o mito de jÚpiter e a questÃo do incesto no … · nho da alma, contra escápula, ... o vestido...
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1026 Cadernos do CNLF, vol. XXI, n. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2017.
O MITO DE JPITER E A QUESTO DO INCESTO
NO APOLOGTICO DE TERTULIANO:
MITO E QUESTES DE TRADUO
Lus Carlos Lima Carpinetti (UFJF)
RESUMO
Imerso nos escombros da antiga civilizao greco-romana, o culto cristo era alvo
das maledicncias e difamaes, e assim se nos apresenta no texto do Apologeticum, de
Tertuliano. Nessa obra, como renomado jurista, Tertuliano transita entre as crenas
pags e articula uma defesa do cristianismo como religio e culto alternativos a um
universo de crenas e supersties que vicejam no decadente mundo romano que se
debate em aguda crise econmica. Neste artigo, discorremos sobre o mito de Jpiter e
sobre a questo do incesto imputado aos cristos em suas prticas secretas. Discorre-
remos sobre a origem e relaes de Jpiter, pai e deus dos deuses, bem como sobre
Ctsias de Cnido e sobre histria de dipo. Os rituais cristos despertam curiosidade
e so suscetveis a questionamentos de diversas ordens. Apresentamos o texto de Ter-
tuliano no qual este mito discutido pelo jurista Tertuliano, na passagem no caput IX,
pargrafos 16 a 20, e propomos a esse texto uma traduo nossa.
Palavras-chave: Mitos romanos. Mito de Jpiter. Tertuliano. Apologtica. Traduo.
1. Introduo: o autor Tertuliano e sua obra Apologtico
Tertuliano viveu aproximadamente 60 anos, a partir de 160 a 220
d.C. aproximadamente. As informaes sobre a biografia de Tertuliano
advm de suas obras e de comentrios de outros autores. Segundo a tra-
dio, Tertuliano cresceu em Cartago, onde teria nascido; filho de um
centurio romano, advogado treinado e padre ordenado. Essas afirmaes
so de Eusbio de Cesareia, em sua Histria Eclesistica144. Quanto a
So Jernimo145, alega este que o pai de Tertuliano tinha a posio de
centurio proconsular no Exrcito romano na frica. Porm, no est
claro se esta posio sequer existiu nas foras militares romanas.
O que sua obra revela o trato cuidadoso da palavra e da oratria,
fruto de seu conhecimento da retrica judiciria romana e da cultura gre-
co-romana. Manejava com desenvoltura o vocabulrio jurdico. Contudo,
144 Histria Eclesistica, Livro II, captulo II.
145 De uiris illustribus, cap. 53.
mailto:[email protected]
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no se deve confundi-lo com um jurista homnimo, mencionado no Di-
gesto. Tertuliano no era um jurista profissional. Observa-se nele o estilo
permeado de arcasmos e provincialismos, traos de linguagem a que
chamamos de africanismos. Suas imagens so brilhantes, e seu tempera-
mento apaixonado.
Sua converso ao cristianismo ocorreu por volta de 197-198, ten-
do sido, provavelmente, um evento repentino e decisivo, pois ela retrata
uma sociedade em que o cristianismo era ensejo para proscries, execu-
es e martrios. Uma pesquisa que revolucionou a leitura da obra de
Tertuliano revela que precisamos observar neste autor o legado dos pos-
tulados retricos de Ccero e que, quanto a estes postulados, observem-se
todos os tratados de Ccero, combinados com a disciplina da f crist (ou
regra de vida), dada pela pregao dos apstolos, e a regra de f, haurida
dos textos escritos ou atribudos ao apstolo Paulo. (FREDOUILLE,
2012, p. 42)146
Podemos dividir a sua obra em trs grandes grupos: escritos apo-
logticos, escritos polmicos, escritos disciplinares. categoria de escri-
tos apologticos pertencem as obras cuja meta a defesa da f contra os
opositores. A ela pertencem a obra Aos Pagos, Apologeticum (sua obra
mais conhecida, mais lida e traduzida ao longo dos sculos), O Testemu-
nho da Alma, Contra Escpula, Contra os Judeus. categoria de escri-
tos polmicos pertencem A Prescrio dos Hereges, Contra Marcio,
Contra Hermgenes, Contra os Valentinianos, O Batismo, Scorpiace, A
Carne de Cristo, A Ressurreio da Carne, Contra Prxeas, A Alma.
categoria de escritos ascticos, morais e disciplinares, referenciamos: Aos
Mrtires, Os Espetculos, O Vestido das Mulheres, A Orao, A Pacin-
cia, A Penitncia, Esposa, A Exortao da Castidade, A Monogamia,
O Vu das Virgens, A Coroa, A Fuga na Perseguio, A Idolatria, O Je-
jum, A Pudiccia, O Manto.
Neste artigo, o texto em foco o Apologtico. Tertuliano iniciou
sua tarefa literria no ano de 197. A crtica atual renunciou ao ideal de fi-
xar o ano exato que corresponde publicao de cada uma de suas obras,
146 Em Ernest Renan, pode-se ter uma viso melhor do papel exercido pela comunidade crist de Jerusalm, representada pelos doze apstolos e a misso de So Paulo, com suas inumerveis viagens e fundao de comunidades crists em vrias regies do mundo civilizado antigo. Nesse sentido so relevantes a obra Os apstolos e a obra So Paulo. Em nossa bibliografia, recomendamos a edio da editora Robert Laffont, pelo rigor de seu sistema de referncias e por se tratar do idioma original do clssico da historiografia do cristianismo, Lhistoire des Origines du Christianisme, obra em sete volumes.
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limitando-se a datar as cinco delas que contm aluses histricas que
permitem uma datao relativamente segura: Aos Gentios (In Nationi-
bus), Apologtico (Apologeticum) e Aos Mrtires (Ad Martyras) foram,
provavelmente, publicados no ano de 197 d.C.
O que mais chama a ateno no texto do Apologtico sua imer-
so no mundo pago e seu dialogismo entre a cultura pag e o que este
prope como mudana de mentalidade ou converso, em favor dos ideais
cristos. Neste sentido, articula sua dialtica entre a cultura pag e a pro-
posta de uma nova religio, defendendo os cristos das calnias e difa-
maes a eles imputadas por parte dos gentios. H inmeras acusaes
tais como infanticdio, pedofagia, homicdios de um modo geral, prticas
de orgias secretas e incestos. Tertuliano d conta de defender os cristos
que enfrentavam as perseguies e que eram alvo de calnias, as quais,
por sua vez, tinham por motivao as prticas mencionadas acima.
Neste artigo, abordamos a questo do incesto, que uma relao
sexual entre parentes (consanguneos e afins) dentro dos graus em que a
lei, a moral ou a religio probe ou condena o casamento. O que no
puro, no casto, impudico, impuro. Na histria de Jpiter, observamos
muito a presena do incesto em suas mltiplas unies.
2. Referncias do trecho do Apologtico caput IX, pargrafos 16 a 20
Falaremos primeiramente de Jpiter e suas unies. Zeus, como era
conhecido na Grcia, era um polgamo convicto e foi amante de deusas e
mortais. Primeiramente casou-se com Mtis, deusa da prudncia, filha de
Ttis e de Oceano. Quando Mtis estava grvida de Atenas, Gaia profeti-
zou que esta filha iria destron-lo de seu posto de deus dos deuses, como
havia acontecido com Cronos e Urano e que isso era um ciclo eterno.
Zeus, temendo que isto fosse acontecer, montou uma armadilha: fez uma
brincadeira com Mtis pela qual se metamorfoseariam. Mtis no foi
prudente e aceitou. Em algum momento, Mtis se metamorfoseou em
mosca e Zeus a engoliu. Isto de nada adiantou. Atenas nasceu adulta da
cabea de Zeus. A profecia de Gaia estava errada.
A segunda esposa de Zeus foi Tmis, tit e deusa da justia. As
moiras levaram Tmis at Zeus para se tornar sua esposa. As moiras pro-
fetizaram que Zeus teria muito a aprender com Tmis, que era to sbia
quanto Mtis. Foi ela quem temperou o poder de Zeus com muita sabe-
doria e com seu profundo respeito pelas leis naturais. Entretanto, o casa-
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mento dos dois no foi de total e doce harmonia, pois, embora transitasse
sabedoria entre eles, os ditames de um e de outro sempre tinham um pre-
o muito elevado, pois nada possui soluo definitiva. Assim, o matri-
mnio com Tmis foi desfeito, e Zeus casou-se finalmente com sua irm
Hera. Embora casado com Hera, Zeus tinha inmeras amantes. Ele se
metamorfoseava de diversas maneiras para se relacionar com suas aman-
tes, como a metamorfose em qualquer objeto ou criatura viva, sendo o
caso mais famoso o caso de sua metamorfose em cisne para se relacionar
com Leda, e o touro para se relacionar com Europa. Com Alcmena, ele
se disfarou de Anfitrio e engravidou-a de Hrcules. Com Leda, nasceu-
lhe Helena. Helena era irm gmea da rainha Clitemnestra de Micenas,
irm de Castor e Plux e esposa do rei Menelau de Esparta.
Hera, irm e esposa de Jpiter, era ciumenta e perseguia as aman-
tes e os filhos de tais relacionamentos, a ponto de tentar matar a Hracles
ainda beb. O nico filho de Zeus que Hera no odiava, antes gostava,
era Hermes, filho de Zeus com Maia, devido sua inteligncia. Hera
possua sete templos na Grcia, dos quais no sobrou nenhum, pois H-
racles os destruiu todos, tendo sido, por este feito, reconhecido como he-
ri no Olimpo. Ela era muito vaidosa e sempre quis ser mais bonita que
Afrodite, sua maior inimiga. Zeus tambm foi pai de Persfone, com sua
irm Demter. Zeus tambm foi pai de Eros, com Afrodite.
Percebemos, por este relato, o quanto Zeus praticava relaes in-
cestuosas.
Quanto referncia a Ctsias de Cnido147, a quem Tertuliano alu-
de, ao citar o costume dos persas de terem comrcio carnal com suas
prprias mes, dizem-nos as enciclopdias consultadas que era mdico e
historiador da cidade de Cnido, situada na Cria; que viveu no sculo V
a.C., era mdico particular de Artaxerxes Mnemom, ao qual acompanhou
em 401 a.C. em sua expedio contra seu irmo Cyro, o mais jovem.
Ctsias era o autor de tratados sobre rios, as receitas persas de um relat-
rio sobre a ndia (Indica) e de uma histria sobre a Assria e a Prsia, em
23 livros, chamados Persica, escritos em oposio a Herdoto no dialeto
jnico, decididamente fundados nos Arquivos Reais Persas.
Na obra Persica, Ctsias fez a cobertura da histria da Assria e
da Babilnia para a fundao do imprio Persa; os dezessete restantes
147As anotaes sobre Ctsias de Cnido foram traduzidas do ingls do site https://en.wikipedia.org/wiki/Ctesias, onde se encontram essas informaes.
https://en.wikipedia.org/wiki/Ctesias
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cobrem as notcias at o ano de 398 a.C. Das duas histrias, ns possu-
mos resumos feitos por Photius, e h fragmentos preservados por Ateneu,
Plutarco, Nicolau de Damasco e, especialmente, Diodoro Sculo, cujo se-
gundo livro devido em sua autoria na maior parte a Ctsias. Como rela-
o ao valor dos Persica, tem havido muita controvrsia, tanto na Anti-
guidade quanto modernamente. Embora muitas autoridades antigas o te-
nham tido em alta estima, usando-o para desqualificar Herdoto, um au-
tor moderno escreve que a obra de Ctsias, por falta de confiabilidade,
faz com que Herdoto parea um modelo de preciso. O relato de Ctsias
acerca dos reis assrios faz com que ele no se reconcilie com a evidncia
cuneiforme. O satirista Luciano fez to pouco caso da confiabilidade his-
trica de Ctsias que em sua satrica Histria Verdadeira ele coloca
Ctsias numa ilha, onde o mal fosse punido. Luciano escreveu que o
povo que sofreu o maior tormento foram aqueles que contaram mentiras
quando eles estavam vivos e escreveram histrias mentirosas, entre eles
estavam Ctsias de Cnido, Herdoto e muitos outros.
Na obra Indica, o registro da viso que os Persas sustentaram da
ndia, sob o ttulo de Indica, inclui descries de povos semelhantes aos
deuses, filsofos, artesos e ouro inquantificvel, entre outras riquezas e
maravilhas. de grande valor o fato de registrar as crenas dos persas
sobre a ndia. Restam do livro apenas fragmentos e relatos feitos sobre o
livro por autores a ele posteriores.
dipo Rei, tragdia de Sfocles (497 ou 496 inverno de 406 ou
405 a.C.) nos relata a histria de um rei tebano predestinado a matar seu
pai e a casar-se com sua me. Sabendo disso, seus pais Laio e Jocasta
abandonaram o menino tendo este sido criado pelo rei de Corinto, como
se fosse seu prprio filho. J adulto, retornara a Corinto e acertara a per-
gunta que lhe fora feita pela Esfinge, monstro que era metade leo, meta-
de mulher. Esta no o devorou, e ele se tornou um heri. Diante de uma
peste que assolava a cidade de Tebas, cidade sobre a qual reinava, busca
saber a causa da mesma. Ento, depois de muito investigar e fazer suas
buscas, descobre que o casal que o abandonara quando menino eram seus
pais, Laio e Jocasta. E que, sem o saber, matara a Laio, numa discusso
que tiveram, e se casara com Jocasta, sua me, que morava com ele no
palcio. Diante da descoberta, ele cai em si e descobre que seu ato, inter-
ditado pela religio, era a causa de toda a calamidade. Sua atitude, em
vista do tremendo desconforto ou culpa, foi de vazar seus olhos e sua
me-mulher, Jocasta, se enforcar.
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Sfocles148 escreveu muitas obras teatrais, em nmero de 123, das
quais sete chegaram at nossos dias: As Traqunias, Antgona, Ajax, di-
po Rei, Electra, Filocteto, dipo em Colono. Foi um grande autor teatral
no gnero dramtico trgico, ao lado de squilo e Eurpides, dentre aque-
les cujo trabalho sobreviveu. Por quase 50 anos, Sfocles foi o mais ce-
lebrado teatrlogo nos concursos dramticos da cidade de Atenas, que
aconteciam durante as festas religiosas Leneana e Dionsia. Sfocles
competiu em cerca de trinta concursos, venceu vinte e quatro e, talvez,
nunca tenha ficado abaixo do segundo lugar. Em comparao, squilo
venceu 14 concursos, e foi derrotado por Sfocles vrias vezes, enquanto
Eurpides ganhou apenas 4 competies. Sfocles tambm trabalhou co-
mo ator. Foi ordenado sacerdote de Asclpio, deus da medicina, e eleito
duas vezes para a Junta de generais, que administrava os negcios civis e
militares de Atenas. Dirigiu o departamento do Tesouro que controlava
os fundos da Confederao de Delos. Em suas tragdias, mostra dois ti-
pos de sofrimento: o que decorre do excesso de paixo e o que conse-
quncia de um acontecimento acidental (destino).
Assim vemos as trs referncias literrias do trecho traduzido do
Apologtico de Tertuliano. Passamos agora discusso das escolhas de
traduo que apresentamos do caput IX pargrafos 16 a 20.
3. Discusso de escolhas de traduo
Na sequncia, apresentamos o texto de Tertuliano em latim:
IX.16. Proinde incesti qui magis quam quos ipse Iuppiter docuit? Persas cum suis matribus misceri Ctesias refert. Sed et Macedones suspecti, quia,
cum primum Oedipum tragoediam audissent, ridentes incesti dolorem:
" ", dicebant, " !". 17. Iam nunc recogitate, quantum li-ceat erroribus ad incesta miscenda, suppeditante omaterias passiuitate luxuri-
ae. Inprimis filios exponitis suscipiendos ab aliqua praetereunte misericordia
extranea, uel adoptandos melioribus parentibus emancipatis. Alienati generis necesse est quandoque memoriam dissipari; et simul error impegerit, exinde
iam tradux proficiet incesti serpente genere cum scelere. 18. Tunc deinde quo-
cumque in loco, domi, peregre, trans freta, comes est libido, cuius ubique sal-tus facile possunt alicubi ignaris filios pangere uel ex aliqua seminis portione,
ut ita sparsum genus per commercia humana concurrat in memorias suas, ne-que eas caecus incesti sanguinis agnoscat. 19. Nos ab isto euentu diligentissi-
ma et fidelissima castitas saepsit, quantumque ab stupris et ab omni post ma-
trimonium excessu, tantum et ab incesti casu tuti sumus. Quidam multo secu-
148 As anotaes relativas biografia de Sfocles, foram colhidas no site https://pt.wikipedia.org/wiki/Sofocles.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sofocles
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riores totam uim huis erroris uirgine continentia depellunt, senes pueri. 20. Haec in uobis esse si consideraretis, proinde in Christianis non esse perspice-
retis. Idem oculi renuntiassent utrumque. Sed caecitatis duae species facile
concurrunt, ut qui non uident quae sunt, uidere uideantur quae non sunt. Sic per omnia ostendam. Nunc de manifestioribus dicam.
Passemos anlise das frases e apresentao das escolhas feitas
de traduo.
A frase Proinde incesti qui magis quam quos ipse Iuppiter docuit?
representa uma constatao das vrias prticas de incesto atribudas a J-
piter, deus dos deuses na mitologia pag. uma pergunta retrica. Nesta
frase, o verbo docuit tem como complemento o pronome demonstrativo
quos, o qual determinado pelo genitivo singular de incestum, -i. Em
quos est subentendido um substantivo masculino plural que entendemos
que seja algo como casus, us que entendemos como caso, ocorrn-
cia. Como docere um verbo que seria apresentar provas, documentar,
instruir no processo judicial, criamos uma locuo verbal que traduzi-
mos como apresentar ocorrncias. O genitivo incesti um genitivo ob-
jetivo, complemento nominal de quos.
Assim resolvemos traduzir a frase como: Por conseguinte, quem
mais apresentou ocorrncias de incesto do que as que o prprio Jpiter
apresentou?
A frase Persas cum suis matribus misceri Ctesias refert apresenta
o verbo dicendi refero e uma orao infinitiva persas cum suis matribus
misceri. Refero relatar, narrar. Aqui a informao sobre Ctsias de
Cnido decisiva para se entender que se trata de uma narrativa histrica,
sendo este autor um historiador da cultura oriental. Como a expresso
misceri no se aplica a uma voz ativa, entendemos que o mesmo trata de
uma voz mdia ou depoente. Era muito comum que os verbos de voz ati-
va passassem a ser depoente e vice-versa, segundo Alfred Ernout149. As-
sim entendemos que misceri uma voz mdia (depoente).
Assim traduziramos por enroscar-se, ter comrcio carnal: Ct-
sias de Cnido150 relata que os persas tm comrcio carnal com suas pr-
prias mes.
149 Alfred Ernout (1989, p. 1150. Consulte-se suas informaes sobre o verbo depoente.
150 Mdico de Artaxerxes Memnon, o qual ele acompanhou em sua expedio contra Ciro em 401 a.C. Consultar suas Histoires de lOrient, Paris, Les Belles-Lettres, 1991.
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Tratemos do trecho Sed et Macedones suspecti, quia, cum primum
Oedipum tragoediam audissent, ridentes incesti dolorem: " ", di-
cebant, " !". A orao Sed et Macedones suspecti um sin-
tagma nominal no qual est subentendido o verbo esse. A orao causal
quia dicebant ridentes incesti dolorem aponta o motivo de se suspeitar
dos macednios: o riso diante da frase em grego " -
!" (lana-te sobre tua me), ao ouvirem pela primeira vez a tragdia
dipo-Rei.
Assim traduzimos: Mas os macednios so tambm suspeitos,
porque, quando, pela primeira vez, ouviam a tragdia de dipo, rindo da
dor do incesto, diziam 'Lana-te sobre tua me!'
Passemos ao trecho Iam nunc recogitate, quantum liceat erroribus
ad incesta miscenda, suppeditante materias passiuitate luxuriae. Esta-
mos diante de um convite reflexo com o imperativo recogitate, que
podemos traduzir, como nossa preferncia, pela segunda pessoa do plu-
ral, porque um discurso pomposo e formal, refleti. Este verbo tem
como complemento uma orao interrogativa subordinada quantum lice-
at erroribus ad incesta miscenda, e um ablativo absoluto suppeditante
materias passiuitate luxuriae, que podemos traduzir por o quanto se d
permisso aos vossos equvocos para se misturar os incestos, quando a
promiscuidade da devassido multiplica as ocasies.
Destarte, temos: Eia, refleti agora o quanto se permite aos vossos
equvocos cometer incestos, com a promiscuidade da devassido que
vem ao encontro das ocasies.
Adiante ao trecho Inprimis filios exponitis suscipiendos ab aliqua
praetereunte misericordia extranea, uel adoptandos melioribus parenti-
bus emancipatis.Notamos aqui o uso alternado da preposio de forma
pouco comum: no primeiro caso, h uma personificao da misericrdia,
j no segundo caso ou omitida por se subentend-la j presente, ou por
ausncia de necessidade. Em ambos os casos, os ablativos trazem a fun-
o de agente da passiva, complementos dos particpios futuros passivos
suscipiendos e adoptandos. Estamos diante de um primeiro passo: o
abandono dos filhos merc da compaixo dos outros ou da adoo por
pais melhores.
Assim, pensamos em traduzir da seguinte forma: Primeiramente,
abandonais vossos filhos a fim de que a compaixo dos outros deles se
encarregue ou que pais melhores os adotem.
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Tratemos agora do trecho Alienati generis necesse est quandoque
memoriam dissipari; et simul error impegerit, exinde iam tradux profici-
et incesti serpente genere cum scelere. Fala-se da necessidade de que a
lembrana da famlia da qual se separou se desvanea. E que, uma vez
que o erro tenha sido plantado, a partir dele a raiz do incesto far pro-
gressos com o rastejar da famlia com o crime. interessante notar os
seguintes itens lexicais: o verbo impingere (plantar em, incutir), o subs-
tantivo tradux (rama, sarmento) e o verbo serpere (serpentear, rastejar),
quando os mesmos denotam uma gradao de movimentos, comeando
pelo plantio, passando pelo vegetal que se alastra e terminando pelo mo-
vimento prprio do rptil.
Assim temos: "Faz-se mister que a lembrana de sua famlia que
se lhe tornou estranha, um dia se desvanea e, to logo o erro tiver sido
incutido, far progressos a rama do incesto, com a famlia rastejando-se
com o crime".
Passemos ao trecho Tunc deinde quocumque in loco, domi, pere-
gre, trans freta, comes est libido, cuius ubique saltus facile possunt ali-
cubi ignaris filios pangere uel ex aliqua seminis portione, ut ita sparsum
genus per commercia humana concurrat in memorias suas, neque eas
caecus incesti sanguinis agnoscat. Percebe-se neste trecho a constncia e
insistncia do desejo carnal, sua atuao inconsciente das consequncias
e o reinado do acaso e das situaes fortuitas. O trecho aponta para o fato
de que o desejo carnal acompanha o indivduo onde quer que esteja, e
que os desvios desse desejo podem facilmente gerar-lhe filhos em algum
lugar sem que os mesmos tenham conhecimento ou de alguma poro da
semente, de tal modo que a famlia disseminada pelas relaes humanas
se encontre em suas lembranas e, inconsciente do sangue incestuoso,
no as reconhea.
Assim traduzimos:
Ento, novamente, em qualquer que seja o lugar, em casa, em pas estran-geiro, atravs dos mares, a paixo lhe companheira, cujos desvios em toda
parte podem, em algum lugar, facilmente vos gerar filhos sem que tenhais co-nhecimento ou que se origine de alguma poro da semente, de tal modo que a
famlia disseminada pelas relaes humanas se encontre em suas lembranas
e, inconsciente do sangue incestuoso, no as reconhea.
O pargrafo 19 traz o seguinte texto: Nos ab isto euentu diligen-
tissima et fidelissima castitas saepsit, quantumque ab stupris et ab omni
post matrimonium excessu, tantum et ab incesti casu tuti sumus. Quidam
multo securiores totam uim huis erroris uirgine continentia depellunt,
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senes pueri. O foco da situao apresentada anteriormente, muda, da ati-
tude dos gentios, para a atitude dos cristos perante esta situao. Isto faz
lembrar as admoestaes do texto do Evangelho dadas por Jesus a seus
discpulos, nas quais, diante de uma dada situao corrente na atitude re-
ligiosa hipcrita de fariseus e escribas, Jesus lhes aconselhava o contr-
rio. Consulte-se Mateus 23, 8 e ver-se- o contraste da fala de Jesus em
relao atitude religiosa dos fariseus e escribas151. Tertuliano articula
sua fala em conformidade com a tradio apostlica, segundo a regra de
vida152.
Assim traduzimos o trecho apresentado:
A ns protegeu deste tipo de acontecimento a diligentssima e fidelssima castidade, tanto quanto das relaes sexuais e de todo falecimento depois do
matrimnio, como tanto somos protegidos do ensejo do incesto. Alguns entre
ns, muito mais seguros, desviam toda a fora deste erro por uma continncia virginal, velhos puros como crianas.
Para terminar o texto de Tertuliano que selecionamos, passemos
ao pargrafo 20: Haec in uobis esse si consideraretis, proinde in Christi-
anis non esse perspiceretis. Idem oculi renuntiassent utrumque. Sed cae-
citatis duae species facile concurrunt, ut qui non uident quae sunt, uidere
uideantur quae non sunt. Sic per omnia ostendam. Nunc de manifestiori-
bus dicam. O trecho reflete sobre um mecanismo muito comum junto s
pessoas que a projeo sobre o outro da viso que temos de ns mes-
mos. Desta maneira os pagos enxergam nos rituais secretos algo como a
devassido e tudo que dela decorre, como a fonte de todos os outros v-
cios, sobretudo se a lngua que os cristos utilizam contm os mesmos
significantes da dos gentios. Lembremos de amare do qual nos d teste-
munho a poesia de Catulo e todas as implicaes de paixo, amor carnal
e outros153.
Assim traduzimos o trecho:
Portanto, se vs considersseis haver em vs esses crimes, vs vereis cla-ramente no hav-los entre os cristos. Os mesmos olhos vos teriam apresen-
tado uma e outra coisa. Mas as duas espcies de cegueira facilmente coexis-
151Em portugus no Evangelho aparece a expresso quanto a vs, em latim uos autem, em grego .
152 Leia-se Jean-Claude Fredouille (2012, p. 42), onde encontramos o termo latino disciplina como regra de vida.
153 Lembre-se tambm do seriado Roma, a inscrio no portal da casa da personagem Attia Attia amat omnes. Attia era a mulher mais devassa do seriado.
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tem de modo que aqueles que no veem o que h parecem ver o que no h. Assim o mostrarei atravs de toda a sequncia. Agora falarei dos crimes a to-
dos mais visveis.
Agora apresentamos o resultado de nosso trabalho com toda a se-
quncia:
16. Por conseguinte, quem mais apresentou ocorrncias de incesto do que
as que o prprio Jpiter apresentou? Ctsias de Cnido154 relata que os persas
tm comrcio carnal com suas prprias mes. Mas os macednios so tambm suspeitos, porque, quando, pela primeira vez, ouviam a tragdia de dipo, rin-
do da dor do incesto, diziam Lana-te sobre tua me!155
17. Eia, refleti agora o quanto se permite aos vossos equvocos cometer incestos, com a promiscuidade da devassido que vem ao encontro das ocasi-
es. Primeiramente, abandonais vossos filhos a fim de que a compaixo dos outros deles se encarregue ou que pais melhores os adotem. Faz-se mister que
a lembrana de sua famlia que se lhe tornou estranha, um dia se desvanea e
que, to logo o erro tiver sido plantado, far progressos a rama do incesto, com a famlia rastejando-se com o crime.
18. Ento, novamente, em qualquer que seja o lugar, em casa, em pas es-
trangeiro, atravs dos mares, a paixo lhe companheira, e os seus desvios em
toda parte podem, em algum lugar, facilmente vos gerar filhos sem que te-
nhais conhecimento ou que se originem de alguma poro da semente, de tal
modo que a famlia disseminada pelas relaes humanas se encontre em suas lembranas e, inconsciente do sangue incestuoso, no as reconhea.
19. A ns protegeu deste tipo de acontecimento a diligentssima e fidels-
sima castidade, tanto quanto das relaes sexuais e de todo falecimento depois do matrimnio, como tanto somos protegidos do ensejo do incesto. Alguns en-
tre ns, muito mais seguros, desviam toda a fora deste erro por uma conti-
nncia virginal, velhos puros como crianas.
20. Portanto, se vs considersseis haver em vs esses crimes, vs vereis
claramente no hav-los entre os cristos. Os mesmos olhos vos teriam apre-
sentado uma e outra coisa. Mas as duas espcies de cegueira facilmente coe-xistem de modo que aqueles que no veem o que h parecem ver o que no h.
Assim o mostrarei atravs de toda a sequncia. Agora falarei dos crimes a to-
dos mais visveis.
4. Concluso
A mitologia pag, retratada na figura de Jpiter, de dipo e nas
fontes a que Tertuliano teve acesso nos trazem, tambm segundo o tes-
154 Mdico de Artaxerxes Memnon, o qual ele acompanhou em sua expedio contra Ciro em 401 a.C. Consultar suas Histoires de lOrient, Paris, Les Belles-Lettres, 1991.
155 Em grego:
XXI CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA
Anais do XXI Congresso Nacional de Lingustica e Filologia: Textos Completos 1037
temunho de Tertuliano, uma cultura em que o incesto era uma prtica
corrente, que, infelizmente, no cessou em to recuadas eras, permeando
ainda hoje, o noticirio da televiso e da mdia. O abuso sexual praticado
por adultos contra menores da mesma famlia crime, segundo legisla-
o vigente em vrias regies do mundo civilizado. Entretanto, isto no
pode impedir que crianas e adolescentes sejam vtimas da prtica de
abuso sexual e at de prostituio.
Os rituais cristos, com seus cnticos em plena madrugada, em
locais de difcil acesso e restrito ao pblico, despertavam a curiosidade e
atiavam a imaginao. Como os cristos se utilizavam dos mesmos sig-
nificantes da lngua do paganismo, era natural que os pagos entendes-
sem e interpretassem o que ouviam e o que lhes era vedado ver segundo
suas experincias e vivncias correntes. Citamos como exemplo a poesia
de Catulo que traduz o que significa amar na cultura pag romana, e
tambm nos lembramos da personagem Attia, do seriado Roma.
A defesa de Tertuliano em favor dos cristos, nesse to delicado
assunto, permanece atual, no sentido em que a humanidade ter que pas-
sar ainda por muitas evolues a fim de que se resolva emocional e afeti-
vamente acerca da proposta do amor revelado na religio crist, num
mundo em que vive na Idade de Ferro do materialismo e da busca desen-
freada da sobrevivncia e dos bens materiais.
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