o menino que morava na janela - nuno higino menino que... · natal de 1993 nuno higino o menino que...

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Avançava devagar e convidava-o a segui-lo. E, com os braços muito levantados e trémulos suspenso no olhar muito fixo, avançou sempre. Até qu imobilizou. E foi quando procurava o fio para o segura deixar fugir, que se viu envolvido por pessoas e a Presépio. Alguém o empurrava e tentava afastar. Mas que se fez ouvir: — Deixem-no vir até junto do Menino. Não o afast Não percebia muito bem o que se estava a pa poucos, amainou dentro de si o vento que lhe perco dissipou-se o nevoeiro que lhe toldava a alma. Começo do papagaio e aproximou-se com uma confiança que antes. Com o olhar nu e grande fitou demoradamente palhas. E sentou-se a seu lado com o fio do papagaio mão. Foi assim que, nesse Natal, muitos outros men como este puderam chegar até junto do Presépio, guia estrela que, entre a neblina da noite, brilhava intensa gruta. A mais alta estrela – Sete hi CENATECA, Associação Teatro e Cultura, Marco de C s e um sorriso ue o papagaio se ar e não mais o animais. Era o houve uma voz tem! assar, mas aos orria o corpo e ou a puxar o fio e nunca sentira e o Menino nas o bem preso na ninos especiais ados por aquela amente sobre a Natal de 1993 Nuno Higino istórias de Natal Canaveses, 2000 O menino que Havia um menino que pa da sua casa pobre. Parecia um era a única que a sua casa tinh os campos, o rio ao fundo dos O mundo deste menino er mundo, as cores, as formas e um corpo, uma voz, respiraçã meio das coisas, percorrendo luz, de fantasia, de espelhos corredores terminavam num sentia medo, solidão, incapaci Poucas vezes passava por ele fugia para dentro porque não o deixavam sair de casa e morava na janela assava os dias debruçado sobre a janela ma estátua emoldurada na janela, que ha. Imóvel, fitava as nuvens, as árvores, campos. ra um mundo diferente do nosso. Nesse e os sons eram como pessoas. Tinham ão. Como nos sonhos, ele movia-se no os seus corredores imensos cheios de de muitas faces. Algumas vezes, esses m abismo escuro e tenebroso onde se idade. ali gente, mas quando alguém passava, tinha medo das pessoas. Os seus pais a, porque ele não era como os outros

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Page 1: O menino que morava na janela - Nuno Higino menino que... · Natal de 1993 Nuno Higino O menino que morava na janela Havia um menino que passava os dias debruçado sobre a janela

Avançava devagar e convidava-o a segui-lo.

E, com os braços muito levantados e trémulos e um sorriso

suspenso no olhar muito fixo, avançou sempre. Até que o papagaio se

imobilizou. E foi quando procurava o fio para o segurar e não mais o

deixar fugir, que se viu envolvido por pessoas e animais. Era o

Presépio. Alguém o empurrava e tentava afastar. Mas houve uma voz

que se fez ouvir:

— Deixem-no vir até junto do Menino. Não o afastem!

Não percebia muito bem o que se estava a passar, mas aos

poucos, amainou dentro de si o vento que lhe percorria o corpo

dissipou-se o nevoeiro que lhe toldava a alma. Começou a puxar

do papagaio e aproximou-se com uma confiança que nunca sentira

antes. Com o olhar nu e grande fitou demoradamente o Menino nas

palhas. E sentou-se a seu lado com o fio do papagaio bem

mão.

Foi assim que, nesse Natal, muitos outros meninos especiais

como este puderam chegar até junto do Presépio, guiados por aquela

estrela que, entre a neblina da noite, brilhava intensamente sobre a

gruta.

A mais alta estrela – Sete histórias de Natal

CENATECA, Associação Teatro e Cultura, Marco de Canaveses, 2000

com os braços muito levantados e trémulos e um sorriso

suspenso no olhar muito fixo, avançou sempre. Até que o papagaio se

imobilizou. E foi quando procurava o fio para o segurar e não mais o

deixar fugir, que se viu envolvido por pessoas e animais. Era o

Presépio. Alguém o empurrava e tentava afastar. Mas houve uma voz

no vir até junto do Menino. Não o afastem!

Não percebia muito bem o que se estava a passar, mas aos

poucos, amainou dentro de si o vento que lhe percorria o corpo e

se o nevoeiro que lhe toldava a alma. Começou a puxar o fio

se com uma confiança que nunca sentira

antes. Com o olhar nu e grande fitou demoradamente o Menino nas

se a seu lado com o fio do papagaio bem preso na

oi assim que, nesse Natal, muitos outros meninos especiais

como este puderam chegar até junto do Presépio, guiados por aquela

brilhava intensamente sobre a

Natal de 1993

Nuno Higino

Sete histórias de Natal

CENATECA, Associação Teatro e Cultura, Marco de Canaveses, 2000

O menino que morava na janela

Havia um menino que passava os dias debruçado sobre a janela

da sua casa pobre. Parecia uma estátua emoldurada

era a única que a sua casa tinha. Imóvel, fitava as nuvens, as árvores,

os campos, o rio ao fundo dos campos.

O mundo deste menino era um mundo diferente do nosso. Nesse

mundo, as cores, as formas e os sons eram como pessoas. Tinham

um corpo, uma voz, respiração. Como nos sonhos, ele movia

meio das coisas, percorrendo os seus corredores imensos cheios de

luz, de fantasia, de espelhos de muitas faces. Algumas vezes, esses

corredores terminavam num abismo escuro e tenebroso onde se

sentia medo, solidão, incapacidade.

Poucas vezes passava por ali gente, mas quando alguém passava,

ele fugia para dentro porque tinha medo das pessoas. Os seus pais

não o deixavam sair de casa, porque ele não era como os outros

O menino que morava na janela

Havia um menino que passava os dias debruçado sobre a janela

da sua casa pobre. Parecia uma estátua emoldurada na janela, que

era a única que a sua casa tinha. Imóvel, fitava as nuvens, as árvores,

os campos, o rio ao fundo dos campos.

O mundo deste menino era um mundo diferente do nosso. Nesse

mundo, as cores, as formas e os sons eram como pessoas. Tinham

, uma voz, respiração. Como nos sonhos, ele movia-se no

percorrendo os seus corredores imensos cheios de

luz, de fantasia, de espelhos de muitas faces. Algumas vezes, esses

corredores terminavam num abismo escuro e tenebroso onde se

medo, solidão, incapacidade.

Poucas vezes passava por ali gente, mas quando alguém passava,

ele fugia para dentro porque tinha medo das pessoas. Os seus pais

não o deixavam sair de casa, porque ele não era como os outros

Page 2: O menino que morava na janela - Nuno Higino menino que... · Natal de 1993 Nuno Higino O menino que morava na janela Havia um menino que passava os dias debruçado sobre a janela

meninos. Por isso, não era bom que fosse visto e, muito menos, que

andasse cá por fora. Todos se riam dele e os pais sentiam uma grande

vergonha.

Um dia, distraído na sua janela, não se apercebeu que se

aproximava outro menino que, sem dizer uma palavra, o observava e

sorria longamente. Quando deu conta da sua presença, o menino que

morava na janela, retirou-se para dentro precipitadamente. Depois

disso, muitas vezes o encontro se repetiu, mas, para desgosto do seu

amigo, ele sempre se escondia.

Certa vez, ao contrário do que era costume, deixou-se ficar,

suspenso naquele sorriso, misterioso como a luz agasalhada da tarde

que todos os dias vinha e lhe fechava a janela. E sorriu também

timidamente.

O seu rosto dilatou-se e teve a sensação de que os olhos lhe

saíam das órbitas e dançavam à sua frente. O outro menino mostrou-

-lhe papéis coloridos que trazia nas mãos e ele, sabendo que não

estava ninguém em casa, desceu pela escada das traseiras.

Fizeram um papagaio e, dali em diante, lançava-o da janela e

olhava-o horas e horas a voar sobre as casas, os campos, os choupos

altos. O seu amigo, que quase todos os dias por ali passava, ficava

contente de o ver assim e dava risadas sonoras, dizia palavras soltas e

saltava e dizia:

— Deixa-o ir mais! Deixa-o ir até ao rio!

Um dia, porém, aconteceu uma coisa muito triste: o fio

soltou-se-lhe da mão e o papagaio voou para o outro lado da serra

que havia em frente. Se o seu amigo andasse por ali, ainda podia

ajudá-lo, mas naquele dia, por azar, não tinha aparecido.

Desceu a escada e, olhando para todos os lados, com medo de

ser visto, começou a correr desajeitadamente na direcção da serra.

Andou durante muito tempo: atravessou o rio na pequena ponte

e foi subindo a encosta agarrado aos arbustos. Dentro de si sentia um

vento que soprava de todos os lados e lhe percorria o corpo,

produzindo um alarido estranho, semelhante à fala das pessoas

quando se juntam aos magotes e falam uma para cada lado. Depois,

pareceu-lhe mesmo que caminhava por entre uma multidão que lhe

limitava os movimentos e o impedia de avançar mais depressa.

Já tinha, entretanto, anoitecido. As árvores pareciam gigantes de

grandes pernas e braços abertos. Desviava-se como podia, mas

sempre com medo de que alguma o reconhecesse e, nos seus grandes

braços, o levasse de volta para a janela onde morava. Sentou-se um

pouco entre os barulhos da noite e o tagarelar do vento com os

gigantes. Ali ao lado, viu um pequeno vulto que, de repente, lhe

pareceu o seu amigo. Quis articular algumas palavras, mas nunca

tinha aprendido a falar, porque todos fugiam dele. Aproximou-se.

Afinal, era um pequeno pinheiro igual ao que, por aqueles dias,

tinham enfeitado e iluminado no canto da sala da sua casa pobre.

Não valia a pena tentar saber por ele alguma informação: era

demasiado pequeno e dava ares de distraído. De certeza não tinha

visto passar o seu papagaio.

Olhou outra vez para o alto, mas nem uma estrela se avistava

porque o nevoeiro espesso cobria todas as coisas. Não poderia dizer

se o nevoeiro se estendia na floresta e pelo céu, ou dentro de si.

Sentia-se tonto, como um pião a rodopiar sobre si próprio.

Foi nesta altura que viu uma coisa extraordinária: o seu

papagaio surgia no meio do nevoeiro e baloiçava; brilhante como

uma estrela. Aliás, a princípio, até lhe parecia mesmo uma estrela.