho ou das máquinas.

Nesse sentido, a despeito de a historiografia tra -dicional sobre a revolução industrial negligenciar asdimensões tio fracasso das primeiras experiências fa-bris, ai ]ida assim podemos afirmar que a resistênciado trabalhador ante os avanços do sistema de fábricafoi decisiva durante esse período. Afinal, nem todosos homens se renderam diante das forças irresist íveisdo novo mundo fabril , e a experiência do movimentodos quebradores de máquina demonstra uma inequ í -

capacidade dos trabalhadores para desencadearuma luta aberta contra o sislema de fábrica. Essaluta ganhou contornos dramáticos mas, acima dctildo, muito difusos, se procurarmos levar em conLa

voea Apesar de toda a resistência c das vitórias al-cançadas pelos quebradores de máquinas já por voltade 1820, "os avanços tecnológicas adicionais muda -

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330 Ncjscimenfv das- FábricasEdgar Salvador* de Decca32

ram de novo it composição da força de trabalho, e .idhavia crescido uma nova geração de operários, acos-tumada à disciplina e à precisão de f ábrica 1 ' ( DavidLa rides, Lrnbound Frometheus„ p. 317) .

Deveríamos considerar, agora, algumas ques-Em primeiro lugar, tudo leva a crer que aí&es.

fábrica surgiu muito mais por imperativos organiza-cionais capitalistas de trabalho do que por pressõestecnológicas. Segundo, a tecnologia teve pape! deci-sivo onde e quando a sua utilização facilitava e obri-gava a concentração de trabalhadores e portanto aafirmação do sistema de f ábrica. Mas ainda valeriaintroduzir, aqui, uma outra questão, a saber: a ino-vação tecnológica como resposta contundente do em-presário capitalism ante as pressões de trabalhadoresque já estavam acostumados com o regime fabril .

Essa nova utilização da maquinaria não só vi-sava conseguir a doeilizaçào L- a submissão do traba-lhador fabril e, nesse sentido, assegurar a regula-ridade e a continuidade da produção, mas repre-sentou também um forte obstáculo aos movimentosde resistência do trabalhador fabril, já no séculoX Í X . "As máquinas começaram a ser introduzidasnão somente para ajudar a criar um marco dentro doqual se podia impor nina disciplina , mas também,muito frequentemente, sua introdução se deveu auma ação consciente por parte dos patrões para con-trolar as greves e as oulras formas de militânciaindustrial. Inclusive, a ameaça da mecanização, como desemprego implícito que levava consigo, era fre-quentemente utilizada pelos patròes para manler os

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Edgar Salvador! de Decca O Nascimento das Fábricas 3534

dições de se livrar dos fiandeiros indiferentes ou in -quietos, e de converter-se de novo no dono de suafábrica, o que não é uma pequena vantagem", mes-mo que isso tenha acarretado tanto um aumentoconsiderável nos custos de produção cotno uma am-pla organização espacial do processo de trabalho. E omesmo autor iria , ainda, concluir, +Jque csre inventoconfirma a grande doutrina já exposta , isto é. quart -do o capital consegue que a ciência sc coloque a seuserviço, a mão-de-obra refratária aprende a ser sem-pre dócil” ,

O próprio Marx em O Capital , embora saudasseo advento do universo fabril como o limiar de umanova era, não deixa de ficar profunda men te apreen-sivo com relação ã introdução da máquina automá-tica no processo de tabalho. Escrevia ele, “ a má -quina possui , como capitai e através da instrumen-lalidade dos capitalistas, tante consciência como de-sejo, por conseguinte esrá animada pelo desejo dereduzir ão mínimo a resistência oferecida pelas natu-rais mas elásticas limitações dn material humano pormeio do qua! funciona’". Embora Marx coloque essaresistência no n ível do próprio corpo do trabalhador,sabemos muito bem que essas resist ências tiveramregistros bastante diversos, e diziam respeito muitomais a uma negação deliberada desse trabalhador aintrojetar uma nova disciplina , a regularidade crono-metrada, e o automatismo do processo de Irabalbn.Nessa medida, seda um paradoxo pensarmos a intro-dução de máquinas no universo fabril capazes deaumentar o rendimento da produção sem se conse-

haixos salários1' { Dickson , p, 63),

E. P. Thompson, em The Making of ihe EnglishWorking-class , relata-nos a dificuldade dos patrões

conseguir uma paz industrial até a década de1830, em virtude da crescente organização do traba -lhador fabril, e indica inclusive que a ú nica possi -bilidade encontrada pela indústria algodoeira paragarantir uma força de trabalho estável e um planteide trabalhadores hábeis e experimentados foi a ado-ção de novas técnicas de organização de trabalho quesuperaram as antigas e brutais concepções de disci-plina fabril . Nessa medida, a tecnologia transfor-mava-se tanto num elemento tático cotidiano daslutas entre o capitai e o trabalho como fazia parte daestratégia global de ampliação do controle social porparte desse mesmo capital, introjcíando no própriocorpo do trabalhador as marcas da nova disciplina.Em 1835, Andrew Lhe. um apologista do sistema def ábrica, descrevia em sua obra The Philosophy ofManufactures a maneira pela qual os patrões eníren-laram as pressões dos sindicatos militantes, contro-lando os trabalhadores não através da redução desalários, mas sim pela introdução de inovações tecno-lógicas nas fábricas. As inovações introduzidas naind ústria têxtil durante a década de 1830 atingiramprofundamente a organização operária através dadiminuição do número iota! das máquinas de fiar,reduzindo drasticamente a autoridade do trabalha-dor especializado adulto no interior do processo deprodução. Como afirmou Ure, “ ao dobrar o tama-nho de sua máquina de fiar, o proprietário teve con-

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Edgar Salvador? cU Decca 0 Nascimento das Fábricas 37

âmbito da técnica produtiva e, lugo em seguida,transformasse todo o registro dos saberes técnicos.Isto significou, por fim, a criação de um imagináriosocial voltado para o reconhecimento de uma esferadeterminada de produção de saberes técnicos total-mente subtraída e alheia ao controle dos trabalha-dores fabris.

A f ábrica produziu, ao mesmo tempo em queproliferou, um conjunto complexo de instituições ca-pazes de garantir a sua permanência e, o que é maisimportante, capazes de garantir a continuidade daacumulação capitalista, representada agora pelo am-pio domínio, controle e apropriação de saberes téc-nicos, Aqui, o momento em que, para o social, afábrica, ou a indústria mecanizada , transforma-se.como num passe de mágica, na ú nica medida capazde aferir os avanços da sociedade. Assim, esse con-junto de instituições que se desdobrou desde a fá-brica até os organismos científicos , pouco a pouco,

foi transformando a produção dc saberes técnicosnuma esfera especializada dc controle social, e, pro-gressivamente, as questões de eficácia e produtivi-dade tornaram-se regras do jogo da acumulação ca-pitalista. Isto é. eficácia e produtividade foram redu-zidas aos problemas de melhor e mais racional utili-zação da tecnologia pelos trabalhadores fabris.

Nesse sentido, enfatizamos que um determinadosaber técnico se tomou possível a partir da consti-tuição do sistema de fábrica , cujo fundamento esteveligado ao maior controle e disciplina do processo detrabalho. Por isso mesmo, o sistema de f ábrica, como

guir ao mesmo tempo um controle intermitente dotrabalhador, com o intuito de assegurar a utilizaçãodessas mesmas máquinas com o máximo de capaci-dade , Por isso, em 1832, já vaticinava o inglês JamesPhilip Kay, "a máquina animal — frágil no melhordos casos, sujeita a mil fontes de sofrimento — seencontra firmemente encadeada à máquina de ferro,que nào conhece nem o sofrimento nem o cansaço(Asa Briggs, 7'he Age of improvement , p. 61).

Desde as origens do sistema de fábrica, esti-veram em jogo, portanto, relações de poder que,passo a passo, determinaram o próprio limite . daprodução de saberes técnicos. Em outras palavras, aluta transcorrida desde a instalação do “ putting-outsystem” até a consolidação do sistema de fábrica nãofoi outra coisa a nlo ser a instituição do própriosocial e do domínio desse social como apropriação desaberes. Se. do lado do “ putting-out system” , o dis-positivo do mercado fazia com que o saber técnico,detido pelos trabalhadores domésticos, representasse

momento de sua autonomia quanto ao domíniodo processo de trabalho, na fábrica , a divisão social,impondo uma disciplina férrea aos trabalhadores,retirava-lhes saberes — dentre eles o técnico — etransferia-os para o mando do capitalista . A partirdesse momento, o empresário pode desenvolver todauma estratégia para que o processo tecnológico nãofugisse mais de seu controle. Por isso mesmo, naordem social, um conjunto de instituições iria apa-recer para que, principalmente, pudesse ser garan-tida a permanência e o controle do capitalista no

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390 Nascimento das FábricasEdgar Salvador! de Decca3*

de milhares e de dezenas de milhares de pessoas” .

Aqui, poderemos nos deter no que está sendodenominado sistema de fábrica e chamar a atençãopara o faLo de que, comumeiUe, as análises soltadaspara essa quesl ão reduzem a f á brica àquilo que elaLeni tie muis imediato, isto é. d sua materialidade.Esse reducionismo iraz como consequência um viésanalítico em que as variáveis em jogo são apenasaquelas capazes de medir o desenvolvimento das for-ças produtivas ou os progressos técnicos. Qualifi-caçào que. na maioria das vezes, escamoteia o que éfundamenta ): o sistema de fábrica como um universo(imaginário e real) onde sáo produzidas as relaçõessociais e unde se dá uma particular e decisiva apro-priação do saber. Assim , não estão em jogo na fá-brica apenas as questões relativas à acumulação docapital, mas também os mecanismos responsáveispeta concentração do saber e, consequentemente, dedominação social .

Claro está que, na perspective do trabalhadorfabril , essa subtração de saberes (aqui não está emjogo apenas o saber técnico) alcança o limite nomomento em que seu próprio trabalho só ganha

substância quando uma nova ordem sc impõe sobreele através da presença absoluta da tecnologia. Nessemomento, a neutralidade da tecnologia vai aparecercomo natural. posto que eia mesma e a sua presençaescamoteiam, justamente, o fato de qne ela repre-senta não apenas trabalho acumulado ou morto, masa enfática distância que separa o trabalho manual dotrabalho intelectual.

o lugar privilegiado para a produção e efetivação de

saberes técnicos, n ão tent os seus limites na urdemcapitalista. Pensemos, por exemplo, o caso da UniãoSoviética, reconhecida por muitos como alternativahistórica do capitalismo. Lá lambém o sistema defábrica ao se implantar, trouxe consigo todas as se -quelas relacionadas â disciplina, hierarquiatrole do processo de trabalho, e o saber técnico apli-cado esteve muito longe de ser detido pelos próprios

e con-

trabalhadores.Enfim, o sistema de fábrica introduz, determi-

Ihe são inerentes , não importando quenames queesse- sistema se desenvolva num ambiente capitalista

em outro qualquer, pois ele traz. em set] bojo iodasas implicações relacionadas à hierarquia, disciplina

e controle do processo de trabalho, ao mesmo tempo

cm que se d á uma separação crucial:?, produção desaberes técnicos totalmente alheia àquele que parti-cipa do processo de trabalho. A esse respeito lembra-ríamos as palavras dc Lênin anunciando as “ tarefasimediatas do poder dos sovietes” , em 1918: “ Emqualquer revolução socialista quando o proletariado

Iiveí' resolvido o problema da tomada do poder ( ...)

há uma tarefa essencial que passa ineíutavelmenteprimeiro plano: realizar uma estrutura social

ou

paraSLiperior à do capitalismo, ou seja , aumentar a pro-

dutividade do trabalho e ( ...) organizar esse trabalhode modo superior ( ...) A grande indúslria mecânica,

que justamente constitui a fonte e a base material do

socialismo , exige uma unidade de vontade rigorosa ,

absoluta, qne regula o trabalho comum de centenas,

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jEdgar Salvadori de Decca4fl

Agora , temos condições de avaliar o que está por

trás noções do tipo eficácia , produtividade , progresso

etc., quando elas estão reduzidas a parâmetros para

avaliar e diagnosticar a realidade social. Todas essasideias reforçam uma estratégia que perpassa o con-junto do social, produzindo uma permanente apro-

priação do saber que se impõe a todos como lógicainquestionável, dissimulando o fato de que não existeaumento das capacidades técnicas no processo de

trabalho sem que haja concomitantemente um apn>fundamento das relações de poder e de controle sobre

o trabalhador.Enfim, as relações sociais, produzidas a partir

da expansão do mercado capitalista — e o sistema defábrica é seu ''estágio superior” — , tornaram pos-sível o desenvolvimento de uma determinada tecno-logia, isto é, aquela que supõe a priori a expro-priação dos saberes daqueles que participam do pro-cessofábrica que uma dada tecnologia pode se impor, nãoapenas como instrumento para incrementar a produ-tividade do trabalho, mas, muito princípalmente,

como instrumento para controlar , disciplinar c hie-

rarquizar esse processo de trabalho.

UMA MAQUINAE FÁBRICA INCRÍVEL

"CíWíO trato e negócio principal do Brasil e deaçúcar, cm nenhuma outra coisa se ocupamengenhos e habilidades dos homens tonto comoinventar artif ícios com que o façam, e porventura por isso lhe chamam engenhos.

'

de trabalho, Nesse seulido, foi no sistema de Fftd Vicante Salvador { 1627)

Àté agora, discutimos aquilo que classicamentese tornou conhecido como sistema de fábrica. Nessamedida , foi possível acompanhar alguns momentossignificativos que permitiram o surgimento desse sis-tema, a partir da instituição das próprias relações domercado. Tal procedimento leva- nos a induzir que osistema de f ábrica, como produção histórica do mer-cado capitalista, deu-se primeiramente na Europa ,

para somente depois se transferir para as áreas daperiferia desse mesmo mercado. Isto supõe, necessa -

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43O Nascimento das FábricasEdgar Salvadort de Decai42

para o faro de que esse sistema , como universo ima-ginário e real. e como instituição das próprias rela-ções sociais no momento de consolidação do mercadocapitalista, não pode se reduzir ao seu aspecto mate-rial, isto é, à fábrica como uma realidade tangível .Mn: outras palavras, os vários momentos aqui discu-

tidos até agora atestam , apenas, uma forma parti-cular asstsmid a pelo sistema de fábrica no desenvol-vimento histórico do capitalismo.

O que gostaríamos de chamar a atenção é queessa forma que se desenvolveu a partir do L 'putting-out system” não foi a ú nica pela qual sc tornoupossível aparecer o sisterna de fábrica t como produ -ção e engendramento das relações sociais e da divisãodo trabalho no capitalismo.

No momento histórico do desenvolvimento doJ‘putting-out system '1 na Europa , a partir do séculoXVI, nas áreas coloniais a concentração de trabalha'dores destituídos de meios de produção e expropria-dos de qualquer saber técnico apareceu como a orga-nização do trabalho mais eficiente para se levar

cabo os interesses do lucro capitalista , e ah também afigura do empresário se tornou imprescindível para oprocesso de produção. Disciplina, ordem, hierar-quia, foram elementos sempre presentes durante Lo-

do o período em que se desenvolveu a produçãocolonial, e o capitalista, na busca de maiores lucros,

se transformou em elemento central para a organi-zação do trabalho. Não apenas na esfera da circu-lação. onde se produzia a acumulação primitiva docapital, a figura do empresário era indispensável; ali

riame n te, uma relação de exterioridade entre o cen -tro do sistema e sua periferia, a tal ponto que, so-mente depois quo determínadas/ormas de produçãocapii alistas amadureceram no centro, se tornou pos-sível a sua transferência para a periferia. Assim , osistema de fábrica , forma de organização superior doprocesso de produção capitalista , precisou antes(cronologicamente) encontrar o seu ambiente naLuralno centro do sistema e somente depois pode sc esten -der para o resto do mundo.

Por isso mesmo, na análise da historiografia,nada mais corriqueiro do que determinar* génese daindústria e do capitalismo, no Brasil, no final doséculo X Í X, no momento em que o país se reposi-eionou na órbita do mercado mundial, incorporandoo processo de trabalho típico do capitalismo hege-mónico e central. Entretanto, isto nos induz a en-ganos irreparáveis, posto que a existência de relaçõescapitalistas deixa de ser percebida em determinadasformas de organização da produção e do trabalho

produzem uas lais zonas periféricas do sis- aque setema. Nessa medida, nada mais corriqueiro do que

encontrarmos análises nas quais o 44capitalismo bra-sileiro” aparece dotado de qualificativos do tipo atra -sado, lardio, dependente.

Gostaríamos, aqui. de desviar dessas análises,porque, sem levar cm consideração problemas já dis-cutidos por n ós, elas tomam o sistema de fábricacomo invariante, isto é, como puro desdobramentodaquilo que é conhecido como o modelo clássicouiatichesieriano. Ora, chamamos a atenção at é agora

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45O Nascimento das Fábrica*Edgar Salvadori de Deccu44

também onde se instaurava todo um processo detrabalho baseado na escravidão, tal como estava or-ganizado nos engenhos de açúcar, a sua figura aus-tera foi imperiosa.

Maria Sylvia de Carvalho Francor discutindo ocará ter da escravidão na época moderna, nos dáelementos para entendermos a consolidação de umaoutra forma assumida pelo sisrema de fábrica, alémdos limites das metrópoles europeias, isto é, além do“ putting-out system” ;

“ A chave para explicar o ressurgimento da es-cravidão nas empresas açucareiras, está na or-ganização destas ultimas, determinada pela es-trutura dos mercados capitalists, que já envol-viam a interferência nos centros produtores. Ca isso que se deve a configuração do latifúndio,dai grandes unidades de produção, montadaspara a obtenção regular e quantitativamentegrande do produto, mediante trabalhadores nu-merosos, conjugados e controlados por sujeitosque detinham a propriedade privada dos meiosde produção e a quem pertencia, dc direito, oproduto do trabalho. Trata-se de uma situaçãoem que se opera a dissociação radical entre oprodutor direto, os meios de produção e o pro-duto do trabalho. Significava isto que sc deter -minava historicamente a constituição dc umacategoria de homens expropriados dos meios deprodução e postos a serviço de outros” ( MariaSylvia de C. Franco, OrgúnizaçâQ Social da Tra-

id processo de produção de um engenho; u eu?!a é colhida{ ao fundo ã direita ); é triturada em um moinho ( ao fundoa esquerda ); e o caído vai às caldeiras onde se tornara mat

'sespesso (primeiro piano à direita ), ( In; Historia General

del Trabajo.)

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470 Nascimento das FábricasEdgar Salvador! de Decca46

setor açucareiro” (Maria Sylvia dc C, Franco, pp.26-27),

bulho no Período Colonial , p, 31 >,O que importa enfatizar, agora, é que, seja a

forma assumida na Europa pelo sistema de fábrica,seja esta que apareceu com antecedência nas áreascoloniais, essas duas expressões da organização so-cial do trabalho não se desenvolveram, segundo aopinião dos autores aqui citados , a partir de umaexigência tecnológica. Em outras palavras, tanto naInglaterra como nas colónias, a concentração de tra-balhadores despossuídos mim mesmo local dc tra-balho sob o mando do capitalista, que nào só orga-nizava a produção como também a disciplinava, sedeveu a imperativos bastante diversos e muito poucose pode adiantar no que diz respeito às imposiçõestecnológicas. A fábrica, na Europa, e o engenho deaçúcar, nas colónias, não foram resultados imediatosde um desenvolvimento crucial das bases técnicas deprodução, mas, ao contrário, representaram formaspeculiares de organização social do trabalho para aobtenção, sob garantia absoluta, do lucro capitalista ,

e ambas se configuraram pela concentração em ummesmo lugar de trabalho, e em larga escala, de tra-balhadores despossu ídos de meios dc produção e desaber técnico.

Se a autora em seu texto nos dá elementos paraentendermos a formação do sistema dc fábrica nasáreas coloniais, fica ainda sem resposta a questão dautilização do trabalho escravo nesse novo universo dcorganização de produção, Na historiografia em gerala tónica explicativa do escravo recai num argumentode oposições. A viabilidade do escravo é explicadapela total impossibilidade da utilização do homemlivre expropriado europeu , dada a abundância deterras disponíveis na colónia. Lembremos enlretanto.corno afirma Maria Sylvia, Mque o entrosamento en-tre produção colonial e comércio capitalista, que le-

â organização das grandes propriedades fundiá-rias. ocorreu numa época em que jamais poderiamter sido utilizados homens livres, pela muito simplese muito forte razão de que o sujeito expropriado dos

de produção e obrigado a vender sua força detrabalho não existia como categoria social , capaz depreencher as necessidades de mão-de-obra reque-ridas pela produção colonial. Esta não prescindia,como já se viu. de homens expropriados cm grandenúmero, e isto já no século XV, O lento processo queatravés de alguns séculos, mediante contínuas pres-sões económicas, socializou a ciasse operária, apenasse esboçava no ponto da história ocidental em que sedeu a expansão portuguesa. Então, só a forma vio-lentamente aberta e juridicamente garantida de apro-priação da força de trabalho alheia, que é a escra-vidão, poderia prover o contingente requerido pelo

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meios

Outra autora. Alice P. Canabrava, comentandoo trabalho de Antonil , Cultura e Opulência do Bra-zil , em inúmeros momentos registra de forma perti-nente questões relacionadas á disciplina e à divisãodo trabalho, mencionando, inclusive, alguma coisaparecida com um código de trabalho ( As Ordenações

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49Edgar Salvador! de Decca 0 Nascimento das Fábricas4«

Filipinas ).Dá destaque particular, ainda, às técnicasprodutivas que eram capazes de organizar o processode produção, além de sugerir a importância c o papelimprescindível cio mando capitalista para organiza-ção do trabalho nos engenhos de açúcar.

Essas questões, dentre outras — e o livro deÂmonil é uma fonte documental inestimável — , po-dem oferecer uma idéia bem mats clara daquilo queprocuramos definir como o sistema de fábrica , desdeque sc entenda aí, contudo, a maneira pela qual oengenho de açúcar nas colónias representou , inequi-vocamente, uma das expressões mais contundentesdessa peculiar organização do trabalho do mundocapitalista, sem que a mesma possa ser confundidacom a clássica forma manchcsteriana.

Ao nos aproximarmos dos textos de viajantes ede habitantes de colónia que descreveram em porme-nores o universo do engenho, o nosso espanto podeser grande, já que ínadvertidamenle podemos con -fundi-los com qualquer descrição das f ábricas doperíodo de Revolução Industrial. Todo o universoinfernal das "satânicas f ábricas escuras" descritaspor Engels, em I844 r etn sua obra A situação daclasse trabalhadora na Inglaterra, pode encontrarcorrespondência num extraordiná rio sermão do Pa-

dre Vieira, datado de 1633, que anuncia assusta-doramenie a sua visão do etigenho de açúcar:

aos borbotões de cada unia pelas duas bocas uuventas, por onde respiram o incêndio; os et ío-pes, ou ciclopes banhados em simr t ão negroscomo robustos que subminis tram a grossa edura matéria ao fogo, e os forçados com que orevolvem e atiçam; as caldeiras em lagos fer-ventes. com os canhões sempre batidos e reba-tidos, já vomitando espumas, exalando nuvensde vapores, mais de calor que de fumo, e tor-nando-se a chever para outra vez os exalar; oru í do das rodas, das cadeias, da gente toda decor da mesma noite, trabalhando vivamente, egemendo tudo ao mesmo tempo sem momentode tréguas, nem tie descanso; quem vir enfimtoda a máquina e aparato confuso e estrondosodaquela Babilónia , não poderá duvidar , aindaque tenha visto Ethnas e Vesúvios, que é umasemelhança do inferno. ” i

Essa "machina c fabrica mcrivei" nas palavrasde Padre Vieira impressionava a todos aqueles que oconheciam e era capaz de concentrar sob um ritmodo trabalho rigoroso unia grande quantidade de tra-balhadores. inúmeros autores já descreveram as eta-pas do processo de trabalho no engenho de açúcar, cmats recentemente Antonio de Barros Castro em Es-cravos e Senhores nos Engenhos do Brasil ( tese de

doutorado, mimeo.) procurou enumerar as suas prin-cipais caracíerísticas:"E verdadeiramente quem via na escuridade da

noite aquelas fornalhas tremendas perpeLua -mente ardentes; as labaredas que estão saindo — a jornada de trabalho é tão extensa quanto

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51O Nascimento das FábricasEdgar Salvador! de Dacca50

fisicamente possível;— a elaboração do açúcar é um processo múl-tiplo e conplexO, mas a divisão rio trabalhoencontra-se suficientemente avançada, paraque a tarefa de cada um seja simples e repeti-tiva , Contrastando com o trabalho artesanal ,

o serviço do escravo não tem ‘poros’ — mo-

mentos de folga em que o trabalho ê inter-

rompido para mudanças de locai ou de fer-

ramenta;— a matéria- prima percorre diferentes estágios

e os escravos em equipes;— revezadamente ocupam os seus postos detrabalho. Os escravos num certo sentido n ão‘produzem’ , sendo o açúcar produto do en-

genho, uma colossal estrutura técnica queincessantemente traga cana . lenhavos” ( Antonio de Burros Castro , Escravos eSenhores nos Engenhos do Brasil , P - 7),

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Alguns momentos da exposição de Alice P- Câ-nabrava, que tiveram como suporte a valiosa obra doPadre Àntonil , são também bastante sugestivas.

Sobre a disciplina no trabalho, o código disci-plinar e as resistências do trabalhador à organizaçãodo trabalho nos engenhos de açúcar das colonias, aautora não poderia ser mais enfá tica e direta:

* '0 ritmo e a natureza do trabalho nas tarefas doengenho, em especial ãs que diziam respeitoà elaboração da matéria-prima, requeriam es-

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53O Nascimento das FábricasEdgar Salvadors de Deccú57

Contudo, a disciplina requerida e legitimadapor um código não poderia resolver totalmente oproblema da integração do escravo na economia doengenho, uma vest que a coerção só poderia sc dar

execução de tarefas reconhecidamente possí-veis de serem realizadas por escravos consideradosboçais ou ladinos. Era preciso, portanto, que atravésde uma relação de extrema autoridade (as penali-dades previstas no código) o escravo introjetasse umadisciplina de rotina de trabalho na execução de ta -refas de produção c outras complementares à vida doengenho. Em outros termos, era preciso submeter oescravo ao cumprimento dc tarefas consideradas roti -neiras no engenho e mensuráveis quantitativamente,

E, por isso mesmo, a produtividade do trabalho es-cravo eradisciplinar, este sim o elemento capaz de garantirque o sistema não desmoronasse.

Sugere-nos a autora , inclusive, algo bastanteinteressante a esse respeito, ao afirmar que a distri-buição das tarefas de competência de escravosengenho obedecia a uma certa especialização:nível, a divisão de tarefas por sexo; noutro nível , asfases fundamentais do processo de integração e deadaptação do escravo ao trabalho no engenho mar-cam o momento cm que se discriminavam dentre osescravos aqueles considerados apLos para o trabalhono engenho e aqueles capacitados somente para astarefas complementares. H é muito importante frisar

pois neste ponto estabelece-se a peculiaridadedesse sistema. Claro está que essa discriminação en-

trita disciplina. A manutenção desta e a efi-ciência . de modo geral , do regime escravo tor-nava m -se possíveis com a adoção da violência ecoação como padrões aceitos no trato do es-cravo. Aliás, as condições norm ítis do trabalhoescravo exclu íam, de modo geral , outras mo-tivações, exceto o castigo e a possibilidade re-mota de folga, apôs o cumprimento das tarefas.As Ordenações Filipinas sancionavam legal-menLe a mortee a mutilação, em caso de ofensa àpessoa do senhor, c o tormento por açoite paraobter a declaração do domicílio dos escravosfugidos, 0 regimento elaborado por João Fer-nandes Vieira em 1663, com respeito ao castigodo escravo, estipulava que 'depois de bem açoi-tado. o mandará pisar com navalha ou faea quecorte bem, e dar-lhe-á com sal , sumo de limão, eurina e o meterá alguns dias na corrente, e sen-do fêmea, será açoitada à guisa de baiona den-tro de casa com o mesmo açoiLe1, com a proi-bição de lhes bater com pau , pedra ou tijolo.

É claro que as penalidades devem ser vistas noenquadramento próprio da época, quanto à sen -sibilidade e o conceito de escravo, como tambémem seus condicionamentos quanto á personali-dade do senhor. Teria havido senhores maisbrandos ou mais cruéis, e que se traduzia nascondições morais e materiais da existência doescravo'1 ( Alice P. Canabrava, ' João Antonio ndreoni" in Cultura e Opulência do Brasil,André João Antonil , p. 57) .

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55S A 0 Nascimento das FábricasEdgar Salvadcri de Decca

avaliado nos seguintes relatos de Antoni], reorde-nadas por Alice Canabrava:

"No topo da hierarquia do trabalho qualificadosituava o mestre de açúcar: pelos seus conhe-

cimentos sobre o preparo do produto íazia jus àmais alta remuneração, 120S000 por safra, oque expressa o julgamento social de sua habili-tação específica. De tal modo se impunha a suacapacidade técnica que os salários vigentes paraos outros postos de chefia não traduzem umahierarquia gradual dc remuneração , caindo seusníveis imediatamente a 50% para o Feitor-more o carapina da moenda, e mais baixo aindapara os outros. Assim acontecia porque, no es-tágio de desenvolvimento da técnica de produ -ção do açúcar, o mestre, sendo um empírico,deveria possuir altas qualidades de inteligência,observação, dedicação e experiência, esta adap-tada às circunstâncias locais, como acentua An-dreoni. Cabia ao feitor uma área ampla de ati-vidade. qual seja , ‘governar a gente c reparti-la

tempo, como é bem, para o serviço'. Seriao que poderíamos chamar , em linguagem dehoje, o administrador do pessoal. Sua autori-dade c claramente definida, devendo ele con-formar-se estritamente com os padrões prescri-tos de ação, ou seja, contentar-se em ser 'os bra-ços de que se vale o senhor de engenho', e nãoarvorar-se em cabeça. O cotejo do texto de Àn-dreoni com o regimento dadu por João Fcrnan-

ire os escravos estabelecia um certo tipo de escala devalorização capaz de aparecer como mecanismo efi-caz para garantir a disciplina no engenho.

Como afirma Antonio B, Castro,adquiridos pelos senhores — 65 a 70% dos cativosteriam por destino os engenhos — serão introduzidosna engrenagem do engenho através das tarefas maissimples. Seu aprendizado que o levará de "boçal1 a"ladino1, é também um processo de valorização, co-mo atesta Antonil , para quem um escravo adaptadoe treinado 'vale por quatro boçais’. Somente entre os'ladinos' serão escolhidos os caldeireiros, tacheiros,carapinas, calafates, barqueiros e marinheiros” I An -tonio B. Castro, p, 17) ,

A tarefa disciplinadora, como se sabe, cabia aosfeitores e mestres de açúcar, e só a eles, na medidacm que era de sua inteira responsabilidade extrair omaior rendimento possível cio trabalho tio escravo:“ Deveria se descobrir seus limites dc resistência, es-tabelecer normas para o reforço de alimentação nastarefas que o exigiam, e bem assim , no trato dosenfermos" ( Antonio B. Castro, p, 17).

A hierarquia do trabalho começava ai, entre osmestres de açúcar e feitores, isto é. começava e ter -minava no trabalho qualificado, remunerado e téc-nico do engenho. A í , a especialização das tarefasalém de se colocar como imprescindível era condiçãopara se garantir a disciplina no trabalho, como Lam -

bem, do ponto de vista estritamente técnico, fazerfrente ao crescimento da produção e do nú mero detrabalhadores nela envolvidos. Isto pode ser bem

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57O Nascimento das Fábricas56 Edgar Salvador! de Decca

pois trabalhava por tarefa , isto é, por quanlidadeestipulada. Se ultrapassasse esse limite, pelo desen-volvimento de uma nova técnica, esse novo limitepassava a ser incorporado a seu trabalho, sem quehouvesse algum 1ipo de compensação. No mínimo,

ficava disponível para a execução de outras tarefasnão qualificadas no engenho de açúcar. Pelo lado dosenhor de engenho, a solução para os necessáriosaumentos da produção de açúcar era encontrada de-forma explicita , jLá que se tratava de trabalhadoresescravos não-qualificados. Isto é, antes que houvesseo bloqueio ao tráfico negreiro, a partir de meadosdo século XIX , imposto pela Inglaterra, os aumentosde produção se davam pelo aumento das horas dedi-cadas ao trabalho, quase sempre até o limite daexaustão física , bem como pela introdução de mais

processo de trabalho. Quanto a isso, aautora Alice Canabrava não poderia ser mais explí-cita — para ela, também* a questão central passavapelas técnicas de minar as

des Vieira em 1663 mostra com nitidez, um de-senvolvimento no sentido da especialização daschefias, ou pelo menos, de que modo se resolviao problema em engenhos menores. Em Culturae Opulência , as funções do feitor-mor se pren -dem de modo especial ã distribuição dos escra -vos pelas tarefas do engenho e às que mantémcom o senhor, como preposto de seus interesses,donde derivavam , naturalmente, encargos im-pl ícitos quanto à conservação do património. Noregimento do século XVII , encontram -se afetasao feitor -mor tarefas mass amplas , que inclu íamsupervisão técnica, atribuídas ao purgador e aocaxeiro, como chefes de serviço, no texto de An-dreoni. A especialização e a multiplicidade dechefias mostra o aperfeiçoamento das tarefas desupervisão, imposto pelo desenvolvimento quan-titativo da produção e o maior numero de tra-balhadores nela engajados" ( Alice P. Canabra-va, pp. 62-63),

escravos no

resistências ao trabalho:

“ Não se tratava apenas da elaboração de umatécnica de controle da rentabilidade do trabalho

adaptada à sua mentalidade rudirnen -Nesse sentido, diante de uma estrutura cie par-

celamento do trabalho extremamente rígida e de es-cassa mobilidade social, já que ao escravo estavadeslinada a realização de trabalho nâo* qualificado,c diante de sua utilização de forma extensiva (erapropriedade do senhor), não se colocava de maneiradecisiva para o processo de Lrabalho no engenho anecessidade de se desenvolver técnicas capazes deelevar a produtividade do trabalho escravo. Pelo ladodo escravo, nenhuma destreza poderia lhe ser ú til,

escravo,tar, mas visava também vencer sua resistênciapassiva com respeito às tarefas impostas’" (AliceP.Canabrava, p. 58).

Essas resistências (o assassinio do senhor, asfugas para os mocambos ou matos, o suicídio, a

, embriaguez-, o aborto, as práticas fetichistas. bem

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5958 O Nascimento das FábricasEclgur Saivadori de Decca

ções fosse bastante eficaz para proceder à hierar-quização (espiritual) de papéis do trabalho es-cravo nos engenhos de açúcar, ele foi insuficientepara fazer frente ãs resistências, já que a existênciade um código disciplinar não deixa margem à d ú-vida.

Quanto às técnicas, como resposLa a mais ade-quada possível para os objetivos da organização capi-talista do trabalho nos engenhos, estas aparecemdescritas de maneira minuciosa no decorrer dc toda aobra de Aníonil. Sena ociosa uma descrição porme-norizada das técnicas e dos maquinados utilizadospara a produção de açúcar nos engenhos. Gosta-ríamos, apenas, de chamar a atenção para o fato de

técnicas não eram incompatíveis com a

como as enfermidades de natureza psíquica — des-consolo c melancolia — etc.), contrárias ao processode ajustamento ao trabalho servil no engenho, econ-travam , como afirma esta autora, mecanismos decompensação e amparo aos desagravos sofridos nointerior da economia do engenho na libertação espi-ritual. Libertação esta que, utilizando-se de todoconjunto de instituições (saeralizadas ou não), criavaao mesmo tempo a hierarquização de papéis que aexecução do trabalho não-qualificado não poderiaproporcionar no processo produtivo, O seguinte re-lato. nesse particular, é bastante esclarecedor:

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“ Hntre os aspectos positivos, como ações voluntárias do escravo, estava a sua integraçãoirmandades. Corresponderia , segundo René Ri-beiro, ao seu desejo natural de encontrarlugar na estrutura social, independente dos la-ços de escravidão, mas sob o amparo da Igreja,e assegurar para si, ao morrer, uma sepulturacondigna. Do mesmo modo, os reinados doCongo mencionados por Andreoni, entrosadoscom as'irmandades dos pretos, com seu sistemapróprio de papéis hierarquizados, conferiamstatus com a organização de suas cortes e reis. Aalusão do jesuíta aos ‘feitiços’ e às ‘artes diabó-licas’ mostra a continuidade da prática dos ritosfeíichistas das suas religiões cm suas pátrias deorigem” (Alice P, Canabrava, pp. 59-60) ,

Contudo, ainda que esse conjunto de institui-

que essasorganização do trabalho no sistema de fábrica repre-sentado pelo engenho, e aí talvez fique patente amaneira pela qual a tecnologia atendeu de formaexemplar aos imperativos da organização disciplinare hierárquica do trabalho.

É preciso, porém, que se esclareça nesse pontotrabalho servil, aqui identificado como tra-

nas

um

que se obalho não-qualificado, rotineiro, era pouco propensoa absorver novas técnicas capazes de elevar a suaprodutividade, não se pode concluir que entre este e

o progresso técnico houvesse uma terrível incompa-tibilidade, baseada exclusivamente na incapacidadeIntelectual do escravo para acompanhar os avançostecnológicos requeridos pelo sistenta de fábrica. Con-vém lembrar, recorrendo mais uma vez a Maria Syl-via de C. Franco, que os vínculos entre Metrópole e

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610 Nascimento das FábricaEdgar Salvador! de ZftCCQ60

Colónia ( produção colonial c comércio capita!isla) ,levando à organização das grandes propriedades fun-diárias, SET deram pcia.utilização do trabalho escravo,já que n ã o existia como categoria social o traba-lhador despossu ído e assalariado em quantidade su-ficiente para atender às necessidades requeridas pelaprodução colonial * e não pelas poucas exigênciasiecimlógicas rios engenhos.

O qne vale notar, isto sim, é que o çugçnbo dcaçúcar apresentava uma forma peculiar de organi -zação social do trabalho* O Lrabalho assalariado,considerado Lrabalho qualificado, técnico e hierar-quizado; o trabalho escravo, não-qualificado* roti-neiro, meramente quanlitaiivo c não-hierarquizado*

No primeiro, a disciplina se impôs muito mais emfunção dos quadros dc especialização no trabalho, apartir da tecnologia; no segundo, a disciplina sd pôdeser garantida peia aplicação de um método de ira-balHo bastante severo e autoritá rio, capaz de reduziras várias formas de resistência ao trabalho servil .

Feitas essas considerações, citemos aqui apenastrês momentos do trabalho de Alice P. Canabrava ,onde o progresso técnico aparece como resposta aosimperar]vos da organização disciplinar e hierárquicado trabalho* ao mesmo tempo em que promove aae u m uJação de capi t al.

O primeiro refere-se íL casa da moenda. E-Istasegundo a autora, embora de construção rudimen-tar * onde predominava a madeira como material deconstrução das máquinas simples, representou umimportante estágio da história do desenvolvimento

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630 .Víucjfíí efíJirt das FábricasEdgar Salvation de Deccti62

qualquer forma, é bom frisar que os avanços tecno-lógicos obedeciam, ao lado dos imperativos da disci-plina e da hierarquia no trabalho, às necessidades daacumulação de capital, eF por isso mesmo, os aper-feiçoamentos adotados nas Antilhas, por exemplo,não deveriam encontrar, necessariamente, grandecorrespondência 1105 engenhos dc açúcar no Brasil;

das técnicas. Quanto à metalurgia, esta encontravaaí pouca utilização, e limitava-se a algumas peças esuperfícies submetidas a grande desgaste. Assim, aroda dc dentes, que era conhecida há muito tempo,

e o engatamento das rodas de dentes, em uso hávários séculos, eram de madeira, o que teria valo-rizado sobremaneira o trabalho de carpintaria, maisconhecido como carapina da moenda.

“ Nas duas grandes á reas de produção açuca-reira da América , nas Antilhas e no Brasil, amoenda dc três tambores conserva os mesmoselementos Fundamentais. Todavia, nas ilhas,desde o fim dc século XVII , a redução dos trêstambores a um tipo ú nico com as mesmas di-mensões, indica a linha dos aperfeiçoamentosnão adotados no Brasil, ma is condizentes como menor custn dc feitura e facilidade de subs-tituição do que, propriamente, de melhoria dcrendimento na produção1’ (Alice P, Canabrava,P- 70).

“ Na casa da moenda, participamos de um inun-do da técnica, ainda em seu esplendor, masfadado a desaparecer com o desenvolvimento dametalurgia que começava a avançar no séculoXVII. Por esse motivo, o carpinteiro, ou melhor ,

o carapina da moenda, indispensável durantetoda a saíra, deveria ser um assalariado alta-mente qualificado. Aliás, sua remuneração ele-vada, de S500 por dia dc trabalho (cerca deÓQÍOOO por safra ) , equivalente à de um feitor*

mor de engenho, é expressiva da importânciaque as condições sociais da época lhe confe-riam ” (Alice P. Canabrava, p, 68h Contudo, das técnicas empregadas nos enge-

nhos, talvez a mais importante tenha sido a utili -

zação da água como forço motriz , não só porqueexigia aparelhamento dc custo elevado e restrito aosinvestimentos de maior vulto e com maiores possi-bilidades de acumular capital, como também pelasalterações no processo de trabalho proporcionadaspela sua introdução — maior necessidade de mão-de-obra especializada, maiores dimensões do engenhopara uma utilização mais raciona! da energia pmdu-

Outro momento importante no desenvolvimentodas técuicas nos engenhos de açúcar foi a introduçãono Brasil , entre lóOS a 1612, da moenda de trêstambores, pelos espanhóis vindos do Peru. Ao queparece, pela sua maior eficiência, esta moenda aca-bou substituindo as moendas de dois tambores hori -zontais, descritas como sendo as típicas do sistema, edifundidas na América a partir das Antilhas. De

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650 Nascimento das 1'âkricua64 Edgar Salvador! de Becca

razão de ter moenda com rodaapenas emd’água , mas 'por terem todas as partes de

todas as oficinas, perfei-zida, aumento do n ú mero de escravos em virtude dasnecessidades de ampliar a produção, o que. prova-velmente. deve ter provocado também o parcela-mento tlas tarefas consideradas qualificadas e dasnão-qualificadas etc. Sem dúvida, o seu emprego,onde quer que tenha se dado, representou um mo-mento importante para a acumulação capitalista. Àsconsiderações da autora a esse respeito são bastanteinteressantes:

que se compõem etas, cheias de grande número de escravos ,

muitos canaviais próprios e outros obri-coingados à moenda: e principalmente por terem arealeza de moerem com água, à diferença de

com cavalos e bois e sãooutros, que moemmenos providos e aparelhados: ou, pelo menos,

menor perfeição e largueza, das oficinascomnecessárias e com pouco n úmero de escravos,para fazerem, como dizer, o engenho moente e

(Alice P. Canabrava, pp. óíí-69}."O fato de ter penetrado no Brasil com as capi-tanias. indica o índice elevado dos investimen-tos que a economia açucareira podia capear. Poresse motivo, o engenho d 'água se tornou umsímbolo da importância social e ecónoinica dosenhor de engenho, consagrada na designaçãodc engenho real. Sua difusão teria sido limitada,por certo, pelo vulto dos capitais requeridos.Mas não seria este o ú nico fator que explicaria ouso mais amplo de moendas acionadas pela for-ça animal. Esta devia-se ajustar também a con-dições económicas e sociais predominantes naépoca colonial, tais como a dificuldade paraangariar, formar ou manter a mão-de-obra es-pecializada na feitoria do aparelhamento e desua manutenção. Ào engenho d’agua se condi -cionava a grande produção, estimada em dobro,em cotejo com as de moenda a força animal,implicando, portanto, em quaniidade corres-pondente do apareihamcnto destinado ao trata-mento do caldo. Deste modo, são reais não

IScorrente

Quanto ao papel do senhor de engenho e a impe-riosidade do mando capitalista para a organizaçãodo trabalho na colónia, vamos nos limitar a registrar

dois momentos importantes colhidos nesteapenasmesmo trabalho, a partir dos relatos dc Padre Anto-nil, mesmo porque dispensam maiores comentários:

O senhor de engenho é vislumbrado, antes detudo, em sua opulência, em seu prestígio e em suadignidade. É um homem de cabedal e governo1’,ou seja, criatura provida de fartos recursostécnicos e financeiros e com capacidade paraadministrar. São unanimes todos os autores co-loniais na afirmação de que somente com gran-des capitais se podia montar e tocar um engenhode açúcar. 'Além da pecúnia, o senhor de enge-nho deveria ostentar aquelas qualidades que ex-

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Edgar Salvador! de Decca66

pres&am ‘capacidade, modo e agenda (.,.) naboa disposição e governo de tudo', ou seja, acapacidade para administrar, Todavia , possuircabedal subentende ainda singulares dotes inte-lectuais e morais, potencialidades que tambéma experiência, a educação e o estudo poderiamconferir. Deste modo, compreendia-se o homemde empresa sob outras dimensões, como ex-poente de uma fidalguia de inteligência e de é ti-ca, que completava o homem dc ação11 ( Alice P.Caitabrava, p. 43),

:

A FÁBRICA VITORIOSA

Ou ainda , "A nova indústria fez a poder crescer a umgrau notável. "

” No conjunto da organização do trabalho, o de-sempenho do senhor de engenho est á exclusi-va men te ligado àquelas ações que dào cunhopessoal às relações com os lavradores o que ten-dem a afirmar o seu prestigio em face delesou à defesa do património, o que também ex-pressava prest ígio e autoridade, pelas articu -lações com os organismos de cúpula que se fa-ziam necessárias. Dc qualquer forma, em seudesempenho, o senhor de engenho agia comorepresentante do poder e do prestígio de todoo sistema de produção” (Alice P, Canabrava ,p , 63).

J. L. e Barbara Hammond (191 ó

Agora temos condições de fazer urns perguntacrucial: por que uma determinada torr a de expres-são do sistema de f ábrica — aquela que se deu apartir da concentração de trabalhadores despossuídos e assalariados — se tornou vitoriosa ante a quais-quer outras?

Não há como deixar de reconhecer que a res-posta estaria, justamente, no desenvolvimento acele -rado das bases técnicas que organizaram o processocie trabalho. Contudo, mais uma vez, enfatizamosque tais bases técnicas se tornaram importantes mui-to mais em função da_s necessidades dc disciplina econtrole do trabalho do que pela sua eficácia. Isto é.

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69O Nascimento das FábricasEdgar Sahadori de Decca6A

dentro da própria realidade; do confronto entre ocapiLai e o trabalho, a tecnologia, embora apareçacomo índice de aumento de produtividade e comobase material da acumulação capitalista , ela res-ponde também aos imperativos dc disciplinar, con-trolar hierarquicamente e não permitir ao trabalha-dor o controle do próprio processo de trabalho.

Nesse sentido, o desenvolvimento das bases téc-do ponto de vista do empresário capitalista ,nicas,

representou uma estralégia no interior de um con-fronto com os trabalhadores livres , despossuídos eassalariados, que resistiram permanenteniente à acei-tação da natureza própria do sistema de fábrica . Porisso mesmo essa estratégia, na qual a tecnologia re-presentou um dos instrumentos mais eficazes de con-trole social, n ão se reduziu evidentemente aos li-mites da fábrica. O sistema de fábrica t como umuniverso de relações sociais, estendeu-se pelas in ú -meras instituições (públicas e privadas) que não sópermitiram e legitimaram o controle e a disciplinafabril, como também abriram caminho para que seproduzisse uma esfera de conhecimentos tecnológi-cos onde se opera a radical apropriação do saber.

Nessa expressão manchesteriana do sistema defábricat o capital encontrou definitivamente as basespara a sua expansão e domínio. No âmbito dasrelações sociais do capitalismo, a tecnologia, a partirda vitória do sistema de fábrica , além de ter repre-sentado unia estratégia de controle do capitalismosobre a produção, tornou-se, pelas próprias determi-nações do mercado, o veículo peio qual o capital

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71O Nascimento das FábricasEdgar Salvador! de Dec.ca71)

reza dessa transformarão, já tji-ic boa parle da biblio-grafia acaba reduzindo o problema à discussões dolipo: formas arcaicas e pré-capitalistas de produçãoversus produção capitalista. Muito pelo contrário, oque esteve em jogo nessa transformação não foi apassagem de Lima organização social do trabalhopré-capitalista para uma organização capitalista dotrabalho, mas sim o modo pelo qual no interior daorganização social capitalista do trabalho, já no sé-culo XIX . determinadas formas sc impuseram sobrenutras

encontrou possibilidades para a sua produção. As-sim , no interior do próprio mercado capitalista, atecnologia iria aparecer como elemento determinan-te. uma vez que, constituído esse mercado, a suaexpansão passou a se dar a partir da produção e doconsumo crescente de bens de produção ( bens deconsumo produtivo). Esse é o momento no qual aspróprias categorias e instâncias do capital aparecemautonomizadas, e a técnica, agora apropriada c de-senvolvida pelo capital , passa a determinar de potitaa ponla a lógica do próprio mercado, impondo umaprogressiva e crescente divisão social do trabalho.

Por isso mesmo, ao falarmos de tecnologia, tor-ita-se dif ícil isolá -la num ponto em que torne possívelavaliá-la sob as noções de eficácia e produtividade,uma vez que, na lógica mesmo do mercado capitalis-ta , ela cumpre o seu papel determinante naquilo quese refere à acumulação de capital. Assim, o sistema defábrica manchesterianot a nosso ver, tornou -se vito-rioso porque nele desenvolveram-se as condiçõespara que a tecnologia pudesse se transformar numelemento prioritário da acumulação capitalista. Moâmbito desse mesmo mercado capitalista, portanto,

uma determinada expressão do sistema de fábrica ,

inevitavelmente, acabou se impondo sobre outrasformas de organização social do trabalho, posto queessa expressão manchestoriana respondia de maneiraestratégica às próprias necessidades da acumulaçãodo capital. Nessa medida, o engenho deu lugar àsusinas de açúcar , para usarmos uma expressão cor-rente que nem sempre consegue apreender a nalu-

a usina de açúcar superou o engenho .Nessa medida , vale ressaltar que em plena se-

gunda metade do século X Í X , o aparecimento tam-bém da indústria têxtil no Brasil respondeu a exigên -cias muito precisas de organização social do trabalho

mundo capitalista, E!a representou , aqui no Bra-sil, uma transformação radical na própria estratégiade organização do trabalho levada a cabo pelo man-do capitalista, e superou, a panir de suas bases técni-cas. todas as outras formas de organização do traba-lhocuiaobtençao do lucro estivesse garantida por me-canismos menos eficientes de controle c disciplina.

O cortejo tecnológico que acompanhou mun-dialmente o seior manufatureiro, no século X E X ,

exclu ía do mercado capitalista n ão apenas as peque-iniciativas individuais, como também, tornando

imprescindível a figura do capitalista — c aí estavaem jogo o papel do grande capital — , organizava oprocesso dc trabalho sob a égide de uma disciplinaimposta pelo próprio funcionamento do aparato tec-nológico.

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730 Nascimento das Fá bricas

in Fast and Present , n? 38 (dezembro, 1967), que

tem desde 1975 , uma. tradução em espanhol, no livrodo mesmo autor Tradición. Revuelta y Consciência

dc Close , Barcelona. Gríjalbo, 1967. Começando por

analisar o aparecimento histórico dos relógios, o au-tor nos remete para o problema da origem da noçãode tempo útil, próprio da sociedade burguesa , pro-pondo-nos, que o surgimento das fábricas esteve li-gado a um aprofundamento maior do controle do( empo de trabalho por parle dos patróes. e à intro-dução de uma rígida disciplina no processo de irabailio. Conclui , enfim, que tais estratégias visaram

essencialmen te ida pLar o homem pobre às novasnecessidades do mundo burguês, Para Thompson, a

fábrica antes de ser um acontecimento tecnológico é

a expressão vitoriosa das estratégias patronais naluta contra os trabalhadores pelo controle dn tempo

do processo de trabalho na sociedade burguesa.Nessa perspective , Thompson discute também aquestão técnica, como um momento entre outros de

uma luta dc classes transcorrida no interior da socie -dade, e a mat] uma automática, aparece em seu ar-tigo, como a materialização completa do controle do

tempo pelo empresário capitalista. Enfim , o lexto emquestão nos alerta para o equívoco de se tentarpensar odemo, dissociado da noção de tempo útil, elaboradona instituição da sociedade burguesa.

Uma outra referência decisiva para o aprofun-

damento das questóes sugeridas nesse livro é o artigode Maria Sylvia de Carvalho Franco — “ Organi-

INDICAÇÕES PARA LEITURA

Para finalizar esse trabalho gostaríamos de dei -xar indicadas as suas principais referências. Emboraexista uma vasta bibliografia sobre o surgimento das

fábricas, chamamos a atenção do leitor para as obrasque dirt la ou indiretamente serviram de suporte para

esse estudo.Levando-se em conta os objetivos da coleção

'TuJo é História", procuraremos indicar os autorestinham desenvolvido estudos de maior densidade

teórica, no que se refere à problemática por nósabordada, isto e, a organização do processo de tra-balho no capitalismo. Começaríamos, portanto, indi-cando dois trabaihos de grande alcance historiogra-f íco, que por sinal , n ão ganharam ainda a devidarepercussão.

Prime?ramente, o artigo de E . P . 1 hompson —"Time, Work discipline and Industrial Capitalism"

que

acontecimento tecnológico do mundo mo-

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75O Nascimento das FábricasEdgar Salvador! de Decca74

Inglaterra. Chamamos a atenção. particularmente,

para a segunda parte do livro onde Thompson criticaminuciosamente os autores que definiram a classeoperária, a partir de um marco tecnológico, isto é, apartir do momento da Revolução Industria] Inglesa.Procurando superar uma dada concepção marxistaque reduzo conceito de classe a Lima mera relação deprodução, o amor nos desvenda o imensamente ricouniverso de cultura da Inglaterra do século XVIII enos aponta os in ú meros caminhos percorridos pelotrabalhador pobre em sua consLituição como classesocial ,

zação social do trabalho no período colonial'', inDiscurso n? 8 (maio de 1978), Preocupada com oproblema da instituição do trabalho na sociedadeburguesa, a autora critica as análises h is toriográficasque estabelecem uma relação de exterioridade entrea colónia e as metrópoles europeias, na suposição dcque sc contrapõem ou se complementam duas tem-poralidades diferentes. Através de uma análise teó-rica minuciosa das categorias centrais do pensa-mento burguês — a propriedade c o trabalho, aautora no® remete a uma reflexão decisiva, ou seja, adefinição da figura do trabalho e do trabalhador naorganização social , económica e política do mundoburguês. Em seu artigo o trabalho escravo da colóniaao invés de receber qualificativos que o distanciamda noção de trabalho produzida pelo pensamentoburguês, aparece como uma das expressões histó-ricas da efetivação das relações sociais no capita-lismo. As indicações teóricas da autora sobre a orga-nização súcia! do trabalho na colónia são funda-mentais para o estudo do processo de trabalho dosengenhos de açúcar, que têm como fundamento aescravização do negro africano.

Ainda como referências importantes situamos olivro de E, P, Thompson The Making of ike Englishworking --class, Londres, Penguin Books, 1968tese de doutoramento de Antonio Barros de CastroEscravos e senhores nos engenhos do Brasil , UNi-CAMP, 1976 [mimeo.). A obra de E- P. Thompsonjã tem uma tradução em espanhol e é indispensávelpara o estudo do surgimento do sistema de fábrica na

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A presença da classe trabalhadora na vida coti-diana das grandes cidades europeias do século XTX.foi recentemente estudada no livro de Maria StellaM. Bresciani — Londres e Paris no século XIX — Oespetáculo dapohreza, São Paulo, Brasiliense, 1982.A autora nos oferece subsidies para entender a pro-jeção da figura do trabalhador para além dos murosda f ábrica. Esse personagem que circula nas ruas dasgrandes cidades coberto com os sinais da miséria,

questiona a utopia liberal que acreditava >er o sis-tema de fábrica o ambiente ideal para a solução doproblema da pobreza e da moralização do "homempobre” .

Ao lado do artigo de Maria Sylvia, a primeiraparte da rese de A . B, Castro nos dá inúmeras pistaspara o esludo do processo de trabalho no engenho.Analisando em pormenores os relatos de viajantesdos séculos XVI e XVII, dentre eles Fernando Car-dim. Magalhães Gandavo, André João Antonil, o

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1978 e J. L. C Barbara Hammond — The villagelabourer, Londres. Longman, 1978. Os dois últimoslivros são reedições, já que apareceram em pú blicopeia primeira vez., em i 917 e 1911, respeclivamente,

Chamamos, por fim. a atenção para uma ques-tão bibliográfica muito importante. Os trabalhos ci-tados dc L, P. Thompson. Stepbin Ma&Jin, DavidDickson c Paul Mântoux, são referencias obriga-t órias para aqueles que pretendem aprofundar osestudos sobre as resistências e as kitas dos iraba-.1Jhadores pobres diante da imposição do sistema def ábrica. Organ i/.ar os trabalhadores nos marcos doprocesso de produção fabril do mundo burguês, snba tutela e o mando do empresário capitalista , signi-ficou uma.fula, quo nern sempre foi avaliada nas suasreais prOporçbes pela historiografia inglesa de cunhomarxista.

autor nos apresenta também o engenho como umaorganização social do trabalho próprio do mundoburguês.

Além dessas referências, são igualmen te rele-vantes para o estudo da formação do sistema def á brica inglês, os artigos de Siepbin Magiin — "Paraque servem 05 Palróes? (origens e funções das ta-rifas}" de coletânea organizada por André Gnrz. —Divisão Social do Trabalho e Modo de ProduçãoCapitalista , Lisboa , F-scorpião, 1976; e 0 32 capítulodo livro de David Dickson — Tecnologia Alternativa.ltlumes Edtciones, 1978. Embora partindo de refe-rendas teóricas diferentes, ambos os autores criticamas análises que definem o sistema de f ábrica como

acontecimen to tecnológico c estudam as estra-tégias de controle e de disciplina desenvolvidas pelospalróes para quebrar as resistências dos trabatda-dores independentes ao trabalho coletivo das of í -

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cinas.Na linha de obras consideradas clássicas, igual -

mente importantes : K. Marx — EI Capital , Mé-xico, Fondn de Cultura, 1978, principalmeiue oscapítulos: "A Jornada de Trabalhotrabalho e Manufature” . “ Maquinaria e Grande In-

llA Acumulação Primitiva ” : Friedrich

“ Divisão de

dúitria" eEngels — A Situação da Clause Trabalhadora naInglaterra. Lisboa , Ed . Presença. 19“ 5; Paul Mau -( OUY — La Revalueiôn industrial én ed sigh XVJJ. LMadrid , Aguilar , 1962; e dois esIndus pouco conhe-cidos do público brasileiro, J L. e Barbara Jiam-moud — The town labourer , Londres, I -ongman,

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Sobre o Autor1l

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Formado cm H Ls tí« r Í A desde 1970, defendeu íI SUíL lese de dou to-ra memo "Dlmei&Bes Hlslóricâs do Insucesso Político" na Faculdade deFilosofia. Letras c Ciâncias Humanas da USP. Â tuidmcnEr ê chcíe daDepartamento de Hisi&rla da UNICAMP e estii integrado no programade mestrado que desenvolve o projetai J ".\ formarão do ítrabalhadoFassalariado urísano no Rrasd “ , Parridpou como coordenador da pes-quisaRoberta SLmo-nsen c Ê hoje consultor da pesquisa "História da Indústriano Brasil ( í 990/19455" ém cOflveniò do Dcpaitamento de Histúria cam $FfNEP, Eícrevco inúmeros artigos e publicou,, recente mente, o livro1930 — OSif êndã dV>.v Vr.nçidí Li i Brastliç rtse, J 981) ,

Indústria e Tecnologia no Brasil", patrocinada pelo í nstitulo*i

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