vajrapani e héracles um estudo de caso da arte helenística em gandhara

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budismo e rota da seda

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Vajrapani e Hracles: um estudo de caso da arte helenstica em Gandhara

Larissa Bianca Nogueira Redditt[footnoteRef:1] [1: Graduada em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).]

Resumo: Este artigo se destina a analisar as trocas culturais e interaes conhecidas como helenismo, mais especificamente entre os gregos e o povo da regio de Gandhara. Para proceder esta anlise, utilizaremos o caso do Vajrapani, um personagem da tradio budista, que aparece na arte de Gandhara com caractersticas do Hracles grego.Palavras-chave: Budismo; Helenismo; Gandhara; Vajrapani.

Abstract: This article is intended to analyze the cultural trades and interactions known as hellenism, more specifically between the greeks and the people of the region of Gandhara. In order to proceed to this analysis, we will use the case of the Vajrapani, a character of the Buddhist tradition, that appears in the Gandharan art with characteristics of the greek Herakles.Key words: Buddhism; Hellenism; Gandhara; Vajrapani.

Introduo

A Rota da Seda amplamente conhecida por ser um trajeto por onde passaram, ao longo de vrios sculos, caravanas de mercadores carregando inmeras mercadorias, ligando o Ocidente ao Extremo Oriente. Entretanto, devemos considerar que tais mercadorias no foram as nicas coisas que viajaram ao longo da Rota. Junto a elas, viajaram tambm ideias (DRGE, 2002, p.14).O presente artigo pensa este trnsito de ideias a partir da abordagem da antropologia histrica de Marshall Sahlins, acerca das interaes culturais. Esta perspectiva permite que nos desfaamos do conceito de influncias para utilizar o de interaes culturais, uma vez que as trocas entre culturas diferentes que se encontrem no so de modo algum unilaterais ou absolutas. Estas trocas so sempre de mo dupla; a partir do momento em que se encontram, elas jamais sero como antes (CHEVITARESE; CORNELLI, 2007, p.20), pois sua estrutura modificada por elementos externos, muito embora esses elementos no entrem puramente nelas. Eles so resignificados e relidos a partir da estrutura de pensamento da cultura receptiva, representando nela algo diferente do que representavam em seu sistema de origem.A partir desta perspectiva, ser utilizado o conceito de helenizao, como o definiu Lee Levine: um processo contnuo de simbiose cultural. Ou ainda, o processo de adoo e adaptao da cultura helenstica (que seria um plano de fundo cultural grego) em um nvel local, que neste caso o indiano. Gandhara, uma cidade indiana prxima fronteira com a Bctria (com muitos focos de helenizao, inclusive em sua arte), aps o perodo de controle da dinastia Maurya, foi dominada por Bctrios helenizados, tendo assim um contato mais profundo com esta cultura no entanto, faz-se necessrio notar que no foi o primeiro encontro, afinal a dinastia Maurya j tinha feito contato com os selucidas[footnoteRef:2]. [2: Este contato ser explorado mais detalhadamente frente.]

Como durante o perodo Maurya o budismo havia sido levado a Gandhara (uma vez que esta dinastia buscou perpetuar os ensinamentos budistas por toda a ndia), houve ainda mais este elemento em meio s trocas culturais no local. Este ser um elemento essencial nesta anlise, uma vez que seu objeto Vajrapani uma divindade budista.A Rota da Seda e o helenismo

Quando falamos em helenismo, falamos em contatos entre diferentes culturas. O helenismo no tem uma origem nica, em um s povo. Ele um resultado de encontros. O helenismo tambm no monoltico ou homogneo: ele muitos. Alexandre o Grande conquistou inmeros territrios, formando um dos maiores imprios da histria da humanidade. Seu exrcito alcanou lugares como Prsia, Mesopotmia, Egito, Palestina e chegou at as bordas da ndia. Por onde passou e onde se estabeleceu, este exrcito levou sua cultura, em grande maioria grega. Cidades inteiras foram criadas nos moldes gregos em todo o oriente prximo, onde colonos provenientes da Grcia foram implantados como forma de manter a posse dos territrios j conquistados.Ora, o convvio destes colonos e soldados gregos com as populaes locais desencadeou o processo que denominamos de helenizao. Naturalmente, no foram s os orientais que conviveram com os gregos, mas tambm os ltimos com os primeiros. Desta maneira, no poderamos afirmar que o processo foi uma mera influncia da cultura grega dos dominadores sobre as culturas dos dominados. possvel afirmar, ento, que aps esse encontro nem a cultura grega nem estas culturas orientais permaneceram tal como eram anteriormente. As trocas entre as culturas aconteceram em ambos os sentidos, ou seja, foram de mo dupla. E ns podemos afirmar isso pelo fato de que em tais processos, nenhum povo meramente um agente passivo aculturado. Como afirma Sahlins, a cultura e a histria acontecem na prtica, na ao. Por isso, os envolvidos so sempre agentes ativos em tais processos. Sendo assim, o helenismo viajou pela Rota da Seda, junto a comerciantes e embaixadores provenientes das regies conquistadas, tendo chegado at a China, e at mesmo ao Japo, ainda que praticamente um milnio aps as conquistas de Alexandre.

A Rota da Seda e o budismo

O Buda histrico, Sidarta Gautama ou Shakyamuni- viveu na ndia, na regio de Lumbini, por volta do sculo V ou VI a.C., embora no haja um consenso sobre a data exata (DREYFUS, 2010, p.17). Sidarta fazia parte de um cl governante da regio, o cl Shakya, sendo portanto uma espcie de prncipe. Segundo a tradio, ele teria abandonado tudo, inclusive sua esposa, para perseguir o caminho da iluminao. Ao atingir este estado, sentado embaixo de uma rvore que passou a ser um dos principais smbolos associados a si ele se libertou da Samsara[footnoteRef:3] [3: Existncia Cclica, ou ainda, Roda das encarnaes.]

Aps sua morte, j havia um considervel grupo de seguidores, que comearam a passar por escrito seus ensinamentos e doutrinas. Entretanto, estes seguidores logo comeariam a divergir. O grupo mais antigo ficou conhecido como Theravada. Seus monges foram os primeiros a fazer registros escritos, que foram realizados em folhas de palmeira na lngua Pali. Esta tradio era bastante severa, estrita e asctica, sendo seguida por indivduos que largavam tudo o que tinham e se tornavam monges (PANDE, 2006, pp.29,30).Passado um tempo, surgiu uma outra tradio, cujos registros foram escritos no idioma snscrito: o Mahayana. Este nome significa grande veculo, e tal vertente foi assim denominada por seus adeptos considerarem que era uma tradio de maior abrangncia, por no ser to estrita quanto a tradio Theravada que por sua vez foi denominada pelos seguidores do Mahayana de Hinayana (pequeno veculo). Esta tradio se espalhou mais rapidamente, por ser adotada principalmente por leigos, e no exigir o abandono total da vida por seus seguidores, como era o caso do Hinayana. o budismo Mahayana que encontraremos viajando ao longo da Rota da Seda, e chegando at o longnquo Extremo Oriente, embora aps este primeiro momento muitas outras ramificaes tenham surgido de dentro desta tradio.Para compreendermos a expanso do budismo, um figura chave o imperador Ashoka. Governante do imprio Maurya no sculo III a.C., seus domnios se estendiam por praticamente todo o territrio da ndia, e inclusive abarcava alguns Estados gregos (IKEDA, 1978, p.41). A dinastia Maurya, fundada por Chandragupta (av de Ashoka), havia reconquistado em 317 a.C. alguns dos territrios orientais que haviam sido dominados por Alexandre em 327 a.C. Mais para frente, encontramos Chandragupta engajado em lutas com os selucidas[footnoteRef:4] da Sria por volta do ano 305 a.C., at que seu casamento com com a filha do rei Srio sela uma aliana de paz (IKEDA, 1978, p.41). [4: A dinastia Selucida, baseada na Sria, aquela fundada por Seleuco, um dos didocos de Alexandre Magno que herdaram seu imprio.]

Ashoka foi o primeiro governante que, tendo se convertido ao budismo, governou segundo seus preceitos, tendo levado os ensinamentos a todas as regies de seu imprio.

Representaes antropomrficas na arte indiana

Na verdade, tm ocorrido em volta desta temtica diversas discusses e controvrsias, e ainda no se chegou a uma concluso definitiva sobre as interaes culturais em Gandhara. Os especialistas esto divididos entre aqueles que acreditam que as representaes antropomrficas na arte da regio na verdade tambm na arte budista como um todo tem uma origem grega, a partir do contato com a arte Bctria helenizada; e aqueles que acreditam que estas representaes possuem uma origem puramente indiana. Os primeiros, encabeados por Alfred Foucher articularam o que foi chamado de Teoria Anicnica[footnoteRef:5]. Afirmavam que no era possvel encontrar imagens antropomrficas de Buda nas primeiras imagens budistas pois o Hinayana considerado o ramo ortodoxo do budismo as evitava e proibia. Assim, as primeiras imagens poderiam, segundo eles, ser atribudas ao ramo Mahayana e teriam uma herana superior a clssica (herana esta que, para era, tambm era patente na arte budista da regio em geral, e no s em relao s representaes antropomrficas). Para Cibele Aldrovandi, isso teria trazido um certo alvio aos acadmicos europeus desconcertados com o aspecto estranho e ao mesmo tempo exuberante da arte encontrada na ndia (ALDROVANDI, 2002, p. 63,64). [5: Anicnico: que no possui cones.]

Naturalmente, isto feriu o orgulho dos pesquisadores indianos, e Coomarasyany, um pesquisador nativo, props outra teoria: a de que esta arte de Gandhara seria inteiramente indiana, independente por completo de qualquer helenizao, tendo as primeiras imagens de Buda sido criadas na regio de Mathura[footnoteRef:6]. Ainda assim, ele aceitava a proposio de Foucher, da ligao da inexistncia de imagens antropomrficas nos primeiros tempos devido a uma proibio do Hinayana. [6: No entanto, posteriormente outros pesquisadores postularam que as imagens de Buda de Gandhara e Mathura foram criadas independentemente.]

Posteriormente, Huntington observou que as imagens do perodo inicial que chegaram at ns foram somente as de pedra, apesar de outros materiais terem tambm sido usados. Isto significa que talvez houvesse sim a representao de Buda na forma humana neste primeiro perodo, mas eles simplesmente no chegaram a ns. vlido para a anlise aqui realizada, notar que imagens antropomrficas de bodhisattvas apareceram anteriormente s de Buda, e estavam presentes em relevos que representavam cenas da vida do Buda histrico, em que ele supostamente deveria estar presente. No entanto, foi proposto que nestas cenas o que se queria retratar no era um momento da vida de Buda, e sim apontar um lugar ou algo que seria alvo de adorao. Alm disto, provou muito improvvel a teoria de que havia uma proibio do Hinayana quanto confeco de imagens de Buda. importante lembrar tambm que, para o budismo, existe um conceito em que uma imagem pode ser adorada por sim mesma, e no por algo que ela represente. Isto est diretamente ligado com o Buddhadarsana (o ato de ver o Buddha), e o conceito de ver algo com os prprios olhos em geral.

O Objeto

Vajrapani um dos trs bodhisattvas[footnoteRef:7] que auxiliam e protegem o Buda, junto com Manjusri e Avalokitesvara. Cada um deles representa uma virtude do Iluminado, Vajrapani simbolizando a fora de Buda, e por isso sempre representado com o vajra[footnoteRef:8] uma clava de diamante, ou ainda, um raio (traduo mais aceita). A presena deste raio digna de nota, pois revela a ligao de sua origem, no cnone Pali, com o deus Indra, que no contexto helenstico foi associado com deuses greco-romanos Zeus e Jpiter, que so conhecidos como portadores de raios. [7: Bodhisattva: ser da iluminao; um Buda em potencial; um futuro Buda; um ser destinado a encontrar a iluminao; um ser capaz de encontrar a budeidade, que serve como guia para os demais no caminho espiritual budista. um personagem associado ao budismo Mahayana, que aps atingir a iluminao e tornar-se um Buda, renuncia a permanecer no nirvana para permanecer entre os homens e ajud-los a compreender o dharma e inici-los no caminho espiritual.] [8: Vajra: um instrumento; um atributo. Algumas vezes definido como trovo, embora esta seja uma explicao limitada para o termo. A palavra geralmente traduzida por diamante; no entanto, ainda h dvidas em relao a isto. Independente da traduo exata, um smbolo da permanncia e daquilo que no mutvel. No budismo, a natureza adamantina do universo. Um atributo de Vajrapani, muitas vezes representado como uma clava facetada, que simboliza uma fora sobrenatural.]

interessante notar que mesmo em suas representaes originais, ele possui como vestimenta uma pele de tigre, o que aponta para uma releitura da pele de leo de Hracles atravs de algo mais presente na regio indiana o tigre. Outra caracterstica comum entre eles a semi-nudez (tronco descoberto), tambm um elemento helenstico, pois isto no algo comum na arte indiana.Segundo Chaibai Mustamandy, esta substituio de Vajrapani pela figura de Hracles teria sido possvel somente por ambos terem atributos em comum, como a posse de uma clava (s vezes aparecendo como um trovo) e capacidade de enfrentar feras (lees ou tigres) que apresentada na posio da pele de felino. Alm disso, ambos aparecem como uma figura extremamente poderosa em seus respectivos contextos de origem. Este paralelo, para ele, s poderia ter sido explicado aos artesos pelos prprios monges budistas, e, no entanto, isto no teria se constitudo em tarefa alm das capacidades do artista, que j conheceria o modelo de representao de Hracles previamente (MUSTAMANDY, 1997, p.26). Exemplos de imagens de Hracles encontradas em Gandhara e outras regies helensticas encontram-se como anexos ao final do artigo. E, em seguida, imagens do Vajrapani original.

Consideraes finais

Apesar do debate que ainda se faz presente, acreditamos que as interaes entre a cultura helnica e o budismo podem ser expressas pelas representaes antopomrficas de Vajrapani. Ainda que no seja possvel averiguar com preciso se a figura representada tinha relaes diretas com Hracles ou com o panteo greco-romano em geral, podemos verificar que aspectos simblicos e artsticos o definem como uma expresso das interaes culturais na regio de Gandhara. Vajrapani se apresenta com o busto semi-nu, portando barba (signo da masculinidade completa grega), em uma postura ereta. No mais, figura claramente como um representante de uma etnia diferente da hindu, por exemplo, pelos traos de sua imagem (nariz, cabelo, etc). Estas observaes no implicam, entretanto, dizer que a arte de Gandhara tenha sofrido uma influncia da arte grega considerada superior, como chegou a ser sustentado. Tambm no significam que os elementos da arte grega tenham sido incorporados de maneira passiva por estes artistas. Como pudemos observar, a imagem de Hracles desta regio no representam a arte grega tal como se apresenta na prpria Hlade. Isto porque os budistas se apropriaram destes elementos de uma forma ativa e no passiva, tendo eles passado por uma releitura e uma ressignificao a partir de seus prprios campos de significao, determinados por suas experincias culturais.

AnexosImagem 1: Representao de Vajrapani como Hracles (direita) como o protetor de Buda, sculo II d.C. Gandhara, British Museum

Imagem 2: Buda e Vajrapani com um espanador de moscas, Gandhara, sculo II d.C.

Imagem 3: Hracles e Tyche com Buda, Tapa Shotor, Hadda

Imagem 4: Vajrapani e monges budistas, Ghandaran art, Guimet Museum

Vajrapani, Tibetan Museum Society

Bibliografia

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