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~I " II '. FÓRUM EDUCAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO. QUAL SERÁ O FUTURO DAS FÁBRICAS DE ADMINISTRADORES? QUAL SERÁ O FUTURO DAS FÁBRICAS DE ADMINISTRADORES? RESUMO O ensino de graduação em Administração no Brasil caracterizou-se, desde seu início, pela transferência de tecnologia de gestão, principalmente norte-americana, e posteriormente pela desvinculação das atividades de ensino e pesquisa. Está experimentando, ao longo da última década, uma expansão sem precedentes, Os resultados, no entanto, deixam muito a desejar. Estruturadas a partir do ideário da "gerência científica", as escolas podem ser comparadas a fábricas, e os bacharéis em Administração, a produtos. Esse "padrão de produção", no entanto, contradiz a opinião de mestres consagrados, como Paulo Freire e Guerreiro Ramos. Sendo assim, este ensaio busca verificar quais são as chances de sobrevivência do modelo de ensino em uso. Alexandre Nicolini Universidade Cândido Mendes - UCAM 44 cRAE . VOI.. 43 N Q 2 044-054 4/10/03,3:26 PM 44 IL II

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FÓRUM EDUCAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO. QUAL SERÁ O FUTURO DAS FÁBRICAS DE ADMINISTRADORES?

QUAL SERÁ O FUTURO DASFÁBRICAS DE ADMINISTRADORES?RESUMO

O ensino de graduação em Administração no Brasil caracterizou-se, desde seu início, pela transferênciade tecnologia de gestão, principalmente norte-americana, e posteriormente pela desvinculação dasatividades de ensino e pesquisa. Está experimentando, ao longo da última década, uma expansão semprecedentes, Os resultados, no entanto, deixam muito a desejar.Estruturadas a partir do ideário da "gerência científica", as escolas podem ser comparadas a fábricas, e osbacharéis em Administração, a produtos. Esse "padrão de produção", no entanto, contradiz a opinião demestres consagrados, como Paulo Freire e Guerreiro Ramos. Sendo assim, este ensaio busca verificarquais são as chances de sobrevivência do modelo de ensino em uso.

Alexandre NicoliniUniversidade Cândido Mendes - UCAM

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INTRODUÇÃO

o Brasil vive, neste início'tio século XXI, um períodode intensas mudanças: privatizações e concessões nasáreas em que antes atuava o governo empresário, fusõesde empresas nacionais com empresas estrangeiras, fu-sões entre empresas brasileiras a fim de enfrentar a con-corrência global. Novos empreendimentos surgem, des-tinados a explorar segmentos de mercados emergentesou reforçar a concorrência nos que já existem. Mais doque simples negócios, toda essa movimentação trans-forma profundamente o comportamento de três atoresfundamentais: o capital nacional, o capital estrangeiro eos governos, em todas as suas esferas.

Em um momento como este, é fundamental que se pos-sa contar com administradores, públicos ou de empresas,que deverão ser capazes de romper com as antigas regrasde um país onde concorrência e risco não faziam parte dosnegócios; administradores que devem ter visão para(des)regular com isenção os mercados que se abrem e quesejam capazes de otimizar ao máximo o capital investidonesses mercados. Dessa forma, o efeito multiplicador gera-do por esse capital não se perderá nos costumeiros desper-dícios - gerados tanto por métodos de gestão antiquadoscomo pelo excesso de regras - que estamos acostumados aver, na prática ou descritos pela imprensa.

A pesquisa empreendida para a consecução deste en-saio, além das dificuldades naturais, escondia outras sur-presas. A diminuta produção científica, na forma de livrosou trabalhos científicos, sobre a formação em Administra-ção é surpreendente. A quantidade de pareceres analíticossobre o ensino de Administração resume-se ao mínimonecessário. E a documentação que conta a história dos acor-dos que propiciaram o início do estudo de Administraçãono Brasíl é escassa e carente de sistematização.

Dessa forma, a análise bibliográfica contida no textofoi quase que exclusivamente desenvolvida a partir daleitura de obras que abordavam temas conexos. A análi-se documental foi feita diretamente nas leis, portarias,propostas, resoluções e pareceres sobre o ensino uni-versitário em geral e sobre o bacharelado de Adminis-tração em particular.

O ENSINO DE ADMINISTRAÇÃO NO BRASIL

-üs primeiros anos, com tecnologia estrangeiraOs primeiros cursos de que se tem notícia no Brasil

datam de 1902, quando passam a ministrar o estudo daAdministração duas escolas particulares: no Rio de ja-

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neiro, na Escola Álvares Penteado, e em São Paulo, naAcademia de Comércio. O ensino não era regulamenta-do, o que só veio a acontecer em 1931, com a criaçãodo Ministério da Educação e a estruturação do ensinoem todos os níveis. Na área dos estudos universitários,é criado o Curso Superior de Administração e Finanças.Esse curso diplomava os bacharéis em Ciências Econõ-micas, ainda que com forte preocupação quanto à capa-citação administrativa dos novos profissionais.

Nessa época, a consolidação dos cursos superiores emAdministração ainda estava a três décadas de sua regu-lamentação. Porém, a mudança e o desenvolvimento daformação social brasileira a partir da Revolução de 1930demandavam a preparação de recursos humanos, na for-ma de técnicos e tecnólogos de várias especializações,assim como métodos de trabalho mais sofisticados. Eramnecessidades criadas pelo crescimento econômico, pelodesenvolvimento de infra-estrutura social e pela infra-estrutura nascente de transportes, energia e comunica-çôes. Esse processo de transformação trouxe em seu bojoa formação de grandes conglomerados industriais e umEstado como agente no processo de desenvolvimentoeconômico e social (Mezzomo Keinert, 1996, p. 4).

Na propagação de métodos mais sofisticados nas ciên-cias administrativas destacou-se o Instituto de Organiza-ção Racional do Trabalho -Idort -, fundado em São Pauloem 1931. Dentre suas atribuições estava a divulgação dosteóricos da administração científica e clássica e de seusmétodos, objetivando o aperfeiçoamento do desempenhogerencial dos profissionais e a solução de problemas liga-dos à racionalização da administração das empresas emgeral (Conselho Federal de Educação, 1993, p. 289).

Também inserido no processo de propagação doideá rio da "gerência científica", a criação do Departa-mento de Administração do Setor Público - DASP - em1938 enseja a modernização do Estado brasileiro, orga-nizando seu pessoal, material, orçamento, sua organi-zação e seus métodos, de acordo com as caracteristicasburocráticas weberianas e as teorias da administraçãode Taylor e Fayol flvlezzomo Keinert e Vaz, 1994, p. 5).Originada no DASP, a Fundação Getulio Vargas - FGV -foi instituída em 1944 com o objetivo de preparar pessoalespecializado para a administração pública e privada.

Foram estabelecidas, assim, as condições e motiva-ções para a criação de cursos com ênfase na "gerênciacientífica" que formassem a burocracia especializadarequerida para o desenvolvimento do. país ICovre, 1991,p. 59). A difusão e a aplicação desse ideário tomaram-se as razões principais para que governos e empresasdemandassem administradores, ou seja, técnicos capa-

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zes de produzir e gerir grandes e complexas organiza-ções burocráticas.

A intensificação do uso éle modelos estrangeiros naestruturação das organizações brasileiras e do ensino deAdministração tornou-se mais forte em 1948, quandorepresentantes da FGV visitaram diversos cursos deAdministração Pública sediados em universidades nor-te-americanas, como resultado da cooperação técnicaBrasil-Estados Unidos estabeleci da após o fim da Segun-da Guerra. Dos encontros entre esses representantes eprofessores norte-americanos nasceu em 1952, no Riode Janeiro, a Escola Brasileira de Administração Pública- EBAP -, destinada à formação de profissionais especia-listas para a administração pública. Dois anos mais tar-de, a mesma FGV criaria a Escola de Administração deEmpresas de São Paulo - EAESP Na capital econõmicae coração da iniciativa privada no país, a escola desti-nou-se a formar profissionais especialistas nas moder-nas técnicas de gerência empresarial, atendendo assimàs expectativas do empresariado local (Comissão de Es-pecialistas de Ensino de Administração, 1997, p. 23).

A influência estrangeira no ensino de Administraçãotorna a se manifestar, de forma mais vigorosa, em fun-ção do convênio firmado em 1959 entre os governosbrasileiro e norte-americano, instituindo o Programa deEnsino de Administração Pública e de Empresas. Talconvênio, que beneficiou a EBAp, a EAESp, o DASP e asuniversidades federais da Bahia e do Rio Grande do Sul- UFBA e UFRGS, respectivamente -, enfatizava a ne-cessidade de formar professores para o ensino de Admi-nistração Pública e de Empresas, visando dotar o gover-no e a área privada de técnicos competentes para pro-moverem o desenvolvimento econõmico e social.

As escolas da FGV foram designadas como centros detreinamento e de intercâmbio, sendo encaminhados bol-sistas de Administração Pública da EBAP e bolsistas deAdministração de Empresas da EAESP, para estudos depós-graduação e formação de quadro docente próprio,respectivamente à University of Southern California e àMichigan State University. Também do DASP, da UFBAe da UFRGS foram enviados bolsistas, resultando, final-mente, na criação de cursos de Administração Públicanessas duas últimas instituições (Fischer, 1993, p. 11).O país também recebe uma missão de professores nor-te-americanos, especializados em administração públi-ca e de empresas, que foi responsável pelos programasde ensino de Administração em implementação no país,missão que só terminou em 1965 (Comissão de Especi-alistas de Ensino de Administração, 1997, p. 23). As-sim, o ensino de Administração, recente no Brasil, fica

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caracterizado como uma transferência de tecnologia de-senvolvida nos Estados Unidos._ O momento histórico que vivia o país àquela épocaera propício para a difusão dessa tecnologia. Se o surgi-mento do ensino de Administração é resultante do de-senvolvimento econõmico do governo de Getulio Vargas,um grande incentivo dado à expansão desse ensino foio surto industrializante no qual ingressou o país sob ocomando de Juscelino Kubitschek, décadas mais tarde,que havia criado uma enorme demanda por profissio-nais que pudessem atuar nas organizações que se insta-lavam e progrediam, no ambiente de intensas mudan-ças econômicas que vinham ocorrendo. Era necessária aprofissionalização dos quadros das empresas brasileiras.A complexidade e o tamanho de suas estruturas deman-davam a utilização crescente da técnica e isso tinha tor-nado fundamental o treinamento de profissionais paraexecutar diferentes funções no interior das organizações.

A expansão, desvinculada da pesquisaO primeiro precedente para a regulamentação e poste-

rior expansão do ensino de Administração no Brasil foi acriação da categoria de "técnico em Administração", quetoma o exercício da profissão privativo "dos bacharéis emAdministração Pública ou de Empresas, diplomados noBrasil, em cursos regulares de ensino superior, oficial, ofi-cializado ou reconhecido, cujo currículo seja fixado peloConselho Federal de Educação" (Conselho Federal de Ad-ministração, 1994, p. 40). Dessa forma, em 8 de julho de1966, o Conselho Federal de Educação regulamentou oensino de Administração por meio de resolução não nu-merada (Conselho Federal de Educação, 1991, p. 49), fi-xando o conteúdo mínimo e a duração para o curso.

A EAESp, um centro de treinamento e intercâmbio naárea de negócios, logo se tornou uma referéncia para aexpansão dos cursos de Administração no país, pois suaproposta adaptava-se ao estilo de desenvolvimento bra-sileiro, que privilegiava as grandes empresas produti-vas, principalmente as estrangeiras e as estatais. Forma-da nos melhores moldes das business schools norte-ame-ricanas, onde as grandes empresas já eram realidadedesde a Segunda Revolução Industrial, tinha como refe-rencial teórico bibliografia norte-americana e abrigavao primeiro currículo especializado em Administração deEmpresas do país (Motta, 1983, p. 53).

Com essa referência e outras, também importantes,como a EBAP e a Faculdade de Economia 'e Administra-ção da Universidade de São Paulo (FEA-USP), cujos cur-sos de Administração Pública e de Empresas haviam sidocriados em 1964, o ensino de graduação desenvolveu-se

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rapidamente no Brasil. É importante notar, entretanto,que, se em um primeiro momento a criação dos cursosdeu-se no interior de ínsutuíções universitárias, fazendoparte de um complexo de ensino e pesquisa (Comissãode Especialistas de Ensino de Administração, 1997, p.25), esse modelo logo foi abandonado. A regulamentaçãoelo ensino e posteriormente o "milagre econômico" abri-ram um grande campo para os bacharéis em Administra-ção, e com incentivo governamental essa demanda foiatendida, formando profissionais em faculdades isoladase privadas - características do processo ele expansão doensino superior no país. Assim, de acordo com o Minis-tério da Educação e do Desporto, eram 31 cursos em 1967,que evoluíram para 177 cursos em 1973. Posteriormen-te, com a continuidade dessa política, nos anos 1980 eram245 cursos. Em 1990 evoluiu-se para 330 cursos, e, se-gundo o censo do MEC, em 1998 já eram 549 escolas deAdministração. A maior parte (57,6%) era de instituiçôesnão-universitárias (Instituto Nacional de Estudos e Pes-quisas Educacionais, 1998(a), p. 9).

Um fator importante para a evolução desmedida docrescimento da graduação em Administração era que "aabertura dos cursos apresentava-se vantajosa, uma vez quepoderiam ser estruturados sem muitos dispêndios finan-ceiros" (Comissão de Especialistas de Ensino de Admi-nistração, 1997, p. 25), pois não eram necessários inves-timentos vultuosos em laboratórios sofisticados e nemqualquer outro refinamento tecnológico. Motta (1983, p.53) acrescenta que "a maior parte das escolas utiliza pes-soal mal preparado e que, face à retribuição que recebe,não teria mesmo condições de se aperfeiçoar".

Desvinculado do processo de construção científica,não é de espantar que o ensino de Administração per-manecesse inalterado em sua legislação por 27 anos,insensível às mudanças por que passava o mundo. Al-gumas dessas mudanças - como o choque do petróleo,a revolução microeletrônica, o surgimento acelerado denovas tecnologias e a globalização econômica - acaba-ram por modificar, de forma irreversível, o mundo dasorganizações. Transformaram profundamente a forma darealização de negócios e o posicionamento dos gover-nos, sendo denominadas "ondas de choque" (Albrecht,1994, p. 6). Devido a essas "ondas", a área de estudosorganizacionais foi brindada com um fim de século par-ticularmente agitado. As mudanças sucederam-se em umritmo alucinante , no melhor "efeito domino" provavel-mente já registrado pela história.

A rapidez dessas alteraçôes não assustou, porém, oseducadores em Administração. Apesar da constituiçãode um Grupo de Trabalho pela Secretaria de Ensino Su-

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perior do Ministério da Educação (SESu-MEC) com opropósito de produzir um anteprojeto de ReformulaçãoCurricular dos Cursos de Administração em 1982, aproposta de reformulação foi apresentada apenas umadécada depois, ainda que o mundo estivesse passandopor profundas transformações nos anos 1980.

A discussão das reformas finalmente ocorreu duranteo Seminário Nacional sobre Reformulação Curricular dosCursos de Administração, na Universidade Federal doRio de Janeiro, de 28 a 31 de outubro de 1991. Nesseencontro, foram reunidos 170 cursos de Administraçãode todo o país, concluindo pela apresentação de pro-posta formal de um currículo mínimo a ser submetido àaprovação do Conselho Federal de Educação. Mas, naavaliação de Monteiro JI. (1995, p. 84), "resultou dosdebates e discussões acalorados e prolongados a monta-gem de um novo currículo mínimo, aperfeiçoado e mo-dernizado, é verdade, mas ainda longe de retirar as Es-colas de Administração da trilha tradicionalista". Essenovo currículo mínimo é fixado pelo Conselho Federalde Educação em 4 de outubro de 1993, por meio daResolução n. 2/97, e permanece vigente até hoje.

A promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (LDB) em 20 de dezembro de 1996,no entanto, vem iniciar um novo processo de discussãodo ensino superior, em Administração e em outras áreas.Pelo Parecer n. 776/97, o Conselho Nacional de Educa-ção torna a conclamar as áreas a formular as diretrizescurriculares específicas para cada curso de graduação.Mobilizada por essa nova situação, a área de Administra-ção responde em 23 e 24 de abril de 1998, em Florianó-polis, com o Seminário Nacional sobre Diretrizes Curri-culares para os Cursos de Graduação em Administração.Esse evento, seguido por outros menores com caráter re-gional, serviu para analisar e discutir as novas propostasde diretrizes curriculares para os cursos de Administra-ção. Sistematizadas, essas propostas estão hoje sob apre-ciação do Conselho Nacional de Educação.

A BASE FABRIL DO MODELO DE ENSINO ATUAL

A linha de montagemAinda que se considere a regulamentação atual dos

cursos de Administração pouco flexível, é fato que agrande maioria das escolas no Brasil não tem inovadomuito quando o assunto é o bacharelado. Á ausência deoriginalidade das propostas, conforme já discutido, alia-do à rigidez da lei que regulamenta a área, traduz-se emuma formação homogênea e sem espaço de destaque para

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a produção científica. Nas palavras de Martins et a!.(1997, p. 239): "É bastante comum a prática de repetiro currículo mínimo preconüado pelo Conselho Federalde Educação. (. ..) Comete-se assim o pecado de suporque, em tema tão amplo como a administração, é possí-vel e desejável o domínio de todas as suas áreas de apli-cação e, ainda pior, ignoram-se ou violentam-se as pre-ferências e vocações de cada formando".

Sendo assim, completamente despersonalizado e fielao currículo mínimo (Conselho Federal de Educação,1993, p. 295), o ensino serve tão somente para a pro-dução em massa de bacharéis, e as escolas de Adminis-tração, como estão estruturadas, mais se parecem comuma fábrica do que com um laboratório. Pode-se traçara seguinte analogia: as escolas recebem a matéria-prima(o aluno) e a transformam, ao longo da linha de monta-gem (o currículo pleno), em produto (o administrador),conforme o gráfico 1.

Nos primeiros períodos, estão as disciplinas da for-mação básica e instrumental, a base que sustentará otodo: Economia, Direito, Matemática, Contabilidade,Filosofia, Psicologia, Sociologia e lnformática. Espera-se, nessa formação, fundamentar no futuro administra-dor a compreensão e as aplicações das ciências sociaisque dão base à Administração, bem como o desenvolvi-mento das habilidades matemáticas necessárias paraquantificar e especular. É uma preparação necessária,segundo a lógica presente na lei, para a próxima fase.

Nos períodos seguintes, são ministradas as discipli-nas da formação profissional que tornarão o adminis-trador capaz de operar dentro de sua área: Teorias daAdministração, Administração Mercadológíca, Adminis-tração de Recursos Humanos, Administração de Produ-

Gráfico 1 - A "linha de produção" do administrador.

ção, Administração Financeira e Orçamentária, Admi-nistração de Recursos Materiais e Patrimoniais e Orga-nização, Sistemas e Métodos. Nessa formação, trabalha-se para construir no estudante o domínio das áreas téc-nicas consideradas como de ãmbito exclusivo dos ad-ministradores e que compõe o campo do saber adminis-trativo propriamente dito. É quando se constrói toda abase técnica do administrador e se manipulam as ferra-mentas minimamente necessárias para a habilitação e oexercício da profissão.

Depois, vêm as disciplinas eletivas e complementares:busca-se uma ênfase na formação, seja ela generalista ouespecializada. Essa última etapa, conforme o próprio tí-tulo demonstra, não apresenta necessariamente um for-mato definido, sendo utilizada para promover o contatocom disciplinas conexas à Administração ou enfatizar umaárea do conhecimento já discutida durante o curso. É tam-bém o espaço para adequar o currículo pleno às caracte-rísticas de cada escola e às vocações regionais.

Finalmente, dá-se o estágio supervisionado. Ele foiconcebido para verificar a aplicação dos conhecimentosadquiridos pelos alunos que a ele se submetem. Embo-ra obrigatório, sofreu diversas disfunções desde sua re-gulamentação, perdendo seu objetivo e forma original.

Mesmo que essa lógica inerente ao processo de forma-ção do administrador pareça obsoleta, é perfeitamente com-preensível sua concepção. Os grandes expoentes do ensi-no de Administração no final do século XX, sem nenhumdemérito a essas figuras, ainda são os pensadores clássi-cos, como Frederick Taylor, Henri Fayol e Henry Ford. Aformação do administrador apenas obedece à lógica pro-posta por eles. Mesmo que revistos sob um enfoquesistêmico, representam todo um referencial teórico cujas

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bases remontam à Revolução Industrial. Esse tempo, seainda não foi superado, tem hoje suas principais caracte-rísticas sob profundos questíonamentos. E essas caracterís-ticas acabam também por revelar o caráter tipicamente fa-bril da formação do administrador, como veremos.

A DIVISÃO DO ESTUDO

Tal como a sociedade da qual fazem parte, as organi-zações vivem uma grande evolução desde o advento darevolução industrial. Desde a prototípica fábrica de alfi-netes descrita por Smith (1981, p. 41), as organizaçõesexperimentaram um notável aumento de sua complexi-dade. Elas cresceram, diversificaram suas operações, adi-cionaram uma gama de novos trabalhos de forma a au-mentar o valor agregado de seus produtos, extrapola-ram seus limites nacionais e tornaram-se mais interde-pendentes do ambiente que as abriga.

Estudar as organizações, por conseqüência, tornou-se uma tarefa muito mais complexa. A solução encon-trada para lidar com tal complexidade foi dividir esseestudo: fragmentar a organização em partes menores paraque pudessem ser intimamente compreendidas, desco-brir a inter-relacão entre essas partes e, finalmente, reu-nir a compreensão de todas as partes e a relação entreelas para buscar de forma racional a compreensão datotalidade da organização. Essa opção pelo estudo emseparado de cada uma das partes que compõem o fenõ-meno organizacional encontra sua origem na filosofiade René Descartes, que defendeu a hipótese de que acompreensão de fenômenos complexos poderia aconte-cer a partir de sua redução em componentes básicos.

Baseado no método cartesiano, o ensino de Adminis-tração foi dividido desde sua primeira regulamentação,em 1966, em grupos de matérias. A regulamentação de1993, longe de alterar conceitualmente a primeira, dáapenas um novo arranjo à divisão anterior. Cada umadessas etapas de formação encerra um conjunto de disci-plinas, e o conjunto total denomina-se currículo míni-mo. É a partir desse currículo mínimo que se desenvol-verá o currículo pleno, personalizado em cada escola, deacordo - pelo menos teoricamente - com as específícída-des regionais e necessidades de desenvolvimento setoriais.Tenta-se, assim, construir uma linha de pensamento queleve à compreensão do fenômeno organizacional.

Em conseqüência, a ordenação das disciplinas quecompôem o currículo pleno, bem como sua nomencla-tura, é ponto de pauta certo quando o assunto discuti-do é a formação do administrador. Tem-se concentrado

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toda atenção na definição das grades curriculares, nafalsa expectativa de que uma arrumação certeira condu-zjrá a escola e seus futuros administradores pela direçãoalmejada. O relator da regulamentação de 1993 já cha-mava atenção para o seguinte fato: "Na realidade, a enu-meração que discrimina as matérias (o currículo) temum valor secundário dentro de uma correta filosofiaeducacional: ( ... ) cabe à metodologia escolar, procuran-do reconstruir a experiência e sua organicidade, atravésdesse instrumento, o papel mais importante. Nessa orien-tação, a multiplicidade das matérias tenderá a reduzir-se a um repertório solidário, encaminhando-se no sen-tido da unificação, e não da dispersão" (Conselho Fede-ral de Educação, 1991, p. 41).

É a construção desse repertório solidário o grandeobstáculo do ensino de Administração e, provavelmen-te, também dos demais cursos superiores. O problemafundamental dos currículos não é a ordenação das ma-térias que os compôem. É a inter-relação delas. A divi-são do estudo e a fragmentação do saber ganham con-tornos preocupantes quando os mecanismos de intera-ção entre as matérias são constantemente esquecidos,ignorados ou mesmo desconhecidos.

EspecializaçãoA divisão do estudo trouxe conseqüências desfavorá-

veis. A mais direta delas foi a especialização e, em muitoscasos, a estagnação do campo de estudo dos professores.Tal como está previsto pelo currículo mínimo, a fragmen-tação do estudo divide-o em formaçôes específicas, e cadauma delas divide-se em disciplinas teoricamente conexas.Essas matérías, componentes básicos do curso, deveriamobrigatoriamente manter relações entre si. Ainda que se-jam estudos diferentes, deveriam observar caminhos con-vergentes, atuar solidariamente no sentido de formar noaluno a visão de todo um campo do conhecimento, sejaele geral ou especializado em sua área de interesse.

Não é isso, entretanto, que acontece. As abordagensinerentes a cada disciplina são muitas vezes tão diferen-tes quanto os professores que as lecionam, "o que secompreende a partir da estrutura universitária brasilei-ra, que provoca o isolamento dos especialistas" (Morta,1983, p. 53). O estudante acaba prejudicado, porque oisolamento torna o aprendizado penoso, confuso e pou-co profícuo, e também os professores, que não se benefi-ciam do contato com outros professores e pesquisadores.

Todas as disciplinas, principalmente as que não sãodiretamente relacionadas à área de administração, de-veriam ser estudadas cuidadosamente, buscando suainteração com o fenômeno administrativo, preparando o

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pensamento e o raciocínio do aluno para a compreensãodas organizações de [arma generalista. Esse é um aspectodestacado - e não observado - há mais de três décadaspelo relator da primeira regulamentação: "O estudo dasciências auxiliares ou instrumentais em cursos profissio-nais se orienta na direção desses e sob o impulso de suasmotivações. É bastante corrente o fato de serem ministra-das essas matérias de modo bastante genérico, sob a res-ponsabilidade de professores divorciados do campo a queelas devem aplicar-se. Disso resulta o adensamento docurrículo, sem vantagens, nem de ordem cultural nem deordem prática, por falta de adequada perspectiva" (Con-selho Federal de Educação, 1993, p. 46).

Todos esses argumentos reforçam a impressão de queo ensino de Administração terminou parecido com umafábrica. Cada professor entra em sala para lecionar suadisciplina, de forma estanque, dissociada das outras exis-tentes. Tal como um operário, ministra a matéria comose montasse no conjunto (o aluno) a peça de sua res-ponsabilidade. Peça que nem sempre se encaixa, pois afragmentação e o estudo cada vez mais aprofundado eisolado vão acabar dificultando, para o aluno, avisualização do todo administrativo.

MecanicismoUma das peculiaridades do sistema industrial é a con-

cepção das organizações tais como se fossem máquinas:arranjos estáticos de peças que, consertados, dão ori-gem aos produtos previstos. Os cursos de Administra-ção também foram concebidos dentro dessa lógica me-canicista: de determinadas ações ou causas derivarãodeterminados efeitos ou conseqüências previsíveis, den-tro de uma correlação razoável.

As escolas de Administração são como organizaçõesindustriais. A partir de um padrão de produção, deter-minado por características da escola e por necessidadeslocais, elas definem sua maneira para realizar a tarefa deformar administradores, escolhem os trabalhadores maisadequados a essa tarefa e selecionam, de acordo comsua credibilidade e prestígio, a matéria-prima. Em ou-tras palavras, uma proposta de currículo pleno, um bomcorpo docente e bons estudantes, conseqüentemente,seriam suficientes para formar bons administradores.

Ao final do processo da graduação, espera-se que osalunos tenham estabelecido as conexões entre todas asdisciplinas ministradas no curso, ainda que ordenadasem uma lógica penosa e em um currículo extenso, esti-mulando a fragmentação do conhecimento e contra li-ando o princípio da ordenação da multiplicidade dematérias em um repertório (Conselho Federal de Edu-

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cação, 1991, p. 41). Encara-se o futuro administrador,no final do processo, como uma máquina que será ca-paz de operar - gerir e tomar decisões - dentro do quefoi programada. Completa-se, assim, o ciclo de trans-formação do aluno em um técnico aplicado r de tecnolo-gia estrangeira (Covre, 1991, p. 76).

Em um mundo em transformação, porém, há de seesperar mais do que isso de um profissional. Em lugarde treiná-Ia para dar respostas prontas aos problemascostumeiros, devemos educá-lo para desafios maiores.O aluno precisa ser incentivado a romper paradígmas, acriar e a ousar em um mundo de complexidade crescen-te e que se transforma rapidamente. "Antes que treinare adestrar alunos é indispensável iniciá-los na ultrapas-sagem das fronteiras do já conhecido" (Conselho Federalde Educação, 1993, p. 292).

Visão de sistema fechadoTal como as fábricas, representações do pensamento

clássico da Administração, determinístico e programáticocomo uma máquina, as escolas de Administração têmapresentado um intercâmbio muito pequeno com o am-biente no qual estão inseridas. Já em 1983, a "décadaperdida", Motta (1983, p. 54) ponderava sobre esse dts-tanciamento do mundo. Concluía observando que, em-bora três décadas houvessem modificado bastante o ce-nário no mundo dos negócios, "pouco ou nada se faz emtermos de preparar os jovens aspirantes à administraçãopara as questões que irão enfrentar num futuro muitopróximo. Em suma, a maior parte dos cursos está prepa-rando nem mesmo para hoje, mas sim para ontem".

Em face de críticas como essa os coordenadores dasescolas se preocuparam, nos encontros promovidos quelevaram à construção da nova grade curricular em 1993,com a maior permeabilidade dos estudos com o mundoque as cerca. O Parecer n. 433 /93 expunha que "nessecontexto, alguns tópicos emergentes já se apresentam comas marcas da atualidade: a ética administrativa, a globalí-zação, o meio ambiente, a administração da tecnologia,os sistemas de informação, o controle de qualidade totale outras" (Conselho Federal de Educação, 1993, p. 294).

Entretanto, como em toda organização que pode serapontada como um sistema fechado, as escolas de Admi-nistração mostraram uma grande resistência a abrir seusprogramas a esses novos temas. Segundo dados do Insti-tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (1997(b), p. 24), dos estudantes concluintes de 1996, apenas20,3% havia estudado Ecologia /Meio Ambiente comotópico ou como tema central de uma disciplina do curso. Amaioria (79,6%) nunca apreciou o tema durante o curso

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ou O apreciou apenas superficialmente durante ativida-des extraclasse. Os números não são melhores quando otema é Tecnologia de Informação. Embora seja um dosmotores das profundas modificações que vivemos hoje,particularmente no meio empresarial, o assunto só foi tra-tado por 29% dos formandos do mesmo ano. Já Ética nosNegócios, uma discussão recorrente no Brasil e no mun-do, só foi analisada por 42,5% dos alunos. GlobalizaçãoEconômica, assunto de fundamental importância na ad-ministração atual, foi abordado por apenas 49% dos fu-turos administradores.

A percepção é a de que os cursos caminham separa-damente do mundo, como se dele não dependessem.Não há uma colaboração estreita entre a universidadee a sociedade, particularmente o mercado, o que reme-te a situações como a acima descrita. Os conteúdos en-faticamente técnicos são predominantes no processode formação do administrador.

BUSCANDO BASES SÓLIDAS PARA O ENSINO

O aluno como sujeito de seu aprendizadoO papel desejável das escolas de Administração vai,

aos poucos e por exclusão, ficando delineado. Mas qual opapel do estudante na relação ensino-aprendizagem?Pode-se definir o aluno de Administração como produtoou como sujeito no processo de sua própria formação?

Uma nova realidade organizacional demanda admi-nistradores que sejam capazes de reconhecer e definirproblemas, equacionar soluções, pensar estrategica-mente e ser criativo; que tenham iniciativa, vontade deaprender, abertura às mudanças, habilidades de nego-ciação e consciência da qualidade e das implicaçõeséticas de seu trabalho (Comissão de Especialistas deEnsino de Administração, 1997, p. 12). Basicamente,exige um estudante ativo, o que não é a regra na rela-ção ensino-aprendizagem.

Sobre a atitude normalmente passiva do educando,Freire (1987, p. 58) contribui expondo sua concepção"bancária" da educação: "A narração, de que o educadoré o sujeito, conduz os educandos à mernorização mecâ-nica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração ostransforma em 'vasilhas', em recipientes a serem'enchidos' pelo educador. Quanto mais vá 'enchendo' osrecipi.entes com seus 'depósitos', tanto melhor educa-dor será. Quanto mais se deixa docilmente 'encher', tantomelhores educandos serão".

A concepçâo "bancária" da educação guarda muitassemelhanças com a "fábrica de administradores". Tanto

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uma como outra tratam o aluno como mero produto,mera conseqüência do processo de ensino. Tornam-se,assim, os educandos meros arquivadores de conhecimen-tos e conteúdos, pois estão desprovidos de sua capaci-dade de buscar o ínter-relacionarnento de teoria e práti-ca e vivenciar o conhecimento. O que é arquivado, narealidade, é o homem e todo seu potencial.

Aos estudantes, pouco resta senão o papel de receber,de memori.zar e de exercitar as reações para as quais es-tão sendo preparados. Quanto mais os educandos se exer-citam nessa tarefa de memorização autômata, mais se afas-tam da busca da consciência crítica que, em última análi-se, resultaria em sua inserção no mundo e na conseqüen-te transformação deste. Distanciam-se, assim, de seu pa-pel como sujeitos do processo de aprendizagem.

O estudante como produto não transforma o mundo,mas antes tende a ele se adaptar, anulando ou reduzin-do dramaticamente seu poder criador. Dissocia-se de seupapel como indivíduo, relegando-o a um segundo pla-no, no qual sua responsabilidade como agente de mu-dança está alijada do exercício profissional. Torna-se umingênuo (Freire, 1983, p. 69).

Em contra ponto , uma educação problematizante bus-ca a ernersão das consciências e sua inserção crítica nasociedade. Possibilita ao aluno ser sujeito do próprioprocesso de aprendizado, permite o despertar de suaconsciência, o despertar da intencionalidade, estimulaa busca do conhecimento. Motiva-o a sair da submissãoe da passividade e abre caminho para que ele venha aser o protagonista de sua própria história.

Na prática da problernatização, os educandos desen-volvem o poder de captação e compreensão do mundoque lhes aparece, em suas relações com ele, não mais comouma realidade estática, mas como uma realidade em trans-formação, em processo. A partir das experiências dos alu-nos, implica-se um constante ato de desvelarnento darealidade, abrindo espaço para a inserção crítica dessarealidade. A tendência então, para o aluno, é estabeleceruma forma autêntica de pensar e atuar. Pensar em si mes-mo e no mundo, sem separar esse pensar da ação, pois aprática problematízante funda-se na criatividade e esti-mula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobresua realidade (Freire, 1983, p. 71).

O aluno que aprende a perceber a si próprio e suasituação entra em contato com sua realidade e sente-secapaz de modificá-Ia. O fatalismo, ou a consciência dese sentir como apenas um produto ao finá I do processode formação, cede lugar à vontade de aprender paraproduzir seu próprio futuro. O aluno, finalmente, sen-te-se sujeito.

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A "redução sociológica" necessáriaUma educação "bancária" e não problematizante, que

aliena o aluno do próprio processo de aprendizado, im-possibilita-o de desenvolver sua própria percepção acercado fenômeno administrativo e uma visão crítica das teoriasque lhe são ensinadas. Conseqüentemente, impede-o deinvestigar novos métodos e técnicas de gestão que melhorse adaptem à sua realidade. O aluno corre o risco, então,de se tornar um profissional condenado a repetir indefini-damente os métodos e as técnicas importadas de paísesestrangeiros, particularmente dos Estados Unidos.

Não desenvolvendo, desde sua implantação no Bra-sil, uma via adequada à compreensão do fenômeno or-ganizacional, sua ciência e tecnologia, tornou-se o ensi-no em Administração dependente do desenvolvimentocientífico e tecnológico ocorrido em centros mais de-senvolvidos. "Enquanto no mundo moderno do séculoXIX, teóricos pensaram o trabalho no pano de fundo docapitalismo industrial e a relevância do papel do admi-nistrador neste processo, no Brasil, isto não aconteceu",explicam Martins et a/. (1997, p. 11). Como os desafiosadministrativos brasileiros ocorreram posteriormente aosdesafios administrativos de países que viveram osprimórdios do capitalismo industrial, o país teve a op-ção de importar modelos em detrimento da criação deoutros, quiçá mais adequados às nossas necessidades eestilo de desenvolvimento.

O resultado desse. processo é o ensino profissionali-zante , que transforma o estudante em um técnico pouco"pensante", em um aplícador de tecnologia em sua maiorparte importada, e não mais em um possível futuro pes-quisador, cientista (Covre, 1991, p. 76). Nessas condi-ções, entende-se a perpetuação do referencial teórico im-portado e da baixa produção de conhecimento no Brasil.

Há a necessidade da criação de uma consciência crí-tica em relação a esses assuntos que fazem parte da rea-lidade nacional. A redução sociológica é, então, tema damaior importância quando se fala da formação do ad-ministrador. Define-a Guerreiro Ramos (1965, p. 44),no domínio restrito da sociologia, como: "uma atitudemetódica que tem por fim descobrir os pressupostosreferenciais, de natureza histórica, dos objetos e fatosda realidade social. A redução sociológica, porém, é di-tada não somente pelo imperativo de conhecer, mas tam-bém pela necessidade social de uma comunidade que,na realização de seu projeto de existência histórico, temde servir-se da experiência de outras comunidades".

Para além das definições, trata-se de uma atividadede protagonismo de todo um país. Ela surge quando umasociedade dependente se espelha em uma desenvolvida,

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movida pela sua autodeterminação em direção à pró-pria suficiência e pondo entre si e as coisas que a cir-çundam um projeto de existência. Esse projeto, ao me-nos no campo da administração, ainda falta ao Brasil,na medida em que importamos e tentamos implantar mo-delos prontos e inadequados, na maior parte dos casos.

Isso acontece porque a redução sociológica no ensi-no de Administração choca-se frontalmente com a con-cepção "bancária" desse ensino. Passo a passo, a redu-ção é um processo que deve ser desenvolvido por pes-soas que têm consciência de seu papel na sociedade eda importância de transformá-Ia (Guerreiro Ramos,1965, p. 45). Não parece ser o perfil do estudante de-positário, tampouco o de professores que se portamcomo meros repetidores de conhecimentos petrificados,sem vida e sem chances de serem utilizados como ferra-mentas para promover qualquer transformação,

Para o estudante agir como ser transformador é im-portante que ele tenha a percepção da totalidade do fe-nômeno administrativo e das inter-relações das diferen-tes matérias que compõem a área. Todas as matérias aserem estudadas fazem parte, necessariamente, de cone-xôes de sentido. Estão referidas umas às outras por umvínculo de significação que dá forma ao todo. Existemapenas em um determinado contexto, pois a perspectivaem que estão as matérias em parte as constitui. Portanto,se transferidas para outra perspectiva, deixam de ser exa-tame.nte o que eram. Assim, té.cnicas e métodos importa-dos provavelmente nunca funcionarão satisfatoriamente,pois foram concebidos em outro contexto e, quando trans-feridos, passam a apresentar problemas.

Não é necessário, porém, que se recomece a históriaadministrativa no Brasil. A fim de melhor conduzir oprocesso de desenvolvimento nas várias áreas do saberhumano, é importante investigar a experiência estran-geira, seus sucessos e insucessos. A redução sociológicaconduz a um procedimento crítico-assimilativo dessaexperiência, por uma sociedade que desenvolve a capa-cidade de se auto-articular, tornando-se conscientementeseletiva. É dirigida por uma aspiração ao universal, po-rém mediatizada pelo local, regional ou nacional.

CONCLUSÕES

A demanda por administradores sempre acompanhoua estruturação econômica do país, relacio~ando-se comos momentos históricos caracteristicos desse processoaté os dias de hoje. O ensino de Administração, inicial-mente confundido com o de Economia, foi regulado

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primeiramente em 1931, quando o capitalismo que seinstalava tardiamente em nosso país necessitava de pro-fissionais especializados para gerir as organizações in-dustriais que se instalavam. Nos anos 1950, quando umnovo governo Vargas buscava o desenvolvimento eco-nõmico e social do país, seguido por Kubitschek, o en-sino de Administração estruturou-se a partir da influên-cia gerada pela Fundação Getulio Vargas e, mais especi-ficamente, pela Escola de Administração de Empresasde São Paulo, criada em 1954. O modelo de ensino des-sa escola, com um currículo especializado em adminis-tração de empresas, traduziu o momento histórico peloqual atravessava o país, com a instalação de várias em-presas estrangeiras e estatais.

Com o desenvolvimento estimulado pelos governosmilitares e o "milagre econômico", a nação privilegiouas grandes empresas, multinacionais e estatais - princi-palmente estas últimas. O ensino expandiu-se em ritmoacelerado, resultado da regulamentação da profissão edo bacharelado em Administração, procurando suprir ademanda por tecnocratas gerada por esse tipo de desen-volvimento. Já em 1993, após dois anos de governoCollor e intensas mudanças que projetavam o Brasil nocontexto de uma economia globalizada, a reforma daregulamentação tenta orientar as escolas para a forma-ção de profissionais aptos a enfrentar o mundo e suasnovas demandas.

Como conseqüência histórica, o ensino de Adminis-tração nasceu, estruturou-se e expandiu-se em um Bra-sil que inaugurou, desenvolveu e concretizou-se comouma sociedade industrial. Herdou as características maismarcantes de tal sociedade, como a divisão de trabalho,a especialização e o mecanicismo que permeiam o mo-delo de ensino em voga. Com as mudanças acontecen-do de forma avassaladora na última década e com a es-tagnação acadêmica do ensino de Administração, emparte devida à "década perdida", incorporou-se a esseensino mais uma caracteristica: a visão de sistema fe-chado. Todas essas características, pertinentes ao mo-mento histórico em que surgiram, tornam-se hoje parti-cularmente problemáticas quando se tenta buscar no-vos rumos para a formação de administradores. Em ummundo globalizado e holístíco, falta a esses homens emulheres uma compreensão maior do fenômeno orga-nizacional e de suas conseqüências.

A importação de referencial teórico reforça essas ca-ractertsticas. Nos países ditos de Primeiro Mundo, o de-senvolvi.mento do capitalismo só se deu com a produçãoe o domínio do conhecimento administrativo para tal.No Brasil, o capitalismo tardio supriu suas necessidades

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importando conhecimento já sistematizado em outrospaíses, premido pela necessidade de se desenvolver e alia-do à impossibilidade de gera-lo em curto prazo. Isso acon-tece durante toda a história do surgimento e desenvolvi-mento da área de Administração no país e estende-se atéos dias de hoje. A importação desse conhecimento admi-nistrativo, adquirido em outras condiçôes econômicas,sociais e culturais, porém, nunca conduziu o Brasil aomesmo estágio de desenvolvimento capitalista desses pa-íses. Conduziu, antes, a um estado de dependência inte-lectual administrativa, que não foi solucionado mesmoapós tantas décadas em que o pais busca, de formacaudatária, encontrar-se com a modemidade.

Tal dependência pode ser creditada, também, à faltade caráter investigativo no desenvolvimento das ciênciasadministrativas no país. Em instituições universitári-as onde se desenvolvem pesquisas, sedirnenta-se umconhecimento que é essencialmente dinâmico, queacrescenta, desenvolve-se e adapta-se às condiçõessocioeconórnico-culturais desiguais, a partir da revela-ção de seus mecanismos e de como manuseá-Ios. Eminstituições onde o ensino é a única atividade, o conhe-cimento administrativo torna-se rígido e estático: rígi-do pois a inexistência da pesquisa torna seus mecanis-mos desconhecidos e não permite ajustamentos, e está-tico porque só se torna possível a reprodução dos con-ceitos. Registre-se que a expansão do ensino de Admi-nistração se fez primordialmente por meio de institui-ções desse tipo.

Em face de um mundo em constante desenvolvimentoe sofrendo profundas mudanças, no qual as característi-cas industriais perdem paulatinamente o sentido, os áto-mos estão sendo substituídos pelos bites, e a informação- o domínio dela - firma-se como a base de toda umanova gama de produtos, pode-se considerar que é umaboa hora para se repensar o ensino de Administração.

A definição das novas Diretrizes Curriculares, em aná-lise no Conselho Nacional de Educação, infelizmente nãoé uma aspiração das escolas de Administração para dimi-nuir a defasagem entre o conhecimento conquistado peloavanço científico e tecnológico atual e o conhecimentoensinado nas salas de aula. Antes, têm como fato políticoprecedente a nova Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional. A preocupação decorre do fato de, já em 1993,a regulamentação ora promulgada conferir às escolas li-berdade, senão total, suficiente para que cada umafonnatasse seu projeto de ensino e definisse o profissio-nal que desejaria formar, utilizando a prática pedagógicaque julgasse adequada. A grande maioria delas não fezuso de tal liberdade, limitando-se a reformular seus cur-

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rículos apenas para adequá-Ias ao novo texto da Lei.Se a pretensão dessas novas diretrizes curriculares for

um ensino universitário de-Admínístração baseado nauniversalidade de idéias e compreensões, um trabalhode formação verdadeiramente interdisciplinar, é proce-dente a perspectiva de contratar educadores e pedagogospara integrar a equipe de trabalho e ajudar na definiçãodas pedagogias adequadas a esse ou aquele curso. Docontrário, a proposta de refonnulação do ensino irá setornar novamente ingênua e limitada. Se não houver autilização de pedagogias inovadoras, o ensino de Admi-nistração, embora disponha de todos os trunfos impor-tantes para sua superação, estagnará na concepção "ban-cária" já explicitada por Paulo Freire, e resultará nasmesmas "fábricas de administradores" construí das apósas duas primeiras regulamentações.

As competências desejáveis ao administrador, quandonão são inatas, têm de ser desenvolvidas ao longo do curso- desenvolvimento que pressupõe o estudante como sujei-to de seu próprio processo de formação. Há de se trabalharos alunos como indivíduos que devem e têm de contribuirpara o enriquecimento dos temas e abordagens desenvol-vidos durante essa formação. O estudo das organizações,muito rico, é de uma complexidade notável, o que trazuma dificuldade natural para apreendê-Ia. Mesmo assim,ainda que complexo seja o assunto, o estudante que parti-cipa do projeto para sua formação terá a chance de desen-volver a consciência crítica que lhe permitirá uma melhorcompreensão do fenômeno organizaeional.

Artigo convidado. Aprovado em 15/02/2003.

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