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Faculdade de Letras O meu país é o que o mar não quer narrativas da crise portuguesa Ficha Técnica: Tipo de trabalho Trabalho de projeto Título O MEU PAÍS É O QUE O MAR NÃO QUER Narrativas da crise portuguesa Autor João Pedro Pinto Gaspar Orientador João Figueira Identificação do Curso 2º Ciclo em Comunicação e Jornalismo Área científica Ano Jornalismo 2013

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Faculdade de Letras

O meu país é o que o mar não quer narrativas da crise portuguesa

Ficha Técnica:

Tipo de trabalho Trabalho de projeto Título O MEU PAÍS É O QUE O MAR NÃO QUER

Narrativas da crise portuguesa Autor João Pedro Pinto Gaspar

Orientador João Figueira Identificação do Curso 2º Ciclo em Comunicação e Jornalismo

Área científica Ano

Jornalismo 2013

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Aospovosdosilêncio

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Resumo

A imagem que os media retratam da crise que afecta Portugal surge desfasada eapresentandoapenasarealidadeconstruídaapartirdodiscursodasfontesoficiaiseelites políticas e económicas. Os meios de comunicação estão cada vez maisdependentes de fontes ligadas ao arco do poder que, a partir do fenómeno domimetismoedacriaçãodeeventoscomoasconferênciasdeimprensa,açambarcamedominam o espaço mediático. É descurado o olhar dos cidadãos afectados pelocontextosócio-económicodePortugal,tendoumarepresentaçãoreduzidae limitadanaversãomediatizadadacrise.

Apartirdestamesmaposição,econsiderandoqueaconstruçãodorealestásempredependentedaperspectivadequemoobserva e interpreta, esteprojectopretendedarvozàspessoasquenãotêmqualquerespaçonosmeiosdecomunicaçãosocialequesãoconstantementenegligenciadascomofontes.

Éfundamentalouvirefazerouviraspessoasqueviramassuasvidasalteradasnesteprocessodeautoflagelaçãonacional,comodizBoaventuradeSousaSantos,nãotantopara compreender a crise,mas para compreender como é que os portugueses queaquifalamavivem.Oprojectojornalísticoaquiempreendidorejeitaaimparcialidade(caso ela realmente exista), assumindo o lado dos silenciados pelas notícias. Essatomadadeposição,oumanifesto,étambémumaformadeveicularoutrasrealidadesquenãoasconstruídasnoespaçomediático.

Através de diferentes abordagens e géneros, desdemicro-narrativas, reportagens ediscursosnaprimeirapessoa,sãoaquirelatadasashistóriascontadasporportuguesaseportuguesesafectadospelacriseeaformacomoavivemecomoasentem.

Palavras-chave:Jornalismo,Reportagem,Realidade,Crise,Portugal

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Morte Ao Meio-DiaNomeupaísnãoacontecenadaàterravai-sepelaestradaemfrenteNovembroéquantacorocéuconsenteàscasascomqueofrioabreapraçaDezembrovibravidrosbrandeasfolhasabrisasopraecorreevarreoadromenosmalqueomaiszelosovarredormunicipalMasquefazerdetodaestacorazulQuecobreoscamposnestemeupaísdosul?Agenteéprevidentecala-seemaisnadaAbocaépracomerepratrazerfechadaoúnicocaminhoédireitoaosolNomeupaísnãoacontecenadaocorpocurvaaopesodeumaalmaquenãosenteTodostemosjanelaparaomarvoltadaofiscovelaeapalavraeraparatodaagenteEjuntam-senacasaportuguesaasaudadeeotransístorsobocéuazulAindústriaprosperaefazem-seaoabrigodavelhaleimentalpastilhasdementolMorre-seaocidentecomoosolàtardeCaiasirenesobosolapinoDainspecçãodorostoopróprioolharnosardeNestaorlacosteiraqualdenósfoiumdiamenino?HánestemundoseresparaquemavidanãocontémcontentamentoEanaçãofazumapeloàmãe,atentaagravidadedomomentoOmeupaíséoqueomarnãoqueréopescadorcuspidoàpraiaàluzpoisaareiacresceueagenteemvãorequercurvadaoquedefronteerguidajálhepertenciaAminhaterraéumagrandeestradaquepõeapedraentreohomemeamulherOhomemvendeavidaevergasobaenxadaOmeupaíséoqueomarnãoquerDeRuyBelo(PaísPossível)

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APRESENTAÇÃO

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Razão de ser

Manifesto

Ouviquasecempessoasaolongodeanoemeiodetrabalho.

Algumasmostrarammedo emexporem a sua história, com a vergonha a falarmaisalto,tambémoorgulho,masacimadetudoavergonha,transpostaparaosolhos,paraa expressão, contida, cabisbaixa, que se estendia para palavras poucas, num auto-controlo angustiante para quem faz as perguntas. Defesas em evasões a perguntas,adiamento da entrevista, a recusa de mostrar a casa (“é melhor num café”),desconfianças. Apesar de esses entrevistados não preencherem grande parte destetrabalho,tambémelesajudamamoldarossentimentosquesegeremnestaalturaeaformacomoseviveafamosacrise.

Outras receberam-me sem grandes receios, deixaram-me entrar nas suas casas, nassuas vidas e falaramde tudo.Do cão, do gato, dos filhos, dos pais, dosmedos, dasalegrias, das esperanças e desesperanças, de coisas tão brutais e íntimas comoconfidenciaropensamentodeumsuicídio,oudomedodamorte,oudomedopelosfilhos.Porvezes,emdiscursosentrecortadospor lágrimas,quepareciamestaralihátanto tempo para sair. Deitar tudo cá para fora. Talvez, por momentos, foi esse oexercíciodasconversas–deitartudocáparafora.Libertaraquiloquesecontevetantotempo, talvez algumas surpresas de ver que alguém lhes ouvia a sua história, queestavaalitambémparaodesabafoaquenãotinhatidoaoportunidadedesoltar.

Este projecto procura ir contra a crise incessantemente repetida em telejornais, emnoticiários,emsitesouna imprensa.Umacriseespelhadaemtaxasdedesemprego,nasinflaçõesouinflexões,noregressoaosmercados,nasopiniõesligadasainteressespolíticos,económicosepessoais,nosnúmeros,friosedistantes,nasentrevistascurtasàbeiradeumafilanocentrodeempregoouemcantinassociais.Umroldenotíciasquenãocessa.

Nesta era da informação, onde a super e sobreprodução noticiosa se liga a umconsumo breve e rápido, a sociedade depara-se com demasiado ruído informativo,incapaz de focalizar ou sequer digerir o retrato esquizofrénico que os media lheentregam.

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E, com tanta informação, tanta notícia a ser produzida e veiculada aominuto, numfrenesim constante, imbuído num excesso que ninguém consegue acompanhar porinteiro, onde fica a variedade? Neste mundo mediático, não há lugar para acompreensãodedilemasmaisprofundos,paraareflexão,paraumanarrativacentradanas pessoas comuns, que não têm assessores de imprensa ou uma agência decomunicação.

Surge então essa crise de números grandes, globais e globalizados, distantes edistanciados, das massas silenciosas e silenciadas. A crise é também ela umaexperiênciaindividual.Umaoutracrise,apessoal,íntima,delutasinteriores,longedemanifestaçõesoudecongressospolíticos.Acriseportuguesavive-sedentrodeportas,é“silenciosa”,comoaapelidouaReuters.

Com este projecto, procuram-se essesmurmúrios, no espaço doméstico, de estoresfechados,emolharespessoais,enviesados,parciaisesubjectivos,porquearealidadenão é indivisível, transmuta-se de narrativa em narrativa e não pode espelhar-seapenasemnúmeros,demagogia,brevidadeseposiçõesideológicas.

A crise, e a realidadeque se constrói a partir dela, émúltipla e variada, é o que aspessoas edificam a partir da sua vida, nos seus anseios, desesperos, inquietudes emedos.

Naspróximaspáginas,háoolhardecriançasedeadolescentesdeLeiriasobreacrisede que ouvem falar, há a luta de três estudantes de Coimbra para acabarem o seucurso,háadesesperançadodesempregodelongaduraçãonaGuarda,háashistóriasdegentequeemigroueimigrouehojenãosabeparaondevai,háoexperienciardadepressãoedarenúncia,desecairedenãosesaberquandosehá-delevantar.

São histórias que personificam uma espécie de manifesto contra a forma como osmedianosqueremcontarestacrise,queouvemmasnãoescutam,quevêemmasnãoreparam. Apresentam uma narrativa superficial, pouco diversificada, vidrada numpanoramageral.Fica-secomapaisagemseca,pobreeesvaziadadevida,sematenderaodetalheouaalgocomquenospossamosrelacionar.

E vão desenhando essa paisagem, como que arquitectada por um qualquer pintordistraído,queapenasusacoresprimáriasequeseesquecequehámaisnapaisagemdo que, simplesmente, os contornos da casa - que se esquece de pôr gente dentrodela.

É esse o objectivo do projecto: pôr gente dentro dos contornos desenhados, paratransformar a paisagem insípida num mosaico de narrativas que contribua para aconstruçãodaidentidadedestepaísqueomarnãoquer.

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Narrativas incompletas I

Todasasquintas-feiras,hálanchenaAssociaçãoNacionaldeAposentadosPensionistaseReformados,naruadosDouradores,nabaixalisboeta.Lá,encontra-seCremilde,de79anos,quevivenosOlivais,Cândida,de69,tambémdeOlivais,eConceição,de76,aviveremAlvalade.Ficamàconversasobreacrise…

Conceição:Faz-memuitapenavercasaisdesempregados.

Cândida:Aminhafilhaéesteticistaeacasaondetrabalhavafechou.Tivequeaajudarnaprestaçãodacasa.

Cremilde:Notempodosnossospais,tambémhaviacrises,mastínhamossempreumaboa panela de sopa, uma mão cheia de azeitonas e uns enchidos de quando emquando.

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Conceição:Ouvinarádioqueumsenhorpagavaumarendade170eurosequeriamaumentá-laumastrêsvezesmais….

Cremilde:Queremqueosvelhosmorram.

Cândida: Isto ainda vai amargurarmais. Já houve outras crises,mas não tão gravescomoesta.

Conceição:Doqueseouvenatelevisão…nãosepodevermuitasnotíciasqueficamoslogodoidas.

Cremilde:Olhe,quetodaagentetivesseoquetemos.

Conceição: Qualquer dia as pessoas enforcam-se aí todas. Com o aumento dasrendas…tudosemreinemroque…

Cândida:EusoudeVilaReal,eoPassos tambémepensavaqueeleeraumhomemcomodeveser,queoshomensdonortetêmessafama!Maseleprometeeprometeenãocumpre.

Conceição:Estãoaacabarcomaqualidadedevidadaspessoas.

Cremilde:Istoaindavaificarviolento.

Cândida:Esecalharaindavamosvoltaraoescudo.Deusqueiraquesim!

Conceição:Avidaemescudoeramelhor.Temostodassaudadesdoescudo.Avidaeramaisfácil.

Cremilde:Masvai-seandando…

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percursos num ensino superior público

À procura de um diploma

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Diogoconfianaluta,masaomesmotempotemquecozinharparaacabarocursodeHistória.Saraassumeumaposturaderesistência,numServiçoSocialmuitodiferentedaquelequeestuda.Nilce teveque juntareurosparaconseguirodiplomademestreem Estudos Artísticos. Estas são três histórias de um caminho, por vezes frustrante,num ensino superior desviado da sua tendência gratuita, onde os contratempos etravõeseconómicosusurpamidealidadeseadesistênciaganhaespaçonopensamentodealguns.

A Luta

“Soudeesquerdaenãoestou com tretas.Odireito à educaçãoestá consagradonaconstituiçãoeomeucasoéigualaodemilharesdeestudantes.Deviapodercontinuaraestudar,mesmosemterdinheiroesemterderecorreraumempréstimo.Souumgajosemvergonha.Nãotenhovergonhadefalardenada.Éprecisochaparnofocinhodaspessoasqueistoestámal”.

Diogotem23anosejátevemaisdívidasdoqueospais.EmNovembrode2012,tinhadoismileurosdepropinasparapagar,asdesseanolectivoeasdoanterior.Porvezes,vêoseuprojectodevidaadissipar-se.

Diogo, politizado, militante do Bloco de Esquerda, critica os disfarces, o baile demáscaras,“ademocradura”,afaltadeliberdadeparatirarumcurso,quandoexistemconstrangimentos económicos. Já teve que dizer adeus a conhecidos e amigos -colegasquenem120eurostinhamparapagararenda.Jásemanifestou,jáesteveem

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listascandidatasaosórgãosdaacademiadeestudantesdeCoimbra,jáprotestouemassembleiasmagnasdeestudantes,mas,agora,deixoudeparteasuavidaassociativa-nãoterdinheirocome-lheotempo–efica“naquelacoisamorta”,que“nemébemdesespero ou depressão”, uma coisa morta, essa de não ter dinheiro, de andar asurripiar um copo ou um café a um colega, de não ir às cantinas, que 2,40 euros émuito dinheiro para se gastar numa refeição, de pôr as mãos aos bolsos e nãoencontrarumcêntimo,talvezencontreumamortalha,umpoucodetabacoefume,atentar escapar às preocupações, mas não há dinheiro, continua-se “naquela coisamorta”: “estudar para quê? Estou aqui em Coimbra para quê?”. Não quer ser opróximoafazerasmalasevoltarparaOliveiradeAzeméissemlicenciatura.

Entrou na política aos 13 anos, quando foi à sua primeira reunião da JuventudeComunista Portuguesa. Entrou um pouco sem saber no que entrava, apenas umímpeto. No 10º ano filiou-se no Bloco de Esquerda. Ajudou em campanhas, foi areuniões e candidatou-se, com mais cinco rapazes do Bloco, à associação deestudantesdasuaescolasecundária.

“Candidatámo-nos contra a lista apoiada pelo PS e PSD e CDS. Nós queríamosdinamizararádiodaescola,elesqueriamlevarosatoresdosmorangos.Levámosumacoça”.

Diogoacabouosecundárioem2007,masnão ingressou logonoensinosuperior.Aspropinas jánãoeramos6,5eurosestabelecidosem91,umvalorque,desimbólico,durante20anos,cresceu153vezes.Em2012/2013,ultrapassouabarreirados1000euros,numaconstituiçãoqueprevê“umensinosuperiortendencialmentegratuito”.

Ospaisaindatinhamumavida“relativamenteestável”–amãeganhavaoordenadomínimo, numa fábrica de têxteis, e o pai recebia entre os 500 e os 600 euros, naconstrução civil - mas Diogo tinha noção de que a tendência gratuita do ensinosuperiorcurvavaparaoutroslados.

Esperou que o seu décimo oitavo aniversário chegasse e entrou numa empresa dosector automóvel, a trabalhar das seis da manhã até às duas da tarde. Às quatro,estavajánumbar,atéàsdezdanoite.

Nafábrica,30%doordenadoiaparaaempresadetrabalhotemporárioqueocolocou.Ao fim demeio ano, 15 dias antes do contrato acabar, recebeu o aviso de que iriadeixar de trabalhar na empresa. Pediu uma reunião com o sindicato da fábrica. Odelegadodisse-lhepara“nãocriarproblemascomaempresa”,casocontrárioseriaoordenadodeleaestaremrisco.Lásefoiembora,fazendo-lheespécieveraempresade trabalho temporário seragraciada,nessemesmoano, comumprémioestataldecompanhiamodelono sector da empregabilidade.Depois dessemeio ano, ainda foi

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paraoutraempresa,nasuaterra,Cucujães,afazertriângulosdetrânsito,durantemêsemeio.

Comodinheiro amealhado,matriculou-se emHistória eGeografia, na FaculdadedeLetrasdeCoimbra,sustentando-sefacilmentenostrêsprimeirosanosdauniversidade.Odinheiroconseguidona fábricapagou-lheoprimeiroano.Abolsaque recebeudoprimeiro ano pagou-lhe as propinas do segundo e a bolsa do segundo pagou-lhe aspropinasdoterceiro.

Nessestrêsanos,envolveu-senavidaassociativa,numacidadeconhecidapelassuaslutasestudantis-asdeoutrostempos,de62ede69,easlutasdosanos90,contraaspropinas.Mas,nacidade,aslutasperdemforçaacadaanofindado,numaassociaçãoacadémicadeestudantesqueDiogonãovêcomobaluartededefesadosdireitosdosestudantes.Nãosesenterepresentadopelaassociação,ummicro-cosmosquemuitasvezes é visto como um pequeno governo, uma representação em pequena escaladaquiloquesepassanopaís.Vêainconsciência,aabstençãodaparticipaçãonavidaassociativa,vêocaciquismo-éovotopelopadrinho,éovotoporumacaraqualquerqueandaporlá,pelosisqueiros,canetasebolasanti-stress.“Easpropostas?”

Nessemicro-cosmos, lembra-se da sua primeira grande discussão numa assembleiamagna, quando Miguel Portugal era presidente da associação, e Diogo propôs aadesãodosestudantesàgrevegeral.Criticaram-no,dizendoqueelequeriafazergreveapenas“parairaLisboa”.Enervou-se,numacessoderaivaqueaindahojeadmitenãoconseguir controlar, e explicou que queria fazer a greve em Coimbra, que “são osnossospaisquenosdãodinheiro,éotrabalhodelesqueestáemcausa.Nãopodemosestardesassociadosdasociedadecivil”.Rejeitaramaproposta.

Diz que a associação apenas faz cócegas ao sistema, irrita-se com a passividade daacademia, commanifestações simbólicas atrás demanifestações simbólicas, irrita-secom a desacreditação dos estudantes no sistema político, irrita-se com os 80% deabstençãoqueviuem2011,naseleiçõesparaadirecçãogeraldeumadasassociaçõesde estudantes mais antigas da Europa, irrita-se com a falta de discussão de ideias,irrita-secomoadiardaluta.

“Se este não for o momento para fazer luta estudantil, quando será? Quando osenhorio expulsar o pessoal de casa porque não têm dinheiro para pagar a renda?Quando a universidade tiver 15mil em vez de 30mil estudantes porque os outrostiveramqueirembora?”.

Nofinaldo3ºano,DiogomudoudeHistóriaeGeografiaparaHistória.Amudançadecursoimplicouofimdabolsa.Jásabiaquedeixariadeterajudaporpartedosserviços

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deacçãosocial.Foidecasaquesurgiuasurpresa-umvislumbremaisvincadodeumacrisequesefaziainsurgirnoorçamentodosseuspais.

Amãepassouareceberoordenadoatrasado,nafábricadetêxteisondetrabalhava,opaifaziamenosdinheironaconstruçãocivil,aavóprecisavadeajuda,easuairmã,naalturano4ºanodaprimária,perdeuoserviçodeapoiosocial,porumterrenodospaisavaliadoemquatromil euros, “quenão serveparanada,queémato”.Comovaloracrescentado, a irmã deixou de ter direito a refeições grátis e passe escolar. “Eupensavaquedavaparacontrolar.Nãodeu”.

“Nãodeuenãoestáadar”.Começouavivercom200eurospormêsdospais,com120 a irem logo para a renda da república onde vivia. Restavam 80 euros, quefacilmentedesapareciam.Porvezes, tinhaquepediremprestado,“10eurosaqui,20eurosali”,avaler-sedeamigosparasemanterporCoimbra.Contudo,faltavasaldaraspropinas,enãohaviamaneiradeasconseguirpagar.“250eurosacadatrêsmeseséumafortunaparamim”.

SenãofosseofactodeDiogovivernumarepúblicadeestudantes,játeriaidoembora.AcasadosKapangasfuncionoucomoúltimoredutodeacçãosocial.Numacidadeemqueaprocuradequartos fazaumentaropreçodasrendas,nunca iriaencontrarumquartoemque,com120euros,incluísserendaedespesas.

Em Janeiro, depois de um semestre feito de desenrasques e da solidariedade deamigos,DiogovoltouaOliveiradeAzeméis,depoisdeumaoperaçãoaocóccxis.Estevedoismesesemcasae,aí,enquantorecuperavadaoperação,aquiloqueteriasidoumprimeirovislumbrededificuldades,noiníciodoanolectivo,começouaacentuar-seeatornar-se mais real e mais duro aos olhos de Diogo. Apercebeu-se das contas quetinhamqueserpagas,dospequenos luxosquesecortavam,coisasdavidados seuspaisqueseiamtransformando,àmedidaque2012entravapordentrodasparedesdasuacasaemOliveiradeAzeméis.

Depoisdarecuperaçãodacirurgia,DiogodisseaospaisqueiaparaCoimbra.“Nãohádinheiro para ires para Coimbra”, disse a mãe. Um murro no estômago. O únicoobjectivoquetinha,aarder,ali,àsuafrente.Entrouempânico…

-Maseutenhoaulas,tenhoqueirparalá.

Discutiu.

-Nãoquerosabersevóstendesguitoounão.Estou-meacagar.

-Mastunem15eurostensparairparaCoimbra…,disse-lheamãe.

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Sabequefoiinjustoparacomosseuspais.Mas,nomomento,airafaloumaisalto,nacabeçadeumestudantequeapenasqueriaacabarocurso.Via-seagorapresoàsuaterra,demãosatadas,econscientedequetudoaquiloerainjustiça.

“Eunãoseiquandoéqueaminhafamíliavaiterquerecorreraumbancoalimentar…”

Acalmadososânimos,domadaairaeossentimentosdeiniquidade,DiogoconseguiufazerumacordocomospaisparavoltaraCoimbra.Iriaficaremcasadeumcolega,adormirnochãodoquartodele,comumcobertoreumasmantasafazeremdecama.Trariacomidadecasa,e,dequandoemquando,amãedar-lhe-ia10ou15eurosparaseirorientando.

Dividiu o chão com outro colega que também não tinha dinheiro para pagar umquarto.Commeiosemestredeaulasperdidoporcausadaoperaçãoedasafliçõesdenão ter dinheiro, ainda conseguiu fazer uma cadeira. Não fez mais porque, nosentrementes, foi à procura de trabalho para conseguir pagar propinas. Procura-se epoucoseencontra.

ViuumanúncionoDiáriodeCoimbraaprometerumsaláriobasede550euros,seishoras de trabalho, cinco dias por semana. Teria que vender telefones de umaoperadoranacionaldetelecomunicaçõeselivrosdebandadesenhada.

“No papel é muito bonito”. O salário base afinal não existia, as seis horastransformaram-seem12,oscincodiasporsemanalevarammaisumatrelado.

Entrava em casa das pessoas, com um discurso preparado, baseado num guião,“monopolizador,teatral,falso”,dizendoqueoprodutoquevendiaeraa“melhorcoisaparaeles”.Diogosentia-seemcontradiçãoconsigopróprio,avenderalgoemquenãoacreditava.

Mas…“precisavamuitododinheiro”.

Ainda tentou durante uma semana, contudo não conseguiu. Acabou por gastar 70eurosemdeslocaçõeserecebeu60doquevendeu,semdescontos.

Foi a Pombal, Mealhada, a mostrar “contratos mais vantajosos para as pessoas,independentementedese realmenteoeramounão”. Lembra-sedoúltimodiaededizerbasta.

Numasexta-feira,eleeumaraparigaqueoacompanhoubateramàportadeumcasalde surdos. A sua colega escreveu tudo para lhes explicar o contrato e “as suasvantagens”.Ocasalmostrou-sereceptivo.Diogorecusou-seavender-lhesotelefone.A única preocupação da colega era a comissão de 30 euros que ia conseguir com avenda.

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“Elaprecisavadeganharodinheiroindependentementedecomooganhava.Tambémestariaaflita.Maséimoral”.Chegaramàsededaempresaeacolegacontouoquesetinha passado ao seu chefe - umhomemalto, de cabelo rapado, “sempre fatinho egravata”, sempre a cheirar a tabaco. “Um gajo que ganhava dinheiro com todos osprodutosquevendíamos,mesmoestandosentado,semfazernada”.

DisseaDiogoquetinhaque“venderevenderevender”.Diogodissequenão.

-Olha,eunãoprecisodeti.Amanhãestáaquioutroatrabalhar.

Despediu-se. “Ali era aquela coisa de tu és trabalhador, mas és o teu próprioempresário, tufazesoteuordenado…Nãotinhapaciênciaparaaturaraquilo.Querotrabalhar,queroserpagopeloquetrabalhoedeformadigna,masnãoqueroreceber60eurosaofimdeumasemanaatrabalhar12horaspordia”.

“Tentei,mas…”Nãodeuparasesustentar,nãodeuparapagaraspropinasenãodeuparairaosexames.E,nofim,aindaperdeudinheiroeasituaçãoagravou-se.

Sem propinas pagas, voltou para casa, nesse verão, sem qualquer perspectiva detrabalho.Foiajudaropainasobras,assimcomoamãe,aos finsdesemana,a fazerlimpezas.

Veiomaisumano–2012/2013.Maisoutraluta,quenãoapolítica.Propôs-seapagar,por quatro prestações, as propinas em atraso. A universidade rejeitou. Os pais deDiogo decidiram que ele deveria continuar em Coimbra. Queriam que o filhocontinuassea iràsaulas,mesmocomasnotascongeladas,queoprojectodeDiogotirarocursoédostrês.

“Tenho orgulho destas duas pessoas que não tendo formação académica sabemperceberquenãohácondiçõesdeestudoapartirdomomentoemqueumapessoanãopodesequerpagarumarefeiçãonacantina”.

“Odinheiro não émuito e há que fazer prioridades. A prioridade foi poder arranjarcasaparapoderestarcáeiràsaulas”.

Viveucom200eurospormês,nesseanolectivo.Conseguiuumquartopor133euros,com despesas alongava-se até aos 150 euros. Ficou com 50 euros por mês parasobreviver em Coimbra, com as notas congeladas do ano anterior e sem podermatricular-se.Pôsnacabeça:“senãoconseguirpagaraspropinasatéDezembro,vou-me embora”. Esteve para ir. Chegou a Dezembro e não havia dinheiro para pagarpropinas.

Até lá foi contarasmoedas, fazercontas,compararpreços:“tudo fazdiferença.Dezcêntimosfazemadiferença”.

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Sentiu“acorda”aroçarnopescoço,mas,aomesmotempo,agradeceuodinheiroquefoisurgindodeumatiaedaavó,uma“notinha”quejálhefaziaasemana,eotoquedeunsamigosparaseaguentarmaisalgumtempo.“Masévivernorisco.Semprenorisco”.

Oriscode iremboraacentuava-se.Custava-lheverosdiasasurgirem,unsatrásdosoutros,eJaneirocadavezmaispróximo.

EmDezembrode2012,jáapensaremfazerasmalas,amãeliga-lhe,àsdezdanoite.

- Tenho uma notícia para te dar. Vamos poder pagar-te as propinas, que aindemnizaçãodequeestouàesperahámeioanovaichegarnaspróximassemanas.

-Estásafalarasério?

-Sim.

-Caralho!

Assim,umberro tremendo,descomedido, livredeeufemismos.E lá se fez felicidadepelorostodeDiogo.Amãerecebeuaindemnizaçãodaempresa,ondetrabalhou,quefecharaevoltaraaabrircomoutronome.Diogoestavafeliz,aliviado,deesperançasredobradas.

A21deDezembro,umdiadepoisdoseuaniversário,pagouaspropinas.

Recebeuume-mailadizerquesepodiamatricular,masqueteriaquepagar75eurosdemultapor inscrição foradeprazo.Aquandoda inscrição, recebeuumaviso: tinhaprescrito–ascadeirasfeitasnoanoanterioreraminsuficientesparasepodervoltarainscrever.

“Nunca tinha pensado nisso. Nunca pensei que fosse possível. No ano passado fizapenasquatro cadeiras,mas fuioperado, tentei trabalhar,não tinhadinheiro…nemsequerconseguiapensarnaideiadequeiaprescrever…nãofaziasentidonenhum”.

Eramseisdatardee,Diogo,estavaemfrenteaocomputador,semconseguirfalarcomamãedooutro ladoda linha.Derastos,emchoque,nosilêncio.Cincominutossemumaúnica palavra dita àmãe, apenas se chorava. Anos e anos a contar dinheiro, aprocurar coisas para poder pagar os estudos e sempre no remendo. “Cada vez queresolvesumasituaçãosurgeoutrapior”.

“Tenho23anos,queroconstruirumavidaenãoconsigo”.

Depois do abatimento, Diogo voltou aos remendos. Decidiu criar uma página noFacebook,propondo-seacozinharemcasasparticulares,comacomidaqueaspessoas

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tivessemnassuasdespensas,atrocodealgumdinheiroparapoderpagarascadeirasque tinha feito no primeiro semestre e assim manter-se em Coimbra para poderassistiràsaulas,nasegundametadedoanolectivo.

Conseguiu manter-se por Coimbra e pagar os 300 euros pelas três cadeiras feitas.Ficoutambémcomoutrastrêscadeirascomnotascongeladas,nosegundosemestre,semterpossibilidadedepagaromontanteavulso.RegressouemSetembrode2013,e,depois de se inscrever, de ver as notas aprovadas do ano passado, de confirmar aregularizaçãodasuasituação,deconseguirficarnumarepública,suspirou.

Está hojemais tranquilo: é um último esbracejar de esforços até ao final do ano, acozinhar,semprequealguémpede,parapagarpropinasecontinuarcomosonhodepé,mesmoqueportantasvezespareçater-securvadoparaochão.

Um euro

Nilcelevantou-seàssetedamanhã.Àsoitoemeia,estavaatrabalharnumjardimdeinfância,pertodecasa.Àsquatroemeiadatardesaiu.Respiroufundoe,àsseis,fez-seempregada de mesa num café, até à meia-noite. No dia seguinte, voltou a fazer omesmo.Duranteseismeses,foiasuarotina-jardimdeinfânciaecafé-semprecomauniversidade como linha de horizonte, a pautar-lhe os movimentos, por vezescansados,massempreseguros.

A história deNilce é a história deum sonhoquenunca lhe foi fácil, numpaís ondesonhos destes, de tirar um curso, são cada vez mais somas de batalhas e cercosprojectadosporditameseconómicos.

Nilcevenceuassuasbatalhas.ÉhojemestreemEstudosArtísticos.Paratrás,ficam-lheasmemóriasdearmáriossemcomida,deumacidentedecarro,daapanhadapêranoverão,dasolidariedadedeumasquantasmãosqueselheestenderam…

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Para a frente? Não sabe. As perspectivas são turvas - faz parte dos números daincerteza que se alinha em notícias, percentagens, juros, reacções dos mercados,‘ratings’. Por enquanto, está num call-center, de sorriso na cara, à espera - nessadúvidaconstante,comichosaequeinquieta.

Antes, porém, há uma história comprida de dificuldades, onde a desigualdade lhesurgiuaosolhosaindaerapré-adolescente,jáaviversócomamãeeoirmão,depoisdefugiremdacasadopai,da“pancada”,daexpectativa,datensão,dohomemque,pelo álcool, espancava a mãe, fosse por um bivaque mal passado a ferro, ou pelacomidaquenãoqueria. Amãe virou toda a sua vida para os filhos. A trabalhar porpoucomaisdoqueoordenadomínimo,decorpomoído,deixoudecomprarroupa,assolasdossapatoseramsemprecoladas,nãoiaaocabeleireiro,easaúderessentia-se,adiava-se,semdinheiroparaumbomacompanhamento.Eos filhosasegurarem-na.No Natal, trabalhavam os três numa padaria, por turnos. No Verão, Nilce ia para aapanhadafrutaeoirmãoparaasobras.

Nilce sempre sentiu esse esforço da mãe, mas as diferenças evidenciavam-se e avergonha,numapré-adolescente,tambémaflorava.Antesdoregressoàescola,haviaque limparcomborrachaos livrosdo irmão,umanomaisvelho,eencadernaressesmesmoslivroscombonecosesímbolosdapop-quefaziamascapasdarevistaBravo-,parateraliqualquersinaldepertença.Porvezes,não levavaos livrosparaaescola,compudor,outrasvezesrecusava-sealevarcomidadecasa,porquemaisninguémofazia.Nasfestasdaterra,fingiadormirenquantoouviaasamigasbateremàporta.“Sóiaumoudoisdias”,queperfaziamonúmerodevestidosnovosquetinha,fingindo-seali, em sonos, a ouvir as amigas chamarem-na, de olhos bem abertos para umadiferençaqueaindanãoconseguiraenquadrarconscientemente.

Em casa, se na televisão surgia política, mudava-se de canal. Sempre foi assim, esempreouviuoconselhodasuamãe:“votanospequenos”.

Nãoacatou.“Votonulo”.

Tambémfoicontraavontadedamãequedecidiuirparaauniversidade.“Tinhareceiode ficar semdinheiro”. Foi experimentar,noano lectivo2006/2007, àesperade terbolsa,quedeoutraformanãodaria.

Lembra-se de quando entrou na faculdade e a assistente lhe disse: “se não temdinheiro,entãonãovenhaestudar”.

Ficou,resistiue,senãofosseodinheiroquetinhapostodeparte,frutodotrabalho,nãoteriaaguentadosequeroprimeiroano.AbolsasólhefoiatribuídaemMaio,eatéláhaviaquecomer,tirarfotocópias,pagarbilhetesdeautocarro…

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Com o dinheiro da bolsa, comprou um computador. Durante o verão, voltou aotrabalhoparapagar aspropinas.Às seisdamanhã, iapara a apanhadapêraaté àscincoemeiadatarde.Meiahoradepois,estavanumcafé,atéàmeia-noite,naânsiadesemanternoensinosuperior.

Tentouesquecerocansaçoacumulado,dasoitohorasdepéaosol,dasseisnocafé,dascincodesono…

“Fiz issoduas semanas”.Numanoite,depoisde sairdocafé,adormeceua conduzir,estampouocarroemetadedodinheiroqueganhoufoiparaoarranjodomesmo.

Noanoseguinte,abolsafoi-lheatribuídamaiscedo,emNovembro.Recebia330eurosmensais, e parte ia para ajudar a mãe, que trabalhava 12 horas por dia, com umacervicalemriscodefalência,apedirgastosnasaúde.

No meio de lutas, de bolsas que vinham mais tarde, de trabalhos no verão, dedificuldades em casa, Nilce foi-se aguentando, num espírito que parece nunca sequerer deixar abater. Contudo, em 2010/2011, com a modificação do critério deatribuiçãodebolsas,aassistentesocial,naUniversidade,reparouqueNilcetinhamaisdespesasdoque receitaseque,portanto,nãoestariaadeclararalgum rendimento.Nilce explicou que trabalhava no verão para ajudar a mãe e que recebia ajudasalimentaresdeumatia.

Senãodeclarasseessesvalores,poderiamcortar-lheabolsa,avisouaassistente.

“Mas se trabalhava no verão e recebia ajudas alimentares era porque tinhadificuldades!”

Sãoasnormas,asregras,osdespachos,asfolhasdeExcel.

“Às vezesparecequeolhamparanós como se fossemosnúmeros. Somosnúmeros,somostodosnúmeros”.

Passoude300eurosdebolsapara98.Fazem-secontas:amãesempoderajudar,80euros para a fisioterapia ao joelho que lesionou em Fevereiro de 2011, a renda daresidência universitária, as propinas. Cortou nas saídas, nas idas ao teatro, naalimentação,nasviagensparacasa…

Amãeesteve internadadurante semanaemeianohospital,debaixa,eNilcenãoapôdever.Numano, foiquatrovezesacasa.Haviaalturasemqueabriaoarmárioenãotinhaquasenada,assimmesmo,quasenada.

Apesar dos cortes e poupanças - a austeridade que lhe entrava pela casa adentro -tevequerecorreràsolidariedade-semjuros.

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Umacolegaemprestou-lhedinheiroparaafisioterapia,naresidência,colegastraziam-lhecomidadashortasdospais,ofundosolidáriodoInstitutoJustiçaePazpagou-lheaspropinaseosSASUCatribuíram-lhe500eurosquedeuparasesustentar,noverão,oprimeiroemquenãopôdeirtrabalharparaaapanhadapêra,porcausadalesãonojoelho.

Noanoseuúltimoanodemestrado,abolsasubiuparaos260euros.Contudo,haviadívidasparasaldar.Pagouàcolegaos500eurosemprestadosparaafisioterapia,efoipondo dinheiro de parte para restituir a ajuda que o Justiça e Paz lhe tinha dado.Conseguiu pagar 900 dos cerca de mil euros de propinas. Ainda trabalhou duassemanasnoverão,naapanhadapêra,masacampanhafoimenor.ApenaslheserviuparasesustentarentreSetembroeNovembrode2012,emCoimbra,alturaemqueiadefenderorelatóriodeestágio.Ficousemdinheiroparapoderpagaraspropinas.Maisumavez.

“Comdificuldadeemencontrar trabalho, aminhamãedesempregada, voudemoraranos a pagar o valor das propinas a quem mo emprestar”, pensou. Olhou para oFacebookereparouquetinha1200amigos–“setodaagentedesseumeuroteriaaspropinaspagas”.Os jurosdaspropinasaumentavamedecidiucriaroevento,noseuúltimodiaemCoimbra,acusto,entreavergonhadeexporasuavulnerabilidadeeomedodesertratadaporcoitadinha.

Apareceuemjornais,televisões,rádios,aténaimprensaestrangeiraainiciativasurgiu.Recebeu várias mensagens de ex-alunos, e num desses momentos, na sua aldeia,enquantoestavano café a responderno Facebookàspalavrasdeapoio, um senhorchegouaopédeNilceedeu-lheumamoedaparaasmãos. “A reacção física” custamais,ali,algopalpável,“maisreal”,umamoedanassuasmãos.Sentiu-seestranha.“Équase como se fosse esmola”. Mas depressa retirou a vergonha, que Nilce não émulher para se deixar abater e acabou por andar com uma bolsinha para todas asmoedasdeumeuroquefoirecebendo.

Conseguiu os 1033 euros e 53 cêntimos para pagar inscrição, propinas e juros dopagamentoematraso.AtiroucomafelicidadeparaoFacebook,omesmoespaçoondetinhaconseguidoangariarodinheiro:

Queviagem!!!!E dou por mim a pensar… será que algum dia conseguirei retribuir os gestos, aspalavras, os sorrisos, a força. A todos vocês estimados amigos, obrigada por estesentimentobeloeúnicoquenosune,quemeenchedefelicidadeepolvorizaaminhavidacompozinhosdeperlimpimpim**************

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Foramprecisosmesespara tomaropasso,depoischegouumamigo,outro,oamigotrouxe um amigo, um familiar, depois chegou um desconhecido, e outro. A minhahistóriatocou-te,eaotocar-tetornou-senanossahistória,porqueopoderdoslaçosémágicoepodetornarsonhosemrealidade.Consegui, acima de tudo CONSEGUIMOS. A todos vocês que fizeram parte destaviagem,omeumuitoobrigada!!!Depoisdaspropinaspagas,daeuforia,de todaaatençãomediática,háo confrontocom a realidade. O regressar à sua terra, em casa, sem internet, sem grandesperspectivasdeencontraremprego,nasfileirasdaincerteza.Mostrou-se disposta a qualquer trabalho, dentro ou fora da área, num café, numafábrica,numrestaurante,qualquercoisa,qualquercoisaservia,menosoócio.Depoisdequaseseisanosnumritmofrenético,emquemuitasvezesdormiapoucomaisquecincohoraspordia,deu-seconsigosemnadaàsuaespera,sentadaemcasa,suspensa,entregueaumainérciadesconfortável.

Trocouasnoitespelosdias,deixava-seficaraverséries,ouvirmúsica,lerumououtrolivro…mas, no fundo, acredita que não fez nada, oumelhor, tentou inventar coisasparafazer,em“mesesdolorosos”quelhedavamvontade“debatercomacabeçanasparedes”.

“Talvez devesse ter feito algomais, talvez criar projectos,mas para isso também éprecisodinheiro…”

O primeiro trabalho que teve depois de acabar omestrado foi como ajudante numcafé-restaurante, a descascar batatas e a lavar tachos. Esteve uma semana. AproprietáriadocaféqueriaqueNilcevivesseemLisboa,ficandomaispertodolocaldotrabalho.Emcontrapartida,oferecia500eurosarecibosverdes,paratrabalhar6diasporsemana,9horaspordia.“Istonãoénenhumescritório”,avisou.

Depois de uma semana, Nilce estava disposta a ficar, porém, referiu que, seencontrasse algomais perto de casa, saía. A patroa não aceitou a contra-proposta.Nilce voltou para casa e para o ócio, para os sites de emprego, para os emails nãorespondidos,paraasperspectivasqueseafunilavam.

DecidiuirduassemanasaCoimbra,àprocuradetrabalho,adormirnumcolchãoemcasa de uns amigos. Conseguiu ir a duas entrevistas. A primeira era para “vendercartõesdecrédito”.Prometiam-lhe2500euros,“masnãoqueriavenderumacoisaem

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que não acreditava”, para além da pouca confiança que tinha na promessa de talsalário.

AsegundafoinaPT.Passounaentrevistaeofereceram-lheoordenadomínimomaiscomissões.Teveformaçãoe,nofinaldamesma,umprazoquatrodiasparavender.Senãovendesse,dificilmenteentrava.

Vendeueentrou.

Teve que se adaptar a 8 horas fechada num sítio, sob pressão - que há objectivosindividuais, de equipa, e do supervisor, pessoas concentradas, o som dos telefones,computadores, os guiões a serem usados, e a decoração feita de faixas com frases“nadaéimpossível”e“ahistóriaéstuqueafazes”.

Éraroestarmaisdetrintasegundossemreceberumachamada.“Estãosempreacair”.

Ficoucomumcontratoquinzenal,duranteseismeses.“Contratosquinzenaisassusta”.AlugouumT0,naaltadeCoimbra.Aos29anos,teve,pelaprimeiravez,umespaçosóseu.Rompe-se-lhe logoumsorrisodesmedido,assimque faladoapartamento,maisconcretamentedacasadebanhoedoprazerque foideixar-se ficarnabanheira,derádioligada,asaborearaquelavitória–umespaçosóseu.

DizqueestáagostardotrabalhonaPT,especialmentededaratençãoàspessoascomquemfala,porvezessozinhasedesamparadas,quenão têmdinheiroparaqualquerumdosserviçosquevende,masqueprecisamdefalar,deselançaremfúriascontra“opaís,aporcariadatroika,ogoverno,aPT”.

Aparecem-lhepessoasavivercom200ou300euros…“Éumatreta.Asmerdastodasqueháéporcausadodinheiro”,dizassim.

ENilce,com29anos,mestreemEstudosArtísticos,permanecenocallcenter,tambémelaarreliadacomopaís,comatroika,comogoverno…

Nãosearrependedeteridoparaafaculdade,mascusta-lhenãoencontrartrabalhonasuaárea.“Esfolei-meparatirarocurso.Euesfolei-me!”

Consideraquetevesortee,mesmoesfolada,mesmonumcallcenter,mesmosemacertezadequeumdiatrabalharánasuaárea,mesmodepoisdetodosossacrifícios,mesmocomomedodoscontratosquinzenais,nãodárazãoàsuamãequelhepediapara não ir para a universidade, e mantém o seu sorriso, enorme, pujante. “Agoraestoubem.Maso futuroestá emaberto, está tudoemaberto…E tenhoesperançaqueascoisasmudem.Tenhoesperança.Tenhoesperança”,reitera,comosseusolhosgrandes,fixoseconvictosnumhorizontediferente.

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O magnésio

A permanência de Sara no ensino superior é um acto de contínua resistência - umbasta à mera sobrevivência, a que viu os seus pais sempre agarrados. Mas a lutaresiliente cansa, e, por vezes, Sara não sabe se desiste, se se deixa vencer, ou secontinua nessa sua postura de combate, de existência numa crise emque luta paraquenãoaponhadoladodosnúmerosdosrendidos.Poraqui,aresistênciaeocansaçoterão que estar sempre ligados à história, palavras repetidas, como os dias, onde aestéticaliterárianãoentra.

NaPáscoade2013,SarafoiaViladoCondeealmoçoucomospais,tioseavós.Foiaprimeiradafamíliaaentrarnoensinosuperior,em2006.Comafamíliareunida,ouveodiscursopessimistadeque“vamostodosmorrer, istoestámuitomal,qualquerdiavamosterqueroubar”.

E Sara resiste.Diz que têmque ter umaatitude construtiva, que têmque tentardeoutraforma.“Nãosepreocupem,agentedesenrasca-se”.Mantémodiscursopositivo,

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masporvezesfaltamforças,nãoaodiscurso,masàpostura.Hánoitesehádiasemqueapenasqueriamandar“tudoàsurtigasefugir”,libertar-sedospesos.

Perguntam-lhecomoestáCoimbra.“Estábem”.“Eatesedemestrado?Comoanda?”.E Sara volta a fingir que tudo está bem, porque na verdade vê páginas em branco,envergonha-se daquele vazio, de não avançar no trabalho, de se sentir presa,amarradaàresistência,aumacabeçademasiadocheiadepreocupaçõesparapensarnumateseemServiçoSocial.

Sarasempreviveudentrodoparadigmadasobrevivência.Começouatrabalharaos13anos,numcafé,portervergonhadelevarosamigosparaacasadospais,emViladoConde. Esse contextomoldou-lhe “a alma”, onde o dinheiro é um não-assunto, porfaltadele,porserumacoisasuja,porquetodaavidadospaisfoisemprea“tentarterdinheiro”,porquemotivavadiscussões,porsaberqueospaisficammagoadosquandonãopodemajudar,porquelevapartedadignidade.

Parafugiraesseambiente,entrounostrampolinsdoclubedeginásticadasuaterra,na adolescência. Diz que não eramuito boa,mas esforçada. Lembra-se do “imensomagnésio”quetinhaquepôrnasmãossuadas,quandocompetia,nervosaeinsegura.Aindahojepor lá andapartedonervosismo,parteda insegurança.Masomagnésionão basta, e lembra-se da frustração que sentiu num último salto do campeonatonacional,aofalhar,dandoumberronacamaelástica.Ostrampolinscomoespelhodosseusmedos-detentar,“detentarenãoconseguir”.

Acaboupordesistirporcausadeumalesão.E,deummomentoparaooutro,aquiloque achava ser o seu futuro deixou de o ser. Abandonou as perspectivas de umacarreira desportiva e escolheu Serviço Social, na Universidade de Coimbra, por tercomovontadeprimaserútil.

Chegou a Coimbra com uma ideia romantizada da cidade dos estudantes.Rapidamente se enjoou do fado, até porque “as mulheres não podem cantar”, e arealidadeassociativadaslutasestudantisdesanimou-a.“Esperavamaisfénaluta,maisunião,maiscuriosidade,maisconsciência”.Encontrouomedo,“ummedoendémico”,que borrata o postal de uma Coimbra “refém da sua condição histórica”, presa aosaudosismo,semconseguirconstruirumpresente.

Sara foi construindo o seu, mesmo que contagiada com parte do medo. Cortou ocordãoumbilicalquemantinhacomosseuspaiseiniciouumprocessodemudança-cadavezaprecisardemenosmagnésionasmãos.

NoseuprimeiroanoemCoimbra,mesmocombolsaatribuída,iaaosfinsdesemanaacasa,paratrabalharnocafédotio,demanhãànoite.Nofinaldoanofezumaopção:“ouvoutodososfinsdesemanatrabalhareestudoeganhoalgumdinheiro,masno

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final só conheçoo curso e o trabalho, ou então, se calhar, ganhomenos dinheiro etenhoumavidamaisremediada,masfaçooutrascoisas”.

Envolveu-seemtudooquepôdenoseupercursoacadémico.Fezvoluntariadonumlarde idosos, e reparounas pessoas abandonadas, nomeiodo “cheiro a fisioterapia, acomida do lar”. Integrou uma investigação do Centro de Estudos Sociais sobre adesinstitucionalização da doença mental em Portugal e aí voltaram a pairar asinseguranças.EntrounocorodoOrfeon,depoisdetantosanosaassobiarcantigasqueamãelhepediaemcasa.Durantedoisanos, integrouoConselhoPedagógicodasuafaculdadeeosórgãosdoNúcleodeEstudantesdePsicologia,CiênciasdaEducaçãoeServiço Social. Já nos últimos anos, esteve presente na construção de duasassociações, uma sobre a reconstrução de comunidades, outra com o objectivo decriar uma escola alternativa, e também é membro do Observatório da Cidadania eIntervençãoSocial.

Não conseguia estar parada, nem recusar projectos para os quais era convidada.Envolveu-secomacidade,quisvivê-laeaomesmotempodesfazer-sedosmedos–delutar,departicipar,dedecidir,dedarasuaopinião.

EmOutubrode2010,pelaprimeiravez,surgiramasdificuldadesnoseupercursopeloensino superior. Os pais estavam separados e Sara não queria preocupar a mãe,doente,sozinhaedesempregada.Traziafrangoseovosdecasa,àsvezesumanotade20eurosdaavó.Mas,semrendimentosecomumabolsaquedemoravaachegar,adespensa ficava vazia e a cabeça também se inquietava. Nas suas prateleiras daresidência de estudantes tinha umas saquetas de chá, lentilhas e uns pães secos.Encontrava-seagoniada,nãotantopelafome,masporquererfazertantacoisa,quererdartantacoisa…eestavaali,presaàimagemdasuadespensa.Enviouummail,às4damanhãdodia21deOutubro,aos serviços sociaisdauniversidadeeoutroaoBancoAlimentar.

“Boanoite,SouestudantedaUniversidadedeCoimbraenestemomentoaindaestouàesperadereceberaminhabolsadeestudosdosSASUC.Jápediumadiantamento,masque"tãocedo", segundo os mesmos serviços, não será disponibilizado. Estou a ter muitadificuldadeemalimentar-meconvenientemente.Seriapossívelreceberalgumtipodeapoiodavossaparte?”PorpartedogabinetedosSASUC,esperouumasemanaporumaresposta.“Disseram-me para mandar um requerimento para não sei quem. Não disseram: venha cá edamos-lheumasbatatas.Não.Façaorequerimentoepronto”.

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Acabouporreceberabolsa,mas,emMarçode2011,voltouadeixardeareceber,semjustificaçãonemaviso.

Dirigiu-seaosSASUCparatentarperceberoquetinhaacontecido.Aassistentesocialapercebeu-se de uma falha na candidatura à bolsa – foi-lhe retirada a bolsa porpensaremqueocursodaSaraerade3anos,quandonaverdadeerade3anosemeio.

-Oquefaçoagora?,perguntouàassistente.

Nãoobteverespostae,entretanto,“precisavadecomer”.

Escreveu um requerimento (mais um) a pedir apoio de emergência, emque “muitorespeitosamente” solicitava aquilo a que tinha direito, num latim de um formuláriotipo,distante,frio.

Saraenervava-sedefazersempreaquelecaminhopelosserviçossociais -ocontínuoprovardequeestavamal.Insistirepersistirparareceberalgoquemaispareciaajudacaritativadoqueumdireito.

-Pergunte à senhora directora se quer fotografias para pôr em anexo da minhadespensavaziaoudasminhascostelas.

AestudantedeServiçoSocialaolharparaumainstituiçãoqueapenassobrevive,que“já não ouve os estudantes”, estudantes esses cada vez mais imersos na lógicaperigosade“játenhoe jáémuito”.“Podeestaralguémamorrerqueosassistentesnãosabemporquesófazemtrabalhoadministrativo”.

Erevolta-se.Asincoerênciasrevoltam-na.Saraestudaeenvolve-seemprojectosparalutarporumavidamelhorparaosoutros,mas,depois,elaprópriaseaprisiona,numacondição da qual tem medo de não conseguir sair. Fica cansada, por vezes nemconsegue tentar - pelo medo (mais uma vez, o medo) de se desiludir… e tudo éenergia, e tudoé forçaque se somee se esvai, seja na residência às 4 damanhã amandar um email, seja nos requerimentos constantes e infindáveis aos serviços deacçãosocialafazer“provadehonestidade”dasuasituação.

Nesseanode2010/2011ainda recebia350eurosdebolsamensal,masesteveparadesistir. Não conseguia trabalhar. Estava, mais uma vez, de pensamento moído,bloqueadoporaquiloquelhepassava“nacabeça,dentrodocorpo,emtodoolado”,aestudarserviçosocial,quandoaquelequerecebialhepareciatãodefeituoso,tãolongedateoria,dostrabalhos,damatériaparaosexames,dasaulas.

Noanoseguinte,o2ºanodemestrado,opaieamãevoltamajuntar-seeSaravêumcorte de 160 euros na bolsa. Foi-lhe atribuída uma bolsa de estudos de 190 eurosmensais.Fezumaoposiçãoaoresultado:

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“Eu,SaraAlexandraRamosRocha,venhoporestemeiodeclararoposiçãoaoresultadoapresentado da minha candidatura a bolsa de estudos. Com a bolsa que me foiatribuída no valor de 189,95 euros mensais, apenas fica totalmente garantido opagamento das propinas, já que este ano o valor da rendado quarto emque estoualojadaaumentoupara100€.Ainda terei de prover 100,50 euros para completar o pagamento dos 10 meses derenda.Destemodo,asdespesascomalimentação,deslocaçõesematerialescolarnãoestãocobertas.Embora actualmente o meu pai integre o agregado familiar, o rendimento actualcontinuaasermuitobaixo.Comopoderãoconstatar juntodomeuprocessonosSASUC,aminhamãeapresentaproblemas de saúde crónicos que implicama realização quase diária de fisioterapia.Acontecequeocustodotransportesóépagoatéaofimdestemêse,devidoaoscortesorçamentaisnosserviçosdesaúde,apartirdopróximomêsterádeseraelaapagarcercade60eurosmensais.Tendoemcontaasituaçãofinanceirajáprecáriadosmeuspaiseafragilidadepsíquicadaminhamãe (porque está desempregada), nestemomento não posso contar comeles financeiramente. Actualmente, a minha permanência na Universidade só épossível graçasapequenosempréstimosquepessoasamigasme têm facultadomasquetereidedevolver.Aminhasituaçãoémuitoprecáriaeinstávele,emtaiscondições,torna-semuitodifícilconseguir realizar com serenidade e concentração as minhas responsabilidadesacadémicaseoscompromissosextra-curricularesemquemefuienvolvendoaolongodomeupercursoemCoimbra“.Faceàoposição,recebeumais30eurosdebolsa.Ficoucom100paraaspropinas,100para o quarto, na residência, e 20 “para tudo o resto”. Teve que se desenrascarsozinha.Nãosóporqueospaispoucopodiamajudar,maspelanecessidadequetevede demonstrar que é merecedora de estar em Coimbra, e capaz de acabar ummestrado.E, aomesmo tempo que se agarra a desenrasques, vai a assembleiasmagnas. Sararecorda-se de um dia ter subido ao palanque e, no meio de discursos feitos dedemagogiaemissivaspartidárias,Sarapôsomedodeladoefez-seouvir:

“Sehá30anososnossospaiseavós lutarampela liberdadee contraaditadura…(eouvi logo:pronto,estaaquideveserdeesquerda),seeles lutaram,nósagoratemosquenos libertardestescondicionamentosquenóstemos.Nóstemosmedodetudo.Nóstemosmedodeassumirquetemosodireito.Nósnãotemosquepedirnada!”

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As dificuldades nesse ano de 2011/2012 agravaram-se, sem um sistema que lherespondesse,queseinteressassepelasuasituação.Quandoparticipava,quandoexigiaos seus direitos, nem sempre Sara via uma resposta. “Tens todos os instrumentosdemocraticamentedefinidosparaparticiparnosistema,evaiseescrevesedásatuaopinião,masosistemanãoteresponde”.

E Sara, sem dinheiro, sem respostas, bloqueou. Em tudo é preciso dinheiro edisponibilidadeNãoconseguiuacabaratese.Osufoconãoadeixavapensar,voltandoaospensamentosdedesistência,umestadotenso,emqueaoolharparaotrabalhosequestionava, mais uma vez, como poderia ajudar os outros, se nem para ela eracapaz…

Adiouatese.Em2012/2013nãotevedireitoabolsa,pornãocumprirasnovasregrasde atribuição que prevêemum aproveitamento superior a 60%dos créditos no anoanterior. Saiu da residência e ficou em casa de uma amiga, a dormir no chão dabiblioteca.Emcontrapartida,arrumavaacasa,tomavacontadosdoisfilhosdacolegaecozinhava.

Procurava trabalho,masnãoencontrava.Ospais poucopodiamajudar e, depois deSara ver o seu pedido de bolsa rejeitado, os SASUC respondiam numa mensagemautomática,impessoal,feitaemsérie:

“Faceaoexposto,deacordocomoprevistoéindeferidoorequerimentodeatribuiçãodebolsadeestudoparaoanolectivode2012/2013apresentadoporV.Exa.,pelo(s)seguinte(s)motivo(s):Semaproveitamentoescolarnoúltimoanolectivo”.

Voltouafazeroposiçãoaoresultado.RelembrouoReitoreaDirecção-GeraldoEnsinoSuperior (DGES)dosartigos73ºe74ºdaConstituiçãodaRepúblicaPortuguesa,queprevêemogarantedecondiçõesdeacessoàEducação,superando-seasdesigualdadessociaisepromovendoaigualdadedeoportunidades.“Aguardoasuamelhoratençãoaomeurequerimento”.Nuncaarecebeu.NemporpartedoreitornemporpartedaDGES.

AansiedadeeaimpotênciatomavamcontadeSara.Eodinheiro,mesmoquecoisamáaos seusolhos, conseguiaalterara suadisposição.Quandoamãe lhedepositava20euros, sentia-se logo capaz, activa, a planear os dias, a querer fazer coisas. Masrapidamenteodinheirosesumia,eSaraandavanestebaloiçoenganador,adulterado,de muitos mais baixos que altos. E a tese? A tese ficava para trás, num eternoadiamento, enquanto se absorvia em pensamentos de desistência, num turbilhãonervoso,aflito.

As dívidas acumulavam-se e Sara apontava-as numpapel laranja. “O Bruno são 300euros…mais60daCarla,depoistenhoaquidoisamigosquemepagarammaisumas

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coisas, ainda estou a dever sete euros à Dona Lurdes, do centro de fotocópias, edepoisomeupadrinhoquemepagouaspropinas…”.2500euros,nototal.

Comopensar?Comoescrever?Comose libertar?Numdomingode2013,Saraolhouparaocomputador.Queriaescreverateseenãolhesaíanada.Sabiaqueeracapaz,masnãosaíanada.Nãosaía.Teveumataquedechoro,quegerirumalutanãoéfácil.“Sódependedemimeeunãosoucapaz”.

Sem bolsa, sem dinheiro, sente-se “completamente esmagada”, no meio de umasociedadequelhepedecoisas,emque“tudotemqueserrápidoebom”.“Semprenalabuta,nalabuta,nalabuta,alutarpelasobrevivência”.

Oplanoéfazeratese,masviver“emconstanteposturaderesistênciatemumpreço”.Aboadisposição,otempoeaenergiadissipam-se.Numadasúltimasentrevistas,Sarachegouapensaremnãoestarpresente.“Desdeaúltimavezquenãoavanceimuitomaisnomeutrabalhoesintoquemeestãoavencerdealgumaforma”.Custa-lhecadavezmais falardasuasituação.Ganhavergonha,aposturadesgasta-acadavezmais,numaidentidadequesecomeçaaresumiraoactoderesistir.“Escrevoumbocadoeficocomdoresdecabeça,sinto-meperdida,ficoconfusaedesisto”.

Em 2013, apenas sabe que metade do montante das propinas será garantido peloInstitutoJustiçaePaz.Massóquerpensarempropinasnofinaldoano,atéláháquefocartodaaatençãonateseeteromínimoparacomer.

“É um veneno, uma traiçãomuito grande. Crescemos a ouvir este discurso de quetemosquesonharefazercoisas,salvaromundo,serempreendedores,equenofundotemos direitos porque somos todos iguais, mas no dia-a-dia sinto que isso não éassim”.

Arededeapoiostem“buracos”,eSarajácaiunelesenãosabecomosairdaespiral,daconstantesobrevivênciaaqueviuosseuspaissempreremetidos.

Por vezes, a raiva tambémdesponta,masSara,nomeiodo redemoinho, continuaaacreditar na humanidade, confia que construiremos sempre algo melhor. “Se nãohouverconfiança,nadaépossível.Senãoconfiassenaspessoasnãoestariaaqui”.

Quersimplesmenteacabaratese.Pôrumpontofinaledeixardeprecisardemagnésionasmãos.

Mas, enquanto desenha planos, relembra-se de que tudo é muito difícil, incerto etemporário,acalmaesvai-se,ehámomentosemquesóqueriadizerumfoda-seeirtrabalhar,ganhardinheiroeterasuavida,emvezdeexigiraquiloaquetemdireito,

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emserviçosdeacçãosocialemquetudotemqueserjustificado,tudodesgasta,tudoatrasa,tudoprecisadeumrequerimento,tudo…até“rebentar”.

Sara cresceu no meio de um contexto “em que não vales muito. És carne paracanhão”. Convive com essa sombra, com omedo de se rever um dia na constantesobrevivênciadospais.Querfugiraisso.Mas,aomesmotempoquefazescolhas,temde comer, e, entre incertezas, Sara lança-se numa grande confiança: “Terei sempreumaescolha.Eusoulivre.Possoteraminhaautonomiareduzida,massoulivre”.

Contudo,afaltadeautonomiaparecequea incapacita,queadeixaamarrada,numaagoniaconstante,tensa,movidaporumaansiedadequenãoadeixarespirar,sentar-seeescreveramalditatese.

Atesecontinuaporacabar,Sararesiste,insiste,masatéquandoaperdadeautonomiahá-devencerasuacertezaemser livre?“Porvezesapenasqueriapôrdoisdedosnagoelaedeitartudoparafora”.

HáumúltimosaltoadareSara,jácomtãopoucomagnésionasmãos,continuaatermedodevoltarafalhar.

Narrativas incompletas II

Joaquim não se adiantou muito. Talvez porque lhe custe. Ainda estava a quentequandolhefalei.Há2mesesquetinhaficadodesempregado.“Jáseestavaàespera,nãohaviaencomendas”.AgorajánãohácristalariasnaMarinhaGrande.Joaquimnãoquis falar mais do que a primeira breve entrevista, à beira da estrada, reticente edesconfiado,poucodadoagrandes falas.Amonotonia toma-lhecontadosdias.Darumpasseio,beberabica,tratardoalmoço,verotempoapassar.“Achoquejádissetudooquetinhaadizer”.Despacha-meelávoltaaosseusdias.Darumpasseio,beberabica,tratardoalmoço,verotempoapassar.

Horácio segura-se na fé que tem, evangélico devoto. Da Bíblia, retira um salmo:“Malditoohomemqueconfianohomem”.VotouPS,desiludiu-secomSócrates.VotouCDS, desiludiu-se com Paulo Portas. “Maldito o homem que confia no homem”. Ohomemdestrói,dizele.MasHorácionãoseprendecomisso,nemcomasinsolvências,a familiar e a da empresa. Apesar de um olhar algo abatido, agarra-se àdespreocupação,talvezsejaoquelheresta.Edefende-senessediaadia,no“lásevaivendooqueaparece”.“Ainquietaçãosócriadoenças”,diz.

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António, desempregado há quatro anos, caminha meio apressado, como se tivessealgumencontromarcado.Devezemquando,desaceleraopasso,e,noseurostodearsofrido e de olhos baixos como se se tivessem esquecido de sorrir, deixa um ar dealheamento total, vago, sem direcção. Solta umas espreitadelas comedidas para asmontrasevoltaaopassoapressado,escolhecaminhos,olhaparaohorizonte,paraoslados,masnuncaparatrás,numpassodecisivo,levadoparaondeolevaacabeça.Senãofossemospasseios,explodiadacabeça,desabafa.

o desemprego de longa duração

Um horizonte interrompido

NaGuarda,metadedosdesempregadossãodelongaduração.Nota-senaslojasfechadas,nasfábricasqueforamencerrando,emcentroscomerciaisquevãoficandovazios.CarloseAnajádesistiramdeprocurartrabalho…forammuitasrespostasnegativas,muitosanosalevarcomelas.Fernando,aos50,sentequeasuaidadeéumempecilho.PiedadeeAnabelasãomãesa

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tentar encontrar esperanças de uma vida melhor, para elas e para os filhos. São todos daGuarda e nenhum tem emprego, há mais de dois anos. Em terras onde o horizonte seinterrompepor colinasdegranito, outroshorizontes se suspendem, longedequalquer razãogeográfica.

À espera

Carlostem48anoseAna50.Estãoosdoisdesempregados.Carloshámaisdequatro,Anajánemsabesesãocincoouseisosanosnodesemprego.VivememGonçalo,pertodaGuarda,numapequenacasa,rodeadadegatos,queporlácirandamaverodiaemquelhesdãocomida.Dentrodacasavê-seumabíblia,unssantoseatelevisão,queéraroestarligada.Semtrabalho,ocasalagarrou-seàterraeaumououtrobiscatequevaisurgindo,cadavezmaisrareados.

CarloseAnasãodeexpressõesedemodossimples,numsotaquequelhesdenunciaaorigembeirã. Inspirame expiram, perguntampor vezes onde estáDeus, omesmoaquemrezam,e lásefazemàterra,osustento,asobrevivênciaplantadanosquintaisdos pais, e o emprego nem vê-lo. Até já se desiste de procurar. Sãomuitos anos àprocura e a monotonia das respostas faz com que se vá hasteando uma bandeirabranca.

Ana:Estamoscasadoshá29anos.

Carlos:Elaatétrazaaliança,eunematrago.Conheci-afoicom18.

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Ana:Foinosbailaricos,numbaileemBelmonte.

Carlos:Fuieuquepediparadançar,comomandaaregra.Elatinha idocomo irmãoatéláeconhecemo-nos.Semprequehaviabaile,telefonava-melogoadizer“vemcáter”.Aofimde2anosdecasadostivemosafilha.

Ana:APatríciaAlexandra.

Hojeafilhajáémulheradulta,masnãosãosóasidadesquemudam.

Carlos:Naquela altura havia trabalho. Saía de um e ia para o outro e havia sempretrabalho. E quando não havia trabalho apareciam uns biscates e tudo para fazer, eagoranãoaparecemesmonada,nembiscates. Istoestá tudomorto, jámefarteideandarporaí….Masnada.

Ana:EuestivenaDelphi,atéquetivequeirdebaixa.Depoisquandoaquilojáestavapara fechar,mandaram-me uma carta, caso eu quisesse ir trabalhar para onde elestinhamempresas,eteriaomeulugargarantido.Perguntaram-meseestavadeacordode ir para o desemprego, e eu disse que nãome importava, e na altura até podiacontinuar de baixa, porque tinha baixa sem termo, disse que sim, feita estúpida.Enganaram-me.Naalturaaté se calharpodia terarranjado reforma. Sóqueagentenãoestádentrodestascoisas…Achamosquesãotodoshonestos.

Carlos:Éassim.

Dizeencolheosombros.Asexpressõesderenúnciasomam-seeosombrosencolhidosandamdemãosdadascomelas.

Carlos: Agora acabou-se o meu subsídio de desemprego, em Janeiro de 2013. Tivesubsídiotrêsanos.Eutrabalheisemprenasobras,tambémjáestivenumaempresademataseestivenumaderecolhadelixo,cánaGuarda.

Falamdehoje,dostemposdifíceis,dadurezadenãotertrabalho,queoslevaparaadurezadeumpassadoatrabalharcomoumaformalegítimadepoderemcontestar.

Ana:Eucomeceiatrabalharemcasa,paraosmeuspais,trabalhavanoscestoseandeiaaprenderacostura,sóqueacosturaandeiaaprenderdos11aos13enãoganhavanada.

Carlos:Tinhauns10ou11anosquandocomecei.Eu, com9anos,punhavigasde5metrosdecompridonotelhadodacasadosmeuspais.Naquelaalturatinhaqueser.Perdiomeupaiaos15anos.Tivequemeassumircomochefedafamília.Erasóeu.Tinhaque ajudar aminhamãe. Fui trabalhar comumprimomeu, nas obras. Se elefossevivoaindaerameupatrão.

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Nodiaemquefaleceuiacomeçarumaobra.Teveumacidenteeficoulogo.Cabeça:metadeparaum lado,metadeparaooutro. Esse équeera…nunca tiveumpatrãocomoaquele.

Sorrierecorda-sedeoutrodiasantoquenãoodomingo:

Ao sábado, acabávamos, íamos a uma tasquinha aqui na terra, a mulher fazia ascontas, e as contas nunca falhavam… aquilo era certinho. Pagava uns copos para amaltaeíamosláacasa.

Ana: Eu estive a trabalhar numas confecções e depois fui para Belmonte, noutrafábrica,uns3anos.Mastambémparapagar,aquiloeracomplicado.

Carlos:Nuncamaislhepagavameaindameatacaramlá,comocão…Nãolhedavamsubsídio nem nada. Vieram lá com um cão grande à porta, e eu eh lá… e não lhepagaram.

Apresentaramqueixaquedeuemnada.Encolheramosombros,comohoje,eseguiramemfrente.

Ana:SaíefuiparaaDELPHI.Depoismetibaixaefuidebaixa,edepoisaminhaburricefoiteraceitadoaquelascondições.

Eagoranãohácomoseguiremfrente,dizem,entreencolhas.

Nós agora até podíamos ir para o pé daminha filha, no Porto, que ele lá se calhararranjava trabalho,masosnossospaisprecisamdenós,é impossível sairmosdaqui.Agora está numa fase em que estão a precisar, porque são quase umas crianças…Ainda agora estive ummês em casadaminha filha e omeumaridonão foi porquetinhaqueandaraajudarosmeuspaiseaminhasogra.

Carlos:Éimpossívelestaremalisozinhos…Edepoisentraassementeirasetemquesetratardas terras.Porque seagentenão tratara terranão temosondepagaraquiloque de lá colhemos. Se não ajudarmos como é que eles vão cultivar? Tiveram quedeixar os porcos, todos os anos tínhamos amatação, que era uma coisa farta,masagorajánão,queelesnãopodem…

Edopassado, retoma-separaodiscursodopresente,do fartoparaoescasso, comoumbaloiçoconstantedassuasnarrativas:

Ana: O rendimento mínimo é muito pouco… talvez vamos ganhar 200 e pouco eestávamosaganhar418.Eunãoestavaaganharnada.Acabouo subsídioepronto.Acabou. Depois tive direito ao RSI,mas quando ele foi trabalhar ummês na cerejacortaram-nos3meses,esóláandou15diasporqueapanhouumadoençanasunhas.

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Carlos: Saía de casa às 5 da manhã, pegávamos às 7, saíamos às 3 ou 4 da tarde.Primeiroeram30edepoisreduzirampara25eurosaodia.Émuitocomplicado…

Ana:Pagamosrenda:90euros.Água,luzegás…

Carlos:Istoos200eurosvãologoedepois?

Ana:Estátudoasubir…Nãodá…

Carlos faz um estalido com a boca e encolhe novamente os ombros, Ana imita nogesto.

Carlos: Ainda assim temos o chafariz perto e vamos lá buscar água. Temos quepoupar…senão…Sódáparapagarascontas.

Ana:Usamosoterrenodamãedeleesemeamoslábatatas,cebolas,hortaliça.Éoquenosvale,e,àsvezes, tambémaCruzVermelhadar-nosalgumacoisa,porquedepoisera impossível.Edepoisaindatenhoosmedicamentosparaatensão,paraacabeça,paraoestômago…Gastomaisde30eurospormêsemmedicamentos.Nãoéfácil.

Ana abre bem os olhos, com os lábios puxados ao canto direito da boca, emconformação.

Carlos: Se não fosse a terra não tínhamos como comer. Couves, tomates, alface,pimento, courgette, há sempre fartura, graças a deus, batatas não é o que mepreocupe.

Ana:Istoestámuitocomplicado…

Dizmuitaseváriasvezes.Aconstataçãodassuasvidas:“istoestámuitocomplicado”,comoumtomquesemantém,umarepetição,que lhesparecepermanente,comoosdias,todoselescomplicados.

Ana:Seeleaindaarranjassetrabalho…Masnãohánada.

Carlos: Cá em Gonçalo, só há dois que dão trabalho, mas os que têm empregadosaguentam-nos e pagam-lhes mal. Andava aí à procura. Farto-me de perguntar… Edizem:“olhe,jámecustamantertodososquecátenho”.FuiaumlagarperguntaraoJorge,“nãomearranjascánada?”,“Aindaasemanapassadativequedespedirum…”

Ana:Istoestámuitodifícil.

Osombrosvoltamacair,abocaem jeito resignado,as sobrancelhas franzidas,numassumirdadesistência,dabandeirabrancahasteada:

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Carlos:Jádesistideprocurartrabalho.Ohentão…Atéjátenhovergonhadeandaraíapedir trabalho, pensam que sou um vadio que anda por aí… a deambular… Aindaagora, tenhoumsacodebatatasparasemearetevequeseromeusogroapagarosacodebatatasparasemear…

Eéeusaber fazerascoisas…porqueháaímuitoquenãosabepegarnumaenxada.Masnãochega.

Ana:PedimosajudaàCruzVermelhaháuns5anospelaprimeiravez.Decidimoscommuitocustoevergonha.EfuiláagoraemJaneiro,agenteévergonha.Custamuito…

Carlos:Trabalhámossempre.

Explicaevoltaaexplicar,comonecessidadedemostrarquesãomerecedoresdaajuda.

Ana: Eu trabalhei na Delphi e fazia o meu e ajudava o dos outros. Se aquilo nãofechasse, ainda lá estava hoje. Nunca tive problemas nenhuns. Na altura paraescolherem as pessoas, eu fiquei para último. Porque era muito forte na altura.Cheguei láeo rapazdisse-me:“ou,então trouxeessa senhoraparaquê?Vai todaagenteparaascouves!”.Então,pediaorapazparameexplicarcomofazerunscabospara eu ver e não me enganar. Dali a um bocado já perguntava: “quereis mais ouquereismenos?”eorapazládisse:“poça,donaAna,veioparaaquiumabolinhamasnãodamosvencimentoàbolinha”.

Anasorri,masossorrisosvãosendomomentâneos:

Carlos:Agoranada…podeserqueosdiasmelhorem,masnemoscestosnosvalem,aquiemGonçalo.

Ana:Nãosevêninguém…Éumdeserto.Nãohátrabalho,nãohánada.

Carlos:Sóhácursos.Háunstemposfomostirarumcursodevenenoseherbicidas.

Ana:Erapararecebermoseaindanada.

Carlos:AndámosafazerumemValhelhaserecebemo-lologo.

Ana:OdeValhelhaserainglêseturismorural.

Carlos: Pescar palavras de inglês?Achaque sim?Achaque a gente aprende algumacoisaali?Foram25horas.

Ana:Orapazatéexplicavabem.

Carlos:“Goodmorn”,quandoláchegávamos,emvezdobomdia.Ficou-meessa.“Une”éum,nãoé?

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Perguntasemgrandescertezasdeestarapronunciarbemouseserámesmoassimapalavra.

Ana:Temos issotudoescritoaí,maspassa-setemposetemposeaquiloerasóparaganharalgum.Eujáfiztrêscursoseelequatro.

Carlos:Eu,decursos,fizumdejardinagemeooutroeradeperigosdeobras,higieneesegurançaemtrabalho.

Ana: Eu também fiz esse e fiz jogos e brinquedos tradicionais, e depois venenos eturismo.Agoraoqueéquefaçocomisto?Comestescursos?

Pergunta-se,comasmãosabertas,comoquearezaroPaiNosso,cientedainutilidadedoscursosmasaomesmotempoàesperadeumqualquermilagredoEspíritoSanto.

Carlos: É saudadesdo trabalho…Agente saíade casae convivia.Apesarde terquetrabalhar,eapesardediasquecustammais,masagente…tenhosaudadesdisso.

Ana:TenhosaudadesdascolegasquedeixeinaDELPHI.

Carlos: E nós nunca tivemos luxos, tirando os bailaricos lá na terra, mas nem erasempre.SóquandoeraafestaemSetembro.

Ana:Agentepodiavestirmelhoreagoraésóoindispensável.Nãocompramosroupa.Voufazendoroupa.Eelevestecomoquelhedão.

Carlos:Cortamosnaalimentação,emcarnesenessascoisas,bacalhaueassim.Sopaésempre.Atédemanhãésopa,nemcafénemnada.Façoeuasopaseforpreciso,nãotenhomedodecozinhar.Edepoiscomemosumasbatataseumasmassasouumarroz,àsvezescomcarneoutrasvezessemela,outrascomumovocozido.Nãopassamosfome.

Ana:Mascomemosmuitomenoscarne,epeixeémuitoraro.Éimpossívelpagarpeixe.AgoraemJaneiro,dia11,vieram200epoucoseuros…Écomplicado…

Anasuspira.

Carlos:Nota-semuitoadiferença.Dequemaneira!

Oúnicomomentodeassumidaagressividadeéquandofalamdepolíticos.Hárancor,numdiscursoperigosoquenãodistingueaclassepolítica,quecolocatodosnomesmobarco.

Carlos:Oh,oestado,oestado,têmláparaeles…

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Ana: Eu acho que os políticos viraram-nos as costas. Eles recebem-no bem e odesgraçadotemquesegovernarcom200euros…

Carlos: Para eles não é nada, que recebem aos 500 contos e têm ajudas paratransporteenósnãotemosnada.

Ana:Eleseforprecisovemàboleia,maseujánão,quemeenvergonhodeviràboleia.

Carlos:Temqueserquenãohánada,nada,nadinha.Faleicomumcolegameuaquidebaixo, e tudo, e disse-lhe “então não arranjas alguma coisa?”. Nada. Ninguémarranja nada. Está difícil. Pronto, vamo-nos entretendo com a terra, o que é que agentehá-defazer?Averseaparecemaisalgumacoisa.

EosolhosdeCarlos,depestanascompridas,abrem-separaaincerteza.

Ana:Eoqueficaparaáguae luz?Eremédios?Gastamosmaisde40eurospormês.Agora há receitas demedicamentos para tensão e estômago e cabeça, que andavamuito alterada, e não vou levantar, sabe Deus quando vou levantar, só começo atomá-losquandotiverodinheiro.Enãosãotodos.Sótomooprincipal,porqueorestoqueomédicomemandoutomarnãohádinheiroparaoscomprar.

Carlos:A saúde temque ficar em segundo lugar, que eunão gostode ficar a devernadaaninguém,porquetemosquepagara renda,ea rendaemprimeiro,queumapessoatemqueterondesemeter.

Ana:Agarrafadegás já vai paradoismeses. Sóusamosabotijadogáspara tomarbanho,e,mesmoassim,poupamosaágua,porquetemosumapanelaaolume,quesedeixaaáguaaquecidaparaocomereficaaáguaaquecidaeenche-selogo.Paraacasadebanhovoubuscarumbaldeeumcântarodeáguaàfonte.

Carlos:Sefossemosagastarmuitodinheironaágua,estávamostramados.

Ana: Até aminha filhame ajuda. Deu-me a televisão, deu-me o frigorífico, quandofizemos25anosdecasados,ocomputadorqueestáaífoiela,eusoocomputador.Eugostoparajogoseéumentretém,masnãopossoestarlámuitotempoporquegastaluz.

Carlos:Atelevisãoésóparaela.

Ana:Vê-seanovela,vejoasdaTVI.

Carlos:Euatelevisãoquevejoéaodomingo,umbocadinho,deito-menosofáevejoo“SomosPortugueses”emaisnada.Nãoligocánadaaisso.QuandojogaoBenficavejoosjogosdefutebol,ouseforcomumaequipaportuguesacomestrangeirasaindavouvendo,masnãoligomuitoaisso.

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Ana:Façorenda,àsvezesvouajudarele,buscarunspauzinhosde lenha.Hásemprequefazer.

Carlos:Oquequeriaéquenãohá.Háuns tempos tinhaaí biscatada, às vezesnemsabia paraondemehavia de virar. Chegavamaí, olha amanhãqueres vir ali, e hojeparaacolá...

Antes,noutrostempos,háunstempos,antigamente…

Ana: Antigamente havia-os aí com o “já nem posso mais”, de tanto trabalho quetinham,eagora?

Carlos:AzonadoFundãotambémestáigual,istoaquiétudo…Estátudomal,atéemBelmonteestámau.

Inspirameexpiram.

Carlos:Istoéocarago.

Inspirameexpiram.

Ana: Cada vez fazemos mais poupança. Quando chega a escuridão, deixa-se só atelevisão,atéàs10,10epoucoedepoiscama,queumapessoanãopodever tudo.Éramosmaisfelizesantes.Quemdizqueodinheironãotrazfelicidadenãosabeoquediz.

Carlos:ÉporquenãopassouaspassasdoAlgarve.

Ana:Temdiasquenemseiparaoquedá.Umapessoadesanima.Pedimosatéajudaaosenhorpadre.Trouxemuitaroupaeperguntouoquesepassava.Ofereceu-meestabíblia.

Apontaparaela,pertodossantosdeporcelanaquedecoramasala.

Opadredissequeestavatudomal,queascoisasestãomáseparatermosfé…Epodeserquearranjassealgumacoisa.

Masafénãoalimentae,entreencolhos,hátambémrevolta:

Carlos: Fé temos nós! O que é que ele há-de arranjar? Não arranja nada. A fé nãochega.

Ana:Ajudamuitoumapessoarezando,andomaiscalmadesdequeleioabíblia.

Carlos:Elatodososdiaslêumbocadinho.Euabroaocalha.

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Ana: Eu rezo todososdias ao São José,Nossa Senhorae aoPai doCéu. “PaiNossopequenino, quandoDeus eramenino, PaiNosso pequenino, tem chaves no paraíso,quemlhasdeuquenãolhasdera,foiSantaMadalena,cruzeimontecruzeifonte,nãoquandoodiabocomigoseencontre,nemdenoitenemdedia,nemàhoradomeio-dia,jáosanjoscantam,jáosgalossealevantam,jáosenhorsubiuàcruz,parasempre,ÁmenJesus”.

Carlos:Jámeperguntei, játemacontecidoaperguntar:“ondeestáDeusaqui?”Arreporra,tantagentefeliz,deusajudatantagenteeanósnão.

Ana:Muitasvezesrevolto-mecomigoprópria.

Carlos:Àsvezesnãopossoédizernadaaela.Tenhoquemecalarepronto.

Ana:Mas estamos unidos. Não é isto que nos afecta. Não há culpa nem dele nemminha.

EnquantoAnafala,surgeumgato,àbeiradaporta.

Ana: Este gato é o Chico. São oito gatos que andam aí, perto da casa. Alguns têmnome,outrosnão.Esteéomaiscoiso.Asgatasparemparaaíedepoisvêmaquiparar.

Carlos: Hoje ainda não comeram nada. Não temos nada para lhes dar de comer.Quando não há, não comem. Quando sobra, damos. Têm que apanhar ratos epássaros, que remédio têm eles. E os vizinhos também dão. Quando não se dá,paciência,têmquesedesenrascar.Masnóstemospenadeles...

Ana:Osgatosaindanosvãodandoalegrias.Sempregosteidosanimais.

Carlos: Os gatos, a novela, o Benfica, é o que nos vai alegrando. O que é que umapessoavaifazer?Andaraípelasparedesachorar?

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Aos cinquenta, Fernando já não presta

FernandocirandapelasruasdaGuarda.Nasmãos,levaunspapelinhosquedistribuiecolaemmercearias,cafése lojas.Opapeltemoseunúmerodetelemóveledizqueestádisponívelparaqualquer“biscatezinho”,desdearranjartorneiras,arrumarlenha,pintar,mudarumafechadura…Ligaram-lhepassadoumtempo,masnãofoidessaqueFernandoarranjouumbiscate.Outrocomoeleleu“opapelaocontrário”eperguntou-lheseprecisavadeobrasemcasa.

Teveessaideiadoanúncioquandoestavaumdianavaranda,afumarumcigarrodeenrolar, desanuviando a cabeça, quando ouviu uma conversa de duas senhoras apassearoscães.Umadelastinhaoferecido20eurosaumhomemparalhearrumaralenha, o qual recusou. “Mas porquê? Tomara eu que me aparecesse diariamentealguémparamepagarparaarrumarlenhaoufazeroutracoisaqualquer”.

Fernando tenta, mas desde 2006 que está desempregado e, a cada dia que passa,parece-lhemaisdifícilencontrarotalbiscate,paranãofalardeemprego.Jásãomuitosanosnafiladeespera.

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Fernando é pai de dois filhos, a mais velha já fora de casa. Até 2006, nunca teveproblemas financeiros e raros foram os tempos em que esteve parado. Começou atrabalharmuitonovo,emGouveia,nas resinas,nos lanifícios,nocampo,aordenharovelhas,nacerâmica,naspalhas.Fezdetudoquandoeracachopo.Depoisdatropa,mudou-separaAveiro,onde trabalhounumapastelaria,numrestauranteeno ramodos lacticínios. Viu-se pela primeira vez desempregado, com23 anos. Voltou para acasadospais,masporpoucotempo.Passadoummêsfoiaumacervejaria,nocentrodaGuarda, responderaumanúncioparaempregadodemesa. “Falei comopatrão,combinámosascoisaseláfiquei15anos”.

Ganhouogostodeservirosclientes,depassorápidoentreasmesas,ameterconversasobreotempo,sobreapolítica,sobreo futebol,emqueespicaçavaoseufraquinhopeloBoavista.

Afáveledesorrisofácil,Fernandovendiaoquequeriaaosclientes,muitosdelesqueiamlácomer,religiosamente,ofamosobitoquedacervejaria,comomolhoqueaindahojenãoconseguefazerigual.Lembra-sedegentedaCovilhãligarameiodocaminhoparareservarmesa.Lembra-sedemuitacoisa,detemposbonsemenosbons,comoquandoabriuaIP5eoscamiõesdeixaramdepassarpelaGuarda,obrigando-oadividiroanoentreaterraegitanienseeaSuíça,tambémnahotelaria.

Umcolegadacervejaria,numregressodaSuíça,desafiou-oaabrirumcafé.Opatrão,que era uma espécie de segundo pai para Fernando, disse-lhes para ficarem com acasa.

Aceitarame abriramnegócio. Esteve três anos comooutro colegae a cozinheira, àsociedade.Mas deu para o torto. “Comecei a ver que as coisas não estavambem”.Fernando suspeitava de desvios de dinheiro do colega que estava responsável pelacontabilidade.Alertouacozinheira,mas,sendoelamadrinhadecasamentodooutrosócio, não acreditou. Ao fim dos três, anos saiu. Hoje, a cozinheira dá-lhe razão. Acervejariaacabouentregueaoantigopatrãoeentretantojáfoitrespassada.

Depois de 15 anos a labutar na cervejaria, decidiu, em 2000, tentar o seu próprionegócio.ConcorreuàexploraçãodobardoHospitaldaGuarda.

Ganhouoconcursoe,durantetrêsanos,nãotirouumafolgaouumfim-de-semana,apenas fechou no dia em que o seu paimorreu.Mas diz que todos esses dias semdescansocompensaram.

Fernandoestavanassuassetequintas,amimarosclientes,comumasminiaturasdebolosdebacalhau,feitospelasuamulher,comumagambaoucomunstremoços.Faladobardohospitalcomorgulho-haviamovimento,egabavam-lheasbifanas,assopas

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eospanados feitosemcasa,numtrabalhodeequipaentreamulhereFernando,e,porvezes,afilha,naalturacom14anos.

Mas, ao final dos três anos, houve novo concurso de carta fechada e ganhou outroempresário,queofereceu“umabsurdoderenda.Chegouláepensavaqueabanavaabananeiraeenriquecialogo”,dizFernando,numtomdeinjustiça.Tevequesairdobarerumaraoutrasparagens.

“Depoisfoiaqueda-livre”.

AbriramumcafénoBairrodoPinheiro.Osclientesnãoerammuitosedesapareciamcada vezmais.Queria ter uma saída de fumos no café, a ver se o levantava,mas a“senhoriadissequesimedepoisquenão”.

“Ocaféfoiumaburrice”,contaamulher.

Para não se enterrar em dívidas e deparado com uma crise precoce, que “já senotava”,numconcelhoafetadopelodesempregodelongaduração,acabouporfecharocaféeirparaodesemprego.

“Não, não, não. Cafés jamais!”, reitera a mulher, lembrando os tempos em que osfilhostinhamqueestarsempre“metidosnocafé”.Masessanemseráamaiorrazão.Oriscodeseaventuraremnarestauraçãoédemasiadograndeparaquerereminvestir.Estátudomuitocaro,são“aslicençasdeesplanada,dereclames,desinaisluminosos,de porta aberta, tantas taxas, tantos impostos, tanta coisa”… e, no pensamento deFernando,assaudadesdeestaràfrentedeumcafévãodesvanecendo.

Nãotevedireitoaosubsídiodedesempregoportertrabalhadoporcontaprópria.As“horitas”naslimpezasqueamulherfazsãooquelhesvaivalendo,que,antesdobaredocafé,amulherdeFernandotinha jáperdidooseuempregonoHotelTurismodaGuarda,queencerrariaportasem2010.

Sem subsídios, nem rendimento, apenas com 240 euros por mês da mulher naslimpezas,ecomumfilhode12anosemcasa,foramàspoupançasfeitasduranteumavida.Metade foi para amortizar parte do empréstimo da habitação, estando hoje apagar50eurosdeprestaçãomensalaobanco,eaoutrametade“foiparasobreviver”.

Mas o dinheiro acabou-se em 2012 e Fernando teve que ir pedir ajuda à CruzVermelha. Um choque, como o de outros tantos, que nunca pensariam ter querecorrer a instituições de solidariedade. Esteve quase para chorar à frente daassistente,corcovadoàsuacondição.

“Agoraéquedouvaloraoeuroqueaspessoaspedemparaestas instituições.Agoraseioqueéesseeuro,aquelamoedinhaqueagentelámete.Doeu.Doeumuito”.

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Não era de luxos, diz, no seu jeito simples. Almoçava fora quando “a miúda ou omiúdo”faziamanosepoucomais.Desde2006,lembra-sedeterjantadoumavezfora,eamemórianemseavivadoúltimodiaemquecomeuumbifeemcasa.Nãosepassafome,masremedeia-se:“ésóomínimoeoindispensável”.

Afamíliatambémnãopodeajudar,trêsdosseus irmãosjámorreram,eamãe,numlardeidosos,jánãooreconhece.

Duranteestesanosdedesemprego,coleccionoucursosdeformação,promovidospeloInstitutodoEmprego.Umdecarpintaria,outrodemediçõeseorçamentos,quenãoacabou por dificuldades no inglês, e ainda outro de marcenaria - o mais recente,possivelmentenãooúltimo.

Mas ter frequentado “os três cursos não adiantou de nada”. Procura, procura,masnadaencontra.Mandoutrintacartas, recebeurespostadeduas,eambas iguais:“demomentonãotemosvaga”.

Deixou-se de envelopes e selos, que tambémé dinheiro que se gasta, e começou aenviarcurrículospela internet.Conseguiuumtrabalho“avendertelefones”,masemtrêsdiasnãotinhavendidonenhumeaindaandavaagastardoseunasdeslocações.Nemsedespediu-apenasnãoapareceuaotrabalho,nodiaseguinte.

DeRSI,recebemuitopoucoefoisempreumamontanha-russaimprevisível.Em2012,recebia59euros,depois9eurose70cêntimos,durante6meses,voltoudenovoaos59,paranoiníciode2013aumentarparaos116eurose97cêntimos,eentretantojádesceu,estandonos96euros.RaramenterecebeuumajustificaçãoouumanotificaçãodadescidaousubidadoRSI.Apenasreparavanovalorquandorecebiaovale.

Nãosabecomoaguentacomodinheiroquechegaacasa.“GraçasaDeus,aindatenhoconseguido pagar a luz e a água.Mas se pagássemos renda… então aí passávamosfome.Eraimpossível”.

A filha mais velha já é independente, contudo, as despesas com o mais novo sãomuitas.ASegurançaSocial,depoisdosdoisficaremdesempregados,pagavaassessõesde terapia da fala ao seu filho, que tem dislexia e dificuldades de aprendizagem.Contudo,aalteraçãodeumaleiretirou-lhesesseapoio.

Nuncamaisoseufilhofoiaumasessãodeterapia.Nãotêmcomopagaros35eurosdeconsulta.

AimpotênciatomaFernando.Aindanoutrodia,ofilhopediuumcomputador.

-Ófilho,quemmederaamimdar-teumcomputador.

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-Mas tiras daminha conta, disse o filho referindo-se à conta-poupança que tem nobanco.

Sente-serevoltado,“maisdoquerevoltado”.Noseurostocalmo,tambémsenotaodesalentodeumdesempregoquenãotemfimàvista.Põe-senosótãoeentretém-sea cortar lenha com o serrote,muda umas coisas de sítio para passados uns dias asvoltaraarrumar,arranjaumcandeeiro,desmontaparavoltaramontar,evaiaocafédar uma vista de olhos no jornal e vê todos esses “senhoresministros que ganhammilhões,quase,”e“depoisosdesgraçados-queaindaoshápioresdoqueeu”.

Dizquetambémeleajudouopaís,quemuitodescontou,queempregoupessoas,quetambém contribuiu para a riqueza nacional, e agora o Estado diz-lhe que “não temdireitos”.“Nãotenhodireitoanada”.

Quer trabalhar,mas vê que não consegue. “Isto estámesmomau”, diz resignado afazer contas à vida. E volta-se para outros tempos, em que trabalhava,mesmo quesemfolgasnemnada.“Masissoagoraacabou.Pormaisqueseprocure.Pormaisvoltaquesedê…Tenhomuitassaudadesdisso”.

Jápensouememigrar,masouvemuitahistóriadegentequenãoconsegue,comodeumamoça a queixar-se no café de que esteve doismeses em França à procura deempregoetevequeretornarpornãoterencontradonada.

Fernandodizqueestámaisvelho,queestacoisadeandaràsvoltasnacasaàprocuradealgoparafazerconsome-lheacabeça.Edepoisnemgostadepensarnasuaidade,de que foi avô há pouco, que o rótulo de velho o possa incapacitar aindamais naprocuradetrabalho.

Recorda, ainda hoje, um momento que o persegue. Em 2012, dirigiu-se a umacarpintariaqueoferecia trabalho - foi a única entrevistaque teve atéhoje, em seteanosdesempregado.Eraa20quilómetrosdaGuarda,masFernandoláapareceu,coma carta do centro de emprego na mão. Dirigiu-se ao proprietário da carpintaria emostrouoseuinteressenotrabalho.

-Epá,sabe…Queidadeéquetem?

-Tenho54anos.

-Pois,euqueriaeraumapessoamaisnova.Comasuaidade…jávieramunsquantosdasuaidade,sóqueestãoaquidoisoutrêsanosedepoisvãoparaareformaeeuficoigual.

-Paciência….

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Engoliuemsecoevoltouacasa.“Perde-seamoral,umapessoasente-seinferior.54anos jánão serve, jánãopresta. Se ficarparao fimda vida sem fazernadanão seicomoéquevousobreviver”.

Fernandoeamulher fazemo jantar, remediadodesobrasdoalmoço.Aproveitamofogareiro de lenha, que aquece a sala e a cozinha, para esquentar a água, evitandoligaroesquentador.Apagamtodasas luzes,paranãogastaremenergia,edeixam-seficar sentados na sala, a ver a telenovela, sem certezas do futuro, à espera de umpróximoepisódio,commenosdrama.

“Éassim.Temqueser”.

Duas mães

Piedade começou a trabalhar muito nova, “com 14, 15 anos”. Tinha que ajudar afamília,depais conservadores.Amealhouosprimeirosdinheirosnos famososcestosdeGonçalo,pertodaGuarda.Mas,por lá,nãoandoumuitotempo.Casou-seaos16parafugiraoconservadorismoeaos17jávivianocentrodaGuarda,comumfilhonosbraços. Passado ano emeio veio o segundo,muitomais tarde veio a sua filhamaisnova,frutodeoutrarelação.Tomoucontadosmiúdosatéentraremparaaprimária,juntamentecommaistrêscriançasdevizinhos.Depois,fez-seaotrabalho.

Anabela tambémteveo seuprimeiroempregocom14anos.Commais sete irmãos,chegouao9ºanoenãotinhadinheiroparacomprarosmanuais.Viuotrabalhonumapapelariacomoformadeganharalgumaindependência,dealiviarospaisnascontasdacasaetambémdesemimosearcomumacasacadegangadamodaoucomumacassetedoGeorgeMichael.Aomesmotempoquetrabalhava,estudavaànoite.Tinhamuitos sonhos: queria ser educadora de infância, bailarina, estilista… “queria ser

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muitascoisas”.Pancadadajuventude,diz.Ocansaçovenceu-lheaforçadevontadeeacaboupordesistirdosestudos.

Piedade trabalhou na Gartêxtil, de onde saiu muito antes de a mesma declararfalência,em2005.Trabalhouempastelarias,nobalcãoemesas,edepoisdepôrumfimaumarelaçãomarcadaporviolênciadoméstica,foiparaaDelphi.

Anabelatambémláfoiparar.Depoisdetrêsanosnapapelaria,deumcursodecosturaindustrialedeumatentativafrustradadeemigração,naSuíça,entrounaDelphicom19anos,emchoquecom“todoobarulhoeaqueletrabalhoemsérie”.

O trabalhomecânico, compassado, valeu a Piedade umas quantas tendinites emaistempodebaixadoquedetrabalho.Arranjouumacordocomafábricaesaiuem2003.

Anabela ainda aguentou oito anos “de um lado para o outro” dentro da Delphi.“Recebia-se bem”. Era efectiva, mas depois do nascimento do seu filhomais novo,tiraram-na do seu posto e foi para o “enfeitamento” – um trabalho repetitivo eminuciosocomascablagensdosistemaeléctricodocarro.Aindaavisouagerênciadequenaquelepostonãoiriaaguentar,mas“ninguémacreditou.Nafábricaéassim:senãoqueres,aportadaruaéaserventiadacasa”.Tambémlheatacaramastendinitese,depoisdetrêsmesesdebaixa,negociouasuasaída.

Um ano depois de sair da Delphi, Piedade inscreveu-se no curso de auxiliar deeducação.Comofundodedesemprego,aproveitouparacriarasuafilhamaisnovaatéa pôr na creche. De seguida, abriu um snack-bar na Guarda. Tinhamúsica ao vivo,faziam-se filas à porta do café, à hora de almoço, mas “correu mal”. “Desvios dedinheiro…éoqueacontece”.Asuasócia,segundoconta,deixoudepagarascontasdocaféePiedadeacabouporsairem2007.“Apartirdaíforamsóproblemas,unsatrásdosoutros”.

“Parar é morrer”, pensou Anabela e assim que saiu da fábrica, candidatou-se aoscursosdoPolitécnicodaGuardaparamaioresde23anos.EntrouemComunicaçãoeRelaçõesPúblicas,aomesmotempoqueprocuravaemprego.Aofimdetrêsanosdelicenciatura,acusto,tinhaodiplomanamão.Jádivorciada,pensavaque,comocurso,poderiadarumavidamelhoraosseusdoisfilhos.Passadoumano,“zeropropostas”.

Piedade também não encontrou nada. E sendo mãe não pôde aceitar qualquertrabalho,quenãotinhaquemlheficasseaverdafilha.

Anabela teve melhor sorte. Em Setembro de 2010, já a somar quatro anos dedesemprego, recebeu uma proposta de uma editora para ir a escolas publicitarmanuais.“Láfui,prontaparaoataque”.Recebiabem,masdepressaoequilíbriofoi-sedesfazendo.

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Depois dedois anosdedesemprego, Piedadedecidiu tirar o cursode animação.Nofinal,estagioucomoauxiliardeeducaçãonumATL,noBairrodoPinheiro.Eraquasegarantidoqueficarianofinaldoestágio.

Otrabalho,quesódavadescansoaAnabelaàumadamanhã,começouadesgastá-la.Naeditora,atribuíram-lhemaisconcelhosparacobrir.Foi tercomacoordenadoraaqueixar-sedasituação.“ÓAnabela,entãosenãoconsegue,olhe,paciência,temosquecontrataroutrapessoa”.Eassimfoiembora,eassimvoltouaodesemprego.

Piedade acabou por não ficar no ATL. A Novembro de 2011, voltou a ficar semtrabalho, numa cidade onde os anúncios de ofertas de emprego não conseguemigualaraprocura.

Anabela ainda remoía a saída da Porto Editora. Gostava daquela roda-viva com osprofessores – “para quem não tivesse família, era ouro sobre azul”.Mas tinha queescolher entre os filhos e o emprego. E a corda esticava demais: “depois umdia osneuróniosiamdeférias”.

A situação de Piedade foi-se agravando, desamparada, sozinha, e apenas com orendimentomínimode250euros.Conseguiuumashorasde limpeza,nunsbares,aofim de semana, mas para recusar uma formação do centro de emprego teve quedeclararashorasquefazianosestabelecimentos–160eurospormês.AcabouporveroRSIaemagrecerparaos100euros.Derenda,paga250eosenhorioé“daquelesqueseatrasarumdiaestá-melogoachatear”.

Anabela também recebia RSI. Cento e poucos euros que se juntavam à pensão dealimentosde200eurosdoseuex-marido.Assimqueficoudesempregada,iatodasassemanas ao centro de emprego, mas apareciam mais pessoas, “cada vez maispessoas”. “AimeuDeusque istoestá tãomaupara tantagente…”,pensava.As idassemanais passaram a quinzenais, e de quinzenais a mensais. Desanimou-a nãoencontrarnadaevercadavezmaisgentecomoela,àprocura.Sememprego,tevequesevalerdaCruzVermelha,paranãocomersomenteàcustadamãe.

“Graças aDeus, tenho ajudas. Dosmeus pais, da Caritas e da Câmara”. Piedade vaibuscarrefeiçõesquesobram,nacâmara,eentraesaicarregadadefrustração-deterque suportar “uns olhares” que a sinalizam, e que evita ao ir depois das quatro datarde.Mas “encontra-se sempre alguém”. Contudo, esquece os dedos apontados enão permite sequer espaço para o pudor. “Não posso deixar a minha filha passarfome”.

“Osmeusfilhossaemafectadosdisto”,contaAnabela,lembrando-sedassolasgastasdassapatilhas,dacrueldadedasoutrascrianças.Asuagrandepreocupaçãoégarantir

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que os filhos não passam fome, tentando reconfortá-los na sua devoção: “…somospobres,mastemosDeus”.

OsfilhosmaisvelhosjánãopreocupamPiedade.UméGNR,outroComando.Masamaisnova,com8anos,dá-lhemedo.Medopeloseufuturo.“Muitomedo”.Esperapormelhoresdias.Temqueesperar.Deoutra forma,“oqueéque já tinha feito?”.Masdepois surgea condiçãodedesempregada,emaranhadacoma jádifícil condiçãodemãe,dedizer“não”tantasetantasvezesà filha,sejaaumqualquerchocolateouaumfatinhodeCarnaval.

AvidadeAnabelaépoucoagitada.Lêunslivros,vaitercomasuamãe,almoçacomela,vêumpoucodetelevisão,vaibuscarosfilhosàescola,dá-lhesbanho,“comerecama”.Ecomoprocurarempregoondeelenãoexiste?“Nãoháemprego.Ponto.NãohánadaaquinaGuarda”.

Piedadelembra-sedasbasescatólicas,tãoenraizadasnasBeirasde“pedrasepadres”,dequefalavaJoséCardosoPires,ouvindoamissadeque“setemqueaguentar”.Mascertasquestõesganhamforça:“quandotenhocoisasparapagar,enãomeimportodetrabalharnoquequerqueseja,porqueDeusnãomeabreumaporta?”Tudoportasfechadas,enasmissasnãoencontraaféqueprecisava.Fechatambémasua.Deixa-seficarporcasa,tirandoahoradeirtomarcafécomasuacunhada.Nemumpasseiofaz.“Olharparaasmontras?Issoéumatortura!”

Anabelarecordaoquelutouparatirarocurso,afincada;orgulhosadesóteridoaoralaumaúnicacadeira.“Penseiqueavidaiamelhorar,masolha,estamosassim”.

Piedadenão tem saudades de luxos porquenuncaos teve,mas gostava de voltar aumacertatranquilidadequetinha,háunsbonsanosatrás.

“Sinto a frustração da inutilidade”, desabafa Anabela. Ver-se assim, a querer fazeralguma coisa, qualquer coisa, e a não poder. Olha para Portugal como um “país dedepressivos”.“OqueháemPortugal?Desemprego,desemprego,desemprego”.

Piedadefoi,nesteano,aumaentrevistaàCERCIG,casadereabilitaçãodedeficientes,eficouconvencidadequeolugarseriaseu,atéasrestantescandidatasqueesperavampelasuaentrevistalhodiziam.

Anabela também se candidatou a uma proposta de emprego, como administrativanuma associação, mas entrou derrotista a pensar: “pronto, mais uma”. Nem ianervosa,quechega-seaumaaltura“emquejásecoleccionamentrevistas”.Recebeuarespostadesempre:“sedepoisaquisermos,contactamos”.“Oclássico”.Umasemanapassadaeaindanãolhetinhamditonada.“Anabela,esquece”.

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Piedaderecebeuachamadaadizerquetinhaficadoem2ºlugar.

-Olhe,maisvalianãoterditonada.

-ÓDonaPiedadeéparaocasodeseaprimeiracolocadadesistir.

-Mesmoassim,maisvalianãodizer.

Antes ficasse em último, pensou. Ficou triste, desconsolada… até já andava amentalizarapequenaqueteriaquealevantarmaiscedo.

Passadosemanaemeiadaentrevistadeemprego,Anabelarecebeuumtelefonemaànoite.“Foiseleccionada”,disseramdooutrolado.Ficouincrédula.“Querialásaberseeram300ou400euros,o importanteera sentir-meútil, estarnoactivo”.Mas tudocontinuaaserumaincógnita.Nãosabeodiaemquevoltaaodesempregoe,senãofossemosseusfilhos,játinhasaídodePortugal.Jánãoquersereducadoradeinfância,nem bailarina, nem estilista, como quando sonhava de volta de pancadas dajuventude.“Nãoposso.Jánãotenhometasnemsonhos”.

NodiaemquePiedaderecebeuanotíciadequetinhaficadoem2ºlugar,asuafilha,deitadanacama,àesperadobeijodeboasnoites,disse-lhe,emesperançasquenãosepagam:

-Mãe,sonhaqueaoutrasenhoranãovaigostardoemprego.

Piedadenãosonhoucomisso.“Nãovaleapena”.

Narrativas incompletas III

DesdeAbrilqueGustavoeIvone,amorarempertodeAveiro,nãotêmgás.Aspanelasnacozinhaestãopretasdeusaremalareiraparacozinharem.“Sequisertomarbanho,peçoàsenhoria,ponhoáguaquentenumalguidaretomobanhoassim”.Porvezesconseguemunsbiscates,masmesmoassimnãodá.“Devemosemtodoolado.Nãotemosdinheironenhum.Temosumadívidadepãode11eurose60cêntimos”.Parairapéaobanco,Gustavodemora25minutos.25minutosparacontornarcasaseominimercadoondedevedinheiro-atalhosalongadosparaescaparàvergonha.“Euqueropagareeuquerotrabalhar,mascomo?”.

Jorge,de44anos,estádesempregado.Amarmorariaondetrabalhava,hámaisde30anos,fechou.Umcolegaseugaba-lheamestria:“eleeraoartistadapedra.Seelenão

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tiverempregomaisninguémtem”.MasJorgenemcomoelogioseanima.“Comestaconjuntura,sópormilagre”.EJorge,oartistadeorgulhoqueseencobrenamodéstia,olha para o futuro amedo. “Jáme falaramde ir para aAmérica,mas custa desistirdisto.Custa”.

AntóniodosSantos,reformadodeIdanha-a-Nova,esteve5anosemFrança,quandoseemigravaasalto,nosanos60,nomeiode“gentedetodaaraça”.Custou-lhemuito.Nãoécomopintamnatelevisão.“Agentefalar,falaoportuguêseneméocorrecto,então para lá, como é que a gente ia compreender os estrangeiros? Era tudo tãodifícil”.VoltouparaPortugalehojevivenumdosmil lugarejos isoladosdoconcelhoraiano. Água para beber, têm de ir buscar à fonte. Casa de banho é o mato quecircunda a pequena casa. E depois toda aquela solidão a queMaria e António dosSantos estão confinados. “Nós sempre tivemos isto e a gente tem vergonha de sequeixar”, dizemde forma tímida,quando fazemcontas às reformas, ao saneamentoque não têm, a um Portugal evoluído que por ali não passou. Nas despedidas,apresentamasuacertidãoportuguesa:“enquantopudermosirpassando…”

a hesitação de quem veio e de quem foi

Entre ir e ficar Fátimaébrasileira.Cristinaportuguesa.FátimaveioparaPortugalàprocuradeumavidamelhor,longedeumBrasildesigual,ondechegouapartilharochãocommaisseispessoas.Cristina,queemigrouparaaHolanda,voltouháquatroanos,decididaatera

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filhanoseupaís,longedequalquerracionalismo.Asduasmulherescontinuamporcá,masas incertezas levamao equilibrismodepés assentes numa cordabamba, poucoseguros.Nãosabemquandoéqueopaísaslevaráasaltareafazerocaminhoinverso.

A emigração, outra vez?

Cristina1apaixonou-seaos16,saiudecasa,começouaestudareatrabalharaomesmotempo,teveumesgotamento,deixouosestudosparatrás,fartou-sedoscontratosdetrêsmesesquenãoeramrenovados,disseadeusàpequenaLousãe,aos18, semosecundárioterminado,mudou-separaaHolandacomoseunamorado,agoramaridoepaidosseusdoisfilhos.

Durante quatro anos integraram uma empresa de trabalho temporário. Cristina, desorriso estampado, lembra-se desses quatro anos todos os dias. Todas as horas detrabalho, fossem elas em fábricas ou nas campanhas das flores, valiam-lhes um1Nomefictício

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conforto económico que nunca tinham tido e que nunca mais tiveram. Dava paramandardinheiroparaPortugal,parajantarforaeparapegaremnocarrodopatrãoerenderem-seàspaisagensplanaseordenadasdosPaísesBaixos.

Comavidaestávelesossegada,CristinafeztratamentosnaHolandaparaengravidar–um desejo que carregava desde adolescente. Por ela, aos 16 já teria um filho nosbraços. Insistiu e desistiu - amedicina não lhe respondia ao desejo de sermãe.Noregresso a Portugal, no Natal de 2008, Cristina descobriu que estava grávida de 5meses.Decidiramteracriançanoseupaís,numatodealgumainconsciência,decididoàstrêspancadas,quenãohaveriatempoparaumaquarta.Opatriotismoromântico,alimentadoporsaudades,acabouporfalarmaisalto.

“Foiomaiorerrodaminhavida”.

AfilhanasceunaLousã,longedafrustraçãofutura.Omaridoconseguiuumtrabalhonaconstruçãocivil,emLisboa,masdepressasaiuquandoseapercebeudequenãoiriareceber “um cêntimo” – o primeiro cartão de boas vindas. Sem emprego, nemperspectivas que aparecesse, valeram-se, durante dois anos, das poupançasamealhadas na Holanda, que rapidamente se encurtaram com aquela mudançainopinada de vida - com mais um a fazer parte da família e Cristina e o marido ahabituarem-seaessanovacondição,bonita,masexigente:serempais.

Cristina sentiu-se desamparada, sem ajudas, com uma crise económica a encurtarperspectivas, com o dinheiro poupado a desaparecer, com “coisas emais coisas” ateremdesercompradasparaafilha:“aspapas,asfraldas,osbiberões,aschupetas…sãocoisasquenuncamaisacabam”.Enãoevitacomparar,constantemente,PortugalcomaHolanda,acalcar,semprequepode,asdiferençasmastambémomalogrodeterdecididoficar.

E chega-se a ummomento em que as poupanças acabammesmo, em que não hádinheiroparafraldas,paraaspapas,paraosbiberões,parapagararenda, luz,água,gás… E o que fazer? Surgemdecisões desesperadas, admite.Mas, se voltasse atrás,voltariaafazeromesmo-omaridocomeçouavenderdroga,movidopelaafliçãodeteraliumacriançaeoutraacaminho,semavisoprévio.

“Nãocustoutomaressadecisão.Nãomeorgulhodisso,maseraaúnicasolução”,diz,sem grandes rodeios, apesar da vergonha inicial em falar do assunto. Mas não háarrependimentoelegitima-senafaltadeopções.“Setivesseumtrabalho,nuncateriafeitotalcoisa”.

As pequenas quantidades que omarido vendia davam para pagar as contas,mas apossibilidadedeumabuscaàcasa,levou-osaparardeimediato.

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O marido voltou a conseguir trabalho na construção civil e Cristina trabalhou numhotel,numafábricadeumabebidaespirituosaeemlimpezas.

Voltaram a ficar desempregados e decidiram ir para Coimbra, no final de 2012,deixandoparatrásaLousãealgumascontasporpagar.AindapensaramemvoltaràHolanda. Várias vezes, antes e depois de ir para Coimbra, pensaram em voltar àHolanda,masoantigopatrãonãoaceitavaquelevassemosdoisfilhos.

Com 26 anos, com os seus “pequenos” de quatro e de dois anos, Cristina esperavauma vida mais segura em Coimbra, talvez um emprego, estabilidade nos níveis deglicemiadafilha,queédiabética,ealgumacalma.

Omarido voltou a trabalhar na construção civil. Chegava a estar “24 horas fora decasa”,parabiscateseobraspontuais.Semcontrato.Emtroco,opatrãopagava-lhearenda,asdespesasealgumadaalimentação.“Nãopodemosobrigarohomemafazerocontrato…”,diziaCristina,deombrosencolhidos,resignada,queajudavacomumashorasdelimpeza,incertas.Tambémnãodeclaradas.

O primeiromês em Coimbra foi um rebuliço, e notava-se pelo estado de Cristina -nervosa,agitada,impaciente-,alembrar-sedasmileumacoisasquetinhaquefazer.

“Étentardar-lhesbanho,irversehátrabalhonocentrodeemprego,iràescolaparaconfirmar que tratamde dar insulina àminha filha, depois tenho que ir ao hospitaltratar de um problema que tenho nas amígdalas, tenho que pedir o rendimentomínimo,edepoisentrámosnacasaeasenhoriadissequenãohaviahumidadeeagoraé bolor por todo o lado (mas foi o mais barato que arranjámos), e agora estamosdesesperadosparaencontraroutracasa,eéopaiquechegaacasaàmeia-noitedotrabalhoeosfilhosnãosequeremdeitarsemveropai…”

Cristinarespira,fazumcigarrodeenrolar,dirige-seàjaneladasaladaquelacasaquesóadeixa“nervosa”,efuma,atentaresquecer-sedosproblemas,nomeiodosberrosqueosmiúdosvãodando, cantigase choros,numaagitaçãosemelhanteàquelaquelhepassapelacabeça.

E,nocantoda sala, surgea cadela,pequenaedepêlo finoe loiro, calma, segura,aobservar tudo,deitadano sofá, comose fosse suaobrigaçãogarantir apazna casa.ComonosdiasemqueviuCristinaachorar,nervosa,apedir-lheparairembora–“jánãotepossover”-,eela ia,devagarinho,comacabeçabaixaeficava-senospésdeCristina,comoselhequisessedizerquetudoiaficarbem.

Masnãoestava.Nemoscalmanteseanti-depressivosadeixavamdormir.Sentiaqueiam perdendo o efeito, de tantos que tomava, numa tentativa de libertação dosdesvariosquotidianos.

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“Deus encarniça-se contra osmais fracos”, desabafa no parapeito da janela a olharparaaconvulsão.

E,parasobreviver,iamfazendoostrabalhos“porfora”,quesempredava“paratrazeralguma comida, algumdinheiro”.Mas junta-se algumdinheiro e logo se perde e segasta.HerdaramumaspeçasdeourodasogradeCristinaetiveramqueasvenderdeimediatoparapagarcontasenãoficarcomacasaàsescuras.

Tornaàimpotência,aonervosismo,aoapertodenãoconseguirdaraestabilidadequeasuafilhaprecisa,deveracasaaatormentar-lhesasaúde,denãohaverdinheiroparaarenda,queopatrãodomaridodizqueaindanãoapodepagar.Chegouapensarsenãoteriadesairdacasae“terdedormirdebaixodaponte”.“Oupagamosumarendaoudamos-lhesdecomer”.

Tudo se torna difícil, muito longe da sua Holanda, país onde “tinham tudo”, paraagora, neste seu Portugal, terem “tão pouco, quase nada”, persevera Cristina,relembrando-sesempredeterconfiadonoseupaís,queaquipoderiaterosseusfilhosequeaquipoderiasentir-sefeliz.

“AspessoasaquiemPortugalsãomuitomesquinhas.Secalhartiveazaremalgumaspessoas que apanhei, mas as que apanhei… É que queremos e não conseguimos.Parecequenosqueremcortaraspernasparanãoandarmos”.

Cristina ia procurando trabalho,mas não o deslindava. No centro de emprego, nosjornais, no café, nas conversas com conhecidos. Num deserto de ofertas, nem asmiragens lhe brotavam pelo caminho. Os passos, sem ilusões nem vislumbres, iamdiminuindo,eaimobilidadepareciavencer-lheabusca.Sentiaanavalhaaroçar-lheaspernas-aamputaçãodeesperançastãoperto…

“OEstadoestá-senas lonasparanós.Dizpara termos filhos,masdepois seagenteficarmalnãonosajuda”.

OdesesperodeCristinafazia-aaceitarqualquercoisa,seaparecesse,seaparecesse...“Euatéiaparaomatotrabalharpor200ou300eurospormês.Mesmoquefossemasoitohorasdiárias.Aomenosjápodiacomprarcomidaemcondições,garantiraminhaindependência,dar-lhesalgumsossego…”

Mas,noiníciode2013,nãosurgiaqualquerproposta,nemporesses200eurosquelhefaziamfalta…seaparecessem.Cristinadeixava-seabater,cansada.“Cansamaisestarsem trabalhar. É cansativo, é triste, é desesperante. E depois tanto tempo parapensar…”. Nos tempos mortos, que eram muitos, passava-os em casa, fechada, dejanelasfechadas,“tudofechado”,eficavanosofá,fechadanelaprópria.

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“Umdiadigoàassistenteparame internarnohospício.Estoua ficarmaluca.Nuncamevinestasituaçãoanãosernestepaís.MasaculpanãoédePortugal,édequemogoverna.LánaHolanda,podemterreierainha,massabemgovernar-se.”

Fumava mais um cigarro para escapar à situação, ou roía as unhas, enquantoprocuravatrabalhonocomputador.“Olhoparaocomputadoreelenãomediz:“olha,tenhoaquitrabalhoparati”.Surgempropostasdetrabalhoespectaculares,masnemtelefonetêmeumapessoamandamaileninguémresponde”.

Edepoislávoltavaaressurgiroreinodaconfusão,dosmiúdosaberrareachorareapedir coisaseaatirar culpasumparaooutroeadesarrumarema sala…por vezes,Cristinaperdiaanoçãodascoisasedesatavaagritarcomosfilhos-momentosemquesimplesmente não consegue separar os problemas, a agitação. Como se fosse tudopartedamesmaentropia.

“Sãoinquietaçõesatrásdeinquietações.Problemascomosmiúdos.Problemascomahumidade desta casa. Problemas com a senhoria. Problemas com a creche.Problemas”.

Passava as noites a chorar, amassacrar-se por não fazer a separação entre os seusproblemas e as crianças, por se sentir impotente enquanto mãe, ela, Cristina, quesempre o quis ser. E omarido ouvia as frustrações e também lançava as suas paraCristina.Multiplicavam-se osmomentos de discussão, emque não conseguiam “daramorumaooutro”.Discutem,imergememproblemas,mascontinuamjuntos:

“Gostamosmuitoumdooutro,porquemesmocomobarcoafundado,mesmoassim,comtantoproblema,tantainquietação,estamosunidos,estamosjuntos”.

Hátambémoalentodosseusdoisfilhos,reguilas,inquietos,irrequietos,quesempreafazem rir,mesmoquando se lembrade tudoo resto. “Obomnomeiodisto tudoéestesdoischatinhos”.

Mas“istotudo”temforçaenofinalde2012,sentia-sedepésemãosatadas.“Chegoao pé das entidades patronais, nem digo que estou na miséria, mas conto o meuproblema,queaminhafilhaédiabética.Digoquepossofazerosfinsdesemana,mastenhoquelhedarinsulinaeelesnãocompreendem.Querotrabalharenãoposso.Issorevolta-me:quererfazerenãopoder”.

Decidirampedirorendimentomínimo,emDezembrode2012.Masfoi-lhesrecusado.“Nacartadiziaqueomeumaridorecebeu,háquatromeses,400euros.Agentenãosabedeonde.Emesmoassim,paraqueéqueesses400eurosdão?”.

EmJaneiro,dos160eurosdeabonopassaramareceber80.

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Cristina continuava a não querer queixar-se do patrão do marido, agradecida pelopoucoquelhedava.“Odinheironuncachega,masajuda-nosmuito.Vaiàscompras,traz-lhetabaco,filtros,pagaascontas”.

Porém,comocortenoabono,deixoudeterdinheiroparapagaroinfantário.Oueraacrecheoueraacomida.Nãotinhacoragemdeiraojardim-de-infânciaecontaroquesepassava-chegarláedizerquenãotinhadinheiro.Nãoconseguia.Avergonhanãoadeixou.

E as dívidas somavam-se. O infantário, a água, a luz, algum fiado… Não hárestaurantes,nãohácafés,nãohápasseios,asrefeiçõessãoencurtadaseporvezesháremedeioscompão,paraqueosfilhoscomambem.“Éimpossívelpouparmais.Todoodinheirosevai.Todo”.

“Cá, em Portugal, estamos completamente sozinhos”. E teima e teima e teima noporquêdetervoltado.

Aindaporcimaaveromaridoatrabalharcadavezmaishoras,eodinheirosempreafaltar,escasso,rareado,eopatrãoadizerquenoutrodiapagaarenda,quenoutrodialhescompracomida,quenoutrodialhespagaaágua,eCristinaeomaridoentreguesaumagratidãoservil,naquelepagamentogotaagotae irregularquelhesgarantiaasobrevivência.

Mudaram-se finalmente de casa, coma ajuda do patrão,mas a situação económicanãosealterava.Omaridomaismagro,maiscansado,aacatartudopor“meiadúziadetostões”.Umdiaparou,pordesavençascomopatrão,fartodeestardisponívelatodasas horas para trabalhar e de não receber dinheiro nenhum por isso - apenas opagamento de contas para que se mantivessem de pé. O marido não aguentou eacabou com a submissão. Deixou de lado os agradecimentos anteriores e pôs fim auma exploração submetida à necessidade. O marido de Cristina, qual operário emconstrução,dissenão:

“Estoucansadodeserrebaixadoquenemcão.Pormaispobrequeseja,nãomereçoisto”.

Não.

Acoragemfoigrande,masveiodepoisaincerteza,maisimplacávelquepoesia.Comoiriam pagar a renda dali a 15 dias? E a creche? “Os miúdos já não podiam ir aoinfantárioporfaltadepagamento”.

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Nummomento, comosedivinoaosolhosdeCristina, tudosecompôs.Omarido foipedir empregoaumantigopatrãoda Lousã, enquantoa família fazia figasporumarespostapositiva:

“Olhe senhor A., eu precisomesmo de trabalho agora. Tenho os pequenitos e nãotardamuitoaassistentesocialtira-mos”.

Passada uma semana, estava a trabalhar. Recebeu os primeiros 15 dias a tempodepagararenda.Orendimentomínimoacabouporchegar,depoisdenovaapreciação.350eurospormês.Veiocomretroactivos–1800eurosacontardesdeJaneiro.Cristinapegounodinheiroeliquidoutodasasdívidas.Pagouaágua,ogás,aluz,oinfantário.Poucosobrou.

E Cristina respira, sorri, no meio da sua nova casa solarenga, esta sem humidade,composta,tudoarrumado,longedaconvulsãodetemposrecentes.

Aindahápouco,namesmacasa,umassemanasantes,tinhatudofechado,eCristinadecoraçãonasmãossemprequeouviaacampainhatocar,àesperadequealguémláfossebateràportaparalhecortaraáguaoualuz.

Cristina tambémencontrou trabalho. Cuidadeuma senhorade60 anos, que sofreuumatrombose.Tratadeladasnovedamanhãàstrêsdatarde.Evoltaàsseteparalhedar o jantar. Recebe 300 euros, explica, de cabeça baixa, envergonhada e a voz asumir-se, comum sorriso feito de vergonhas e ilicitudes. “Aomenos assim, limpo aminhavidadedívidas.Aajudaqueistodá…”.

NemCristinanemomaridofazemdescontos.AindanãoqueremdarbaixadoRSI.Sócomeçam a declarar quando tiverem a certeza de que a situação se compõe, quenenhumdosdoisperdeoseutrabalho.

Étudo“incerto”.“Eseasenhoradequemcuidojánãomequiser?Eseomeumaridoficaroutravezdesempregado?”.Apesardetudo,Cristinaestámaiscalma,oinfantárioestápago,asdespesasdeágua,luzegáspagas,arendaemdia,acasaondeestãojánãotemhumidade.

Nota-seumaquietudenuncavistaemCristina,feliz,aandarnosupermercado,comascriançasdemãodada,enquantocompracoisasqueantesnãopodiacomprar-peixefresco, fruta, iogurtes.Osmiúdos jánãogritamtantoeacadela jánãoprecisade irparaospésdadona,asocorrê-la.

AcalmapodesercircunstancialeCristinasabedisso.“Enquantoopaísestiverassim,nuncasesabe.Masnãosepodepensarnoamanhã.Sóvemansiedadeedesespero.Sópensonoquevoufazerdejantarechega”.

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Tentamentalizar-sequeestátudobem,que,apartirdeagora,jánãovaifaltarnada.Mas, aomesmo tempo, revolta-se com o seu país, antevendo um futuro dúbio, naincertezatorturantedenãosaberseamanhãcontinuaráareinaracalmanasuacasa.

“Não gosto de Portugal. Cá não temos nada. Tenho vergonha de ser portuguesa.Gostavadeiràtelevisãodizerisso.Eutenhovergonha.Vergonhadesteestado.Dequevale terHistória?Estamosaperder tudo. Estou cadavezmaisnervosapelopaísemqueestou.Étristeser-seportuguesa.Terpensadoemteraminhafilhacáfoiomaiorerrodaminhavida.Omaiorerro.Tenhotantassaudadesdeestarláfora.Avidaqueeutinhalá…apazqueeutinhalá…”

Seforpreciso,Cristinaestáprontaepreparadaparavoltarasairdopaísque,comosmeninosmaiscrescidos,talvezfossemais fácilhojevoltarparaaHolanda,depoisdequatroanosatentarviveremPortugal.

“Nãosabemosoquenospodeacontecer.Podeserquetenhaqueemigraroutravez.Sabiaqueosmiúdosiamchorarbabaeranho,massetiverqueser,temqueser.Queistodesermãeemulher,conseguimostudo”.

A tentativa de fuga a um naufrágio

Maria2estáemcasaeouveamãepor telefoneapedir-lheparavoltarparaoBrasil.Não é a primeira vez nem será a última. “Eu vou pensando”, respondeMaria, semcertezasdoquediz.Passadopoucotempoligaaumaamiga,queredobraasprecesdamãedeMaria.

-Issoaíestátãoruim.Estousóvendonatelevisão.Issoestáafundando,mulher!Saltaforadessebarco.

-Nãosourato,não.Ratoéquembazaquandobarcoafunda.

-Masvocêvaiafundarcomessebarco?Masessebarconãoéseu!

-Masfoiumbarcoquemesustentoumuitosanos.

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-Masvocênãopodefazernadaparaajudar.

Calou-se.

“Éverdade”.

VeioparaPortugal,há13anosatrás.Vieramprimeiroosirmãosdoseumarido,depoisoseumaridoe,finalmente,Maria,comduascriançasaindapequenas,tentarasortenumpaísquepoucoconhecia.“VoltaramtodosparaoBrasil.Quemconseguiuequemnãoconseguiu”.

Apenas ficou Maria, convicta numa promessa que fez a si própria enquantosobrevoava o Atlântico: “se eu for e não conseguir realizar o que fui buscar, por láfico”.

ComeçouemVilaNovadePoiares,“aldeola”,comparadacomIpatinga,suaterranatal,pertencenteaoestadodeMinasGerais,seisvezesmaiorquePortugalecomodobrodapopulação.

A promessa de uma vida melhor não se concretizou. O marido trabalhava naconstruçãocivil,porvezesaté“àstrêshorasdamadrugada”,masalegalizaçãotardavaemchegar...Opatrão,“paraoadoçar”,financiouaspassagensdeaviãodeMariaedosdoisfilhos,parao“continuaraterlácomoescravo”.

Maria iria legalizar-se a partir do marido, como tinha acontecido com os seuscunhados. Acabou o prazo para a legalização, pediu os documentos ao patrão e“nada”.“Eeleaaceitarumsaláriodemiséria,deixou-selevarnaconversa…”Cansou-sedepuxaraorelhaaomarido,elançouoconselho:“Saidessa”.

Apenassaiuquandoopatrãoomandouemborapor ter ido levarMariaaohospital,chegandomais tarde ao trabalho. O patrão deu-lhe uma semana para desocupar acasa.“Entreiempânico”,dizMaria,quesaiudecasaquandoestavaareceber“dosesdemorfina de cavalo” por uma pedra que tinha na vesícula. Ficou em casa de unscunhados, doente, a chorar “noite e dia”, e só chuva a cair, o tempo gelado,muitodistantedocalormineiro,easduascriançaseodesgostoeaincertezaeasameaçasdemortedopatrão…

Acabaramporvoltarparaoantigosenhorio,quandoopatrãofoiemboraparaÁfrica.“Separou-se da mulher e foi por lá assassinado, que deixava obra inacabada etrabalhadoressempagar”.

Omaridoarranjou“patrãoaquieali”,mastornavasempreàmesmaservidão:“elenãosesabiaimporehaviasemprealguémqueseaproveitavadasituação”.

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Mariacuidavadeumaidosa,suavizinha,aomesmotempoqueencontravaemPoiaresuma “família”, recordando-se do agasalho que encontrava à porta de casa, dasbicicletas,dos jogosparaascrianças, coisasquenunca tinhasonhadopoderdaraosseusfilhos,“mesmocomtantoqueeutinhatrabalhonoBrasil”.

Em 2003, aproveitou o acordo luso-brasileiro, assinado entre Lula da Silva e DurãoBarroso, para se legalizar a ela e aos seus filhos. Omarido recusou, com o orgulhoferidopelasubserviênciacontínuaaquesesujeitou.“Estádoida?Dardinheiroaessepessoal?”.Marianãolhetiraarazão.“Elefoimuitotorturadocomoempregado.Nãodeumuitasorte”.

Entretanto,Maria foi trabalhar para a Câmara de Poiares. “Trabalhei de cantoneira,enxada e motosserra, facão, desmatamento de floresta, faxina, desentupimento defossa.Fizdetudo”.Foichefedeequipa,masoorgulhodaposiçãofoisuplantadopelosolhares,jeitosecomportamentosracistasemachistasquesempresentiunotrabalho.

“Elesolhavamparamimepensavam:obedeceramulher?Aindaporcimabrasileira?”.Preferianão ter sidochefe,nãoapenaspeladiscriminação,maspela suaposturadeassumida operária formiga. “Que é que eu tenhoparamandar?Obedecer émelhorquemandar.Mandaréapiorcoisaquetem”.

Depoisdeumempregona juntade freguesiadePoiares, onde foi “paupara todaaobra”, começou a trabalhar nas limpezas. Umas em Coimbra, outras em Poiares.Enquanto Maria se dividia entre os dois concelhos, o marido ia para Espanha, àprocurademelhorsorte.Ficousozinha,jácomtrêsfilhos,umameninaedoismeninos,ecomdinheiroincertoavirdeEspanha.

Omaridoregressouemudaram-separaCoimbra.Marianaslimpezaseomaridocomuns biscates para o senhorio. Mas “não se impunha, não lutava pelos direitos”, e,nessa frustraçãocontínua,semtrabalhoregular,começouarefugiar-senochurrascodomingueiroenabebidacomosamigos.

Maria chegava a casa e encontrava resquícios de festa por todo o lado - sobras decomidamineiraeasdecepçõesdomaridomaterializadasem“garrafadecerveja”.EMaria, como formiga que era, enchia-se de trabalho, cansada, sem férias nemdescanso,semprecomgenteaperguntar-lhesenãotinhaumashorinhasamais.

A determinada altura, esgotada de chegar a casa e ver aquela festa de cigarra,sentindo-sesozinha,abandonadanumalutaquedeveriaseradois,Mariadeixouumavisoaomarido:“Sevocêquervivernessacasa, sequerserumhomemcomodeveser,umpai comodeve ser, temqueparar.Mudadeatitude. Jáestou fartadeviversozinha”,disse,semmedonemrodeios,convictaede ideiasfortes,quese lembravabemdapromessaquefezàmãe,mulherquesempreviu“alevarporrada”doseupai:

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“eu quero um príncipe ao meu lado. Eu não admito pouca coisa, não. Pai diz quemulherhonestaécega,surdaemuda,entãoohomemtambém.Nãoésómulher”.

O clima, também marcado pelas brigas entre o filho mais velho e o pai, ganhavatensão.Ofilhosemprerecusouaautoridadedopai.“Minhamãequemeabraça,quemebeija,que cuidademimquandoestoudoente,minhamãeéquemeveste,quecomprameusmateriaisescolares,minhamãeéquevaiàreunião,minhamãeéquecompra os remédios, é que fica na cabeceira quando estou doente. Na hora queprecisademedarcorrecção,éosenhorquemevemdarporrada?Não”.

Omaridosaiudecasaa3deMarçode2009,dataquetemapontadanotelemóvel.Maria,pelaprimeiravez,tirouférias.

Masdefériaspoucoteve,comomaisnovoaperguntarpelopai,aquererveropai,eopai não atendia sequer o telemóvel para falar com o filho. Resolveu esquecê-lo eterminar21anosdecasados.

OmaridovoltouparaoBrasil.

FicouMaria,comostrêsfilhosetrabalhoquenuncaacabava,desdobrando-seemdiasqueporvezesterminavamàumadamanhã,incluindosábados,domingoseferiados,achegaracasaeterquesermãe,e terque limpar,e terquefazercomida,e terquelavarroupa.Osonoficavaparaquandomorresse.

Voltou tambéma alimentar a sua vontade em se educar, interrompidapelo seupaiqueachavaquefilha“éparaacabarnabeiradofogãodealgumhomem”.Ouviufalardo programa Novas Oportunidades e decidiu tentar tirar o 9º ano. Não era o queestavaàespera.

“Aquilo é uma vergonha. Eles não estão ali para ensinar nada. Estão ali parareconhecer o que você sabe. Sóme deram um papel. Não aprendi nada. Qualquerdocumentosefalsifica,agoraoquetemnacabeçaéimpossível”,contadesgostosa.

Nãocontinuouaestudar.

Entretantosurgiramcomplicaçõesnotrabalho.Esgotouasuapaciênciacomumadassenhorasaquemfaziaumashorasdelimpeza,queaprovocava,fossecomadevoçãoacérrima de Maria a Lula, fosse com o facto de a sua filha estar numa “escolaparticular”sempagarporisso.“Elaeratãobaixoastral.Paraelaestavatudofeio,tudomal”.

Maria,pelocontrário,surgiasempreasorrir,cheiadeforçaedevida.Umdiaouviuasenhora queixar-se de alguém ter dado emprego a uma ucraniana e não a uma

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portuguesa. Impulsiva, sem qualquer tipo de contenções, Maria virou-se contra “afaltadefinesse”dapatroa:

-Eunãosouportuguesaeháaítantosportuguesessemtrabalho.Temomeudinheiroparaacertarascontas?

Deixou-lheachaveefoi-seembora,desanguequente,talvezseguradasoutrashorasfixas que tinha. Depois dessa saída, perdeu a idosa de quem tratava três dias porsemana,quefoiparaumlar,amédica,quefoiparaoPorto,eaindaoutracliente.

“Agoranão tenhonadacerto”,diz, semsequer senotararrependimentodaatitude.“Nãodeixoquesejaapedrejada”.

Nessaaltura,tudo“erafácil”,arranjavamuitashorasparafazerlimpezas,horasatéamaisqueaenterravamnumcansaçomisturadoemadiçãodecalmantes.

Jálávãotrêsanossemvoltaravislumbrarafacilidadedeoutrostempos.Osubsídiodedesempregojáacabou.VivedoRSIedehorasdelimpezaincertaseescassas,quenãodesconta.

Mesmo assim, desencantada, não quer voltar para o Brasil. Lembra-se logo dos“homensdamotinha”,decapacetenegro, todosvestidosdenegro,numamotasemmatrícula,queatiravamematavam,fossenumcafé,numapraça,ounumaesplanada.“Eu não quero saber das oportunidades do Brasil agora para nada”. Aqui estádescansada,nãovêaviolênciaquea traumatizou,de ir,porexemplo,àprocuraemBeloHorizontedeumdosseusirmãosmorto.

Contudo, às vezes, contradiz-se e põe-se a pensar se vale a pena continuar porPortugal.

“Atéasaúdeestãoapensaremtirar.Esetirar,eunãotenhomesmoporestaraqui.Ruimporruimestounaminhacidade.Dojeitoqueistoestá,daquiapoucovaihaverviolência como há no Brasil. No Brasil, há violência por causa das desigualdades.Sempre vi isso. As pessoas invejavam o outro que tinha demais e eles não tinhamnada. O que tinha muito pisava o que não tinha nada. E então essa desigualdadeabsurdacomeçouafazeratritoeseparação”.

E cá sente que “isso vai acontecer tão breve quanto isso. A maneira como eles[políticos]estãoafazer,senãotivercondiçõesnenhumasparaviveraqui,tambémnãofico…”

Talvez,seobarcoafundarmesmo,Mariasaifora.Maslogovoltaadizerquenãoquerregressar ao Brasil, e anda nesta corda bamba, sem saber se fica ou se sai. Quersingrar,masjánãosabecomo.

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Eolhaparaaspessoasdesesperadas,edá-lhearrepios,comosesentisseum‘déjàvu’.“Quandohádificuldadeparavivereparasecomer,aspessoascomeçamporseatacarasiprópriasedepoisatacamosoutros”.

Cresceu nesse meio, nesse Brasil longe de Ipanema, de ordens e progressos, econsegue ver tudo isso,mesmo admitindo que não tem qualquer entendimento depolítica.“Vocêvêumapessoamorarnumcondomíniofechadoenquantooutromoranum barraquinho de madeira sem piso, só terra, sem saneamento, sem luz, semnada!”.

“Eunãoeracapazderoubarparasobreviver.Foipor issoquevimparacá.NoBrasilnãohaviaoutraalternativa”.

Ehojeestásemopções:semummaridoqueaajude,nessevainãovaientreBrasilePortugal.Marianãosedecide.Porvezesdizumsimconfianteemficar,maslogovemumtalvez,enovamenteosim,quandose lembradopassado,quenunca foibonito,com o pai a bater namãe, e a bater nela, de sonhos cortados pela raiz, do poucodinheiroquefazia,detantagenteavivernomesmochãodeterravermelha.Sustenta-seemdúvidasedizquevaiandando-jáapanhouessetiqueportuguês.

Também se divide na sua identidade enquanto brasileira, enquanto emigrante,escapando-lhe de vez em quando um “eles” quando se refere aos brasileiros, masnuncaum“nós”quandofaladeportugueses.

Nãosesentepartedestepaís.Nãoosentiuno15deSetembrode2012,diaemquesefoimanifestarcomoosportugueses,cantouegritou“comoosoutros”,aquandodospedidosdequeselixasseatroika.

Chegou ao Parque Verde, cheia de vontade em falar, em abrir o peito e atirar-senaquela sua força tempestuosa e aguerrida. Mas dessa vez, o medo, quase nuncapresente, tomouMaria, e a coragem e a voz, na altura de falar para toda a gente,sumiu-se-lhe.

“Quandochegouali,esmorecitodinhavertodoomundoadaropinião,edepoisqueriatantoe tanto falar…Masnãoestounomeupaís. Édiferente,pensaquenão temomesmo valor. Eu queria que todos os portugueses sentissem o que eu sinto, eentendessemcomoeuentendo.Édifícilvertantosportuguesescruzandoosbraçoseeuestouaquiaquererfazer.Maspensarquedepoistodoomundoiapensar:“ah,ébrasileira,nemédaqui”.Agentesesentediminuído.Nãoéamesmacoisalutarpelaterradagenteoupelaterradosoutros”.

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Aqui,nãoligaapartidonenhum,apenastemacertezadequeCavacoSilvanuncateriaoseuvoto.“Pessoaquenãofedenemcheira.Elenãofaznada.Ereelegeram!Fiqueipasmada”.

Mariapouco“manja”depolítica,mastemsemprequalquerapontamentoparafazer,sejasobreoPresidentedaRepública,sejasobreestepaísqueficafeitodevelhos.

Volta aos pensamentos do telefonemada amiga, que lhe pedia para voltar, que lhelembravaquenãopodiaajudarobarcoqueafundava.

Nãoencontraempregonopaísondeaindafazalgumfinca-péparaficar.Noverãode2013,tinhaacertezadequequeriaviverporPortugal,mesmosabendodacontagemdecrescente até novembro, mês em que acabaria o rendimento social de inserção.Recebia 361 euros. “Não dá para viver”. Por isso, faz uns biscates à socapa dasautoridades tributárias. “Não posso dizer à Segurança Social que o recebo porquedepois teriaquepagar tudooquepeguei.Eelesnãoentendemquecom361eurosnãoconsigomanteraminhacasa.Tudoédinheiro.Tudoconta”.

Vale-se também da ajuda de uma instituição de solidariedade - crucial para que semantenhadepéo seuprojetodepor cá ficar,mesmoque custe trazeros sacosdecomidapelaruafora,sentindo-semaispobredoqueaquiloqueera.

Jápassoualgunsdiassemcomer,econta-odeformacalma,desembaraçada,porqueimportamaissaberqueparaosseusfilhosnuncafaltoucomida.

Odia-a-diafaz-seàvoltadospequenos.Nostemposemquea libertam,prende-seàprocuradeemprego,nosjornais,compessoascomquemjátrabalhou,comamigos.

“TodoosantoodiaabrooDiáriodeCoimbra,numcafépertodaescoladomeufilho,enão há nada. Apenas para vender porta à porta e dobrar circulares. Por maisdesesperadoqueagentesejanãopodemosserburros”.

“Todoomundomequeriadantes”,lamenta.Recordarumpassadomelhorpassaasercrónico. Nada-se em memórias, algumas apontadas no telemóvel para não seesquecerem,outrasqueporlánãoandam,masqueafazemigualmentesorrireandarem frente, dequeixo sempre levantado.Não senota tristezano seudiscurso, surgeapenasarevolta.AvontadedemudarpautaavozdeMaria,emhistóriasquecontasemrodeios.

Entretantoháqueaproveitaroquesetem.Mariaeosdoismaisnovosestãonasala.OcanalbrasileiroRecordestáligadoeostrêsvãofazendopãodequeijo,umareceitadeMinasGerais.

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Opãodequeijosaidoforno,hácafécomleite,eostrêssentam-senopequenosofáavertelevisão.

Dá uma reportagem sobre uma família de 9 pessoas com um bocado de pão e umsumoparaoalmoço.“Novepessoas”,exclamaasuafilhade12anos.

Omais novo temos olhos fixos e não fala.Umdosmiúdos da família entrevistada,talvezda idadedo filhodeMaria,contaquenãovaiàescolapornãoter ténis, commedodequeolhemparaele.“Agentequerviverenãotemnadaparacomer”,queixa-seoutrodosfamiliares.

EMaria e os filhos olham, e olham, por vezes calados, outras vezes comentando, eparecem reter tudo aquilo e não esquecerem nunca o que vêem. “Aquilo é muitoruim”.Ouve-seahistórianarrada,detomdramático,eMariafaz-sederaiva:

“Estámuitobom,estámuitobom…entãoporqueéquehágenteassimdesgraçada?”

Aquelafamíliade9pessoasdormetoda“numpequenoespacinho”,emterra,eMarialembraquetambémcomelaeraassim,quandonasceuoseufilhomaisvelho,numacasademadeira, comburacosnaparede, onde cabiam sete a dormir numaesteira.Não quer voltar. Não quer. Ainda por cima a relembrar-se daquele Brasil poucoconvidativo,longedasnovelasdasoito.

SeforparaoBrasil,Mariavaitriste,contraasuavontade,obrigada.“Quandoagenteemigraparaalgumlugarpensaemcrescerenãoemdiminuir”.

E nestes tempos descompassados, Maria ainda tem que se preocupar com oaneurismaquelhefoidiagnosticado.Sabequepodemorrernuminstante,semavisos,num estalar de dedos soturno. O seu filhomais novo soube do aneurisma damãequandoouviuuma conversaentreMaria eomais velho. Preocupado, atormentado,passavaosdiasàbeiradacamadamãe.

-Vaidormir.

Eofilhomantinha-seporlá,nãoabandonavaoposto,comoumsoldadomaispoéticoqueapoesia:

-Mas ómãe, eu vou ficar aqui porque se você começar amorrer eu te chamoparamim.

E choravamosdois, abraçados, emcoisasmaioresquepalavras. Eé aí que resideomaiormedodeMaria,medomaior do que não ter emprego – deixar os seus filhosassim-semquemosacolha.EMaria,pelaprimeiravez,escondeacara,soluça,tenta

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respiraredesabanumchoro,comacasaemsilêncio,suspensa,cúmplice,testemunhadeavertentarporaquificar.Eporaquisedemorar…averosfilhoscrescer.

Narrativas incompletas IV

Daniel voltou-se para a terra para procurar ummelhor futuro. Quer um dia trocarSeixaleoprédiodenoveandares,ondevive,pelapacatezdeAlenquer,emcimadummonte, virado para o ermo, o Tejo em baixo, com o som constante do assobiar dovento. É funcionáriomunicipal e amulher trabalha a recibos verdes. Temmedo dofuturoeporissoapontaparaaterra.Nãocomproujipe,comosapoios.Foitudoparaas instalações. “Aqui vãoestar aservas aromáticas, tomilho, erva cidreira...Ali devoaproveitarparacogumelos…”eassimdesenhaoseuprojecto,entusiasmado.Nãosevoltouparaaterraporele,maspelosfilhos.Suspeitaque,paraeles,ofuturoserápior.Comtantadúvida,aterraparecedarcertezas.Otempoparece-lhemenosincertoqueopaís.

Artur é feirante e ainda não se deixou vencer pelas marcas chinesas. “Só calçasportuguesas”,assegura,quasedepunhoemriste,numabatalhaquejáéquasesósuaedemaisunsquantos.Nãosabeodiaemqueseteráquevirarparaaschinas.Dois

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filhos.Eéissoqueopreocupa.Omaisvelhojáseencaminha,"temtrabalhoquandoquiser".Masamaispequena,essaéquelhetiraosono,ànoite,antesdesaltaràs5damanhãparaacarrinhaeiratéàfeiramontaratenda,sozinho."Temtãoboasnotasegostavaqueelafosseparaauniversidade.Mascomoascoisasestão,nãosei".Dizistoeéoúnicomomentoemqueasuacaradehomemsimpáticoseviraparaochãoedepoisparaoar,agarradoaumaesperançazinhaquesabeserfrágileporissoperdeosorriso.Francisco, de cabelos brancos, olho azul vivo, vende artigos de bebé. As vendasdesceram?,arespostaéóbvia:“faltadedinheiroefaltadebebés”.Estácomplicado.NãosabeseumdiateráqueemigrarparaFrança.Jánãosabeseaguentamuitomaistempoavenderartigosparabebé.Masnãolhepreocupaasuavidaouoseufuturo.OquepreocupaFrancisco?Avoztrava,soluça,alágrimachegaaoolhomasnãodesce,aguenta,sustémoar. Inspiraedesabafa:"aminhanetade4anos.Tenhomedoqueelapassepeloquetivequepassar.Quesevolteaoutrostempos..."

Olhares e ecos

Os sonhos, a crise e as nuvens

Sãoalunosdo3ºe4ºanos.Algunstêmospaisemigrantes,outrosvãoemigrar.Hámeninosquevêemoembaraçodospaisquandonãohádinheiroparapagarascontas,outrosadmitemquefaltaparaacomida,enomeiodetudopedemummundomelhor,maisjusto,comperguntaserespostasquedesarmam.Aqui,estascriançasfalamdesonhos,dacrise,daoutraqueouvemesentememcasa,desoluções,dequeméa

culpa,dadesconfiança,domedo.“Acriseécomoumanuvemnegra”.

Beatriz,9anos

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Acrise?AchoqueéafaltadedinheiroemPortugal.Temosmenosdinheiroehámaispessoasquejánãoqueremtrabalharporqueostrabalhossãomuitodifíceisealgumaspessoasdotrabalhojánãopagam.

Eu acho que há uma solução. Mas não sei como. Eu não sei como é que se faz odinheiro, mas acho que não devia haver dinheiro e que as pessoas que cultivavamdavamatodos,outrasquefaziammóveisdavam.

Aspessoasdesistemdeter filhosporquenãohádinheiroparacomprarcomidaparaeles.

Gosto de ser portuguesa. Porque quando nós vivemos num sítio, habituamo-nos aestaralienãoqueremosirparaoutrosítioqualquer.

BeatrizC,8anos

Euseiqueestamosemcriseporqueaminhamãeàsvezestemmuitasdificuldadesemcompraralgumascoisas,comoacomida.

Acriseéafaltadedinheiro.Éumsentimentotriste.Custa-me.

Achoqueospolíticossãoverdadeirosporquetêmquequererobemparaaspessoas.

Devíamos pôr as coisasmais baratas, porque assim aminhamãe já podia comprarmaiscoisas.

BeatrizM,10anos

Aculpaédospresidentes.Elesaumentamospreços,oiva,agasolina,aumentamtudo.

Ospolíticossãomentirosos,porquedizemqueesteanoiaestarmelhoreficoupior!

Asoluçãoparaacriseémudardepresidentes.

Sepudessepunha-meamimcomopresidente.Porqueaomenosiasersinceracomosportugueses,sóiadizeraverdade.Quandoforgrandequeroserpresidente.Portugalvaimelhorarcomigo.

MasachoquenãovouconseguirviveremPortugalparasempre,porqueavidacánãoestáfácil.AchoquePortugalpodiasermelhordoqueé,senósquisermos…Epoderiasermelhorcomigo.Éomeusonho:serpresidenteeacabaracrise.

Carolina,8anos

Continuoaserfeliz,mesmocomacrise.

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AgoravouparaoBrasilenãoseisevolto.Nãoseisequero irparaoBrasil,massouobrigada.

OqueéquenãogostoemPortugal?Dacrise.

CarolinaL,9anos

Comacrisenãopossocomprartantascoisas.

Achoqueacrisedeixaaspessoastristes.Emminhacasanãohátantafelicidade.

Soumaistristeagora.

Cynthia,8anos

Aminhamãequeixa-sedacrise,falasempresobreissocomasamigasaotelefone,dizqueestáacontinuarasercriseequeelaagoratemquetrabalharaindamais.

Acrisedeixa-memenosfelizporquenãopossocomprarumcadernonovooulivros.

Eunãoseiqualéasoluçãoparaacrise.Algunssãoricos,algunssãopobres.Nãoachobem.Os ricospodemcomprar tudo,eospobres sópodemcomprarqualquer coisa.Issoéinjusto.

Daniela,9anos

Sintomuitoacriseemcasa.OmeupaifoiagoratrêsmesesparaAngolaporcausadacrise.Eaminhamãeestácomtrabalhomasnãorecebehátrêsmeses.

Custa-meveromeupaiairparaoutropaís,mastemqueser.

Seeuforboaalunapossoreceberumabolsaeserámaisfácilentrarnauniversidade,queéparaosmeuspaisnãoteremquepagarauniversidade.

Euquerovivernosítioondecresci.

A crise paramim é como uma nuvem negra àminha frente que não dá para tirar,deixa-metristeedeixatristeafamíliatoda.

Oserhumanonãoéperfeito.Aculpaépartedospolíticosmaspartevemdenós.

Diogo,10anos

Queriaandarnaescolaatéao12ºano.Nãovouparaauniversidadeporquepodiaficarcaraeaminhamãenãoconseguiapagar.

Achoquevoutrabalharnosmoldes,porqueomeupai trabalha láeganha-sealgumdinheiroquechegaparamesustentar.

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Quando for grande estive a pensar em ir para o Brasil. Émaior, hámais profissões,maisoportunidades…achoqueteriaumavidamelhorládoquecá.

Àsvezesaminhamãetemquepedirdinheiroemprestado.

O Passos Coelho é mentiroso. O Sócrates não, porque ele abriu a fábrica dosMagalhãesegostodele.Foioprimeirocomputadorquetive.

Acho que Portugal podia sermelhor do que é.Mas não consegue. Realmente, nãoconsegue…

Dulce,10anos

Aspessoasestãoaperderascoisas.Issoéacrise.

Eu sei que osmeus pais estão a passarmuitas dificuldades. Apercebo-me que elesestãosempreapoupartudo.

Dos políticos conheço o Passos e o Relvas, mas não gosto de nenhum. Não confioneles.Sãomentirosos.

Joabe,9anos

Emcasa fala-seda crise.Aminhamãenemdinheiro temparapagara fotografiadaescola. Um tio meu até foi a uma manifestação em Lisboa por causa da crise. Sepudessetambémia.

Acriseémuitomáparatodaagente,enãotemosdinheiroparaquasenada,àsvezesnemparacomer…

ParamudaristodevíamosfazermanifestaçõesparaPortugalficarcomoestavaantes.

Gostavadeserfutebolistaporqueassimganhavamuitodinheiroecomessedinheirojánãohaviacriseparamim.

JoãoM,8anos

Oiço osmeus pais a dizer que estámuitomal e que não há dinheiro para comprarcoisasparacasa.

JoãoP,8anos

Custa-meouvirosmeuspaisdizerquenãohádinheirosuficienteparacomprarcoisas.

Osmeuspaisestãomaistristesagora.Andammaispreocupados.

DePortugal,sónãogostodacrise.

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Laura,10anos

EmcasanãosefaladacriseporqueomeupaiestáemAngola,eporissonãofalamosdesseassunto.

Ele teveque irparaestarmosbem.Edepoisomeu irmãoque temdoisanoseestásempreachamarpelopai…

Nãoconfionospolíticos.Achoquementemmuito.Asoluçãoeradespedi-los.

Punhaláumapessoaqueaofalarnãomentissemuitoequefizesseoqueestáadizer.Equesoubessepeloqueaspessoaspassam!

Euqueroseradvogada.Secomeçaratrabalharnasfériasdeverão,arranjarunstrocos,achoqueconsigoirparaauniversidade,porqueelaécara.

Ospolíticosdeviam-semeterno lugardaspessoasqueestãoa irparaforaeestãoadeixarasfamílias.

Elesvãoquerendoficarnaquele lugar,edizemmentirasparacontinuar lá,masachoqueaspessoasvãodeixardeacreditarnestespolíticos.

LuísFilipe,8anos

Acriseémandar-semuitostrabalhadoresparaodesemprego.

Eusintoacrisedeformamuitomáporqueatacaaspessoasquetêmmenosdinheiro.

Ospolíticosnãoandamatratarbemdaeconomia.Fizeramasneiraemuita!

Achoquesomosmaistristesagora.Nãopodemospasseareantesíamosamuitosítio.

Marisa,9anos

ComeceiasentiracriseporqueomeupaiemigrouparaaFrançaenofinaldesteanonóstambémvamos.

Omeupaicáganhavamuitopouco.Eaculpaeradacrise.Seiqueeleestarláforaéporumaboacausa,queéparaafamíliaterdinheiro.

Porque é que eles tinham que entrar em crise? Podia não haver dinheiro etrabalhavamunsparaosoutros.Aculpaédetodosospaíses.

Nãogostodacriseporqueobrigouomeupaiasairdopaís.

Asemanapassadasóestávamoscom50eurosàesperadodinheirodomeupai.

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Asoluçãoeraospolíticosdeixaremtodosogovernoepassaremumdianonossolugaredepoisiamvercomoéqueera.

Achoquedaquia50ou60anospodemossertãofelizescomono25deAbril.

Matilde,8anos

Fala-se da crise quando peço as coisas e os meus pais dizem que não têm muitodinheiro.

Nesteanotenhoouvidomaisonão.Jáestouhabituada.

Acrisedeixa-meumbocadinhotriste,massoufeliznamesma.

Rafael,9anos

Omeupaitrabalha,masaminhamãeestádesempregadaeaíficoumaiscomplicado.

Osmeus pais dizemque às vezes não têmdinheiro por ser crise.Não têmdinheiroparacomida,ouparapagaraluzeaágua,àsvezesficamossemtelevisão.

Eu às vezes guardo algum dinheiro. Já tenho 82 euros e nunca usei o dinheiro porcausadacrise,porquepodeserqueprecisedele.

Aindatemoscomidasuficienteeissoéqueimporta.

Vitor,10anos

Os meus pais queixam-se. É só o meu pai que trabalha. A minha mãe estádesempregadaháumano.

Aculpaédogoverno.Nãogostodospolíticosporqueelestiram-noscoisas,dinheiro,trabalho.

GostodePortugal,masoproblemaéquecánãohádinheironememprego.

OmeutiodissequeFrançaestáboa,eportantosecalharvouparaláquandocrescer.

Que futuro?

Estãono10ºe11º.Têmentre16e18anoseprocuramentenderofuturo:acabarosecundário,procurartrabalhooutentarumensinosuperiorsemgarantiasprofissionais.Depois?Emigrarouficar?Acrise,apercepçãodamesma,odesprendimento,osanseiose

sempreamesmateclabatida:ofuturo.

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Adriana,17anos

Aindanãoseisevouprosseguirestudos.Comqualificaçõesounão,tem-sedificuldadeemencontraremprego.

Tenhoumbocadodemedodofuturo.Éincerto.Hojepossotertudoeamanhãpossonãoternada.

Alexandra,15anos

Como isto está, não quero viver em Portugal. Gosto do país, mas não gosto dasituação.

Parecequeaspessoasjánãotêmalegria,esperança,motivação…

Eutenhoesperança,mas tambémtenhomedodenãoterumaboavidaenão fazeraquiloquequero.Achoquecadavezmaisnostemosquesujeitar.Ecusta-meadmitirisso.

Alice,16anos

Nãoqueromanifestar-mequenãoqueroessasconfusões.

Nãoconfionospolíticos.Acabamtodosporfazeromesmo.

Querotirarumcurso,quedaquia4anosistojáestarámelhor.

Sehouveroportunidadenoestrangeiro,vou.

AnaR,17anos

Agentesentemuitoacrise.Tenhoosdoispaisdesempregados.

JácomeceiàprocuradeempregoparaoVerão.Fuiacafés, lojas,e todosmedizemquenão.

Manifestei-mepelaprimeiravezno2deMarçocomamúsicadeAbril.Quismostraraminharevolta,massãomuitopoucososcolegasmeusquesemanifestam.

Não vou prosseguir estudos. Cheguei a pensar em ir para a universidade, quandoentreino10ºano,masagorajánão.

Nãomepreocupamuitoofuturo.Nemquevávarrerruasquandosairdaqui…Jánãomeimporto.

AnaS,18anos

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Tentoevitarvernotícias,paranãoveroqueacontecenopaís.

Quero acabar o 12º e depois ir trabalhar. Semprepensei assim.Masdantes tinhaofuturomaisclaro…

Gostodomeupaísequeroviveraqui,mesmoemcrise.

Acho que tenho esperança em Portugal. Pelo menos gostava… mas tenho receio.Pensomuitoemacabaro12ºedepoisnãotertrabalho.

Anabela,16anos

Emcasa, falamosnodesemprego,doqueaparecenasnotícias.Fábricasemfalência,problemaseconómicos…

Olho para o futuro e penso nos meus amigos que procuram emprego e nãoencontram.Pensonisso.Nãoseisetereifacilidade.

Tenhoreceio,masselutarmoseformosmaisalémistopodemudar.

Ariana,18anos

Notodiferençanosgastosquetenho,porcausadacrise.

Talveznofuturomemanifeste,masachoquenãomudanada.

Nãoqueroprosseguirestudosque,damaneiracomoistoestá,fazemoslicenciaturaenãotemosempregoetemosqueirparafora,afastadosdafamília,dasorigens...

Não sei o que vou fazer. Estou disponível para fazer qualquer coisa.O que quero étrabalhar.Antes,pensavaqueacabavao12ºeterialogoemprego.

Bárbara,18anos

Queixamo-nosdacriseemcasaporquenosdificultaavida.Tínhamosumcarrobometivemosquedeixardeopagar,porqueosmeuspaisestavamdesempregados…

Querotirarenfermagem.Queroaáreadasaúdeporqueaívouconseguirtrabalho.

Não quero viver em Portugal. Sei que há países que me vão dar melhorespossibilidadesdeempregoequalidadedevida.

Disseramparairmosparafora,enósvamosfazer-lhesavontade.

Carina,17anos

Aqualidadedevidaéamesmaporquenuncativemosgrandesextravagâncias.

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Achoqueospolíticosfazemotrabalhodeles.

Oquequerofazer?Arranjaremprego.Játivesonhos…seranimadora,enfermeira…

Se emigrar é por necessidade. Tenhomedo do futuro. Acabo o 12º e depois? Façomuitoessapergunta.

Catarina,18anos

Notei muito a crise em casa. Tive que vender o telemóvel. A vida mudoudrasticamentedehá2,3anosparacá.

Comoistoestá,achoquevouemigrar.

Quero ir para a universidade, casar, ter filhos e trabalhar. Já tenho namorado paracasar,masnãotenhotrabalho.Secalharvouterquetrabalharpara,aos50,casareterumfilho.

Gostavadeficarporcá,masnãoseiseconsigo.

JátivemaisesperançaemPortugal.Podeserqueistodêavolta.Mastemquepartirdenós,temquepartirdebaixo.

Cátia,17anos

Sente-semuitoacrise,queésóaminhamãeagarantirasustentabilidadedacasa.

Não confio nos políticos. Precisávamos de políticos que viessem de estratos sociaismaisbaixos,quesoubessemoquecustaavida.

Gostavadeirparaauniversidade,masnãotenhopossibilidades.Tenhomedoquenãome atribuam bolsa. E sem bolsa… custa muito. Os que têm mais possibilidadesfinanceirasnãodeveriamtermaisoportunidadesquenós.

EmPortugal,nãogostodasinjustiças,edissoPortugaltemmuito.

Atemoriza-meirparaauniversidade,esforçar-meedepoisnãoarranjaremprego.

CristianaS,16anos

Sempre quis Comunicação Social. Os professores alertam-me e dizem que não,mastenhoqueseguiromeusonho.

Tenho medo de não conseguir arranjar emprego na área, sei lá, ter dificuldadesfinanceiras…pensocadavezmaisnisso.

Fábio,16anos

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Queroseralguémnavida,terumbomemprego.Vejotantasnotíciassobrejovensquetêmqueemigrareachoquemepodeaconteceromesmo.

QuerovivernosEstadosUnidos.Nosfilmesvê-sequeavidaláémelhor.

José,16anos

Em casa fala-se dos bancos, do dinheiro mal gasto… mas eu não participo nessasconversas.

Confiomaisoumenosnospolíticos.

Nãopensomuitonofuturo.

Mariana,16anos

A oposição perde tempo a discutir uns com os outros. Nas notícias só os vemos adiscutir…

GostavadeviveremPortugal,mastambémgostavadesair.Seiqueláforatereimaisoportunidadesesereimaisvalorizada.

Gostodomeupaís,mastemosumapopulaçãovelha,tristeedeprimente.

Setiverfilhos,aterroriza-menãolhesconseguirdaroqueprecisem.

Marta,16anos

Fala-sedacriseemcasa,masnãoparticiponessesdebates.

Nãoconfionospolíticos.

NãoqueroviveremPortugal…há rumoresdequepodemosvoltar àditadurae issoassusta-me.

Sara,16anos

Nãovouprosseguirestudosquesótenhoaminhamãeeelaestádesempregada.SepudessegostavadeirparaauniversidadetirarTradução.

Custa-me,porquequeriaalargaroshorizontes.Sinto-meinjustiçada.Achoqueagentedeveriatertodosasmesmaspossibilidades.

Sonhavacomauniversidadeeagoratenhoquepôressaideiadeparte.Sonhar,sóseforànoite…

NãoqueroviveremPortugal. Istoestáporumfio.Étudotãoincerto…Aminhamãedizquevaihaveroutraguerra.

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Sónia,18anos

Agora só se compra o que se necessitamesmo. Osmeus pais queixam-se que estámuitocomplicado.

Quandopensonofuturoenauniversidade,pensomuitomaisnassaídasdoscursosdoquenaquiloquerealmentequero.

Achoqueofuturovaisermelhor.Nãotenhoreceio,queestarmosassimnãomata.Hásituaçõespiores…

Tiago,17anos

FuiaLisboamanifestar-meno15deSetembro.Nãoaceitavaasmedidasdogovernoeaúnicamaneirademeexprimireramanifestar-me.Fuicomalgunscolegas.Nãoconfionospolíticos.

Podeserqueemigre.Opaieamãenãoestãoaquiavidainteira…

Ensaio sobre o alheamento

“Sevotasseshoje,votavasemquem?”.Umaperguntafeitaaosmesmosdezanovealunosdo10ºe11ºanos.Umaprocurapelalucideznoseleitoresdeumfuturopróximo.

Adriana:Nemseiquemandalánapolítica…Votavaembranco.

Alexandra:Nãofaçoamínimaideia.

Alice:Votavaembranco.

AnaR:Votavaembranco.Nãoqueroteraculpadeterajudadomalesmaiores.

AnaS:Nãosei.

Anabela:Votavanulo.

Ariana:Noscomunistas.JáomeuavôvotavanoPCPeeuvejoqueelestêmumasleiscertas.

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Bárbara:Votavaembranco.

Carina:Nãosei.

Catarina:AtéestarláoLouçã,votarianoBloco.Agora,talveznoutropequenino.

Cátia:Nãovotava.Nãoestoumuitopordentro.

Cristina:TalvezvotavanoPS,queosmeuspaissãodoPS.

Fábio:Votar,votava.Talvezembranco.

José:Nãoseiemquemvotava.

Mariana:TalvezPSD…Não.Nãosei.

Marta:Nãoiavotar.

Sara:Nãovotava.

Sónia:Nãosei.

Tiago:Votavaembranco.Nãoconcordocomnenhumpartido.

Narrativas Incompletas V

Umasenhora,possivelmentenosseus50,deixa-sedeinibiçõesevaidemesaemmesatentarvenderumasfloresdepano,desenxabidas.Dizquenãotemnada.“Aomenosnão peço. No café nem um copo de águame dão”, desabafa contra três senhores,possivelmente também nos seus 50, que a desprezam e a enxotam. A mulherbarafusta e não se cala, mesmo que já caminhe para outra esplanada, a venderaquelasfloresdepano,desengraçadasesemjeito,feiaseazuis-umcravoantagónico.

Umamulhercomdoisiogurtesnamãonafiladosupermercado.Assimquevêopreço,reparaquesãomais20cêntimos.Fezmalascontas.Nãotemesses20cêntimos.Dizadeus a um dos iogurtes. Fica embaraçada, a cara rosa de vergonha. Não tem 20cêntimos.Sai,decabeçabaixa,apenascomumiogurte.

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Joséestásentadonunsdegraus,comumacaixaaocolo.Ergueumpedaçodecartãoquadradoà frentedamesma. “Soudesempregado, tenhodois filhoseoEstadonãomeajuda”. Josépareceesvaídode força.Temacabeçadescaídaparaocoloeevitaolhar para as pessoas que passam no Chiado. Nota-se derrota na cabeça pendida evencida, que apenas se levantaquandoalguém ládeixaumamoedaediz obrigado.“Há 9meses que não como um bife e só fumo cigarros quandomos dão”. Há oitomesesqueestásemtrabalho,háquatrocomeçouapedir.Faltavacomida,faltavaleite,faltavatudo.Repeteasuacondição,exaustivamente.Cansado,farto,deixaumaviso:“Seumdianãotiverquedardecomeraosmeusfilhos,nãotenhoproblemanenhumemagarrarnumafuscaeestoirarcomosmiolosdoPassos”.

Catarinatenta“aguentareengolir”,masochoroataca-a,nãooconseguedomesticar,quandodizaos filhosquesóhápãoe leite.E lávêmosdois filhos,dizer “mãe,nãoestejasassim”,“mãe,nãofazmal”.ECatarinatenta,tenta,“masnãodá.Eutentonãochorar,masnãodá.Chegoaofinaldomês,queéasemanamaiscomplicada,echoro”.E fica Catarina, de olhos tristes, vermelhos e calejados, à espera de outro futuro.“Vamo-nosaguentando.Vamo-noscalejando”.

a depressão e a renúncia em tempos de crise

O acto de cair

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Quandotudocai.Quandosepensaemdizeradeus,emseficarnochão,depoisdaqueda.Quandoseéumapedranosapato.Quandoosombrosencolhem.Quandosedesiste.Quandoosentimentoderejeiçãoemerge.Quandoadepressãodesponta.Quandoosolhoschoram,continuamente.Oquefazerquandotudocai?

As pedras no sapato

“Tenho48anos.Tenhoumfilhode30anosesoudivorciada.

Comeceiatrabalharaos16anos,nunspart-times,parapodercomprarqualquercoisapara mim. Estudava e trabalhava. E claro, ajudava os meus pais, que tinha mais 5irmãos,ummaisnovoqueeu.

Entretanto,fuitrabalharparaumcolégioparticular.Umamenina,de17anos,atomarcontademeninos.

Continuei aestudar.A vidanãoédifícil, aos17anos. Émaisdifícil agora. Eoqueécerto é que continuei a minha vida dentro daquela escola e trabalhei lá 26 anos.

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Sempreadoreioqueláfaziae,seilá,aquiloeraumescapeparamim.Adoreitrabalharcomcrianças.

Naalturafazia-seumpoucodetudo.Ajudavaadescascarumasbatatasnacozinha,sefosse preciso fazer uma limpeza eu ia, num estudo acompanhado, estava lá comquatro turmas sozinha… Tínhamos que trabalhar na nossa hora de almoço e nãodizermosnãofaçoounãovou.Adirectoradavasempreamesmaresposta:“aportadaruaéaserventiadacasa”.

Eraumtrabalhomuitocansativo,físicaepsicologicamente.Depois,aofinaldeuns20ou 21 anos, as coisas começaram-se a complicar em termos financeiros e aquilopassouasemi-estatal.

O 1º ciclo era particular e o 2º e 3º ciclo era estatal. E aí entrava qualquer tipo decriança. Os miúdos com as camisolas de marca ao lado dos miúdos com as solasdescoladas. Eaínão sepodeescolherentreosmeninosbonitoseos ranhosos.Mashaviaumtratamentoespecialporpartedetodaagenteaosmeninosricos.

Asminhascolegastinhammuitainvejademim,queosmiúdosadoravam-me.Antesdeirparaaaula,eramcapazesdemedarumbeijoantesdeentrar,suadosousujos.Nãomeimportava.

Quando trabalhava na escola, em defesa dos miúdos, atirava-me muito às minhascolegas pelamaneira como elas falavam e tratavam osmiúdos. Nuncame calei emrelaçãoaosoutros.Aspessoasnãosepodemcalar,eépornoscalarmosqueascoisasestãoassim.Nuncamecalei.NãoachavabemquesetrabalhasseparasereceberumaprendanoNatalounaPáscoa.Asminhas colegas trabalhavampara isso. Erammaissimpáticasparaaquelesquepodiamdarmelhoresprendas.

Entretantosurgiuomeudivórcio,quandotinhauns38anos.Aminhavidafinanceiracomeçou-seacomplicar.Earranjeiumpart-timeatrabalharnaáreadarestauração,queéumacoisaquegostomuito.Fazíamoscomidafeitanahora,oclienteescolhiaoque queria e fazia-se ali à sua frente. Então trabalhava assim. E eu gostava muitodaqueleserviço.Dediquei-meàquilo.Lá,trabalhavadassetedatardeatéàsonzedanoite.E,naescola,eradasnoveemeiadamanhãàssetemenosqualquercoisa.

Trabalheiassimduranteanos,talvezunsseis,seteanosassim.Atrabalharnaescolaeali.

Quando eu pedia um aumento aos donos do restaurante eles diziam que aquiloandavamal.Eentãocomeceiafazerascontaserepareiqueagerente,faziaumdesvionacaixa,àdescarada,comumagrandelata.Fartei-meeconteiaospatrões.

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Eentãoospatrõesvieramtercomigoeperguntaram-mesequeriaficarcomaloja.Ecomeceiapensarqueconseguiaultrapassarodinheiroquealojaestavaadarnaquelemomento.

Resolvemosfazerumcontrato,eresolvipôrumapessoadafamíliaqueprecisavadeum empurrãozinho financeiro a trabalhar comigo. Mas ambas tínhamos empregosparalelos. E então pus lá a filha dessaminha familiar, que estava desempregada, egostava muito dela, confiava nela, e pu-la a tratar da loja durante o dia. Osfornecedores faziam-mequeixadeque tratava-osmal,osempregadosqueixavam-sequeelanãotrabalhava,eeufecheiosolhos.

Andeiassim6anos.Aofinalde6anoscomplicou-semuitocomafilhadaminhasócia.Eunãoaguentavamaisaqueledesgaste.

E depois, no meio disto tudo, tinha que tratar do meu filho, da minha casa, e eleprecisavademim,porquetinhafeitoumaoperaçãomuitogrande,eandavaaestudar,precisavadeapoio…Acabouporcrescerumbocadinhoàforça.

Foi uma fase complicada da minha vida. Mas como estava ocupada, não tinhanenhumadepressão.

Aspessoasperguntavam-me:comoéqueconseguesdormir?Chegavaacasa,faziaasminhas coisas, deitava-me e não voltava a pensar. Deitava-me por volta das duas emeiaeacordavasempreàsoitodamanhã,massemprecomumagrandeenergia,umagrandevontadedetrabalhar.

Nas duas horas de almoço dormia. Despreocupada. O meu despertador era acampainhadaescolaeaquelashoraseramumarecarga.

Norestaurante,conseguipassarde300eurospara1000,800,900diários.Egabo-medisso.Conseguitirarumordenadoparamim,paraapessoaqueestavacomigo,paraosordenadosdosfuncionários,osfranchisadores,arenda,ascontasdaágua,luz,gás…eainda pagar o roubo que a filha da minha colega fazia na caixa. Isto só podia sercastigo.

Chegava a Setembro e acabava o contrato e perguntei pelo contrato definitivo aosfranchisadores para revalorizar aminha situação. Diziam, diziam,mas aquilo não sedava.

Eramuitocomplicadoparamimveramaldadedaspessoas.Talvezdetrabalharcomcrianças,ganheiumpoucodeingenuidade.

Depois havia a filha da minha colega. A mãe não acreditou emmim. Houve muitaconfusão,atéquechegueiaumaalturaemqueacabeicomaquilotudo.AASAEjáme

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ameaçava que ia fechar caso não fizesse umas obras, mas os franchisadores nãoqueriamsaberdisso.

EntãoaASAEfechoualojaameupedido.Evoltariaaabrircomnovasinstalações.

Faleicomaadministraçãodaimobiliáriaadizerqueestavainteressadaemficarcomoespaço.Acabei coma sociedade, terminei com tudoedepoisdespedi-medaescola,quandoorestauranteabriu.

Abrio restaurantequatromesesdepoisde ter fechado,emJunhode2008,comumnomepróprio,comumamarcaprópria,semserfranchising.

Comecei do zero, na loja. Nunca pedi dinheiro nenhum ao banco. Nada. Fiz tudosozinha.Conseguiencheradespensadosfornecedores,pagavaacincofuncionários,emantinhaaquiloabertodas9damanhãatéàuma.Semfolgasnemnada.

Eapartirdaíestiveanoemeio,doisanos…atrabalharcomaminhaloja.

Davaparapagartudo,masnãotiravaumordenado.

Conseguiatiraralgumacoisinhaparaajudarnasdespesasdomeufilho.Masconseguiacontrolar as coisas, minimizar as despesas, naquilo que se podia cortava-se… masinfelizmenteacrisecomeçouabateràportademuitagente.

Nessa altura estava esgotada, prontinha para ter uma depressão. Não consegui.Sozinha, não consegui. Com a casa a facturar cada vez menos, não havia clientes.Posso dizer que eram todas as casas, mas cada uma aguenta a sua. E prontos,acabámos por fechar em Junho de 2011. Quando fechei eu, fecharammais umas 7lojasnomesmoedifício.Custou-memuito fechar.No1ºanoemque fechei,volteiaperdertudo...

Aminhasorteéquenãotinhadívidas.Eutinhaalojapaga.

E,noprimeiroanoemquenósfechamosandeiumbocadopassadinhadacabeça.Eraomeuprojecto.Eutinhatrabalhadotanto…

Oúltimodiafoi8deJunho.Foifecharotoldo.Lá,aguentei-mesempre.Nuncamostreianinguém.Nessediaquisdarforçaamimeaomeufilho.Oquemaismecustoufoichegarooutrodiademanhã.Queeu levantava-mee tinhaumobjectivo, e eraumprojectomeu. No dia 9 de Junho, foi aí que desabei, foi ver que não tinha nada àfrente.Masestavahipnotizada…aindaandavana ilusãodequeeuconseguiriadaravoltaporcimadaquilo.Duranteummêsaindaentreidentroda lojaparatirarcoisasquelátinhadentro.Andeidormenteduranteummês,penseiquetudoiacorrerbem,

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pensava que ia arranjar trabalho, as chatices com os funcionários, com osfornecedores,euqueriadeixardeserpatroa,sóqueriatrabalhar.

Andeiadormecidaduranteummês,aacharque iadaravoltaà situação,ao fimdomês,desisti-équecaíporterra.Masacheiqueaminhavidafossediferente,queiaterumtrabalho,edepoisteriaumfimdesemana,podiasaircomosmeuscolegas…podiaaproveitarumpoucoavida,teralgumdescanso.

Omeufilhopede-meparaesquecer.Edemoreimuitotempoaesquecer.Tinhamuitotempo livre para pensar. Estive muito muito mal, ao final desse mês, revoltei-memuito. Foi com o tempo, revoltei-me porque tinha perdido tudo, estava mal, semtrabalho,semnada.

Nãoéprecisoser-se inteligenteou fazerascoisas,épreciso tambémter sorte.Eeunãoative.Masparecequeatraiosócoisasmás.Parecemesmoqueháaquiumímanqualquerquemeatraisóascoisasmás….

Sópessoasapuxarem-meotapete…

Massemprepenseiqueatéàidadequetenho…sófizobematodaagente,eéissoquemeaguentaaqui.Mas tivemomentosemquepensavaemacabarcomaminhavida.Muitosmomentosemquepensei:nãoqueroviveraqui.Porqueachavaqueestaraquisóprejudicavaosoutros,inclusiveomeufilhoqueofaziasofrerjuntocomigo.

Achavaqueaspessoasolhavamparamimcomoumaderrotada.Fosteburraeficastesem nada. É uma questão de sorte, não é de não se saber fazer as coisas. Eu tiveiniciativa,tiveesperteza…masnão.Não.

Echegarao fim,acordar,epensarnemsequervaleuapenanasceresparachegaresonde chegaste. Passavamuito tempo sozinha em casa, as despesas acumulavam-se,nãorecebiadinheironenhum,nãoencontravatrabalho.

Depoisarranjeium trabalho,passadosunsmeses,4mesesdepois. Fui trabalharporcontadeoutrem,numrestaurante.Durante4mesespagaram-me500euros.Epronto,aminhavidaéesta.

Nuncapenseificarassim.Nunca.Nuncameimagineipedirajudaaalguém.Epediraomeufilho…

Édesesperante.Senti-memuitomalempedirajuda,continuoasentir-memal,sintovergonha,comomãenãodeviapedirnada,deviaelepedir-meamim.Eletem30anos,querviverasuavida,temasdespesasdele,temascoisasdele,etemumapedranosapatoquetemquearrastar,esintoquesouessapedra.

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Qualquermãeoupai, enãodeverei seraúnica, sente-seassim.Pedrasnos sapatosdosfilhos.

Nãoquerochegaràidadedaminhamãe,quetemagora81anos.Queromorrerantes.Porquenãoquerodartrabalhoaomeufilho,jáestouadardemasiadotrabalhoagora.Nãoqueroserdependentedeninguém,nãoqueroterdificuldadesnavida,eporquequandochegarareformanãoavouter,voucontinuaraserapedranosapatodomeufilho…

Oquemeajudamuitoaviveréaminhacadela.Tem3anos.Aminhacadelaéaminhaterapia.Ajuda-memuito,tenho-lheumamortãograndepelacadela…Elaétodabege,umajunçãoentrehuskyelabrador,eémuitointeligente.

As minhas amigas dizem-me para sair mais, mas gosto de estar sozinha. Tenhomomentos.Háaquelemomentoemquechegoacasaemesintoumbocadinhomaisem baixo… gostava de contar o dia, o companheirismo, isso falta-me. Mas tenhomomentosemquenãotenhonadaparafazernemdizereaínãomecustatanto.

Omeu filho também estevemuitomal nessa altura. O que o ajudou foi libertar-sedurante o dia porque trabalhava, tinha a cabeça ocupada.Mas à noite, quando elechegava,sofríamososdois.

Houveumaalturaemque lhedissequenãoqueria vivermais. Ele sabequeeu souumapessoaforte,eelediziasim,sim,faz,faz,porquenuncapensouqueeuoiafazer,ele não levava a sério, tentava-me não levar a sério. Havia alturas em que noschateávamospornãohaverdinheiroehaviadespesasparapagar,eeudiziaapetece-medesaparecer,echegueiapensaremfazeramimeàcadela,quedepoisficavasemninguém.Eupenseideformaconcreta.Atétinhamétodo.Váriasvezespensei.

Àsvezes,aspessoascatólicascomoeucostumam-serevoltarcontraDeus,maseunãomerevolteiapesardeterperdidotudo,aculpa foiminha,nãofoiDeus.Nãoabriosolhos. Confiei demasiado, devia ter sido mais ríspida, mais dura… se tivesse dadoouvidosaomeufilho…

Émuitodifícilolharparaofuturoeérevoltante.Oqueéomeufuturo?Oquetenhodefuturo?Nãovejoumfuturo.Nãovejonada,nãovejonada,nãovejonada”.

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“Isto de não ter dinheiro”

Acasaépequena.Acozinhaépequena.Osquartossãopequenos.Ahumidademanchaas paredes, improvisa-se uma sala naquilo que seria a garagem. Júlia, 66 anos, eDomingos, de 80, a viverem em Cacia, perto de Aveiro, apresentam-se, de carasenrugadasedesalentadas.Sentamo-nos,maisumafilha,quevivealiperto.Namesadeixamunsquantospapéis.Contasdeáguaeluz,osrecibosdaspenhoras,asreceitasmédicasporaviar.

Júliaestáexaltada.Estásempre.Nervosa,agitada,atira-seatudoeatodos.Alínguanão lhe falta e dispara o tumulto que leva dentro. Domingos é a calma, o balanço,fazendodescontosaodesvariodamulher.Emredordamesa,entreafúriadeumeacalmadooutro, falamdavida, recenteepassada,madrastaedura,deoutras vidasque jáse foram(partedasdeles também). JúliaeDomingos,acompanhadosdeumafilha,contamasuahistória,pautadapelarevoltadeteremumareformaqueosatiraaochão.

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Júlia:Eucomeceiatrabalharaos12anos,nacortiça.Olheaquieaqui.Isto!Tenhoasmãostodascortadas.

Aponta para as mãos e para as pequenas cicatrizes quase imperceptíveis que lherecordamtodososdiasotrabalhonacortiça.

Ia todos os dias a pé que a camionete era 7 tostões. Eramduas horas de caminho,todososdias.Éverdade.Pagava-sepoucoenãohaviadinheiro…

Domingos: Eu, ou ia de camioneta ou a pé. Trabalhava desde os 8 anos, a pastarporcos,éguas,cavalos.Masnaalturanãosedescontava.Depoisestiveamondarcomasmulherescom11,12anos;depoisaos15puseram-meaopédoshomensacavareaídisseadeus.Queaquiloerapuxado,nãogostava.Pus-medoenteenãofuitrabalhar.Fui pedir trabalho nas obras.No dia seguinte estava a trabalhar lá. Trabalhei a vidatodaporlá.Reformei-mecom57porinvalidez:joelhosecoluna.Otrabalhoeramuitodesgastanteeeucomoerafraquitolámefui.

Júliarepete-se:

Eucomeceiaos12anos.Eraeu,umirmãomeu,quedeitoufogocomeleemSarrazola,hácincomesesematou-se.Veionojornal.EtenhooutroquemoraemAveiro.Outromorreudecancro.

Domingos:Eueraeuetrêsirmãos.Osmeusirmãosmorreramtodos.Sójárestaeu.

Júlia: Saídas cortiças, casei-mecom22anos,deixeide trabalhar, vieramos filhos,edepois trabalhei sempre a dias. Agora estou com a reforma. Deixei de trabalhar demulher-a-diashá5anos.Naaltura,comotinhaidadeavançada,meteram-menofundodedesempregoelámepuseramnareforma.

Domingos:Mas isto piorou. As coisas estão cada vezmais caras. Dantes, o dinheirodavasempre.Quandoveioo25deAbril,ganhava-semais.Oproblemaéa reforma.Porserreformadoporinvalidezéquerecebomaisbaixo.Recebo342euros.

Júlia:Eeu300.Éoquerecebo.

Júlia,enervada,baixaacabeça,envergonha-se,revolta-seemandaumapreceparaoar:

Deusnossosenhor,ajudadonossosenhor,conformeelemeajudetambém.

Saidotransedapreceeretomaaconversa.

Odeleéparapagarágua,luz,gásecasa.Eomeuéparacomerenãodá.Enãodá…nãodá.Nãodá.

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Nãodá.

Depoistenhoumafilhaaqui,comumabebéprematura.Tenhoumfilhoquemorreuhá16anos. Tenho6.Ai comoestouda cabeça. Tinha7.Outraaqui, umemFrança,umaemLisboaedoisnoAlgarve.

Filha:Aminhairmãtem24.Estáaquiaviver.Ganha75eurospormês,numcursodeformaçãoemEsgueira.Estádesempregada.

Elatambém.

Filha:Trabalhavaalinolar,nacozinha.Vim-meembora.Estivelá5anos.Ohorárioeracomplicado,eraentraràs8damanhãe sairàs10emeiadanoite,mas tenhoduascrianças,umacom4eoutro com10.Queméque tomava contadelas?Omaridoépescadornãopossocontarcomele,erasócomigo,sábados,domingoseferiados.Tivequemeviremboraporquenãomeconseguirammudarparaoutrolado.Nuncaeradefaltar.Omeumaridocomapescasentemuitoacrise.Antesalampreiadava50euroscadauma,agoraestãoapagara10e15,aamêijoavendíamosa35,40euros,agoraestá a 7. É poucochinho. Agora, de há 3 anos para cá, não dá nada, só dá para asdespesas,nãodáparajuntarnada.

Domingos:Eunãomeimportavanadadetrabalhar,masaidadetambémjánãodáetambémnãomedãotrabalho.Andonasucata,aínoscaixotes.DouavoltaaVilarinho,Sarrazola,Mataduço,sempredebicicleta,quemedeuaminhafilha.Vouàprocuradealumínio,ferro,cobre,latão.Dáuns12contospormês.

Júlia:Agoravamosmudardecasa,queistoestácheiodehumidade,estátudoacair,epagamosomesmoqueumamaisnova.Eaquinãoseapanhamaisbarato.

Domingos:Pagoatelevisão,aágua,aluzefoi-se.Depoisaindaháacontadotelefonequeéfixo,eagentenemfazchamadas.Temosquedarbaixa.

Júlia: Pois! Vieram cá bater à porta. E agora queremos deitar isto abaixo e nãopodemos.Veioohomemaí,maso telefoneaté jáomandeiaochãoporquenãoseouvenada.Dissequeerasó12,5euros,masafinaldepoistemquesepagarmaisparaoutrasredeseassim.Enempodemos.Ocontratoéde2anos.É isto…porra.Oqueelesqueremévender,láqueremsaberseagentepodepagarounão,eestãosempreatelefonaradizerparapagarmos.Elesqueesperem!Eunãotelefono,eunão ligootelefoneepagoàmesma.

Domingos:Agora,muitasvezes,temqueseraminhafilhaaajudarapagar.

Júlia:Olheaquiasreceitas.

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Agarranospapéisevaidizendonomesdosmedicamentoseparaoquesão.

Isto são os medicamentos que eu tenho que tomar. Olhe, olhe, olhe quando foi aconsulta.Esenãoaviarjánãopossolevantaristo.Quetenho6mesesparalevantar.DesdeNovembroquenãotomoosremédios.Tinhaumaconsultaenãofui,quegasta-sedinheiroemtransportes.

Júliaagarranospapéiscomforça,comoseosquisesserasgar.Revoltaeimpotência.Afilhavoltaàscontas:

Filha:Nunca paguei isto aminha vida inteira de água e luz. Depois é escola, renda,fraldas, istoéassim!Olheoquegastei.Depoisé5eurosnãoseiparaquê,mais IVA,maisnãoseiquê,passaumdiaoudoispagamoslogoisto…

Domingos:Aágua…paguei32etaldeágua,porcausadaquelasporcariastodas.

Filha:Sódesaneamentopago15euros.

Domingos:Gásé26,70,2botijaspormês,águafoi31etal,ealuz24e70.

Júlia:Nãodá,nãodá,nãodá,nãodá…

Atiraospapéiscontraamesa,dávoltasàcabeça,emnegação…

Euandomalucasódepensarnisto.Umdiadestestomooscomprimidostodosevoupararaomaneta.Jáfaltoumaisdoquefalta.

Domingos:Estátonta.

Diz,paradesdradamatizartodooabatimentodamulher.

Júlia:É,é!Unscomemebebem,andambemvestidosenãoseiquê,enósquasequenemdáparanada.EaindavoubuscarcomidaàCaritas.

Domingos: Agora para ir para Coimbra ao hospital também vamos ter que pedir àCaritas.

Júlia: Foi há 4 anos emeio é que pedi ajuda pela primeira vez à Caritas. Comonãotinhanadaparacomer, tiveque ir lá.Vou láumavezpormês.Dão-meazeite,óleo,arroz,pão,massa,ovos,salsicha,cereais,leite…Tenhoaliumpacotedebolachas,umpacotinhodearrozeumdemassa.Istodaúltimavezquefuibuscar.

Euponhomacaquinhosnacabeça,nuncapenseiistoacontecer-me.Istojásecomplicahámuitotempo.

Avozlevanta-seemfúrias.Perde-senumalamúriaimpermeáveleconfusa.

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ÓZezinhodá-meumbocadinhodepão,óZezinhodá-meumquilodearroz,umquilodecebolas…éisto…Ó,ó,ó,oqueéquemevãoarrancaragora?

Euéquesei.Euéquesei.Eunãotenhonadaetrabalheisempre.Eestouaquiasofrer,comdoresnacoluna,enopeito…Éassim.Tenhoqueiraohospitalparaverseestoubemoumal.Há6mesesquenãotomomedicamentos,por issoéqueestoupior.Senãomederemdinheironãopossoiraohospital.Fuioperadaàtiróide.Óaqui.

Apontaparaagarganta.

Poderiatercancro.Mastodososmesestenhoquetomaromedicamento,atémorrer.

Domingos:Eu,graçasadeus,nãotomomedicamentonenhum.

Júlia: Ele também temproblemas, e eu também, e haveria dehaver coisas quenãodeviacomer,mascomoporqueéoquehá.Anteontemqueriapãoeleiteenãotinha.

Apontaparaumpequenorecibo:

Tinhaoouro,levei-oepenhoraram-no.Deixeiláumaaliança,asargolas,senãoderodinheiro ao fimde6meses ficamcomaquilo. E está lá tambémamedalhadomeufilhinhoquemorreu.Tinhalámaisouro,masfoiporáguaabaixo.Nãopaguei.Istoeraumfiozinhoquetinhaoretratodomeufilho.Disse-lhe:Óvizinha,nãomandeistoparaoPorto,quequandopudervenhoaquibuscar.

Senãopagarvaiporáguaabaixo.Tenhoquepagaraté26deJunho,senãopagaratélá, retiram-me o fio. Ao longo do ano, posso ir abatendo. Mas como é que possoabatersenãohádinheiro?Estedinheirofoitodoparasecomer.Edeixarláamedalhadomeufilhinho…Custoumuitoadeixar…

Chora.As lágrimas caem, comoas forças se desmaiam. Soluça e lamenta-se emvozaguda e indecifrável. As rugas acentuam-se, a condição suplanta qualquer fúriainstalada.Domingosresolvefalar,comaqueleseuapaziguamento,enquantoamulherolhaparaospapéisdaspenhorasepensanamedalhadoseufilho.

Domingos: Foi tudo por água abaixo. A aliança... dois fiosmeus, os anéis, foi tudo.Comprou-seno tempoemque sepodia comprar.Ganhava-sepoucomas juntava-sequalquercoisa.Agoraganha-setanto,masnãodáparanada.

Júlia:Oquemecustaéoretratodomeufilhinho.Parapagarnãotemosparacomer,nãoé?EudigoaelesládaCaritas:quandovocêsnãomeviremaquiéporquejámorri.

A vida é tão difícil... E os políticos querem é tacho. Estão a retirar as reformas àspessoasqueprecisam.Porqueéquenãotiramàsdeles?

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Domingos:Eutenhoraivadospolíticos.EsteantesdeentrardiziamaldoSócrates,eagoraaindaestápior.

Júlia:Eunãovoteinele.

Filha:Tenho30anosenuncavotei.

Domingos:EuaprimeiravezquevoteifoiparaoRamalhoEanesenuncamaisvotei.

Júlia: Não fui votar por causa dos transportes, e custamuito a andar. Eles ganhamtantomaisqueàgente…Porqueéqueestáláaquelagentetoda?

Domingos:Enósaqui,quehávezesemquenãohágrandecoisa.Sopasdeleiteecháde limãocomumastorraditas.Enãomorremos.Estamosaqui.Sabedeus…Àsvezescomemosaomeiodia,edepoisumastorradinhasànoite,parapoderdar.

Júlia:Agoraaver seaCaritasmedádinheiropara ir aohospital. Sintoqueaminhasaúdeestápior.Euenervo-memuito.Quandoestoucomumapilhadenervosarrancooscabelos.A loiçavai todaparaochão.Vai tudo.Atéocomer.Quandomeenervo.Comigo…Comisto,pois!

Retrai-se,asmãostrememe Júlia,ali,naquelevendaval,parecenãotermais forças.Domingosvoltaaoequilíbrio,numacalmaresignada:

Éistodenãoterdinheiro.

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Quando tudo se perde entre os dedos

Alice3estásozinha.Omaridotentavoltaraconduzircamiões,mesmocomumbraçoincapacitado.Ofilhodisse-lheadeusemJulhode2012eemigrou.Opaimorreu.Temas bochechas enrubescidas das pequenas veias salientes, os olhos molhados evermelhos,onarizranhoso.Vesteumascalçasdefatodetreinoeumacamisolalargacinzenta e gasta.Nãoquer saber demaquilhagens, de se arranjar. “E a vaidosaqueera…”

Acabeçanãotemespaçoparavaidadeeacasaégrandeparaumapessoasó.

Láforaouvem-sealgunscarros,talvezacadelaouagata.Pensa-seemtudo.Jápensouem tudo. E volta a pensar. O silêncio, o estremecer de pensamentos, as vozes queouve,asgavetasvazias.Agarranumcartãozinhoplastificadocomasduasmãos:

“MeuSantoExpeditodascausasjustaseurgentes,socorrei-menestahoradeafliçãoedesespero, intercedeipormim juntoaoNossoSenhor JesusCristo.Vósque soisumsantoguerreiro,vósquesoisumsantodascausasurgentes,protegei-me.Ajudai-me.Dai-mecoragemeserenidade.Atendeiaosmeuspedidos.

3Nomefictício

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Ámen”

Dá beijinhos no cartão do santo. Ao lado tem outro com a prece do Doutor SousaMartins. Santos para tormentos e aflições, a ver se resgata esperança daquelescartõezinhos.Maistarde,há-devoltararezar.Rezatodososdiasemaisdoqueumavez. E no final, dá os beijinhos, como um agradecimento. Sente-se protegida, ospensamentosvãoemboraeAlicesorri.

…….

NasceuemCarvalhais,nosarredoresdeCoimbra,ecresceucommedodopai.Chegavaacasadaescola,acendiaolumeepunhaofeijãoacozer,apanhavabatataseiabuscaro seu irmãomais novo. Fazia tudo. Se não fizesse, apanhava. Quis tirar o curso decabeleireira,masopainãodeixou,quis tentara sorte comomodelo,masopainãodeixou.Acabouacosturar,frustrada,aos14,numafábricadetêxteisaoladodecasa.Casouaos17,teveoseuúnicofilhoaos19,aos24saiudafábrica.

Aos20começouaconstruiracasaondevive,comomarido.Mudaram-separalá,comofilhode2anos,aindaacasanãoeramaisquecimentoetijolos,semchão,semcasadebanho,semportaspordentro.Acabaram-naaospoucos.

Aos 24, foi para um atelier de sedas onde a patroa pôs Alice a chefiar a empresa.Tomou-lheojeito.Oqueanteseraumafrustraçãocomeçouaserumgosto.Faziaosdesenhos,osmoldes,oscortes…faziatudo,eadorava,dizmesmoqueadorava,sorriquando se lembra disso, quando remexe nesse passado, e nos tempos em que oMichaelJacksoneramodaeAlicefezumfatoigualaumdosdomúsicodaBillyJean.Eramosanos90.

Tomouogostopelaspelesetrabalhavaporcontaprópriaparaoatelierdesedas,mastambém para particulares e para outras fábricas e ateliers. Trabalho não faltava,ganhava bem, mimava-se bem, a ela, ao filho, ao marido. Mas nada acima daspossibilidades,diz,lembrandoqueoúnicoempréstimoqueteméodacasa.Compravatudo a pronto e não ficava a dever. Tinha férias no estrangeiro, Algarve, Gerês,compraramumcarroparaofilho…

Entretanto,vaitrabalharparaumafábricaderestauraçãodepeles.Estálá15anos,saiem2004, quandooproprietáriodeixade lhepagar. Tinha trêsmesesde salário ematrasoeentãosaiu.

Vai para casa desesperada, com a cabeça “feita num oito”, mas agarra-se aosconselhos das amigas e abre ela o seu próprio atelier. Decide abrir loja na baixa deCoimbra,jánoOutonodesseano.Abrenoprimeirodiasemclientes,fechaodiacomdez. Orgulha-se. A facilidade em falar, o sorriso estendido à porta da loja e a

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“decoração apelativa” (que também se nota pela casa), valeram-lhe uma boa loja.Ganhavadinheiro,masganhava tambémbronquite,ganharnemébemdito,perdia,perdiaparaabronquiteeperdiatambémparaosenhorio,quenãoqueriaobras,“sehouvesseobras”,quefosseAliceapagá-las.Perde.Perdealoja.Vaiemboraelança-separaumdosmuitosantigoscentroscomerciaisdeCoimbraquesãohojeespaçosdefantasmas,delojasfechadaseoutrasporfechar.Ládentro,aspessoasnãopassam-trêsanosdeconvivênciacomtodasaquelaslojas-fantasma,umasaindaafingirexistir.Eos clientes, tambémosperde.Masaguenta,aguentaaderrotaatéaodiaemquesurgemdoishomens,naloja,àscincoemeiadatarde,e,àmãoarmada,levam-lheaspeles. Levaram demasiado. Perde demasiado. Liga à polícia. “Mas o que é que asenhora agora quer que a gente faça?”.Há doismeses tinha dado baixa do seguro,que, sem clientes sem nada, tinha que se livrar de despesas. O azar é uma valentechapada.Alicedeita-senumadepressão.Perde.

Umdiaacorda,agarranocabelocompridoecorta-otodocomatesouradaspeles.Vêocabelonochão,epensaquepoderiasermaisqueocabelonaqueledia.Desespera,sente-se inútil, fraca, derrotada de tanto perder. Enraivece-se das pessoas: não lheperguntam se está bem, não lhe perguntam se precisa de ajuda, e Alice “sozinha,magoada, chocada”, a olhar para as pessoas e vê-as a todas como um conjunto deseres“frios,medrosos,calculistas,retardados”.

“Parece que está tudo commedode abrir o coração e dizer o que senteme o queprecisam”.

Durantedoisanosaindageriuumaourivesaria,massaiu,que,atrabalharnumvãodeescadanaRuadaSofia,apanhoupneumonia.Aindasedeixouficaratéàúltima.Saiu,de saúde debilitada, e foi trabalhar para uma empresa ligada à área da saúde. “Apessoaquemeaconselhouirparalátinhaideiaseumdiafuiconfrontadacomessasideias.Portanto,eraumhomem…achoquenãoéprecisodizermaisnada”.Nãodisse.Saiuevoltouatentarasuasortecomumnovoespaço,emJulhode2011.Eraatelierdealtacostura,estética,consultoriadeimagemecabeleireiro.Voltaaoverboperder.Perdedinheiro,perdeclientes,perdevontade.“Nãoestavaaaguentar”.

Em2012,opaideAlicemorre.Acompanhoudurantetrêsmeses,emcasa,ofinardopai,agorasemmedo,acumprir-lheavontadedequerermorreremcasa.Assimqueopaimorre,a22deAbril,AlicesaidoatelierevaiparaaCaritas.

“Fez-mebem”.

Trabalha pela primeira vez com idosos. Sentia-se bem.O verbo, pormomentos nãoretorna,eAlice sorria contar tudooque fazia. “Brincavacomeles, falavacomeles,

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ouvia-os,fazia-lhesmiminhos,gostavadelesedelas,arranjava-os,punha-osbonitos…sintomuitoafaltadaquilo”.

MasemJunhode2012voltamosproblemas,voltaàconjugaçãodoverboperder.

Omarido,a trabalharhádezanoscomocamionista, temumacidentede trabalhoadescarregarpaletesnaAlemanha. Temuma luxaçãograve com fracturano cotoveloesquerdo. Em Portugal era feriado e os seguros estavam fechados. Esteve 24 horassem assistência médica. “Como um animal, abandonado e, olhando para os meusanimais,talveznemcomoumanimal”.

Veio para Portugal com uma recomendação de médicos alemães. “Diziam que eleprecisavadeumaoperação imediata.Omédicodoseguroachouquenão,queeleéque sabia, eportantoomeumarido temumadeficiêncianobraçopornão ter sidooperado”.

“Umdiavãopagarpeloquelhefizeram”.

Omaridodebaixa,AliceasaberqueemnovembroacabavaoseutrabalhonaCaritas,eofilhoprestesadizer-lhesadeus.

Acabouocursodeengenhariacivilem2010.“Conseguiuumestágionão-remuneradonumaempresadeconstruçãocivil” (conseguir jáé tiquedefala).Trabalhou9mesessemreceber.Aofinaldos9meses,aceitouumapropostadessaempresade500eurospormês,sem“horaparachegar”.Deixoudetervidaprópria.

“Andavacomolheirasatécáabaixo”.

Fartou-se. Soube da oportunidade de ir para o Luxemburgo, com a namorada, e,passadoummês,jáestavanaestrada,demalas,caixotesemochilas,rumoaumoutropaís.

Desde2deAgostode2012queAlicenãovêofilho.

Ajudou-oafazeroscaixotes,nodiaanterioràsuaida.Começavaafalareaslágrimascomiam-lheavoz.Caixasetralhapelacasatoda,amãeadarconselhos,alembrar-seque ia“ficarmuitacoisapara trás”,algumaestáagoraemcaixasparaodiaemqueAlicelhepossaenviarmais“unsmiminhos”.

Mas enquanto arrumava os caixotes, a fazer o seu papel de mãe, quase nem selembrava do dia 2, de que teria que dizer adeus. Até quando, nem sabia. Foi tudomuito rápido, não dava para pensar - a decisão feita em Julho e logo no início deAgostoaveroseumeninoairemboraparaoLuxemburgo.Jantaramemcasadamãedanamoradaeàsdezemeiadanoite,deixaramofilhoeanamoradanaPedrulha.

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“Fomos tomar um cafezinho na dona Rosa, o café central no meio da Pedrulha, edepois,quandochegouahoradepôrascoisasnocarro…”

Desatouachorar,aspernastremeram,acabeçaadarvoltas…quandoovoltavaaver,eAliceatentarconter-se,nervosa…deudoisgritosnomeiodolargodaPedrulha,todaagenteatentaracalmá-la,ocorpoencortiçado,dormente.

Chegouaopédofilhoedisse:“acoisaquemaisqueronavidaéver-tefeliz.Fazaquiloquegostas,temumavidaestávelcomastuascoisas.Façamofavordeseremfelizes,jáqueemPortugalnãoconseguem”.

“Vaitudodarcerto,mãe.Vaitudodarcerto,vaitudodarcerto”,repetiuofilho.

“Eu vejo qualquer notícia na televisão sobre gente que emigra e disparam-me aslágrimas”.

Osdiasquese seguiram foram,maisumavez,preenchidosa choro, comose jánãobastasseochoroqueporaquifoicontado.

E não bastou. Às vezes parece que nem Deus surge aos olhos de Alice, que tantasvezescontatersidooseuconsolo,eaindaoé,naformadoscartõezinhosdeplásticoquetemporcimadalareira.Mas,porvezes,emvezderezas,lança-seemperguntas:

“MeuDeus,ondeéqueestás?”

…..

FicouAliceeomarido.AliceasaberqueapartirdeNovembroacabavaoseutrabalhonaCaritaseomaridodebaixa.EmOutubro,sófoidado20%dosalárioaomaridoportertidoalta.Voltaapedirbaixa,masdaSegurançaSocialdisseram-lhequeteriaqueseraseguradora.Aseguradorarecusou.

“Estásempredoidocomdores”.

OmaridoparteparaoTribunaldoTrabalho.Airacresce,comoseplantadaemvinhas.Tambémavergonha.Odinheironãoaparece,mastodososmesesvoltamasurgirascontas, infalíveis,regulareseassíduas.Omaridoquerpressaporpartedoadvogado,quer uma resolução,mas o dinheiro não aparece, e as contas, as contas… todos osmeses,asurgirem.

“Sónãopassofomeporqueaminhasograpagaacomidaeomeupaipagaacasa”,desabafaomaridoaoadvogado.

EAliceatentaraguentar-se,confinadaàcasa,deonderaramentesai.

“Vejoomeufilhoapartir,omeumaridocomobraçoincapacitado…”

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NessemêspedeajudaàCaritas,ondeaindatrabalhava.Avergonhaépostadeparte.Nunca pediu ajuda, nem nunca se teria imaginado a pedir, como tantos.Mas pedeparanãoficarsemágua,semluz,semcomida.

“Sempre trabalhei, sou umapessoa comgarra, divertida, amiga do seu amigo, davatanto,tanto…”

Nem quer um pão, mas “um mimo, uma palavra”, qualquer coisa para a tirar dasolitude, do número zero que vê na conta, a nulidade, esse maldito conceito quetambémlheentranacabeça,“gasta”.

Saidecasaparairaocentrodeemprego.Masnemsabeporquevai,nãoháofertasdetrabalho,gastadinheiroeafunda-semais.Perde.

Quando a cabeça não anda em desvarios, distrai-se com o jardim, quemostra combrio: “não ficam bonitos ali aqueles troncos da palmeira?, e aquilo deu-me umatrabalheira, acolá vou tirar as ervas daninhas e dar uma volta, aqui devo fazer unsbanquinhos…”.

Brincacomoscães,agataMia,“Mia,Mia,estáquieta…”

Mia,nomedeescritorqueumdiadissequeháquemtenhamedoqueomedoacabe.Deu-lheessenome,semosaber.Vaiaofacebookmandarmensagensaofilho,verasfotos dele e da namorada, no Luxemburgo, envia-lhes vídeos e fotos que vê deCoimbra,vaipassearasobrinha,dequemfalaemvozameninada,arir-se,a imitaraformacomoachamadetia.Falaemdecoração,emmudaracasa,vaibeberumcafé,falacomamãe,trá-laparacasa,fazumarranjobonitoparaacampadopai.

Tudoparaafastaromedo,paraqueeleacabe.

Masaconjugaçãodoverbonãotemfinitude.

Nomeiodestasdistracçõeshámuitotempoparapensar.

O filho também não tem sorte no Luxemburgo, e, enquanto fala com ele, tentadisfarçar o tumulto que lhe vai dentro, dá-lhe força. Não quer que ele desista, quevolteparaPortugal.Nuncalhedariatalconselho.

“Nunca,nunca,nunca”.

Emnovembrode2012,o filho liga-lhe. Já tinhaarranjado trabalhoháalgumtempo,compatrõesportugueses.Primeiroum,depoisoutro.Supostamenteiriareceber2400eurospormês.Supostamente.Ficou-seemsupostos.

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Amãeaflita,eofilhoaadivinharaflições,mesmoqueAliceseesforçasseparaomitir,estátudobem,estátudobem,eofilhodooutrolado,noLuxemburgo,distante,sempoderajudareaprecisardeajuda.“Olhamãe,secalhartenhoescritonocu:fodam-me”.Frustrado,comsaudades,àprocuradealgomelhornumpaísquenãoodele,enaprocuraencontraomesmoqueporcálhecalhava.

Fartou-sedeportugueses.Nãohá-devoltaratrabalharparaumportuguês.“Queeleslá,sesãopatrões,fazemomesmo”.

Emdezembro,ofilhodeAliceesteveumasemanaemcasaelogoaseguirencontroutrabalhoaassinaralvarásparaumaempresadeumpatrãosérvio.

“Agorajárecebe”.

E Alice a agarrar omarido em Portugal, a fazer de conta de que está tudo bem, oquotidiano,anormalidade,umteatrodesocorrista,deagarrar-seàMia,aojardim,àsvoltas do dia, para não descambar e, enquanto agarra omarido, agarra-se a ela. Eagarratambémofilho,lábemlonge,portelefone,nessasomissõesdotudobem,vai-se andando, a tentar esconder as noites em claro, a cabeça em claro, no meio daescuridão.

“Cásóháescuro,láaindaháumaluzaofundodotúnel…”

Procuratrabalho,bateaportas,algumasfecham-se,outrasabrem-se:

350eurospor9horas,desegundaasábado,paratomarcontadedoisidosos,umcomAlzheimer.

500eurospor11horasdetrabalho,das8danoiteàs9damanhã,7diasporsemana,365diasporano,paracuidardeumhomemcomAlzheimer.

800eurosparatratardeumcasalreformado,nacasadeAlice,24horaspordia.

“Secalhardeviatratardofuneraldelestambém!”

Rejeita.Estáaflita,precisadodinheiro,masnãosequerdeixarvencerdestaforma.

Espalhaflyerscomonúmeropessoal:

“Oláatodos!Sou uma senhora de 48 anos que teve a sorte de trabalhar com idosos durante 7meses,oquefoi,paramim,muitogratificante.Oquedouaosoutrosnuncamefaráfalta,sómefazsentirmelhor!Eénestabasequegostodetrabalho.

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Como estou desempregada, procuro trabalho na área da geriatria (prestação decuidadosaidosos).Seprecisarouconheceralguémqueprecisedomeutrabalho,nãohesiteemcontactar-me.Viaturaprópria.Disponibilidadeimediataparahoráriodiurnoounocturno.”O telefone toca. Esboça um sorriso assim que o telefonema acaba. Ainda há poucofalavadeterzeronaconta,dasbatalhasquetrava,eagora,sorri.“Aicaraças!Ligaram-meparaumapropostadetrabalho!”

Os olhos engrandeceme olha à volta. Sorri, outra vez. “Vou-me arranjar agora, voutomarbanho,falarcomaminhamãeedepoisvouàentrevista.IstoeraumabênçãodeDeus.Conseguíamosequilibrarascontas…”

Despacha-se,evê-seesperançanoseuandarrápido.

Maisumaportaaberta,ouentreaberta,daquelasquebatemcomovento.

Quando chegou à entrevista soube que seriam 400 euros, o que iria receber, paratrabalhar num lar de idosos. 100 euros iam para transporte. Ficava com 300. “Aspessoasaproveitam-se.”

Aindapensouir,aindahesitou,“nãohádinheiro”,masacabouporrejeitar.

Na primeira semana de Fevereiro, omarido voltou ao trabalho como camionista, aconduzir só com um braço apto, sem direcção assistida, e Alice a ligar-lhe todos osdias, preocupada, a saber que o marido estava perdido de dores, para além demagoado, abatido, a sentir-se inválido, limitado, deprimido, numa adjectivação queparecenãoacabarnabocadeAlice.

“Senãoteaguentasvemembora”,dizAliceaotelefone.

“Masseeunãoaguentaroqueéquevaiserdenós?”

Ascontasacumulam.

Paraalémdascertas,surgetambémumadívidadoatelierondeAlicetrabalhou,umaoperadorarelembra-lhequetemtambémquepagarotelemóvel,mesmoquejánãoouse,oempréstimodacasaérenegociado,500eurospormêsduranteospróximos15anos,eAlicejánemconsegueolharparadaquia15anos.

“Nessaalturanãoestoucá”.

Avidajánãoécomoeradantes,desabafa.Aspaisagensnacostalesteespanhola,querelembra,comomediterrâneoali,calmoesereno,comoavidaquelevava,asviagensaoGerês,osmimosaofilho,asuamaquilhagem…

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Sente-se “uma porcaria” quando olha para trás. E já pôs na cabeça que não queracabarosseusdiasemPortugal.

Olha para as manifestações na televisão, mas não põe lá os pés. “De queme valecantaraVilaMorena?”

Edepois,aira,acrescer…“eles,todospostosnumafila,punhaumacordaaopescoçodelestodosemandava-osparabemlonge”.

“ÉsemprePS,PSD,PS,PSD…Ummalmequerquantaspétalastem?”

Chama-lhes“estrongamongas”-afeiuradovocabulárioparaarremessaragentequedespreza.

Pede aos santos uma luz, clareza de espírito para quando, na cabeça, lhe passamcoisasquenãocontaaninguém.NofimdeNovembro,jásemtrabalho,Aliceabreosarmáriosenãotemnadadentrodeles,abreofrigoríficoenãotemnadadentrodele.E,nacabeça,dizquenãotinhanada,vazia,semnada,mesmoassim,comosesentisseum vácuo por dentro, que a deixava percorrer pensamentos, “porcaria”. Distrai-se,distrai-sesofregamente,paraque“osdisparates”seafastem.Masofilholonge,opaimorto,omaridoferidoaconduzirnoestrangeiro…parecequetudoseperdeentreafolgadosdedos.

Alice fica sozinha, em casa, namesma que quer toda diferente, pintada de branco,paralhechegarapaz,“obrancoépaznãoé?”

E assim, Alice, entregue a si, sem se poder agarrar aomarido, ao filho, agarra-se avozes,asons,amiragens,deoutravida,quandoerafeliz:

“Oiçoomeupaiasussurrar-meaoouvido:temcalmafilha,umdiaaindavaisserfeliz.Éissoquetentopôrnacabeçaquandoestouembaixo,comacabeçagasta.Àsvezesparece que o estou a ver, que o estou a ouvir, às vezes assusta-me, outras vezesacalma-me.Tambémoiçoocarrodomeufilhoachegar…maluquice,parecequesintoaportadecasaaabrir,eparecequeéa formacomoeleabreaportaeparecequeoiço:cucu,mãezita.Eéestaaminhadefesa”.

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Referências bibliográficas

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