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O mito de Héracles: aspectos da tradição literária e inovações no Héracles deEurípides

Autor(es): Santos, Carlos Ferreira

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23802

Accessed : 1-Feb-2019 12:52:02

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MÁ THESIS 7 1998 9-32

o MITO DE HÉRACLES: ASPECTOS DA TRADIÇÃO LITERÁRIA E

INOV AÇÕES NO HÉRACLES DE EURÍPIDES*

CARLOS FERREIRA SANTOS

o mito de Héracles confunde-se com a génese da própria civilização grega e reflecte as constantes ligações entre esta e outras civilizações. De facto, muitos dos aspectos do mito de Héracles (como a pele de leão, o arco e a clava, a captura de leões e aves de rapina) são, por um lado, comuns a heróis que povoam o imaginário de outras civilizações e, por outro, resultam da confluência de elementos pertencentes ao domínio do folclore e dos contos populares I. "Héracles não é com certeza uma criação grega que expresse os ideais do espírito dórico. As suas origens escondem-se nos alvores do tempo e o seu carácter de figura pan-helénica recua pelo menos até aos tempos micénicos,,2. Burkert considera que "o núcleo do complexo de Héracles deve ser mais antigo ainda: a captura e a oferta de animais comestíveis aponta para a cultura dos caçadores e a relação com o além, expressa na aquisição do gado solar, na llha Vermelha e nos cavalos antropófagos, faz parte da magia xamanística dos caçadores, com a qual parecem estar relacionadas também as pinturas das cavernas que remontam ao início do Paleolítico,,3.

Esta figura, cujas origens se perdem nos primórdios da própria civilização, tão plurifacetada e cativante, não podia deixar de exercer fascínio e atracção no imaginário dos primitivos habitantes da Hélade

• Este artigo resulta, no essencial, de um dos capítulos da tese de mestrado Eurípides Héracles (introdução. tradução e notas), elaborada sob orientação do Prof. Doutor Manuel de Oliveira Pulquério e apresentada, em 1996, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Como texto base, adoptámos a edição de Kevin Hargreaves LEE (1988). Nos restantes autores Gregos referenciados, utilizámos o texto das Edições ''Les Belles Lettres", salvo indicação em contrário.

I Cf. BURKERT, W. (1993): 405-406.

2 FERREIRA, J. R. (1992): 131.

3 BURKERT, W. (1993): 406.

10 CARLOS FERREIRA SANTOS

e consubstanciar-se, consequentemente, nas primitivas manifestações literárias, de que se destaca, como elemento mais representativo, a epopeia heróica de Homero, a Ilíada e a Odisseia.

Hérac1es não é propriamente o herói típico dos poemas homéricos, pois a epopeia homérica narra, sobretudo, a luta entre os heróis intervenientes na Guerra de Tróia e as peripécias do regresso de um desses heróis, Ulisses. As lutas de Hérac1es são lutas contra seres monstruosos, animais ferozes que ameaçam o homem. Hérac1es "não é, por esse motivo, uma figura fundamental dos poemas homéricos, onde lhe são feitas, no entanto, várias referências e dele se fala como um herói de tempos passados,,4. As referências presentes nos poemas homéricos e as constantes comparações estabelecidas entre os heróis homéricos, as suas acções e Héracles demonstram que, na época de fixação das epopeias de Homero, alguns dados do mito de Héracles estavam já tão difundidos que, mais do que referências explícitas, bastava a alusão e/ou comparação; a existência de uma tradição épica oral ou escrita sobre Héracles pode explicar tais alusões na epopeia homérica5

De facto, a Ilíada demonstra que dados sobre o nascimento do poderoso Héracles ("~ll1V 'HpaKÀl1Ell1V,,)6, como a sua geração por Alcmena7 e a paternidade divina, o juramento de Zeus8 e consequente subordinação a seu primo, bem como os trabalhos realizados sob as ordens de Euristeu ("Eupva911oc M9Àwv,,)9 são aspectos do mito já conhecidos e difundidos. Alusões à sua descendência e aos trabalhos que teve de suportar, em virtude do juramento de Zeus, suscitado por Hera, elementos fundamentais do mito de Héracles, estão presentes na Ilíada. A tentativa de aproximação de Héracles ao nível humano dos feitos dos heróis homéricos 10 explica as breves referências à expedição contra Tróia II. A aproximação ao ideal homérico revela-se

4 FERREIRA, J. R. (1992): 131.

5 Cf. GALlNSKY, G. K. (1972): 9-10.

6 II. 5.638-655, onde Hérac1es ostenta os epítetos de ''9paauI1Él1vova'' e "8WoÀÉovTa"; os mesmos epítetos aparecem em Od. 11.267.

7 II. 14.323-24; Od. 11.266-270.

8 ll. 19.95-133.

9 II. 19.133; II. 8.363; II. 15.639.

IOGALlNSKY, G. K. (1972): 15.

11 II. 20.145-148; II. 5.638-655, onde se alude à segunda expedição por causa dos cavalos prometidos por Laomedonte.

o MITO DE HÉRACLES 11

também na alusão à tomada de PilOSI2; traços de humanização estão patentes na permanência em Cós 13

, para onde foi empurrado pelos ventos enviados por Hera. Atena aparece como deusa protectora, na epopeia homérica, enquanto ele realiza os trabalhos de Euristeu e chora para os céus, implorando a ajuda divinal4

Os traços primitivos de uma certa rudeza e crueldade são evidentes, quando se refere que "o rude filho de Anfitrião" (v. 392) atacou Hera e Hades 15, num dos poucos passos da Ilíada em que os deuses sofrem ataques dos homens l6

, o que leva Dione a considerar Héracles malvado, pois com o seu arco atacou os Deuses do Olimpol7. Na mesma linha de estabelecimento de paralelos e comparações dos heróis homéricos com Héracles, Aquiles reconhece que também ele há-de morrer, uma vez que nem o poderoso Héracles escapou à morte l8

, "pois venceu-o o destino e a terrível cólera de Hera" ("áÀÀá É lJ.olp' EoálJ.aOOE KaL ápyaÀÉoç XÓÀoç "HpT]ç,,)19. Esta associação da inimizade de Hera com o destino que conduz à morte de Héracles parece-nos significativa, porquanto Héracles, no final da peça de Eurípides, acaba também por reconhecer que foi vítima do destino e de um golpe cruel de Hera20

De qualquer forma, o triunfo sobre a morte e a descida aos Infernos para trazer o cão do Hades eram já um dado conhecido da Ilíada e da Odisseia21

• Na célebre catábase do Canto XI da Odisseia, Ulisses vê o "E'(OWÀov" de Héracles no Hades, enquanto Héracles está entre os deuses imortais, desposando Hebe, a filha de Zeus e Hera; Héracles recorda, então, a Ulisses, numa tentativa de realçar traços

12 II. 11.690-93; Il. 5.396-97.

13 II. 14.255-56.

14 II. 8.362-65.

15 II. 5.392-402.

16 Cf. GALINSKY, G. K. (1972): 10.

17 II. 5.403-404.

18 II. 18.117-119.

19 II. 18.119. A presença da forma verbal IE8á~waaE" não deixa antever até que ponto esta alusão remete para a conhecida versão da morte do herói pelo fogo, ou apenas para a vitória decorrente do cumprimento dos seus trabalhos ou do assassínio dos próprios filhos.

2o E.HF, 1356e 1393.

21 II. 8.366-69; Od. 11.623-25.

12 CARLOS FERREIRA SANTOS

comuns entre os dois heróis, que também ele teve de suportar árduos trabalhos ao serviço de um homem inferior e o modo como conseguiu capturar o cão do Hades com a ajuda de Hermes e de Atena22

A tentativa de ligação de Héracles com Ulisses está também patente na história sobre o arco de Ulisses, um presente que Ífito, filho de Êurito, lhe concedera num encontro na Lacedemónia; Ífito procurava uns cavalos, quando Héracles o mata, apesar de ser seu hóspede, não respeitando os deuses e os deveres da hospitalidade, tal como Ulisses se prepara para fazer com os pretendentes23

• Ulisses, aliás, refere-se a Héracles, quando afirma que não quer entrar em contenda com homens do passado, Héracles e Êurito, que desafiaram os imortais com o arc024

No Hino Homérico a Héracles, recorda-se a vida errante sobre a terra e sobre o mar (v. 4) do "apLGTOV 'HpciKÀÉa" (v. 1), os inúmeros trabalhos que realizou (vv. 5-6) e a sua imortalidade no Olimpo, onde tem por esposa Hebe, a deusa da juventude (vv. 8-9).

Héracles apresenta assim uma certa ambiguidade, aparecendo ora como paradigma para os heróis homéricos ora como um ser arrogante e brutal, mas que, apesar de tudo, atinge a imortalidade. Segundo R. Aélion, "1'Héraclês homérique se plaint d'avoir beaucoup souffert, mais lui-même a causé bien des maux,,25.

Hesíodo, o primeiro sistematizador da multiplicidade de histórias constitutivas do mito, alude aos diversos monstros que Héracles matou para salvar os seres humanos. Na Teogonia, aparece aquilo que poderemos considerar uma primitiva sistematização do material mitológico que prefigura o cânone tradicional dos trabalhos do herói: morte de Gérion (vv. 289-294; 982-983); hidra de Lema (vv. 313-318), destruída por Héracles com a ajuda de Atena; morte do leão que Hera fez crescer nos vales de Nemeia (vv. 326-332); salvação de Prometeu (vv. 526-534); casamento com Hebe e morada no Olimpo,

22 Od. 11.601-626.

230d. 21.11-30. Apesar de os versos 27-29 condenarem severamente o compor­tamento de Héracles, a tentativa de estabelecer um paralelismo com a situação de Ulisses justifica o anacronismo deste passo. A condenação de Héracles é assim apenas um meio para justificar a acção de Ulisses. Cf. GALINSKY, G. K. (1972): 11-12.

24 Od. 8.223-25. R. AÉLION (1983 vol. II: 355 n. 115) interroga-se se não poderemos ver neste passo um sinal da arrogância de Héracles. G. K. GALINSKY (1972: 11) afirma que talvez aqui esteja uma breve alusão ao ataque de Héracles contra os deuses, descrito em II. 5.392-404. "

25 AÉLION, R. (1983) vol. II: 355.

o MITO DE HÉRACLES 13

depois de ter suportado penosos trabalhos (vv. 950-955). Na Teogonia, Héracles aparece sobretudo na sua faceta de salvador e benfeitor, como um ideal ético ou um herói de cult026

, tendo sido desprovido de alguns traços de brutalidade e arrogância que estavam presentes em Homero.

No Scutum Herculis, provavelmente apócrifo, uma "post Homeric interpretatio Homerica of Herakles,,27, numa tentativa de rivalizar com a descrição homérica do escudo de Aquiles no canto XVIII da Ilíada, Héracles combate, a pedido de Apolo (vv. 68-69), contra Cicno, um monstro que atacava na Tessália os peregrinos que se dirigiam para Delfos. Héracles combate Cicno com as armas de um guerreiro épico, o escudo e a lança. A advertência (vv. 325-337) e a intervenção final de Atena, impedindo Ares de matar Héracles (vv. 446-450), inserem-se na tradicional concepção da deusa como protectora do herói.

Nos vv. 89-91, depois de se recordar a morte de Eléctrion, refere-se que Anfitrião teve de abandonar Tirinta e partir para Tebas (vv. 80-81), para prestar as homenagens ao infame Euristeu, de quem ainda se não libertou (vv. 91-93). Por outro lado, no v. 94, Héracles reconhece que foi o "OaLl-LúJv" que lhe impôs os duros trabalhos. Nestes dois passos, o motivo do exílio de Anfitrião, a submissão a Euristeu e o destino, que impôs a Héracles duros trabalhos, aparecem em estreita conexão, tal como acontece nos vv. 15-22 do Héracles de Eurípides, em que Anfitrião afirma que Héracles se ofereceu a Euristeu, para libertar a família do exílio, "subjugado por Hera ou pelo terrível destino" (v. 22).

A submissão de Héracles a Euristeu, não como um castigo por causa da loucura e do consequente assassínio dos filhos, mas como obrigação filial de libertar a família do exílio, se não está explícita nos vv. 90-94 do Scutum, está, pelo menos, subjacente ao conteúdo destes versos. Aceitando uma tal interpretação, um dos elementos essenciais para a acção dramática da peça de Eurípides já seria conhecido pelo autor do Scutum, escrito entre 590 e 560 a. C.28

• Na opinião de Galinsky, o Scutum "has a definite place in the literary tradition of Herakles. Using Homeric form, it discards the negative heritage of the hero and establishes him as the resplendent victor, the

26 GALINSKY, G. K. (1972): 16; AÉLION, R. (1983) vaI. II: 356.

27 GALINSKY, G. K. (1972): 17.

28 MAZON, P. (1979): 124.

14 CARLOS FERREIRA SANTOS

kallinikos, and as man of high morality, the saving alexikakos,,29. Estesícoro abordou os feitos de Héracles em muitos dos seus

poemas (Cycnus, Geryoneis, Scylla, Cerberus) , pois Héracles, destruidor de monstros e pacificador da terra, toma-se o herói ideal dos colonos da Grande Grécia30. Terá sido mesmo invenção de Estesícoro a representação de Héracles com a clava e a pele do leão de Nemeia31 .

A purificação dos defeitos e das acções violentas, que eram atribuídos a Héracles na epopeia, e a sua idealização vão ser completadas por Píndaro e Baquílides32, sobretudo pelo primeiro.

Píndaro utiliza o mito como "exemplum" nos seus epinícios; em Píndaro "as relações com o mito estão, finalmente, tão treinadas, que bastam alusões para dar reforço e contraste, cor e profundidade,,33.

A difusão que o mito de Héracles já possuía e a ligação a Tebas, de onde Píndaro também era oriundo, justificam o facto de os dados do mito serem um dos elementos mais frequentes nas alusões dos epinícios de Píndaro. A ligação de Zeus com a tebana Alcmena e os aspectos relacionados com o nascimento de Héracles são elementos recorrentes na poética de Píndar034. A tomada de Tróia35

, o combate contra os Gigantes36

, Gérion37, Cicn038

, a limpeza dos estábulos de Áugias39

, a viagem ao país dos Hiperbóreos e a plantação de oliveiras em Olímpia40

, a fundação dos Jogos Olímpicos41 , são aspectos

29 GALINSKY, G. K. (1972): 19.

30 GALINSKY, G. K. (1972): 20-21; AÉLION, R. (1983) vol. II: 356.

31 ROCHA PEREIRA, M. H. (1993): 218.

32 Baquílides apresenta um tratamento do mito de Héracles mais dramático, com elementos que por certo terão servido para as tragédias de Eurípides ou para a relação do herói com Dejanira em As Traquínias de Sófocles. Cf. GALINSKY, G. K. ' (1972): 23-29.

33 BURKERT, W. (1989): 66.

34 0 /. 10.44-45; Nem. 1.40-56; 10.10-18; lsth. 1.12-13; py. 9.84-89.

35 Nem. 4.25-30; lsth. 6.28-34.

36 Nem. 7.86-91; Nem. 1.67"69, onde se afirma que o combate contra os Gigantes teve lugar na planície de Flegras, tal como acontece no v. 1194 do Héracles.

37 lsth. 1.I 2- I 3.

380/.10.15-17.

39 01. 10.27-32.

40 0/. 10.24-25 e 43-54; 0/. 3. I I -25, onde se refere que obtém a oliveira de forma pacífica, pela persuasão, a fim de dar sombra aos visitantes de Olímpia e coroas

o MITO DE HÉRACLES 15

referenciados por Píndaro. A amizade com Télamon, a súplica de Héracles e a aparição de uma águia que anuncia o futuro de Ájax também são referidas42

, Depois de ter explorado inúmeras regiões da terra e purificado de monstros os mares, Héracles está no Olimpo e tem Hebe por esposa43 .

Apesar da cólera de Hera44, Héracles é o herói-deus ("~pwc.:

eEÓc.:,,45); o estatuto de herói justifica perfeitamente a veneração que lhe é concedida pelos habitantes da cidade de Tebas46

, que enfeitam de coroas os seus altares e elevam "EIlTTupa xaÀKoapâv OKTW eavóvTwv,/ TOVe,: ME'}'ápa TÉKE oi KpEOVTlc,: ULOÚc.:,,47 ("as piras dos oito guerreiros mortos armados de bronze, que Mégara, filha de Creonte, lhe deu por filhos").

A honra e o culto dos filhos de Héracles era uma parte dos Heracleia48

• A referência ao culto dos oito filhos mortos do herói não nos permite saber até que ponto Píndaro conhecia ou não a lenda do assassínio dos filhos cometido por Héracles durante o seu acesso de loucura. O epíteto "xaÀKoapâv OKTW eavóvTwv" (v. 63) indica claramente, segundo Bond49, que eles morreram como guerreiros adultos, provavelmente em combate50. Aceitando esta interpretação, temos de admitir que Píndaro, ou não conhece a loucura de Héracles e o filicídio, ou a conhece, mas a rejeita de uma forma deliberada. A rejeição da loucura é a interpretação que Famell tem deste passo: "we must suppose, then, that Pindar deliberately rejects the story followed by Euripides that Herakles in his madness murdered his infant children. And he must have known of it; for this was the only version

para os atletas. 41 01.2.3-4; 6.66-70; 10.23-45; Nem. 11.27.

42 lsth. 6.37-55

43 lsth. 4.55-60; Nem. 1.63-71 (predição de Tirésias sobre os destinos de Héracles); 10.15-18.

44 Nem. 1.39-40.

45 Nem. 3.22.

46 lsth. 4.61-62.

47 lsth. 4.63-64.

48 FARNELL, L. R. (1965): 355.

49 BOND, G. W. (1981): XXIX; PUECH, A. (1961): 36, n. I; F. JOUAN (1966: 379) afinna que, existindo diversas tradições relativas à morte dos filhos de Héracles, Píndaro escolhe a que era mais gloriosa para Héracles e para os seus filhos.

50 AÉLION, R. (1983) vaI. I: 168.

16 CARLOS FERREIRA SANTOS

in the older literature, perhaps in the Kupria, certainly in the lyric of Stesichoros and the Herakleia of Panuasis (Paus. IX. II. 3) and in the Histories of Pherekudes (F. H. G. I. Fr. 30); also it seems to have been the only tradition prevalent throughout the ages at Thebes (Paus. loco cit.). The scholiasts give us other versions in later authorities, but there is no reason to suppose that these were known to Pindar. And we cannot imagine that Pindar was writing so care1essly that he did not think of the implications of his epithet. He must therefore have deliberately rejected the story as derogatory to the hero and the goddess Hera; and he hints at a nobler story which he has not time to develop,,51.

A hipótese de rejeição de aspectos depreciativos do mito ganha maior consistência se tivermos presente, por um lado, que a idealização/glorificação dos heróis é uma das vertentes fundamentais do epinício, e, por outro lado, tivermos presente que, na IXa Olímpica, Píndaro também rejeita as versões do mito segundo as quais Hérac1es atacou Posídon com a sua maça (v. 31), Apolo, com o seu arco dourado (v. 32), e Hades, "uma vez que insultar os deuses é uma arte que eu abomino e a insolência inoportuna acompanha o canto da loucura" ("ETIEL TÓ yE ÀOLoopfjam eEOVÇ/ EXepà ao<!>(a, KaL Tà Kav-/ Xâaem TIapà Kmpàv/ l.lav(maLV ÚTIOKpÉKEL ,,52). Na opinião de Galinsky, o poeta, ao juntar três aspectos do mito, procura realçar que os mitos em que um herói enfrenta um deus não são para ser tomados de forma séria; "instead of rationalizing the mythology,

I'

however, Pindar, true to his religious mission, condemns it in terms of sacrilege and impiety,,53.

Não podemos deixar de notar que estes versos, precedidos pelo coloquialismo intimista do V. 35 "clTIÓ 1l0L ÀÓyov/ TOUTOV, aTólla, PL4;OV" ("Língua, afasta de mim esta proposta!"), expressão sincera da crença religiosa do poeta, se aproximam bastante dos vV. 1341-46 do Héracles, onde se rejeitam versões do mito que colocam deuses a combater entre si. Por outro lado, até que ponto a presença no V. 39 de "Ilav(maw" não será uma subtil alusão à tradicional loucura do herói, motivada pela insolência decorrente da hostilidade para com Hera, que Píndaro também rejeita? Se considerarmos o significado literal da

51 FARNELL, L. R. (1965): 355.

52 01. 9.36-39.

53 GALINSKY, G. K. (1972): 31. L. R. FARNELL (1965: 69) também considera que Píndaro rejeita os três aspectos do mito como algo de ímpio.

o MITO DE HÉRACLES 17

expressão "Kavxàa8aL TTapà KaLPOV" ("vangloriar-se de fonna inoportuna") e tivennos presente que para o poeta "(7o#a" é "KaLPÓÇ" e "all achievement is KaLpÓÇ and Pindar is always conscious of the brevity and transience of human success,,54, esperamos não utilizar de fonna abusiva as liberdades interpretativas se depreendennos desta sucinta e rápida alusão uma subtil e crítica referência às ousadias do "herói-deus", que, vangloriando-se excessivamente dos seus feitos, insultou os deuses e suportou as consequências do "canto de loucura" por eles enviado. Este passo, juntamente com Isth. 4.63-64, indicia que Píndaro conhecia o episódio da loucura de Héracles, presumivelmente enviada pelos deuses, apesar de preferir ocultar e implicitamente condenar esse aspecto ímpio do mito. Isto está perfeitamente de acordo com os ideais da ética aristocrática em que Píndaro insere Héracles55 e que o levam a menosprezar um outro dado tradicional do mito do "àpWTOll-áxov 'HpaKÀÉoç,,56, os trabalhos realizados sob as ordens de Euristeu.

Na 11Ia Olímpica57, Píndaro afinna que Ártemis encontrou

Héracles, quando caçava a corça dos cornos de ouro, "para obedecer, por necessidade paterna, às ordens de Euristeu" (v. 29: "EÍJTÉ vw à)')'EÀLaLÇ Eupva8Éoç EVTV' àvá)'Ka TTaTpó8EV"). Neste passo, aparecem associados dois aspectos importantes do mito que Píndaro deliberadamente procura ofuscar: a submissão do herói a Euristeu e a execução dos trabalhos por necessidade paterna. Estes aspectos vão constituir uma das alterações fundamentais da versão do mito utilizada por Eurípides; nos vv. 15-20 do Héracles,~Anfitrião afinna que o seu filho se ofereceu a Euristeu "tentando solucionar os meus infortúnios e desejando libertar a família do exílio" (vv. 17-18).

O tema da dupla paternidade de Héracles que Anfitrião aborda, nos vv. 1-3 de HF, aparece também na 01. 3, através de rápidas referências: no v. 14 o poeta recorda o filho de Anfitrião e, no v. 19, "os altares que ele tinha consagrado ao seu pai", isto é, a Zeus.

No frg. 169 Snell58, o "Nomos" (v. 1) justifica a violência de Héracles, na execução dos seus trabalhos (v. 3: "a)'EL OLKaLWV TO

54 KIRKWOOD, G. (1982): 19.

55 GALINSKY, G. K. (1972): 31.

56 Py. IDA.

57 01. 3.26-29.

58 Utilizamos o texto estabelecido por G. KIRKWOOD (1982): 347-349.

18 CARLOS FERREIRA SANTOS

~laLÓTaTov"). Refere-se depois aos bois de Gérion (v. 6), que Héracles conduziu para a entrada ciclópica de Euristeu (v. 8), e às éguas de Oiomedes (v. 9 ss.). Trata-se de um fragmento bastante discutido, sobretudo "what Pindar here means by nomos, and why he presents Heracles here in a somewhat unfavorable light, which is in contrast to his own usual attitude, are difficult questions,,59. O eventual aspecto desfavorável de Héracles está subjacente a "~wlóTaTov"; todavia, não nos podemos esquecer que a Héracles é normalmente associado o substantivo "~( T]" e que os eventuais aspectos depreciativos aparecem atenuados pela presença do particípio "OlKaLWV". Héracles apenas age violentamente no cumprimento do nomos, regulado pela dikê. Como observa Galinsky60, Gérion, cuja morte é referida por duas vezes na Teogonia (vv. 287-294 e 982-983), e as éguas de Oiomedes são monstros terríveis, que ultrapassam o nomos e representam uma ameaça para os mortais. Este fragmento é também importante no contexto do tratamento do mito de Héracles por Píndaro, porquanto testemunha (apesar das dificuldades de leitura das lacunas do manuscrito), pela segunda vez, uma vaga referência por parte do poeta à execução dos trabalhos sob as ordens de Euristeu, ao mesmo tempo que se deixa perpassar alguma da violência utilizada por Héracles no domínio dos bois de Gérion ou das éguas de Oiomedes (vv. 9-15).

A implícita aceitação do uso da violência e a execução dos trabalhos sob as ordens de Euristeu são aspectos que Píndaro, no enaltecimento do herói tebano, deliberadamente ofuscara. Assim, apesar da tentativa de idealização e quase -divinização na reinterpretação dos elementos tradicionais sobre o herói, Píndaro apresenta-nos elementos fundamentais do mito de Héracles, que os trágicos irão utilizar: por um lado, a ofuscada tradição arcaica do herói, com alguns aspectos violentos e grotescos, presentes em As Traquínias de Sófocles; por outro lado, a faceta de civilizador e benfeitor da humanidade, um quase-deus, a exemplo do Héracles de Eurípides. Alceste, pela especificidade da sua estrutura e enquadramento, traduz uma oscilação entre as duas tendências do mito, tal como aparece em Píndaro, ou mesmo uma síntese dos elementos díspares constitutivos do imenso acervo mítico.

59 KIRKWOOD, G. (1982): 347.

60 GALINSKY, G. K. (1972): 34.

o MITO DE HÉRACLES 19

A especificidade de Héracles, o maior dos heróis, que, apesar de tudo, não participou nas grandes sagas da mitologia grega61 , aliada aos seus constantes combates contra monstros, explica, em parte, a fraca presença na cena trágica. Não obstante este facto, Héracles desempenhava um papel importante na Prometeia, possivelmente de Ésquilo (de que apenas chegou até nós o Prometeu Agrilhoado62

),

sobretudo no Prometeu Libertado, em que Héracles abatia com as suas flechas a águia de Zeus, que devorava o fígado de Prometeu, revelando-se salvador e libertador, tal como é concebido na primeira parte da peça de Eurípides63.

Sófocles conhecia bem a tradição de Héracles. Entre os títulos de peças que chegaram até nós, Anfitrião, o drama satírico Héracles no Ténaro e Atamante (em que Héracles salva Atamante que, por ter morto os filhos, estava prestes a ser sacrificado pelo seu povo) tinham como pano de fundo episódios do mito de Héracles64

No Filoctetes de Sófocles, Héracles, várias vezes referido ao longo da peça, surge no final como deus ex machina (vv. 1409-1471). Filoctetes apresenta-se como o herdeiro do arco de Héracles (vv. 262, 941ss, 1111), reconhecendo que as armas que agora detém foram causa de desgraça "para quem as possuiu antes de mim" (v. 778)65. Héracles, depois de ter sido imolado pelo fogo, ateado pelo próprio Filoctetes (vv. 801-803), no monte Eta (vv. 726-729), abandona as mansões celestes (v. 1411) para preanunciar a cura de Filoctetes e a conquista de Tróia (vv. 1421-1428), assim como a glória de Filoctetes

61 MICHELINI, A. N. (1987): 242; PARMENTIER, L. et GRÉGOIRE, H., (1976): 4.

62 No Prometeu Agrilhoado, Héracles, descendente de lo, é referido como o futuro libertador de Prometeu (vv. 770-775; 870-872).

63 JOUAN, F. (1970): 320. Os pontos de contacto entre a trilogia atribuída a Ésquilo e a peça de Eurípides

são tantos que F. Jouan coloca três hipóteses: Eurípides teria assistido à peça, representada quando teria cerca de vinte anos; Eurípides possuía o texto do Prometeu na sua famosa biblioteca; Eurípides teria assistido a uma nova encenação da obra de Ésquilo antes de ter escrito o Héracles (cf. pp.330-331). R. AÉLION (1983 vol. II: 359) também acredita que Eurípides, ao compor o Héracles, teria bem presente a trilogia de Ésquilo. Segundo A. N. MICHELINI (1987: 59), "at least by the 420s, Aischylos' plays were being revived at the Dionysia"; é, portanto, muito provável que Eurípides tenha assistido a novas encenações das peças de Ésquilo.

64GALINSKY, G. K. (1972): 46.

65 Nos passos citados em Português, utilizamos a tradução de FERREIRA, J. R., Sófocles. Filoctetes (1988).

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e Neoptólemo, "parelha de leões que vivem juntos" (v. 1436). Em As Traquínias, Héracles aparece como uma das personagens

principais. Apesar de não estar presente em cerca de 3/4 da peça (entra em cena no v. 971 e apenas usa da palavra no v. 983), Héracles, pelas constantes referências que lhe são feitas, mas, sobretudo, pela dor motivada pela sua ausência e pela obsidiante ansiedade com que Dejanira deseja o seu regresso, está sempre presente na peça de Sófocles. Tal como Mégara e Anfitrião no Héracles, Dejanira, juntamente com o filho Hilo, suporta em Tráquis as adversidades do exílio, motivado pelo assassínio de Ífito (vv. 38-40), tal como o exílio de Anfitrião é motivado pelo assassínio de Eléctrion (HF, 17-19). Depois de ter realizado os trabalhos, "sempre ao serviço de alguém,,66 (v. 36), Héracles está ausente; a incerteza quanto ao regresso invade o espírito de Dejanira, tal como a impossibilidade de regresso do Hades invade o espírito de Mégara (HF, 296-298). Héracles confiou a Dejanira uma "tabuinha especial" (v. 47) e o seu lar (v. 542: "guardiã de sua casa"), tal como confiou a Anfitrião o cuidado dos seus filhos (HF, 44-46).

Todavia, apesar destas semelhanças entre as personagens femininas das duas peças, a versão do mito e a caracterização global das personagens acaba por ser radicalmente diferente. A morte do centauro Nesso67 e posterior casamento de Héracles c'om Dejanira, a morte de Ífito e o exílio em Tráquis são aspectos que não são referidos pelos poetas anteriores a Sófocles. A deificação de Héracles e o casamento com Hebe, que aparece em Homero, Hesíodo e Píndaro, é propositadamente ignorada por Sófocles, que escolhe a morte e sobrevivência no Hades.

Em As Traquínias, as referências aos tradicionais trabalhos do herói são relativamente escassas: o leão de Nemeia, a hidra de Lema, os centauros, o javali de Erimanto, o cão Cérbero, o jardim das Hespérides são sumária e sucintamente referidos pelo próprio Héracles (vv. lO90-1lO3) como parte integrante de um passado glorioso, que contrasta flagrantemente com a debilidade presente,

66 Nos passos citados, utilizamos a tradução de FIALHO, M. c., Sófocles. As Traquínias (1984).

67 A morte do centauro Nesso por HéracIes aparece já num vaso funerário de finais do séc. VIla. C. (Museu Nacional de Atenas, n° 1002). Cf. ROBERTSON, M. (1978): 55-56. Este era um motivo frequente na pintura de vasos, em meados e finais do séc. VI, como o demonstram os vasos reproduzidos por Karl SCHEFOLD (1992: 160-161).

o MITO DE HÉRACLES 21

numa passagem com paralelismo no Héracles (vv. 1269-1279). Os feitos do passado, como "expurgar de perigos múltiplos o mar e todos os bosques" (v. 1012), parecem ter sido relegados para segundo plano em face da dor presente, que leva Héracles a implorar a Zeus que o fulmine com o raio (vv. 1085-1088) e a obrigar Hilo a transportá-lo para o monte Eta, a colocá-lo na pira e a lançar-lhe o fogo (vv. 1193-1204). O ressentimento e o desejo de vingança conduzem Héracles a pedir a Hilo que vá buscar Dejanira ao palácio para a punir com justiça (v. 1066-1069).

Este Héracles, que "teve muitas mulheres" (v. 460), que entrou em guerra contra Êurito por causa do amor de Íole (vv. 431-433), que apenas pensa em si próprio e na satisfação dos seus desejos68, contrasta claramente com o marido fiel, o filho dedicado e o benfeitor da humanidade apresentado no Héracles de Eurípides.

A egomania e o egocentrismo de Héracles dominam toda a peça de Sófocles69

• "A figura de Héracles em As Traquínias não é, por conseguinte, a do filho de Zeus votado à apoteose, como alguns pretendem, mas a do herói que, apesar da sua filiação divina, se reconhece finalmente como sujeito às leis .da finitude humana, na situação-limite da sua destruição física e da consciência do seu erro de intérprete do divino. É a figura de tensões não conciliadas entre homem e deus,,70. Em As Traquínias, Sófocles apresenta-nos um Héracles mais próximo do ser imperfeito e violento, tal como é retratado na epopeia, do que da figura idealizada e heroicizada que Píndaro consolida nas suas odes e que Eurípides vai retomar, aprofundar e modificar no Héracles. Se uma das tragédias foi escrita como reacção à outra e se é possível que a peça de Sófocles seja uma reacção à idealização do herói difundida por Eurípides 71, também não

68 V. EHRENBERG (1973: 154) vai mais longe, afinnando: "the tales about the monsters he slew are almost forgotten and his strength, his terrifying greatness have tumed against his fellow-beings. He is entirely amoral, daemonic, a supennan, not in the sense of a genius, but as a being outside the mies and laws of human society, relying upon laws of his own making".

69 Cf. EHRENBERG, V. (1973): 154; GALINSKY, G. K. (1972): 51.

70 FIALHO, M. C. (1984): 22.

71 EHRENBERG, V. (1973): 147. Sendo inúmeros os pontos de contacto entre as duas peças, enumerados por P ARMENTIER (1976: 17 n.l), os estudiosos dividem-se quanto à data de representação das duas peças. PARMENTIER (1976: 16-19) considera que As Traquínias são anteriores ao Héracles de Eurípides, argumentando que, depois de Eurípides realizar uma idealização do herói, ao tirar do

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podemos rejeitar a possibilidade de Sófocles procurar reagir contra a quase divinização dominante em Píndaro.

Alceste, com a especificidade decorrente de ter substituído um drama satírico 72, traduz uma oscilação entre os tradicionais aspectos cómicos e burlescos, revelando traços da posterior humanização no Héracles. Combinando elementos da lenda de Admeto e Alceste, que pertenciam ao folclore?3, no seio do qual provavelmente o mito de Héracles também se desenvolveu, com o tradicional apetite de Héracles explorado pela comédia e com elementos da grandeza empreendedora presente na épica, Eurípides realiza, em Alceste, um primeiro esboço do complexo herói do Héracles.

No prólogo da peça, Apolo, quando expõe os elementos essenciais da acção, prediz, numa breve alusão, a função libertadora de Héracles, que, enviado por Euristeu para subjugar uma quadriga da Trácia, será recebido como hóspede por Admeto e libertará Alceste da morte (vv. 65-70). Esta oferecera-se para morrer em vez do esposo Admeto, que suporta a dor de ter consentido a morte da esposa para continuar a viver (vv. 201-206). Alceste enfrenta corajosamente a morte e realça que Admeto se pode vangloriar de ter tido a melhor das mulheres (v. 324). Admeto, embora reconheçà na esposa o único ser que lhe foi fiel (v. 388), deixa partir Alceste para a morte?4.

Depois de Admeto ter decretado honras fúnebres (vv. 420-434) e de o coro se lamentar por ter visto partir para o Hades a melhor das mulheres (v. 442), Héracles chega ao palácio de Admeto e solicita-lhe hospitalidade. Num breve diálogo com o corifeu (vv. 476-506), Héracles afirma que está a executar um trabalho para Euristeu de Tirinto (v. 481), ao mesmo tempo que alude aos cavalos que comem

aspecto mais odioso do mito, o assassínio dos seus próprios filhos, um novo elemento de grandeza, seria demasiado tarde para Sófocles representar Héracles na sua concepção heróica. GOOSSENS (1962: 364) detecta uma concepção mais arcaica do mito em As Traquínias, "quoique cette piece soit probablement postérieure à I' Héracles".

72 Alceste, representada em 438 a. c., ocupa o lugar do drama satírico na tetralogia constituída por Cretenses, Alcméun em Psójis e Télefo. Cf. MÉRIDIER L. (1976): 49.

73 MÉRIDIER, L (1976): 46-48; GALINSKY, G. K. (1972): 66-67.

74 Na opinião de A. GARZY A (1962: 18), este comportamento de Admeto para com Alceste seria considerado nonnal pela audiência ateniense, uma vez que Admeto era o chefe do genos e o primeiro responsável pela sua continuidade.

o MITO DE HÉRACLES 23

carne humana e aos estábulos ensanguentados (v. 494); os cavalos são guardados por um filho de Ares. Hérac1es recorda, então, que um "8aLllwv" (v. 499) o tem obrigado a enfrentar os filhos de Ares: primeiro Licáon (v. 502), depois Cicno (v. 503), os cavalos e o seu senhor (vv. 503-504); manifesta finalmente consciência das suas capacidades e do seu poder (vv. 505-506). A captura das éguas de Diomedes era um trabalho tão conhecido do público que Eurípides, um pouco à semelhança de Píndaro, se limita a fazer breves alusões.

Admeto coloca acima de tudo o dever para com os hóspedes (vv. 533-567), ordenando aos criados que tratem Hérac1es da melhor forma possível. Um criado aparece em cena e descreve a conduta folgada de Héracles, que, no palácio de Admeto, come, bebe e canta desafinadamente (vv. 746-772). Esta cena, com a descrição de Héracles embebedando-se e a filosofia de materialismo hedonista patente na conversa com o criado (vv. 773-802), recorda cenas dos dramas satíricos ou das comédias 75 e é certamente um dos elementos que contribuiu para que esta peça tenha ocupado o lugar de um drama satírico. Todavia, apesar dos traços derivados da tradição popular de "bon vivant" e companheiro alegre, a caracterização que acaba por prevalecer no todo dramático é a resolução com que Héracles, logo que toma conhecimento que o luto de Admeto se deve à morte da esposa, se disponibiliza para trazer Alceste de volta para o palácio como forma de retribuir a hospitalidade de Admeto (vv. 840-842). Héracles denota forte determinãção em libertar Alceste das mãos de Tánato, quer através de uma emboscada junto do túmulo (vv. 843-849), quer descendo à mansão de Core e do senhor do Hades (vv. 850-853), mostrando mais uma vez esperança, confiança nas suas capacidades e escrúpulo no cumprimento de uma dívida de gratidão para com o seu hospedeiro (vv. 854-860).

Na cena final, Héracles, quando pede a Admeto para lhe guardar a mulher que recebeu como prémio da vitória nuns jogos (vv. 1020-1022), põe à prova a fidelidade deste, que reafirma a intenção de não mais se voltar a casar (v. 1094). Quando Admeto suplica a Héracles para entregar essa mulher a outro Tessálico (vv. 1042-1045), porque considera demasiada a responsabilidade, e, sobretudo, porque ela lhe recorda a sua esposa (vv. 1066-1069), revela dificuldade em conciliar

75 AÉLION, R. (1983) vol. II: 353. Segundo GALINSKY (1972: 71), nesta cena, Héracles, marcando a sua diferença com Admeto, permanece na sua própria filosofia de vida e acentua que a morte é uma obrigação que todos temos de suportar, pois as nossas vidas estão à mercê da tychê (v. 785-786).

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as convenções da hospitalidade com um certo receio da reprovação pública (vv. 1057-1061).

Quando Héracles finalmente desfaz todas as dúvidas e confirma que a mulher é, de facto, a esposa de Admeto, este duvida e interroga­se se não estará perante um fantasma infernal (v. 1127). Neste passo, Admeto expressa uma incredibilidade semelhante à que invade Mégara, quando, ao ver o esposo regressar do mundo dos mortos, julga estar a "sonhar em pleno dia" (HF, 517-518). Nesta cena, com todo o jogo cómico e irónico que lhe está subjacente, justificado pelo carácter ambíguo da peça, é Héracles quem controla o desenrolar dos acontecimentos76

, ao contrário da cena dos vv. 506-550, em que Admeto domina perfeitamente toda a situação. Héracles aparece, em parte, desprovido da sua característica e tradicional força física, pois, quando Admeto o interroga sobre o modo como conduziu de novo Alceste para a luz do dia, limita-se a dizer que travou uma batalha com a divindade que a tinha em seu poder (v.1140). Todavia, mais importante que o relato da libertação de Alceste é a exortação final (vv. 1144-1148) a Admeto para que continue a ser "OLKaLO<;"" (v. 1147) para com os seus hóspedes. Como salienta Fitzgerald, "Heracles' manner on the last scene is more intellectual than physical", concentrando Eurípides toda a força dramática não na vitória de Héracles sobre a morte, mas na vitória sobre Admeto77

Em Alceste, Eurípides apresenta-nos já um esboço da humanização do herói, que irá e}TIpreender e levar o mais longe possível no Héracles. A sua presença na peça tem a dupla função de, por um lado, tomar possível a libertação de Alceste da morte e, por outro lado, servir de contraponto a Admeto, evidenciando o contraste entre a voluntariedade e a disponibilidade de Héracles para enfrentar, se necessário, a morte (v. 489), e uma certa resignação face às vicissitudes da vida. O Héracles de Alceste é, por isso, mais

76 Cf. BRADLEY, E. M. (1981): 18.

77 FITZGERALD, G., J. (1991): 87. Apesar de, à primeira vista, as atitudes de Admeto parecerem reprováveis, temos

de ter em conta toda a delineação da personagem, cuja complexidade não podemos aqui analisar. A. GARZY A (1962: 20) realça em Admeto dois aspectos positivos: a pielas (vv. 10, 1148), manifestada na aceitação das normas divinas e humanas, e a sinceridade, resultante da espontaneidade dos sentimentos, mesmo quando estes parecem assumir formas contraditórias e inconsistentes. O sofrimento que Admeto demonstra perante a morte de Alceste contribui, de forma decisiva, para atenuar eventuais aspectos negativos que possamos encontrar na personagem.

o MITO DE HÉRACLES 25

equilibrado e mais complexo do que à primeira vista pode parecer: "s'il aime les plaisirs matériels, Hérac1es n'est pas seulement un bon géant à la force prodigieuse, à l'appétit insatiable, c' est aussi un coeur généreux et sensible, capable de partager la peine de ses amis et prêt à se dévouer pour eux,,78.

A complexidade da personagem, a sua vitória sobre Tánato e até mesmo a gnômê com que o corifeu encerra a peça ("o previsto não chega ao seu termo e ao inesperado a divindade abre passagem": vv. 1161-1162), que se aproxima da gnômê de Mégara ("um dia o inevitável acontecerá e ninguém o poderá impedir": HF, 311), evidenciam que as diferenças, na concepção de Hérac1es e no sentido geral das peças, não são tão grandes como à primeira vista se poderia pensar.

No Héracles, Eurípides prossegue a idealização iniciada por Píndaro79, reajustando os elementos tradicionais do mito, de acordo com os seus objectivos dramáticos e com a humanização do herói.

A submissão voluntária de Hérac1es a Euristeu, para libertar Anfitrião e a família do exílio, alteração fundamental para a estrutura dramática do Héracle.~, que Bond8o considera uma invenção de Eurípides, estava já implicitamente sugerida no Scutum Herculis81 e em Píndaro (01. 3.26_29)82. Estas referências demonstram que, entre as versões existentes sobre o motivo da execução dos trabalhos para Euristeu83, Eurípides escolheu aquela que mais se adequava à humanização do herói. To<'Iavia, ao motivo da devoção filial, Anfitrião acrescenta, de imediato, uma referência à tradicional inimizade de

78 AÉLION, R. (1983) vol. II: 353. G. K. GALINSKY (1972: 75) considera que "the Alcestis presents one of the few complete portraits of the hero that was ever attempted in creative literature".

79 M. H. PRIETO (1965: 43) considera que, na idealização do herói processada sobretudo no séc. V a. C., a peça de Eurípides desempenha um papel importante, pois, "salvo erro, com ela poderíamos datar essa viragem de interpretação, o momento em que os trabalhos de HéracJes, de lenda se transformam em mito".

80 BOND, G. W. (1981): XXVII-XXVIII.

81 Cf. supra, p. 13.

82 Cf. supra, p. 17.

83 A execução dos trabalhos é, por vezes, considerada como um castigo imposto por Euristeu a HéracJes por ter assassinado os seus filhos ou um castigo imposto por Apolo pelo roubo da trípode profética; a execução dos trabalhos é também explicada como uma forma de alcançar a imortalidade. Cf. BOND, G. W. (1981): 68 advv. 21-23.

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Hera e ao terrível destino (vv. 20-21), motivos já associados em Il. 18.11984, o que pode demonstrar que o motivo do auxílio a Anfitrião como único justificativo para a execução dos trabalhos não era um dos elementos mais difundidos do mito.

Anfitrião, no prólogo, apresenta ainda outro elemento essencial para a estrutura dramática: Hérac1es ainda se encontra no Hades, a realizar o último dos trabalhos, a captura do cão Cérbero (vv. 22-25)85. A descida ao Hades permite a introdução de outra inovação fundamental para o sentido e para a resolução do conflito dramático da peça: o encontro com Teseu e a sua libertação (vv. 619-621)86. Para a humanização de Hérac1es e para a associação do herói dórico a Atenas87

, a libertação de Teseu do Hades e a amizade estabelecida entre os dois heróis revela-se fundamental.

O tirano Lico é outra das inovações referidas por Anfitrião (vv. 31-35), fundamental no esquema de súplica e salvação88

, que domina a peça até à chegada de Hérac1es. Lico é um elemento completamente novo e estranho ao mito de Hérac1es89

; o modo como o poeta insiste na origem de Lico (vv. 26-34), tomando-o descendente de um outro herói tebano com o mesmo nome, também usurpador do trono de Tebas, parece comprovar que os espectadores não o conheciam90

84 Cf. supra, p. 11. A cólera de Hera é também referenciada por Píndaro na Nem. 1.39-40.

85 A descida ao Hades e a captura do cão Cérbero dominam a peça até ao v. 523, quando Héracles entra em çena. Referências a este trabalho são também feitas, pelo coro, nos vv. 425-429, e pelo próprio Héracles, nos vv. 611-615 e 1276-1278. Este é, aliás, um dos motivos mais repetidos de forma explícita ou implícita na peça: vv. 23, 37, 45-46, 116-117, 145-146, 262-263, 296-297, 352-353, 426-428, 444, 494-495, 553, 1101-1102, 1157-1158, 1247. Cf. HANGARD, J. (1976): 128 n. 12.

86 V. EHRENBERG (1973: 161) considera que a cena de Teseu, sob o ponto de vista artístico, é um "anti-clímax", mas que, do ponto de vista do sentido da peça, encerra todas as chaves da sua interpretação.

87 Muitos consideram ser este um dos objectivos da peça. Cf. P ARMENTIER (1976): 9 e JOUAN (1966): 383. Todavia, não nos podemos esquecer que a associação de Héracles a Teseu já tinha sido realizada, uma vez que os feitos dos dois heróis se encontravam lado a lado nas esculturas do Hefesteion, construído por volta de 450-440 a. c., na ágora ateniense. Cf. BOND, G. W. (1981): XXX.

88 A análise do esquema de súplica e salvação, com as modificações introduzidas por Eurípides, é realizada por R. AELION (1983) vaI II: 51-57 e 65-82.

89 KAMERBEEK, J. C. (1966): 3.

90 JOUAN, F. (1966): 382, que considera provável que Eurípides tenha tirado Lico de um relato que aparecia em Estasino ao lado do relato da loucura de Héracles,

o MITO DE HÉRACLES 27

Mas a principal inovação de Eurípides consiste na modificação da tr~dicional cronologia e relação entre o assassínio dos filhos e a realização dos trabalhos: enquanto normalmente os trabalhos eram considerados um castigo de Hera por Héracles ter morto os seus filhos, na peça de Eurípides é no momento de maior glória, depois de ter regressado são e salvo do Hades e ter libertado a família das ameaças de Uco, que a loucura invade o espírito do herói e ele assassina Mégara e os seus próprios filhos.

Esta alteração da ordem tradicional é provavelmente uma das inovações de Eurípides91

• Conhecemos, todavia, poucos elementos antes de Eurípides que permitam determinar a relação da loucura com o assassínio dos filhos. Como acentua R. Aélion, "des scenes de folie furieuse que les poetes épiques postérieurs à Homere pouvaient avoir montrées, nous ne savons pratiquement rien. Nous n'en savons pas plus sur les oeuvres des Lyriques,092.

Nos Cypria aparece a vaga referência a "T~V 'HpaKÀÉoV5' l-laVLav,093. F. Jouan demonstra que, no sumário que Proclos faz dos Cantos Cíprios, no relato de Nestor, se refere a loucura de Héracles94

A loucura de Héracles aparece também referenciada por Estesícoro95,

e na Heracleia de Paniassis de Halicamass096, como testemunha

Pausânias (IX.ll.2). Este acrescenta também que, no seu tempo, em Tebas se mostrava um túmulo dos filhos de Héracles e a pedra com que Atena impediu o assassínio dr Anfitrião, lançando o herói num sono profundo. Discordamos, contudo da interpretação de F. Jouan, quando afirma que "ce détail cultuel était déjà connu d'Euripide, qui y fait allusion dans son drame,097, pois consideramos que, se este facto, segundo Pausânias, não era referido por Estesícoro e Paniassis, e se

citado pelo autor na p. 373.

91 HARTIGAN, K. (1987): 127; PARMENTIER, L. (1976): 6; LESKY, A. (1995): 410-411.

92 AÉLION, R. (1983) vaI. II: 216.

93 BOND, G. W. (1981): XXVIII.

94 JOUAN, F. (1966): 373.

95 Segundo R. AÉLION (1983 vaI. II: 216 n. 7) no frg. 230/53 Page; JOUAN, F. (1966): 378.

96 Paniassis é um poeta épico do séc. V a. c.. PARMENTIER, L. (1976): 6; AÉLION, R. (1983) vai II: 216 n. 6. Segundo R. AÉLION (1983 vol. I: 167 n.5) no frg. 22 Kinkel; JOUAN, F. (1966): 378.

97 JOUAN, F. (1966): 378.

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existe uma tão estreita identidade entre formas cultuais conhecidas por Pausânias e este pormenor, referido por Eurípides, nos vv. 1001-1008, ela se deve à reputação que a peça de Eurípides e, sobretudo, a poderosa descrição da loucura, teve nos espectadores, influenciando por certo a tradição sobre o herói e os diversos aspectos do culto que lhe era prestado no Herac1eion de Tebas98

A existência de tradições divergentes sobre a morte dos filhos de Hérac1es é comprovada por Ferecides99

, segundo o qual Hérac1es lançou os seus cinco filhos numa pira de fogo lOO

As discrepâncias entre Píndaro, Ferecides e Eurípides sobre o tipo de morte e o número de filhos comprovam, por um lado, a existência de tradições díspares sobre o assunto 101, e, por outro, uma certa liberdade dos poetas em adaptar os dados tradicionais do mito de acordo com as circunstâncias e os objectivos poéticos e dramáticos.

Do ponto de vista estrutural e dos efeitos dramáticos, não há dúvida que a selecção dos elementos da tradição e as alterações introduzidas por Eurípides confluem na epifania de Íris e Lissa, nos vv. 815-874. Ao colocar em cena as duas divindades e a loucura de Hérac1es, ooEuripide innovait completement, puisque ni Eschyle, ni Sophoc1e n'ont jamais traité ce sujetOOlO2

• A assustadora e terrífica aparição das divindades vai determinar o posterior decurso dos acontecimentos e contribuir decisivamente para a humanização do herói na parte final da peça.

I

98 Culto que também é referido por Píndaro, lsth. 4.61-64; cf. supra, p. 15. G. W. BOND (1981: ad 1004) considera que a pedra exibida em Tebas podia ser um meteorito.

99 F. Gr. Hist. 3F 14 apud BOND, G. W. (1981): XXVIII eJOUAN, F. (1966): 378.

100 Os vv. 240-246 de HF, em que Lico ordena ao seu séquito para lançarem Mégara, Anfitrião e os filhos de Héracles ao fogo, devem ser considerados como um dos aspectos reveladores da tirania de Lico e não como uma possível alusão à versão de Ferecides, como pretende Jouan ou Wilamowitz (apud BOND, G. W., ad loc.).

101 O cráter de Asteas (segundo quartel do século IV a. c.: Museu Arqueológico de Madrid, n° 11094) mostra Héracles a lançar os seus filhos numa fogueira, enquanto Mégara foge pela porta. Na parte superior, estão representadas e identificadas a Loucura, Alcmena e Iolau. A cena, com carácter teatral, desenrola-se na entrada de um palácio, mas o facto de Anfitrião não estar presente indicia que não resulta de uma influência directa da peça de Eurípides. A cena do vaso comprova que a versão de Ferecides era conhecida e provavelmente terá inspirado outros dramaturgos depois de Eurípides. Cf. FLACIÉRE, R., et DEV AMBEZ, P. (1966): 102-104.

102 AÉLION, R. (1983) vol. II: 127.

o MITO DE HÉRACLES 29

Na linha de Píndaro, os feitos do herói, "que libertou os mares e a terra de monstros" (vv. 225-226), são referidos, ao longo da peça, de uma forma breve, através de rápidas alusões, constituindo o pano de fundo a partir do qual Eurípides faz emergir o novo Héracles. De facto, depois da apresentação das principais inovações, realizada por Anfitrião no prólogo, os feitos de Héracles vão sendo recordados aos espectadores ao longo da peça: a hidra de Lema (v. 152) e o leão de Nemeia (v. 153), dois dos mais populares trabalhos do herói lO3

, são depreciativamente considerados por Lico como feitos não extraordinários (v. 151); nos vv. 578-581, Héracles considera que mais importante do que ter combatido "a hidra e o leão a pedido de Euristeu" é afastar dos filhos a ameaça de morte; por sua vez, nos vv. 1266-1278, quando Héracles recorda sumariamente os feitos do seu passado, refere o leão de Nemeia (v. 1271), a Gigantomaquia (v. 1272), o combate contra os Centauros (vv. 1272-1273), a hidra de Lema (vv. 1274-1275), o cão do Hades (vv. 1276-1277) e "IlUp(wv aÀÀwv nóvwv" (v. 1275)104. No momento em que o herói recorda todos os seus feitos, não deixa de ser significativo que Eurípides lembre aos espectadores os trabalhos que a cerâmica ou a escultura mais tinham popularizado.

As representações pictóricas e escultóricas parecem também constituir a fonte primordial da célebre "Ode dos Trabalhos" do primeiro estásimo da peça (vv. 359-429). O coro, na sua função de enaltecer o herói, realiza uma decorativa enumeração dos trabalhos, em que predominam os adjectivos ornamentais, baseada nos elementos da tradição mítica familiar à arte 105: leão de Nemeia (vv. 359-363); combate contra os Centauros (vv. 364-374); corça de

,,-Cerineia (vv. 375-379); éguas de Diomedes (vv. 380-388); Cicno (vv. 389-393); jardim das Hespérides (vv. 394-399); limpeza dos mares (vv. 400-402); Atlas (vv. 403-407); Amazonas (vv. 408-412); hidra de Lema (vv. 419-421); bois de Gérion (vv. 422-424); descida ao Hades (vv. 425-429). Além da abundante presença na pintura de vasos, a maior parte destes trabalhos estava representada nas métopas do

103 O leão de Nemeia era um dos motivos mais populares na decoração de vasos, de que existem mais de quinhentas representações. Cf. FLACIÉRE, R. et DEV AMBEZ, P. (1966): 70.

104 HéracIes em S.Tr.l101 também considera ter realizado ''éíÀÀwv [lóX9wv [lupiwv".

lOS BARLOW, S. A. (1982): 117-119.

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templo de Zeus em Olímpia106, nas métopas do tesouro dos Atenienses

em Delfos 107 e no Hefesteion 108 da ágora de Atenas. Além disso, não podemos esquecer que estas representações escultóricas vêm na linha da formulação de um ciclo de doze combates, atribuída, pela tradição, a um poema épico escrito por Pisandro de Rodes lO9

, talvez por volta de 600 a. C.

Eurípides, com a natureza descritiva da ode, procura enaltecer toda a tradição mítica do herói, recordando aos espectadores alguns dos aspectos mais importantes, que ocupavam lugar de destaque em templos e locais significativos da mundividência helénica. Desde o início do prólogo, os espectadores conhecem qual a perspectiva seguida pelo poeta em relação aos dados da tradição; no primeiro estásimo são confrontados com o passado mítico do herói, para, finalmente, com a epifania de Íris e Lissa, numa espécie de segundo prólogo, compreenderem e reflectirem sobre o novo universo accional em que o poeta situa o herói. Numa época em que "o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto existem, e das que não são, enquanto não existem" I 10, compreende-se que Eurípides "reversed the usual sense of the Heracles story: instead of a man becoming a hero, he has shown us a hero becoming a man"lll.

106 Nas métopas do lado Oeste do templo de Zeus em Olímpia (c. 460 a. C.), estavam esculpidos: 1. Héracles com o leão de Nemeia e Atena; 2. Hidra de Lema; 3. Héracles entrega as aves do lago Estínfalo a Atena; 4. Combate com o touro de Creta; 5. Corça de Cerineia; 6. Combate contra as Amazonas.

Nas métopas do lado Este, estavam esculpidos os seguintes trabalhos: 7. Héracies entrega o javali de Erimanto a Euristeu; 8. Éguas d.-e Diomedes; 9. Bois de Gérion; 10. Atlas; 11. Captura do Cão Cérbero no Hades; 12. Limpeza dos estábulos de Áugias. Cf. reconstituição na fig.22 em J. BOARDMAN (1992b).

107 Nas métopas do lado norte do Tesouro dos Atenienses em Delfos (c. 490-480), estavam representados os seguintes trabalhos: 1. Héracies e o leão de Nemeia; 2. Éguas de Diomedes; 3. Roubo da trípode profética; 4. Atlas; 5. Cicno; 6. Gérion e o cão Ortro; 7. Corça de Cerineia; 8. Amazonas; 9. Héracies e o centauro. Cf. reconstituição na fig. 213 de J. BOARDMAN (1992a). Nas métopas do lado sul encontravam-se os feitos de Teseu.

108 No Hefesteion (meados do séc. V a. C.) estavam representados: I. Leão de Nemeia; 2. Hidra de Lema; 3. Corça de Cerineia; 4. Éguas de Diomedes; 5. Cão Cérbero; 6. Amazonas; 7. Gérion; 8. Jardim das Hespérides; 9. Javali de Erimanto. cf. BOND, G. W., op. cit., p.I54.

109 Cf. BURKERT, W. (1993): 407.

110 Protágoras (frg. 1 Diels) in ROCHA PEREIRA, M. H. (1995): 257.

III GREGORY, 1. (1977): 275.

o MITO DE HÉRACLES 31

A figura de Héracles, ao longo da peça, evolui do kallinikos da "Ode dos Trabalhos" até ao ser humano que, consciente da miasma resultante do terrível assassínio da esposa e dos filhos, perante o isolamento e a exclusão social impostas pelo nomos (vv. 1281-1297), reconhece não ser mais possível prolongar uma vida inútil e ímpia ("~LOV àXPELOV àvóaLOv": v. 1302). No fundo do sofrimento e da dolorosa experiência provocada pela inevitabilidade da tychê, depois de ter escolhido definitivamente Anfitrião como seu pai (vv. 1264-1265) e ter sido confrontado com as dádivas de Teseu (vv. 1313-1339), Héracles toma consciência de que a philia humana, corporizada em Teseu, é a única escolha segura e verdadeira. No mais profundo do seu sofrimento, Héracles opta definitivamente pela solidariedade e mundividência humanas.

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