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1 Ficha de Leitura O mundo ardente de Siri Hustvedt Data de publicação: 2014 Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide Dinamização: Josefina Melo 8 de abril 2019 SINOPSE Harriet Burden, artista plástica de meia-idade, talentosa e pouco reconhecida, vive atormentada com a falta de visibilidade do seu trabalho que atribui a ter nascido mulher. Após a morte do marido, galerista nova-iorquino, inicia um projeto ambicioso em torno da perceção da sua obra através do uso de três artistas a quem propõem que exponham as suas peças tornando-se os seus heterónimos vivos, as suas máscaras ou personas. A história de Harry é-nos contada (a vinte vozes) após a sua morte em 2004, através dos seus diários e cartas e também de ensaios, textos críticos e entrevistas de quem com ela conviveu. Cada capítulo funciona como uma peça do puzzle através do qual vamos construindo e reconstruindo a artista, uma personalidade complexa e inconformada que têm como referências Kierkegaard, Freud, Sterne Vermeer, Velásquez, Milton, Emily Dickinson e Pessoa cuja estátua beija, numa visita a Lisboa. No final fica a pergunta: quem usou quem? PALAVRAS-CHAVE ARTE, IDENTIDADE, MISOGENIA, PERCEÇÃO, AMBIGUIDADE, FILOSOFIA, NEUROCIÊNCIAS TEMPO E ESPAÇO 1970-2012, Nova Iorque

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Ficha de Leitura

O mundo ardente de Siri Hustvedt

Data de publicação: 2014

Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide

Dinamização: Josefina Melo

8 de abril 2019

SINOPSE

Harriet Burden, artista plástica de meia-idade, talentosa e pouco reconhecida, vive

atormentada com a falta de visibilidade do seu trabalho que atribui a ter nascido

mulher. Após a morte do marido, galerista nova-iorquino, inicia um projeto ambicioso

em torno da perceção da sua obra através do uso de três artistas a quem propõem que

exponham as suas peças tornando-se os seus heterónimos vivos, as suas máscaras ou

personas. A história de Harry é-nos contada (a vinte vozes) após a sua morte em 2004,

através dos seus diários e cartas e também de ensaios, textos críticos e entrevistas de

quem com ela conviveu. Cada capítulo funciona como uma peça do puzzle através do

qual vamos construindo e reconstruindo a artista, uma personalidade complexa e

inconformada que têm como referências Kierkegaard, Freud, Sterne Vermeer,

Velásquez, Milton, Emily Dickinson e Pessoa cuja estátua beija, numa visita a Lisboa.

No final fica a pergunta: quem usou quem?

PALAVRAS-CHAVE

ARTE, IDENTIDADE, MISOGENIA, PERCEÇÃO, AMBIGUIDADE, FILOSOFIA,

NEUROCIÊNCIAS

TEMPO E ESPAÇO

1970-2012, Nova Iorque

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PERSONAGENS

HARRIET BURDEN

Alta, olhos grandes e escuros, pescoço largo, ombros quadrados e braços musculados,

guerreira feminista, artista e intelectual cuja obra reflete a sua vasta cultura.

Aos 26 anos casa com Felix que tem quase o dobro da sua idade e dedica as três

décadas seguintes a ele e aos dois filhos.

Após a morte do marido e perseguida pelos fantasmas dele e do seu pai que não a

viram e não a desejaram - começa a trabalhar no projeto Máscaras: o mundo das artes

irá finalmente ver a sua obra e reconhecer o seu talento.

Tal como aconteceu com o seu alter-ego Margaret Cavendish, duquesa de Newcastle,

escritora e pensadora do século XVII, cuja obra tal como a dela foi incompreendida e

desprezada.

FELIX LORD

Dono de uma bela voz, ligeiramente rouca por causa dos cigarros e astuto marchand

de arte e colecionador, o marido e amor da vida de Harry, embora nunca a tenha

amado como ela desejava. A par das obras de arte coleciona amantes de ambos os

sexos. Continua a aparecer à mulher depois de morto em sonhos que a aterrorizam.

MAISIE

A filha de Harry é a mais equilibrada da família. Estudou cinema na NYU e faz

documentários, o último deles sobre a sua mãe. Casou com Oscar que não liga nada à

arte. Têm uma filha, Aven, que tal como a avó em criança, tem um amigo imaginário, a

Rabanete. Partilha com a mãe a obsessão por Ethan, filho e irmão que não conseguem

descortinar.

ETHAN

Olhos grandes, caracóis e desprezo pelas formas convencionais de dividir o mundo

como a mãe, Harry que em criança passava noites em branco com ele a cantar

estranhas canções de Philip Glass enquanto lhe segurava na mão, para acalmar a sua

hipersensibilidade. O Ethan adulto escreve contos e Harry anseia pelos seus sinais de

afeto e por transpor o abismo que os separa.

RACHEL BRIEFMAN

Psiquiatra e psicanalista, amiga de infância de Harry, com quem discutia o projeto dela

durante os chás que tomavam semanalmente.

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ANTON TISCH

Alto e de grandes e inquietos olhos castanhos a primeira das personas utilizadas por

Harry, causou furor na Galeria Clarck, em 1998, com a instalação A história da arte

ocidental. Sofre um processo de despersonalização após a exposição e não se

reconhecendo quando se olha ao espelho e acusa-a de ter perdido a sua pureza

durante a experiência. Desaparece de cena depois desta exposição única.

PHINEAS ELDRIDGE

A segunda persona de Harriet trouxe o seu próprio charme para instalação Os quartos

da asfixia. Pitosga, mulato e queer, ao contrário de Anton adorou ter participado no

projeto. Nasceu John Whittier magricela, frágil e sardento e até aos 13 anos sofreu de

ataques de epilepsia. Filho de mãe negra e pai branco encontra Deus na adolescência e

Harry alguns anos depois e juntos criam a cumplicidade perfeita.

RUNE

A última das personas e a principal, ao contrário das outras duas, já era uma

celebridade das artes e as suas cruzes eram vendidas por milhões de dólares.

Inicialmente Harry vê nele alguém que a compreende e reconhece. Um metro e

noventa, louro, olhos de um azul-claro e feições finas e belas herdadas da mãe, Miss

Quinta do Iowa, e bêbeda sentimental de vodka, que morre com uma combinação letal

de álcool e comprimidos para dormir.

Provocante e irónico reivindicou como sua a instalação Debaixo, feita por Harry para

ele.

BRUNO KLEIFELD

Judeu temperamental, poeta do Bronx, três casamentos, três filhas e um poema

colossal que escreve há 25 anos. A caminho dos sessenta já com grandes entradas e

bochechas descaídas entra na vida de Harry numa tarde de luminosidade fatídica e

nela permanecerá até ao final, amando-a como ninguém a tinha amado. Tinha o dom

de saber como a amar.

OSWALD CASE

Autor da biografia de Rune Martirizado pela arte. Conhecido por Traça, devido às

técnicas astutas a que recorria para conseguir descobrir os podres dos ricos e famosos,

dedica-se mais tarde ao jornalismo de investigação.

ALAN DUDEK, O BARÓMETRO

Artista psicótico e paranoico, passou muito tempo em hospitais psiquiátricos até ser

acolhido por Harry em sua casa, a estalagem de Red Hook. A mãe morreu esmagada

dentro duma caravana por um tornado e pouco mais de uma década depois Alan,

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transforma-se no Barómetro, o homem que sente os movimentos do clima através do

seu sistema nervoso extraordinário e tremendamente frágil.

DOCE OUTONO PINKNEY

Amiga de Anton, com o dom de ler auras, chega a Red Hook com um cão rafeiro e um

saco cheio de pedras e conchas curandeiras, quando Harry está próxima da morte.

KIRSTEN LARSEN SMITH

Sombra da infância de Rune, o irmão quatro anos mais velho. Sofre um acidente grave

acidente de automóvel que lhe desfigura o rosto e determina a sua profissão: técnica

craniofacial. Inspirado nas seis operações plásticas que lhe devolveram um rosto, Rune

cria a instalação A banalidade do Glamour.

Excertos

Durante anos, mordi tanto a língua para não falar que quase a engoli. (p. 24)

E a seguir, depois dos boas noites e dos olhares sobre a ementa de cartolina e do

pedido do empregado que diz que se chama Roy ou Ramon, em suma depois de todas

as banalidades constrangidas que têm lugar quando dois desconhecidos embarquem

nessa viagem conhecida como «ir jantar fora», os deuses ou os anjos ou as fadas ou as

estrelas de cinema - uns quaisquer desses seres divinos irreais em que todos

acreditamos mais ou menos quando nos convém - bafejaram-nos enquanto

passávamos suavemente de saladas de folhas tenras para um prato de galinha que

ambos pedimos, um pouco seco, com cogumelos. Mas enquanto estávamos a ingerir a

ave de capoeira ressequida, aconteceu outra vez: o Bruno oficial apareceu novamente

de rompante, triunfal, para seduzir a Senhora dos Casacos, que o seduziu por sua vez,

porque era divertida, e inteligente e oblíqua, também, fazendo comentários arcanos

que nem o Bruno verdadeiro e autêntico conseguia deslindar, mas que o deixavam

terrivelmente curioso e, quando a senhora respirava, os seios respiravam com ela, e ele

teve de fechar os olhos umas poucas de vezes para manter a cabeça no lugar.

Penso que ela levava diamantes nas orelhas e sei que havia perfume no ambiente geral

da mesa a pairar no ar e a entrar-me pelas narinas dentro, um aroma que ela disse ter

sido criado por Napoleão, zé-ninguém conquistador da Europa, para uma das suas

mulheres, Josephine. Ele teve duas, uma a menos do que eu. O sacana arrogante disse

uma vez: «Eu sou a revolução». Pois naquela noite, teve início a revolução de Bruno

Kleinfeld e eu sabia que tinha de a levar até ao fim, senão viveria para todo o sempre

como um Estado dividido.

Escutei-a. Não estou a ser cínico, quando digo que esta é primeira regra da sedução.

Não existe sedução sem uns grandes ouvidos atentos. (p. 105)

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Apesar dos seus medos do exterior, a Harry era livre por dentro. Acreditava na sua

raiva e fúria e expelia a arte de dentro de si como recém-nascidos molhados e

ensanguentados. (p. 211)

O que Harry queria dizer era o seguinte: éramos nós uma só pessoa ou seríamos, todos

nós, várias? Não inventavam os atores e autores personagens para ganharem o seu

sustento? De onde vinham essas pessoas? (p. 313)

Apetecia-me morder o mundo até fazer sangue, mas mordi a mim própria, fiz a minha

própria tragediazinha da vida. (p. 421)

NOTA BIOGRÁFICA SOBRE A AUTORA

Com ascendência norueguesa, a escritora e ensaísta Siri Hustvedt, nasceu e cresceu

nos Estados Unidos e vive em Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster:

celebram 38 anos de casamento, em junho.

Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou

vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. Decidiu

ser escritora aos 13 anos. Aos 64, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção,

com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.

Esta área levou a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a

participar em conferências sobre a consciência, como a realizada em 2011, em Berlim,

ao lado do neurocientista António Damásio.

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OUTROS TÍTULOS NAS BIBLIOTECAS DE OEIRAS

Elegia para um americano (2009)

Aquilo que eu amava (2005)

Fantasias de uma mulher (1999)

De olhos vendados (1995)

ENTREVISTAS E RECENSÕES

Isabel Lucas no Ípsilon

https://www.publico.pt/2014/09/12/culturaipsilon/critica/o-sexo-da-arte-1669245

CRÍTICA LIVROS

O sexo da arte

Em O Mundo Ardente, Siri Hustvedt cria um universo ambicioso num livro que cruza

ensaio e intriga de forma eficaz

O Mundo Ardente 4,0 estrelas

Isabel Lucas 12 de Setembro de 2014, 2:19

“Os começos são enigmas”, lê-se já o livro vai com umas dezenas de páginas. E, pelo

começo, mesmo sabendo do enigma, esta podia ser uma obra de histeria. Uma mulher

zangada com o modo como a sua condição feminina a minimiza no mundo das artes e

que decide criar um embuste para provar que tem talento. Mais do que isso: que a

ideia de talento não está isenta de uma avaliação de género. “A celebridade não é o

que fazemos. É estarmos em cena, é sermos a cena…” E, em cena, a identidade é a do

performer num jogo que pouco tem que ver com verdade. A verdade é a da obra onde

o autor se pode esconder se for capaz de manter o jogo. “E se eu inventasse um artista

que fosse todo ele crítica de arte, texto de catálogo, e nenhuma obra?”, desafia-se a

mulher que se quer vingar num mundo onde até à meia idade não foi capaz de ser a

celebridade em palco por questões que, acredita, têm menos que ver com a qualidade

do que faz do que com o facto de ser mulher. A primeira frase poderia sustentar esse

sentimento de histeria a comadar o resto: “Todo o trabalho intelectual e artístico,

incluindo as piadas, ironias e sátiras, tem mais sucesso na mente da multidão, quando

a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se

encontra uma pila e um par de tomates.” É uma frase-grito de Harriet Burden, mulher,

artista plástica, antes de se decidir pela máscara para ser “a cena” e começar a

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apresentar as suas obras com a assinatura de três homens, três artistas plásticos com

biografias distintas que lhe permitem desenvolver a sua visão da arte e da identidade,

dentro e fora desse universo.

De forma simplista, é este o conceito de partida de O Mundo Ardente, sexto romance

da norte-americana de origem norueguesa Siri Hustvedt (n. 1955), um livro que

atravessa os interesses da escritora: a literatura, a arte, a filosofia, as neuro-ciências

trabalhados enquanto fundamento dessa ideia de máscara, num universo, que, sabe

ela, a sinceridade pode ser um problema para a afirmação pessoal.

O retrato de Harriet Burden é apresentado depois da morte da artista, em 2004,

através de diários e cartas da própria Harriet, com ensaios, textos críticos, entrevistas e

testemunhos recolhidos junto de quem conviveu com ela. O romance nasce desta

conjugação de discursos, múltiplas vozes, que a escritora gere de forma eficaz. A

começar pela do editor desse texto maior, alguém com o nome de I.V. Hess, um

professor de estética que é informado do grande projecto de vida de Harriet através

de uma carta. O objectivo dela, soube ele, era não só expor o preconceito contra as

mulheres que existia no mundo das artes, mas também desvendar os complexos

mecanismos da percepção humana e o modo como ideias inconscientes sobre o sexo,

a raça e a celebridade de um indivíduo influenciam a forma como um espectador

compreende uma determinada obra de arte”.

O projecto é ambicioso. O de Harriet, a personagem, e o de Siri, a escritora. O romance

poderia resultar numa chusma de ideias feitas e boas frases para citar sobre um tema

nada original à volta de um equilibrismo ou paródia de identidades. Mas, na tragédia

de Harriet, Siri consegue superar-se naquele que é o seu melhor livro, um exercício

onde conjuga emoção e ensaio numa intriga onde não falta suspense e a dimensão

humana — conferida por boas doses de ironia e pathos — capaz de transformar uma

personagem de ficção em “alguém” tridimensional que se ama, ou odeia. E Harriet não

é fácil de ser amada pelo leitor.

Fisicamente, ela está próxima da caricatura. Um metro e 88, mamas grandes, uma

“omnívora movida por uma fome infinita, o desejo de devorar o máximo de

conhecimentos que lhe fosse possível”, uma rapariga que queria ser artista e se casou

aos 24 anos com um poderoso negociante de arte de Nova Iorque e se tornou a sua

mulher extremada, anfitriã de festas na casa de Park Avenue, e mãe de duas crianças,

que se dedicou à casa e cujo trabalho artístico passou a ser olhado como o hobby

caprichoso da mulher de um caçador de artistas. Foi quando ele morreu que Harriet

decidiu entrar em cena criando heterónimos para os seus trabalhos. Três homens

passaram a assinar as suas peças. Entre 1998 e 2003 organizou exposições e em todas

surgia atrás de um nome masculino. Anton Tish, o jovem bem-parecido e cobiçado

pelas câmaras; o gay mulato Phineas Q. Eldridge, e o Rune, o representante do que se

pode chamar a essência masculina. “Cada artista-máscara tornava-se para Burden uma

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‘personalidade poetizada’, que não pertencia nem a ela nem à máscara e sim a ‘uma

realidade mista criada entre ambos’”, escreve Richard Brickman, o autor da carta que

seduz o professor Hess para o projecto de Burden. Um projecto que cruza ate e ciência

e serve a Siri Hustvedt para esgrimir ideias e referências que vem coleccionado. Soren

Kierkgaard e Fernando Pessoa enquanto testemunhos de bons executantes de “vozes

múltiplas”, mas também há Freud, Sterne Vermeer ou Velázquez, Milton ou Emily

Dickinson como figuras formadoras de uma personalidade inconformada e em luta

contra o tempo.

Harriet Burden é uma muito boa ideia de Siri Hustvedt. Talvez uma protagonista à

medida da ambição da escritora, com muito de autobiografia nos interesses e

motivações num livro extenso (463 páginas) na edição portuguesa onde há a apontar,

por vezes, um excesso de zelo para que tudo funcione quase de forma científica.

Mesmo o erro, num jogo onde, adivinha-se à partida, o corpo nunca é alheio à obra

que cria.

Entrevista na Visão

http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/a-cultura-ocidental-insiste-em-associar-a-

masculinidade-a-mente-e-a-feminilidade-ao-corpo=f783630

A escritora e ensaísta americana Siri Hustvedt desafia-nos a mergulhar no fascinante

mundo da complexidade humana, ambígua por natureza, sem medos nem barreiras,

incluindo as de género.

Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando

a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se

encontra uma pila e um par de tomates." Palavras de Harriet Burden, a personagem

central de Mundo Ardente (ed. Dom Quixote, 463 págs., €22,90). O sexto romance de

Siri Hustvedt conduz os leitores ao universo de uma artista plástica que, menosprezada

no meio intelectual nova-iorquino, põe em marcha um plano arrojado: oculta a

identidade e esconde-se por detrás de três homens que assinam e expõem o seu

trabalho, com o intuito de desmontar preconceitos vigentes.

Deixemos agora o alter ego da autora e passemos à própria, com quem a VISÃO

conversou no Bairro Alto Hotel, em Lisboa. As calças de fazenda, os sapatos de salto

raso e a ausência de acessórios conferem-lhe um estilo casual chic e realçam o seu

porte alto, magro e, aparentemente, frágil. "Não quero que isto soe como banal, mas

gosto muito de cá estar", admitiu, no final da entrevista.

Quando vem a Portugal, sente-se em casa (a última vez foi em novembro, para o

Lisbon & Estoril Festival, acompanhada pelo marido, o escritor Paul Auster, e a filha, a

cantora Sophie Auster): "Os portugueses têm bom coração, não são nervosos,

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desagradáveis e competitivos." Ao longo de 40 minutos e sem papas na língua, contou-

nos o que pensa de mundos que conhece bem.

Arte. Escrita. Neurociência. Psicanálise.

Temas recorrentes nos seus livros, onde coabitam múltiplas vozes, de forma tão fluida

quanto ambígua, por ser assim, acrescenta, "que tocamos a profundidade das coisas".

Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. É este o seu lema?

Quando escrevo, mergulho nas personagens e torno-me nos seus múltiplos eus.

Associar um nome masculino a uma criação artística, realça-a. Se a autoria for

feminina, denigre-a. Não tenho dúvidas de que isto existe e está longe de acabar.

Numa assinatura, as iniciais são uma maneira de esbater o género.

As suas heroínas, ou alter egos, refletem isso?

Escrevi duas vezes como homem. No primeiro romance, Iris (anagrama de Siri) veste-

se de homem, é a armadura dela. Em Elegia para um americano, Burton veste-se de

mulher e o narrador descreve-o como um homem que está a voltar a si. Os meus livros

estão cheios de transformismo (vestir-se como sendo do sexo oposto). Esta é a

primeira vez que a história é contada através de vinte vozes.

As heroínas submissas continuam em alta. Basta lembrar o estrondoso sucesso de As

Cinquenta Sombras de Grey.

[Altera a expressão e faz uma pausa, antes de responder] O sucesso dessa obra está

além da minha compreensão! Neste livro quis criar uma personagem colossal. Um

monstro, não no sentido de Frankenstein, antes alguém que não cabe em nenhuma

categoria. Harriet (ou Harry) foi antecedida por Margaret Cavendish, a poetisa,

encenadora e filósofa naturalista do século XVII, com quem a personagem se identifica,

e que foi praticamente rejeitada no seu tempo.

Se vivesse noutro tempo, seria não um monstro mas uma bruxa destinada à fogueira.

No ensaio O Meu Pai/Eu Mesma menciono a relação entre a Bruxa e Joana d'Arc, feita

pela antropóloga Mary Douglas. Há um momento [em O Mundo Ardente] em que

Harriet diz: "Na vizinhança chamam-me bruxa. Eu aceito."

Lançou a sua obra no atelier de Joana Vasconcelos, o que vê na obra dela?

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Gosto particularmente das peças em que usa o croché, muito feminino. Há muita

coragem no que ela faz.

Teve um irmão imaginário e fantasiava ser rapaz. Ser mulher ainda é como usar

corpete?

[Sorriso enigmático] Surpreende-me como é que a cultura ocidental insiste em associar

a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo, na vida pública, doméstica,

emocional e pessoal. Não acredito na visão cartesiana, que separa corpo e mente.

Como lidou com isso, durante o longo processo de tratamento da enxaqueca e das

convulsões com causa indefinida, após a morte do seu pai?

É um problema crónico que controlo relativamente bem. Aprendi exercícios de

relaxamento profundo, para aliviar a dor. As auras são interessantes e não me importo

de tê-las. Creio que o envelhecimento e as mudanças hormonais tiveram um efeito

positivo nas dores de cabeça. Durante muito tempo eu fui controlada por convulsões,

tive uns cinco episódios. A minha neurologista leu A Mulher Trémula ou Uma História

dos Meus Nervos (não ficção, 2010), concorda comigo: os diagnósticos foram sempre

ambíguos.

Ambiguidade é um termo presente em todas as suas obras. Que valor tem para si?

É o meu chamamento estético e intelectual. Acredito que a complexidade da natureza

humana não cabe num único modelo teórico e situa-se em zonas focadas de

ambiguidade. O mesmo problema é visto de múltiplas perspetivas e não há uma só

resposta, é fascinante.

A psicanálise e a neurociência marcam presença constante no seu trabalho. Porquê?

Sempre me interessei por descobrir como é que as pessoas se tornam, a cada

momento, naquilo que são e estes campos lidam com a expressão do Eu.

E consegue dar conta de tudo o que lê e investiga, sem se esgotar?

A memória guarda o que é emocionalmente significativo, por isso não esqueço.

Consigo assimilar muita coisa e aprender bastante, porque tenho a sorte de poder

passar a maior parte do meu tempo a escrever e a ler em casa. Faço-o durante seis

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horas e, depois de uma pausa, leio quatro horas à noite. Exercito o corpo quatro vezes

por semana com um profissional, vou às compras, faço jardinagem.

"Só vemos a arte quando ela nos altera emocionalmente." Quer explicar?

Não existe uma definição consensual do que é a arte. Ela força o espetador, o leitor ou

o ouvinte a reconhecer qualidades maravilhosas na existência mundana. É o caso da

pintura de Vermeer, Leitora à Janela: sinto-me transportada. Ele tem a capacidade de

tornar uma coisa banal numa realidade transcendente.

A arte é sempre uma dádiva e um diálogo.

Esse diálogo acontece na ficção? Ou fora dela?

Como não há soluções finais para as respostas que procuro, a melhor forma de fazê-lo

é na ficção. Posso apresentar ideias, a várias vozes, encenar argumentos que não estão

resolvidos. A Mulher Trémula, por exemplo, foi o veículo perfeito para expor a minha

obsessão com o fisiológico e o mental. Começa por ser um alienígena e acaba como

algo que me pertence, Os Meus Nervos. A jornada faz-se do distanciamento para a

proximidade, pela biologia e ritmos do corpo, que se conjugam com a narrativa acerca

deles.

Freud estava certo, pelo menos em parte, no seu Projeto [Para uma Psicologia

Científica, 1895] da mente?

A teoria da mente que ele não conseguiu validar é hoje confirmada pela neurociência,

mas a divisão entre o fisiológico e psicológico não é uma solução satisfatória. Os

modelos da psiquiatria biológica têm um problema: não são dinâmicos, os sintomas

são tratados com fármacos, sem terem em conta outras abordagens.

Dá aulas de escrita criativa e já o fez com doentes psiquiátricos. O que pode dizer

sobre isso?

Fui professora voluntária durante quatro anos e agora, a convite de um amigo,

psiquiatra e psicanalista, estou a fazer palestras em Mainz, na Alemanha, sobre o Eu

escritor e o doente psiquiátrico. Os pacientes psicóticos têm dificuldades com a

narrativa e, sem ter a pretensão de convertê-los em escritores, a ideia é codificar o uso

da escrita com fins terapêuticos.

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Como vivem dois escritores na mesma casa, com as personagens de ambos?

Temos esta família de seres ficcionais que partilham vidas. Eu e o Paul [Auster]

sabemos o que se passa com cada um durante o dia. "Eu escrevi uma página hoje, tive

um dia terrível." O outro diz: "Quando é assim, no dia seguinte é melhor." Fazemos

isto há décadas e estamos a envelhecer juntos, agora que a nossa filha já tem o

apartamento dela.

Mudou alguma coisa com a saída?

Não houve propriamente um luto. Ela está bem e eu nunca fui mãe-galinha. A minha

mãe também não era. Talvez tenha a ver com as nossas raízes escandinavas, a reserva

e o respeito pela privacidade do outro.

O que significa a palavra "casa", para si?

É uma boa pergunta. Continuo a viver em Brooklyn, pelo menos enquanto conseguir

subir e descer escadas. É o lugar onde vivo, trabalho e tenciono escrever os romances

que tenho em mim.

E não se cansa desse processo?

A única coisa que me cansa e entedia é quando estou no aeroporto à espera das

malas, porque não posso ler. Nunca me entedio com as minhas vozes.

Como Fernando Pessoa.

Sim, ele também as tinha, embora um pouco loucas! [Solta uma gargalhada]. Ele e

Kierkegaard são exemplos dos múltiplos eus que temos e nos tornam outros.

Para muitos, isso é assustador.

Sim, é verdade, mas também é emocionante! Sem isso, e alguma fluidez interna,

raramente se consegue tocar a profundidade das coisas.

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BI. ESCRITORA E ENSAÍSTA

Com ascendência norueguesa, nasceu e cresceu nos Estados Unidos e vive em

Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster: celebram 33 anos de casamento,

em junho.

Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou

vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. Decidiu

ser escritora aos 13 anos. Aos 59, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção,

com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.

Esta área levou a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a

participar em conferências sobre a consciência, como a realizada há três anos, em

Berlim, ao lado do neurocientista António Damásio.

O livro do dia na TSF

https://www.tsf.pt/programa/o-livro-do-dia/emissao/o-mundo-ardente-de-siri-

hustvedt-4147659.html

Apresentação do livro O mundo ardente

https://sicnoticias.pt/cultura/2014-05-26-Livro-O-Mundo-Ardente-apresentado-no-

atelier-de-Joana-Vasconcelos-em-Lisboa

Site da escritora

http://sirihustvedt.net/