o minotauro imperial
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O M I N O T A U R O
I M P E R I A L
A B U R O C R A T I Z A O D O E S T A D O
P A T R I M O N I A L B R A S I L E I R O N O
S C U L O X I X
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CORPO
L M
DO BR SIL
Direo do
Pro f . F e rnando Henr i que Ca rdoso
L V
Outubro de 1978
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FERNANDO URICOECHEA
O MINOT URO
IMPERI L
A BUROCRATIZAO DO
ESTADO PATRIMONIAL
BRASILEIRO NO
SCULO XIX
f
D I F E L
Rio de Janeiro So Paulo
-
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Direitos exclusivos desta edio
D I F E L / D I F U S O E D I T O R I A L S .A
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Para
MARA CRISTINA
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L I S T A D E A B R E V I A E S E M P R E G A D A S N A S N O T A S
A E B :
Arquivo H is tr i co do Estado da Bah ia
A H R G S :
Arqu i vo H i s t r i co do R io Grande do Su l
A N :
A rq u i v o Na c i on a l
A P M : Arqu i vo Pb l i co M ine i ro
B P E R :
Arquiyo da Bib l ioteca Pbl ica do Estado do Rio de Janeiro
bat.:
bata lho
CS : Com andante Super ior
cap.: capito
col. :
corone l
com. : comandante
comp. :
companhia
Ch.:
Ch e f e
G . N . :
Guarda Nac i ona l
int.:
interino
j.p.:
juiz de paz
Leg . :
leg io
MJ :
Ministro da Justia
Ms :
Manuscr i to
o f . : o f c io
P P : Presidente da Pro vnc ia
pac. : pacote
se.: seo de com pan hia
ten.: tenente
V ice-P . :
V ice-Pres idente
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SUMARIO
Pre fc i o 9
Introduo 13
I . A G N E S E D O C O N T E X T O P A T R I M O N I A L 21
i . A empresa colo nial , 23
i i . O pad ro da co loniza o , 28
i i i . Adm inistrao e prebendal ismo , 31
iv . O con texto agr rio, 38
I I . S E N H O R E S D E T E R R A E M I L I T A R E S : A S R A Z E S CO -
L O N I A I S 5 5
I I I . E X P A N S O E D I F E R E N C I A O D O E S T A D O B U R O -
C R T I C O 8 1
i. O contraste l ibe ral: o Brasil e a A m r ic a hispnica, 83
i i . A Gua rda Cv ica : uma corp ora o estamenta l, 88
i i i . Expa nso e d i ferenciao do Estado, 90
iv . Po de r estatal e po de r pri va do : a arte de pactuar, 107
I V . A O R G A N I Z A O D A S M I L C I A S P A T R I M O N I A I S . . . . 125
i . A m il i tar izao da sociedade local , 127
i i . A Gu arda N ac ion al : sua estrutura e fun es , 132
V . A S M I L C I A S E A R O T I N A A D M I N I S T R A T I V A 147
i. A base p blica da adm inistra o, 149
ii. A base pri va da da adm inistra o, 153
i i i . O pro jet o senhorial , 160
V I . A R O T I N A C O R P O R A T I V A E O P R O I E T O C O R P O R A -
T I V O 1 7 9
i
ii
A obstinao da realidade, 181
Contrapontos regionais, 190
Algumas fontes de perverso, 198
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V I I . O M I L I C I A N O G A C H O : " S E N H O R D A S D I S T N C I A S "
223
i. A s orige ns da socied ade gacha, 225
ii . Al gu ns aspectos orga niza cion ais das m il cias gachas, 229
i i i . Os fund am entos pr ivad os, 231
iv . O pr oje to gac ho, 233
v . O comandante da f ronte i ra : o per i to
diletante,
249
V I I I . O E S T A D O B R A S I L E I R O M O D E R N O : D A S M X I M A S
P A T R I M O N I A I S A O S P R I N C P I O S B U R O C R T I C O S . . 263
i . Os
Luddites
do sert o, 266
i i .
Sine Ira et Studio..
. mais ainda apaix ona dam ente , 268
i i i . D e Deu s para Petersen em poucas dcadas, 275
iv . Pad res adm inistrat ivos, 282
Concluses 299
B ibl io gra f ia e Fon tes 307
I . B ib l iogra f ia Ge ra l , 309
I I . B ib l iogra f ia Espec ia l izada sobre o Bras il e a Am r i ca L a-
tina, 311
I I I . A rq u i vo s , 315
T A B E L A S
Ta be la I I I - 1 . Despesas pbl icas po r prov ncias e setor: 1822-1823 93
Ta be la I I I -2 . Despesas pbl icas po r ministr ios e pro vnc ias: Pr i -
mei ra metade do scu lo X I X 99
Ta be la I I I -3 . Despesas pbl icas po r ministr ios e prov ncias : 1830-
1888 100
Ta be la I I I -4 . Porce ntagem de despesa em de fesa com re lao ao
tota l de despesa pr ov in ci al : 1830-1888 104
Tab e la I I I -5 . Porcen tagem de despesa em fazenda com re lao ao
tota l de despesa pr ov in cia l : 1830-1888 105
Tab e la I I I - 6 . Porce ntagem de despesa em imp r io co m re lao ao
tota l de despesa pr ov in cia l: 1830-1888 106
Ta be la I I I -7 . Por cen tage m de despesa em just ia co m relao ao
tota l de despesa pr ov in ci al : 1830-1888 107
Ta be la I I I -8 . Presidentes de Pr ov nc ia : 1822-1889, Pro vnc ias sele-
cionadas 111
Ta be la V - l . M inistr io da justia : Despesas of ic ia is de servio no
ano f isca l : Minas Gera is (1853-54) , Rio de Janeiro
(1856-57) 151
Tab e la V -2 . In fo rm a o sobre a f i l i ao pa terna com o funo da
pos io corpora t i va : P rov nc ia do R io de Jane i ro :
1870 173
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PREFCIO
O presente trabalho uma verso portuguesa de um
texto originalmente escrito em ingls e apresentado
como tese de doutoramento Universidade da Califrnia
(Berkeley) em 1976 com o ttulo
The Patrimonial Foun-
dations of the Brazilian Bureaucratic State: Land lords,
Prinoe and Militias in the XIXth Oentury.
Com exceo
das sees iii e iv do captulo iii e do captulo viii, que
j apareceram em DADOS 14 e 15 respectivamente, o
resto aparece pela prime ira vez em portugus. Myriam
Moraes Lins de Barros fez uma primeira verso portu-
guesa do captulo viii; o resto do texto foi traduzido
por Fanny Wrobel, a quem quero manifestar meus pro-
fundos agradecimentos pelo seu esforo e dedicao per-
manente no processo de traduo. A verso definitiva do
texto , todavia, de minha inteira responsabilidade. A
traduo fo i, alis, possvel graas a um aux lio concedido
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico
e Tecnolgico. Agradeo tambm a Fernando Henrique
Cardoso o interesse pelo texto que tornou possvel a sua
publicao pela Difel.
Devo tambm meus agradecimentos Fundao
Ford pela concesso de uma dotao de pesquisa que
permitiu a visita aos arquivos histricos de onde se obti-
veram os dados para este trabalho. O apoio generoso do
pessoal administrativo dos diversos arquivos facilitou
enormemente o acesso ao material e, quando necessrio,
mesmo aquele que ainda se encontra sem classificar.
Particularmente indispensveis nesse sentido foram:
Aclair Ramos de Oliveira, Maria de la Encarnacin Es-
pana Iglesias, Maria Lusa Fernandes de Carvalho e Jos
Gabriel Costa Pinto no Arquivo Nacional do Rio de Ja-
neiro. Este ltimo, membro da Seo de Pesquisa do
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Arquivo Nacional, foi especialmente til em decifrar tre-
chos manuscritos ocasiona lmen te ilegveis. Igualm en te
til nesse respeito foi o Diretor do Arquivo Histrico do
Rio Grande do Sul, Cel. Moacir Domingues, quem, junto
com Suzana Schunk B rochado, ofereceu uma cooperao
extraordinariamente valiosa para acelerar o processo de
coleta de dados. O pessoal do Arqu ivo do Estado da
Bahia foi caracteristicam ente amvel e coopera tivo. O
Diretor em exerccio, o senhor Wilson Sampaio do Prado
Pinto, mostrou uma disposio to generosa como a dos
outros membros do Arqu ivo e particularmen te Neusa R o-
drigues Esteves, Adir de Souza Chaves e Tereza Maria dos
Santos. O acesso ao Arquivo da Biblioteca Pblica do
Estado do Rio de Janeiro em Niteri deve-se a Yeda
Gappo Viana de Brito. Todas as pessoas acima facilita-
ram consideravelmente um processo que, de outra form a,
teria tomado um espao de tempo muito mais longo.
Quero tambm agradecer de forma especial a Rui Vieira
da Cunha, membro da Seo de Pesquisa do Arquivo Na-
cional. Foram as conversaes com ele que me estimula-
ram a persistir na idia de pesquisar o papel da Guarda
Nacional na vida institucional brasileira num momento
em que a sua importncia era apenas uma vaga intuio.
Por vrios anos tenho estado associado ao Instituto
Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
Foi ali onde tive a oportunidade de me familiarizar com
e de tirar proveito intelectual de as diversas ver-
ses brasileiras de um debate intelectual cuja verso te-
rica havia conhecido nos meus anos de estudante em
Berkeley. Tenho uma dvida enorme com o Instituto
pelo tempo e recursos que colocou liberalmente minha
disposio. Dos sem inrios e palestras que regularm ente
ofereo como membro da congregao acadmica tenho
aproveitado amplamente como tambm dos comentrios
e crticas de colegas e amigos a diversos trechos deste
texto. Quero agradecer a Simon Schwartzman, a Carlos
Hasenbalg e a Olavo Brasil de Lima Jr. seus valiosos co-
mentrios. Igua lmente valiosos foram os comentrios de
Csar Guimares que foi, alis, uma fonte oportuna de
estmulo. Ron Seckinger, Ra fael Bayce e Vicente Bar-
retto tambm tiveram a gentileza de fazer comentrios
e observaes crticas. Nenhum deles, porm, estou certo,
ficar satisfeito com esta verso final ainda quando ela
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incorpora , quando poss vel, as sugestes deles. Ne il J.
Smelser, Arthur L. Stinchcombe e Tlio Halperin, os
membros do comit de tese, representaram uma fonte
desafiante de
scholarship
que procurei emular perma-
nentem ente. A influncia de Max Weber no meu pensa-
mento manifesta-se de forma evidente nos primeiros ca-
ptulos. Cheguei a estudar Weber pela primeira vez gra-
as a uma velha am izade com Dar io Mesa. A todos esses
amigos e colegas e aos que tenha inadvertidamente omi-
tido vo meus sentimentos de gratido.
Quero tambm registrar minha especial gratido
Maria da Graa Salgado que me deu por mais de um ano
eficiente assistncia no processo de levantamento de
dados dos arquivos. A cooperao inteligente e entusias-
ta dela assim como a oportunidade que amigavelmente
me ofereceu de discutir diversas questes fo ram decisivas
para o sucesso da pesquisa. An gela M aria R am alho Vian-
na, Elizabeth Wendhausen Rochadel e Maria Anita Sei-
xas Pimenta ajudaram temporalmente tambm na cole-
ta de dados. Lu iz Henrique Nunes Bah ia contribuiu ge-
nerosamente com seu tempo na elaborao de um pro-
grama de computao para processar dados que no
foram, por razes de economia, empregados neste texto
e que foram tabulados com enorme pacincia e simpatia
por Maria Margarita Uricoechea, minha filha. Lcia
Inez Teixeira da Cunha bateu a primeira verso do ma-
nuscrito numa lngua estrangeira que desconhece com
a intuio literria de um bacharel do Imp rio. A todos
eles, mais uma vez, meus maiores agradecimentos.
As convenes requerem que eu declare que nenhu-
ma das pessoas acima mencionadas pode ser responsa-
bilizada por quaisquer erros nas pg inas seguintes. A
nica exceo a essa norma minha mulher de tantos
anos, Maria Cristina Ir iar te. Seu apoio, suas crticas e
seu carinho tem muito a ver com o que aqui apresento.
Em certo sentido, este trabalho , assim, tanto meu como
dela. Dedico-o a ela como uma expresso de m inha dvida
profunda, inefvel.
Umas poucas palavras finais com relao aos manus-
critos citados no texto: deliberadamente me abstive de
fazer qualquer correo ou modernizao ortogrfica dos
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manuscritos originais. Desta forma evitava a "portanho-
lizao" questionvel de um Portugus autntico e rano
e preservava qualquer charme e beleza que os originais
porventura tivessem. O emprego de maisculas, obsoleto
hoje em dia em substantivos, foi sempre conservado com
a segurana, qui no v, de que a nfase implicada
por trs do emprego delas pudesse nos ensinar algo da-
quilo que os funcionrios burocrticos e os servidores
patrimoniais do Brasil de ontem consideravam valioso.
O emprego de sic, conseqentemente, limitou-se a oca-
sies infreqentes quando foi considerado essencial.
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INTRODUO
" A cont ingncia tem suas ra zes no in f in i t o . "
Le ibn i t z
apud
Eduard Bodemann
Die Leibniz-Handschriften
O conhecimen to lida com a contingn cia. H, toda-
via, mtodos diferentes de lidar com ela. Embora a ep-
grafe acima, de Leibniz, visasse estabelecer terreno slido
para uma explicao satisfatria da contingncia, uma
leitura crtica dessa afirmativa provoca uma sensao de
vertig em epistemolgica. De fato , parte da Crtica da
Razo Pura,
de Kant, procura demonstrar a tentativa
ilusria atravs da qual a razo transcendental se en-
volve tentando superar tal vertigem por meio da noo
de um ser necessrio. A razo sociolgica, menos esttica
e arquitetnica, supera-a lanando mo da histria
(1 )
.
O conhecimento histrico , pois, o nico caminho
cientfico para escapar ao mal-estar criado pela noo
perturbadora de um regresso de causas in finit o. No
obstante, a justificativa sociolgica da
necessidade
como
histrica e no metafsica nem sempre foi acompanhada
de uma noo igualmente crtica de que o princpio do
conhecimento dessa necessidade tambm deve ser encon-
trado, da mesma maneira, na histria e no na metaf-
sica. A pertincia de esquemas evolutivos no pensamento
histrico, por exemplo, atesta a pertinncia da distino
acima.
Duas linhas importantes de pensamento tm sido
consistentes em determinar a ambos a necessidade e
o seu conhecimento na histria. A p rimeira, sistem-
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tica, , naturalmente, a que se origina em Karl Marx;
a segunda, rapsdica, foi a-elaborada por Max Weber.
O presente trabalho um exerccio de sntese hist-
rica com a ajuda das categorias sociolgicas de Weber:
tenta elaborar uma interpretao da experincia hist-
rica da comunidade poltica brasileira, durante o seu re-
gime imperial em termos da noo tpica ideal de buro-
cracia patrimonial. A questo geral aqui colocada como
objeto principal de pesquisa pode ser indicada como se-
gue: como se desenvolveu uma dominao burocrtica
patrimonial no Brasil imperial e, particularmente, qual
foi o papel do patrimonialismo no processo de desenvol-
vimento do estado burocrtico moderno.
A noo de burocracia patrimonial, porm, tem um
carter um tanto peculiar na perspectiva de uma meto-
dologia tpica ideal. De fato , a maioria dos prprios tipos
ideais de Weber criada a partir de um nico princpio
regulador, o qual provoca a acentuao habitual unilate-
ral e o carter concomitantemente
puro
dos tipos ideais.
A noo de burocracia patrimonial, porm, um constru-
to hbrido, com a acentuao simultnea de
dais
princ-
pios reguladores
opostos:
a autoridade racional
e
a tra-
dicional. Esta uma estratgia muito excepcional que
Weber se sentiu forado a empregar, contrariando as
suas prprias injunes metodolgicas, em virtude do
prprio significado dessas estruturas para a anlise dos
processos de mudana. Com efe ito, aps uma discusso
dos seus tipos ideais de autoridade, ele acrescenta em
um de seus textos relevantes:
Ver-nos-emos compelidos, de vez em quando,
a cunhar expresses como "burocracia patrimo-
nial" a fim de salientar o fato de traos caracte-
rsticos do fenmeno respectivo pertencerem em
parte forma racional de dominao e outros, no
entanto, forma tradicional . . . .
Mais freqente e mais vexatrio era o inimigo in-
terno: o aborgene. Suas incurses rpidas e cautelosas,
porm, no eram dirigidas contra os privilgios abstratos
das capitanias mas contra as fortificaes concretas dos
engenhos rsticos.
O sistema de administrao do Governo Geral pros-
seguiu durante todo o restante perodo colonial, com
algum as pequenas modificaes ocasionais. Novas capi-
tanias foram criadas conforme a necessidade; o capito-
geral mudou sua sede para o Rio de Janeiro, medida
que o ritmo e a vida da colnia se deslocavam em direo
ao centro, com a emergncia do ciclo da minerao, a
abertura de novas terras e a ameaa militar da Espanha
na rea do Pra ta. Muito embora os poucos esforos bu-
rocrticos iniciais gradualmente se tornassem mais pre-
cisos e importantes para definir a forma do edifcio co-
lonial, eles continuavam a ser insuficientes para a admi-
nistrao de um territrio to vasto sem a cooperao,
ineficiente mas ainda assim barata, dos prebendrios e
honoratiores. Embora a proviso de cargos pblicos ain-
da continuasse a ser, naturalmente, fruto do favor real,
a proviso anterior de cargos como prebendas em perpe-
tuidade cedeu lugar criao de prebendas temporrias.
Como ocorreu na Amrica espanhola, essas restries
temporais foram provavelmente mais acentuadas para
os favores inteiramente prebendrios do que para os
cargos mais tcnicos. Os requisitos tcnicos exigidos
para o desempenho eficiente de algumas funes admi-
nistrativas encorajou a gradativa profissionalizao de
alguns rgos patrimoniais e a elaborao de uma regu-
lamentao relativamente sistemtica de promoes,
transferncias, aposentadorias, etc.
(21)
. Os maiores avan-
os nessa direo foram feitos, tipicamente, no judici-
rio. A adjudicao adequada da justia exigia que o juiz
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estivesse familiarizado com uma srie de procedimentos
e tcnicas que, no infreqentemente, favoreciam a
transformao da prtica profissional em um exerccio
esotrico restrito a uns poucos. Durante o sculo X V I I I ,
qualquer advogado que aspirasse a preencher um cargo
na Real Audincia tinha que submeter-se a um exame,
apresentar certificados
bona fide
de estudos acadmicos
e ter praticado durante quatro anos
(pasantia
ou
prti-
ca)
no escritrio de um advogado, por sua vez devida-
mente credenciado
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togada francesa ou da nobreza judiciria prus-
siana, os magistrados portugueses continuavam
sendo uma elite profissional ao invs de uma
classe social diferente, embora sempre houvesse
uma tendncia para eles se tornarem uma
(23)
.
A Relao era, para todos os efeitos e propsitos, um
instrum ento dcil do senhor supremo. Um outro setor
cujas funes tenderam profissionalizao, embora no
num grau to pronunciado como no caso dos ramos mais
elevados do jud icirio, fo i o Errio Rea l. Descrevendo os
dispositivos da Amrica colonial espanhola, observa Ots
Capdequi:
Mesmo no estgio inicial da colonizao,
quando era mais notria a predominncia dos in-
teresses particulares nas expedies de descober-
ta, conquista e novos povoamentos, foi atravs
desses funcionrios da Fazenda Real que o estado
espanhol afirmou sua presena na defesa dos di-
reitos fiscais da Coroa
l2i>
.
Contudo, os requisitos tcnicos necessrios ao de-
sempenho dessas funes deviam ser mais prementes no
Brasil, principalmente levando em considerao o fisca-
lismo caracterstico da Coroa portuguesa. Alm disso,
quando temos em mente a ligao tpica entre a admi-
nistrao fiscal e a burocratizao precoce nessa rea,
como Weber demonstrou, torna-se fcil compreender
mais claramente a forma como o processo evoluiu
(25
>.
A prpria origem patrimonial dessa orientao fiscal
foi, assim, um meio indireto para a burocratizao pro-
gressiva do governo. A estrutura patrimonial se manti-
nha mais firme nas fileiras intermedirias e perifricas
da mqu ina adm inistrativa; o favor real era notavelmen-
te visvel na proviso municipal e local de cargos, con-
cedidos provavelmente mais ou menos como prebendas
militares , com obrigaes policiais e judicirias. En tre-
tanto, quanto mais burocrtica se tornava a administra-
o monrquica (atravs dos surtos pragmticos de reor-
ganizao, correo e redefinio da ordem hierrquica
dos funcionrios reais e de seus nichos estruturais e com-
petncias jurisdicionais), mais labirntico se tornava seu
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envolvimento nas mximas sancionadas pelo uso da
administrao prebendria.
O desenvolvimento da administrao burocrtica ra-
cional teria sido, de qualquer maneira, to extico como
a extino espontnea do privilgio e do arbtrio. Um
princpio burocrtico de coordenao social, com sua in-
sistncia na objetividade e na universalidade, s poderia
florescer no interior de uma sociedade familiarizada com
as mediaes institucionais de organizaes contratuais
preocupadas com o clculo raciona l. Com o ideo logia efe-
tiva, um tal princpio teria que ser uma projeo norma-
tiva de um princpio constitutivo de relaes sociais
substantivamente baseadas no contra to. O mundo colo-
nial, todavia, estava muito prenhe de e emaranhado
na imediatez da experincia patriarcal privatizada
para poder conceber formas abstratas vivas o bastante
para permitir a ordenao objetiva e institucionalizada
dessa mesma experincia.
Assim, no foi por coincidncia que os setores mais
expostos racionalizao burocrtica foram os setores
centrais da prpria burocracia real. Uma administrao
burocrtica racional, composta de funcionrios assalaria-
dos, s surgiria no sculo XIX, quando as definies das
funes no obedeciam mais a consideraes pragmticas
e prudentes criadas por eventualidades e contingncias
mas, ao contrrio, derivavam sistematicamente de um
conjunto de cnones substantivos e imperativos de orga-
nizao. O que faltou ao Brasil anterior ao sculo XIX
no foi um ardor burocrtico muito pelo contrrio
mas um cnone objetivo para a diviso tcnica dos
deveres administrativos.
Seria inadequado atribuir essa falta prebendali-
zao de vastas reas de administrao, principalmente
das reas perifricas que se estendiam at a sociedade
rstica dos sertes. Pode-se encontrar uma razo mais
plausvel na ausncia de um estrato ou estratos doms-
ticos vigorosos decididos a e lutando por uma regu-
lamentao objetiva e impessoal de intercmbio social
que surgisse a partir do contrato, do trabalho e da adju-
dicao da justia. A essncia lnguida demasiado
lnguida da vida municipal que Oliveira Vianna des-
creveu-nos com tanta propriedade, o ritmo aptico dos
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centros urbanos, a pobreza da cultura burguesa e das
associaes de interesses e a contrao formidvel das
instituies de mercado geradas pela presena da escra-
vido foram todas elas condies que, juntas, atrasaram
a emergncia de uma ordem burocrtica racional.
iv.
O Contexto Agrrio
. . . na verda de, e les v iam a soc iedade dom st i-
ca como uma repbl ica em miniatura.
Sneca,
Letters from a Stoic: Ep istulae Mora-
les ad Lucilium,
letter xiv i i
At agora examinamos os efeitos dos padres de
ocupao da terra e administrao do governo sobre a
privatizao do poder local. Se esses padres fac ilitaram
a presena de grupos privados no processo de construo
do estado, o latifndio colonial, por sua vez, foi o agente
que estereotipou e revigorou essa presena. J descre-
vemos como as concesses reais do latifndio sesma-
rias a dependentes patrimoniais surgiu como a forma
tpica de administrao do novo territrio portugus.
Alm disso, para fomentar a ocupao sistemtica do
solo, esses prebendrios se obrigavam a explorar econo-
micamente seu territrio, estabelecendo engenhos, plan-
taes de cana-de-acar e outras formas de cultivo.
Esses engenhos, localizados prximo aos meios de trans-
porte oferecidos pelas cidades, se espalharam rapida-
mente atravs das reas costeiras de colonizao. Em
contraste, as fazendas penetraram mais para o interior.
Engenho e fazenda tornaram-se, ssim, as clulas bsi-
cas que contribuiriam para imprimir uma fisionomia
caracterstica sociedade colonial. O engenho era mais
tpico da orientao geral da economia e da sociedade
do seu tempo do que a fazenda. A articulao da econo-
mia de engenho cm o circuito comercial do capitalismo
colonial era direto, constan te e un iforme. A fazenda, no
poucas vezes produzia mercadorias apenas para o mer-
cado local. Alm disso, o engenho em pregava extensiva-
mente o trabalho escravo, enquanto a fazenda empregava
os caboclos nativos. Desta form a, o engenho contribuiu
diretamente para a criao e manuteno do complexo
institucional mais caracterstico do Brasil colonial: o
complexo senhor-escravo. Portan to, seja con frontado em
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termos do patriarcalismo predominante na sociedade do-
mstica, ou na organizao da produo de mercadorias
para exportao, ou no emprego preponderante do tra-
balho escravo, o engenho foi a instituio mais tpica
do Brasil durante a poca mercantil e colonial.
No obstante essas diferenas, tanto o engenho como
a fazenda representaram os enclaves mais poderosos para
a organizao e desenvolvimento da sociedade civil du-
rante os sculos de dominao portuguesa. Seu raio de
ao sobre as vidas e biografias de senhores e campone-
ses era to abrangente que correto caracteriz-los,
como faz Erving Goffman, como instituies totais, isto
, como estabelecimentos sociais fun cionando "com o local
de residncia e trabalho, onde um grande nmero de
indivduos da mesma situao, afastados da sociedade
mais ampla durante um perodo de tempo aprecivel, le-
vam juntos um tipo de vida fechado, formalmente admi-
nistrado"
(26)
.
A despeito da origem contempornea do conceito de
instituio total, ele vlido para colocar em foco as
caractersticas bsicas das instituies coloniais. O que
se segue aplica-se satisfatoriamente tanto a um asilo
como ao tipo de vida de caserna do engenho:
Primeiro, todos os aspectos da vida ocorrem
no mesmo lugar e sob a mesma nica autoridade.
Segundo, cada fase da atividade diria do membro
levada a efeito na companhia imediata de uma
grande poro de outros, todos eles tratados
igualmente e de quem se exige que faam a mes-
ma coisa juntos. Terce iro, todas as fases da ati-
vidade diria so programadas estritamente,
cada uma delas levando antecipadamente a toda
a seqncia consecutiva das atividades que so
impostas do alto, atravs de um sistema de dire-
trizes formais explcitas e um corpo de funcion-
rios. Finalmente, as vrias atividades obrigat-
rias so reunidas num nico plano racional, de-
signado propositadamente para cumprir os obje-
tivos oficiais das instituies
-
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de mobilidade social entre as duas classes, assim como
a distncia social entre elas; o antagonismo difuso e es-
tereotipado, etc., so todos eles traos de asilos que se
reproduzem tambm no microcosmos do senhor e do
escravo.
Esses traos no so to precisamente definidos nas
fazendas como nos engenhos, mas ambos partilhavam
do isolamento instituciona l caracterstico. Separada-
mente, ambas as instituies englobam, numa sntese
compacta, os elementos bsicos econmicos, polticos e
sociais da comunidade mais ampla
(28)
. Essas institui-
es senhoriais no eram apenas entidades econmicas;
eram tambm estabelecimentos sociais desenvolvidos
com um grau marcante de isolamento e uma autonomia
relativa
vis--vis
sociedade mais ampla
(29)
.
Ao invs de descrever a organizao econmica do
trabalho, achamos que servir melhor nosso propsito
foca lizar outros aspectos desses latifnd ios. Como j fo i
sugerido, a adniinistrao real portuguesa possibilitou
um grau maior de prebendalizao da terra para a admi-
nistrao local do governo de que no caso da burocracia
patrimonial espanhola
(30)
. Embora no totalmente bem
sucedida, esta ltima tentou esforos mais sistemticos
quando medidos pelo grau de freqncia e continui-
dade para cercear a militarizao dos prebendrios
locais e transformar esses funcionrios militares num
funcionalismo assalariado. Isto torna-se evidente nas
polticas administrativas destinadas possesso ameri-
cana, como ilustra o seguinte caso:
Ta nto o esprito como a letra das Novas Leis
se opunham, porm, s atividades extraprofissio-
nais dos funcionrios e representantes do Rei.
Como os juzes de Audincia e os principais ofi-
ciais de justia recebiam "salrios decentes", em
1549 eles estavam formalmente proibidos de pos-
suir fazendas de gado bovino ou ovino, estncias,
terras de cultivo, minas ou empresas comerciais,
em sociedade ou a travs de procurao, direta ou
indiretamente. A ordem real fo i reiterada no ano
seguinte e ainda mais tarde, sob vrias formas,
durante os sculos XVI e XVII, principalmente
em 1558-1575, 1584, 1597, 1607, 1618 e 1619 .
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Na Amrica portuguesa, em contraste, a terra era
mais proeminente como instrumento do favor real em
relao aos servidores patrimoniais. Dois acidentes his-
tricos provavelmente do conta, em grande medida
dessa tendncia portuguesa quando comparada prefe-
rncia espanhola de uma pronta mudana da prebenda
para o salrio. Prim eiro, havia um a fal ta quase crnica
de fundos no tesouro real portugus, em contraste com
a relativa abundncia de metal da Real Haciena espa-
nhola, graas aos sem Eldorados no Mxico, Peru e Co-
lmbia
(32
>.
Isto forou a administrao portuguesa a depender
dos benefcios da terra como alternativa para os salrios.
O segundo acidente histrico foi a relativa falta de uma
populao nativa sedentria das quais as autoridades
locais pudessem exigir tributos e servios para se man-
terem. A populao nativa ndia era semi-sedentria e
pouca em nmero
(33)
. Os escravos africanos foram im-
portados precisamente para suplementar o fornecimento
insuficiente de mo-de-obra amerndia e as expedies
militares aos sertes, as bandeiras, tambm atestam a
escassez rela tiva de uma fora de traba lho nativa. Sob
tais condies, a terra era uma remunerao substantiva
frente a fraqueza fiscal da Coroa e a fraqueza senhorial
da terra. Nesse contexto, bastante sugestivo que nos
domnios espanhis a tendncia descentralizao esti-
vesse ligada, com efeito, s crises na indstria mineira.
Chevalier conta-nos, por exemplo, a respeito do Mxico:
A tendncia ao que resultou, de fato, na des-
centralizao, um dos aspectos da recesso ge-
ral que acompanhou o declnio das minas no
sculo XVII, a relativa reduo do comrcio e o
isolamento de tod o pas
(34)
.
De forma semelhante, no foi por acidente que a
primeira deciso importante de cercear e reduzir o pre-
bendalismo territorial no Brasil ocorreu justamente al-
guns anos aps o influxo de m etais que surgiu com a des-
coberta das minas, atravs da Real Ordem de 27.12.1695
que transferia a seus sditos o direito de propriedade
sobre as sesmarias ao mesmo tempo que reduzia as suas
dimenses. Decretos mais severos e drsticos seguiram-
se em 1697 e 1699
(35
>.
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Uma das conseqncias da obstinao deste sistema
de prebendalismo de cargos foi
atrasar
a formao de
um Estado moderno no Brasil, pois o prebendalismo de
cargos retardou a mudana da administrao patrimo-
nia l para a burocrtica. Um a outra conseqncia fo i aju-
dar a
acelerar
a transformao do latifndio num tram-
polim de poder local.
Em conseqncia disto, e desde o seu prprio incio,
o latifndio tornou-se o
locus
tanto do empreendimento
econmico como do go verno local. A proem inncia do
senhorio privado de terras foi ainda aumentada pelo ca-
rter militar da organizao latifundiria. Essa milita-
rizao no foi simplesmente o resultado da competncia
militar exercida pelos proprietrios de terra locais na sua
capacidade de autoridade real patrimonial. Foi encora-
jada durante os primeiros duzentos anos de colonizao
pela necessidade de proteger engenhos e fazendas do in-
terior contra o perigo constante dos ataques silvcolas.
Os assaltos do ncola so to comuns e fero-
zes, que os engenhos se tornam em verdadeiras
fortalezas com o seu corpo de milicianos e o seu
arsenal de armas. Frei Gaspar fala de pais de
famlias do seu tempo que tm casas fortes como
tiveram muitas noutro tempo, com gente sufi-
ciente para rebater os assaltos do inimigo.
Organizando-se no meio da selvageria, o do-
mnio defende-se a si mesmo. Assediado por todos
os lados, forado a constituir-se militarmente.
Forma, ento, dentro dos seus muros, um peque-
no exrcito permanente pronto, gil , mobi-
lssimo, talhado feio do inimigo
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domstica sobre a vida pblica e suas instituies pol-
ticas. Esse patriarcalismo, produzido pelas caractersti-
cas internas do engenho e da fazenda , fo i ainda exacerba-
do pela exiguidade e fraqueza das instituies municipais
contrapostas, de escopo mais amplo. Inevitavelmente, o
patriarcalismo do senhor de terras e escravos afirmaria a
sua presena arbitrria alm dos limites dos seus do-
mnios pessoais por mais distantes que estes fossem.
O crescimento atrofiado da vida urbana e das insti-
tuies municipais, ocasionado pela sufocao, por parte
da Coroa, da indstria nativa e, por parte da escravido,
das corporaes e do mercado, responsvel, em grande
parte, pela difuso do patriarcalismo. Oliveira Vianna
interpretou corretamente essa ruralizao colonial h
mais de m eio sculo. Ele remonta sua origem inefe-
tiva, porque artificial, formao oficial das cidades:
. . . a form ao das vilas e cidades sempre
um ato de iniciativa oficial, das autoridades da
Metrpole, governadores de Capitanias, governa-
dores gerais ou vice-reis e no da iniciativa
do povo
(37)
.
Essa poltica de urbanizao destinava-se a agregar
os colonizadores dispersos em unidades administrativas
e polticas, sob a direo de um capito-m or regente . Ca-
rentes em espontaneidade, avessos aos efeitos centrfu-
gos do latifndio rstico e auto-suficiente, perdidos no
meio de imensas expanses de terra, sem ajuda das insti-
tuies municipais de autogoverno, no de surpreender
que a maior parte desses povoados permanecesse apenas
como nomes episdicos em registros de arquivo:
Grande nmero destas povoaes fracassa-
vam e extinguiam -se. Ou tras s subsistiam en-
quanto estavam sob o pulso de ferro do "capito-
-m or" regente; logo que este se retirava da povoa-
o e a entregava a'si mesma, os "moradores",
pouco inclinados vivncia urbana, iam evadin-
do-se aos poucos, em fuga formigueira, para os
seus stios e fazendas
(38)
.
Oliveira Vianna aponta tambm o efeito deletrio
da poltica de sesmaria da Coroa: de fato, onde as con-
cesses de terra eram pequenas, como foi o caso excep-
cional da zona mineradora, o resultado foi a concentra-
o ao invs da disperso
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A despeito do seu argumento sugestivo de que a fra-
queza das formas urbanas de solidariedade correspon-
diam ao padro de povoamento da terra, Saint-Hilaire
observa tambm : "Com o em todas as cidades do inte rior
do Brasil, a maioria das casas fica fechada durante a
semana s sendo habitada nos domingos e dias de fes-
ta "
(40)
. Este um reconhecimento aparente de que a
moradia agregada no condio suficiente para a emer-
gncia de formas urbanas.
A causa para o carter dessas formas deve ser pro-
curada, melhor na contrao brutal das formas comunais"
de solidariedade ocasionada pelo latifndio e sua orga-
nizao de base escrava. Os processos tpicos de
Verge-
meinschaftung e de form ao de solidariedade foram ,
assim, restritos geralmente ao pequeno mundo do lati-
fndio. Mais uma vez Oliveira Vianna aponta a causa
desse estado de coisas no que ele designa como "a fun-
o simplificadora do grande domnio rura l". Durante
todo o perodo colonial, o nico foco de vida e organiza-
o sociais nos sertes fica va con finado aos limites dessas
propriedades senhoriais. Tend o como painel de fun do
esse ambiente rstico, essas propriedades foram fora-
das a desenvolver um grau notvel de independncia
que, por sua vez, levou criao de uma organizao
elaborada de produo auto-su ficiente. As necessidades
eram reduzidas ao mnimo possvel; a propriedade im-
portava apenas o que era tecnicamente incapaz de pro-
duzir sal, plvora, ferro e chumbo. Os empregados e
escravos produziam tudo o mais nos
oikoi
do senhor ou
atravs dos servios litrgicos dos seus dependentes.
"Essa admirvel independncia econmica dos senhorios
fazendeiros exerce uma ao poderosamente simplifica-
dora sobre toda a estrutura das nossas populaes ru-
rais"
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O impacto desse processo sobre o desenvolvimento
de uma sociedade civil, i.e., sobre a organizao social e
econmica da burguesia, foi profundo e deletrio. Esse
dbil desenvolvimento permitiu organizao patriarcal
assumir as rdeas. Na medida em que a organ izao
social foi estritamente patriarcal e s no foi mais
completa porque elementos empresariais capitalistas
conseguiram penetr-la dificilmente ela poderia tor-
nar-se a portadora de reivindicaes vis--vis o estado
central para a criao de uma ordem legal que contro-
lasse o emprego da violncia e estabelecesse normas ra-
cionais para um con trato ordenado. Nessa mesma me-
dida, no poderia desenvolver-se uma autoridade poltica
constitucionalmente estabelecida, responsvel perante a
sociedade civil. O patriarcalismo da sociedade local cor-
respondeu patrimonializao da comunidade poltica
mais ampla.
Quais foram, portanto, as formas possveis de soli-
dariedade que emergiram e se desenvolveram dentro da
organ izao senhorial brasileira? Em termos de repro-
duo da vida m aterial o grupo m ais im portante, o escra-
vo da caserna, descartado, evidentemen te. Sem pro-
priedades e com um tipo de vida arregimentado, o escra-
vo no possua os meios de constituir uma fam lia. Mas,
como os escravos estavam livres de e indeterminados
por a solidariedade particularizada do senhorio rs-
tico, eles puderam, em determinadas ocasies, desenvol-
ver um esprit de corps caracterstico que materializou-se
em movimentos de rebelio, fugas coletivas e a criao
de comunidades independentes. De uma form a geral,
porm, a condio moral tpica do escravo deve ter sido
extremamente
anmica,
conforme indicado pelas taxas
extraordinariamente elevadas de suicdios, abortos e
segundo a associao engenhosa e penetrante revelada
por Swanson entre magia negra e fracos laos morais
a institucionalizao largamente difundida da feiti-
aria
(43)
.
Entre os homens livres cujos destinos estavam liga-
dos ao senhor e sua terra havia dois grupos subordina-
dos principais: primeiro, parte do squito domstico do
senhor: criados," cozinheiros, artesos e outros emprega-
dos domsticos que, embora livres, no dispunham do
peculium
que, aqui como nas antigas civilizaes agr-
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rias, era necessrio para a formao e a manuteno de
form as estveis e monogmicas de solidariedade. Ao
invs, esses grupos foram atirados ao campo de gravita-
o moral da famlia patriarcal
( 44 )
.
O segundo grupo, os colonos, fixaram-se nos dom-
nios do senhor como agregados, sitiantes, roceiros, forei-
ros e lavradores. Enquanto os colonos estabeleceram di-
versas formas de solidariedade patriarcal com o senhor,
eles tambm organizaram, como os coloni romanos, suas
prprias famlias. Todavia, a articulao fraca e margir
nal dos homens pobres em geral apia uma observao
feita em notvel estudo sobre o homem livre pobre em
So Paulo do sculo XIX, no sentido de que " [o] que se
observa na configurao da famlia nessa camada da so-
ciedade brasileira sua integrao em pequenos grupos,
fundados em relaes pessoais, categorizadas e reguladas
apenas com base na 'tradio' "
(45)
.
Assim, um vasto sistema de interao comunal s
poderia crescer dentro do crculo familiar do proprietrio
de terras. Rea lmente, essa famlia f oi a nica estrutura
capaz de englobar duas exigncias essenciais e, no en-
tanto, opostas de associao moral: de um lado, uma
orientao habitual para a satisfao de uma constelao
de interesses econmicos dentro da famlia patriarcal e,
de outro lado, o carter exemplar que esses interesses
tentavam assumir a fim de facilitar sua prpria institu-
cionalizao dentro de uma sociedade profundamente
marcada por orientaes estamentais. A histria agrria
do Brasil, em grande parte, pode ser examinada em ter-mos das vicissitudes das tentativas sisifianas do senhorio
de terras de criar um tal sistema
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do cl aplica-se comunidade cujos membros partilham
uma linha comum de descendncia. Qualquer estratifi-
cao ou estereotipao subseqente dos recursos dentro
do cl externa ao seu princpio form ativo. No cl bra-
sileiro, a estratificao interna seguiu o
mesmo
princpio
da estratificao da sociedade mais ampla, a saber, a pro-
priedade da terra. Por trs do "c l ", assim como por
trs da sua liderana "natural", espreitava a famlia do
senhor de terras. No Brasil, o "carism a do cl " s podia
surgir ligado famlia do senhor de terras, no ao "cl"
como um todo. A configurao brasileira na verdade
est mais prxima ao conceito da tribo isto , uma
associao poltica de famlias, com uma base territorial
e comunalizada atravs de laos de sangue
(47)
.
Em contraste com a China patrim onial, onde o poder
arbitrrio do senhor de terras era limitado pela proteo
do cl ao indivduo, o "cl" do Brasil patrimonial refor-
ou e multiplicou o poder discricionrio do senhor de
terras sobre o campons local
(48)
. E o prprio campons,
ao contrrio do padro indonsio, no era protegido con-
tra os abusos de autoridade do senhor de terras por um
sistema de laos pessoais cruzados que o ligavam a uma
Pluralidade de senhores
(49)
. Sem os controles quer de
uma estrutura de parentesco elaborada, como a chinesa,
quer dos precipitados normativos de um sistema intrin-
cado de organizao de terras, como a balinesa, o senhor
de terras brasileiro foi mais um pequeno "dspota orien-
tal" do que os prprios senhores orientais.
Antes da concluso desta breve introduo orga-
nizao social e poltica do Brasil colon ial, sero apresen-
tadas duas observaes gerais relativas ao impacto do
senhorio local sobre o processo de formao do estado.
Primeiro, errnea uma leitura "feudal" da concen-
trao excessiva de poder das classes proprietrias. Todas
as formas de dominao pr-burocrtica, no apenas a
feudal, demonstram um grau considervel de descentra-
lizao adm inistrativa do governo. O monarca era, cer-
tamente, to remoto como o Paraso, no apenas para
o campons chins como para todos os tipos de campe-
sinato. As oligarqu ias locais no so mais indicativas
do feudalismo do que de outros arranjos polticos. Alm
disso, tanto a estrutura feudal como a patrimonial so
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administradas patrimonialmente e a administrao
interpretada como patrimnio pessoal do servidor, seja
ele feudo, um a prebenda ou uma sinecura. Assim, a ca-
racterizao de estruturas como feudais ou patrimoniais,
em termos de graus de centralizao administrativa,
inadequada. Finalm ente, as peculiaridades dos modelos
feudal e patrimonial se revelam principalmente atravs
de uma anlise com parativa das implicaes po lticas de-
correntes dos laos de solidariedade entre o senhor su-
premo e o senhor que prevalecem nos dois tipos de admi-
nistrao. A form a mais sinttica de apresentao das
diferenas entre elas em todos os textos relevantes de
Weber, talvez seja dada na Religion of China:
O feudalismo baseava-se na
honra
testamen-
tal] como virtude cardial, o patrimonialismo na
devoo [pa tria rcal]. A confiana na sujeio do
vassalo era baseada na primeira; a
subordinao
do empregado e do funcionrio do senhor era ba-
seada na ltima . A diferen a no chega a ser
um contraste mas uma mudana de acento
(50)
.
As conseqncias institucionais dessa diferena no
so difceis de deduzir a partir da perspectiva da razo
prtica, se assim podemos dizer: as obrigaes morais do
lao feudal, em virtude de serem baseadas num contrato
entre homens livres, facilitavam a representao poltica
e encora java m a criao de uma ordem legal politicamen-
te garantida; as obrigaes morais do lao patrimonial,
pelo fato de serem baseadas em estatutos do senhor ao
prebendrio, facilitaram a
cooptao administrativa
e
encorajaram a criao de uma ordem legal garantida cor-
porativamente
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normativo que orientasse a ao social cotidiana, em
outras pa lavras, avalidade de uma tal ordem. Este tema,
porm, merecer uma discusso mais detalhada em uma
parte posterior deste trabalho.
Para resumir: ao final da era colonial, o estado bra-
sileiro, num modo tipicamente patrimonial, exibia uma
combinao de, por um lado, uma autoridade altamente
centralizada em cujo topo estava o monarca portugus
e as camadas mais elevadas, burocratizadas, da adminis-
trao real e, de outro lado, um poder altamente descen-
tralizado, monopolizado pelos senhores de terra na sua
capacidade de autoridades delegatrias de funes patri-
moniais. Com o no Japo Toku gawa, esse padro de dis-
crio patriarcal atingiu a clula bsica da comunidade:
no houve qualquer mediao de parentesco como
vimos no caso da China entre o campons, de um lado,
e o aimio e o latif nd io do outro. For a das sedes cos-
teiras urbanas da administrao patrimonial incessan-
temente burocratizada, e fora do latifndio engajado
na formao de uma "sociedade civil" cujo prprio de-
senvolvimento ele frustrou jazia uma terra desolada,
"une solitude profonde", como Saint-Hilaire uma vez co-
locou.
N O T A S
1. " F o i o tem or dessa com pet i o (na extrao do pau-brasi l na costa
brasileira) que gerou a ocupao sistemtica da colnia a part ir da
segunda metade do sculo, atravs do estabelecimento de uma eco-
nomia baseada na exp lorao da grande propr iedade agr co la . "
Stanley J. Stein e Barbara J. Stein, A Herana Colonial da Amrica
Latina: Ensaios de Dependncia Econmica (Ed i tora Pa z e Ter ra ,
Rio de Janeiro, 1976), p. 40.
2. Eucl ides da Cunha, Os Sertes (Ed i t o ra Pau lo de A ze ve do L tda . ,
Rio de Janeiro, 27." edio, 1968), p. 67.
3 . Eula l ia Ma r ia Lah m eye r L ob o, "C on f l ic t and Cont inui ty in Braz i-
l ian His tory " , in Conflict and Continuity in Brazilian History, ed.
por H en ry H . Ke i th e S . F . Edwards (Co lum bia , South C aro l ina :
Un ive rsity of So uth Car olin a Press, 1969), p. 269.
4. Ca io Pr ad o Jr. , Formao Econmica do Brasil, p. 127; apud A l -
berto Passos Guimares, Qua tro Sculos de Latifndio (3." ed., R io
de Janeiro, Editora Paz e Terra, s/d).
-
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5 . An ton io E . de Cam argo , Quadro Estatstico e Geographica da Pro-
vncia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ( P o r t o A l e g r e : T y p og ra -
phia do Jornal do Commercio, 1868), p. 78.
6. Essa indstria supriu os centros consu mid ores do R io de Janeiro e
So Paulo aps a organizao da indstr ia do charque, sendo a
exportao do couro o i tem principal do desenvolv imento anter ior .
7. Stanle y J. Stein,
Vassouras: A Brazilian Cofee County, 1850-1900
(Cambridge, Mass. : Harvard University Press, 1970).
8 . C f . C ai o Pr ad o Jr., Formao do Brasil Contemporneo - C ol-
nia (So Paulo, Editora Brasil iense: 1972).
9 . Ra y m un d o Fa o r o . Os Donos do Poder: Formao do Patronato
Poltico Brasileiro (R io de Jane iro , Po r to A le gre , So Pau lo , Ed i -
tora Globo, 1958), p. 52.
10. Ne sto r Du arte, A Ordem Privada e a Organizao Poltica Nacio-
nal (So Paulo, Companhia Editora Nacional, 2 . " ed. , 1966), pp. 23,
24.
11 . S tuart B . Schwartz, "F re e Lab or in a S lave Ec on om y: Th e L avr ad o-
res de Cana of Colonia l Bahia" , in Dauri l Alden (ed. ) , Colonial
Roots of Modern Brazil (Berke ley , Lo s Ange les , Lo nd on : Univers i -
ty of California Press, 1973), pp. 164-165.
12. Schwartz, op. cit., pp. 165-167.
A funo do comp lexo hacienda-plantacin com o um t ipo de pov oa-
mento ao invs de um t ipo de empresa para a Amrica Lat ina tam-
bm de fend ida por gegra fos , ta is como Ward Barret , con forme
re la tado por Magnus Morner , "La Hac ienda Hispanoamer icana en
la Histor ia : Un esquema de Reciente Invest igacin y Debate" , in
Desarrollo Econmico, v o l. 13, n. 52, jan eir o-m ar o 1974 o 756
nota 111.
13. O pr p rio Fao ro concorda com esse aspecto pr iva t izado do proces-
so de ocupao.
14. T l io Ha lpe r n Dongh i , Revolucin y Guerra: Formacin de una
elite dirigente en la Argentina criolla (Buenos A i r es : S ig lo X X I ,
1972).
15. Ca io Prado , op. cit., p. 357.
16. C. R . Box er, Four Centuries of Portugueses Expansion, 1415-1825:
A Succint Survey (Johannesburg: Witwatersrand University Press,
1963), p. 75.
17 . Faoro , op. cit., p. 65.
18. Ibid ., p. 71.
19. Ca io Prad o, Formao do Brasil Contemporneo, p. 301.
20. Passos Gu imare s, Quatro Sculos de Latifndio, p. 50. V ej a tam -
bm Boxer , A Idade de Ouro do Brasil: D ores de Crescimento de
uma Sociedade Colonial (So Pau lo : Co mp . Ed i tora Nac iona l , 2 .
ed., 1969), p. 85, n. 5.
21 . Cf. Jos Maria Ots Caodequi, Instituciones de Gob ierno del Nue vo
Reino de Granada Durante el Siglo XVIII (Bogo t , Univers idad
Nac iona l de Co lombia , 1950 ) .
22 . Cf. Ots. Capdequi, Ibid., p. 89.
23. Stuart B. Schw artz,
Sovereignty and Society in Colonial Brazil: The
High Court of Bahia and Its Judges, 1609-1751 (Be rke ley , Los An -
geles, Lo nd on : Un iversity o f C al i fo rni a Press, 1973), p . 362. Cf .
tambm pp. 215-16 e p. 274.
-
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24. Jos M ar ia Ots Cap dequ i ,
Nuevos Aspectos del Siglo XVIII Espa-
nol en America
(B ogo t: Ed itor ia l Centro , 1946) , p. 88.
D . A com plex ida de das tare fas administrativas e a expanso mesma
do seu objetivo resultam crescentemente na superioridade tcnica
aaqueles que t iveram tre inamento e exper incia e , ass im, favorecer,
inev i tave lmente , a cont inu idade . . . de pe lo menos a lguns dos fun-
c i o n r i o s . . . " M a x W e b e r ,
Econom y-and Society: An Outline of
interpretive Sociology,
Guen ther Ro th e C laus W it t ich (eds .) (N ew
26 F -
r
m i n s t e r P r e s s
. '968) , Vol . I l l , pp. 951-2.
' f
G o f f m a n
' Asylums: Essays on the Social Situation of Men-
tal Patients and Other Inmates
(Garden C i t y , N ew Yo rk : Doub le -
aay & Co . , An ch or B ooks , 1969), p . X I I I . M i tche l Gu r f ie ld sugeriu
essa caracterizao como uma instituio total, mas no f ica claro
se e le pensa tamb m em termos do esquema de G o f fm an . Ve ja
sua "Class Structure and Pol i t ical Power in Colonial Braz i l : An
Interpretat ive Essay in Histor ical Soc io logy" , Dissertao de Ph. D. ,
N e w S cho ol fo r Socia l Research , 1975, p. 69.
1 1
G o f f m a n ,
Ibid.,
p. 6.
28. Neste sent ido, o engen ho e a fazen da da poca co lonia l nos trazem
mente, de modo adequado, a teor ia de evo luo e desenvolv imen-
to hoje insat is fatr ia, da "caixa-d entro -da-ca ixa" dos sculos X V I I e
X V I I I , segundo a qual o or ig inal j contm, na verdad e, mas em
dimenso miniaturizada e l i l iputiana, os elementos diferenciais sub-
seqentes . Cf . , H ege l , G . W . F. ,
Logic: Being Part One of the En-
cyclopaedia of the Philosophical Sciences (1830)
(Ox ford at the
Cla ren don Press: 1975, W il l i am W all ac e, tr .) , 161 e o
Zusatz
de
Von Henn ing .
29. A obs erva o orgulhos a do senhor de terras: "N es ta casa s se
compram ferro , sal , p lvora e chumbo" suf ic ientemente i lustrat iva.
Ol ive i ra V ianna,
Populaes Meridionais do Brasil
(R io de Janeiro
Paz e Terra, 1973), p. 123-4.
A lcntara Machado tambm observa :
"Dentro de seu domnio tem o fazendeiro a carne, o po, o v inho,
os cereais que o alimentam; o couro, a l, o algodo que o vestem;
o aze i te de amendoim e a cera que noite lhe do c lar idade; a ma-
deira e a telha que o protegem contra as intempries; os
arcos
que
lhe servem de broqu el . Na da lhe fa l ta. P o d e desaf iar o m un do ."
A l can ta ra Machado ,
Vida e Morte do Bandeirante
(So Pau lo : L i -
vraria Martins Editora, 1943), p. 57.
30. Nesta com o em outras af irma tivas de carter com par at ivo que sur-
gem neste trabalho, importante ter em mente que elas representam
tendncias e acentuaes de processos de uma natureza um tanto
geral.
Para uma comparao mais detalhada dos padres de desenvolv i-
mento burocrt ico-patr imonial do Bras i l e da Amrica Hispnica,
cf .
Fernando Ur icoechea, "Formac in y Expans in de i Es tado Bu-
rocrt ico -Patr imonia l en Co lombia y Bras i l " , in Eugene Havens
et
al.,
(eds.),
Metodologia y desarrollo en las cincias sociales: Efectos
del crecimiento depend iente sobre la estructura social colombiana
(Bogot: CEDE, Univers idad de los Andes, 1977) , pp. 585-607.
31. Fran ois Ch eval ier ,
Land and Society in Colonial Mexico: The
Great Hacienda
(Be rke le y: Univers i ty o f Ca l i for nia Press, 1970), p.
123.
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32. A md ia das im porta es anuais de metais precioso s perm anec eu
acima do nve l de um milho de pesos de minas de 450 maravedis
desde os 1530's at os 1660's, quando as remessas diminuram du-
rante algumas dcadas.
N o sculo X V I I I as rece itas de metais prec iosos subiram novam ente
em fun o do incremento de prod u o das minas mexicanas. En -
tre 1700 e 1770 a quan tidad e de prata cu nhad a na
Casa da Moeda
mexicana dobrou, de cerca de cinco milhes de pesos por ano para
dez ou on ze milh es. N o s tr inta anos seguintes do bro u n ovam ent e
para acima de vinte milh es de pesos. M ais de um e m eio bilhes
de pesos em prata fo ra m cunhados n o M x ic o entre 1690 e 1822 e
cerca de sessenta m ilhes em ouro . Du rante o reina do de Ca rlos I I
(1759-88) quase quinhentos milhes de pesos em moeda e bilhes
foram importados das co lnias amer icanas pe la Espanha.
C. H. Har ing , The Spanish Empire in America ( N e w Y o r k and
Bur l ingame: Harcou r t , Brace and W or ld , Inc ., Ha rb inge r Books ,
1963), pp . 251 e 249-250). Esse tota l vol um os o, qu e se estendeu
durante um per odo de trezentos anos, no pode ser comparado
com o magro resultado dos metais enviados a Portugal durante um
pe r o do que no durou mais que a metad e de um sculo. Infe l iz -
mente no poss ve l chegar a uma comparao em v ir tude da di fe-
rena nas unidades de medida. Cf. documentao serial sobre re-
messas de metais para Portugal in Boxer, A Idade do Ouro no Bra-
sil, op. cit., p p. 344-349 (Ap n dic es I I e II I ) .
33. Po r ex em plo , a pop ula o total de ndios l ivres em 1789 fo i esti-
mada em 250.000 contra 1.010.000 brancos e 406.000 habitantes de
cor , l iv res . Ago s t inh o Ma rques Perd igo M alhe i ro , A Escravido
no Brasil.. . apud
Robe r t Conrad ,
The Destruction of Brazilian
Slavery: 1850-1888 (Berke ley , Los Ange les , London: Univers i ty o f
Califrnia Press, 1972), p. 283.
34. Fran ois Ch eval ier , Land and Society in Colonial Mxico; The
Great Hacienda (B erk ele y: Un iver sity of Ca li f rn ia Press, 1970), p.
48.
35. C. R . Box er , A Idade de Ouro do Brasil, op. cit., p. 244 e Passos
Guimares , op. cit., p. 17.
36. Ol ive ira Vian na, Populaes Meridionais do Brasil (Rio de Janeiro-
Ed. Paz e Terra, 1973), p. 78.
37. Ol ive ira Vian na, Instituies polticas brasileiras (Rio de Janeiro,
Livraria Jos Olympio Editora, 1955), vol. I , p. 133.
38. Idem supra, p. 138.
39. Ibidem, p. 140.
40. Saint-Hi la ire , Augu ste de, Segunda Viagem ao Rio de Janeiro a
Minas Gerais e a So Paulo: 1822 (Be lo H or izon te : L iv rar ia I ta -
tiaia Editora, 1974), p. 77.
Saint-Hilaire, um naturalista francs, apresentou algumas observa-
es a respeito dessa viagem ao interior: de maneira oposta de Oli-
veira Vianna, ele argumenta que a excessiva subdiviso da terra em
algumas reas da provncia do Rio de Janeiro fo i o fator inibidor do
cresc imento urbano, uma vez que a re lat iva densidade da povoao
oferecia ao colono servios bsicos relativamente prximos a seu
local de habitao; conseqentemente, aqui no surgiram motivos
para uma nova agrega o eco lgica. N a prov nc ia central de Min as
Gerais, dada a distncia bastante considervel entre os povoadores,
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n o havia locaes tima s para servios comu nais. O nd e quer que
estivessem localizadas, eles certamente estavam demasiado afastados
da maioria dos residentes. Esta situao obrigou-os a construir
"portos-de-ancoragem" res idenciais prximos igre ja que f reqen-
tavam nos f ins de semana e isto deu origem, progressivamente,
concentrao urbana. "Em Inhama, como em muitos outros lu-
gares no Rio de Janeiro [ isto , a provncia], no h aldeia, propria-
mente dita. Co m pe -se a par qu ia unicamen te de casas esparsas
pelo camp o. Em M inas Gerais , pe lo contrr io , no ex iste parquia
sem aldeia e o motivo fcil de se apontar.
Pe rto d o R i o de Janeiro as terras se sub dividiram mais do qu e e m
qualquer outro ponto do Brasil e quando em dado distr ito h
nmero suficiente de habitantes, forma-se uma parquia.
Como as vendas esto dispersas margem dos caminhos, cada pro-
pr ietr io tem sempre uma igre ja ao alcance. N o hav ia, po is , razo
para que um grupo de casas se edif icasse em torno da capela mais
do que em outro lugar . N o se d o mesmo em Minas. A l i , as
habitaes muito distam umas das outras e a igreja, onde quer que
a colocassem, f icaria sempre muito afastada da maioria dos paro-
quianos. Alm da moradia habitual, cada proprietrio rural quis ter
perto do templo uma casa onde a famlia pudesse descansar da lon-
ga caminhada a que era obrigada para assistir o servio divino,
receber os amigos ou tratar de negcios no nico dia em que se
ajuntam os mora dores. Os mercadores, taberneiros , operr ios , pro-
curavam acercar-se do lugar onde se reuniam os sitiantes e assim
nasceu a maioria das aldeias".
Op. cit., pp. 15-16.
41 .
Oliveira Vianna , op. cit.,
p. 124.
42. Ol ive i ra V ianna , op. cit., p. 125.
43. " O uso largam ente di fu nd id o da m agia negra sugere uma sria falta
de m eios legt im os de con trole social e laos mo rais. Im plica em
que as pessoas precisam controlar umas s outras numa situao
em que tal contro le no fornec ido por meios que dispem de
aprovao pbl ica . "
Guy E . Swanson, The Birth of the God s: The Origin of Primitive
Beliefs (A nn Arb or : Th e Univers i ty o f Mich igan Press, An n A rb or
Paperbacks, 1964), p. 151.
Obviamente, a condio anmica tem re lao com o contexto da
sociedade mais ampla, o mundo cultural do senhor, mas no com
a intimidade do mundo escravo que certamente dispunha de seus
prp r ios laos morais . M inh a grat ido a Car los Hasen balg pe la per-
tinncia deste esclarecimento.
44. U m a ma nifestao muito clara v is ta na t mida e distorc ida "co n-
veno" da comensal idade que lutava vmente para emergir na
particip ao d o arteso mesa do senhor. Essa com ensa lidade era
restrita, certamente, apenas aos artesos e assumiu uma expresso
inteiramente atpica uma vez que os artesos f icavam apenas sen-
tados como espectadores mudos, lembrando as no-pessoas de Irv ing
G of fm a n . A inst ituc ionalizao dessa "c on ve n o" se estendeu du-
rante grande parte do sculo X I X , co m o sugere a reconstruo
l i terr ia de Jos L ins do Rego das memrias de um jovem senhor
o prprio Lins do Rego era neto de um senhor de terras e
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como con f i rmam as memr ias b iogr f icas de Jul io Be l lo como se-
nhor de engenho.
Jos L ins do Rego , Menino de Engenho (R io de Jane iro : L ivra r ia
Jos Olympio Editora, 14." ed., 1969), pp. 11 e 71; e Jos Maria
Be l lo , Mem rias de um senhor de engenho (R io de Jane iro : L ivra r ia
Jos Olympio Editora, 1938), p. 104.
45 . Ma r ia Sy lv ia Carva lho Franco ,
Hom ens livres na ordem escravo-
crata (So P au lo: E ditor a Att ica , 1974), p . 43. C f . tam bm p. 57.
46. Ca rva lho Fr an co mo strou, br i lhantemente, a intruso predat r ia de
interesses econmicos na delicada estrutura de associao moral no
l ivro j menc ionado.
47. Para uma discusso sobre t r ibo, ve ja Ma x W eb er , The Religion of
India: The Sociology of Hinduism and Buddhism ( N e w Y o r k : T h e
Free Press, 1967), cap. I, e Ancient Judaism ( N e w Y o r k : T h e F r e e
Press, 1967), caps. I e II.
4 8 . C f . W eb e r , The Religion of China: Confucionism and Taoism ( N e w
Y o r k : Th e Fr ee Press, 1951), cap. I I I .
4 9 . Cf. C l i f f o rd Gee r t z , Peddlers and Princes: Social C hange and Eco-
nomic Modernization in Two Indonesian Towns (Ch icago and Lo n -
don: Yale University Press, 1963), cap. I I .
5 0 . Web e r , The Religion of China, op. cit., p. 157, o grifo nosso.
51. O contraste entre representao e coo pta o fo i m uito bem apre-
sentado por Simon Schwartzman em seu art igo "Representao e
Coop tao Po l t i ca no Bras i l " , Dados, 1970, n. 7. C f. tam b m o
seu So Paulo e o Estado Nacional (So Pa ulo : D ife l , 1975).
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CAPITULO I I
SENHORES DE TERRA E MILITARES:
AS RAZES COLONIAIS
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Este paptulo examinar as duas categorias essen-
ciais para a organizao do poder e da autoridade du-
rante os perodos colonial e imperial no Brasil: os senho-
res da terra e os militares. Esta diviso analtica no
deve obscurecer o fato importante de que, na maioria
das vezes, estas duas posies eram habitua lmente ocupa-
das pelos mesmos indivduos. De fato, preciso lembrar
que, em primeiro lugar, a prebendalizao da adminis-
trao real foi uma fonte importante de militarizao,
e, em segundo, que o acesso a tais prebendas territoriais ,
de uma fo rm a gera l, era lim itado a homens de qualidade.
Propomo-nos a examinar essas duas categorias em ter-
mos da possibilidade de desenvolvimento de uma tica
estamental, um desenvolvimento que, primeira vista,
poderia ter sido pensado como altamente provvel.
No h quaisquer indcios sugerindo a criao de
formas corporativas de senhorio patrimonial durante o
perodo colonial ou no sculo passado. Este um desen-
volvim ento surpreendente quando se d a devida ateno
presena de fatores que, de outra, maneira, teriam fa-
vorecido tais formas: origem social comum, uma tradio
cultural comum, traos endogmicos na famlia, o mor-
gadio dos domnios rurais, um grau considervel de
poder e ideologia militares, etc. A inabilidade dos senho-
res de terra em desenvolver formas corporativas de so-
lidariedade
vis--vis
o monarca pode ser explicada a par-
tir de diferentes pontos de vista. Toda via, trs fatore s
parecem particularmente relevantes a partir da presente
perspectiva: o primeiro a descontinuidade do quadro
de funcionrios entre os ncleos centrais da burocracia
metropolitana e os postos avanados perifricos de admi-
nistrao local. As grandes comunidades polticas patri-
moniais, como a chinesa e a indiana, permitiram a form a-
-
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o de grupos solidrios de brmanes budistas ou literati
chineses os quais monopolizaram a proviso de cargos
desde o topo at a base da hierarqu ia. "Essa continu idade
do quadro de funcionrios no caracterizou a organiza-
o portuguesa. O governo local no Brasil colonial foi
mais semelhante a um estilo de administrao por meio
dehonoratiores, sem ligaes corporativas com as fileiras
mais elevadas da oficialidade; a continuidade do quadro
de funcionrios s existiu nos nveis mais elevados da
hierarquia e, em particular, na administrao de justia.
Ademais, a criao de um estrato relativam ente un ificado
com uma exigncia monopolista sobre a proviso de car-
gos em todos os nveis da administrao foi um produto
tpico do sculo XIX, ligado emergncia de um estrato
de bacharis. Foi som ente nesse sculo que as perspecti-
vas de um cargo de responsabilidade ligaram-se a uma
carreira que comeava tipicamente, com o desempenho
dos deveres administrativos a nveis locais de governo
(1 )
.
Um segundo fator que concorreu para sustar o de-
senvolvimento do patrimonialismo estamental reside no
grau relativamente limitado de uma estratificao est-
vel na sociedade colonial. A sociedade brasileira, na ver-
dade, exibiu um grau considervel de mobilidade social
e, particularm ente, de mobilidade intergeracional. A
representao de tal sociedade como um sistema de pri-
vilgios corporativos e posies sociais fixas um este-
retipo no comprovado pela evidncia emprica. Um a
das causas principais para a inibio da institucionali-
zao de um padro preciso de estratificao repousa no
fcil acesso terra de fronteira que, por sua vez, obstruiu
a estereotipificao e coagulao da honra e das opor-
tunidades sociais. Essa fluidez relativa fo i, em conse-
qncia, um obstculo muito significativo para o desen-
volvimento de um princpio estamental.
Um terceiro fator que se colocou em oposio mar-
cante emergncia de um senhorio vigoroso e corpora-
tivo foi o princpio ativo da solidariedade de parentesco.
A organizao do "cl", que estava por trs dessa esp-
cie de solidariedade, teve efeitos deletrios sobre a orga-
nizao estamental dos senhores de terra, sem os quais
o patrimonialismo estamental era letra morta. A for-
midvel quantidade de poder que o senhor de terras con-
seguiu reter nessa baseparecia ser sua fonte principal de
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independncia e autonomia
vis--vis
a autoridade poltica
do estado; na verdade, ela foi a sua runa, na medida em
que a transparncia de uma tal solidariedade negou a
formao de uma associao corporativa de senhores.
Eles permaneceram, assim, uma classe em si mesma, ex-
traviada no particularismo da solidariedade consangu-
nea. Como Weber mostrou em sua sociologia da cidade,
o papel do cristianismo foi definitivo no Ocidente para
a dissoluo dos tabus clssicos anteriores emergncia
de uma associao
poltica
de indivduos burgueses no
interior da comunidade urbana
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Isto verdade, acima de tudo, porque os in-
teresses de classe na sociedade pr-capitalista
nunca atingem uma articulao econmica com-
pleta. Da a estruturao da sociedade em castas
e estamentos significar que os elementos econ-
micos esto ligados
inextrioavelmente
a fatores
polticos e religiosos
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veu sobre o senhor de engenho nordestino no sculo
XV I I I :
O ser senhor de engenho ttulo a que mui-
tos aspiram, porque traz consigo o ser servido,
obedecido e respeitado de muitos. E se for , qual
deve ser, homem de cabedal e governo, bem se
pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho,
quanto proporcionalmente se estimam os ttulos
entre os fidalgos do Reino
(7 )
.
O outro foi o naturalista francs Saint-Hilaire, no
primeiro quartel do sculo XIX:
A posse de um engenho de acar confere,
entre os lavradores do Rio de Janeiro, como que
uma espcie de nobreza. De um 'Senhor de Enge-
nho' s se fala como considerao e adquirir tal
preeminncia a ambio geral.
Um senhor de engenho tem carnes cujo ana-
fado significam boa alimentao e pouco traba-
lho. Em casa, usa roupa de brim, tamancos, cala
.mal amarrada e no pe gravata; enfim indica-
lhe atoilette que am igo do comodismo. Mas, se
monta a cavalo e sai, preciso que o vesturio
lhe corresponda importncia e ento enverga o
jaleco, as calas, as botas luzidias, usa esporas de
prata , cavalga sela muito bem tratada. sempre
necessrio um pagem negro, fardado com uma
espcie de libr. Em pertiga-se, ergu e a cabea,
fala com voz forte e tom imperioso que indicam
o homem acostumado a mandar em muitos es-
cravos
(8 )
.
A partir destas e de observaes similares, um certo
nmero de estudiosos alega ter a sociedade colonial par-
ticipado na criao de uma aristocracia fundiria, com
sua fidalguia caracterstica e a monopolizao da honra
social. H qualificaes tan to empricas com o tericas
que invalidam uma tal caracterizao.
De um lado, esse fenmeno no foi tpico nem gene-
ralizado; se que existiu, ficou no mximo restrito
economia aucareira do nordeste. O latifn dio em So
Paulo, por exemplo, um desenvolvimento posterior que
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surgiu juntamente com o cultivo do caf no sculo XIX
e o senhor de terras sulista no desenvolveu valores con-
sumatrios de natureza aristocrtica mas se envolveu
pessoalmente na explorao econmica da sua proprie-
dade. Alcntara Machado, aps examinar os registros
legais que cobrem o perodo de 1578 at 1700, traa um
perfil social do colonizador paulista que fica era agudo
contraste com a estilizao fidalga que somente uma
"fantasia delirante" poderia criar: o que aparece
... um bandeirante pobre e analfabeto, gros-
seiro de modos e de haveres parcos, vivendo qua-
se na indigncia, duro para consigo mesmo e com
os semelhantes, austero e primrio...
(9)
Este relato confirmado por Boxer, talvez o mais
bem informado historiador desse perodo:
Havia certamente, diz ele, muitos e bvios
contrastes entre a capitania de So Vicente e o
resto do Brasil. Enquanto os povoadores e plan-
tadores de acar ao longo da costa tinham seu
interesse concentrado no comrcio martimo com
Portugal e seus olhos fixos no Atln tico, os habi-
tantes desse rem oto planalto voltavam suas faces
e seus passos para o serto inexplorado.
No se encontrava nada que correspondesse
ao luxo e vida fcil dos plantadores da Bahia
e de Pernambuco entre os povoadores dos sertes
de So Vicente, cujo estilo de vida se voltava cer-
tamente mais para o frugal
( 1 0 )
.
Alm disso, a nobreza titulada brasileira, como clas-
se,no gozava de qualquer privilgio; ser um nobre tinha
vantagens definidamente individuais, porm no existia
uma estrutura estamental politicamente garantida
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feudais mas atravs de prebendas patrimoniais e, final-
mente, a escravido e no a servido desempenhou um
papel proeminente na organizao das suas economias
agrrias
(12)
.
De outro lado, somente de forma inadequada que
as extravagantes pretenses aristocrticas de alguns po-
derosos senhores de terra podem ser consideradas como
indicao da presena de um estamento. Em prime iro
lugar, estruturalmente, qualquer "honra estamental" de
que esse estrato pudesse ter
eventualmente
gozado deri-
vava exclusivamente da sua situao de classe, isto , sua
apropriao monopolstica da propriedade fundiria; em
nenhum momento uma tal honra resultou de um estilo
de vida fidalgo ou fo i inerente a uma qualidade especfica
de tal grupo. Em igualdade de condies, faltava um ele-
mento essencial que poderia ter transformado essa usur-
pao de oportunidades econmicas em oportunidades
de vida estereotipadas e caractersticas, que instituciona-
lizassem uma ordem estamental, a saber, a estabilidade e
rigidez na distribuio dos poderes econmicos, que j
tivemos a oportunidade de mencionar. Neste sentido, os
senhores de terra brasileiros partilhavam da mesma con-
dio que outros senhores de terra patrimoniais tinham
que enfrentar, como os indianos, por exemplo: seus di-
reitos "senhoriais" no eram conseqncia da feudaliza-
o o padro europeu tpico mas da prebendalizao
da autoridade poltica . Na verdade, estas ltimas circunstncias foram
caractersticas da histria portuguesa durante mais de
oito sculos. Mas a situao brasileira de form a algum a
se ajusta a qualquer dos dois conjuntos descritos acima.
Alm disso, os militares profissionais, como grupo,
foram isolados da rea na qual poderiam ter desenvol-
vido uma comunidade de interesses: a burocracia real.
As funes fiscal e judiciria eram basicamente monop-
lio dos letrados, em primeiro lugar; de outro lado, com
a notvel exceo das governadorias, a vasta maquinaria
da administrao provincial colonial estava em mos dos
senhores de terra prebendrios e dos honoratiores.
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De qualquer forma, os militares profissionais no
abandonaram seus reclamos objetivamente extravagan-
tes de honra social. A fin al de contas, viviam em uma
socidade visivelmente marcada por distines hierrqui-
cas em todos os setores de vida distines que fre-
qentemente abriam ou fechavam a porta ao patronato,
ao favor, autoridade, ao nome, etc. e pertenciam a
uma instituio fastidiosamente imbuda de smbolos,
pompa e circunstncias cerimoniais. Assim, compreen-
svel que a Coroa tomasse medidas para fortalecer privi-
lgios corporativos para o exrcito, a fim de encorajar
o ingresso da nobreza. A estratgia mais importan te
elaborada pelo rei para atrair aquele estrato para seu
exrcito profissional real foi a criao da instituio dos
"cadetes ". Estabelecida por Dom Jos em 1757, os jovens
cadetes.
[u]sariam uniforme do tipo do de oficial e
seriam recebidos pelo coronel do regimento com
sua tropa formada para a ela serem apresentados.
Freqentariam o crculo dos oficiais, sem serem
obrigados a
usar
bigodes-
no fariam servio de
cavalaria; no fariam sentinela nos quartis; e
concorreriam com os sargentos e forriis nos ser-
vios externos. Podiam ser promovidos sem tem-
po determinado de praa
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parece ter florescido em qualquer momento um anco-
radouro prebendai na economia patrimonial e talvez
uma participao mais decisiva e ntida nos assuntos de
administrao do governo
(32)
. Sem qualquer desses su-
portes, os militares profissionais viveram em uma con-
dio adjetiva e de marasmo at a segunda metade do
sculo XIX, quando um conflito armado com um pas
vizinho trouxe a primeiro plano a relevncia poltica
dessa coletividade.
No de surpreender que o setor mais burocrtico
das foras armadas o exrcito real fosse tambm
o rgo mais irrelevante e ineficaz da organizao pa-
trimonial real
( 3 3 )
. Pode-se encontrar um grau mais pro-
fundo de coalescncia entre as foras armadas e os gru-
pos privados nas demais estruturas militares: as milcias
e os ordenanas. As primeiras era m um ad jun to do exr-
cito regu lar, organizadas como fora auxiliar sob a form a
de regimentos pelos distritos locais, de acordo com a cor
e a ocupao. Havia, assim, regimentos m ilicianos de
sangues mistos e mulatos, de negros livres, de artesos
e artfices brancos, etc.: os oficiais mais graduados de
todos esses regimentos milicianos eram escolhidos, por
supuesto,
entre os membros das classes privilegiadas
(34)
.
Diferentes dos ordenanas, as milcias eram basica-
mente militares, a.despeito da com posio civil dos seus
corpos. As primeiras tambm tinham uma organizao
local de teros comandados por um capito-mor, com
subdivises em companhias comandadas por capites e
o alistamento tambm era em termos de cor e ocupao,
com o controle caracterstico dos senhores de terra dos
postos mais graduados de comando. Mas suas funes
eram, na maior parte, deveres policiais intercalados com
treinam entos e exerccios peridicos. No con jun to, os
ordenanas eram colocados parte do restante da orga-
nizao militar do Brasil agrrio em virtude da sua par-
ticipao ativa na administrao local do governo. Essa
participao era, de fato, to formidvel que um soci-
logo contemporneo afirmou que
[s]em exagero, pode-se afirmar que so elas que
tornaram possvel a ordem legal e administrativa
neste territrio imenso, de populao dispersa e.
escassez de funcionrios regulares
(35)
. .
-
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No preciso dizer que, considerando as variaes
caractersticas entre as provncias, as milcias a des-
peito do seu nmero limitado de unidades provavel-
mente tambm contriburam com a sua parte nesse pro-
cesso. Em qualquer dos casos, o que temos claramente
o padro tpico da coalescncia de funes militares e
administrativas exercidas por indivduos privados que j
observamos antes. Essas ltimas funes, ademais, no
eram oficialmente confiadas oficialidade capites-
mores, sargento-mores e capites dos ordenanas. Ao
invs, foi uma constelao de fatores que espontanea-
mente levaram a que eles assumissem tais deveres. Entre
esses fatores ressaltam os seguintes: a tradio colonial
de participao militar na administrao; a diviso im-
precisa das funes administrativas fiscal, judiciria,
executiva, legislativa entre as diferentes estruturas de
governo; o grau insuficiente de burocratizao dos nveis
locais de administrao pblica e, finalmente, a relativa
ineficincia e insuficincia de funcionrios patrimoniais
e burocrticos locais para fazer face s necessidades coti-
dianas do governo. Estes e outros fatores no especial-
mente relevantes do nosso ponto de vista facilitaram, e
at encorajaram , o envolvimento dos ordenanas na orga-
nizao da ordem poltica e administrativa da sociedade
colonial.
O aliciamento da cooperao dos ordenanas para a
administrao do governo local data da segunda metade
do sculo X V I I I , quando a onda de centralizao, p rom o-
vida pelo talentoso Pombal, trouxe ao Brasil um punha-
do de administradores hbeis e eficientes, encarregados
da reorganizao dos interesses da Coroa. Ura deles fo i
o Marqus de Lavradio que viu a necessidade premente
de estender a influn cia da autoridade real alm dos con-
fins urbanos e at os sertes. At essa ocasio, os orde-
nanas tinham uma participao ativa mas informal na
execuo de uma variedade de funes que iam desde a
coleta do dinheiro local arrecadado pelas autoridades
municipais e a execuo de instrues governamentais
que impediam os colonos de abandonar suas terras por
ocasio da conscrio at a tutelagem formal dos inte-
resses locais com relao s autoridades mais eleva-
das
(36>
. A habilidade poltica do Marqus consistiu em
assegurar o ficialm ente a cooperao dos ordenanas para
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a institucionalizao da autoridade real. Ele compreen-
deu, em suas prprias palavras, que
[p]ara mim forte razo formar com todos os
povos, assim os teros auxiliares
(milcias),
com
todos aquelles individuos que esto em edade, fo r-
as e agilidade para poderem tomar armas, como
as das ordenanas, com aquelles que esto mais
impossibilitados; e vem a ser a razo que redu-
zir todos estes povos em pequenas divises e esta-
rem sujeitos a um certo nmero de pessoas, que
se devem escolher, sempre dos mais capazes para
oficiais, e que estes gradua lmente se vo pondo no
costume da subordinao, at chegarem a conhe-
c-la todos na pessoa que S. M. tem determinado
para os governar. Estes povos em um paiz to di-
latado, to abundante, to rico; compondo-se a
maior parte dos mesmos de gentes da pior educa-
o, de caracter o mais libertino, como so ne-
gros, mulatos, cabras, mestios, e outras gentes
semelhantes, no sendo sujeitos mais que ao Go-
vernador e aos magistrados, sem serem primeiro
separados e costumados a conhecerem mais jun-
to, assim outros superiores que gradualmente vo
dando exemplo uns aos outros da obedincia e
respeito, que so depositrios das leis e ordem do
Soberano, fica sendo impossvel o governar sem
socego e sujeio a uns povos semelhantes. A ex-
perincia o tem mostrado, porque em todas as
partes aonde tem havido de
(faltado)
reduzir os
povos a esta ordem, tm sido as desordens e in-
quietaes immensas, e ainda depois de canado
o executor da alta justia de fazer execues no a
quem a lei tem condemnado pelos seus delictos,
nem isto tem bastado para elles se diminurem, e
pelo contrario se tem visto que naquellas partes
aonde os povos esto reduzidos a esta ordem, tudo
se conserva com m uito maior socego, e so m enos
frequentes as desordens, e so mais respeitaves as
leis"
(37)
.
talvez suprfluo enfatizar a composio elitista da
oficialidade dos ordenanas; acrescentaremos apenas que
o acesso tpico ao oficialato era f eit o atravs de nomeao
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do governador de membros escolhidos entre trs listas
apresentadas pelo corpo legislativo do pas
(38
>.
Pareceria admissvel caracterizar o aliciamento dos
notveis locais para participarem