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MARYANNA PEDRO SAMUEL MARYANNA MEDEIROS Esta é a história de um poeta. Sua infância, adolescência e juventude vivida de forma intensa. Seu sonho de ser padre e ao mesmo tempo, jogador de futebol, que termina com mais um título mundial para o Brasil. A descoberta da poesia, que trouxe o sentido que faltava para a sua realização. E o encontro com a Maryanna, a menina escolhida para contar a sua história, e dar nome a este livro. Um livro de sonhos... 1

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Page 1: O menino acordou e se viu em um local deserto. … · Web view- Claro que não, logo você vai se acostumar e verá que o tempo das aulas é muito pequeno, quando se quer aprender

MARYANNA

PEDRO SAMUEL

MARYANNA MEDEIROS

Esta é a história de um poeta.Sua infância, adolescência e juventude vivida de

forma intensa.Seu sonho de ser padre e ao mesmo tempo, jogador

de futebol, que termina com mais um título mundial para o Brasil.

A descoberta da poesia, que trouxe o sentido que faltava para a sua realização.

E o encontro com a Maryanna, a menina escolhida para contar a sua história, e dar nome a este livro. Um livro de sonhos...

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O menino acordou e se viu em um local deserto. Era uma estação de trem, dessas que se vêem nos filmes. Tinha um escritório, uma guarita e algumas casinhas espalhadas à beira da linha. Parecia ser madrugada, pois, a claridade presente dava um ar de miopia aos olhos do menino, que olhava distante e via somente campos e pequenas matas, que deixavam transparecer um verde descorado. Era a primeira vez que o menino se sentia gente e estava diante de um cenário, onde a solidão parecia a única realidade existente. Devia ter dois ou três anos de idade e aquela primeira imagem da vida, dava-lhe a sensação de estar só no mundo.

Passado este momento, houve um branco na vida do menino. Talvez ele tenha adormecido, por não suportar essa primeira imagem da sua existência. A vida não podia ser assim. Era muito pequeno para se sentir sozinho e o mundo deu uma trégua ao menino, que por um tempo, esqueceu de olhar seu novo espaço.

Algum tempo depois, se vê acompanhado de seu pai, andando por caminhos, em meio às matas e aos campos. E sorria... Esquecera aquela imagem da solidão, que a chegada àquele local deserto nele despertara. Era um sítio pequeno, uma casa de pau-a-pique pintada de branco,

que já mostrava sinais de envelhecimento nas paredes descascadas. A nova casa do menino ficava próxima a uma ferrovia e tinha o encanto que as residências rurais do Sul de Minas possuem. Havia uma bica por onde corria uma água deliciosa, que descia até um córrego cercado de árvores. E era como se fosse um paraíso, onde se ouvia o canto dos pássaros em meio ao barulho das águas. Havia, também, muitos pinheiros, que pareciam heróis devido ao seu porte, pareciam mesmo, os donos da região. E o menino passou a gostar daquele espaço, onde se sentia livre. A liberdade é um sentir-se em paz.

Sua mãe parecia feliz, em meio aos trabalhos domésticos. Cuidava dos filhos com a dedicação de uma fera. Os cabelos negros e compridos, um olhar que lembrava uma santa. Contava histórias que faziam o menino viajar até as maravilhas do local onde vivia. Falava dos perigos, das onças, das serpentes e das assombrações que também moravam próximas daquele local de sonhos. Tinha um jeito simples de ser e o menino adorava acompanha-la quando ia buscar água, lenha ou mesmo, passear pelas proximidades, ou ainda, visitar as casas vizinhas.

Seu pai parecia forte. Tinha sempre um ar sério, exigente, como se precisasse mostrar que era o dono daquelas paradas. De vez em quando, ele se soltava e sorria mostrando sinais de grande contentamento. Nas noites de frio, acendia uma fogueira, que aquecia a cozinha de terra batida e sabia contar estórias fantásticas. Às vezes, ele sumia, ficava dias e dias sem aparecer e o menino ficava sem entender aquela ausência.

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Sua irmã, dois anos mais velha era esperta, sabia muitas brincadeiras, corria por todos os cantos da casa. Os olhos eram grandes e brilhantes, e estavam sempre à procura de alguma coisa. Podia se notar que era muito inteligente e sensível. Transformava tudo em brinquedo e atraía a atenção do menino, que queria estar sempre ao seu lado.

E havia um bebê que dormia e chorava. Parecia chamar sempre a mãe, que não tirava os olhos dele. Assim era a família do menino, que vivia naquela casinha simples, onde tudo era simples...E havia um ar de felicidade em torno da vida, que era singela, mas fazia daquele menino um reizinho. Um reizinho que parecia não fazer perguntas ou, não se lembra delas, talvez, nem precisasse delas, ainda era muito pequeno.

***********************************************A vida era realmente bonita. Não havia

preocupações. Via-se uma natureza harmoniosa, onde cada ser tinha o seu espaço. Os campos, as árvores, os pássaros, as pessoas, as águas,os animais, tudo cercava aquele local. O sol, como era lindo o nascer do sol! Tinha qualquer coisa de magia, e encantava a existência. A noite era misteriosa, aquele escuro lhe trazia um certo medo e o menino sentia-se mais seguro próximo a luz, que vinha das lamparinas de querosene, do fogão de lenha e, quando era frio, da fogueira que aquecia a cozinha. Talvez, por isso, quase não se lembra da lua ou das estrelas. É uma ausência muito sentida, pois deve ser linda a noite com olhos de criança.

Não muito longe dali,moravam outras famílias. Quase sempre, a casa tinha visitas. Eram pessoas grandes, que conversavam sem parar. Traziam crianças que transformavam aquela casa, em um verdadeiro parque de diversões. Trepavam nas cadeiras, nas janelas, escondiam-se em todos os cantos, enfim, bagunçavam tudo. O menino tentava acompanhar aquele rítmo. Observava todos os detalhes e admirava a criatividade das crianças maiores, que brincavam como se fosem deuses, donos daquele pequeno mundo.

Um dia, o menino se viu em um caminho, no meio de uma pequena mata e estava com seu avô. Ah! Ainda não falei dele. Seu avô era uma pessoa muito séria, não parecia velho, de forma alguma. Por detrás daquela postura exigente, havia um ar de bondade, que podia ser percebido por todos. Era o padrinho de batizado do menino, que tinha o seu nome. Naquele dia, eles estavam juntos, avô e neto, em um caminho e o menino, lembra-se de, pela primeira vez na vida, ter feito uma pergunta.

- Vô, até onde se pode ir, por este caminho?- Reizinho, este caminho pode nos levar até muito

longe. Ele encontra as estradas e elas percorrem o mundo inteiro. Mas, você ainda não pode andar sozinho por este caminho, é muito pequeno, ainda, e pode perder-se nestas matas.

O menino nunca mais se esqueceu daquele diálogo e jamais, alguém voltou a lhe chamar de reizinho. Mas continuou a ser um reizinho, um reizinho que reinava sobre aquelas terras, árvores, pássaros, águas e caminhos que poderiam levá-lo ao mundo inteiro. E o mundo nem precisava ser grande, precisava, apenas, ter horizontes que,

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de vez em quando, mostrasse o arco-íris. E no seu mundo havia sempre o arco-íris, que sua mãe apontava dizendo ser lindo. E era lindo!

Tudo era felicidade para o menino Reizinho, nem era preciso sonhar. Seus sonhos eram realidades naquelas manhãs coloridas pelo sol. As manhãs de chuva? Reizinho nem se lembra delas. Talvez, também eram coloridas pelo brilho do verde molhado das plantas ou pelos pássaros, que passavam próximos à sua janela de onde, provavelmente, o menino olhava a enxurrada que passava levando folhas e pedaços de pau, que pareciam embarcações descendo rio abaixo.

Das manhãs de sol, Reizinho jamais vai esquecer. Seu pai, quase sempre, o levava até um retiro próximo, onde tirava leite. Era muito gostoso aquele passeio. Era preciso subir um morro alto e passar em meio a algumas cercas de arame farpado. Havia, inclusive, uma valeta que seu pai saltava com ele às costas, o que parecia fantástico aos olhos do menino. Finalmente, descia-se por um caminho cheio de pedras miúdas, onde era preciso muito cuidado para não se escorregar, e chegava-se a um curral. Um curral simples, feito de bambus, onde algumas vacas e bezerros faziam a alegria do menino Reizinho.

Reizinho tomava um leite delicioso, tirado na hora e ficava admirando seu pai, naquele trabalho de ordenha. Ficava , por um bom tempo, olhando aquelas criações. Aqueles berros pareciam uma melodia. Havia alguma coisa de paz naquele local, que o menino não se esquece nunca. Era, talvez, um paraíso escondido, “longe de qualquer lugar”, dividido, somente, por ele, seu pai e alguns animais. Um local perfeito para um menino se sentir um

reizinho. Na volta, passava-se pelo mesmo caminho. Aliás, Reizinho nem se lembra da volta, não era importante.

***********************************************

Um dia, quem apareceu na casa do menino, foi a avó. Jeito simples, olhar distante. As rugas mostravam um passado longo. Trazia um sorriso tímido, um ar de submissão para com o mundo. Conversava muito com a mãe do menino, conversas que ele não entendia, mas ficava atento. Era muito bom ficar perto de sua mãe e de sua avó. Vários dias se passaram, dias em que sua avó era o centro das atenções e sua mãe parecia mais feliz.

Após esses dias, na volta de sua avó, a mãe do menino foi retribuir a visita. Iam juntos, avó, mãe e netos. Era uma longa caminhada, feita a pé, atravessando montes, matas, córregos, taperas, e algumas pequenas fazendas. Logo no alto do primeiro monte, Reizinho avistou ao longe uma porção de casa juntas.

- É a cidade, onde mora a vovó ! Disse a mãe.Reizinho ficou impressionado com o que via. Na

pequena cidade, Bom Jardim de Minas, o que mais se destacava era a Igreja. Percebeu qualquer coisa misteriosa, quando, a avó e mãe apontaram para aquele templo e fizeram o sinal da Cruz. Um gesto ainda incompreensível para o menino, que pensava na distância que separava o local onde estava, daquela cidade. Distância que parecia perto para o olhar, se fosse um pássaro, poderia chegar num instante. Contudo não o era. Precisava seguir por um caminho mais longo e mais difícil.

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A caminhada foi longa. Subiram e desceram morros. Passaram por córregos, onde a parada para tomar água era obrigatória. Água deliciosa, que a mãe apanhava com a palma da mão e levava à boca do menino. Água que matava a sede e dava forças para seguir em frente. Chegaram a uma casa, onde sua mãe e sua avó, pararam para conversar com alguém conhecido. Somente após um bom café e muita conversa é que voltaram a caminhar. O passeio encantava Reizinho. A cada monte escalado, a cidade parecia mais próxima, as casas maiores e a Igreja mais encantadora.

- Vó, quem mora naquela casa bonita ? Perguntou Reizinho.

- Aquela é a casa de Deus. - Vó, a senhora me leva até lá, quero conhecer

Deus. Ele é bonzinho?- Deus é muito bom, é Pai de todos nós, mas você

ainda não pode conhecê-lo, é ainda muito pequeno. Somente quando crescer e procurar o amor, você irá encontrar Deus.

Reizinho não entendeu bem aquela resposta, mas estava feliz. Feliz com as coisas novas que estava conhecendo e, ao se aproximar da cidade, ficou encantado com o rio. O rio era realmente encantador, muito maior do que os córregos que ele conhecia. Havia uma ponte de madeira e, sobre ela, passaram e chegaram à rua. Era a cidade, casas grandes, pequenas, brancas, azuis, verdes e havia muros, que guardavam pomares cheios de frutas. Reizinho, louco por aquelas frutas, perguntou a sua mãe.

- Por que as pessoas fazem muros?

- As pessoas fazem muros para se protegerem . Porém, o muro faz com que as crianças fiquem tristes e os adultos, fiquem com medo dos ladrões, que podem pular o muro.

- Mãe, por que exitem ladrões?- Porque existem pessoas que não possuem casa

com quintal e as crianças gostam muito de frutas. Finalmente, chegaram ao destino, onde seu avô

esperava por eles. Reizinho estava cansado, mas cheio de contentamento por estar em casa de seus avós. Era uma casa simples, uma sala, onde se destacava um lindo relógio de parede. No quintal, o menino viu apenas algumas plantas e não gostou do muro que separava a casa de seus avós, das casas vizinhas. preferia a liberdade da sua casa na roça, onde não havia muros, a natureza se mostrava mais bonita, podia sentir-se parte dela. Ás árvores, os frutos, tudo parecia ter sido criado para ele.

***********************************************

Reizinho estava contente por estar em casa de seus avós. Veio a noite, com ela, as luzes da cidade foram acesas. A beleza que vinha das luzes de toda a cidade, fazia com que Reizinho, pela primeira vez, sentisse vontade de morar ali. A cidade parecia mais segura do que a escuridão na roça, onde assombrações e feras poderiam circular livremente e ameaçar a vida de um menino.

No dia seguinte, sua mãe o levou, juntamente com sua irmã, para visitar as lojas. Ficou encantado com os brinquedos de todas as cores e tamanhos. Sua mãe comprou panos, calçados, uma boneca para sua irmã, um

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brinquedo para o bebê, que havia ficado com a avó e um carrinho pequeno para Reizinho. Ele, porém, queria um carrinho maior e mais bonito, e o mostrou para sua mãe.

- Mãe, eu quero aquele ali!Não entendeu a resposta de sua mãe. Lembra-se

apenas, que começou a chorar e chorou muito. Pela primeira vez, Reizinho sentiu o seu desejo frustrado. Talvez, não era um reizinho de verdade. Mas ele queria ser e na tarde daquele dia, brincou com seu carrinho pequeno. E o imaginou grande, correndo por ruas, avenidas e estradas. Poderia percorrer o mundo inteiro através das estradas, como seu avô lhe dissera um dia. As horas se passaram. A noite chegou, Reizinho se cansou e dormiu embalado pelos sonhos de menino, que são sempre cercados de brinquedos e de anjos.

Assim que o dia amanheceu, o menino acordou com o chamado de sua mãe. Iriam voltar para casa. Pediram as bênçãos aos avós e partiram. Após andarem um bocado, chegaram à estação ferroviária. A volta seria feita de trem. Na chegada, o menino olhava as manobras e ficava radiante com os apitos da máquina. Sua mãe comprou as passagens e logo, estavam dentro de um vagão. Reizinho olhava pela janela, louco para o trem partir. Iria andar de trem. O trem que passava todos os dias em frente à sua casa, carregado de sonhos, que rapidamente se escondiam em um corte da linha.

Após um apito, o trem partiu e foi deixando para trás, os postes, as árvores e as casas. O menino observava aquele espetáculo da janelinha. Sentia uma felicidade imensa. Logo, as casas foram sumindo e vieram os pastos, os lagos, o gado, todo um cenário de sonhos. Reizinho nem

viu o tempo passar, até o momento em que sua mãe lhe avisou que estavam chegando. Desceram em uma plataforma, onde havia muita gente e o menino sorriu ao reconhecer seu pai em meio às pessoas.

Era a mesma estação descrita no início do livro, embora o menino não a tenha reconhecido. Talvez, devido ao sol que brilhava naquela manhã, pelas pessoas que já não deixava aquele local parecer solitário ou, por causa do trem que prendia toda a atenção de Reizinho.

O trem permaneceu parado por algum tempo e o menino não tirava os olhos dele. O trem de madeira, que não era azul, mas tinha uma máquina vermelha, que apitou e partiu diante dos seus olhos. Foi ficando pequeno até sumir em uma curva e parecia ter levado o coração dos meninos, que como Reizinho, imaginavam o que poderia haver por detrás daquelas montanhas.

Subiram por uma estradinha e chegaram a uma ponte de ferro, coberta por dormentes, que deixavam à mostra o fundo, que aos olhos do menino parecia um abismo. Seu pai que carregava o filho mais novo, pediu a uma moça, que também iria pelo mesmo caminho, para atravessar Reizinho naquela ponte. Daquele colo, o menino sentia cada passo, que saltava os dormentes e, olhava para baixo, com a sensação de que um passo em falso iria jogá-lo no abismo. Sentiu muito medo e chorou até o momento em que a ponte ficou totalmente para trás e ele, novamente, sentiu sob seus pés, a terra firme.

Finalmente chegaram em casa. Reizinho sentiu-se contente por estar novamente em seu lar. Andou pelo quintal, olhou as plantas, os pássaros e tudo parecia feliz em vê-lo de volta. Brincou com sua irmã e o dia passou

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num instante. Escureceu, veio o sono e o menino dormiu. Dormiu e sonhou, ou melhor, teve um pesadelo. Estava caindo em um buraco escuro e sem fim, uma sensação horrível. Ao acordar, bastante assustado, Reizinho chamou pela mãe.

- Mãe, por que alguém não conserta aquela ponte? Ela é muito perigosa!

- É que, as pessoas grandes já não tem tantos medos, às vezes são descuidadas e é por isso, que há tantos perigos no mundo.

***********************************************

O menino esqueceu os perigos do mundo e os dias se passaram. Dias de sol, dias de chuva e ele, feliz da vida, sorria e brincava naquele paraíso, o local onde morava. Reizinho estava sempre junto de sua mãe e de sua irmã. Às vezes, sentia falta do pai, sempre trabalhando longe de casa. Ficava vários dias sem aparecer e, nas noites, havia sempre, crianças vizinhas que dormiam em sua casa, para servirem de companhia para sua mãe. E era divertida a noite, onde as brincadeiras eram constantes e faziam do escuro dos quartos, verdadeiros mistérios, onde as assombrações das estórias que sua mãe contava, se escondiam à espera de Reizinho. E ele adorava quando as crianças maiores desafiavam aquele escuro e voltavam como heróis, para a cozinha iluminada pela fogueira e pela lamparina de querosene, onde o menino se sentia seguro e saía, somente, vencido pelo sono.

Um dia, Reizinho conheceu sua outra avó, a mãe de seu pai. Era uma senhora baixa, olhos claros e brilhantes e,

um jeito alegre que passava confiança ao menino. Não se lembra de ter conversado com ela, mas recorda sua voz grave, que quase sempre terminava em um sorriso. Perto dela, seu pai parecia mais feliz. Ela, porém, não ficou muito tempo com eles, mas deixou saudades em Reizinho, que um dia, pensou ter um outro avô.

- Pai, quero conhecer o pai do senhor!Seu pai parecia ter se engasgado e custou a

responder. - Meu pai morreu!- O que quer dizer isto, pai?- Filho, lembra-se daquele gatinho, que uma cobra

mordeu e você ficou triste? Pois é, as pessoas também morrem.

- Quer dizer, que eu também vou morrer um dia?- Não, você não morrerá nunca. Talvez, um dia

adormeça e acorde em um outro espaço. Com certeza, um mundo lindo, onde as flores estarão sempre vivas e você estará ao lado das pessoas que ama.

E a vida seguia, tranqüila, sua trajetória. Sua mãe cuidava da casa e dos filhos. Seu avô aparecia sempre, aquele jeito sério e o menino gostava dele. Tudo parecia bonito naquele local: o sol, as plantas, os pássaros, os animais, as chuvas e as enxurradas que passavam em frente à sua janela. Seu pai estava sempre andando pelos matos, trabalhando e cuidando de animais. Às vezes, porém, viajava e demorava muito a voltar. Um dia, Reizinho acordou e viu sua mãe arrumando bolsas, ouviu qualquer coisa sobre mudança e sentiu um ar triste pairando sobre a sua casa.

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Pouco depois, seguiam em direção à estação de trem. Não se lembra de quem o atravessou na ponte, mas recorda a viagem, que parecia não terminar nunca. O trem parecia lento, atravessando serras, fazendas, cachoeiras, estações e pequenas cidades. Por fim, o menino adormeceu, embalado pelo balanço gostoso e pelo barulho do trem.

Quando acordou, estava em uma casa diferente. Encontrou seu pai, sua avó e como era noite, logo voltou a dormir. No dia seguinte, pôde observar melhor onde estava. Era uma casa pequena, um quintal pequeno, parecia ficar em um buraco. Uma escada dava acesso à uma rua movimentada, por onde passavam muitos carros e preocupava a mãe de Reizinho, que não tirava os olhos dele e de sua irmã.

E os dias foram se passando. Em um deles, sua mãe e sua avó, foram a uma feira e levaram o menino. Reizinho sentiu-se perdido em meio a tanta gente. Ficou de olho nas barracas, que além dos alimentos, tinham brinquedos que o deixava fascinado. Em um determinado momento, soltou-se da mão de sua mãe, foi até uma barraca, apanhou um brinquedo e correu de volta. Sentiu uma frustração enorme, quando o dono da barraca veio até ele e tomou-lhe o brinquedo das mãos. Logo, pensou consigo, que aquele homem era mau, tinha muitos brinquedos, custava deixá-lo levar apenas um?

Reizinho jamais havia pensado, que as pessoas poderiam ser más. Porém, aquele homem despertou nele aquela dúvida. Ao chegar a casa, seu pai lhe perguntou se tinha gostado do passeio e ele nem respondeu.

- Pai, as pessoas podem ser más?

- Não, as pessoas não podem ser más, porém elas erram muito e as crianças ficam tristes.

Permaneceram, ainda, por algum tempo, naquela casa. Reizinho, porém, sentia-se preso. Sua mãe parecia triste e numa determinada manhã, acordou com ela arrumando as bolsas e dizendo que iriam voltar para o sítio. O menino sentiu-se feliz e, pouco depois, já estava no trem que partia em direção a Minas. Ia olhando as plantas, ainda molhadas pelo orvalho e imaginando a alegria de rever sua casa e tudo o que havia deixado. Sentia saudades da liberdade de olhar o verde e andar por caminhos cercados por árvores, onde não faltavam o canto dos pássaros e o encanto dos animais que passeavam diante dos seus olhos.

***********************************************

Novamente em sua casa, o menino voltou a sentir o prazer de estar livre dos muros. Via sua mãe mais feliz. Sua irmã brincava com ele o dia inteiro e o seu irmãozinho começava a dar os primeiros passos. Seu pai é que, às vezes, ficava muitos dias fora. Porém, quando chegava, trazia balas e doces, e a alegria da casa se completava. Reizinho gostava muito, quando seu pai estava em casa e o levava para passear nas matas, nas casas vizinhas, nos currais, nos campos e muitos outros lugares inesquecíveis.

Um dia, sua família mudou-se para outra casa, não muito longe. Reizinho não se importou muito. A casa era pequena e velha, mas o lugar era bonito. À sua frente, havia uma horta com muitos alecrins e um caminho que levava a um córrego cheio de pedras, onde se apanhava a

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água que iria ser utilizada. Um pouco adiante, ficava a linha, por onde passavam os trens, que o menino adorava. Ao lado, tinha uma grande valeta, onde, segundo sua mãe, vivia uma enorme serpente. Havia também, muitas árvores: jacarandás, pinheiros, candeias, jaboticabeiras e outras. Atrás da casa, ficava um morro e o caminho que ia até a cidade do avô de Reizinho.

O menino acostumou-se logo à nova morada. Os dias se passavam rápidos, com tantos lugares bonitos para se brincar. Perto dali, moravam seu tio e seus primos. Um deles dormia sempre em sua casa, quando seu pai estava ausente e era uma grande companhia. Seu primo já não era tão pequeno, podia andar sozinho por todos aqueles caminhos, gostava muito de pescar e, algumas vezes, levava Reizinho.

O córrego que passava no fundo da horta de sua casa, além da beleza de suas pedras e da melodia de uma pequena cachoeira, tinha muitos peixes. Nas tardes, seu primo apanhava as minhocas e passava por entre elas, uma agulha acompanhada de uma linha, que era amarrada na ponta de uma pequena vara. Assim, estava pronta a “chupança”, nome dado a este material, utilizado na pesca da “maria-mole”, um peixe encontrado no local. Ao escurecer, seu primo o levava para pescar, sob uma quantidade enorme, de pedidos de cuidado, feitos por sua mãe.

Era um local assustador. A noite e as árvores cobriam o córrego, deixando uma escuridão total. Reizinho sentava-se próximo ao seu primo, não tinha coragem de olhar para cima ou para trás. Pensava nas assombrações e nos bichos que, a qualquer momento, poderiam atacá-los.

Lembrava-se das estórias que sua mãe contava, sobre os antigos moradores, que diziam ser mal-assombrado aquele local. Alheio aos seus pensamentos, seu primo ia pegando os peixes, parecia não ter nenhum medo e isso confortava o menino Reizinho, que confiava nele.

Na volta, havia muitas dificuldades. Era preciso subir barrancos e saltar pedras no escuro. E elas pareciam sombras, aos olhos do menino, que confiava nos passos do seu primo e os seguia. E era muito bom chegar a casa e olhar os peixes, que ficavam nadando em uma lata com água. Logo depois, seu primo matava-os com água quente. No dia seguinte, sua mãe fritava-os para o almoço e eram deliciosos.

A casa de Reizinho tinha muitas histórias. Sua mãe falava muito, sobre a família, que havia morado nela, nos seus tempos de criança. Aliás, ela gostava de falar da infância. Contava histórias sobre um tempo em que havia muitos vizinhos e muito movimento naquela região. Apontava lugares, nomes de moradores e o menino, sentia aquela falta, no olhar de sua mãe, que parecia sentir muitas saudades. Dizia com orgulho, que o avô de Reizinho tinha sido um grande fazendeiro, com empregados, colonos, muitas terras e muito gado. Tudo aquilo havia desaparecido e o menino, ficava a imaginar o que teria acontecido com o povo que deixara aquele local quase deserto. E era uma terra muito fértil, o menino Reizinho poderia defini-la como sendo um paraíso.

Reizinho sentia-se triste com o abandono daquelas terras. Começava a perceber que os tempos eram outros. Seu avô já não parecia mais um fazendeiro. Havia poucas famílias vizinhas. Porém, ele era um reizinho, o local onde

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morava era um paraíso e a vida não podia ser melhor. Brincava o dia todo. Era encantadora a natureza vizinha. Sua casa, de forma alguma, parecia mal-assombrada, como sua mãe dizia, talvez, para manter Reizinho e sua irmã sob controle. O que importava, era que a felicidade parecia morar nas proximidades e as histórias em que Reizinho acreditava, eram somente aquelas, onde as bruxas terminavam derrotadas.

***********************************************Em algumas noites, o pai de Reizinho acendia uma

vela e, acompanhado da esposa, ajoelhava em frente à algumas imagens. Rezavam, rezavam muito e cantavam alguns cânticos de Nossa Senhora. O menino acompanhava a tudo com um olhar atento, não entendia bem o porquê daquilo, mas sentia que era importante. Era qualquer coisa de mágico, que fazia daquele momento, um momento especial, onde aquelas imagens pareciam ter vida e forças para afastarem o mal e protegerem sua família.

O menino aprendeu com seu pai algumas orações e sempre, que ia se deitar, repetia baixinho aquelas palavras mágicas. Às vezes, começava a pensar nos mistérios do mundo. Pensava no tempo, que havia deixado seus avós velhos. Na morte, que um dia viria buscá-lo. E em Deus? Quem seria Ele? Quem seriam seus pais? Reizinho nunca encontrou respostas para essas perguntas. Aquilo o desesperava, virava de um lado para o outro da cama, até que o cansaço o fazia adormecer.

Um dia, Reizinho conversava com seu avô e perguntava coisas de um outro mundo.

- Vô, todas as pessoas têm um pai, por que Deus não têm?

Seu avô sorriu e disse:- Você está parecendo gente grande, posso te fazer

outra pergunta?Reizinho assustou-se, queria uma resposta. Porém,

seu avô, também parecia em dúvida. Caiu na gargalhada quando seu avô lhe perguntou se, era o ovo ou a galinha, que tinha existido primeiro. E seu avô continuou...

- O que importa é que existem ovos, galinhas e que existe Deus.

O tempo foi passando e o menino, ao se deitar, já não pensava mais em mistérios. Era muito melhor pensar que vivia em um local bonito, tinha uma família e estava crescendo. Já não tinha mais pesadelos, seus sonhos eram sempre belos, neles estava brincando constantemente e, muitas vezes, podia voar como um pássaro. E Reizinho se empolgava com aqueles vôos. Ao acordar, ficava decepcionado por tudo não ter passado de um sonho, mas contava para sua mãe:

- Mãe! Sonhei que estava voando!- Que bom filho, é porque você está crescendo!Certa vez, seu irmãozinho ficou doente. Reizinho

sentia uma preocupação enorme na fisionomia de sua mãe. Na mesma hora ela arrumou as coisas e partiram em direção à cidade de seu avô. Seu irmãozinho logo ficou bom, mas Reizinho não esqueceu mais o olhar preocupado de sua mãe. Ela era muito sensível, em tudo via um grave perigo.

Muitas vezes, o pai de Reizinho ia até a cidade e demorava a voltar. Sua mãe ficava aflita, parecia

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alucinada. Aquilo deixava as crianças apavoradas e o menino começava, também, a pensar em coisas ruins. Pensava que seu pai poderia ter sido atacado por onças, lobos ou, até mesmo, assombrações, que pareciam terríveis na escuridão daquelas matas. A situação só voltava ao normal, quando seu pai chegava e sua mãe, voltava a se mostrar mais tranqüila.

Todos aqueles pensamentos ruins preocupavam Reizinho, que um dia, perguntou ao pai, sobre os perigos da escuridão na mata. Nunca mais esqueceu a resposta.

- Os perigos não podem ser maiores do que as pessoas grandes.

O local onde Reizinho morava, era, realmente, muito bonito e ele adorava, quando havia tempestades. Quando as chuvas passavam, sua mãe o levava para ver a enchente, que fazia do pequeno córrego, um gigante capaz de arrastar qualquer um, que tentasse desafiá-lo. E o menino ficava ao longe, admirando aquele espetáculo, sob o olhar atento de sua mãe, que com o pequeno ao colo, não se cansava de pedir a ele e sua irmã, que não se aproximasse muito da enchente.

Às vezes, Reizinho jogava um pedaço de pau, que descia abaixo numa velocidade enorme e deixava claro, o perigo da força daquelas águas. Nem mesmo seu pai, ousava desafiar aquela correnteza. Muitas vezes, ficava preso do outro lado, esperando que a enchente abaixasse, para chegar a casa. E aquilo demorava. Era preciso paciência e era preciso torcer para não acontecer uma nova chuva-forte, que complicaria ainda mais aquela situação. Reizinho adorava aquilo, porém, às vezes, ficava com medo de que seu pai perdesse a paciência e tentasse

atravessar a enchente. Gritava para ele e ouvia seus gritos abafados pelo barulho das águas. Era uma situação emocionante, que só terminava quando as águas abaixavam e seu pai chegava a casa, todos riam e a felicidade parecia ter vindo da chuva.

*********************************************** Um dia, o pai de Reizinho, chegou de viagem e

trouxe um livro. Leu algumas histórias e o deixou sobre um armário. O menino ficou fascinado por aquele livro, um pequeno livro de contos, com algumas gravuras. Os livros exercem um grande fascínio sobre as crianças. Logo, Reizinho pediu à sua mãe, para lhe dar o livro. Juntamente com sua irmã, ficou horas e horas olhando os desenhos. Aquelas paisagens desenhadas, o levavam a passear por um mundo que ficava longe de sua pequena casa. E eram paisagens bonitas, traziam sonhos para um menino. Um reizinho que tinha um reino cercado por horizontes, onde a liberdade voava nas asas dos pássaros e pousava tranqüila em meio à paz daquelas terras.

Era preciso que Reizinho e sua irmã aprendessem a ler. Por isso, dias depois, seu pai foi à cidade, trouxe um livreto com letras grandes e uma cartilha. E o menino, tentava aprender as lições que sua mãe lhe ensinava. E aprendia, aprendia muito rápido. Queria aprender e ler todas as histórias, aquilo parecia fascinante.

O menino vivia muitos sonhos. Era feliz! Tudo era motivo para que ele amasse a vida e o lugar onde morava. Tudo ali era bonito: os trens que passavam todos os dias, as enchente, os dias de sol, o canto dos pássaros e os caminhos que percorria ao lado de seu pai. Havia sempre a

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companhia da irmã, do irmãozinho, dos pais, dos primos, dos vizinhos. A solidão parecia não existir e como era bom, ela não existia para o menino Reizinho.

Reizinho não gostou muito, quando sua mãe lhe disse, que iriam se mudar para a cidade do seu avô. A princípio, deixar aquele local, onde adorava viver, parecia-lhe, uma grande perda. E o menino, por alguns dias, sofreu a dor de ter que despedir-se daquele reino, que era o seu paraíso escondido. E tudo parecia triste: o balanço das árvores, o canto dos pássaros, o barulho das águas e o apito do trem, que soava como um adeus ao menino Reizinho.

Alguns dias depois, numa manhã de sol, seu pai organizava a mudança. Os móveis foram colocados sobre alguns cavalos. Logo depois, seu pai partia, tocando os animais e deixando vazia a casa de Reizinho. Sua mãe ainda permaneceu ali por algum tempo. Somente mais tarde é que ela e as crianças tomaram o caminho da cidade. Iam conversando. Sua irmã, parecia empolgada com aquela mudança. Sua mãe, falava da escola, na qual iriam ser matriculados. Tudo parecia bonito e o menino começou a se interessar pela nova vida, iria estudar, teria muitos amiguinhos e teria a cidade, para fazer dela seu novo reino.

Depois de uma longa caminhada chegaram à nova casa, que ficava na mesma rua onde moravam seus avós. Era pequena. Da cor, Reizinho não se lembra direito. Talvez, um azul-claro, quase branco. Uma sala, um quarto e uma cozinha com uma escada grande. Tinha um terreiro pequeno, cercado de um lado, por um muro, do outro, por uma cerca e no fundo, por uma plantação de bananeiras. A nova casa do menino era muito simples e ele sentiu-se deslocado. Reizinho estava acostumado com a liberdade do

seu sítio, onde não havia muros e sim um grande espaço, que era só dele. Sentia-se agora, um prisioneiro, cercado por muros e pela rua, que sua mãe dizia ser perigosa.

Durante os primeiros dias, Reizinho olhou da janela, a rua, que, a princípio, pareceu-lhe calma demais. Havia muitas casas, quase todas pequenas, algumas muito bonitas. Quase não passavam carros, podia-se brincar à vontade. Os vizinhos pareciam acolhedores. Na casa em frente, morava uma família numerosa, com muitas crianças e uma vitrola, que tocava o dia todo na maior altura. À sua direita, morava um pedreiro, que tinha um filho alto e magro. Em frente a esta casa, morava uma senhora que tinha três filhas lindas. E muitas outras famílias, enchiam aquele local de mistérios. Muitos jovens com cara de maus, uma moça que morava com uma velha e passava o dia todo olhando na janela e, ainda, muitas crianças que brincavam naquela rua e deixava-a encantadora aos olhos do menino Reizinho.

***********************************************

O menino sentia que era preciso conquistar um espaço naquela rua. A princípio, parecia que os outros meninos não gostavam dele, pois estavam sempre o ameaçando. Reizinho não gostava daquelas provocações. Afinal, só queria encontrar amigos. Havia, ali, um garoto forte, parecia ser o líder daqueles meninos e começou a incomodá-lo. Reizinho sentia que era preciso fazer alguma coisa. De repente, pegou uma pedra, aproximou-se e acertou a testa do garoto. Na mesma hora, o sangue escorreu e Reizinho correu para dentro de casa. Logo

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depois, a mãe do garoto chegou, mostrando o ferimento e pedindo providências à mãe de Reizinho. E o menino ouvia, em silêncio, com medo de levar uma surra. Deu graças a Deus por seu pai estar trabalhando. Somente a tarde é que ele voltaria para casa.

As horas se passaram. Veio a noite, o pai do menino chegou e, provavelmente, sua mãe contou o que havia acontecido. Reizinho, porém, não se lembra do que ele possa ter falado, pelo menos, não lhe bateu. Nos dias que se seguiram, o menino não saiu na rua. Ficou pensando no que aconteceria, quando encontrasse, novamente, com o garoto vizinho. Aquilo o preocupava. Talvez, o garoto iria querer dar-lhe o troco. Era muito arriscado sair e o menino, por alguns dias, planejava uma maneira de escapar daquela situação, que o mantinha preso. Era preciso conquistar um espaço naquela rua e ser, novamente, um menino reizinho.

Reizinho sentia que estava muito chato ficar dentro de casa e decidiu que era o momento de enfrentar, novamente, aquele garoto. Saiu para a rua, andou um pouco para a direita, passou em frente à casa do inimigo e ela lhe pareceu silenciosa. Desceu em uma esquina, passou perto de um bar e continuou a explorar aquele local. Gostou do que viu. Havia muitos lugares, onde poderia passear. A cidade lhe pareceu bonita e sentiu vontade de andar por ela, conhecê-la todinha. E Reizinho andou muito, passou por ruas, esquinas, até que se cansou e decidiu voltar. E não foi fácil voltar, parecia perdido, sua casa estava longe.

Olhou em direção ao local onde morava e tudo lhe pareceu escuro. A visão de sua casa era encoberta por

centenas de outras. Olhava as pessoas, pensando em pedir ajuda, porém, não conhecia ninguém, estava só e longe de casa. Precisava voltar, começou a andar, mesmo sem ter certeza da direção certa. Logo, porém, começou a sentir que estava no caminho certo e ficou feliz pelas descobertas. Poderia voltar em outro dia, a cidade não era complicada, Reizinho podia andar por ela sem se perder. Chegou a casa, sem ter encontrado o garoto inimigo, mas encontrou sua mãe aflita, querendo saber onde esteve e, Reizinho perguntou.

- Mãe, esta cidade tem muitos perigos?- Claro, a cidade tem muitos lugares perigosos,

muitos carros e você pode se machucar. É, ainda, muito pequeno para andar sozinho.

- Mas, eu já tenho seis anos...No dia seguinte, Reizinho saiu novamente e, desta

vez, encontrou-se com o garoto inimigo. Pressentia o perigo, mas não sentiu medo. O garoto aproximou-se com um sorriso e começou a lhe fazer perguntas. Parecia não condená-lo pela pedrada e logo, fizeram as pazes. O garoto mostrou-lhe uma porção de lugares, onde poderiam brincar e apontou uma estrada que os levaria a um local distante. E fizeram planos de irem juntos a este local, que o garoto dizia ser muito bonito. Alguma coisa, porém, fez com que eles não se tornassem amigos. Reizinho não conheceu aquele local distante, mas descobriu que aquele garoto era bom e que ele não deveria, de forma alguma, jogar pedras em mais ninguém.

***********************************************Reizinho começou a gostar da cidade. Tinha muitos

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lugares para brincar, podia fazer amigos e divertir-se muito. Quase todas as noites, ia visitar seus avós, que moravam a uns quarenta metros de sua casa. Gostava muito de conversar com eles. Sua avó lhe dava, sempre, um pedaço de bolo com café e o menino adorava. Seus avós viviam só, um para o outro e pareciam felizes. Gostavam de falar sobre o passado e sobre os filhos, todos casados. Havia entre eles, qualquer coisa de cumplicidade, que Reizinho não via entre seus pais. Talvez, por isso, a admiração do menino, que não perdia nenhuma oportunidade de estar com eles.

Um dia, sua mãe, ao chegar das compras, trouxe cadernos, lápis e borrachas. Disse que Reizinho e sua irmã iriam estudar. O menino ficou radiante com a notícia, achou lindo o material que havia ganho. Passou a sonhar com a escola.

Os dias se passaram. Finalmente chegou o momento de Reizinho ir para a escola. Sua mãe preparou tudo e após o almoço, o menino, juntamente com sua irmã, partiu em direção à escola. Chegaram em um instante e o menino não conteve a emoção. Era tudo muito bonito. O portão, o corredor e o pátio, que pareciam enormes. Havia uma grande quantidade de crianças uniformizadas. Uma bandeira do Brasil, que ficava ao lado da porta de entrada para a secretaria. Tinha, ainda, a imagem de um Santo, que parecia não tirar os olhos das crianças. O menino Reizinho aguardava, com ansiedade, o momento de começar a aula.

Logo, as professoras organizaram filas e o menino seguiu uma turma, que se dirigiu a uma das salas. Sua irmã, foi para outra turma, o que, de certa forma, o desagradou. Felizmente, no seu grupo, havia um garoto

que era seu primo. Reizinho já tinha um conhecido e aquilo era muito bom. Seu primo era muito esperto, logo começou a conversar com ele e a se mostrar amigo.

A professora era morena e tinha uma facilidade muito grande para se expressar. Ganhou logo a admiração do menino. Porém, aquele primeiro dia de aula demorou um bocado a passar. Veio o recreio e as crianças foram para o pátio, onde havia uma separação entre os meninos e as meninas. Reizinho não viu sua irmã. Tomou um copo de leite e ficou em um canto, olhando os meninos, que corriam o tempo todo. Não quis correr com eles, queria voltar para casa. O recreio, porém, acabou e, por mais um longo período, ele teve que ficar na escola. E tudo pareceu uma eternidade, até o momento em que um sinal anunciou o fim da aula e as crianças saíram felizes. Reizinho encontrou sua irmã e juntos, tomaram o caminho de volta para casa. Ao passar próximo à casa de sua avó, ela quis saber como havia sido o seu primeiro dia de aula. O menino respondeu:

- Vó, a aula demorou muito, será que vai ser sempre assim?

- Claro que não, logo você vai se acostumar e verá que o tempo das aulas é muito pequeno, quando se quer aprender de verdade.

Realmente, nos dias que se seguiram, as aulas passaram a ser mais interessantes. Reizinho começou a interessar-se pelas lições, que a professora ensinava e, também, pelos amiguinhos que começou a fazer. Os recreios passaram a ser divertidos. O pátio passou a ser um local bonito, onde os meninos jogavam futebol, brincavam de pique e o tempo voava. O menino Reizinho aprendia as

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lições com facilidade. A cada dia deixava para trás uma página da cartilha e aprendia uma nova história. Voltava para casa feliz, nem notava o tempo das aulas, que agora passava veloz, deixando lições, que guardava com orgulho.

***********************************************

A vida tinha, agora, um novo sentido. A escola trouxe para o menino um compromisso com o saber e, era algo gratificante. Reizinho adorava aprender. Cada descoberta significava uma nova porta que se abria, deixando à mostra uma porção de novidades. Aprender era qualquer coisa de um nascer do sol, uma luz que brilhava e trazia um mundo diferente. Com certeza, um mundo muito mais bonito.

Numa determinada manhã, o pai do menino parecia preocupado. Reizinho andou com ele pela cidade e sentia que havia alguma coisa no ar. Seu pai conversou, algum tempo, com um homem, qualquer coisa sobre uma viagem e voltaram para casa. Ao chegar em casa, o menino notou que sua mãe, também, estava diferente. Alguma coisa estava para acontecer e ninguém lhe contava nada.

Somente no último momento, Reizinho ficou sabendo, que sua mãe iria ter um novo bebê e, é claro, adorou a notícia. Na mesma hora, seu pai lhe deu dinheiro e pediu, que fosse com a irmã e o irmãozinho, passear e comprar doces. Ao voltarem, encontraram em casa, somente a avó e ela sorria dizendo que a mamãe tinha ido buscar o novo bebê. Quem parecia não entender nada, era o irmão mais novo de Reizinho, que começou a chorar e chorou horas e mais horas. E elas se passaram lentamente.

A casa parecia vazia. Porém, havia o prenúncio de uma grande alegria e tudo emocionava o menino Reizinho.

Alguns dias se passaram, até que, seu pai avisou que sua mãe iria chegar e tudo se transformou em expectativa. Todos querendo conhecer o novo bebê, que o pai disse ser um menino. Reizinho tinha, agora, um novo irmãozinho e sentia-se muito feliz com isso. Naquela tarde, toda a família vibrou com a chegada da mãe, que trazia ao colo, o filho mais novo e sorria, mostrando um ar de imensa felicidade.

Logo, os vizinhos chegaram. Todo mundo queria ver o bebê, que dormia tranqüilo sob o olhar dos pais e irmãos. Mais tarde, ele começou a chorar, a chorar muito e por muitos dias, foi o centro das atenções naquela casa. O menino Reizinho até se sentia, muitas vezes, deixado de lado. Tudo parecia girar em torno do pequeno. O tempo, porém, passava rápido e tudo ia voltando ao normal. A vida naquela casa, agora, era um sonho a seis.

Aos poucos, Reizinho ia conquistando a rua onde morava. Passou a conhecer quase todas as pessoas e os meninos vizinhos, já não o provocavam. Brincava tranqüilo em frente à sua casa ou em qualquer outra parte da rua. No final daquela rua havia um campo, onde os meninos soltavam pipas e Reizinho adorava passear. No alto, uma grande caixa-dágua despertava muita curiosidade. Daquele alto, dava para ver quase toda a cidade, que era pequena, mas muito bela aos olhos do menino Reizinho.

Uma bela tarde, ao voltar da escola, Reizinho viu um carro parado em frente à sua casa. Era um amigo de seu pai, que tinha vindo de longe para visitá-lo. Para o

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menino era alguém especial, não por ser amigo do seu pai, mas porque tinha um carro. E ele achava o máximo aquele carro, um fusquinha, e dele não tirava os olhos. Estava louco para dar uma voltinha, não só ele, sua irmã também parecia encantada. Seu irmãozinho até esqueceu, um pouco, os ciúmes do bebê. Por um momento, aquele carro passou a ser o centro das atenções na casa do menino Reizinho.

À noite, finalmente, aquele amigo convidou as crianças para um passeio de carro. Reizinho adorou aquele passeio. Passearam por toda a cidade, passaram por lugares que ele, ainda não conhecia. À noite, as ruas eram mais bonitas, tinham o brilho das lâmpadas e o menino se encantava a cada esquina. Depois de muitas voltas pela cidade, que era pequena, pararam em frente a um bar, onde o amigo de seu pai comprou balas, doces e chocolates. E voltaram felizes para casa, aquele passeio tinha sido o máximo.

No dia seguinte, passearam novamente. Andaram por uma estrada deserta, passaram por matas, atravessaram pontes, encontraram pessoas, animais e voltaram, cortando as curvas e alimentando os sonhos das crianças. Naquela tarde, o amigo do seu pai foi embora, mas deixou saudades. Reizinho nunca mais se esqueceu dele, era simples, tinha um jeito tranqüilo e tinha um carro. Um carro que, por alguns instantes, deixou Reizinho feliz e o fez sonhar, com o dia em que seu pai pudesse comprar um e, passeasse com ele todas as tardes.

***********************************************

A vida continuou brincando com Reizinho. Era muito feliz naquela pequena cidade. Todas as tardes, ia para escola. Porém, tinha as manhãs livres e brincava... Muitas vezes, esquecia as horas e sua mãe era quem o lembrava do compromisso com as aulas. E os dias se passaram e, as aulas também, Reizinho fez provas, vieram o final do ano e os resultados. Ele havia passado para o primeiro ano adiantado, uma sala especial para os alunos que não conseguiam passar para a segunda série. O menino não gostou, queria estudar na segunda série, junto com sua irmã que tinha sido aprovada. Sentiu uma enorme frustração, mas não adiantava reclamar. O que importava, era que viriam as férias e seriam dois meses longe da escola, tendo o dia todo para brincar.

Durante as férias, os dias se tornaram pequenos para o menino, que não parava em casa. Levantava cedo, tomava café e saía em busca de aventuras. Muitas vezes, nem voltava para o almoço, deixando sua mãe preocupada. Reizinho somente voltava, quando a fome apertava muito e o estômago já estava quase nas costas. Ao chegar a casa, ouvia sempre as mesmas palavras de sua mãe:

- Por onde andou este tempo todo, você quase não se alimenta, assim não vai crescer, olha como está magro.

O menino não tinha palavras para responder. Almoçava um pouco e, logo, voltava novamente para a rua. Tinha se transformado em um menino de rua. Reizinho tinha dois amigos. O Giló e o Luquinha, eles eram irmãos. Giló era o mais velho, devia ter dois anos a mais do que o irmão Luquinha, que por sua vez, parecia ter a mesma idade de Reizinho. Juntos, andavam por toda a

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cidade, nas ruas, no parque, na beira do rio e em muitos outros lugares. Os dias pareciam pequenos para eles.

O trajeto incluía, quase sempre, uma passagem por uma padaria, onde ganhavam pães e comiam felizes. Muitas vezes, ainda, ganhavam dinheiro e saiam pelas ruas. Reizinho não se lembra de ter visto seus amigos roubarem, eram honestos, meninos honestos e amigos. Pediam... Muitas vezes, seus pedidos lhes eram negados, mas, Reizinho jamais viu revolta nos olhos deles. E andavam muito, o dia todo, para desespero da mãe do menino que não queria, de forma alguma, aquela amizade.

O tempo passou rápido e as férias se acabaram. Reizinho sentiu-se feliz com a volta das aulas, já estava cansado de andar sem rumo o dia todo. Numa tarde de sol, ele partiu em direção à escola. Ia só, pensava no ano inteiro que teria pela frente. Ao chegar à escola, foi para uma sala, onde havia muitos alunos, talvez, uns quarenta. E aquela aula demorou muito, os alunos faziam uma bagunça enorme. Alunos que tinham cara e tamanho de quem deveria estar na quarta série. O menino Reizinho, muito miúdo fisicamente, sentia-se massacrado naquela turma. Voltou para casa desanimado.

No dia seguinte, foi novamente para a escola. Ficou, por um bom tempo, tentando acostumar-se com a idéia de que aquela seria a sua nova turma. De repente, foi surpreendido por um chamado da diretora da escola. Foi até a secretaria, onde a diretora, com uma cartilha, pediu-lhe que lesse alguns textos. Reizinho leu com muita naturalidade e explodiu de contentamento, quando a diretora lhe disse, que, a partir do dia seguinte, ele freqüentaria as aulas da segunda série. Iria estudar de

manhã, junto com sua irmã. Aquilo era maravilhoso. Voltou para casa feliz com aquela vitória, tinha sido aprovado, não seria mais preciso ficar naquela sala especial.

Ao chegar em casa, contou a novidade, mas não se lembra da reação de sua mãe, aliás, ela era muito calma neste sentido, quase não deixava transparecer suas emoções. Talvez, o menino sentiu falta de um parabéns. Porém, estava feliz, iria estudar na segunda série. Sua irmã parecia não acreditar, mas era verdade. Reizinho não iria mais repetir o primeiro ano, dera a volta por cima depois de ter passado as férias inteiras, chateado com a reprovação.

Na manhã seguinte, Reizinho foi para a escola com sua irmã. Adorou a nova turma, onde parecia não haver indisciplina. A professora era loura, bonita e muito simpática, tratava os alunos com muito carinho. A turma não era pequena, porém, todos pareciam interessados e as aulas eram excelentes. Reizinho começou, inclusive a gostar de matemática. Fez muitos amigos, sentia-se feliz entre eles e o tempo passava voando. Nas tardes saía pela cidade com os amigos. Nas noites, brincava na rua, mas não deixava nunca de fazer os deveres de casa. Tirava sempre um tempinho para os deveres, um tempo pequeno, mas suficiente para resolver os problemas que a professora pedia.

As tardes de Reizinho eram sempre muito bonitas. Encontrou um novo amigo. O Toinho era um pouco mais velho que ele, um garoto que adorava criar passarinhos, mas que também os matava, era um caçador. Tinha sempre à mão, um ótimo estilingue e, dificilmente, errava o alvo.

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Reizinho lembra-se bem da primeira caçada. Desceram até a linha de trem, onde as andorinhas em bandos, pousavam nos fios elétricos. Toinho, com seu estilingue, derrubou várias delas, sob o olhar atento do menino, que, a princípio, parecia revoltado com aquilo. Ao final, Toinho depenou todas elas e fez um belo churrasco. Dali em diante, as caçadas se tornaram constantes, quase todos os pássaros eram candidatos à morte. Toinho só não matava os beija-flores, dizia que dava muito azar. Sabiás, tico-ticos, rolinhas, maritacas e muitos outros, quase sempre, terminavam seus dias no estômago de Toinho e de Reizinho.

Todas as manhãs, Reizinho ia para a escola. Adorava levantar cedo, para estudar. Sua turma era muito legal, embora o menino, não se lembre de ter tido um amigo especial naquela sala. Era o menorzinho da turma e, talvez, por isso, sentia-se intimidado para falar qualquer coisa. Ficava quieto, prestava atenção a cada detalhe, gostava muito da professora, que falava coisas bonitas. Ouvia, atento, a conversa dos dois alunos que sentavam à sua frente e falavam como se fossem gente grande. Falavam de futebol, de revistas em quadrinhos, de super-heróis e, até mesmo, de discos voadores. Coisas que viviam distantes do mundo de Reizinho.

***********************************************

A professora de Reizinho sempre incentivava seus alunos a irem à Missa das crianças, que acontecia aos sábados. Sua irmã ia freqüentemente e até cantava no coral, com outras crianças. Um dia, Reizinho foi com ela.

Sentiu-se deslocado em meio a tantas crianças. Quase não prestou atenção ao padre, mas achou lindo o canto das meninas do coral. Passou a freqüentar aquela Missa. Porém, muitas vezes, ficava com vergonha, porque as outras crianças estavam sempre bem vestidas. Ficava sempre nos bancos de trás, quase não se lembra das orações que fazia, mas olhava atento tudo o que acontecia.

Todos os sábados o menino ia àquela Missa. Gostava do canto, das orações e de todos aqueles rituais. A presença do padre, das catequistas, professoras e de um grande número de crianças, faziam importantes aquelas tardes. Reizinho jamais se esqueceu de um dia em que as catequistas, estavam matriculando as crianças para se prepararem para a primeira comunhão. Não queriam aceitá-lo, porque ainda não havia completado oito anos e ele começou a chorar. E chorou muito, até que acabou aceito, iria freqüentar o catecismo e voltou feliz para casa.

Reizinho tinha agora mais um compromisso. Era preciso freqüentar a escola à tarde, duas vezes por semana, para as aulas de catecismo. E ele começou a assistir àquelas aulas, onde se aprendiam os Mandamentos da Lei de Deus, da Igreja, os Sacramentos, além de orações. Tudo ensinado com carinho, por uma pessoa maravilhosa, que o tempo fez com que o menino a perdesse de vista. Reizinho gostava muito daquelas aulas. Porém, por serem à tarde, elas atrapalhavam em muito as suas caçadas e, ele perdeu muitas. Quase sempre, chegava a casa e havia perdido as horas. Sua mãe ficava brava, sua irmã dizia que ele havia chorado para entrar no catecismo e agora, ficava matando os encontros. E foram muitos encontros perdidos.

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Todas as tardes, após chegar da escola e almoçar, Reizinho saía de casa. Às vezes, andava por toda a cidade, com Giló e Luquinha. Outras, ia caçar passarinhos com Toinho. Iam a muitos lugares. A cidade ainda possuía muitas matas e muitos pássaros, quase todos os meninos da rua possuíam estilingues e gostavam de caçar. Toinho, porém, era o melhor caçador da rua, jamais voltava para casa de mãos vazias. Reizinho gostava muito de ser seu amigo. Juntos, assavam e comiam todos os pássaros que eram mortos.

Toinho era quem fazia os estilingues e fazia o dele, sempre melhor. O estilingue de Reizinho era feito com borrachas de câmara de ar de bicicleta, enquanto o dele era muito mais potente. Toinho alegava que ele, ainda, não podia usar um estilingue igual ao seu, que era perigoso. Uma pedra mal atirada, poderia machucar a sua mão e Reizinho conformava-se com aquela situação, afinal, a caça era sempre repartida. Sentia, porém, muita raiva, quando acertava os pássaros grandes e eles voavam como se nada tivesse acontecido. E as caçadas eram constantes, para azar dos pássaros, que ficavam em frente à mira de Toinho e de Reizinho.

Muitas vezes, Reizinho levava seu irmão nos passeios. Seu irmão tinha os cabelos grandes, devido a uma promessa de sua mãe e iria cortá-los, somente aos sete anos. Reizinho o levava em suas aventuras, para desespero de sua mãe. E não faltavam lugares perigosos: um córrego, onde Reizinho estava aprendendo a nadar; barrancos, de onde adorava saltar e muros, onde brincava de equilibrista. Havia muitos lugares para os meninos brincarem. Era muita aventura.

Na rua de Reizinho, havia muitas brincadeiras. Brincadeiras que se alternavam a cada espaço determinado de tempo. Durante algumas semanas as crianças jogavam bolinhas de gude; depois chegava o tempo de rodar piões; disputar maços de cigarros; até que vinha a época das pipas e o céu ficava todo colorido. Eram pipas vermelhas, azuis, verdes, amarelas, enfim, de todas as cores. E era lindo olhar aquele espetáculo. Reizinho ficava horas e horas, olhando as pipas e como queria ter uma!

Porém, Reizinho não tinha dinheiro, ou seu pai não lhe dava, para comprar a pipa e a linha. E ele começou a tentar fazer suas pipas e improvisar a linhada. Desfiava os sacos de linhagem, ia emendando e conseguia uma linha, que se não era ótima, servia para realizar seus sonhos de menino. Fazia as pipas com papel comum. A primeira não voou, a segunda também não, nem a terceira, mas ele insistiu. Até que um dia, uma delas voou e Reizinho sentiu-se o máximo. Ficou horas e horas soltando-a, como se ele próprio estivesse voando.

O tempo passava e Reizinho era feliz. De manhã ia à escola; a tarde, caçava passarinhos ou passeava pela cidade. Somente às vezes, ia ao catecismo. Nas noites, após fazer os deveres de casa, brincava na rua ou ia até um vizinho assistir televisão. Dormia como uma pedra, cansado por mais um dia longo e gostoso. Aos sábados, ia à Missa das crianças. O domingo era só dele, brincava o dia todo. Tomava banho em um córrego, que tinha uma água clara e deliciosa. O menino Reizinho adorava viver.

***********************************************Vieram as férias de julho. Sua tia o convidara para

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ficar alguns dias no sítio onde morava. Reizinho jamais havia ficado longe de casa, mas resolveu aceitar o convite. Eram muitos os filhos de sua tia e os dois mais novos eram quase da sua idade. Achou que seria divertido ir para a roça, onde teria a companhia dos primos para brincar. Levaria o estilingue, seu fiel companheiro de caçadas, tinha certeza de que iria encontrar muitos pássaros.

Reizinho levantou-se muito cedo e se despediu de sua mãe. Seus irmãos ainda dormiam, quando ele, sua tia e seus primos, saíram em direção à estação de trem. O trem era o mesmo que ia em direção ao sítio, onde Reizinho vivera. E ele se lembrava com saudades dos dias, em que a natureza era sua grande amiga. A vida era diferente de andar o dia todo pelas ruas, matar passarinhos, brigar com os moleques e estudar. Porém, o trem andou rápido e logo chegaram ao destino. A mesma estação de sempre, lembra-se do início do livro? Bem, não era momento de ficar recordando as coisas. Logo, seguiram o caminho que ia até a casa de sua tia. Com certeza, estavam felizes. Andaram muito, subiram um grande morro e mais outro. Passaram muitas cercas, até chegarem a um local bem alto. Agora era só descer. A casa de sua tia ficava em um vale muito bonito. E chegaram... Reizinho já estivera ali antes, mas desta vez prestara mais atenção a cada detalhe. Era uma casa muito bonita, tinha um alpendre de onde se via uma paisagem linda. A natureza, de alguma forma, caprichou naquela região, as árvores, os pastos e as montanhas. Reizinho adorava aquele lugar.

Havia muitos animais naquela pequena fazenda. Muitas vacas leiteiras, uma quantidade enorme de galinhas, alguns porcos, três cachorros e até um carneiro, que havia

sido criado na mamadeira e era muito manhoso. Seu primo dizia que ele era bravo e pedia, que Reizinho tomasse cuidado. Não era a primeira vez que o menino ia àquela casa, mas desta vez, estava longe de sua mãe e teria, realmente, que se cuidar. E ele lembrava-se bem do cachorro que o havia mordido, era o mesmo que estava dormindo em baixo de uma mesa. Era preciso ficar atento.

Durante uma semana, Reizinho curtiu aquele local encantador. Levantava cedo, tomava café e comia um pedaço de bolo de fubá, que era uma delícia. Ia ver seu tio tirar leite e, logo após, ajudava seus primos a tratar dos pássaros, que mantinham presos. Eram muitos e bonitos. Era preciso, ainda, tratar das galinhas, patos e porcos, todos famintos. E Reizinho ia olhar as arapucas, que havia armado em busca da captura de alguns pássaros. Após o almoço, era preciso apartar as vacas. A parte da tarde, finalmente, era mais livre. Podia ficar à vontade, caçar passarinhos e brincar com seus primos.

À noite, Reizinho estava cansado, mas ouvia atento, aos casos contados por sua tia. Quase sempre eram casos de assombrações, que apareciam no local. O menino nem tinha coragem de olhar no terreiro. Imaginava as almas perdidas, que naquelas horas, estariam tomando conta daquelas proximidades. Logo após, adormecia pensando no amanhecer que era muito mais lindo. Acordava com o canto dos galos, dos pássaros, o mugido das vacas e as canções do rádio, que sua prima ligava. Tudo isso o deixava feliz.

O tempo, porém, passou rápido e logo, chegou o dia da volta. O menino já estava mesmo, com saudades de casa. Ganhou de presente uma galinha. Ficou todo

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contente, iria levá-la para sua mãe. Sua prima foi com ele, era, ainda, muito pequeno para andar sozinho. Conversaram durante todo o caminho de volta. Chegaram à estação e, pouco depois, o trem já tinha o passageiro Reizinho, que estava muito contente. Tinha adorado o passeio. E queria chegar logo em casa, buscar novas aventuras.

Reizinho chegou a casa. O tempo passou, as aulas voltaram e num belo dia, o circo chegou. Ele não sabia o que era, mas ficou impressionado com o palhaço de pernas de pau enormes e com as crianças que o acompanhavam, gritando que haveria espetáculo. Reizinho foi até o circo. Porém, não tinha dinheiro para pagar a entrada. Via a alegria estampada no rosto dos amiguinhos, que passavam no portão de entrada. Voltou para casa, muito chateado. Mas a tristeza passou e vieram muitos outros dias.

Seu pai acabou saindo do emprego e foi trabalhar em uma cidade distante. Ficava muitos dias longe de casa e Reizinho sentia-se livre. Sua mãe o deixava solto, talvez, por não conseguir dominá-lo. O menino caçava passarinhos e andava com seus amigos, por toda a cidade. Descuidou-se das aulas, quase não ia ao catecismo, andava sujo e, muitas vezes, acabava se metendo em confusão com outros moleques. Tinha se transformado em um moleque de rua, que perambulava o dia todo. Às vezes, sentia muita fome, sua cabeça doía e ele voltava para casa, jurando que ia abandonar as ruas. Porém, no dia seguinte, já estava novamente sem destino. Ia passear no parque, na praça, na estação de trem, na beira do rio e em qualquer outro lugar da cidade.

O parque era o seu local preferido. Tinha o balanço, a roda, a gangorra, o trapézio, e outros brinquedos. Na praça, Reizinho nunca entrava nos bares. De alguma forma, não gostava dos donos de bares. Quando estava com Giló e Luquinha, iam sempre a uma padaria, onde olhava atento, a fabricação dos pães. As pessoas que trabalhavam ali, eram muito bacanas, tratava-os sempre, com muito carinho. Na estação, o menino olhava contente, as manobras dos trens e quando estava à beira do rio, ficava admirado com as pessoas, que nadavam com uma facilidade enorme. Ele, porém, não se arriscava. Ficava de longe e sentia um medo enorme, quando alguém brincava, dizendo que iria jogá-lo no rio. Ali pertinho, ficava um campo de futebol, que tinha uma pedra enorme ao seu lado, onde as crianças adoravam brincar de alpinista. A cidade era encantadora, os dias se passavam num instante.

***********************************************O menino sentia-se um reizinho de verdade.

Adorava a liberdade. Até que um dia, sua irmã chamou-lhe a atenção para o final do ano, que estava se aproximando. Disse-lhe que a professora e a catequista já estavam cansadas da sua ausência. Iria ser reprovado e não faria a primeira comunhão. Reizinho ficou triste, não admitia a idéia de ser reprovado, era preciso mudar aquela situação. Queria também fazer a primeira comunhão, era importante. Era preciso esquecer um pouco a rua, os passeios e as caçadas.

No dia seguinte, Reizinho chegou cedo à escola. Quis saber da professora, como estava a sua situação, se ainda tinha alguma chance de escapar da reprovação.

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Ouviu palavras carinhosas da sua professora, aliás, era uma ótima professora.

- Você tem todas as chances do mundo.Reizinho era um reizinho, tinha todas as chances do

mundo. Estudou feliz naquela manhã. Depois, encontrou a catequista e ela lhe disse, que poderia fazer a primeira comunhão, desde que não perdesse mais nenhum encontro. Assim, Reizinho voltou a ir à escola todas as manhãs e quando saía para passear à tarde, ficava de olho nas horas para não perder o catecismo.

Um dia, a catequista levou Reizinho e as outras crianças para assistirem a um filme. Um filme de Santo. O menino achou o máximo. Gravou na memória aquela imagem do Anjo da Guarda, que protegia o menino. Sentia que também tinha um Anjo, que não lhe deixava acontecer nenhum mal. E os dias foram se passando. Foi se aproximando o dia de sua primeira comunhão. Sua mãe comprou panos e lhe fez uma calça e uma camisa nova. Arranjou-lhe, também, uma gravata borboleta e um sapato preto. Era preciso que Reizinho ficasse bonito, no dia de sua primeira comunhão.

Finalmente, chegou o dia esperado. De manhã, os meninos foram à Igreja para se confessarem. Naquele tempo, as turmas eram separadas e as meninas, por certo, estariam ali em outro horário. Havia muita expectativa entre os meninos, que brincavam em volta da Igreja. A confissão tinha qualquer coisa de mistério, contar os pecados ao padre não era fácil, mas havia um inferno, que precisava ser evitado. Reizinho decorou uma dezena de pecados e entrou na fila.

O padre ficava escondido dentro do confessionário, uma casinha de madeira, que parecia interessante aos olhos do menino. Ele tremia a cada vez que mais um menino terminava de se confessar e se aproximava a sua vez. E ela chegou. Reizinho ajoelhou, esqueceu-se de quase todos os pecados, mas saiu dali aliviado. Tinha passado pelo mais difícil. A tarde seria o grande momento. Haveria a Missa, onde Reizinho faria a primeira comunhão.

Preparou-se muito para aquele momento. Vestiu a roupa que sua mãe havia feito, colocou a gravata borboleta e sentiu-se o máximo. Sua irmã, também se preparou e com um vestido branco, parecia muito feliz. Para sua família, aquilo era tudo. Podia se notar o contentamento nos olhos de sua mãe, seu pai e seus avós.

Chegaram à Igreja. Reizinho olhou seus amigos, todos arrumadinhos e as meninas, que estavam lindas. Aquele era um momento importante e aquela Missa foi muito bonita. Na hora da comunhão, Reizinho acompanhou a fila emocionado e, rezou baixinho. Entendia muito pouco o que estava acontecendo. Para ele, era uma festa, onde sentia ir embora um pouco da sua infância. Teria, a partir dali, maiores responsabilidades. Porém, ele queria continuar caçando passarinhos, desobedecendo sua mãe, matando aulas, brigando com os moleques na rua e fazendo tudo o que o seu coração menino pedisse. E aquele momento passou, deixando lembranças marcantes na vida do menino Reizinho.

O ano ia chegando ao seu final. Reizinho pensava nas férias e caprichava nas provas. Acabou sendo aprovado. Deixava para trás a segunda série e agora teria merecidas férias. Sem aulas e sem catecismos, estava livre.

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O dia inteiro, a semana inteira, dois meses inteiros para brincar. Poderia caçar passarinhos e andar o dia todo. Até mesmo, voltar à fazenda de sua tia e matar as saudades das férias anteriores.

Os dias voavam, tudo como se fossem previstos. Um passeio ao parque, ao rio, uma partidinha de futebol e lá se ia mais um dia. Chegou o Natal. O menino não ganhou presentes, mas, também, não precisava, era muito feliz. Naquelas férias, ele não saiu da cidade, não foi ao sítio, nem a nenhum outro lugar. Porém, divertiu-se muito, sua cidade era bela e tinha muitos amigos.

Nas noites, havia sempre uma rodinha de vizinhos na rua. As pessoas conversavam, as crianças brincavam, muita gente passava e era muito divertido. Eram poucas as casas que tinham televisão e a rua era o ponto de encontro. Havia muitas conversas e, quase sempre, confusão entre os vizinhos. Era divertida a noite na rua e Reizinho, ainda, tirava um tempinho para visitar sua avó e comer um pedaço de bolo delicioso, que, somente ela sabia fazer.

Muitas vezes, Reizinho aprontava. Atirava pedras no telhado dos vizinhos e batia nos meninos menores. Certa vez, um jovem passava tranquilamente de bicicleta pela rua. Reizinho brincava, tinha um caroço de abacate na mão. De repente, um estalo e ele atirou-o na cabeça do moço que passava. Olhou o que tinha feito, sentiu que tinha pisado no tomate, quando o moço virou a bicicleta e veio com tudo em sua direção. Tentou correr, mas não deu. Acabou sendo atropelado. Caiu, ficou todo machucado e levantou nervoso, louco para dar uma pedrada de verdade naquele safado. Nas noites seguintes, ficou de estilingue armado, pronto para acertar o danado. O moço, porém, não

passou mais por sua rua e o menino, acabou tendo que esquecer, aquele desejo de vingança.

E o menino nunca deixou de aprontar, aliás, as crianças são sempre assim, estão sempre aprontando e acho isso lindo. A vida é muito mais bonita, quando se é criança, tudo é motivo de graça. O tombo, a pedrada, o corte do caco de vidro, nada disso importa. O convite do muro, da bola, da aventura, tudo é sagrado. Menino é fogo, é graça, é raça, não foge da luta. Ah, o Reizinho? Bem, ele estava de férias, tinha um corte na perna e outro na barriga, por causa da bicicleta. Mas não parava em casa, andava o dia todo atrás de aventuras...

***********************************************Toinho, Giló e Luquinha ainda eram seus melhores

amigos. Com eles podia falar sobre tudo, talvez, eram as únicas pessoas com quem conversava de verdade. Papo de criança. Cada um dos seus amigos possuía um jeito diferente de ser. Toinho era sério, falava somente o necessário. Giló sabia tudo sobre coisas erradas, falava o tempo todo das mulheres da rua e Luquinha era quieto, quanto muito, repetia as palavras do irmão. Era com eles que Reizinho passava a maior parte do tempo.

Mais uma vez, as férias se acabaram e o menino tomou, novamente, o caminho da

escola. Terceira série, mesma professora, mesma turma e mesmo horário. Para ele nada

havia mudado, a não ser as férias que tinham se acabado e era preciso dar duro de novo.

Porém, tudo corria tranqüilo, aprendia novas lições a cada dia e as tardes eram livres.

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Rundinei Marcones Nunes, 03/01/-1,
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Podia fazer tudo o que um menino precisa e adorava a vida, que fizera dele um reizinho.Certo dia, Reizinho e a família foram visitar a avó

paterna, que morava em outra cidade. Seu pai parecia triste e o menino, sentia que havia algo errado. Mesmo assim, adorou a viagem feita de trem. Era uma viagem encantadora para qualquer criança. Por um momento, Reizinho esqueceu-se de tudo e da janelinha, olhava as paisagens, que já conhecia de outras viagens, mas não deixavam de ser lindas. As matas, as pequenas cidades, as cachoeiras, as casinhas, as pessoas que acenavam e um rio, que parecia o mar. Mas seu pai, disse não ser o mar, o mar era ainda muito maior.

O trem chegou, e rápido, para desespero do menino, que queria ficar com aquela paz. A paz do trem, que deixa tudo para trás e segue em frente, em busca do novo, da novidade. Leva a vida, que não tem retorno, um menino que não quer olhar para trás. Seu pai, talvez, quisesse voltar o tempo, mudar a vida, não parecia bem, não tinha um pai. Reizinho queria ver sua avó, fazia tempo que não a via, estava com muitas saudades.

Sua avó estava doente. Ficava deitada em uma cama e não tinha mais a boa aparência de sempre. A família de Reizinho ficou ali alguns dias e retornou. Ele e sua irmã tinham que estudar. Pouco tempo depois, a família recebeu a notícia da morte de sua avó. De repente, tudo pareceu triste, era a primeira pessoa querida que o menino perdia. Ficava uma saudade enorme daquele olhar feliz, de alguém com cara de otimismo, que o tempo levou.

Era preciso esquecer a morte. A vida não pode dar lugar ao passado. O tempo não para nunca, é preciso

construir o destino. O menino Reizinho foi para a escola, aprendeu uma nova lição e na volta, visitou a única avozinha que lhe restava. Via nas suas mãos, no seu rosto e nos seus cabelos, sinais de envelhecimento. E o menino imaginava quanto tempo, ainda, teria sua avó por perto. Era preciso amar aquela avozinha, que mantinha um jeito de ser carinhoso. Tinha muita fé, parecia adorar a vida e a família. O avô, apesar da idade avançada, ainda, andava muitos quilômetros e ia até o sítio, de onde sempre trazia frutas, que a avó guardava para os netinhos. Seu avô trazia no rosto o suor e o prazer de quem era livre. Alguém que tinha naqueles caminhos, uma vida inteira de lembranças que não podiam ser esquecidas.

Um dia, sua avó mostrou-lhe pela janela, o caminho que ia até o sítio, onde Reizinho vivera grande parte de sua infância. Mostrava, com orgulho, a estrada que estava sendo construída. Logo, seria possível ir até o sítio de carro. Sua avó era alguém, que sentia muitas saudades do lugar, onde criara os filhos. Talvez, quisesse voltar lá, ficar alguns dias e aquela estrada facilitava tudo. O menino sentia-se feliz perto da avó, ficava ali por algum tempo, comia um pedaço de bolo gostoso e despedia-se, dizendo que ia brincar na rua.

Reizinho saía sorrindo, chegava a sua casa, pegava as bolinhas de gude e ia disputar com os amigos. Ganhava sempre, nunca perdeu. Aliás, os meninos não perdem nunca, a não ser que algum adulto os atrapalhe. E o menino Reizinho seguia em frente, estava crescendo, já tinha quase nove anos e torcia para o tempo passar rápido. Todas as manhãs, seguia o caminho da escola, que lhe falava de um futuro lindo. O futuro de um menino é

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sempre lindo, guarda uma quantidade enorme de sonhos bonitos.

Os dias se passavam. Tudo parecia tranqüilo para o menino Reizinho. Porém, não era bem assim. Seu pai, mais uma vez, estava desempregado e sua mãe, parecia não gostar mais de alguns vizinhos. O menino, alheio a tudo, estudava, caçava passarinhos e jogava futebol. Era feliz, adorava aquele lugar. Havia conquistado um espaço naquela rua. Tinha muitos amigos, estava indo bem na escola e não queria outra vida.

***********************************************Um dia, seu pai lhe disse que estava fazendo uma

nova casa na roça e que iriam voltar para lá. A princípio, Reizinho não gostou daquela idéia. Teria que abandonar tudo: os amigos, a escola, as peladinhas, as brincadeiras da rua e muitas outras coisas, que a cidade proporcionava. Porém, não era ele quem decidia as coisas. Era o seu pai, quem decidia tudo e iriam, realmente, voltar para o campo. O menino passou a recordar o passado e sentia que não iria ser tão ruim assim. Lembrava-se do tempo em que a natureza era sua grande amiga. Os pássaros, as árvores, o córrego de águas claras e o amanhecer, que na roça é muito mais lindo.

Reizinho começou a esperar, com ansiedade, por aquela mudança. Havia crescido um bocado e, agora, poderia andar à vontade pelas matas. Imaginava a quantidade de pássaros, que o sítio do seu pai escondia, faria grandes caçadas. E o menino contava aos amigos tudo sobre o local onde iria morar. Seus amigos, já pareciam cheios de saudades e ficavam com água na boca, quando

Reizinho falava do seu novo reino. Um lugar, onde os pássaros cantavam no terreiro e as matas escondiam muitos segredos. E falava de onças, lobos e outros bichos desconhecidos, que, na certa, habitavam o seu sítio.

No fundo, porém, Reizinho sentia-se triste por deixar os amigos. Qualquer partida é muito triste, mas é preciso partir. Toinho, Giló e Luquinha, ficaram para trás. O menino jamais voltou a ser amigo deles. Ficaram somente as lembranças de um garoto sério e de dois garotos de rua, que, mais tarde, passaram a beber, destruindo a imagem de bons meninos.

A mudança para o sítio aconteceu em uma tarde de sol. De manhã, Reizinho fez compras com a irmã e, foi despedir-se de seus avós. Uma despedida breve, porque ele e a irmã iriam voltar e ficar com eles até terminar o ano letivo. Em casa, sua mãe arrumava as coisas e, a todo momento, chegavam os vizinhos, que pareciam sentir muito aquela partida. Até que chegou o caminhão e todos ajudaram a colocar os móveis em sua carroceria. Logo, o caminhão partiu. O cachorrinho parecia não gostar, mas era seguro por Reizinho, que, juntamente com o pai e a irmã, dividiam com os móveis, aquele espaço. Sua mãe e os dois filhos menores iam na cabine, com o motorista, que desviava com agilidade dos buracos e das pedras da estrada. E o menino, via naquela viagem, um grande progresso. Antes, havia apenas um caminho, agora, uma estrada, mesmo que cheia de buracos e pedras, mas era uma estrada e, novamente, sonhava com o dia em que seu pai, pudesse comprar um carro.

Chegaram ao destino. Os móveis foram descarregados na beira da estrada. Faltava, ainda, um

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pedaço de caminho que teria de ser feito a pé. Desceram por uma trilha em meio a uma mata. A casa ficava em uma clareira, cercada de capoeiras por todos os lados. Um local muito bonito, onde a visão do verde deixava clara a idéia de uma paz muito grande. A nova casa de Reizinho era pequena, dois cômodos feitos de pau-a-pique. Porém, estava novinha e tinha a cor da terra. Assim que chegaram, começou a chover, era tudo muito bonito.

Logo, alguns primos de Reizinho, que seriam os novos vizinhos, ajudaram seu pai a buscar os móveis que haviam ficado na beira da estrada. Veio à noite, sua mãe fez um jantar gostoso e seu pai contou histórias daquelas matas. No terreiro havia uma escuridão total. O verde da tarde dera lugar ao preto e a mata parecia assustadora. Era como se fosse um paraíso para as feras. Onças, lobos e assombrações, na certa, estariam à espreita de qualquer humano que se atrevesse a sair de casa, naquela escuridão. O menino Reizinho sentiu medo daquele local, porém, adormeceu feliz com a promessa de seu pai, de acordá-lo cedo para ouvir o canto dos pássaros.

Reizinho estava cansado, dormiu como uma pedra e acordou com o chamado de seu pai. Era madrugada. Começava a clarear, o sol ainda demoraria um pouco, a surgir. O ar da manhã era algo, simplesmente, fantástico. A cinqüenta metros, ficava a mata e os pássaros que faziam um barulho enorme com seus pios e cantos. E o menino ficou feliz de ver a natureza em festa, o frio nem importava. Era maravilhoso o canto dos pássaros e o sol, que, pouco depois, surgia por sobre a mata e jogava seus raios no terreiro, aquecendo a casa, que de manhã, parecia muito mais bela.

Reizinho foi passear nas proximidades. Queria conhecer um pouco mais, seu novo local de vida. Chegou à mata. Sentiu, ainda, o frio do orvalho que pingava das árvores. Sentiu o ar puro, que vinha do suave perfume das plantas. Tomou da água gelada, que descia de uma cascata e ficou olhando os pássaros, que cantavam e comiam as sementes das árvores. Não se arriscou a ir longe, poderia se perder em meio à mata, mas, por um bom tempo, ficou ali, curtindo a natureza.

Sua família parecia muito feliz na nova casa. Seus pais pareciam ter encontrado o local, onde sempre sonharam viver. Divertiam-se com o trabalho que faziam, aliás, não parecia trabalho. Era um constante contato com a natureza, que devia fazer um bem enorme ao corpo e a mente. Sua irmã é que parecia sentir, um pouco, a falta das colegas, mesmo assim, deixava transparecer um brilho de alegria nos olhos escuros. Seus irmãos deixavam claro, que estavam adorando a nova morada. O menorzinho começava a andar e, a qualquer descuido da mãe, tomava o caminho em direção à floresta, que já o encantava.

***********************************************Reizinho ficou ali por alguns dias, mas era preciso

voltar a estudar. Ele e a irmã, teriam que terminar o ano letivo e iriam ficar na casa dos avós. O dia de ir para a cidade lhe pareceu triste. Despediu-se dos pais, dos irmãos menores e, juntamente com a irmã, tomou o caminho da cidade. Duas crianças, que andaram quilômetros em busca da escola, deixando para trás a família e a paz do local onde viviam.

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Chegaram a casa dos avós. Reizinho não estava feliz. Não era bom ficar ali. Gostava muito dos seus avós, mas era muito melhor morar com os pais. De repente, seu avô pareceu-lhe mais exigente e sua avó era cúmplice dele. Reizinho e a irmã, teriam que andar na linha. A noite custou a passar, o menino pensava na nova vida. Seus pais na roça e ele tendo de viver com seus avós. Tudo por causa da escola. Será que valeria a pena estudar?

Na manhã seguinte, Reizinho e a irmã foram à escola. Voltaram conversando sobre os avós, sobre uma maneira de burlar a vigilância deles e saírem em busca de um pouco de diversão. Concordavam entre si, que era preciso ter liberdade, seus avós não poderiam mantê-los presos.

Ao chegar a casa, o almoço já estava pronto. Reizinho almoçou, mas não saiu de casa. Passou a tarde lendo e as horas custaram a passar. Porém, era preciso respeitar sua avó e ela parecia feliz, com aquela atitude do menino. À tardinha, o avô chegou em casa, sério como sempre e, veio a noite. O menino e a irmã ficaram conversando com eles, até que veio o sono. Deitaram cedo. No dia seguinte, foram novamente à escola e veio a rotina da tarde e da noite. Até que, finalmente, chegou o fim de semana e com ele, o descanso merecido.

Reizinho e a irmã pediram as bênçãos aos avós. Seguiram o caminho da roça. Estavam cheios de saudades dos pais, dos irmãos e da liberdade. Após a longa caminhada, chegaram a casa e o menino sorriu ao ver a alegria de sua família. E o fim de semana passou num segundo. Tudo ali era mais bonito. Havia a liberdade de sair de casa e andar, sem se preocupar com as horas. O

menino Reizinho queria ficar ali, para sempre, queria que o tempo parasse. Mas, o tempo não pára... Era preciso voltar para a cidade e para a casa dos avós. O fim de semana havia se acabado. Era preciso estudar e voltaram para a cidade.

A semana, novamente, foi longa. De manhã, as aulas passavam rápidas. Porém, as tardes e as noites se passavam lentamente. Reizinho adorava a liberdade, mas seus avós, não gostavam que ele saísse. Quando o deixavam dar uma voltinha, marcavam o tempo no relógio. Assim, não tinha graça nenhuma. Seus amigos morando na mesma rua e o menino sozinho. Aquela falta de liberdade era horrível. Tinha que se contentar com a leitura de alguns livros, do contrário, olhava pela janela, o tempo que passava numa lentidão terrível.

Sua irmã, também, sentia-se presa. Em uma determinada noite, ela chamou Reizinho para pular a janela e ir até o vizinho, assistir televisão. E foi um momento livre, onde viveram algumas horas felizes. Reizinho não se recorda se seus avós descobriram aquela fuga, nem se lembra de outras saídas. Mas, foi um momento gostoso onde a repressão ficou para trás. E era realmente preciso, deixar um pouco de lado aquela submissão aos avós. Era preciso ser livre, como sempre havia sido e o menino torcia para o tempo passar rápido e chegar logo, o final do ano escolar, para assim poder voltar para a casa de seus pais.

Vieram outros finais de semana. Reizinho e a irmã, iam sempre para a casa dos pais, onde tudo era mais gostoso. E o tempo passou, trazendo o final do ano e a aprovação para o menino, que deixava para trás a terceira

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série. Eram as férias que chegavam e com isso, não precisaria mais ficar na casa dos avós. Era o fim de mais uma etapa e o menino ficaria, agora em definitivo, na casa dos pais. Porém, o momento de se despedir dos seus avós foi doloroso, apesar da ansiedade com que o menino esperou por ele. Sentiu que seus avós ficaram tristes, não teriam mais, dali em diante, a companhia constante dos netinhos.

Sua avó parecia querer chorar e pedia que eles não deixassem de visitá-la. Seu avô, sempre sério, também não escondia a tristeza nos olhos. Reizinho partiu... E sua irmã partiu... Partiram juntos, levando saudades e lembranças de momentos, que se não foram bons, foram vividos com os avós e devem ser guardados para sempre, no coração. E o menino Reizinho jamais se esqueceu do carinho que sua avó tinha pela vida e pelas pessoas. Jamais se esqueceu, também, do jeito sério de seu avô, que parecia ter no peito, um coração sem espaço para o mal.

Reizinho voltou a viver na roça. Era dezembro. O milho e o feijão que seu pai havia plantado cresciam viçosos. As chuvas eram constantes e deixava mais belo o verde das plantas. A mata parecia feliz, os pássaros chocavam para a alegria do menino, que descobria seus ninhos. Os animais sempre davam as caras, eram tatus, coelhos, lontras, ouriços e os gatos do mato, que adoravam as galinhas de sua mãe. Nas tardes, havia sempre o grito de um animal, que era parecido com o grito de um homem e seu pai brincava, dizendo tratar-se de um animal terrível. Assim, o menino Reizinho e os irmãos evitavam sair à tardinha. Havia, ainda, o medo das onças, lobos e até

mesmo, do tamanduá. Aquela morada era como um sonho, um local lindo, um paraíso para qualquer criança.

***********************************************Reizinho fazia muitas arapucas e pegava muitos

pássaros. Juritís, rolinhas, sabiás, trinca-ferros, tico-ticos e muitos outros. Porém, soltava todos. Tinha apenas uma gaiola, onde mantinha preso um colheiro. Mas, o que ele queria mesmo, era ter um viveiro bem grande e criar muitos pássaros.

Um dia, matou uma pomba jurití que havia caído em sua arapuca. Sua mãe preparou-a e ficou uma delícia. Reizinho, porém, não mais quis matar aquelas pombas. Não queria agir como o amigo Toinho, que matava todos os pássaros. E soltava sempre, os pássaros que caíam em suas armadilhas. Adorava vê-los voar ao abrir suas mãos. Queria pegar um jacú. Este sim, era grande. Sua mãe dizia que o jacu era do tamanho de um galo. E o menino fez uma arapuca maior que as outras e armou-a, bem no meio da floresta.

Todas as manhãs, ia conferir a sua armadilha. Numa delas, encontrou o jacu preso. Porém, não deu tempo de se aproximar. O jacu, desafiando o menino, revirou a arapuca e voou tranquilamente para o meio da mata. Reizinho sentiu que aquela ave era mesmo muito forte, mas não desanimou. Amarrou uma pedra enorme sobre a arapuca e aguardou os outros dias. O danado, porém, não voltou mais e o menino, nunca chegou a pegar o jacu.

O tempo passava e a felicidade parecia ser completa. Nas noites ouviam-se os programas sertanejos

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no rádio, até a chegada do sono. Quase sempre, iam visitar os avós e a cidade. Seu pai adorava rezar o terço aos domingos e ensinava os filhos a cantar os cânticos de Nossa Senhora. Os vizinhos apareciam sempre para uma visita. O menino Reizinho tinha toda uma natureza para brincar. Ele e seus irmãos brincavam o tempo todo.

Novamente, chegou o tempo da escola. Reizinho e sua irmã iriam fazer a quarta série. Não na cidade, mas na escolinha, que funcionava na capelinha da estação de trem. Saíram cedo, para o primeiro dia de aula. Passaram na casa de uma prima, que também iria estudar e foram caminhando pela linha de trem. Iam conversando, sorrindo e saltando os dormentes. Era longe... Após um bom tempo de caminhada, avistaram a igrejinha, que ficava no alto de um morro. Atravessaram a ponte, era aquela mesma estação de trem. Reizinho conhecia bem aquele lugar, aquelas casinhas, guaritas e sentiu-se em casa.

Subiu por um caminho e chegou até a capelinha. Havia muitos alunos, alguns conhecidos. A professora era uma pessoa maravilhosa. O menino adorou a nova escola. Era apenas uma capelinha, onde os alunos da terceira e quarta séries estudariam juntos. À tarde, a professora teria como tarefa, ensinar as crianças da primeira e segunda séries. Aquele primeiro dia de aula passou num segundo.

O melhor momento, era, sem dúvida, a hora do recreio. Podia se brincar em volta da capelinha ou, até mesmo, fugir até a beira da linha e ficar olhando os trens. Um pouco abaixo, havia uma lagoa muito bonita, onde as pessoas nadavam e pescavam. E havia, ainda, o movimento dos trens de passageiros, que davam muita vida àquele local. O barzinho que vivia sempre cheio e o

apito dos trens, que chegavam e partiam carregados de sonhos. O menino voltava para casa cheio de novidades. Aprendia muito, apesar das brincadeiras. Adorava a professora, adorava aprender e se esforçava muito. Era um menino reizinho.

Havia uma família que morava à beira da linha. Aquela família tinha uma menina linda. Morena-clara, cabelos pretos e um jeito encantador. Reizinho passou a ficar de olho naquela menina. Era a primeira vez que se sentia apaixonado. Era qualquer coisa de felicidade que inundara a sua vida, uma sensação de paz a todo momento. Matava as aulas para ficar próximo daquela casa e olhar a sua amada. Porém, evitava todo tipo de aproximação. Tinha uma timidez, que repelia qualquer contato mais intimo. Ficava de longe, olhando a beleza e sonhando com o amor daquela menina.

O tempo se passou, sem que Reizinho falasse com a sua primeira grande paixão. Paulinha, que, à noite brincava em seus sonhos. E o menino acordava cheio de saudades e ia para a escola, louco para ver novamente aquela menina. Quase não prestava mais atenção às aulas. Ficava pensando o tempo todo no seu amor, que, naquele momento, devia estar brincando próximo à casa onde morava. E ele queria estar lá, olhando-a, mesmo que de longe. Paulinha era o seu primeiro amor.

Um dia, Reizinho não viu mais Paulinha brincando sob o sol. A casa estava fechada e deserta. Ficou muito triste. Porém, pensou que ela devia estar viajando e que voltaria logo. E os dias se passaram... Longas noites, Reizinho já não conseguia mais sonhar com sua amada. Ficava desesperado, revirava-se de um lado para outro na

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cama, sem conseguir dormir. Chegava à escola e a primeira coisa que fazia, era olhar a casa da menina e ver se ela tinha voltado. Ficava muito triste ao notar que, ainda, estava fechada. O menino Reizinho tinha mais um dia sem sentido.

O tempo passou, sem que aquela família voltasse. Reizinho começou a sentir, que não devia ser apenas uma viagem. Começou a ficar desesperado. Perguntou a um amigo, o que tinha acontecido com Paulinha e sentiu uma dor enorme ao ouvir a resposta.

- O pai de Paulinha foi transferido e mudou-se.Reizinho não quis saber para onde, estava arrasado.

Tomou o caminho de casa e chorou muito. Nunca mais viu a Paulinha, mas jamais esqueceu aquela pessoinha linda, que deve estar feliz em algum lugar. Foi, sem dúvida, o seu primeiro amor, um amor puro. Nunca trocou com ela uma só palavra. Talvez, ela nem se lembre dele, porque brincava sorrindo e Reizinho olhava-a de longe, como se olhasse uma estrela. E era uma estrela.

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Muito tempo se passou, até que Reizinho se acostumasse a viver sem aquela menina. Continuou estudando, arranjou amigos, aprendeu muita coisa nova e a vida, aos poucos, ia voltando a ter sentido. Levantava cedo todas as manhãs e a caminhada para a escola lhe fazia muito bem. Após as aulas, ficava, ainda, por um bom tempo, naquela estação, acompanhando o movimento dos trens e brincando com os amigos. Às vezes, chegava tarde

em casa e era repreendido pelos pais, que ficavam preocupados.

Aquela estação, porém, era encantadora e, todos os dias, convidava o menino a ficar um pouco mais de tempo, após as aulas. Ao meio dia, havia o cruzamento dos trens de passageiros, que fazia daquele local, uma festa com todo tipo de gente. Eram malucos, bêbados, mendigos, vendedores, vagabundos e caipiras, que se misturavam com as moças bonitas, pessoas importantes e famílias, que viajavam carregadas de bolsas e malas. E havia o conferente, que soprava o apito dando ordens ao maquinista, que dava a partida no trem e ia alegre em direção ao seu destino. Tinha, ainda, o guarda-chaves e os trabalhadores da soca, que com suas marretas, faziam o trabalho mais pesado, consertavam os estragos da linha. Também, havia algumas famílias, que moravam ali, pessoas simples, que ganharam logo a admiração do menino Reizinho.

Chegou o inverno. Com ele, as manhãs tornaram-se geladas. O caminho da escola passou a ser feito sob um frio enorme. As mãos e os pés ficavam endurecidos e doíam, até que o sol começava a jogar seus raios sobre a terra. Os passarinhos ficavam calados e as flores escondidas. As plantas pareciam tristes, muitas morriam ressecadas pela geada. Reizinho, apesar do frio, adorava aquelas manhãs. Era muito gratificante olhar o orvalho da beira do caminho e a neblina, que ia se dissipando aos poucos.

Nas noites, a fogueira aquecia a casa até a chegada do sono. Dormir era o momento mais difícil. Os pais de Reizinho tinham poucos cobertores e as noites tornavam-se

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longas. O menino ficava encolhido, sentindo muito frio. Não sonhava e não dormia direito. Ficava louco pela chegada da manhã e do sol. E vieram as noites de Santo Antônio, São João, São Pedro e São Paulo, e a mata parecia deserta em volta daquela casa. Não havia festas, mas a família rezava um terço para cada Santo e a fé era uma presença constante naquela casa. Com certeza, Deus gostava muito da família de Reizinho.

Vieram às férias de julho, um momento de descanso para o menino e sua irmã. Podiam levantar mais tarde. Sem aulas, Reizinho brincava o dia todo com os irmãos. Havia, sempre, a visita dos primos e primas da cidade, que aproveitavam as férias, para curtir um pouco os encantos da roça. Reizinho tinha uma prima linda e ela o fazia sonhar, da mesma forma que Paulinha o fizera. Novamente, o menino voltou a sentir-se apaixonado. Uma paixão sem abraços e sem beijos, mas que deixava o seu coração feliz. Reizinho era muito feliz.

Passadas aquelas férias, o menino, novamente voltou a atenção para as aulas. Dedicava-se ao máximo, suas notas eram excelentes. Tinha muitos amigos naquela escolinha. Porém, muitas vezes, brigava com alguns deles e a coisa ficava feia. Eram socos e pontapés, que deixavam a professorinha maluca. Aquelas brigas faziam a alegria dos meninos. Porém, eram coisas de crianças, que sempre acabavam nas peladinhas de futebol ou em outras brincadeiras. E o menino Reizinho estudava tranqüilo, aprendia lições e tirava notas altas. Era um bom aluno, igual a todo menino que se esforça em busca de seus sonhos.

O final do ano foi se aproximando e com ele, chegou o momento de se despedir daquela escolinha. Reizinho tinha estudado direitinho e não teve nenhum problema. Foi aprovado, deixava para trás a quarta série. O difícil foi ter que deixar os amigos que fizera e esquecer os momentos felizes vividos naquela escolinha. Era mais uma etapa vencida. Agora, o menino poderia ir para o “ginásio”. Porém, não havia ginásio naquela estação de trem. Se quisesse continuar a estudar, o menino teria que ir para a cidade. Alguns dias depois, Reizinho pegou seu diploma de quarta série. Guardou-o numa gaveta e por um bom tempo, não pensou em escola.

***********************************************O menino Reizinho aos dez anos, teria de esquecer

a escola. Não havia ginásio no local onde morava. Agora ele ajudava o pai nos trabalhos da roça. Divertia-se brincando com os irmãos e com a natureza que ficava em volta de sua casa. Achava divertido capinar o milho e o feijão, mas era muito mais, ainda, subir nas árvores, nadar nos córregos e ouvir o canto dos pássaros.

O tempo passou. Veio o ano seguinte e o menino Reizinho não foi estudar. Iria perder o ano. Para o seu pai, aquilo parecia não ter importância. Sua mãe, às vezes, discutia com ele, mas aquelas discussões não traziam nenhuma solução. Para o pai de Reizinho era importante viver ali. Longe da cidade e das pessoas. Talvez, uma espécie de fuga da sociedade, que, por certo, lhe parecia injusta. Havia sido criado na roça. Trabalhara na cidade, mas parecia querer ficar, definitivamente, longe da civilização. Dizia, sempre, que não valia a pena estudar,

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saber ler e escrever, já era o bastante. Com isso, era descartada a possibilidade de Reizinho e sua irmã estudarem.

Reizinho vivia naquela casinha simples, em meio à floresta. Tinha uma família que era tudo para ele. Viver ali, era importante e os estudos eram coisas passadas. A escola ficava longe, na cidade. Seus pais, também, pareciam não se importar com o fato de os filhos não continuarem os estudos. Havia, ainda, o outro irmãozinho, que, também, já atingira a idade de entrar na escola.

Às vezes, Reizinho não entendia seus pais que pareciam acomodados, isolados em uma pequena porção de terras. Não tinham nenhuma fonte de renda. Plantavam uma pequena quantidade de milho e feijão. Muitas vezes, faltava o leite para as crianças. Quando seu pai precisava de dinheiro, tinha que ir trabalhar na cidade e deixava a família ali, cheia de dificuldades.

O tempo passava rápido. Reizinho via os dias se passarem ligeiros, vivendo dúvidas e incertezas. Porém, tinha ao seu lado a natureza que lhe proporcionava um convívio com o belo, presente nas árvores, nos pássaros, nos animais, nas águas e nas noites iluminadas pelas estrelas. Adorava pescar e cuidar dos pássaros, que começou a criar. Aprendeu a fazer gaiolas e alçapões, para desespero do seu pai, que era contra prender passarinhos.

Reizinho e a família iam sempre à cidade, visitar os avós e a tia. Sua tia havia deixado a fazenda e agora morava na cidade, queria estudar os filhos. E o menino, adorava os dias que passava na cidade. Matava as saudades dos amigos, jogava um futebolzinho e se divertia como nunca. Sentia que ali era, realmente, o melhor lugar para se

viver. A roça, apesar da natureza, não tinha o calor humano dos amigos e as brincadeiras de rua que fazem dos meninos, donos da liberdade.

Em uma determinada manhã, Reizinho estava na casa de sua tia, quando recebeu a notícia de que sua avó, havia morrido. Parecia não acreditar naquilo. Correu para a casa do avô e o encontrou arrasado. Da mesma forma, estavam sua mãe e sua tia. Viu sua avó deitada, imóvel e pálida. Teve uma sensação horrível. Mais uma vez, a morte estava próxima de Reizinho. Levara, agora, sua outra avozinha, deixando um grande vazio na família.

Após o enterro, Reizinho, a mãe e os irmãos, ficaram vários dias com o avô. O menino percebia a tristeza no seu rosto. Sentia que tinha ficado um enorme vazio naquela casa. Os dias custaram a passar. Até, que veio a Missa de sétimo dia, uma espécie de última despedida da alma, e sua mãe, finalmente, decidiu voltar para o sítio. A vida tinha que continuar, era preciso ser forte e tudo voltou a ser como antes.

Somente seu avô parecia não se recuperar daquela ausência. Parecia ainda mais sério, sempre rezando. Parecia buscar forças para viver, através das orações. Adorava a Igreja. Seu quarto era repleto de imagens de Santos e o seu rádio era ligado, somente, nos momentos em que havia programas religiosos. Mas era um avô muito legal, que Reizinho visitava sempre. Não havia mais o bolo gostoso, que sua avó fazia, mas tinha, ainda, um sentimento de carinho e até o sabor gostoso dos biscoitos, que seu avô comprava.

Seu avô, agora, morava em outra rua. Longe daquela, onde viviam os amigos de Reizinho. Era uma casa

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com quintal grande. Ficava próxima a uma quadra de futebol de salão, onde havia sempre, uma peladinha. Reizinho adorava jogar futebol. Sempre que ia visitar seu avô, tirava um tempinho para jogar bola e, aquilo era o máximo. Queria que seus pais se mudassem para a cidade, somente para poder jogar futebol todos os dias. O menino Reizinho achava ruim não poder estudar, mas era pior ainda, ficar longe dos amigos e das peladinhas.

Reizinho, porém, continuava a morar na roça. Ia à cidade, somente, quando sua mãe precisava visitar os parentes ou, quando algum dos seus irmãos ficava doente. Porém, quando estava no campo, não queria outra vida. Esquecia a cidade e se divertia com aquela vida simples, onde não faltava o contato com a natureza. Até arrumou um trabalho em um sítio vizinho. Reizinho saía cedinho, assim que o sol começava a nascer. Ia até um pasto, onde algumas vacas esperavam para serem levadas ao curral. E o menino ajudava a tirar o leite, buscava um cavalo que vivia se escondendo e depois de algumas cavalgadas, voltava contente para casa. Era um trabalho divertido, que no fim do mês lhe rendia vinte cruzeiros, o que era suficiente para comprar uma camisa ou, um sapato novo.

Nas tardes, Reizinho adorava pescar lambaris. O córrego que passava por ali, era cheio deles e as horas passavam voando. Logo chegava a noite e o cansaço. O menino dormia cedo, assim como, também, levantava cedo. Era lindo o nascer do sol e maravilhoso o canto dos pássaros. O orvalho na beira do caminho se misturava aos sonhos do menino, que corria atrás do futuro e de um tempo, que esperava passar rápido, para poder crescer.

***********************************************Um dia, a família de Reizinho mudou-se. Não para

a cidade, mas para a primeira casa em que ele havia morado. Lembra-se do início do livro? Com a morte da avó, aquela casa, ficara como herança para sua família. Assim, o menino pôde matar um pouco de saudades, recordando os momentos que passara ali. Correndo atrás da mãe, quando ela ia buscar água ou lavar roupas. Caminhando com o pai pelos campos e matas próximas. Brincando com a irmã e as crianças vizinhas. Reizinho lembrava-se muito de seu avô, que estava sempre ali, com seu jeito sério, seu cuidado com as plantas e as coisas da casa. Casa, que agora, parecia mais velha. Ficara muito tempo fechada, mas conservara a beleza e os encantos de sempre. O menino sentia que iria ser ótimo viver ali, um local que, com certeza, ficava pertinho do céu.

A vida seguia o seu caminho. Um caminho bonito, traçado entre sonhos, vividos e esperados. O menino Reizinho vivia seus momentos naquele local lindo. Não estudava, mas criava seus passarinhos e adorava o sol, e adorava as águas claras do córrego, que corria no local, formando poços, onde nadar era uma delícia. E um ano se passou sem que o menino fosse à escola. Um ano sem estudar. Mas, para sua família, a vida ali era mais importante. Reizinho, ainda pequeno, não podia entender a importância do colégio. É claro, que queria que seu pai os levasse para a cidade, mas enquanto isso não acontecia, ele aproveitava para ser feliz ali. Aquele era um momento feliz. O nosso momento é o tempo de ser feliz.

Uma vez, o menino ficou doente. Uns tumores enormes cresceram em sua cabeça. Aquilo deixara a

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família e os vizinhos preocupados. Um dia foi até a cidade e ficou impressionado com as pessoas, que o olhavam e pediam para sua mãe levá-lo ao médico. Reizinho não sentia dores físicas. Porém, de tanto ver as pessoas preocupadas, começou a achar que aquilo era realmente grave. Nas noites, começou a sonhar que ia morrer e aquilo o deixava desesperado. Não podia ver os tumores, pois eles ficavam na parte de trás da sua cabeça. Até que um dia, sua mãe utilizando-se de dois espelhos, conseguiu que o menino olhasse o problema. E ele ficou mais impressionado, ainda, quando viu que seus cabelos haviam caído e deixavam à mostra, quatro caroços enormes, com uma cor roxa. Algo com uma aparência horrível.

Era preciso ir ao médico e logo, Reizinho estava em um hospital. Na mesma hora, o médico disse que teria de operá-lo e o menino ficou desesperado. Queria correr, mas foi seguro pela mãe e por um primo. Não havia saída. Pouco depois, estava deitado em uma daquelas camas de lençol branquinho. Levou uma agulhada e pôde sentir os cortes, que eram feitos na sua cabeça. Porém, aquilo acabou logo e o menino foi para a casa de sua tia. Durante uma semana, sofreu tomando injeções. Mas, o tempo passou, seu cabelo cresceu novamente e ele voltou a ser o menino Reizinho.

Logo esqueceu todos os problemas e tudo era paz em sua vida. Vivia em um sítio que parecia solitário, mas adorava morar ali. Às vezes, sentia falta da cidade, dos amigos, do futebolzinho e, até da escola. Mas, compensava aquela ausência com os trabalhos, os passeios a cavalo, as pescarias e nem notava o tempo passar. Reizinho adorava torcer por seu time. Sempre que havia jogo, ligava o rádio

e vibrava com cada gol do seu time. Não entendia seu pai, que parecia ter alguma coisa contra o futebol ou contra ele, pois, sempre que estava em casa não o deixava ouvir os jogos. Aliás, seu pai começou a ficar chato, pedia a ajuda do menino em todos os trabalhos e aquilo era o dia todo.

Reizinho até passou a gostar, quando seu pai ia trabalhar na cidade. Quando isso acontecia, a liberdade era completa. Podia pescar e caçar passarinhos, a hora que quisesse. Ouvia tranqüilo os jogos do seu time, e ainda dava para ir até a estação de trem, onde havia um campinho de futebol e muitos amigos.

Um dia, Reizinho ficou sabendo, que o trenzinho, que ele adorava ia acabar. Era uma grande perda para os moradores daquela localidade. Aquele trenzinho carregava as compras, os sonhos e o orgulho de cada um dos vizinhos do menino. Era preciso despedir-se daquele amigo, que, por muito tempo, foi um grande companheiro de viagens. E a mãe de Reizinho foi com as crianças até a cidade, dar o último adeus ao trenzinho.

E o trenzinho partiu. Era a sua última viagem. Da janela, Reizinho sentia a tristeza de cada um que ficara na estação e, de cada um, que com ele compartilhava o último dia de um amigo. Um velho trem, que depois de muitos anos e muitas viagens, dava adeus a quem encontrava no caminho. Mas não podia olhar para trás. Cada apito seu, era uma lágrima do menino, que já imaginava a saudade próxima. E o trem chegou à estação. Reizinho desceu e sentiu, como se estivesse perdendo alguém querido. E o trenzinho se foi, sumiu na curva da linha e nunca mais voltou.

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Reizinho custou a se conformar com aquela perda. Porém, vieram novos dias. Seu time seguia firme em busca de um título de campeão e ele ficou desesperado, quando o rádio de sua casa se estragou. Era um rádio antigo, muito bonito, mas que, de vez em quando, se negava a falar, para desespero do menino que queria acompanhar o seu time. E aquele rádio não voltou a falar durante aquele campeonato. Reizinho, somente, ficou sabendo que o seu time havia sido campeão, quando foi à cidade e viu em um barzinho, o pôster com seus ídolos. Seu time era campeão.

O tempo passou, trazendo o final de mais um ano. Mais um ano em que o menino Reizinho não foi à escola. Agora, eram dois anos sem estudar. Porém, a vida seguia, era preciso esquecer que não estava estudando, e ser feliz. Reizinho morava em um local deserto, longe da escola e dos amigos. Sua família passava muitas dificuldades. Mas, ele jamais perdeu a esperança em um futuro bonito.

***********************************************O ano novo trazia sempre novos sonhos. Quando se

é criança, um ano parece ser algo enorme, com muito tempo disponível. E o menino Reizinho queria viver cada momento, com intensidade. Tinha muita liberdade. Podia pescar, até mesmo, no rio e adorava. Construía poços, próximo à bica dàgua e criava muitos peixes. Em volta de sua casa, havia uma quantidade enorme de passarinhos e o menino achava o máximo, morar em um local tão bonito. Cuidava com carinho dos pássaros que possuía. Todos cantavam muito. Um pássaro preto, um trinca-ferro, um canário do campo e alguns colheiros. Nos fins de semana, era quase certa, a visita dos primos da cidade, e na estação

de trem, que continuava de pé, havia sempre um racha-canelas, como eram chamadas as partidas de futebol no local. E o menino Reizinho nem se lembrava da escola, era muito feliz.

O pai de Reizinho andava louco para vender uma parte das terras que possuía. Queria ficar, apenas, com um pequeno pedaço. Quem não gostava da idéia era a mãe do menino. Dizia sempre, que, vender o que se tem é mau negócio. Porém, após muita insistência, acabou concordando e o marido vendeu a maior parte da propriedade. A mãe de Reizinho começou a sonhar com a compra de uma casa na cidade, para assim, colocar as crianças na escola. O pai do menino, porém, não queria, de forma alguma, ir para a cidade e o sonho da escola parecia cada vez mais distante.

Reizinho vivia o fim de mais um ano sem escola. Três anos sem estudar. Começava a sentir que viver ali, não era um bom negócio. O trabalho que fazia era muito mal remunerado e o milho, que ele e os irmãos ajudavam o pai a plantar, mal dava para o sustento da família. Seu pai já não era mais um herói e sim, alguém que parecia não querer lutar por seus filhos. Reizinho o via sempre nervoso. Era como se tivesse uma grande revolta contra o mundo.

O menino queria voltar a estudar. Era preciso fazer alguma coisa pelo futuro. O tempo passava rápido, não dava nenhuma trégua. Logo, veio o final de mais um ano, completara quatro sem ir à escola. Poderia estar recebendo o diploma da oitava série e, no entanto, estava vivendo em um local, que não lhe dava nenhuma perspectiva de um futuro melhor. Está certo que gostava de morar ali, achava

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lindo o local onde vivia, adorava a família, mas sentia que era preciso estudar. Era preciso esquecer um pouco as maravilhas da natureza e sentir que a vida, também é trabalho. Achava até bonito o ideal de seu pai, de querer viver, para sempre, como um caipira e de querer que seus filhos o seguissem. Porém, aquele local já não era o mesmo da infância de seu pai. Quase todos os moradores haviam partido em busca de uma vida melhor na cidade. Morar ali era como uma aventura, por sinal, muito divertida, mas era preciso pensar em coisas maiores.

Era preciso estudar e Reizinho foi morar com sua tia. Sentia-se feliz, pois conhecia muito bem aquela família, já havia ficado ali, muitas vezes e seus primos eram amigos. Assim, numa tarde de sol, o menino chega ao ginásio para estudar a quinta série. Havia ficado quatro anos longe da escola. Talvez, por isso, a emoção de estar num local importante. Era um prédio pequeno e velho, mas cheio de encantos. Era a escola mais importante da cidade. Hoje, serve as crianças menores, já que foi construído um novo prédio, mas guarda ainda, as lembranças de várias gerações de alunos. E Reizinho sentia-se o máximo, por estar ali, em meio a muitos amigos e por começar uma nova etapa em sua vida.

E a escola voltou a fazer parte da vida de Reizinho. Em todas as tardes havia o compromisso com o saber e ele adorava. Adorava, também, estar de volta à cidade e seus encantos. Após as aulas, havia sempre uma partidinha de futebol e aquilo fazia um bem enorme, era muito gostoso jogar bola com os amigos. Tudo era felicidade, a família de sua tia parecia gostar dele e a semana passava num

instante. Nos fins de semana, ia sempre para o sítio, onde matava as saudades dos pais e dos irmãos.

A cidade havia mudado muito, durante o tempo em que Reizinho morara na roça. O local onde antes, caçara passarinhos com o amigo Toinho, dera lugar a uma vila e a um campo de futebol. Não havia mais a estação de trem e o parquinho estava praticamente destruído. Havia um clima de progresso, devido as obras da construção de uma grande ferrovia, que trouxera para a cidade uma quantidade enorme de operários. Foi um tempo de tensão, onde havia o medo da violência. Muitas brigas, alguns assasinatos, e a presença constante dos peões, vindos de todos os cantos do país. Tudo isso era motivo de medo para os moradores, acostumados a uma vida pacata.

Aquele foi um tempo ótimo para a cidade. Tempo de muito dinheiro, onde não faltava trabalho. Na praça, havia sempre, um bom número de garotos, que com suas caixas de engraxate, defendiam alguns trocados. Reizinho, por um tempo, trabalhou com eles e ganhou dinheiro. Sentia-se feliz por estar estudando, embora para isso, precisasse ficar longe de casa e dos pais.

***********************************************Viver era como um nascer do sol, a cada dia um

novo sonho, uma nova emoção para o menino. Ah! A família de Reizinho? Bem, ela parecia dividida. Sua irmã, também, estava morando em outra cidade. Trabalhava como doméstica e não estava estudando. O pai, muitas vezes, saía para trabalhar fora e sua mãe, ficava na roça, somente, com os filhos menores, que estudavam na escolhinha da estação de trem. Da casa de sua tia, Reizinho

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ficava triste por sentir que sua família estava toda dividida. Não pode ser assim nunca. Ninguém é feliz longe de casa, a família é o melhor lugar para se viver.

O tempo passou, deixando para trás mais um ano. Reizinho passou tranqüilo pela quinta série e nas férias, foi para a casa dos pais. Estava contente por tudo ter dado certo, o convívio com sua tia e seus primos, e a certeza de que poderia continuar a estudar no ano seguinte. E as férias se passavam voando. Reizinho dividia o tempo no cuidado com as plantas e as criações, pescando e passeando pelas matas. Adorava passear pelas matas. Gostava do perfume das árvores, do canto dos pássaros e de meditar sobre a vida. Às vezes, pensava no futuro. O seu destino teria que ser feito com muita luta, muito trabalho.

Logo, as férias se acabaram. Reizinho voltou para a casa de sua tia na cidade, para continuar a luta. Iniciou os estudos na sexta série e pôde rever seus amigos. Muitos ficaram para trás, reprovados. Reizinho sentiu-se triste por eles, mas a vida continuava. E as tardes voltaram a ficar cheias de alegria. A escola era um local, onde se podia aprender muito com os professores, que eram ótimos e, ao mesmo tempo, divertir-se com uma parte dos alunos, que aprontavam em todas as aulas. Reizinho adorava a escola e os amigos, era muito feliz.

Com o início do ano letivo a escola ganhou novos alunos, os novatos que chegavam vindos da quarta série. E a hora do recreio era uma festa, as turmas se reuniam no pátio. Era o momento das brincadeiras e das paqueras. Reizinho apaixonou-se por uma das meninas da quinta série. Uma morena linda, mais linda do que todas as meninas do colégio. Ficava olhando-a, durante todo o

tempo do recreio e pensava nela durante as aulas. Nas noites, custava a dormir, imaginando que ela seria a sua namorada.

Seu nome era Renata. Era filha de um dos trabalhadores da Ferrovia, talvez, um engenheiro. Reizinho não sabia ao certo. Mas, o que importava mesmo, é que ela era linda, muito linda. Tinha no olhar um brilho que cativaria em um segundo, todos os corações do mundo. Cativara Reizinho com seu olhar, que, talvez, fosse um sonho, mas que ele pensou ser dele e se apaixonou.

E a vida tornou-se mais bonita. As tardes na escola passaram a ser momentos, onde o pensamento ficava dividido entre as lições e as imagens daquela menina. Menina que brincava alheia a todos os sonhos de Reizinho e parecia uma deusa. E era uma deusa, de olhos negros e pele morena, que dava ao céu e ao sol, um brilho maior. E a vida passou a se chamar Renata.

O tempo passou, aliás, o ano terminou sem que Reizinho falasse do seu amor. Era de uma timidez maior que o mundo e a vida dos tímidos, é quase toda dor. A dor de guardar um amor que precisa, sempre, chegar ao seu destino. E Reizinho sentia muita dor. As férias iriam privá-lo de olhar a beleza da menina que amava.

Mais uma vez, Reizinho foi para a casa dos pais na roça, passar o período de férias. Havia passado em mais uma série, faria a sétima no ano seguinte, mas parecia triste. Tinha certeza de que iria sentir muitas saudades de Renata. Menina, que alimentava seus sonhos, com um amor que era só dele. Ninguém pode ser dono do amor! Era preciso buscar um sentido para suas férias. E os dias passaram, as fantasias sumiram e, ele voltou a sorrir na sua

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vida simples. Voltou a sentir, que ali era um bom lugar, era onde podia ficar naquele momento e precisava ser feliz. Renata estava longe, talvez, brincando no jardim de sua bela casa ou, na areia de alguma praia. Reizinho estava ali, longe da cidade e dos amigos, mas tinha que ser feliz. Mesmo com toda a dor do mundo, ele era um reizinho e era feliz.

Logo, chegou o momento de voltar para a cidade, pois as férias haviam se acabado. Reizinho foi ao colégio, fez a matrícula para mais um ano e chegou contente a casa de sua tia. À noite, assistiu um pouco de televisão e dormiu, pensando no novo ano que teria pela frente. Assim, todas as manhãs, Reizinho tomava o caminho da escola. A escola que já não tinha mais a beleza da Renata, que continuava estudando no turno da tarde. Nas manhãs, sem a presença daquela menina linda, as aulas perderam a graça que marcava a espera do recreio, onde Reizinho olhava a sua deusa e sentia a felicidade tão próxima de si.

Um dia, Reizinho sentiu que não dava para continuar estudando, não estava bem. Decidiu voltar para a casa dos pais. Disse para sua mãe, que não iria estudar mais naquele ano, queria ficar ali, seria muito mais feliz.

***********************************************Reizinho voltou a viver na roça. Sem preocupações

com a escola ou com o futuro. Queria sentir-se feliz e ali era o local ideal. A liberdade era total. Por um lado, sentia muitas saudades dos amigos e, principalmente, de Renata, que, a cada dia, parecia mais distante. Mas, por outro, adorava a natureza e a tranqüilidade daquele lugar. Depois, morar na casa da gente é muito melhor do que qualquer

outra coisa. Reizinho era muito feliz com sua família, seus pássaros, sua liberdade e sua vida simples. A cada dia, podia plantar uma nova semente e planejar novos sonhos.

A vida no campo tinha muitos encantos. Um deles era o trabalho na terra, que nos dá uma sensação de paz muito grande. A mãe-terra jamais nega frutos a quem semeia. Outro, era o rio de águas tranqüilas, que passava um pouco abaixo de sua casa e, nas tardes, era sempre um convite para uma pescaria. E olha que havia muitos peixes. Bagres, piaus, tubaranas, traíras, lambarís e outros. Todos eram presenças constantes no almoço da família de Reizinho. Havia, ainda, a beleza dos fins de semana, quando as pessoas se reuniam para rezar o terço e ouvir o toque de uma sanfona. É claro, que já não havia a empolgação de tempos passados, quando aquele lugar era repleto de moradores e os forrós eram certos, em todos os finais de semana. Mas eram momentos bonitos, onde a simplicidade de um povo era revelada através dos cantos e danças.

Reizinho viveu ali, todo aquele ano e foi um tempo de muitas alegrias. Durante este tempo, seu avô que estava morando sozinho, convidou sua mãe para morar com ele. Era a grande oportunidade que sua mãe tinha para estudar os filhos. Quem não gostou foi o pai de Reizinho, que sentia acabar seu sonho de ver seus filhos viverem ali, para sempre. E o sonho dele era bonito, talvez, quisesse ter uma fazenda e seus filhos unidos, trabalhando a terra e vivendo em um lugar longe das cidades. Mas, os novos tempos cobravam uma mudança, aquela região estava sendo abandonada, quase todos os moradores haviam se mudado para as cidades, em busca de uma vida melhor. Assim, era

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muito bom que a mãe de Reizinho quisesse ver seus filhos na escola, se preparando para o novo mundo, onde o saber tornou-se essencial para a busca de um emprego.

Quando o ano novo chegou com seus prenúncios de esperança, a família de Reizinho mudou-se para a cidade. E estava incompleta. Faltava sua irmã, que havia se casado em um local distante e seu pai, que preferira ficar sozinho na roça. Era, porém, a tentativa de uma nova vida, uma abertura para um futuro que se pensava vir da cidade. Havia, assim, uma nova mudança na vida de Reizinho, que queria estudar para, talvez, um dia, ter um trabalho que lhe desse tranqüilidade para viver e realizar seus sonhos.

Reizinho voltou a estudar. Na sua nova turma estava a Renata, mais linda do que nunca. Seu coração ficou disparado durante todo o primeiro dia de aula e ele voltou para casa, sentindo uma felicidade enorme. Teria Renata ao seu lado o ano todo e aquilo era o máximo. Levantava bem cedinho todas as manhãs, louco para chegar logo à escola e poder olhar a sua musa. E ela era uma pessoa muito legal, logo fez amizade com Reizinho. Tratava-o com muito carinho e o deixava, cada vez, mais apaixonado, sua vida voltou a ser somente a Renata.

E os dias se passavam... Morar com o avô exigia uma série de cuidados. Ele acostumara-se a uma vida solitária e qualquer barulho o deixava irritado. Era preciso não decepcioná-lo, afinal, era o dono da casa e fazia um favor enorme de deixar sua família morar ali. E todos pareciam entender aquilo, havia um respeito enorme de todos para com o avô. O tempo somente esquentava, quando os irmãos de Reizinho brigavam entre si. Viravam a casa do avesso, para desespero da mãe e do avô, que

sempre dava uma forcinha para acalmar a situação. Assim, tudo voltava ao normal e a vida seguia seus passos.

Reizinho continuava, a cada dia, mais apaixonado por Renata. Porém, começou a perceber que havia muita diferença entre eles. Renata morava em uma bela casa, seu pai tinha um carrão e era muito bem empregado. Enquanto isso, ele morava de favores na casa do avô e seu pai, nem emprego tinha. Assim, Reizinho não teve coragem de falar do seu amor. Continuou sendo muito amigo de Renata. Seu coração disparava a, cada vez, que olhava nos seus olhos, mas não dizia nada. Nas noites, sonhava com ela e podia beijá-la, neles, as diferenças entre Reizinho e Renata já não existiam. Porém, com o tempo, ele não quis mais sonhar, sentia-se culpado. Era preciso não ficar pensando muito naquela menina, que era a sua paixão, mas era proibida.

***********************************************Com o passar do tempo, Reizinho foi

compreendendo melhor a vida. Começou a observar que existia uma divisão entre os alunos da sua turma. Era muito clara a divisão entre eles. Alguns tinham de tudo, brincavam o tempo todo nas aulas e eram os queridinhos da turma. Outros, quase sempre, estavam quietos, iam sempre uniformizados e, muitas vezes, pareciam isolados da turma. Os primeiros falavam, sempre, em festinhas e motos, enquanto o assunto dos outros meninos eram, quase sempre, as peladinhas do fim de tarde. Reizinho chegou a pensar que era bem aceito pelos boyzinhos, mas, logo percebeu que nunca era convidado para as festinhas.

Nas peladinhas, porém, Reizinho era querido. Todas as tardes, ia para a quadra que ficava próxima à sua

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casa e voltava, somente, quando a noite chegava. Eram jogos memoráveis. A bola rolava redondinha e Reizinho fazia muitos gols. Gols que lhe davam forças para esquecer a paixão por Renata e o faziam feliz. Voltava para casa, muitas vezes, com a canela inchada, o tornozelo torcido, mas voltava contente. No dia seguinte, naquele mesmo horário, lá estava ele de novo, pronto para fazer mais gols e mandar para longe tudo aquilo que quisesse lhe causar tristezas. Era um reizinho e não podia deixar que nada o fizesse triste.

Na escola, Reizinho ia muito bem. Quando o final do ano chegou, estava tranqüilo, aprovado sem nenhum problema. A sétima série já era coisa do passado. A chegada das férias era uma festa para os alunos. Não faltavam ovos quebrados e muita farinha na cabeça de todos. Tudo era motivo de alegria. À noite haveria, ainda, uma festinha na discoteca que era aguardada com muita ansiedade.

Naquela noite, Reizinho viu Renata pela última vez. Estava linda, sem nenhuma dúvida, era a menina mais linda ali presente. Era, também, a dona da festa, recebia a todos com uma atenção enorme e Reizinho observava-a de longe. Às vezes, queria chegar próximo a ela e dizer que a amava, mas não tinha coragem. Depois, estava assim de filhinhos de papai naquela discoteca. Sentia que não teria nenhuma chance e voltou para casa sem, nem mesmo, esperar o fim da festa.

Reizinho nunca mais viu Renata. Com o término dos trabalhos na construção da Ferrovia, sua família foi se embora e nunca mais voltou. Ficou apenas uma saudade, que, por muito tempo, deixou triste os olhos de Reizinho.

Era preciso ser muito forte. Da mesma forma que, um dia, teve de esquecer Paulinha. Mais uma vez, era preciso esquecer a tristeza e buscar nos amigos uma força para continuar vivendo. E todas as tardes, ia jogar futebol e corria atrás dos gols que lhe devolvessem a alegria. E muitas tardes se passaram, até que Reizinho voltou a sorrir.

A vida voltou a sorrir. Era preciso buscar um novo amor e era preciso estudar. As férias haviam se acabado e teria que se concentrar nos estudos. O passado era passado, teria que ser esquecido. Renata deve estar feliz em algum lugar e, isso, é tudo o que importa. Reizinho, também, precisava ser feliz e, para isso, não podia acovardar-se diante da vida. Tinha que levar a sério o novo ano e esperar dias melhores, que sempre chegam para nos fazer felizes.

De repente, tudo parecia ter voltado ao normal. A escola, os amigos, a convivência com a família, tudo estava dando certo. Um dia, seu avô estava consertando a calçada e Reizinho foi ajudá-lo. Ficou um bom tempo com ele. Lembra da felicidade que ele ficou com aquela ajuda. Seu avô era alguém que sofria com a solidão. Sentia, ainda, muito a falta da esposa. Reizinho sentia que ele precisava muito do carinho dos netos. Uma simples presença era o suficiente para deixá-lo feliz.

Alguns dias depois, seu avô morreu. Era alguém que adorava rezar, adorava ir à Igreja e morreu quando acompanhava uma procissão do encontro. Um infarto acelerou seus passos e ele deixou para trás a multidão, indo em busca de Deus. E do passado que o havia deixado. Ah! Quem sabe a morte não seja uma volta no tempo e um encontro com os antigos amigos e amores! Mas, ela é

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triste, pelo menos para os que ficam. A morte do avô deixou um vazio imenso na vida de Reizinho. Agora, a casa onde morava parecia enorme. Os móveis, os objetos, os quadros de Santo e tudo mais, lembrava o avô que partira. E, por algum tempo, a vida perdeu seu brilho e o coração de Reizinho bateu mais fraco. Mas era preciso ter forças, chamar de volta as emoções e sorrir, pois a vida não pode parar nunca. É preciso buscar a felicidade, é a nossa missão mais importante.

***********************************************

Reizinho voltou a sua atenção para as aulas e para os amigos. Na escola, começou a perceber que adorava a turma que estudava com ele. Uma pena que era a oitava série. Logo, iriam se formar, e Reizinho já se imaginava longe daquela turma, que o fazia sentir-se importante. Já não importava mais a diferença entre eles. Era uma sala de aula, onde todos tinham um charme e uma simpatia, que era especial em cada um. E cada um parecia feliz do seu jeito e era feliz, porque a felicidade vem de Deus, não é privilégio de ninguém.

Reizinho, de repente, percebeu que as meninas da sua turma eram as mais bonitas do colégio. Nunca mais se esqueceu do baile em que dançou com algumas delas. Era muita felicidade poder estudar com pessoas tão lindas. Reizinho tem muitas saudades daqueles momentos, adoraria se o tempo pudesse voltar e reunir novamente, aquela turma. Porém, o tempo não volta. Mas, é preciso ser amigo de cada um daqueles, que, um dia, foram nossos companheiros de escola.

O tempo passou, veio o final do ano e o dia de pegar o certificado de conclusão da oitava série. Reizinho assistiu emocionado à Santa Missa, prestou atenção a cada palavra do padre, que valorizava aquela conquista. Achou linda toda a cerimônia. Aplaudiu a cada aluno que se formava. Queria agradecer a cada professor, por tudo o que havia aprendido. Porém, faltavam muitos. Reizinho rezou por eles. No final, abraçou a cada um dos amigos e amigas. Voltou para casa triste, porque, com certeza, iria sentir muitas saudades da sua turma.

Reizinho tinha conseguido concluir o seu curso. Porém, não podia se esquecer dos amigos que abandonaram a escola e eram muitos. Era preciso incentivá-los a voltar e a amar a escola. Reizinho, às vezes, não entendia a atitude de alguns alunos, que pareciam querer destruí-la. Quebravam as carteiras, os vidros, arrancavam as torneiras do banheiro, rabiscavam as paredes e sujavam o pátio. E faziam, como se aquilo fosse engraçado. Acontece, que não é engraçado destruir as coisas da nossa escola.

É preciso valorizar a escola, fazer dela uma extensão da nossa casa, porque a gente vai passar por ela e, com certeza, vai sentir saudades, mas ela vai ficar para trás. Por ela vão passar os nossos filhos, os filhos dos nossos amigos e eles, também irão sentir saudades. A escola é o maior patrimônio da humanidade. Feliz daqueles que têm acesso a ela, pois é triste saber que muitas crianças não podem freqüentá-la, porque vivem abandonadas nas ruas. Reizinho sente, ainda hoje, muitas saudades de todas as escolas por onde passou. Estudar é aprender o que, às

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vezes, parece tão simples ou complicado, mas que somado à nossa vida, torna-se muito importante.

No ano seguinte, Reizinho não estudou, queria trabalhar. Porém, o único trabalho que conseguiu foi de ajudante de pedreiro. Mesmo assim, era um trabalho esporádico. Durante a maior parte do tempo, ele ficava sem ter nada para fazer e isso era horrível. Somente eram divertidas as tardes, quando as peladas na quadra de futebol de salão pegavam fogo. E aquelas peladas deixaram muitas saudades. Saudades de um tempo em que jogar futebol, parecia ser a coisa mais importante do mundo.

Os fins de semana, também, eram inesquecíveis. Reizinho esquecia os problemas do dia-a-dia e se divertia muito. Havia, sempre, um bom jogo de futebol, que prendia sua atenção. Quando havia sol, era uma delícia ir até uma pequena cachoeira, onde as meninas esbanjavam beleza. Beleza que, constantemente, se transformava em uma nova paixão de Reizinho. E ele, sonhava e sofria, com os encantos daquelas meninas, que passavam despedaçando corações.

Sempre que tinha dinheiro, Reizinho ia à discoteca. Era o ponto de encontro dos jovens da cidade. Guardava, ainda, a timidez da infância e, muitas vezes, se sentia deslocado em meio àquela gente agitada. Queria arrumar uma namorada, mas era parado por uma inibição enorme, voltava para casa sozinho e decepcionado. Começou a sentir-se rejeitado e aquilo lhe causou um problema sério. Parecia estar preso por uma camisa de força, que lhe sufocava o peito. Reizinho estava mal, era preciso sair daquela situação ruim. E ele passou a ver que a vida era

muito mais do que jogar futebol. Precisava de carinho. Precisava sentir-se querido por alguém, precisava de um trabalho e, mais do que tudo, era preciso amar as pessoas.

***********************************************Um dia, Reizinho começou a freqüentar o clube da

cidade. Não era sócio, mas ia com seus amigos e, nunca, ninguém lhe cobrou nada. Ali, ele passava quase todas as tardes e fazia muitas amizades. O clube passou a preencher muito espaço na vida de Reizinho. Tinha o carinho das pessoas e, principalmente, o carinho das crianças, adorava jogar ping pong com elas. Logo se sentiu livre do vazio existencial e voltou a acreditar na vida. É preciso acreditar na vida, acreditar nas pessoas e acreditar que podemos tudo, que podemos ser felizes.

Em uma determinada noite, Reizinho conheceu a bebida. Ela mudava, totalmente, o seu modo de ser. Dava-lhe uma coragem enorme, parecia uma benção dos céus, que o libertava de toda a timidez. Após beber, sentia-se mais entrosado com a turma, conversava tranquilamente com as meninas e sentia uma euforia incrível. Passou a beber quase todos os finais de semana. Era entrar na discoteca e sentir que teria de tomar umas e outras, somente assim conseguia se divertir.

Logo, uma menina começou a lhe paquerar. Dizia que queria ficar com ele. A Rosinha não era bem a menina que Reizinho sonhava para ser a sua primeira namorada e ele tentou dizer isso a ela. Ela, porém, insistia. Resistiu um fim de semana, o segundo e outros, até que um dia, decidiu ficar com ela. Ficou ansioso para que a noite chegasse logo. Preparou-se como nunca. Aquele encontro mexia

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com o coração de Reizinho, seria a sua primeira namorada e ele imaginava o primeiro beijo. Havia uma expectativa enorme em torno daquela noite que se aproximava.

Reizinho chegou à pracinha e ficou conversando com alguns amigos. Estava ansioso pela chegada da Rosinha. E ela demorou a aparecer naquela noite. Reizinho estava nervoso, queria que a menina aparecesse logo, era uma ansiedade enorme. De repente, parecia que tudo estava rodando. Seu coração disparava, a cada vez, que imaginava o primeiro beijo. Sentia-se um menino, à espera de um presente.

Pouco depois, Reizinho viu surgir, ainda distante, a Rosinha. Acompanhou cada passo, até que ela se aproximou e sorriu. E estava linda, mais linda do que nunca. Talvez, porque agora, seus olhos a olhassem de forma diferente. Queria ficar com ela. Reizinho chamou-a para conversar, disse que tinha coisas importantes a lhe dizer. Caminharam em silêncio até um local mais afastado da multidão, que se aglomerava naquela pracinha. Ali, pela primeira vez, Reizinho falou de amor a alguém e ganhou de presente um beijo. O primeiro beijo de sua vida.

O primeiro beijo é algo inesquecível. É como um fruto, que você viu nascer, crescer e amadurecer. Um fruto que, finalmente, é colhido e repartido com alguém. Talvez, nada se compare ao prazer do primeiro beijo. É belo como uma flor ao desabrochar numa manhã de setembro. Tem as cores do arco-íris e o brilho de um olhar apaixonado. É o sol que nasce, jogando raios de luz sobre a terra e faz sorrir um novo dia. Enfim, o primeiro beijo é lindo e, a beleza é como um sonho diante dos nossos olhos.

Reizinho ainda saiu, algumas vezes, com a Rosinha, que parecia apaixonada. Ele, porém, sonhava com outras meninas e quis terminar tudo. Os fins de semana que se seguiram foram solitários e ele bebeu novamente. Porém, começou a sentir que beber não trazia nenhuma solução para os seus problemas. Embriagado, sentia que não era um reizinho, ficava transtornado, suas emoções, seus sentimentos eram totalmente artificiais e sem graça. Ficava desinibido, porém, sem controle sobre seus atos, acabava se metendo em confusões. Por várias vezes, seus amigos lhe ofereceram drogas, mas ele resistiu sempre. Nunca foi a favor de se fugir da realidade, de se buscar ilusões. Reizinho queria ser feliz e a felicidade não pode ser buscada em outra dimensão. Ela tem que estar dentro do nosso próprio ser.

***********************************************Mais um ano chegou ao seu final. Um ano em que

Reizinho viveu dúvidas e incertezas. Não estudou, não conseguiu trabalho, estava sentindo-se perdido. Porém, um novo ano estava começando, era preciso tomar uma atitude. E Reizinho foi até uma cidade grande, onde viviam alguns dos seus tios. Durante toda uma semana andou em busca de um trabalho. Não conseguiu. Sentiu que aquela cidade, apesar de imensa, parecia não guardar nenhum lugar para ele e voltou. Voltou para sua pequena cidade, onde, pelo menos, tinha muitos amigos e muita paz.

Novamente, voltou a curtir sua cidade. Era, totalmente, diferente da cidade grande. Podia andar tranqüilo nas madrugadas, sem medo de nenhuma esquina.

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E Reizinho voltou a jogar futebol nas tardes, a curtir os amigos e ir à pracinha nos fins de semana. O futuro parecia perdido, mas era gostoso viver sem destino. Não quis pensar em escola, queria sim, ter um trabalho, que lhe desse algum dinheiro para gastar nos fins de semana.

O tempo, porém, passava e Reizinho não conseguia nenhum trabalho. De repente, parecia que todos os trabalhos de sua cidade já tinham dono. Reizinho insistia e sempre recebia um não. Até que um dia, um senhor lhe disse que iria lhe arrumar um emprego. Foi com ele até o dono de uma firma, que na mesma hora, disse que Reizinho poderia começar a trabalhar no dia seguinte. Aquilo parecia um sonho. Finalmente, conseguira um trabalho. Ficou numa felicidade enorme.

Reizinho começou a trabalhar. Era a construção de uma nova escola. Um novo prédio que, sem nenhuma dúvida, seria o mais importante da cidade. Trabalhar ali era como fazer algo importante para a história. Passaria por aquele prédio, todo o futuro de sua cidade. Reizinho sentia-se o máximo. Tinha, agora, um emprego. Os dias passavam voando, e nas noites, dormia como uma pedra, embalado pelo cansaço.

Reizinho acordava bem antes do sol nascer. Requentava o pão e o café, enquanto ouvia as canções sertanejas, que o ajudavam a espantar o sono. Após quebrar o jejum, saía para o trabalho, era preciso assinar o ponto antes das seis. Era inverno e os trabalhadores, ainda, acendiam uma fogueirinha, para aquecer as mãos endurecidas pelo frio. Logo, porém, começava o trabalho, cada um fazia a sua parte e tudo só parava às onze horas, para o almoço. Havia, ao lado da construção, um campo de

futebol e muitos, ainda, se arriscavam a bater uma bolinha, enquanto esperavam o fim do horário de almoço. Ao meio dia, após um sinal, todos voltavam ao trabalho. Às duas e meia da tarde, havia o horário de café, onde a peladinha era sagrada. Os trabalhadores, com suas botas e botinas, corriam como garotos atrás da bola, que parecia mágica. Às três, todos voltavam para mais duas horas de trabalho. Às cinco da tarde, quando não havia mais nenhum trabalho extra, Reizinho voltava para casa.

O dia mais esperado por todos os trabalhadores era o dia do pagamento, quando recebiam folga e iam à agência bancária receber seus salários. Após a saída do banco, era certa, para quase todos, uma passagem pelos botequins da cidade, onde a cachaça rolava à vontade. O dia seguinte era de ressaca, e o bate-papo dos trabalhadores não parava até o fim da jornada.

Reizinho continuava trabalhando e, a cada dia que passava, sentia-se mais orgulhoso, ao ver que as paredes do prédio estavam subindo, o seu trabalho era importante. Nos fins de semana, costumava ir até uma cidade vizinha, em busca de diversões. Eram muito divertidas as noites de sábado, onde as meninas de mini-saias eram as grandes estrelas. Era a beleza que passava e deixava no ar, um perfume sedutor e apaixonante.

A discoteca era o local preferido de Reizinho. Tinha o brilho das luzes, os passos de dança, as músicas e o calor humano dos jovens. Havia, ali, a beleza e a harmonia das meninas, que, pareciam ansiosas, à espera de um príncipe encantado. E Reizinho entretia-se a imaginar o mistério das meninas. De repente, o seu olhar parou diante

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da beleza de uma lourinha, que parecia uma deusa. Tinha um brilho de sol nos olhos, era muito linda.

Reizinho sentiu que precisava falar com aquela menina. Seu coração disparou, queria correr, deixar para um outro fim de semana, mas ela estava ali, bem à sua frente. E ele não resistiu, não sabe como, mas soltou a voz e alguns segundos depois, estava com a menina em seus braços. Dançou uma música, dançou outra e começou a beijá-la e a vida parecia ter parado. De repente, tudo o que importava era ele e aquela menina. O tempo, porém, voou e chegou o momento da despedida. Reizinho prometeu voltar. Guardou o nome, Raquel, como se guarda um tesouro. Sentia-se como se tivesse conquistado o mundo.

***********************************************

A semana que se seguiu, foi como um sonho. Os pensamentos de Reizinho não se desviavam daquela menina. Mais uma vez na vida, estava apaixonado. Seu trabalho, seus amigos, seu futuro, seus desejos, tudo, agora, parecia ter um sentido. Torcia, a cada instante, para o tempo passar mais rápido e chegar logo o fim de semana. Queria encontrar, novamente, Raquel. Já sonhava, até, com um namoro sério. Reizinho sonhava muito, queria ser feliz e a felicidade, nos seus sonhos, tinha o jeito de ser daquela menina lourinha.

Preparou-se como nunca para aquele fim de semana. Quando ele chegou, Reizinho foi até a cidade, onde Raquel morava e esperou, com ansiedade, aquele encontro. Entrou na discoteca e ficou observando o que acontecia à sua volta. Às vezes, achava estranho aquele

ambiente. As pessoas dançando, bebendo e ele, quase sempre, sentia-se um solitário. Era preciso torcer para que Raquel aparecesse logo. Precisava dela, para não sentir-se sozinho.

Pouco depois, ela chegou, mas não estava sozinha. Estava acompanhada de outro. Reizinho começou a tremer. Logo, pensou que poderia ser somente um amigo. Era mais confortante para ele, e ficou esperando um melhor momento, para se aproximar dela. Porém, não houve este melhor momento. Não eram somente amigos. Reizinho os viu se beijarem e sentiu o mundo desabar sobre ele. Saiu dali arrasado. Andou sem sentido pelas ruas. Olhava as pessoas e elas pareciam de um outro mundo. De repente, todo mundo parecia feliz, somente ele estava perdido, sem nenhum rumo. Era preciso voltar para a sua cidade e tentar se encontrar novamente, buscar um novo sentido para sua vida.

O dia seguinte lhe pareceu sem nenhum brilho. Foi até a beira do rio, sentou-se e ficou olhando as águas, que desciam mansas para algum lugar. Pensou no destino, no sentido da vida, no amor. O que seria o amor? Seria, apenas, uma atração por aquilo que é belo aos nossos olhos e instintos? E Reizinho pensou ser esta, a resposta mais certa: o amor seria apenas desejos. Era melhor assim. Era melhor ir jogar futebol e não pensar muito na vida. Era preciso esquecer Raquel.

O tempo passou. Reizinho continuou a trabalhar e a se divertir. Conheceu outras garotas e voltou a sonhar com o amor. E imaginava o amor, como sendo uma menina linda, mais linda do que tudo. Era preciso encontrá-la, em algum lugar do mundo. O amor precisa ser um sentimento

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muito acima dos desejos e das paixões. Deve aceitar-nos como somos e deve perdoar nossos erros. É preciso fazer com que o amor seja uma princesinha de cabelos dourados, para que ele exista sempre e, jamais, saia dos nossos sonhos.

***********************************************Reizinho trabalhava duro. De seis da manhã às

cinco da tarde. Sentia que ganhava muito pouco. Começou a perceber que era preciso voltar a estudar. Precisava aprender uma profissão, conseguir um emprego melhor. Assim, Reizinho decidiu sair do trabalho de construção da escola e ir para uma cidade maior. Queria estudar e sonhava com um futuro lindo.

Abandonar aquele trabalho não foi fácil para Reizinho. Tinha feito muitos amigos e adorava ver, a cada dia, as paredes do prédio que cresciam e tomavam forma. Para ele, era um orgulho ter ajudado a nascer aquela escola. Mais uma vez, é preciso falar das escolas, onde o saber vive à espera dos alunos que queiram modificar o mundo. E todo aluno precisa acreditar que pode mudar o mundo.

Reizinho despediu-se dos amigos, que continuaram a construir a escola. Despediu-se de sua mãe e quase chorou porque ela estava triste. Tentou dizer que estaria seguro e que voltaria logo, mas tinha um nó preso à garganta. Seu pai e seus irmãos, também, pareciam tristes. Toda despedida é triste. Porém, é preciso partir. É preciso encontrar o destino e fazer dele, a nossa maior vitória.

Era uma manhã de janeiro. As imagens eram as mesmas descritas na primeira página deste livro: a solidão.

Um vazio infinito que surge diante de nossos olhos e invade todo o nosso ser. Reizinho sentia-se solitário. Estava deixando para trás, sua família, seus amigos, sua cidadezinha e a dor era imensa. Lembrava de todo um passado que fizera dele um reizinho. Um reizinho que teve muitos problemas, mas, que, jamais deixou de ser um reizinho.

Milhares de pensamentos passavam pela cabeça de Reizinho. O passado, o presente e o futuro se misturavam como areia. O que esperar do futuro se não dermos passos firmes? É preciso acreditar nos nossos sonhos e buscá-los, com nossos passos. Mesmo que a felicidade esteja dentro de nós mesmos, é preciso buscá-la no outro. Por isso, haverá sempre uma despedida. Uma despedida de nós mesmos, que nos fará sentir solitários. E a solidão é somente, um segundo de ausência até a chegada de alguém, que nos mostrará a felicidade.

E o ônibus partiu, levando um viajante solitário. Será que era algum reizinho? De repente, ele se lembrou de seu avô, que um dia lhe disse que era um reizinho. Sentiu muitas saudades da infância, quando foi um reizinho de verdade e corria livre por caminhos que são só dos meninos. Agora, já não tinha mais nada de reizinho. Precisava lutar por seus sonhos, deixar para trás o passado e fazer das lembranças da infância, apenas um álbum de fotografias amareladas. Porém, deve se guardar este álbum, como o mais importante de nossas vidas. A infância é linda, é como um reizinho, é como um menino montado em um cavalo de pau. Não pode ser esquecida nunca. É preciso que ela esteja sempre presente, quando estivermos entre amigos, pois, é na sua simplicidade que

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conhecemos o sentido da vida. A vida aparece à nossa frente sem destino e nós devemos acreditar que ela vai nos levar até o céu. É preciso amar as pessoas! É preciso buscar um grande sonho!...

***********************************************A vista noturna daquele edifício o fez lembrar de

seus medos e dos inimigos dos seus sonhos, os pesadelos. Reizinho estava chegando ao Seminário. Naquele instante, porém, lembrou, com saudades de casa e da sua família. Aquele prédio lhe causava um pouco de medo. Medo do quê? Ora, medo da solidão. Os pesadelos são terríveis, porque neles a gente está sempre só, ou se sente só. E como Reizinho gostaria de estar em casa naquele instante...

Voltou-se para os seus dois companheiros que já viviam ali há algum tempo. Danilo era baixinho e gordinho, muito alegre. Juliano, ao contrário, era alto e magro. Reizinho gostara deles.

- Não sei porque, mas este Seminário está me fazendo sentir um medo da solidão!

Danilo, com o sorriso de sempre, respondeu. - Não se preocupe, Reizinho. Logo você irá se

acostumar.Ao entrar no prédio, o brilho das lâmpadas

fosforescentes e a alegria do grupo de seminaristas juntos à mesa de jantar, afastaram de Reizinho o medo de ficar só.

Após o jantar, os seminaristas foram assistir televisão e Reizinho começou a sentir que aquele lugar não era tão triste. Os jovens pareciam felizes por estarem ali. Conversavam sobre música, futebol e todos os outros assuntos. Logo, Reizinho estava enturmado naquele grupo.

Começava a sentir que viver ali, não iria ser tão difícil. Quem sabe, não iria encontrar naquele Seminário, um lindo sentido para a sua vida.

Reizinho demorou a dormir naquela noite. Ficou recordando o passado e o motivo que o levara a estar ali, naquele Seminário. Lembrava-se de sua mãe, que parecia querer ter um filho padre. De seu pai, que certa vez, lhe falou da possibilidade de levá-lo para um Seminário. De uma noite, em que se sentia doente e com medo da morte, prometera a Deus que iria ser padre. E este era o motivo pelo qual estava ali naquele local, distante de sua família.

Aquela promessa mudara muito a sua vida. Reizinho passou a contar o tempo que lhe faltava para ir para o Seminário. Ficava imaginando o local como uma prisão, onde não poderia se divertir. Nem mesmo acompanhar os jogos do seu time pela televisão. Namorar? Nem pensar. De repente, suas paixões ficaram proibidas e sua vida tornou-se muito pesada pelos limites.

Adiara muitas vezes aquele momento. Certa vez, conversara com o vigário de sua cidade sobre a promessa e este lhe dissera, que não era obrigado a cumprí-la. Reizinho ficou muito amigo de padre Inácio e com o tempo, começou a gostar da idéia de ser um padre. A promessa já não era um peso para ele e ser padre passou a ter uma pontinha de liberdade.

Reizinho imaginava ser padre e, como Jesus, ter as multidões a seguí-lo. E iria falar do Reino de Deus, onde não haverá mais fome, doenças e inimizades. Não haverá ninguém que tenha melhores condições de vida do que o outro. Todos serão felizes! Reizinho queria ser padre. Por isso, estava ali naquela noite. E adormeceu...

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Na manhã seguinte, estava diante do Reitor do Seminário. Padre Arnaldo, a primeira vista, era muito simpático. Tinha um sorriso que conquistou logo a confiança de Reizinho. Tirou do bolso uma carta de padre Inácio e apresentou-a ao Reitor.

Padre Arnaldo examinou a carta, sorriu e convidou Reizinho para dar uma volta nas proximidades do Seminário. Mostrou-lhe a piscina, o lago, a quadra de futebol de salão e a horta onde havia muitas plantações. E foi lhe apresentando tudo, como se houvesse ali uma grande responsabilidade. Não era fácil ser padre. Reizinho gostou do que viu. O Seminário não era um lugar de ociosidade e silêncio, como imaginara.

E havia um grupo que estava trabalhando a terra. Padre Arnaldo apontou para um jovem, que cuidava de um canteiro.

- Aquele é o padre Tôni. É ele quem irá conversar com você, sobre suas possibilidades de entrar para o Seminário.

Mais tarde, Reizinho estava numa sala, diante de padre Tôni.

- Por que você quer ser padre?Não se lembra mais como respondeu ou, talvez,

não tinha uma resposta. Queria ser padre e era o que importava. Depois de uma longa conversa, ficou sabendo que teria de passar por um estágio vocacional. Este estágio é que definiria se ele poderia ou não, entrar para o Seminário. Para começar, deveria participar de alguns encontros vocacionais, que o ajudariam a discernir sua verdadeira vocação.

E Reizinho sonhava...

***********************************************Era uma tarde de sol forte. A pequena viagem que

o levaria ao seu destino parecia interminável, absorvido por pensamentos que pareciam querer levá-lo à loucura. Era uma espécie de solidão que o impedia até mesmo de notar as pessoas, que consigo iam no mesmo coletivo. Seu coração batia acelerado, parecia querer escapar-lhe pela boca de tanta emoção. A emoção de um sonho que poderia se transformar em realidade, ou se perder como tantos outros.

Ao chegar ao local destinado, aquele garoto, trajando uma camiseta, uma bermuda e um par de tênis, descia do ônibus trazendo uma mochila. Nela, uma chuteira número 39, um meião e um short preto, e trazia mais, muito mais. Trazia um sonho, um sonho como o de milhões de garotos do mundo inteiro. O sonho de ser jogador de futebol!...

Chegou ao portão do estádio e parecia não conter a emoção. Sentiu que ali estaria a maior chance de sua vida. A infância de garoto pobre veio à sua mente como algo que lhe pedia um presente e nesta hora, sentiu que poderia começar uma vida nova. Sabia que dependeria de si próprio, adorava jogar futebol, muitas vezes não entendia como conseguia jogar tão bem. Tinha momentos de narcisismo, onde admirava seus dribles e se emocionava ao ver seus passes, que milimetricamente chegavam ao seu destino. E naquele treino, não poderia ser diferente, afinal, pela primeira vez, iria jogar o seu futuro, o seu destino. Precisava dar tudo de si, aprendera na vida, que muitas vezes, as oportunidades são conquistadas com o coração e

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tinha certeza de que naquele treino, a força de vontade teria que ser a sua maior arma. Seria preciso além da habilidade, muita garra para ser aceito naquele time de futebol. O importante era que a garra e a vontade de vencer, pareciam ser tudo o que ele sentia naquele momento.

O garoto entrou no campo e viu alguns jogadores batendo bola em uma das traves. Firmou o olhar, tentando encontrar o seu amigo entre eles; não o vendo, continuou a caminhar em direção ao vestiário. No vestiário havia um grupo de jogadores e alguns dirigentes que o olharam com um ar de pouco interesse. Sentiu-se pequeno diante deles. Perguntou ao mais próximo por seu amigo e ao ouvir a resposta de que logo chegaria, voltou-se e ficou observando o gramado. Era um campo bonito, certamente, mais bonito do que todos em que havia jogado antes e imaginou o quanto seria gostoso jogar naquele gramado. Uns dez minutos depois, seu amigo chegou, desejando-lhe boa sorte.

Seu amigo era o preparador físico do time, era também o professor de educação física do colégio em que ele estudava. Após várias partidas de futebol de salão, disputadas no colégio, este seu amigo o convidara para fazer um teste no time em que trabalhava. Assim, aquele garoto de vinte e um anos, estava naquela tarde, diante dos atletas de futebol profissional do Tupi F. C. de Juiz de Fora, que estavam disputando o campeonato mineiro daquele ano.

Logo, seu amigo o apresentou ao grupo.

- Este é o Reizinho, vai treinar conosco, peço a vocês todo o apoio para que ele se sinta à vontade e possa nos mostrar o seu futebol.

Reizinho sentiu-se feliz ao ver alguns olhares amigos e ao começar o treino, voltou para o banco. Precisava esperar a sua vez e por vinte minutos, observa aquilo que será o seu teste. Durante este período esteve calmo, toda a ansiedade da espera parecia ter passado. Jurou para si mesmo, que iria dar tudo naquele treino e o seu coração disparou quando o treinador o chamou, deu-lhes as instruções e terminou dizendo:

- Você tem trinta minutos, para mostrar o seu futebol, boa sorte!

Reizinho correu para o gramado, ganhou a primeira dividida na raça, ouviu os gritos de “valeu” e sentiu ter começado o treino com o pé direito. Correu para a ponta direita, recebeu a bola, viu o lateral na sua marcação e um companheiro pedindo a bola no meio. Sentiu que precisava ser ousado, estava em testes, lembrou de seu ídolo “Garrincha” e driblou pela direita. Partiu em direção à linha de fundo e cruzou na cabeça do atacante, que fez o gol e agradeceu a jogada. Pouco depois, recebe uma bola no meio de campo, dá dois dribles sensacionais e lança com perfeição. Sentia-se bem no treino, mas faltava-lhe fazer um gol. De repente, domina uma bola na entrada da área, dribla o zagueiro, olha o gol à sua frente e bate de canhota, marcando um golaço. Ali, sentiu que ganharia um lugar no time, correu em direção ao seu amigo, parecia estar nas nuvens, vibrava como um louco. Ao terminar, recebe diversos elogios e o convite para um novo treino, na sexta-feira.

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Volta para a pensão, onde mora, com mil pensamentos na cabeça. Ninguém lhe havia dito se tinha sido aprovado, porém, tinha o convite para voltar na sexta-feira. Toda a emoção do primeiro teste, iria se repetir. Reizinho tentava manter-se calmo. À noite, não conseguiu dormir, embalado que estava pelos lances do treino. Naquelas imagens, reviveu todo o treino, se auto-avaliou, sentiu que tinha ido bem e ficou feliz com essa primeira vitória. Esperaria a sexta-feira, como havia esperado pela quarta, pelo menos já conhecia o adversário, tinha vencido o primeiro round. No outro dia, como de costume, foi para as aulas. Porém, não conseguia concentrar-se. Falou com os amigos sobre a experiência vivida e os convidou para assistirem ao treino do dia seguinte. Seria ótimo ter uma torcida naquele novo teste.

Finalmente, chega o dia seguinte e Reizinho se prepara para o treino. Reza, pede as bênçãos de Deus, sente que aquele é um grande dia e que nada poderá sair errado. Será preciso muita sorte. Reizinho é supersticioso, não gosta muito de sextas-feiras, mas acredita que a garra vence qualquer medo. Vai para o campo. Ao chegar, todos o cumprimentam. Sentiu uma grande diferença da chegada ao primeiro treino, já tinha amigos. Ao olhar para a pequena arquibancada, viu dois de seus colegas de escola, que tinham vindo torcer por ele. Acenou para eles, emocionado, o seu segundo teste já tinha até uma pequena torcida. A partir dali, concentrou-se para dar tudo de si naquele treino.

Ao começar o treino, Reizinho já não voltou para o banco, iria jogar desde o início e isso o fez sentir confiança. Agradeceu ao treinador a oportunidade e sorriu

para si mesmo, estava feliz. Correu uma barbaridade naquele treino, parecia um menino que ganhara a primeira bola de sua vida, ela era o máximo e ele a buscava, a todo momento. Durante quarenta minutos, sentiu-se um craque, já não passava por sua cabeça a idéia de ser reprovado. Estava jogando muito, a cada passe, a cada drible e a cada gol, marcou três naquele treino, sentia garantir um futuro dentro do futebol.

Todos se impressionavam com a simplicidade com que ele disputava cada jogada. Jogava fácil, a bola e os companheiros, pareciam procurá-lo dentro de campo. Com certeza, iria ser craque, ninguém tinha dúvidas quanto a isso. Dentro de campo, Reizinho já não queria que acabasse o treino, estava adorando aquele momento. Parecia que tinha voltado à infância e não queria, de forma alguma, que a noite chegasse, escurecesse o seu campinho e acabasse com a divertida pelada. Enfim, terminou o treino. Reizinho sentiu a euforia do treinador e do preparador físico, seu amigo, que o abraçou dando-lhe parabéns. Logo, aproximou-se dele um senhor bem vestido, apresentando-se como presidente do clube e lhe pedindo que o procurasse na segunda-feira próxima para uma conversa. Sentiu ali, a resposta de que havia passado no teste e, certamente, seria contratado pelo clube.

Reizinho voltou para casa todo feliz, sentia como se tivesse acertado na loteria. Finalmente teria uma profissão na vida e iria dedicar-se a ela com o coração. Ele vinha de uma família pobre. Gostava de estudar, sonhava ser alguém na vida, por isso, deixara os pais que moravam em uma pequena cidade de Minas e viera para Juiz de Fora em busca de um futuro melhor. Ali conheceu toda a

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competitividade e todo poder opressor do maior ao menor, que a sociedade apresenta. Aquilo muitas vezes o desmotivava para a vida, sentia como se não tivesse nenhuma chance. Por isso, o orgulho de ter passado naquele teste. Quantos não teriam tentado e fracassado?

Aquele fim de semana foi diferente dos outros. Foi visitar sua família e falou dos testes que havia feito. Sua mãe escutou preocupada, como de costume. Seus amigos pareciam não acreditar naquele garoto, que iria realizar o sonho de todos os meninos das peladas da infância. E Reizinho sentia necessidades de estar próximo das pessoas, de falar, aquela vontade de se isolar, pelo menos naquele momento, havia desaparecido. Reizinho era o próprio orgulho, o orgulho de sentir-se bem, de sentir-se alguém.

Na segunda-feira, como havia sido combinado, foi ao clube. O presidente estava esperando por ele numa sala. Reizinho entrou um pouco assustado, afinal era o presidente. Conversaram bastante. O presidente parecia querer saber tudo sobre a sua vida. Por fim, falou sobre a dura vida dos jogadores de futebol, sobre o regulamento e a disciplina exigida no clube. Disse que o contrataria por experiência e Reizinho ficou radiante. Dali em diante era atleta de futebol do Tupi.

No dia seguinte, iniciaria os treinos, já como integrante do grupo. Era uma emoção muito forte, iniciaria a partir dali uma nova caminhada na vida, na qual tinha dado apenas o primeiro passo, mas já era alguma coisa. O mais importante era que o sonho de ser jogador de futebol estava realizado. Já tinha um primeiro contrato. Naquele momento, aquilo era tudo e ele se sentia o máximo. De volta ao centro da cidade, já não se sentia perdido em meio

à multidão, já tinha um ponto de referência, era alguém importante, mesmo que ninguém ali o conhecesse.

E a vida seguia...

***********************************************Assim, Reizinho voltou para casa empolgado,

depois de tudo o que vira no Seminário. Os seminaristas lhe passaram a imagem de um lugar onde todos eram felizes. Gostara muito do padre Arnaldo e, também, de padre Tôni. A idéia de também ser um padre, começou a lhe trazer felicidades.

Sua mãe, que achava o máximo a idéia de ter um filho padre, quis saber o que ele tinha achado do Seminário.

- O Seminário é muito bonito. Os padres e seminaristas parecem muito felizes. Jogam futebol, assistem televisão, cuidam das plantações e são todos amigos. Pessoas maravilhosas. O Seminário parece ser um lugar harmonioso, muito difícil de se encontrar no mundo de hoje. Quero muito ir para lá. Acho que irá mudar a minha vida para melhor.

Logo, Reizinho começou a contar a novidade para seus amigos. Quase todos o lembravam do maior problema de se ser um padre.

- Padre não tem mulher, você irá perder o melhor da vida.

É, havia este problema. Um problemão. Reizinho, porém, lembrava dos padres e seminaristas que conhecera no Seminário, e todos pareciam felizes.

Padre Inácio também parecia feliz. Estava próximo aos sessenta anos e há uns trinta, era o pároco daquela

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pequena cidade. Ficara empolgado, quando Reizinho lhe disse que queria mesmo ser padre e que não era mais por causa da promessa.

Padre Inácio apresentou-lhe os coroinhas da Igreja. Disse-lhe, que, agora, que queria ser padre, era preciso participar mais das Missas. Era preciso aprender também a ser um coroinha. Conhecer os nomes dos símbolos utilizados na Missa e saber o momento certo de tocar o sininho, para que as pessoas se ajoelhassem. Assim, Reizinho passou a ser um dos coroinhas. E sentia-se o líder deles, porque era o mais velho e estava quase entrando para o Seminário.

Nas tardes, quando o tempo estava bom, padre Inácio com seu fusca branco, levava os coroinhas até o campo e rezavam o terço em meio à natureza. Reizinho ficava impressionado com a serenidade daquele padre, que lhe parecia muito feliz. Os meninos brincavam por algum tempo, enquanto ele meditava. Somente quando começava a escurecer é que voltavam para a cidade.

No domingo que se seguiu, padre Inácio pediu a Reizinho que lesse uma das leituras da Missa. Ele temia este momento. Era muito inseguro e a idéia de ter uma multidão a escutá-lo era assustadora. Mas tinha que enfrentar aquela situação, se quisesse mesmo ser padre. Aceitou o desafio e os momentos que antecederam aquela leitura foram de aflição.

A caminhada para o altar foi feita por instinto. De repente, tudo parecia escuro, seu coração disparou e Reizinho não prestou atenção a nenhuma das palavras que lera. Ao terminar sentiu um grande alívio. Tinha conseguido. Tinha sido difícil, mas valera à pena. Era um

primeiro passo para vencer o medo das multidões ou, quem sabe, o medo de si mesmo.

O tempo foi passando. Vieram os encontros vocacionais e Reizinho foi começando a se soltar, a falar em grupo. Não gostava de lembrar o passado, quando enfrentara a rejeição e a timidez. Ainda enfrentava, mas já se sentia mais forte.

Os encontros vocacionais contavam sempre com a presença de alguns seminaristas e os jovens que sentiam vontade de ser padre. Neles se estudavam alguns trechos da Bíblia e discutiam o porquê de ser padre. Ser padre era qualquer coisa de especial. Alguém chamado por Deus para ser o pastor que conduz a comunidade. E Reizinho ficava orgulhoso de querer ser alguém tão importante. Assim, esforçava-se para demonstrar sua vocação.

Reizinho começou a sentir que as pessoas passaram a lhe dar mais atenção, depois que descobriram sua intenção de entrar para o Seminário. Até as meninas, consideradas por ele e seus amigos, como as mais bonitas da cidade passaram a serem suas amigas. Antes, aquelas meninas nem o cumprimentavam quando se encontravam nas ruas. Agora podia conversar com elas. Eram suas amigas e pareciam gostar dele. Reizinho não resistiu a uma delas e ficou apaixonado.

***********************************************No dia seguinte, Reizinho iniciou os treinamentos.

A princípio, sentiu os pesados exercícios físicos, afinal nunca tinha participado de uma preparação física tão séria antes. Voltava para casa com o corpo todo dolorido, mas feliz com o progresso alcançado. Estava se esforçando e

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tinha certeza de que logo se acostumaria com aquela carga de exercícios.

Logo foi se ambientando ao grupo. Sentia orgulho de ser amigo daqueles jogadores, que até alguns dias antes eram seus ídolos. Foi conquistando pouco a pouco, a confiança dos companheiros e dos torcedores que acompanhavam os treinos. Todos aguardavam com ansiedade a sua estréia. O comentário geral era de que estava surgindo um novo craque no Tupi.

Reizinho vivia tudo isso com um certo nervosismo, este ar de promessa o jogara nas costas uma imensa responsabilidade. Nas noites, custava a dormir, pensando no peso da estréia, era como se fosse um novo teste que se aproximava. Havia passado no primeiro, no segundo, será que passaria no terceiro? Reizinho imaginava o estádio lotado, a torcida gritando seu nome e aquilo lhe dava um frio na barriga. Porém, todas as manhãs, jurava para si mesmo, que não iria temer nada. Que viesse a estréia, iria brilhar.

Quase sempre, o técnico o chamava após os treinos, para uma conversa. Dava-lhe conselhos e dizia estar esperando o melhor momento para marcar a sua estréia. Tinha decidido que iria ser fora de seu estádio, para evitar uma pressão da torcida, o que poderia queimá-lo. Reizinho confiava em seu treinador, sentia que ele queria o seu bem, era alguém que conhecia os macetes do futebol e os ensinava com todo o carinho.

Passaram-se semanas de treinamentos, os exercícios físicos o trouxeram mais confiança, sentia-se em ótima forma. Numa segunda feira, após o treino, o treinador o chamou, comunicando-lhe que viajaria com o time para o

próximo jogo. A princípio, aquela notícia bateu como um choque, mas logo a euforia tomou conta de Reizinho que sentiu vontade de correr e avisar a cada amigo. Seria o grande dia de sua estréia. Estrearia longe de casa, mas seus amigos poderiam ver os gols pela televisão. Tinha certeza de que marcaria pelo menos um, precisava marcar e sonhava a cada momento com este gol, o gol da sua estréia.

E naquela semana, preparou-se como nunca. Treinou com disposição, era como se preparasse para uma guerra. Todos viam naquela estréia algo especial, todos acreditavam no futebol daquele garoto. Era a maior revelação do clube. Reizinho, às vezes, se embaraçava diante dos repórteres, pois nunca imaginara que um dia, teria de falar para a televisão e agora se via alvo das perguntas de insistentes entrevistadores. O dia da estréia se aproximava, tirando-lhe o sono. Era preciso calma e frieza para não sair nada errado. Aquela estréia teria que ser boa, não podia haver furos. Reizinho lembrava-se sempre das vezes em que errou e que em muitas delas, um erro foi o suficiente para que certas pessoas que pareciam confiar nele, mudassem de atitudes. Sabia que um erro poderia queimá-lo, por isso, o medo da estréia.

***********************************************Márcia era uma menina encantadora. Tinha os

cabelos e os olhos negros. Sua simpatia e beleza cativaram Reizinho. E ele passou a ter os seus pensamentos divididos entre ser padre ou lutar pelo amor daquela menina. Acabou optando pelo Seminário, porque não se sentia preparado para conquistar Márcia. Porém, pensava muito nela, que se

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fazia presente em todos os seus momentos. Era preciso ser forte para resistir a sua paixão.

Reizinho foi outras vezes ao Seminário. Conversou com padre Tôni, que lhe confirmou o tempo de estágio. Seria no início do Ano Novo. Dez dias de retiro em que se fariam os testes necessários para se saber, se era mesmo ser padre, o que ele queria na vida.

Os dias que antecederam ao estágio, foram vividos com muita ansiedade. O Natal e o final daquele ano foram diferentes dos anteriores. Havia um clima de despedida em sua vida. Reizinho não gostava muito de ter que deixar sua pequena cidade, seus amigos e sua família.

Na pracinha da cidade ele via a animação de seus amigos. As danceterias lotadas. As meninas lindas e Márcia, que passeava tranquilamente alheia aos pensamentos de Reizinho.

- Feliz Ano Novo!Disse ela e veio abraçá-lo, com muito carinho. Reizinho sentiu naquele abraço, uma felicidade

imensa. Gostaria de parar o tempo e esquecer o Seminário. Mas, o tempo passou, Márcia se foi e ele se viu novamente só. Não poderia conquistar aquela menina, porque se sentia muito simples. Tinha um enorme complexo de inferioridade. Talvez estivesse certo, era mesmo pequeno. Tinha que lutar muito em sua vida, para mudar o que parecia ser seu destino. O Seminário passou a ser um lugar onde poderia crescer na vida.

Assim, Reizinho foi fazer o estágio que poderia garantir a sua entrada para o Seminário. Sentia o coração pesado. É duro quando se vai para um lugar desconhecido. E ele deixava sua família, seus amigos e deixava Márcia.

Mesmo sabendo que era um amor impossível, ele a amava muito. Queria ser padre, mas também amava aquela menina.

Ao chegar ao Seminário sentiu-se aliviado. Encontrou companheiros, que como ele, estavam ansiosos por fazer aquele estágio. Eram muitos, vindos de lugares diferentes. E todos com o objetivo de ser padre. De ser um servidor do mundo. E Reizinho sentiu que era bom estar ali.

À noite, Reizinho e os demais partiram para o local onde seria feito o estágio. Achou o casarão meio esquisito. Porém, logo, encheu-se de alegria. Havia ali muitos jovens e todos com o mesmo objetivo. Queriam ser padres. Reizinho dividiu um quarto com outros dois garotos. Fábio Augusto e Ednaldo. O primeiro era escurinho, muito alegre e muito simples. Morava na mesma cidade onde estava sendo feito o estágio. Talvez, por isso, sentia-se mais tranqüilo. Ednaldo, assim como Reizinho, tinha vindo de uma cidade menor e já falava com saudades da sua família.

- Acabamos de chegar e já estou sentindo falta da minha casa.

Ainda naquela noite, foram para um salão onde todos se reuniram para ouvir uma palestra. Era a primeira daquele estágio. Reizinho prestou atenção a cada um de seus companheiros. Eram, mais ou menos, oitenta candidatos ao sacerdócio. Havia, ainda, alguns padres, psicólogas e seminaristas que dirigiriam os testes. As cozinheiras completavam aquele grupo. Reizinho não entendia direito as palavras de padre Adauto.

- É preciso que nos deixemos ser podados, para que possamos produzir muitos frutos.

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Após a palestra houve a oração da noite. Depois, um chá que alguns brincavam, dizendo ser brochante. E o toque de recolher. Era preciso dormir, pois, às seis da manhã do dia seguinte, todos deveriam estar presentes na oração. Reizinho, ainda, rezou o terço, como fazia todas as noites e adormeceu.

***********************************************No domingo, 24 de maio de 1987, o Tupi iria a

Poços de Caldas, enfrentar a Caldense. Naquele ano, o Tupi havia montado um grande time e estava brigando pela liderança do campeonato mineiro, palmo a palmo com o Atlético e o Cruzeiro. O técnico do Tupi enchia-se de dúvidas a cada vez que pensava em quem iria sair do time, para dar o lugar a Reizinho. Acabou decidindo que na sua estréia, ele ficaria no banco.

Durante a longa viagem até Poços de Caldas, Reizinho pensava naquele jogo. Gostaria de sair jogando, mas sabia que o banco era um bom começo. Lembrava do primeiro treino, quando também teve de esperar no banco. Às vezes, pensava a vida, como uma espera constante, em tudo havia a espera. A espera da mocidade, do amor, do jogo, em tudo isso havia uma certa ansiedade. E Reizinho se distraia com as brincadeiras dos jogadores, era preciso relaxar, para não fazer daquela viagem, um peso. Era preciso fazer como aqueles jogadores, que pareciam estar indo para uma festa. O jogo seria uma festa, não havia motivos para preocupações.

Começa o jogo. Durante o primeiro tempo daquela partida, Reizinho prestou atenção a cada lance. Era uma partida truncada, com dois times preocupados em se

defender. As jogadas violentas aconteciam com freqüência. Na arquibancada, uma torcida barulhenta incentivava cada lance. Reizinho sentia uma vontade louca de entrar logo, de ajudar seu time e de enfrentar aqueles zagueiros. A vontade de jogar parecia estar no sangue. Ao terminar o primeiro tempo o Tupi vencia por um a zero e no vestiário, o assunto era a necessidade de não mexer no time. O jogo estava muito difícil e uma mudança poderia prejudicá-lo. Reizinho sentiu que sua estréia, talvez seria adiada e isso o chateou. Queria jogar e fazer o gol que prometera aos amigos.

O jogo recomeça com uma pressão enorme do time da casa. Aos quatro minutos acontece o empate. Aos doze, a Caldense faz dois a um. No banco, o técnico do Tupi levanta-se e pede a Reizinho que se aqueça. Seu coração dispara. Iria entrar. Era a sua estréia. Recorda-se de todo o trabalho feito, agradece a Deus e se aquece para o grande momento. Assina a súmula e volta para receber as instruções. Logo depois, aquele garoto, tendo às costas a camisa número quinze, entra em campo para disputar a sua primeira partida de futebol profissional.

Por um momento, parecia estar sonhando. Olhou a torcida e a jogada que acontecia na defesa do seu time, era hora de agir. Recebeu a primeira bola, sentiu as pernas trêmulas, mas firmou-as e acertou o passe. Sentiu que algo estava errado. Havia tremido na primeira jogada. Isso não poderia acontecer nunca mais. Decidiu que iria pôr garra em toda sua carreira. O coração seria dali em diante, a sua maior virtude. Partiu para o ataque. Pediu a bola. Recebeu na direita, como no primeiro treino. Driblou o primeiro, o segundo, ganhou confiança e tocou no meio para um

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companheiro que prosseguiu a jogada. Voltou para o meio de campo, marcou, tocou a bola com classe, driblou com firmeza e com maestria. Entrara bem no jogo. Os jogadores adversários não entendiam, pois aquele garoto havia mudado o jogo, era preciso pará-lo. Reizinho recebeu uma falta violenta, a segunda, a terceira, mas não se intimidou.

Aos trinta e dois minutos, Reizinho ganhou uma bola no meio de campo. Fez a tabela, driblou três adversários e deu o passe na medida para o centroavante que empatou o jogo. O time da casa recua e aos trinta e nove minutos, Reizinho está na área adversária. Domina a bola no peito, protege-a e escapa de uma falta. Dribla o primeiro, o segundo e fica frente a frente com o goleiro. Toca rasteiro, no canto e marca um golaço. Comemora como nunca. Abraça os companheiros. Lembra da família e dos amigos. Ele tinha conseguido marcar o gol, era o seu primeiro gol de verdade. Precisava ser festejado. Quando o juiz apitou o fim do jogo, não conteve a emoção e depois de muitos anos, ele chorou soltando as lágrimas que pareciam estar presas, devido a uma vida de lutas, que não lhe dava nenhuma trégua. Ali, ele havia vencido e podia chorar.

O Tupi venceu brilhantemente aquela partida e naquele domingo, “Os gols do Fantástico”, apresentava ao Brasil um novo artilheiro. Naquela noite, Reizinho se transformou no “artilheiro do Fantástico”.

Na viagem de volta, era o mais entusiasmado. Seus companheiros o cumprimentavam pela atuação. No dia seguinte, ao chegar ao colégio, se espantou com tanta gente, querendo falar com ele. Alunos, professores,

funcionários, até o diretor o cumprimentou com um sorriso. Nas ruas, ficava sem jeito, de tanto que as pessoas o olhavam. Às vezes o paravam e pediam autógrafos. De uma hora para outra, aquele garoto pobre, tinha se transformado na maior atração de uma cidade. Tinha virado herói e todos queriam abraçá-lo. Reizinho atendia a cada pessoa. Estava adorando dar autógrafos, sentia-se feliz com tanto afeto. Aquela estava sendo a melhor semana de sua vida. Guardou aquele jornal que tinha a sua foto na capa, para, na primeira oportunidade, ir à sua cidadezinha mostrá-la aos amigos. Aos grandes amigos, que durante a infância, conversavam sobre o futuro e o assunto era, quase sempre, o sonho de ser jogador de futebol. E ele tinha se tornado um craque, tinha até a prova: a foto e a manchete no jornal, “Reizinho, o novo craque do Tupi”.

***********************************************Na manhã do dia seguinte, a oração e o café da

manhã animaram Reizinho. Os candidatos ao Seminário foram divididos em quatro grupos. Cada grupo teria o acompanhamento de dois padres, uma psicóloga e um seminarista. Em cada grupo havia candidatos que passavam por diferentes etapas, ou graus de estudo.

Alguns, como Reizinho, eram candidatos a entrarem para a Comunidade Vocacional. Ainda iriam fazer o segundo grau. Eram os que teriam de fazer uma caminhada mais longa. Outros eram candidatos a estudar Filosofia. Pareciam mais amadurecidos. E, havia um jovem que já era formado em Filosofia. Tinha estudado na PUC. Parecia ser muito inteligente. Era educado e estava

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sempre bem vestido. Reizinho sentia-se inibido diante dele.

Havia, ainda, a mistura de congregações e dioceses. Alguns pertenciam a diocese de outro estado. Outros eram Redentoristas, ou seja, nem todos iriam para o mesmo Seminário que Reizinho. Ali, porém, pareciam unidos. Todos com um único objetivo, ser padre.

A psicóloga do grupo de Reizinho era um encanto, muito bonita. Era a presença feminina no grupo. Nos momentos de recreação não faltavam os comentários sobre ela. E Reizinho começava a perceber que aqueles candidatos a seminaristas não eram nada bobos. Achavam aquela mulher linda. Ele também achava e, vinha à sua mente, a imagem de Márcia, que estava distante. E sentia saudades.

Padre Tôni parecia de olho nele. Reizinho pensava ser ele quem iria decidir sua entrada ou não, para o Seminário. Era preciso fazer tudo para agradá-lo. Havia também, o Monsenhor Henrique. Era o formador da Comunidade Vocacional. Quem iria tomar conta de Reizinho, caso ele passasse naquele estágio. Tinha também que impressioná-lo.

Aquele estágio contava, também, com a presença de um bispo. Dom Roque era uma pessoa ótima. Mesmo sendo bispo, era de uma simplicidade incomum. Brincava com Reizinho, que nunca mais se esqueceu dele. Nem o viu mais após o estágio. Dom Roque era de outra diocese. Deixou saudades, foi um bom amigo naqueles dias.

Após o almoço, os grupos ficavam livres por algum tempo. Todos se reuniam para divertir um pouco. Alguns gostavam de tocar violão e de cantar. Outros,

simplesmente conversavam ou passeavam pelos arredores da casa. Havia um tempo para os trabalhos de limpeza e depois um futebolzinho, que Reizinho adorava.

Nele, esquecia suas preocupações e seus temores. Corria em busca dos gols que o deixavam feliz. Ali, padre Tôni parecia esquecer suas obrigações e corria como um garoto. Ali, também, não havia diferenças entre aquele grupo. Todos ficavam felizes. A bola era o centro das atenções. Era o que Reizinho mais gostava de fazer. Jogar futebol...

Após a peladinha, o banho frio. Novas reuniões, momentos de oração e mais uma noite que chegava para o descanso do grupo. Reizinho começava a gostar de estar ali, em meio à muitos amigos. Era preciso fazer tudo direitinho, para não perder aquela oportunidade. Sentia que era por ali, o caminho para crescer na vida.

Os dias de estágio foram se passando. Reizinho começou a ficar angustiado. Sentia muitas saudades de sua casa, de seus amigos e de Márcia. Sentia, também, medo de não ser aprovado naquele estágio e perder uma ótima oportunidade de crescer na vida.

Às vezes, imaginava que padre Tôni não gostara dele. Assim, achava que não passaria naquele estágio. Pensava ter falado demais. Revelado coisas que deveriam ter ficado em segredo. E sentia muito medo. Pensava ser mesmo muito simples. Sem as virtudes necessárias para ser um bom padre.

Na véspera do final do estágio, padre Tôni conversou com ele.

- Se não passar no estágio, não significará que você não poderá ser padre. Poderá estudar na sua cidade e

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haverá um acompanhamento vocacional. Mais tarde, se você se sentir mesmo chamado por Deus, poderá entrar para o Seminário e ser mais um padre para a nossa Igreja.

Aquelas palavras de padre Tôni pareciam uma resposta para suas dúvidas. Certamente, não havia passado naquele estágio. Não entraria para o Seminário. Teria que voltar para sua cidade e tudo voltaria a ser como antes. O sonho de ser alguém importante na vida, teria que ser buscado por outro caminho.

E Reizinho pensava em Márcia. Imaginava que teria de esquecê-la. Sentia-se muito simples para conquistá-la. Ser um seminarista o fazia sentir-se mais importante. Pelo menos, poderia ser amigo de Márcia, era um consolo. E Reizinho lembrava de todas as amiguinhas que havia conquistado. Certamente iriam afastar-se dele, quando soubessem que não iria mais ser padre.

Todos aqueles pensamentos deixavam Reizinho angustiado. E naquela tarde, o futebolzinho não foi tão gostoso. Nem seus gols o fizeram vibrar. A Missa lhe pareceu muito triste. Todos aqueles candidatos ao Seminário lhe pareciam distantes. Reizinho teria de esquecê-los e era difícil. Tinha sido bom conviver com tantos amigos. Todos eram pessoas maravilhosas!

Alguns, como Reizinho, também pareciam sentir a dor do medo de não passar naquele estágio. Outros, porém, queriam mesmo era voltar para casa e seguir em frente na vida. Não sentiam mesmo vocação para ser padre.

Ser padre, para Reizinho, era o caminho para se libertar da rejeição que sentia. Seria querido por todos e sentir-se-ia feliz com isso. Assim, havia o medo daquela reprovação. Certamente voltaria a sentir-se rejeitado e

aquilo era terrível. E aquela noite se passou lentamente. Por fim, cansado de seus pensamentos, adormeceu.

***********************************************O jogo seguinte seria em Juiz de fora. Reizinho

faria o primeiro jogo diante de sua torcida. Durante a semana treinou embalado pelo sucesso. Após os treinos, conversava bastante com o treinador, que lhe disse que iria jogar desde o início. Não havia porque, deixá-lo no banco. Seria escalado como ponta de lança, com ampla liberdade para voltar e armar as jogadas e, liberdade para cair pelas pontas ou, revezar com o centroavante nas jogadas de ataque. Reizinho teria total liberdade dentro de campo.

Liberdade para jogar pela ponta direita e lembrar “Garrincha”, o saudoso moleque caçador de passarinhos, a que, Reizinho assistira pela televisão algumas jogadas e se encantara com tanta magia. A magia das pernas tortas. Dos dribles sempre para a direita. Do jeito moleque de fazer do jogo profissional um brinquedo e enganar adversários, tensos pela seriedade se um estádio lotado.

Magia que muitas vezes fazia com que Reizinho, se preocupasse com o seu passado, que exigia dele uma postura séria, que não admitia erros. Talvez, fosse algum trauma, que lhe cobrava a perfeição. Não podia errar, era como se a vida fosse um constante teste, que lhe cobrava uma resposta certa. O que queria, era encontrar a liberdade, aquela que vira no seu ídolo “Mané Garrincha”. Reizinho sonhara um dia ser jogador e fazer do futebol a alegria do drible-moleque, que faz a torcida feliz. Para isso ele tinha treinado tanto, tinha dado tudo de si, em busca de um dia que pudesse dar a si mesmo, o direito de errar, sem

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levar uma pedrada. O próximo jogo se aproximava. Reizinho imaginava desde já, a reação dos companheiros e da torcida se, por acaso, fosse mal. Será que iria ter outra chance? Decidiu que ainda não podia ser o moleque que sonhara, ainda não podia errar. Aquele jogo teria que ser feito com o coração, era um novo teste.

Era o primeiro jogo de Reizinho diante de sua torcida. O estádio estava lotado para ver o Tupi enfrentar o América. A torcida queria ver o seu novo ídolo, o artilheiro que despontava. No vestiário, Reizinho emociona-se ao receber do técnico, a camisa número dez. Lembrou do “Rei Pelé”, o símbolo máximo do futebol, o Rei do Brasil, tri-campeão do mundo. Com a camisa dez às costas, confirmava a realização do sonho de ser jogador de futebol e já podia ter um sonho maior. O sonho de jogar na seleção brasileira.

O Tupi entra em campo e Reizinho recebe calorosos aplausos. Meio confuso com tantos aplausos, ele saúda a torcida. Vê ali, muitos de seus amigos do colégio. Sente um nó na garganta quando vê um amigo da infância, que tinha vindo torcer por ele. Sente vontade de ir até a torcida, abraçar seu amigo e agradecer a força. Porém, o jogo já ia começar, era preciso conter a emoção, era preciso concentrar-se no jogo. Sentia uma responsabilidade enorme, perante aquela torcida que o aplaudia.

Correu uma barbaridade, dividiu, deu carrinhos e fez jogadas bonitas. Jogou com o coração. Queria que a torcida ficasse feliz, era a forma de retribuir os aplausos. Ao final do primeiro tempo, os repórteres o cercaram. Ele, porém, não conseguia falar, estava exausto, parecia lhe faltar oxigênio. Correra como um louco, mas valera à

pena. O Tupi estava vencendo por dois a zero e Reizinho, mesmo sem marcar o seu gol, era o grande destaque da partida. Durante todo o primeiro tempo, a torcida tinha gritado o seu nome e aquilo o impulsionava a correr cada vez mais. Sentia que não podia parar em momento algum da partida.

Sentiu que não dava para voltar no segundo tempo, não iria aquentar aquele rítmo. Conversou com o técnico e o preparador físico. Ainda não entrara totalmente em forma, era preciso treinar mais. A torcida não entendeu quando o time voltou sem Reizinho, gritou seu nome. Aqueles gritos lhe deram a certeza de que tinha jogado bem. Durante o segundo tempo daquele jogo, torceu para os companheiros, que deram mais uma vitória ao Tupi.

Ao final do jogo, Reizinho custou a sair do estádio. Muitas pessoas o cercaram, pediam autógrafos, faziam perguntas e lhe batiam nas costas. Custou a entrar no ônibus, que o levaria de volta à pensão. Acabou sendo reconhecido novamente, o que gerou um novo tumulto. Finalmente chegou à pensão, entrou no seu quarto e parecia ter acordado de um pesadelo. Estava finalmente só, sentiu pela primeira vez, uma grande paz por estar só. A multidão o deixara numa tensão enorme. E no silêncio do seu quarto, o barulho da torcida continuou, por um bom tempo, a açoitar seus ouvidos e mesmo, ao dormir, sentia o calor daquele jogo.

Na segunda levantou-se cedo. Decidiu não ir ao colégio, aproveitaria a folga para visitar os pais. Precisava de descanso e mais do que nunca, da paz de sua pequena cidade. Ao chegar, sentiu o valor do lugar onde crescera, conhecia cada pessoa desde a infância, sentia que ali

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estavam seus verdadeiros amigos. Ao chegar em casa, pediu a benção aos pais e sentou-se no velho sofá. Parecia ter recuperado o seu trono. Entendia ali, o porquê de muitos dos seus amigos terem medo de deixar a cidade, a família, os amigos e partirem para as grandes cidades, em busca de um futuro melhor.

Reizinho, porém, havia saído. Precisava sair. De alguma forma, achava a paz daquela cidade, algo morno. Era preciso buscar alguma coisa nova. No dia seguinte teria que voltar, recomeçar os treinos. Era preciso treinar mais para agüentar correr noventa minutos e não decepcionar a torcida. Era, também, preciso acostumar-se com aquela torcida, com aquele barulho. Afinal, seria parte da sua nova profissão. Dali em diante, teria sempre a multidão a lhe cercar, a lhe pedir autógrafos, a lhe pedir garra e a lhe pedir gols.

Reizinho retorna a Juiz de Fora. Recomeça os treinos, dedica-se como nunca àqueles exercícios. Era preciso recuperar o tempo em que evitara os exercícios físicos. Tempo, que o deixara em péssima forma. Porém, não adiantava lamentar-se. Já era tarde, o passado não mais importava. Era preciso começar tudo, a cada sessão de exercícios, ele dedicava mais amor, era o investimento que fazia em si próprio.

Os dias foram se passando. Os jogos seguintes vieram e Reizinho foi se firmando, como o craque do time. Já corria os noventa minutos e até se acostumara com a pressão da torcida. Já não sentia medo, quando era cercado por torcedores na saída do estádio. As pessoas já o tratavam com respeito, não era mais um “Zé Ninguém”, tinha uma identidade, era alguém.

O Tupi foi derrotando seus adversários. Até o poderoso Cruzeiro, com o Mineirão lotado, caíra diante do time de Reizinho. Naquele jogo, parecia que tudo estava contra ele. Ao entrar em campo, ouviu as vaias de todo o Mineirão. Jamais ouvira algo igual, era uma torcida imensa, que parecia ter engolido a pequena caravana de Juiz de Fora, que tinha ido torcer pelo Tupi. Durante o jogo, percebeu que o juiz estava prejudicando seu time. Recebia faltas violentas. Sofrera um pênalte na sua frente e ele nada de marcar. Pensou em chingá-lo, viu que um de seus companheiros já estava fazendo isto e sentiu uma raiva enorme, quando viu o juiz expulsar o seu companheiro. Temeu que ali, se perderia tudo. Tinha a sua frente, o timaço do Cruzeiro e à sua volta, uma torcida imensa, que parecia querer massacrá-lo. O seu time agora tinha somente dez jogadores e ainda havia o juiz, em quem ele não confiava.

Um de seus companheiros, que era o capitão do time, o acalmou. Falou da necessidade que todos tinham, a partir daquele momento. Era preciso se desdobrar, se multiplicar em campo, jogar por si e pelo companheiro expulso.

Aquele foi um jogo em que Reizinho aprendera muito. Viu seus companheiros jogarem com uma raça descomunal, cada jogada dividida, era como se fosse a própria vida que estivesse em jogo. Ele não poderia ser diferente. Teria que mostrar serviço e jogar pelo companheiro expulso. Não deveria, de forma alguma, se intimidar diante daquela torcida ou, daqueles jogadores famosos. Era preciso lutar e lutou, lutou o jogo todo e, no final, havia marcado três gols. Reizinho e seus

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companheiros acabavam de colocar o Tupi, na final do campeonato mineiro daquele ano.

O Mineirão lotado parecia não entender que o Cruzeiro havia perdido. Aquela imensa torcida assustava Reizinho, que sentiu novamente, medo da multidão. Porém, a cada abraço, sentia o valor da união. Via em cada companheiro, um herói. Lembrava sempre, da garra com que disputaram cada jogada. E Reizinho, foi até sua torcida, sua pequena torcida. Pareciam estar nas nuvens, pulavam, gritavam e mais, gritavam o nome de Reizinho e ele, todo orgulhoso, venceu o habitual acanhamento e, pela primeira vez, jogou beijos para a torcida. Com aqueles beijos, parecia ter se libertado de uma parte do peso, que a timidez o colocara nas costas.

Agora só faltava o Atlético. Seria a grande final e Reizinho já sonhava com a faixa de campeão. Na volta para Juiz de Fora, tudo era festa e naquela madrugada, ele teve direito a tudo, afinal era um herói.

***********************************************O dia seguinte amanheceu lindo. O céu azul e o

calor de janeiro fizeram com que Reizinho, esquecesse um pouco as preocupações. À tarde sairia o resultado do estágio e ele parecia já conformado com a possível reprovação. Pelo menos, estava chegando o momento de voltar para casa. Passando ou não, a vida teria de continuar.

Assim, naquela tarde, Reizinho e seus colegas aguardavam a conversa final com Monsenhor Henrique. Ele iria fornecer o resultado do estágio. Todos os primeiros saíram contentes e animaram Reizinho. Emocionado, ele

aguardava a sua vez. Quem sabe teria uma chance, era tudo o que queria. Esperava voltar para sua cidade com um resultado positivo e, assim, ter muitas novidades a contar.

Ao entrar na sala, sentiu que Monsenhor Henrique estava feliz. Ele sorriu e lhe perguntou se havia gostado do estágio. Reizinho disse que sim e ficou todo contente com as palavras do padre.

- Na verdade os seus resultados não foram muito bons. Mas houve outros na mesma situação que você. E todos terão uma chance. Irão fazer parte da nossa comunidade. Você estudará conosco e terá um tempo maior para discernir sua vocação.

Reizinho saiu dali radiante. Abraçou seus amigos. Todos pareciam contentes por ele. Havia passado naquele estágio. Seus medos, suas preocupações, seus erros, tudo isso tinha ficado para trás. O importante agora, era seguir em frente. Aprender muitas lições e partir em busca do sonho de ser alguém importante na vida.

O anoitecer foi de despedida para todos. Alguns pareciam inconformados por não passarem naquele estágio. Somente para a Comunidade Vocacional, haviam sido aprovados todos. E andavam tristes de um lado para outro. Reizinho sentiu muito por eles, mas não tinha palavras para consolá-los. Não queria nem se imaginar na situação deles. Outros pareciam loucos para voltarem para casa. Não agüentavam mais, todo aquele tempo ali. Descobriram que não tinham mesmo vocação para padre. Os demais, como Reizinho, comemoravam a vitória sobre aqueles testes. Seriam dali em diante, companheiros de caminhada.

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Ainda naquela noite, voltaram para a cidade. Reizinho e seus amigos saíram. Alguns tomaram cerveja, outros refrigerantes, mas todos comemoraram aquele resultado. Reizinho sentiu-se feliz por estar na rua, próximo as garotas. Afinal, foram onze dias no meio de marmanjos. E já era próximo à meia-noite, quando voltaram para o Seminário.

Reizinho, Fábio Augusto, Nelson, Mazinho, Zezinho e Donato, eram os novos componentes da Comunidade Vocacional daquele Seminário. E todos faziam uma bagunça enorme, uma guerra com os travesseiros. Reizinho era o mais velho entre eles. Sentia, naquele momento, que o Seminário era um lugar feliz. Por fim, o cansaço se fez silêncio e o sono chegou naquele quarto.

Na manhã seguinte, Reizinho voltou para casa e abraçou sua mãe.

- Mãe, passei...Sua mãe parecia já esperar aquele resultado e se

mostrava contente. O sonho de ter um filho padre caminhava bem.

Pouco depois, Reizinho já estava andando pelas ruas. Contava a novidade aos amigos. Alguns achavam legal que ele quisesse ser padre. Outros porém, diziam com ironia.

- Você é doido de querer ser padre, com tantas meninas bonitas por aí.

É verdade. Havia muitas meninas bonitas. Mas, a que ele amava era a mais linda. Era também, muito rica. Reizinho sentia que não tinha chances de conquistá-la. Era melhor ser padre. Assim, poderia viver para servir a Deus

e ajudar muitas pessoas. Poderia mostrar às pessoas a beleza da promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo e converter multidões. Era uma forma de se sentir útil para o mundo.

Reizinho contava os dias que faltavam para entrar, definitivamente, para o Seminário. Faltavam dezoito dias e era preciso aproveitá-los. Os dias passam muito rápidos quando estamos felizes.

Logo chegou o fim de semana. Reizinho foi para a pracinha. Entrou na danceteria e alguns colegas brincaram com ele.

- O que você está fazendo aqui? Não pode ficar olhando essas meninas. Vai perder a vocação.

Reizinho sorria. Sentia-se feliz. Márcia estava ali, dançava com duas amigas. Seu coração disparou. Foi se aproximando devagarinho. Márcia sorriu e perguntou pelas novidades.

Reizinho disse que tinha passado no estágio e que iria entrar para o Seminário. Márcia se mostrou feliz com a novidade. Parecia nem de longe, imaginar que ele a amava, e o que queria mesmo era ficar com ela. E ficaram dançando por um bom tempo. Márcia e as outras meninas pareciam gostar da sua companhia. Reizinho sentia-se feliz, por estar bem pertinho da garota que amava. Mesmo que fosse somente como amigo.

De volta para casa, adormeceu sonhando com aquela menina. Estava apaixonado por ela e aquilo mexia com seu coração. Sentia-se cheio de dúvidas. O dia de ir para o Seminário se aproximava e a idéia de deixar sua casa, seus amigos e ir para longe de Márcia, parecia

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assustadora. Mas era a mais certa ou, pelo menos, a mais próxima.

***********************************************Os dias que antecederam a decisão, foram vividos

sob muita tensão. Reizinho contava as horas. Nas noites custava a dormir e nas manhãs, ao acordar, se assustava lembrando o momento que estava chegando. Lembrava sempre das vezes em que o time do seu coração chegara a uma decisão. Ficava numa tensão enorme, mesmo sabendo que não iria entrar em campo. A decisão traz sempre uma magia que mexe até mesmo com o mais humilde dos torcedores. É como se o seu torcer fosse ajudar a empurrar a bola para o gol ou, pelo contrário, evitar que ela entrasse. E Reizinho treinava sabendo da responsabilidade que aquela decisão envolveria. Agora, ele não estaria mais em frente à televisão, ou com o radinho colado ao ouvido. Estaria dentro de campo, escalado para defender o time e o orgulho de seus torcedores.

Durante os treinos, a tensão era dividida com os demais companheiros. Todos se lembravam das dificuldades enfrentadas diante do Cruzeiro e sabiam que contra o Atlético não iria ser diferente. O Atlético jogaria com a torcida a seu favor. Provavelmente o juiz apitaria sentindo a pressão da torcida. A favor do Tupi poderia ficar o vento em um dos tempos da partida. Tudo isso servia para mexer com os nervos dos jogadores.

Do lado do Atlético, os jornais mostravam uma grande preocupação, especialmente com as jogadas de Reizinho. Seu técnico não escondia a necessidade de uma marcação especial em cima do jogador. Iria designar

alguém para acompanhá-lo por todo o campo. Este era o clima de uma grande decisão.

Ao ler o jornal e ficar sabendo da marcação especial que iria sofrer, Reizinho sorriu. Sorriu por sentir que alguém se preocupava com ele e lembrou-se do técnico do Cruzeiro que, antes do jogo, disse que não havia necessidade de uma marcação especial. Que Reizinho iria tremer diante do Mineirão lotado e durante o jogo, levou um passeio de bola. Reizinho já imaginava um jogador do Atlético seguindo-o por toda a parte do campo, e se divertia ao planejar os dribles que poderiam destruir aquela marcação. Tudo isso e mais o carinho da torcida faziam com que ele se livrasse da enorme tensão que sentia.

Nove de agosto de 1987. Finalmente chega o dia da grande decisão. Com o Mineirão lotado, Atlético e Tupi entram em campo para decidirem o Campeonato Mineiro daquele ano. Era a primeira decisão de Reizinho e uma ótima chance para o Tupi conquistar um grande título. O jogo começa nervoso, Reizinho sente a forte marcação, fica difícil para ele livrar-se do bom marcador do Atlético. Sente a pressão da torcida que o vaia a cada vez que pega na bola e sente a garra do seu marcador, que é aplaudido a cada disputa. O Atlético parte para cima do Tupi, que prefere tentar os contra-ataques. Reizinho volta, procura fugir de seu marcador que o acompanha. Parecia um carrapato, não desgrudava nunca. Porém, na primeira bola em que ele fica de frente para o seu marcador, o deixa caído, sem nenhuma ação. Na segunda, uma nova finta, mostrando que seria quase impossível marcá-lo. Aos vinte e cinco minutos, o Atlético faz um a zero. Sua torcida começava a respirar, quando aos vinte e oito minutos,

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Reizinho sofre uma falta nas proximidades da área. Ele mesmo a cobra e empata a partida, placar que permaneceu até o final do primeiro tempo.

No segundo tempo, logo aos dois minutos, acontece um lançamento para o ponta direita do Tupi, que penetra na área e faz dois a um. O Tupi volta tentando segurar o marcador. Aos vinte e dois minutos, o Atlético empata e começa a forçar, em busca do terceiro gol. Todo o Tupi está recuado. Reizinho luta de todas as formas, ajuda na marcação e tenta levar seu time à frente. Sentia porém, que seu time estava com medo, parecia que seus companheiros queriam esperar a prorrogação e tentar ganhar a decisão nos pênaltes. E ele sentia uma vontade enorme de ganhar logo aquele jogo. De repente, domina uma bola e sai driblando. Ultrapassa “a linha que divide o gramado”, dribla mais um e se manda em direção à área. É derrubado. Uma falta, um pouco distante, porém, uma chance de gol.

Reizinho ajeita a bola com carinho. Toma distância. Corre em sua direção. Bate firme e vê a bola tocar a rede. A princípio, parecia não acreditar naquilo que tinha visto. Pensou estar sonhando, quando seus companheiros pularam sobre ele. Não era sonho, havia marcado o gol que poderia dar ao Tupi, o título de Campeão Mineiro. Só faltavam seis minutos, era preciso calma e esses minutos passaram, e foram como horas, que faziam em cada bola rebatida um herói. Final de jogo e, o Tupi se sagrava o grande Campeão Mineiro de 1987.

A pequena torcida invade o campo e carrega Reizinho às costas. Era campeão. Uma emoção tomou conta de todo seu ser e aumentava cada vez que pensava na importância do fato. Tinha feito do seu primeiro

campeonato um título inédito. A emoção era muito forte. Parecia querer explodi-lo. Torcida, repórteres, todos o cercavam, e Reizinho desabafou: “sou campeão”, não conseguia falar mais nada. Tinha vencido o passado, os medos, os erros e era campeão. Campeão como os seus ídolos. Naquele momento, sentia que tinha respondido aos que não davam nada por ele e o prejudicavam com sugestões pessimistas. Respondeu, afirmando sua fibra, sua garra, era bom como todo mundo, tinha direito de jogar e de ser campeão. Reizinho era campeão, campeão de verdade!

Pegou a pesada taça e deu a volta olímpica com seus companheiros. Era uma festa enorme, que só terminaria em Juiz de Fora e ainda teria a sua cidade, onde fazia questão de comemorar com seus amigos da infância. Amigos, que com ele correram em tantas peladas, disputadas em tardes inesquecíveis.

Em Juiz de Fora, os jogadores do Tupi foram recebidos como heróis. Desfilaram em carro aberto pela Avenida Rio Branco. A todo momento eram aplaudidos e Reizinho sentia uma felicidade enorme, era como se estivesse num sonho lindo, lutando para não acordar. A festa durou vários dias. Reizinho foi tratado como rei. A porta da pensão onde morava, ficava cheia de torcedores querendo vê-lo. Começava a sentir orgulho de si mesmo, parecia ter vencido na vida, era o próprio sucesso.

***********************************************Os dias se passaram. O momento de partir chegou,

trazendo para Reizinho, um certo desconforto. Antes de partir, sentiu uma vontade imensa de despedir-se de

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Márcia. Dirigiu-se a um telefone público e com o coração disparado pela emoção, ouviu as palavras da menina.

- Uma pena que você tenha que partir. Vou sentir muito a sua falta.

Reizinho sentiu um ar de mentira naquelas palavras. Ficou um pouco chateado. Mas, por um lado, aquilo foi bom. O fez sentir que era realmente rejeitado, por causa da sua simplicidade. Era preciso tentar crescer na vida, para poder se aproximar e ser bem aceito pelas pessoas mais importantes. O Seminário poderia lhe ajudar muito neste sentido. Poderia estudar e ser alguém importante. Talvez um padre. As pessoas mais simples precisam de padres, que falem sobre o Reino de Deus. Um Reino, onde as pessoas seriam amigas de verdade. Acabariam as diferenças de classes, a desunião e a falta de afeto, que causam desconforto às pessoas.

Reizinho despediu-se de sua família. Chegou ao Seminário numa tarde de sol. Coração apertado! Sentia uma espécie de desilusão, por causa de Márcia. Ou, talvez, o medo do que encontraria na sua nova vida.

Ao chegar encontrou seus amigos de estágio e pareciam felizes. Conheceu outros companheiros de Comunidade. Sentiu-se acolhido com as boas vindas, dadas por Monsenhor Henrique e seu coração voltou a sorrir.

A Comunidade Vocacional de Reizinho iria morar num pequeno edifício. Ficava nos fundos do Seminário Maior, um grande prédio. Tinha quatro andares. Reizinho e os garotos do segundo grau, em número de dez, iriam morar no quarto andar. No terceiro andar ficava a capela, a sala de televisão, o quarto de Monsenhor Henrique e a porta de entrada. O edifício ficava em uma encosta e os

dois primeiros andares, onde iriam morar os sete garotos do primeiro grau, ficavam abaixo da porta principal. Tinha, ainda, uma lavanderia e uma pequena cozinha. Do quarto andar, tinha-se uma vista muito bonita da cidade. Era uma grande cidade e Reizinho, começava a se orgulhar de estar morando ali.

Eram dezessete garotos. Seriam coordenados por Monsenhor Henrique e pelo diácono José Carlos. As refeições seriam feitas no grande prédio, juntamente com os seminaristas dos cursos de Filosofia, Teologia e os padres. Reizinho já estava mesmo com fome. E o sino tocou, convidando a todos para o jantar.

Aquele jantar estava uma delícia. Reizinho sentiu-se nervoso em meio à tanta gente. Eram quase umas setenta pessoas, entre padres e seminaristas. Todos felizes. O jantar era uma festa e Reizinho observava, cada um dos seus novos amigos.

O Reitor do Seminário, padre Arnaldo, sorria o tempo todo. Era muito simpático. Monsenhor Henrique, com seu jeito sério, ficava de olho nos garotos da Comunidade Vocacional. Padre Tôni era o formador da Comunidade de Filosofia. Tinha um jeito simples, um ar franciscano. O formador da Comunidade de Teologia era o padre Bianor. Destacava-se pela elegância de suas roupas. Reizinho, a primeira vista, achou-o muito metido. Porém, um convite para uma peladinha no dia seguinte e Reizinho, passou a gostar dele.

Entre os seminaristas, os teólogos eram os primeiros na hierarquia do Seminário. Queriam impor-se. Falavam das dificuldades passadas até chegarem àquele estágio e queriam mordomias. Os filósofos também se

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diziam os bons. Falavam de Filosofia como se o conhecimento fosse tudo na vida. Os companheiros de Reizinho preferiam falar do futebol, que iriam jogar no dia seguinte. Eram mais simples. Alguns tinham vindo da roça e falavam errado, ou engraçado. Era um barato o Seminário, com pessoas tão diferentes. Uma grande festa, onde todos queriam sorrir. Havia muitas brincadeiras e gozações. Não faltavam apelidos a ninguém.

Reizinho, agora, era um seminarista e sentia-se feliz na sua nova vida. Queria estudar muito. Passar por todas as etapas do Seminário. Sentir orgulho como os filósofos e teólogos, seus amigos. E iria querer ser um padre simpático, como padre Arnaldo. Enfim, queria ser feliz. Por um momento esqueceu-se de Márcia.

Assim, foi para o colégio. Ficava a uns dois quilômetros do Seminário. Iria estudar a primeira série do Científico. Com ele iam Fábio Augusto, Nelson e Mazinho, além de outros seis, mais adiantados, que estudavam Magistério.

Era um grande colégio. Cheio de meninas bonitas, uma tentação para os seminaristas. Reizinho gostou muito. Tinha certeza de que seria ótimo estudar ali. Nunca imaginara que o Seminário fosse lhe oferecer um colégio como aquele. Estava feliz.

A princípio, gostou muito da turma de sua sala. Sentiu-se meio acanhado, por ter vindo de uma cidade pequena. Seus colegas sorriram, por ele agarrar no r, ao falar o nome de sua cidade. E aquela primeira aula, passou-se lentamente.

***********************************************A partir daí surgiram várias propostas para que

Reizinho se mudasse para um grande clube. Ele pensava em cada proposta com carinho. Sabia da importância de se mudar para um clube maior. Tinha muitos sonhos, sonho de um dia jogar na Seleção brasileira, sonho de um dia jogar no time de seu coração. Time que, ainda, não demonstrara interesse por ele, o que o levava a sentir que ainda era preciso fazer muita coisa. Precisava provar que merecia jogar no seu time. Conversava muito com o presidente do Tupi, que se transformara num grande amigo e conselheiro. Cada proposta era discutida entre eles.

O Botafogo era um dos times interessados em contratá-lo. Reizinho começou a se interessar em ir jogar no Botafogo, era a chance de jogar no time que mostrou para o mundo, o talento de “Garrincha”. O craque das pernas tortas, que morreu e deixou apagado o drible dos sonhos. Reizinho sempre acreditou na possibilidade do surgimento de um novo menino, que pudesse driblar como o “Mané”. Talvez, ele próprio estivesse escondendo a magia do drible-moleque, tão ausente no atual futebol brasileiro.

E Reizinho foi emprestado ao Botafogo, para disputar o campeonato brasileiro daquele ano. Ele jogava no meio de campo, mas sentia uma atração enorme pelos dribles, principalmente os que eram dados na ponta direita, como os dribles de “Garrincha”. Sonhava dar dribles encantadores, que fizessem a torcida vibrar e sorrir de felicidade. Talvez agora, que já era um campeão, poderia arriscar e tentar o drible desconcertante. Drible que um dia, despertou nele o sonho de ser jogador de futebol.

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Ao acertar com o Botafogo, Reizinho deixou na torcida do Tupi, um sentimento muito grande de perda. Podia ver a tristeza no olhar de cada pessoa que encontrava. Todos o pediam para ficar no time. Às vezes, sentia uma vontade enorme de abandonar seus sonhos e ficar naquele clube que lhe abriu as portas. Mas havia algo maior, era como se fosse uma missão, sentia que precisava ir adiante. Quem sabe, poderia voltar ao Tupi, em outra oportunidade. Agora, era preciso ir embora. Não poderia, de forma alguma, abandonar aquela missão que o chamava a levar adiante o sonho de ser craque e jogar na Seleção brasileira.

Os torcedores do Botafogo, que eram muitos em Juiz de Fora, ficaram eufóricos com a ida de Reizinho para o Rio. Seria o novo ídolo do time da estrela solitária. Reizinho se emocionava sempre que saía às ruas e via alguém com a camisa do Botafogo, especialmente as crianças. Tinha um carinho especial por elas. Quase sempre, se via cercado pelas crianças, que pediam autógrafos e diziam que um dia, queriam jogar como ele. E ele sorria, animando aqueles meninos a manterem aceso o sonho de serem jogadores de futebol.

Reizinho vivia com ansiedade os dias que antecediam a sua ida para o Botafogo. Pediu transferência do colégio em que estudava, pois não queria, de forma alguma, parar de estudar. Sabia das dificuldades que teria para conciliar seus estudos e o futebol. Porém, era preciso estudar, era preciso aprender e aprender muito. A vida exige conhecimento, para abrir caminho ao novo, que pode conter a tão sonhada paz.

Reizinho se prepara para ir ao Rio, pela primeira vez. A princípio, vinha a sua cabeça as imagens que sempre lhe foram passadas, de que o Rio de Janeiro é um lugar perigoso e de que, a todo momento, você corre o risco de alguém lhe apontar uma arma. Sua mãe, até lhe pedira para que não fosse para o Rio, que era melhor ir para São Paulo. Tudo isso fazia com que Reizinho ficasse apreensivo com sua ida para o Rio. O futuro lhe trazia medo, poderia ser morto em um assalto. Por outro lado, diziam que o Rio de Janeiro tem lindas praias, lindas mulheres e que o fato de ser uma cidade violenta, não lhe tirava o mérito de “Cidade Maravilhosa”. E, ele queria viver um sonho, o sonho de jogar em um grande clube do Rio e naquele momento, o Botafogo lhe abria as portas.

***********************************************A vida no Seminário não era só moleza. Levantava-

se às cinco e trinta da manhã. Monsenhor Henrique celebrava a Missa e só após, os garotos tomavam café. Havia a saída para o colégio, da turma que estudava de manhã. Os que estudavam à noite, sempre tinham obrigações a cumprir. Ao meio dia, Reizinho chegava do colégio e havia o almoço, para todos.

De treze às quinze horas, era um tempo para ser dedicado aos estudos e ficava decretado o silêncio na Comunidade. Após este tempo, havia um lanche e um momento de lazer, que ia até às dezesseis e trinta. Novamente uma hora de estudo e silêncio. Às dezessete e trinta havia a oração da tarde e, logo após, o jantar. Às dezenove e trinta, um novo tempo de estudo e silêncio, com a opção de assistir ao Jornal Nacional. Às vinte e

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trinta, havia a oração da noite e, logo após, mais uma hora de silêncio e estudo. Somente depois deste horário, os garotos poderiam dormir.

A limpeza da casa era feita três vezes por semana e todos participavam. Havia ainda, a limpeza da piscina e o trabalho na horta, que acontecia nas tardes de sexta-feira. E foi este trabalho da sexta-feira, que deixou Reizinho contrariado, pela primeira vez, no Seminário.

Saíra do colégio com planos de passar o final de semana com a família. Chegou ao Seminário, almoçou e foi falar com Monsenhor Henrique. Ele logo cortou as pretenções de Reizinho.

- Você não poderá viajar. Precisa trabalhar na horta. Amanhã terá de ajudar na limpeza da casa e, ainda faremos uma revisão da Comunidade.

Teve que se conformar. Pegou uma foice e foi limpar a beira de uma estrada, que dava acesso à rua próxima. Porém, trabalhou chateado. Estava com saudades de sua casa, da família e dos amigos. Não queria admitir para si mesmo, mas sentia também, muitas saudades de Márcia. E o trabalho foi duro. Até que às quinze horas, chegou o momento de lazer. Reizinho deu um mergulho na piscina e foi jogar futebol. E tudo voltou ao normal. Era preciso acostumar-se com o regulamento do Seminário.

O Seminário ocupava uma grande área. Ficava em meio a uma avenida e uma rua de bastante movimento. Nesta área criavam-se galinhas, cabritos, porcos e coelhos. Havia um lago, onde se criavam peixes e também, uma horta enorme, cheia de plantações. Dava muito trabalho cuidar de tudo. Até porque, era difícil coordenar todos os

seminaristas. Muitos empurravam o trabalho com a barriga.

Assim, os dias se passaram. Reizinho foi se acostumando à sua nova vida. Mesmo assim, contava os dias que faltavam para o Carnaval. Seria a primeira folga. Poderia ir para casa e rever sua família. Queria reencontrar os amigos e divertir um pouco.

Finalmente chegou o dia esperado. Despediu-se dos amigos. Todos pareciam ansiosos, por causa do Carnaval. Partiu em direção à Rodoviária, cheio de contentamentos. Logo depois, chegava à sua cidade. Sentiu-se feliz por estar novamente em sua cidadezinha, que amava tanto. Ao chegar a casa, abraçou sua mãe. Os irmãos pareciam felizes em revê-lo. E a saudade deu lugar à alegria. O jantar feito pela mãe era especial e Reizinho sentia prazer em contar as novidades. Gostara do Seminário.

Naquela noite, Reizinho foi para a praça. Os amigos mostravam-se felizes com a sua volta. Todos o cumprimentavam. De repente, sentia que tinha ficado importante.

- Ah, domingo eu vi você na televisão. Você está ficando importante.

É verdade, Reizinho aparecera na televisão. No domingo anterior ele e seus amigos do Seminário, tinham participado da Missa na TV. Muitas pessoas da sua cidade tinham assistido e o reconheciam. O Seminário começava a mudar a vida de Reizinho.

Mas o que ele queria mesmo, era ser alguém legal. Queria deixar de lado a timidez e ser amigo das pessoas. E estava conseguindo. As pessoas já o tratavam bem. Na rua, todas as meninas o olhavam. Acenavam-lhe as mãos e

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Reizinho sorria. Antes, aquelas meninas nem o cumprimentavam. Agora, queriam ser suas amigas. E ele sentia-se o máximo. Pensava em como tinha ocorrido, aquela mudança. E imaginava o porquê, das pessoas só tratarem bem, aqueles que são importantes. Reizinho, agora, era importante.

Reizinho não gostava muito de carnaval. Mesmo assim, aqueles dias se passaram rapidamente. Olhava as pessoas dançando, pulando e se divertindo. Ele, porém, não sentia motivação para isso. Talvez, lhe faltasse uns goles de cachaça. Mas, preferiu ficar longe da farra, até porque, agora era um seminarista e como dizia Monsenhor Henrique, tinha que ser um exemplo.

***********************************************Numa terça-feira, pela manhã, Reizinho chegava ao

Rio de Janeiro e era recebido com festas pela torcida do Botafogo. Nunca se sentira tão seguro. Parecia que todos estavam ali para protegê-lo. Mostravam-lhe sua nova cidade, os lugares mais bonitos, as praias, o Cristo e o Maracanã. Ao pisar pela primeira vez o gramado do maior estádio do mundo, seu coração disparou. Aquele estádio seria dali em diante, seu grande palco e podia imaginar os clássicos que iria enfrentar. O Flamengo, com sua fantástica torcida, o Fluminense de tantos títulos e o Vasco do seu coração.

Reizinho imaginava como se sentiria ao enfrentar o seu time, aquele que queria ver sempre campeão e agora teria de enfrentá-lo. Porém, agora era um profissional. Sentiu que teria de deixar de lado as paixões. Iria

enfrentar o Vasco e dar tudo de si pela vitória, o seu time de agora, era o Botafogo.

Voltou do Rio cheio de boas lembranças. Falou para sua mãe do que viu, disse que ela não precisaria se preocupar, que ele estaria seguro. Falou aos amigos sobre sua nova vida. Iria jogar no Botafogo e todos pareciam torcer por ele. Flamenguistas, vascainos, atleticanos... Por um momento, parecia que todos os seus amigos tinham se transformados em botafoguenses, para torcerem por ele. Toda aquela torcida deu a Reizinho a certeza de que tinha muitos amigos e aquilo lhe dava uma segurança enorme. Sentia que todos queriam bem a ele. Aquele apoio dos amigos, cobrava-lhe mais empenho na vida, era preciso corresponder a toda força recebida.

De volta ao Rio, Reizinho começa a treinar no Botafogo. Casa nova, novos amigos, clube grande, tudo isso faz com que sua cabeça chegue a mil. Logo fica encantado com a nova cidade, se ambienta ao grupo e se anima com a aproximação da estréia no Maracanã. Passa a ser manchete nos jornais. É reconhecido em todos os lugares e com isso, o medo do Rio de Janeiro, vai dando lugar a certeza de que é um privilegiado, que chegou como ídolo. Pensa em como seria diferente, se tivesse vindo como muitos que chegam em busca de um emprego, sem um destino certo e sem a certeza de um teto.

Reizinho começou a se preocupar com os menores abandonados que encontrou nas ruas, sem ter onde estudar e nem mesmo onde morar. Não entendia porque aqueles meninos estavam nas ruas. Afinal, havia muito dinheiro no Rio de Janeiro, muita gente importante que poderia ajudar aquelas crianças. Às vezes, parava para conversar com

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elas. Era gostoso quando aquelas crianças o reconheciam e com os olhos brilhando, lhe pediam um trocado. Sonhava ele, um dia poder fazer alguma coisa grande por aqueles menores. Doía-lhe por dentro vê-los sem casa, sem escola e sujeitos a todo mal que a sociedade coloca nas ruas.

Vivendo tudo isso, Reizinho se prepara para a estréia no Maracanã, contra o poderoso São Paulo. O jogo é aguardado por todos com expectativa. Com apenas cinco meses de carreira, Reizinho tinha se transformado em um ídolo. Havia em todos, a certeza de que iria ter casa cheia, naquela noite de quinta-feira.

Finalmente chega o grande momento. O Botafogo entra em campo e Reizinho é aplaudido pela torcida. Agora não era mais a pequena torcida do Tupi, era a fantástica torcida do Botafogo. Com a camisa dez às costas, ele se sentia tranqüilo, parecia já ter atingido uma certa maturidade. O período de testes havia passado e o medo de errar, já não o preocupava tanto.

E naquele jogo, o que se viu foi um show de bola de Reizinho e do Botafogo, que apresentava um bom time à sua torcida. Torcida que incentivou o time a cada instante. Sentiu que era ótimo jogar em um time grande, um time com vários craques consagrados, que com ele dividiriam a missão de dar vitórias ao Botafogo. Sentiu-se mais livre para criar as jogadas de ataque, sem se preocupar tanto com a marcação. Totalmente diferente de quando jogara no Tupi e, teve de fazer de tudo para segurar o jogo contra os poderosos, Atlético e Cruzeiro. O Botafogo possuía grandes marcadores, que se nivelavam aos atacantes do São Paulo, e Reizinho pôde jogar sempre à frente e criou jogadas bonitas, e marcou gols. No final, o

placar de quatro a zero parecia pouco. O Botafogo havia dado um show de bola e a torcida feliz, cantava nas arquibancadas. Reizinho tinha estreado com o pé direito e trazia no rosto um sorriso aberto. Um sorriso que escondia um passado de incertezas e deixava claro que ele dera a volta por cima, e merecia sorrir, sorrir como um vencedor.

***********************************************De volta ao Seminário, Reizinho sentiu-se feliz.

Estava se acostumando à nova vida. O Seminário era uma grande família. Mais ou menos sessenta seminaristas que dividiam seus sonhos. Todos eram bons. Na Comunidade de Reizinho, eram dezessete jovens tentando ser alguém na vida. Ser padre é ser alguém muito especial.

A Comunidade Vocacional era uma família conduzida por Monsenhor Henrique e pelo diácono José Carlos. Era ele quem dava as ordens na ausência do Monsenhor. José Carlos era uma pessoa calma. Tinha um quarto separado na Comunidade. Porém ficava, quase o tempo todo, na Comunidade de Teologia. Fazia o último ano de preparação. Seria ordenado padre, ainda naquele ano.

Túlio e Paulinho eram os cabeças da Comunidade de Reizinho. Estavam terminando o segundo grau. Preparavam-se para passar para a Comunidade de Filosofia. Túlio era muito nervoso, principalmente no futebol. Brigava até mesmo, com os padres que participavam das peladas. Paulinho era muito educado. Tinha o modo de ser, meio afeminado. Reizinho, porém, preferia não questionar este detalhe. Paulinho era uma ótima pessoa e fazia parte da caminhada.

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Tadeu, Danilo, Juliano e Sávio faziam a segunda série do curso de Magistério. Os três primeiros já tinham uma caminhada juntos. Sávio entrara para o Seminário naquele ano e era de uma personalidade forte. Gostava de cantar, tinha uma bela voz. Era muito querido pelos padres, por causa do seu enorme potencial artístico. Danilo, como disse no início do livro, era um gordinho simpático. Juliano era o maior comilão do Seminário. Tinha um apetite incrível. Mas, também, era um ótimo goleiro e um ótimo amigo. Tadeu gostava de fazer musculação e de jogar futebol. Também era um grande amigo. Os colegas de classe de Reizinho eram Fábio Augusto, um sujeito muito simples e gente boa. O caçulinha da turma Nelson, era, também, o mais extrovertido. Brincava o tempo todo. Mazinho era um garoto miudinho. Gostava muito de estudar. Ficava o tempo todo colado aos livros. Parava de estudar somente, quando ia jogar futebol, sua outra paixão.

A turma do primeiro grau era composta por sete seminaristas. Quase todos vindos da roça. O Zezinho, na sua simplicidade, trocava as palavras na hora da oração e todos davam risadas. Batista era o mais caipira de todos. Era só olhar para ele e já se sentia vontade de dar uma gargalhada. Quinzinho era um negrão forte. Muito bom de enxada e violento no futebol. Tico era o mais velho da Comunidade. Já beirava os trinta anos. Sentia muitas dificuldades nos estudos. Emiliano era muito bom de papo. Cativou logo a vizinhança. Andava cercado pelas meninas, que adoravam visitar o Seminário. Alonso vivia falando que queria voltar para o lugar de onde viera e ser um ferreiro. Era um grande amigo. E, ainda, havia o Donato, o

mais alto da Comunidade. Era um crianção de uns dezessete anos. Fazia todo mundo rir de suas gracinhas. Certa vez, durante a Missa, em plena consagração, teve um acesso de gargalhadas que contagiou a todos. Foi preciso que Monsenhor Henrique parasse, por um tempo, a Celebração, até que todos se compusessem novamente.

Assim eram os amigos de Reizinho. Ainda havia o pessoal do Seminário Maior. Não poderia enumerar a todos, porque eram muitos. Posso dizer, porém, que eram alegres e amigos. Cada um do seu jeito. Alguns atletas e outros gordos. Alguns com pinta de artistas, outros mais simples. Porém, todos felizes! Gostavam de falar das pastorais. Alguns já se sentiam um verdadeiro padre. Adoravam as beatas, que lhes beijavam as mãos.

A hora do almoço e do jantar eram os momentos de encontro de todas as Comunidades do Seminário. Havia uma confraternização entre os diferentes tipos, que compunham a estrutura daquele Seminário.

O tempo foi passando. Reizinho foi se acostumando, cada vez mais, à vida no Seminário. Chegou à Semana Santa e chegaram outros feriados, dias em que Reizinho viajava para sua cidade. Matava as saudades da Família e dos amigos. Estava bem. Sentia o carinho das pessoas. Elas pareciam gostar do caminho que ele havia escolhido para sua vida.

Já se sentia mais seguro, quando lhe pediam para ler durante as Missas. Já não ficava tão nervoso. Sentia que estava crescendo como pessoa e, aquilo era bom. Achava o máximo a idéia de ser um padre. Sentia, porém, que era muito difícil, levar a vida sem uma mulher. E Reizinho, lutava, ainda, para esquecer-se de Márcia.

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Após os feriados, Reizinho retornava ao Seminário. E era difícil deixar sua casa. Gostava muito de sua cidadezinha, dos seus amigos e da tranqüilidade de sua família. A viagem de volta era sempre dolorosa. Mas, era preciso estudar. Tinha que superar a dor e seguir em frente.

***********************************************Reizinho começou a gostar da vida no Rio,

principalmente das namoradinhas que arrumou. Nos momentos de folga, ia para a praia e sempre conhecia alguém diferente. Era importante e todos queriam conversar com ele. Às vezes, raramente, ficava sozinho, olhando as ondas e lembrando o passado. Lembrava de muitas pessoas que conhecera, pessoas queridas e que ficaram para trás. Sentia saudades. Como seria bom se pudesse tê-las ao seu lado naquele momento. Enfim, a vida é cruel, nos separa daqueles que amamos e nos causa dores. Reizinho, mesmo cercado por pessoas que o admiravam, mesmo tendo todo o conforto do mundo, sentia saudades que o machucavam.

Outros jogos vieram. O Botafogo foi se acertando e Reizinho foi se confirmando como o destaque do time. Foram grandes vitórias e estava chegando o dia de enfrentar o Vasco, o time da infância e do coração. Pensava em como iria se sentir ao ver o Vasco entrando em campo e ele esperando para tentar derrotá-lo. Será que se sentiria um carrasco?

E Reizinho esperou aquele momento com ansiedade. Na chegada ao estádio não brincava como nos jogos anteriores, mas estava sério. Adorava o Vasco, desde a infância que acompanhava o time. Às vezes ligava o

rádio e nem sabia direito o que era um jogo de futebol, mas sentia uma felicidade enorme quando o locutor gritava, gol do Vasco. Tinha em “Roberto Dinamite”, o maior ídolo de sua infância, quase sempre era ele o autor dos gols que o faziam vibrar. Agora teria que ficar contra o seu time, uma situação jamais imaginada. Reizinho, agora, era um profissional e teria pela frente a missão de derrubar aquilo que sempre quis ver no alto, o seu time do coração.

Ao começar o jogo, Reizinho sentiu algo diferente das partidas anteriores. Parecia que uma frieza havia entrado em seu ser, era como se fosse à última partida que iria jogar em sua vida. Sentia que aquela frieza dava a ele uma habilidade além do normal, parecia estar drogado. Fazia de tudo naquele jogo, driblava, roubava as bolas, acertava todos os lançamentos e corria como nunca. Não sentiu cansaço naquele jogo, poderia ficar jogando horas. Era como se tivesse voltado à infância e jogasse a manhã toda sem se importar com as horas que haviam passado.

Naquele jogo, a torcida vibrou com aquele garoto que jogou como nunca, lembrou os tempos passados, em que “Garrincha” era a alegria do povo. Deu dribles que mais pareciam milagres de tão certos, de tão rápidos, que só deixavam ao marcador, a certeza de ter que partir atrás. Ao terminar o jogo, Reizinho sentia um enorme vazio, tinha acabado de jogar, talvez, a melhor partida de sua carreira. Mas sentia um vazio enorme, que não conseguia explicar, parecia o vazio de ter vencido a si próprio e aquilo, o deixava triste, derrotado diante de si mesmo.

E o Vasco de Roberto Dinamite, ficou para trás. Reizinho queria que se apagasse da sua memória, a lembrança daquele jogo. Aquele vazio não era bom, não

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queria de forma alguma, que aquilo se repetisse. Sabia que o que sentira, não tinha sido pelo Vasco, mas por si mesmo. Havia algo errado consigo. Talvez, sentira ali seus verdadeiros limites. Era alguém limitado, teria um fim e era preciso fazer alguma coisa. Aquilo ficou martelando-lhe a cabeça durante um bom tempo. Por fim, sentiu que não era importante.

O essencial mesmo era se preocupar com os próximos jogos, e esperar pela Seleção brasileira, que iria ser convocada para um amistoso. Quem saber não seria a tão esperada oportunidade de vestir a camisa da nossa seleção e realizar um sonho. Um sonho igual ao de milhões de meninos. E Reizinho sonhava, era muito mais importante do que se preocupar com os limites e o vazio, que a existência impõe ao homem.

Na lista dos jogadores convocados para a Seleção brasileira, que faria um jogo amistoso contra a Inglaterra em Goiânia, aparecia o nome de Reizinho do Botafogo. Ele acabara de completar vinte e dois anos e aquela convocação foi o melhor presente que recebera. Ao ouvir a entrevista dada pelo treinador, que forneceu a escalação do time, Reizinho pulou de alegria ao saber que entraria jogando. E comemorou como nunca aquela convocação. Era o seu sonho de menino que iria ser realizado.

Reizinho se apresentou à Seleção Brasileira, treinou ao lado de grandes astros, craques consagrados no mundo inteiro. Na concentração, divertia-se conversando com os seus ídolos. Eram eles jogadores experientes, autoconfiantes, que passavam a imagem de vencedores. Conheciam o mundo todo, falavam de Roma, de Paris, de Londres, o que fazia Reizinho sonhar com a primeira vez

que fosse à Europa. Ele queria conhecer o mundo inteiro, queria ir até o Japão, queria voar e sonhando chegou o momento de ir para o estádio.

Ao entrar em campo, com a camisa dez da Seleção Brasileira e se posicionar para ouvir o “Hino Nacional”, Reizinho chorou. Chorou ao lembrar das muitas vezes, que assistira aos jogos da nossa Seleção e se orgulhara de cada um dos onze jogadores, que, em posição de sentido, ouviam o nosso Hino. Eram onze representantes de um país enorme. Naquele momento, ele era um dos onze e sabia que todos os seus amigos estavam assistindo aquele jogo pela televisão, e com certeza, estavam sentindo orgulho dele. Aquilo era tudo o que buscava na vida, o reconhecimento de que tinha vontade ser útil, de que tinha garra.

E Reizinho jogou aquela partida com uma garra enorme, a torcida o aplaudia a cada jogada. Era um jogão, e ele sorria ao ver que tinha encontrado os verdadeiros cobras do futebol. Estavam ali os melhores jogadores do Brasil e da Inglaterra. Os jogadores faziam de tudo dentro de campo e, muitas vezes, ele ficava parado, admirando as jogadas. Porém, era preciso acordar. Estava diante de um grande marcador. Como era difícil passar aquele gringo! Mesmo assim, Reizinho mostrou que merecia a camisa que estava vestindo. Fez o mesmo que seus companheiros, tocou bonito na bola, deu dribles na hora certa e ganhou divididas com vontade. No final da partida trocou de camisa com o seu marcador. O gringo mal conseguia falar, Reizinho o havia entortado. Saía de campo consagrado. Havia realizado o sonho de jogar na Seleção Brasileira e aquilo era o máximo. O sonho máximo de um menino que

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um dia decidira ser jogador de futebol e fizera de uma Seleção distante, um caminho que agora era o seu orgulho.

***********************************************Nas voltas ao Seminário, o primeiro dia sempre lhe

parecia de ressaca. Reizinho sentia faltar-lhe alguma coisa. Participava das orações, dos trabalhos e, aos poucos, esquecia a dor de haver deixado sua pequena cidade. E tudo voltava ao normal naquele Seminário.

No colégio, Reizinho tentava se acertar. Ainda não se entrosara bem com a turma. Achava as meninas da sua sala muito metidas. Os próprios meninos pareciam discriminá-lo, por não ter dinheiro e não poder sair com eles, nos finais de semana. Assim, Reizinho sofria com um enorme complexo de inferioridade.

Tinha que vencer aquilo para ser feliz. Mas como, se ninguém o ouvia. Na verdade, não tinha amigos naquele colégio, a não ser os seminaristas, que pareciam compreendê-lo, ou talvez, que tivessem problemas parecidos. A primeira impressão que tivera. De um colégio cheio de meninas bonitas, não tinha se confirmado. As bonitinhas eram poucas e muito disputadas. Aliás, ele nem devia se preocupar com isso. Afinal, era um seminarista. Mas, seu coração lhe dizia que era preciso apaixonar-se por alguém, para ser feliz. Começava a sentir que não iria ser nada fácil, tornar-se um padre.

Certa noite, durante a apresentação de uma peça teatral no colégio, Reizinho se apaixonou. Era uma menina linda. Uma gata, toda vestida de preto. Estudava Magistério naquele colégio. Reizinho ficou encantado diante de tanta beleza. Aproximou-se dela e seu corpo

parecia tremer de emoção. Fez um esforço enorme para dar um sorriso.

- Oi! Gostou da peça?- Adorei. E você?E Reizinho ficou encantado por um bom tempo.

Amanda era muito linda. Tinha os cabelos e os olhos escuros, como o brilho da noite. Era, também, muito simpática. Conversou com ele, como se já o conhecesse há muito tempo. Disse-lhe que morava próximo ao Seminário. E Reizinho, por um instante, era a própria felicidade. Mas, havia, também, os outros seminaristas. Alguns estudavam com Amanda e logo se aproximaram, estragando tudo.

De volta ao Seminário, seus colegas o criticaram, por querer aquela menina. Reizinho, porém, estava eufórico. Passou toda a noite com aquela imagem linda a povoar seus sonhos. O dia seguinte amanheceu lindo. Pena que era sábado e Reizinho pela primeira vez, sentiu falta do colégio. Estava louco para rever sua nova paixão.

Novamente, viver passou a ter um sentido lindo. Havia a espera da segunda-feira, para voltar ao colégio e rever Amanda. Ser padre ficava como que num segundo plano. Reizinho se enchia de dúvidas. Estava apaixonado. Sentia, porém, que não poderia deixar o Seminário, por causa de Amanda. Achava quase impossível conseguir um bom emprego e, certamente, ela não ficaria com um pé-rapado.

Assim, o melhor a fazer, era querer ser padre. E viver apaixonado. Apaixonado por uma imagem, que o fazia feliz. E era gostosa aquela paixão. A imagem de Amanda deixava clara a necessidade de se esforçar na

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vida. Quem sabe, algum dia, ele seria digno daquela paixão. Os dias se passaram. Veio à segunda-feira. Reizinho encontrou-se com Amanda e ficaram amigos. Ela era realmente encantadora. Muito linda! Fazia seu coração bater mais forte. Reizinho, porém, não quis se declarar. A vida lhe pedia aquela renúncia. Tinha que estudar. Levar a sério o Seminário. Seu futuro, com certeza, dependia de seus estudos. Às vezes, sentia-se frustrado com a vida, que lhe negava suas paixões. Mas, não podia desistir. Talvez, o melhor a fazer, era mesmo ser padre.

No Seminário, as coisas iam bem. As Missas e as orações de todos os dias. O futebolzinho nas tardes. O almoço e o jantar festivos. O trabalho semanal na horta e as revisões da Comunidade.

A revisão da Comunidade acontecia a cada mês. Monsenhor Henrique reunia os seminaristas, para conversarem sobre os problemas da Comunidade. Nela, todos se expunham às denúncias dos colegas. Eram os que não obedeciam aos momentos de silêncio exigidos. Os que não desempenhavam seus trabalhos corretamente. Havia, ainda, as fofocas, as brincadeiras maldosas e as discórdias entre os garotos. Tudo era passado a limpo.

Reizinho era amigo de todos naquela Comunidade. Mesmo assim, não lhe faltavam críticas durante as revisões. Não poderia haver falhas na Comunidade. Mas, havia muitas. Coisas pequenas é bem verdade. Monsenhor Henrique, porém, queria a Comunidade nos trilhos e todos, tinham que dar o melhor de si.

Reizinho foi se acostumando, cada vez mais, a viver no Seminário. Já não sentia aquela saudade imensa de casa, ou da cidadezinha que deixara. Era apaixonado

por Amanda e podia vê-la todos os dias. Passou a não gostar dos finais de semana, porque não havia aulas e ele não encontrava Amanda.

***********************************************Reizinho voltou empolgado daquele jogo. Já podia

até sonhar com a Copa do Mundo. Não podia era imaginar a quantidade de parabéns, que iria receber ao chegar de volta ao Rio de Janeiro. Agora, ele tinha muitos amigos, todo mundo parecia querer ser seu amigo. Na sua simplicidade, ouvia a todos com carinho, porém, seria impossível aceitar a todos os convites que recebia. De repente, ficara importante e as pessoas se orgulhavam de recebê-lo em suas casas. E ele lembrava, de muitas vezes, em que fôra até a casa de alguém, às vezes, somente para dar algum recado ou entregar alguma coisa e a pessoa que atendia, cercava-o como se fosse um marginal. Na verdade, era apenas pobre. Às vezes, Reizinho se revoltava com certas pessoas, que pareciam dar valor somente naquilo que é atraente, como a riqueza, a beleza e viviam em busca de status, como se a felicidade fosse sinônimo de ter.

Entre os amigos que fizera, Reizinho considerava mesmo eram os jogadores que dividiam com ele o alojamento do clube. A maioria eram jogadores que estavam começando a carreira. Via neles humildade e podia conversar à vontade, dividir a solidão da cidade grande. Reizinho, apesar de ter se tornado de uma hora para outra um ídolo, trazia consigo um certo complexo de inferioridade, principalmente diante dos dirigentes. Tinha sempre a idéia de que eles mandavam no clube e que ele

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tinha de obedecê-los cegamente. Buscava respostas no passado, onde sempre fora oprimido. Queria dar um basta no passado, queria ter direitos iguais a todas as pessoas. Queria acreditar que era igual a todo mundo.

Reizinho percebia os degraus subidos, já freqüentava as casas de gente importante e tinha certeza de que logo iria ter muito dinheiro. Um dia poderia ficar na mesma posição que aquelas pessoas. Porém, tinha que haver outro meio de se realizar. Não queria que fosse pelo dinheiro, porque certamente, sentiria que havia comprado aquela situação.

A vida seguiu. O campeonato brasileiro continuou e os jogos foram acontecendo. O Botafogo de Reizinho vinha jogando muito bem e deixando para trás os seus adversários. Na semi-final, o Corinthians se transformara na grande vítima. O segundo jogo, no Morumbi, em São Paulo, foi digno de uma grande final, com a fiel corinthiana lotando o estádio. No final, parecia um pesadelo, ver a fúria daquela torcida pela derrota. E Reizinho comemorava a classificação para a final daquele campeonato. Seria a sua segunda decisão em apenas oito meses de carreira. A grande final que seria contra o Flamengo, era a certeza de um Maracanã lotado.

No Flamengo, todos sabiam da importância do craque botafoguense. Tinha que haver uma maneira de parar Reizinho. E dois jogos se aproximavam, movimentando toda uma nação, que certamente iria parar quando Flamengo e Botafogo entrassem em campo.

No dia seis de dezembro de 1987, ao entrar em campo para o primeiro jogo daquela decisão, Reizinho ouvia os gritos ensurdecedores das duas torcidas. A torcida

do Flamengo, sem dúvida, era maior naquela partida e os gritos de “mengo”, pareciam abalar as estruturas do Maracanã. Aqueles gritos mexiam também com seus nervos. Via naquela torcida, algo fantástico. A torcida do Botafogo também comparecera em massa e gritava o seu nome, deixando-o emocionado. Era a sua segunda decisão e estava diante do Flamengo, o poderoso Mengão. Reizinho observava nos companheiros a mesma tensão que estava sentindo. Seria uma parada indigesta, encarar o Mengão e aquela torcida imensa.

O jogo começa quente. Com apenas dezenove minutos de partida, o Flamengo já está vencendo por dois a zero. Reizinho fica espantado diante do que acontecera até aquele momento. O Flamengo parecia uma máquina impulsionada pelos gritos de “mengo”e tocava a bola com uma velocidade enorme. Ele não conseguira jogar até aquele momento e o seu time parecia estar perdido em campo. Recebeu instruções do treinador para voltar, era preciso marcar. O Flamengo estava ganhando todas as jogadas no meio de campo. E o Mengão tinha um ataque forte e veloz. Seu ponta direita era o destaque do jogo e estava acabando com o lateral esquerdo do Botafogo.

Reizinho volta, começa a cobrir o lateral e a ganhar as jogadas. De repente sai driblando e da entrada da área, solta uma bomba, diminuindo o placar. Resultado que permanece até o final do primeiro tempo. No segundo tempo, Reizinho volta jogando da mesma forma, marcando, dando carrinhos, era a única maneira de segurar o Flamengo, que tocava a bola de primeira. O Mengão, porém, já não tinha a força do início do jogo e o Botafogo começou a crescer em campo. A torcida do Flamengo

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continuava acreditando no time e gritava como nunca, mas seus jogadores pareciam cansados. E o Botafogo acabou empatando a partida. Após o empate, os dois times pareciam não querer se arriscar, preferiam esperar o próximo jogo. O próprio Reizinho sentia que era preciso armazenar forças para a próxima partida, que iria pegar fogo. No final, o placar de dois a dois, deixou para a próxima partida, a expectativa de um jogão que daria o título ao vencedor.

E foi uma nova semana de emoção. A preparação da torcida, os treinamentos, a concentração e finalmente, a chegada ao estádio novamente lotado. O jogo começa e, como na primeira partida, há uma pressão enorme do Flamengo, que, desta vez, esbarra na marcação do Botafogo e do craque Reizinho. Os minutos se passaram e o Flamengo não conseguiu marcar. Vinte, trinta, quarenta e o placar continuava zero a zero. Aos quarenta e dois minutos, Reizinho recebe uma bola, toca no meio e corre para a ponta direita. Recebe o lançamento, passa de passagem pelo seu marcador e cruza. O atacante do Botafogo aparece na área e faz um a zero. Por um momento, a torcida do Flamengo fica calada e Reizinho, vibrando muito, pôde ouvir os gritos de sua torcida. No segundo tempo, o Flamengo vem com tudo. O Botafogo recua e passa a jogar nos contra-ataques. Num certo momento Reizinho sente uma vontade louca de lembrar “Garrincha”. Quem sabe, de algum lugar, o “Mané” poderia estar torcendo pelo Botafogo e por ele? Por um momento, esquece a marcação e corre para a ponta direita. Pede a bola, recebe-a e dá um drible sensacional no primeiro marcador. Passa pelo segundo, pelo terceiro,

fecha pelo meio, dá mais um drible e já está dentro da área, quando vê o goleiro saindo desesperado. E Reizinho chuta à meia altura, no canto direito, vence o goleiro e sai correndo para o abraço. Um golaço que mudou o rítmo daquela partida e ele, comemorou como um menino, que com sua atiradeira derrubara o primeiro passarinho.

A partir dali, o Flamengo parecia ter morrido. O Botafogo passou a tocar a bola e a esperar o fim do jogo. Nas arquibancadas, a torcida do Botafogo gritava é campeão, numa festa incrível. Ao final do jogo, Reizinho chorou ao tocar na bonita taça. Era campeão do Brasil. Emocionou-se como nunca. Havia dado um título ao Botafogo. Era demais ver aquela torcida feliz. O Botafogo era campeão brasileiro de 1987. Reizinho era só alegria, aquele ano tinha sido ótimo, finalmente, ele iria ter férias, férias de verdade, férias de vencedor.

***********************************************Assim, a vida continuava sua trajetória. Conduzia

Reizinho ao seu destino. E ele adorava a vida, o colégio e o Seminário. É claro que havia momentos de angústia, quando se sentia rejeitado. Porém, aqueles momentos passavam e tudo voltava ao normal.

O mês de junho era marcado por uma grande festa no Seminário. Reizinho sentia-se feliz, por ver o Seminário cheio de visitas. Era divertido ver os padres e seminaristas bebendo, dançando e se divertindo a valer. Padre Tôni era o mais empolgado. Anunciava a quadrilha com muito entusiasmo. Reizinho e Emiliano eram os noivos e se esforçavam para conduzirem a noiva em um carrinho de

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mão. Era muito gorda, mais pesada do que os dois juntos. E aquela festa foi inesquecível.

No final daquele mês, o Seminário foi contagiado pela notícia de que Monsenhor Henrique havia sido designado pelo Papa João Paulo II, para ser o Bispo auxiliar da diocese. Todos ficaram felizes com aquela notícia. Monsenhor Henrique era muito querido no Seminário. Reizinho gostava dele. Lembrava, um pouco, seu avô, pelo jeito sério de conduzir as coisas. Tinha muito carinho pelos seminaristas e Reizinho sentia isso, o que tanto lhe faltava na vida. Um pouco de carinho.

Quando as férias chegaram, em julho, Reizinho sentiu-se triste e feliz ao mesmo tempo. Triste porque iria ficar um mês inteiro sem ver Amanda. Feliz por poder voltar para sua casa. Ficar perto da família e rever os velhos amigos. Queria viajar um pouco e visitar alguns parentes. Já estava mesmo cansado da rotina do Seminário. E Reizinho foi para as férias. E pensava em Amanda...

As férias, a tranqüilidade de casa, o futebolzinho com os amigos, o carinho de padre Inácio e de suas novas amiguinhas... E Reizinho estava feliz. Viajou, visitou alguns parentes. Sentiu o orgulho que cada um tinha por ele estar estudando para padre. As pessoas gostam muito de padres.

De repente, sentia-se a pessoa mais importante da família. Toda aquela atenção o fazia parar e pensar no valor das pessoas. Por que será, que as pessoas precisam ser importantes para serem queridas? É verdade, as pessoas são valorizadas por aquilo que podem oferecer. Reizinho não gostava do que sentia. Mas, era preciso entrar no jogo da vida. Era preciso estudar, para ser alguém importante.

Se deixasse o Seminário, voltaria a ser o mesmo garoto simples de antes. Ninguém mais sentiria orgulho dele. Daí, vinha um medo de não conseguir ser padre e voltar a ser uma pessoa comum.

Reizinho, porém, não esqueceu Amanda naquelas férias. Pensava nela durante as viagens. Queria ficar com ela, mas sabia das dificuldades. O Seminário era a sua única segurança. Tinha pouco estudo. Sua família não tinha dinheiro. Poucas eram as chances de se acertar na vida. Ser padre era o melhor caminho. E sempre vinha o medo de ser expulso do Seminário.

Assim, quando as férias terminaram, Reizinho voltou para o Seminário. Era preciso dar tudo de si, para mostrar vocação. Tinha que fazer tudo direitinho, para que os padres ficassem contentes com ele. E Reizinho se esforçava nos estudos, nas orações, nos trabalhos da casa e da horta. Evitava as bagunças e as conversas nos horários de silêncio da Comunidade. Tinha que mostrar serviço.

O domingo seguinte foi de festa. Dia em que Monsenhor Henrique foi sagrado Bispo. A Catedral estava lotada. Reizinho e os colegas estavam, todos, vestidos de túnicas brancas. Misturavam-se a dezenas de padres e faziam um ambiente muito bonito.

Era mês de agosto e fazia um calor enorme. Meio-dia e Reizinho suava, dentro daquela túnica. Sentia pena de Monsenhor Henrique, cheio de mantos e mais mantos. Aquela Celebração demorou um bocado. Quase três horas. Finalmente o Monsenhor passou a ser Dom Henrique. Houve uma grande festa na cidade. Havia muitas faixas de apoio ao novo Bispo.

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Após aquela Celebração, Reizinho deu uma volta pela cidade. Era uma grande cidade. Perto da Catedral havia um parque bonito, cheio de árvores. Nos domingos, tudo ali parecia calmo. As crianças brincando, os casais namorando, os velhos conversando e os vendedores de pipocas e sorvetes. Não havia o barulho dos carros. A cidade parecia descansar da sua rotina. Reizinho ainda andou sozinho por algumas ruas. Por fim, cansado, retornou ao Seminário.

Dom Henrique, mesmo sendo, agora um bispo, continuava a ser o formador da Comunidade de Reizinho. Morava no mesmo quartinho simples. Aquilo aumentava, mais ainda, a admiração dos seminaristas. Era uma ótima pessoa. Reizinho passou a conversar com ele, sempre que tinha algum problema. Encontrava sempre uma resposta positiva.

Reizinho retomou o caminho do colégio. Reencontrou os colegas. Ao rever Amanda, sentiu que continuava apaixonado. E a vida seguia. Às vezes, contava aos amigos, sobre sua paixão. Todos pareciam compreendê-lo. Ao Dom Henrique, porém, Reizinho nunca disse nada a respeito de Amanda. Tinha medo de ser expulso do Seminário. Alguns de seus amigos de Seminário, também tinham suas paixões. E as escondiam de todas as formas. O Seminário tinha um regulamento e era preciso seguí-lo.

***********************************************Após as comemorações, Reizinho viajou para sua

pequena cidade. Durante as férias, achava gostoso sentir que seu dever estava cumprido. Podia andar de bermuda e

chinelo de dedo à vontade, que ninguém iria chamá-lo de vagabundo. Podia, ao final da tarde, sentar-se no barzinho com os amigos e tomar cerveja sem se preocupar com a conta. E aqueles dias voavam, deixando a certeza de um tempo veloz, que arrasta tanto os bons, quanto os maus momentos, sem dar nenhuma trégua as pessoas. Reizinho curtia cada momento e às vezes, se preocupava com a velocidade deste tempo que logo acabaria com suas férias.

E aproximava-se o final do ano de 1987. O mundo esperava com ansiedade pela chegada de mais um ano. O ano novo traz em si, uma certa magia. Um tempo para refletir sobre a humanidade. E havia o medo no mundo... O medo de uma terceira guerra mundial, deixava no ar o vazio da aproximação de uma era atômica. Após alguns milênios de história, o homem havia conseguido avanços admiráveis. Porém, nada conseguira para acalmar sua alma. Sua vida era ameaçada a todo momento. Não tinha segurança de nada. A raça humana continuava como no início de sua história, dividida entre dominantes e dominados, ou seja, havia a constatação de que nada tinha mudado dentro da sociedade. Em um mundo avançado tecnologicamente, milhões e milhões de pessoas passavam fome constantemente, e uma quantidade enorme de seitas, funcionavam como remédio para desesperados, que viam em Deus a única saída.

Reizinho acompanhava tudo isso com uma certa tristeza. Sentia que não poderia fazer muito. Alegrava as pessoas com seu futebol e no momento, se via incapaz de uma grande idéia. Tinha sempre dúvidas em relação às pessoas que estavam no poder. Achava que elas sempre

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queriam tirar vantagens e com isso, o povão tinha que pagar o pato.

Reizinho passou o Natal e o Ano Novo com a família. Ao terminar o ano, terminava também, o seu empréstimo ao Botafogo. Era preciso decidir sua vida. Tinha adorado jogar no Botafogo, mas seu grande sonho era jogar no Vasco da Gama.

Depois da insistência do Botafogo e de outros clubes, que por todas as maneiras, queriam ter Reizinho em seus times, o Vasco acabou comprando o seu passe. Agora, ele realizaria o sonho de jogar no seu time, um sonho acalentado desde a infância e, muitas vezes, escondido pelo medo do futuro. Agora, podia gritar que sonhara um dia jogar no Vasco e que este dia estava chegando.

Ao chegar a São Januário e vestir, pela primeira vez, a camisa do Vasco, Reizinho se emocionou diante de tantas recordações que marcaram a sua trajetória até aquele momento. Lembrou de quando ganhou a primeira camisa do seu time, do primeiro teste, da chegada ao Rio de Janeiro e do dia em que jogara contra o Vasco. Ali, ele vivia um novo sonho e, certamente, seria bonito. Agora, era esperar a estréia e correr, dar o seu suor para ajudar o seu time. Lembrou da emoção que sentiu ao ser campeão pelo Tupi e pelo Botafogo. Agora, imaginava a emoção que sentiria, se viesse a ser campeão pelo Vasco, iria ser demais. Sentiu como se tivesse encontrado sua verdadeira casa.

O Vasco preparou uma grande festa, para a sua estréia. Convidou o Tupi de Juiz de Fora para fazer um amistoso em São Januário. Iria estrear contra o seu

primeiro time, o time em que iniciara a carreira. A torcida vascaina vivia em clima de euforia. O Vasco era o atual campeão carioca e, agora, tinha o reforço de Reizinho. 1988 começava a mil por hora.

E chega o dia da grande estréia, dois de fevereiro de 1988. Com o estádio de São Januário lotado, Reizinho reencontra seus amigos do Tupi. Abraçou a cada um. Tinha em cada um daqueles jogadores, um verdadeiro mestre que o havia ensinado, que o havia apoiado quando iniciara sua carreira. Era emoção demais, estrear no seu time, jogando contra grandes amigos. Aquele jogo ficou gravado para sempre na memória de Reizinho.

A partir dali, começou a sentir um grande orgulho por jogar no seu time. Estava de bem com a vida. As pessoas nem falavam mais que ele tinha um olhar triste. Sua fisionomia havia mudado. Jogar no Vasco era diferente de quando jogou no Tupi e no Botafogo. No Vasco não era apenas um profissional, sentia-se um verdadeiro sócio daquele clube. Por tudo isso ele estava feliz e podia esconder um pouco o seu olhar triste.

E Reizinho tinha mesmo motivos para estar feliz. Estava freqüentando uma auto-escola e logo, iria comprar o seu primeiro carro. Era mais um sonho que se realizaria. Começava a se achar um sortudo. Em pouco tempo, todos os seus sonhos estavam se realizando. Havia motivos de sobra para comemorar.

Adorava disputar cada partida. Claro que muitas vezes, aquelas partidas eram como um tormento. Tinha se consagrado e em cada jogo, era caçado como se fosse um fugitivo. Terminava cada partida com o corpo todo dolorido. Eram provocações de todo o tipo. Às vezes,

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respondia as provocações com um sorriso. Aquilo parecia funcionar como um soco. Deixava o adversário ainda mais furioso. Quase sempre, o seu marcador era expulso. Reizinho se preocupava com tanta violência. Era esperto, fugia das faltas como um toureiro, mas sabia que de uma hora para outra poderia sofrer uma contusão séria e tinha medo. Não entendia a violência de muitos jogadores, não via tanta necessidade daquela violência. Lembrava sempre da história de grandes zagueiros que não tinham sido violentos e seguravam muito mais uma partida, do que aqueles que tinham na violência, a sua principal arma. Porém, Reizinho tinha que encarar qualquer zagueiro. E a vida seguia...

***********************************************O primeiro da turma a deixar o Seminário, foi o

Batista. Sentia saudades da vida livre na roça. Reizinho viu que era sério, quando ele arrumou as malas. Conversou, por um bom tempo, com padre Arnaldo, o Reitor. Despediu-se dos colegas e partiu. Tinha os olhos tristes. Como alguém, que vê seus sonhos desmoronarem. O Seminário não tinha preenchido suas expectativas e ele achara melhor ir cuidar do seu gado. E o Seminário ficou mais triste sem o Batista.

Ao mesmo tempo, outro de seus colegas, este do Seminário Maior, também foi embora. Tinha sido reprovado, pela segunda vez, no vestibular. Achava injusto ter que submeter sua vocação, a testes que não tinham nada a ver com afetividade e amor aos semelhantes. O Seminário perdeu outro de seus membros. E Reizinho, pela primeira vez, sentiu medo do vestibular.

Sentia um medo enorme de também, não conseguir chegar ao fim da estrada. Estava sentindo medo de não conseguir ser padre. Aquilo era ruim. Assim, pensava que ser padre era a única forma de se realizar na vida. Aquela idéia o fazia viver pressionado. Havia a cobrança dos padres e, até mesmo, dos colegas do Seminário.

Havia muita cobrança aos seminaristas. Durante as revisões da Comunidade, acontecia um levantamento de todas as faltas ocorridas. E Reizinho cometia muitas faltas. Aquela vida de comunidade o deixava nervoso. Às vezes, discutia com os colegas. Certa vez, agredira um deles, que debochara do seu modo de cantar. Muitas vezes, durante os momentos de silêncio, sentia vontade de falar, de sair. Quebrou muitos daqueles momentos. Nunca gostara muito de estudar e aquela cobrança de horas de estudo, era para ele uma tortura. Não entendia como alguns de seus colegas conseguiam se passar por santinhos.

Quando Dom Henrique e o diácono José Carlos não estavam em casa, era uma maravilha. A comunidade virava uma bagunça. Os seminaristas conversavam à vontade. Visitavam os quartos vizinhos e faziam uma bagunça enorme. Todos se divertiam a valer. Havia as brincadeiras, as gozações e os quartos ficavam de pernas para o ar, todos desarrumados. Tudo por causa da alegria.

Durante as revisões, porém, tudo era denunciado. Os colegas tornavam-se dedos-duros. Tudo era passado a limpo. Reizinho, muitas vezes, ficava na berlinda. E sorria, ouvindo as denúncias, de que estava atrapalhando a vida da comunidade. Às vezes, porém, sentia medo de Dom Henrique mandá-lo embora do Seminário e, ele não poder ser o padre que sonhava.

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Nas quartas-feiras havia o encontro do grupo, com uma psicóloga. Nele se fazia uma dinâmica, para um melhor entrosamento da comunidade. E era muito gostoso, ouvir músicas de relaxamento, quando se estava cansado. Quase sempre adormecia durante aqueles momentos. Mas havia, também, as danças, as trocas de experiências e, até mesmo, as conversas sobre sexo. O sexo era o ponto fraco dos seminaristas. E a psicóloga falava dele com tanta naturalidade, que os seminaristas ficavam parecendo retardados, por não poder fazê-lo. E a vida seguia.

Os caminhos de Reizinho estavam sendo trilhados em meio à muitas duvidas. Eram as incertezas em relação ao seu potencial e, à sua vocação. A paixão por Amanda e o medo do futuro, que, às vezes, o deixavam confuso.

O Seminário lhe cobrava muito. Eram os trabalhos em casa e na horta. Os momentos de silêncio exigidos. A liberdade de sair, reprimida por horários e, ainda, a necessidade de explicar os lugares, onde se queria ir. A escola também exigia muito. De repente, Reizinho se viu cansado e deprimido. Sentia o sonho de ser feliz, relegado a um futuro distante e incerto.

Talvez, se algum dia, conseguisse ser padre, teria muitos amigos. Poderia realizar-se, levando a notícia do Reino de Deus às pessoas. Talvez, quem sabe, se conseguisse pelo menos estudar um pouco mais. Poderia arrumar um bom emprego e até conquistar o amor de Amanda. A felicidade de Reizinho parecia depender de hipóteses.

Assim, começou a perceber que não estava feliz no Seminário. Apesar de estar cercado de ótimas pessoas, não se sentia bem. Aquela cidade grande, apesar de ter muitos

atrativos, não supria o calor humano, que havia na quadra de futebol e na praça de sua cidadezinha. Reizinho vivia cercado de seminaristas e não se sentia acolhido. Parecia haver ali, uma competição. E tudo o que ele queria fazer, tornava-se um ponto a menos na disputa, por um lugar ao sol no Seminário.

Reizinho estava mal. Sentia um aperto ruim no peito. Durante as orações, sua voz parecia não querer sair. Sentia-se desconfortado. Parecia sentir ali, a derrota do seu sonho de ser padre. E lutava muito... Esforçava-se para disfarçar o aperto que sentia no coração. E para expressar suas orações durante os encontros. Não queria se entregar, de forma alguma.

No encontro seguinte com a psicóloga, contou o que estava sentindo. Ela, de imediato, falou da necessidade que ele tinha de fazer uma terapia individual. E que iria lhe arranjar um psicólogo, para fazer este trabalho. Reizinho via ali, uma luz no fim do túnel. Iria ter um psicólogo para lhe ajudar a resolver seus problemas.

Mas, havia ainda, a necessidade do dinheiro para pagar as sessões da terapia. Reizinho não tinha nenhum. Voltou a conversar com a psicóloga. Mais uma vez, ela se mostrou legal, disse que não havia problema. Aquela instituição tinha alguns estagiários. Um deles faria o trabalho com ele, por um preço simbólico.

***********************************************A vida seguiu e o Vasco conquistou o primeiro

turno do campeonato carioca daquele ano. Houve muita festa. Afinal, era a classificação para a final daquele campeonato. No segundo turno, Reizinho sofreu uma

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contusão e ficou fora do time durante vários jogos. O Flamengo cresceu e com isso, havia o prenúncio de uma grande decisão entre ele e o Vasco, que, havia ganho o primeiro turno. Com o decorrer do campeonato, isso acabou se confirmando.

Seriam dois jogos, com a possibilidade de um terceiro. O Flamengo entraria com um ponto de vantagem por ter feito melhor campanha do que o Vasco, naquele campeonato. Reizinho, recuperado, vivia a expectativa de mais uma decisão. Para ele, as decisões tinham se tornado rotina, seria a terceira em pouco mais de um ano de carreira. Novamente, teria pela frente o Flamengo e sua imensa massa de torcedores. Lembrou da final anterior, quando ficara impressionado com a torcida rubro-negra. Os gritos de mengo, ainda estavam presentes na sua memória. Aqueles gritos faziam do Flamengo uma máquina e Reizinho já imaginava a luta que teria para segurar os craques do mengão.

O Rio era somente festa. Podia se ver em cada prédio, em cada casa, uma bandeira do Vasco, ou do Flamengo. Aquela decisão era, também, o assunto mais comentado nas ruas e, em cada esquina se podia comprar camisas dos dois times. Reizinho aguardava o momento de entrar em campo e, novamente, correr em busca de uma vitória, em busca de um novo título. Agora, estava defendendo o seu time do coração e estava feliz, tanto por jogar, quanto pela possibilidade de ajudá-lo de verdade e de vê-lo novamente campeão. De forma alguma passava por sua cabeça a possibilidade de derrota. O Vasco tinha que ganhar, tinha que ser campeão.

No primeiro jogo, acontece a vitória do Vasco, o que reverte a vantagem que era anteriormente do Flamengo. Agora o Vasco tinha dois pontos e se ganhasse o próximo jogo, seria o campeão do Rio. Ainda que perdesse aquela partida, haveria a necessidade de uma terceira. Ninguém em São Januário admitia a perda daquele título. O time se preparava para o segundo jogo, sob um clima de euforia. O primeiro jogo tinha sido fácil.

No Flamengo, após a derrota, todos buscavam explicações para a má atuação do time, o que causou a barração de alguns jogadores. A preocupação maior era com Reizinho, que na primeira partida, dominou o meio de campo e levou o Vasco a uma vitória fácil.

No segundo jogo, a torcida do Flamengo já não se fazia tão presente quanto no primeiro. A torcida do Vasco compareceu em massa, o que emocionou Reizinho. De dentro de campo ele olhava aquele espetáculo, que era proporcionado por ela, a torcida do seu time. Lembrou das muitas vezes em que imaginara um dia, poder ir ao Maracanã e, no meio da torcida, assistir a uma decisão do seu time. Aquele dia havia chegado e, ao invés de estar no meio da torcida, estava dentro de campo e iria jogar. Era uma emoção muito forte, proporcionada por aquela mudança de vida. Reizinho, que por algum motivo, não pudera ir ao estádio assistir às decisões anteriores do seu time, agora estava com a camisa dez às costas e sobre si, aquela enorme torcida depositava suas esperanças de gritar “é campeão”.

Durante o jogo, comandou seu time. Jogou uma partida impecável. O Flamengo tentou de todas as formas parar o Vasco e parar Reizinho, mas não deu. No final, a

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torcida comemorava o bi-campeonato ganho pelo Vasco e Reizinho era, novamente, campeão. Uma grande festa tomou conta do Rio de Janeiro, naquela noite de 22 de junho de 1988. Reizinho era só alegria, tinha terminado mais uma batalha. Era campeão jogando por seu time do coração. Não queria, de forma alguma, sair daqueles momentos de euforia.

Após as festas, ganhou alguns dias de folga e aproveitou para visitar a família, os amigos e curtir um pouco da fama. No momento, o que mais se especulava, era a sua possível ida para o futebol europeu. Havia o interesse de grandes clubes da Europa na sua contratação. Reizinho acompanhava a tudo e, às vezes, se sentia pressionado pelas pessoas que o aconselhavam a ir para a Europa. Diziam que a carreira de jogador de futebol é curta e que não se deve desperdiçar as oportunidades surgidas. Eram vários os empresários interessados na sua transferência e, até mesmo, os dirigentes do clube o aconselhavam a ir para a Europa. Eram milhões de dólares em jogo. Ali, ele entendia o porquê, de muitas vezes o seu clube montar um timaço, ser campeão e depois desfazer-se dos melhores jogadores. O dinheiro era mais importante do que ser campeão, o profissionalismo estava acima das paixões.

Reizinho estava feliz, por jogar no Vasco. Achava que morar no Brasil e jogar no seu time era muito mais importante do que ganhar dólares na Europa. Talvez, mais tarde, ele até aceitasse jogar no futebol europeu. Mas, agora, o que queria mesmo era curtir o seu momento. Quem se empolgou com isso foi a torcida do Vasco, que passou a ter nele, um exemplo de amor ao clube. Reizinho

queria mesmo, naquele ano, era disputar as Olimpíadas pela Seleção brasileira. Queria era ganhar a medalha de ouro para o Brasil. No momento treinava com os companheiros para a disputa do campeonato brasileiro, que estava para começar. Só voltaria a pensar na Europa, em outra ocasião. Agora, era viver a alegria de jogar no Vasco e sonhar com a medalha de ouro dos Jogos Olímpicos de 1988.

***********************************************Assim, numa tarde, Reizinho fez sua primeira

sessão de análise. Respondeu a uma série de perguntas sobre a sua vida e voltou para o Seminário, sem entender como aquilo poderia resolver seus problemas. Porém, na semana seguinte, após um bom papo com o estagiário, que por sinal, já era um ótimo profissional, Reizinho voltou pensativo.

Ser padre era o que mais queria na vida. Porém, estava vivendo em um Seminário Menor, cheio de regulamentos que reprimiam sua liberdade. Estudava, ainda, o primeiro ano de um Curso Médio, que poderia ser feito na sua própria cidade. Portanto não era vantagem ficar morando no Seminário. Poderia fazer o mesmo Curso na sua cidade, com toda a liberdade do mundo. Aquele psicólogo lhe abrira os olhos.

Ao pensar assim, Reizinho sentiu um alívio enorme. Iria terminar aquele ano e voltar para casa. Teria dois anos de liberdade ou, umas férias prolongadas do Seminário. Depois, poderia voltar, para o Seminário Maior e estudar Filosofia. E começou a contar os três meses que faltavam para o final daquele ano.

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Falou com Dom Henrique sobre o que tinha conversado com o psicólogo e ele, logo aprovou a idéia. Não havia mesmo a necessidade dele continuar no Seminário, para fazer o segundo grau. Poderia sair e continuar estudando. Deixar amadurecer sua vocação para, mais tarde, voltar ao Seminário, mais consciente. E Reizinho sentiu-se aliviado.

A alegria voltou ao coração de Reizinho. Mas, também, havia perdas. Quando voltou a sua cidadezinha, sentiu-se triste, ao contar aos amigos que iria deixar o Seminário. Sua mãe parecia não entender o que ele dizia, ficou decepcionada. Todos pareciam condenar sua atitude, mesmo que fosse só por um tempo. Achavam que era uma desculpa e que ele não voltaria mais para o Seminário.

Também sentiu-se triste, durante a celebração da Missa. Não quis ler a leitura, que lhe pediram. Já não se sentia mais um seminarista. Era uma grande perda. Com certeza, as pessoas não confiariam mais nele, como antes. O sonho de ser padre tornou-se distante e Reizinho já não conseguia mais imaginar aquele ideal bonito, de querer servir o povo de Deus.

Ensinar as pessoas, como fizera o Senhor Jesus, não era tão fácil. De certa forma, Reizinho se decepcionara com o Seminário, que não lhe dera a liberdade para ser feliz. Queria ser feliz, para transmitir alegria às pessoas. Porém, não estava feliz e não era bom que fosse padre assim. Padre Inácio também ficou triste.

Após o fim de semana, Reizinho retornou ao Seminário. Quis dizer a Dom Henrique que tinha voltado atrás e queria continuar no Seminário. A resposta, porém, foi negativa. Agora, era Dom Henrique, quem queria que

Reizinho deixasse a Comunidade. E ele aceitou aquilo como um desafio. Era preciso começar uma nova vida.

Em outro encontro com o psicólogo, Reizinho contou sobre o que tinha decidido e, tudo o que havia acontecido desde então. Após um bom papo, sentiu-se forte para encarar a nova vida. Talvez, não teria tantos amigos como se ainda estivesse no Seminário. Mas, poderia encontrar novos amigos. E, quem sabe, poderia mesmo retornar ao Seminário em outra oportunidade.

Reizinho continuou a sua caminhada. Todas as manhãs, ia para o colégio. Estudava de olho em Amanda. Às vezes, procurava conversar com ela. Mas, não havia retribuição para o seu carinho. Sua paixão foi se apagando aos poucos, sentia que não teria chances. Era preciso esquecê-la. E a vida seguia...

Na Comunidade, Reizinho já não tinha mais motivação para seguir à risca todos os regulamentos que existiam. Às vezes, saía de casa em horários não permitidos. Perdia momentos de oração e já não estudava como antes. Quase sempre quebrava os momentos de silêncio, visitando os quartos dos colegas. Estava sentindo uma vontade imensa de chegar logo o final do ano e poder ir embora.

A vida no Seminário parecia não sentir sua ausência. Às vezes, aconteciam momentos de desordem na Comunidade. Havia as desarrumações e em uma delas, um colega mexeu nas coisas de Reizinho, revirou tudo. Era preciso dar o troco. Jogou os cobertores do amigo pela janela. O amigo não quis conversa. Chamou Dom Henrique e este, bastante exaltado, disse que Reizinho não podia ficar mais na Comunidade.

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Faltavam ainda, dois meses para o encerramento do ano letivo. Reizinho não tinha para onde ir. Era preciso arrumar outro lugar para morar, se quisesse continuar estudando. Mas, como iria conseguir dinheiro para pagar um aluguel. Sua mãe, nem pensar. Ela não tinha e, também, estava chateada por ele deixar o Seminário.

Reizinho arrumou as malas. Iria voltar para casa e tentar conseguir o dinheiro para terminar o ano na escola. Já estava quase na hora do ônibus, quando Dom Henrique subiu até o quarto e, mais calmo, disse que ele poderia ficar até o final do ano. Porém, era preciso que mudasse o seu comportamento. Não poderia agir, como se não pertencesse mais à Comunidade.

- Reizinho, você pode ficar conosco. Mas tem de se comportar como se não fosse sair do Seminário. Do contrário, se algum dia quiser voltar, você não será aceito. Viva bem cada dia que estiver aqui conosco e não procure antecipar o que irá acontecer. Tudo tem seu o seu tempo certo.

***********************************************Algum tempo depois, começa a preparação da

Seleção brasileira, para a disputa das Olimpíadas. Reizinho treina com disposição. Por um momento, deixa o Vasco de lado e volta o seu pensamento somente para os Jogos Olímpicos. As Olimpíadas sempre foram para ele, um momento mágico, onde milhares de atletas correm atrás de uma medalha que certamente marcaria o auge de uma carreira. Reizinho nunca imaginara que um dia iria disputar uma Olimpíada, mas agora ela estava chegando e

era fantástico imaginar a subida ao pódium e a medalha de ouro no peito.

Finalmente, a Seleção brasileira chega à Vila Olímpica. Reizinho se sentia o máximo por estar naquele local de sonhos. Estavam ali, os maiores atletas do mundo de todas as modalidades. Ele admirava todos os esportes, achava os jogadores de basquete dos Estados Unidos, uns gênios, mas, adorava mesmo era as ginastas, especialmente as orientais, eram lindas e de uma agilidade incrível. Sempre assistira às Olimpíadas pela televisão, agora era fantástico estar entre aqueles atletas. Já sonhava até em encontrar a ginasta dos seus sonhos.

Às vezes, Reizinho lembrava de sua casa, de seus pais e de sua cidade. Sentia que naquele momento, uma enorme distância os separava. Algumas vezes, se sentia num grande retiro, sem poder fugir. Em outras se sentia numa guerra, louco para o seu fim, para assim poder voltar para a sua terra. Porém, mesmo se sentindo deslocado de suas raízes, ele sabia que era preciso se concentrar para os jogos que viriam. Era preciso muita garra para enfrentar mais uma dura competição e, quem sabe, ser novamente campeão.

Veio o primeiro jogo, o segundo e assim sucessivamente, até a classificação do Brasil, para a grande final que seria contra a Seleção da Dinamarca. Reizinho vinha dando um show de bola naquela Olimpíada. Entre milhares de atletas, era o mais festejado. O futebol já não estava mais em segundo plano nas Olimpíadas. O mundo inteiro queria ver aquele menino deixar os adversários caídos, com seus dribles mágicos.

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Reizinho vivia tudo isso com um certo orgulho. Começava a se sentir o melhor. Sabia que aquilo era ruim, este negócio de se sentir melhor que os outros é pura ilusão. Veio-lhe à mente, a lembrança de sua cidadezinha, de um amigo pobre, que, com certeza, estava torcendo por ele. Sabia que esse seu amigo tinha um futuro incerto e ele, ao contrário, era, naqueles Jogos Olímpicos, o grande destaque. Porém, tinha certeza de que aquele garoto pobre, era, talvez, o seu melhor amigo e de forma alguma via em seus amigos mais ricos e mais cultos, algo que os caracterizassem como melhores do que o seu amigo pobre.

Reizinho concentrou-se para a grande final. Mais uma em sua vida. Sentia que o sonho da medalha de ouro, estava próximo. Só faltavam noventa, ou cento e vinte minutos. Depois, poderia voltar para casa.

O Brasil entra em campo. Reizinho e seus companheiros saúdam a torcida e ouvem, com atenção, o “Hino Nacional Brasileiro”. Dali a pouco, o juiz autoriza o início da partida e a bola rola. O Brasil vai para cima da Dinamarca, que se fecha e passa a jogar nos contra-ataques. Em um deles, faz um a zero. Aquilo começa a preocupar o Brasil, que não vinha bem no jogo. Mesmo Reizinho, não estava jogando bem, havia uma forte marcação da qual não estava conseguindo escapar. O primeiro tempo termina com a vitória da Dinamarca e ele começa a pensar numa saída.

Durante o intervalo, o técnico do Brasil lhe chama à atenção. Pede a Reizinho, que ponha mais disposição nas jogadas. De repente, começa a se sentir um pipoqueiro. Descobre que realmente está dando mole, está jogando como se fosse dono absoluto da posição e não precisasse

mais se esforçar. Lembrou do primeiro teste, da primeira decisão e quase chorou ao perceber que tinha esquecido a garra, que era a principal virtude que ele tinha aprendido. Era preciso voltar novamente a ser o menino que precisava acertar. Tinha que buscar aquela medalha com a mesma vontade que tinha, de passar no primeiro teste.

No segundo tempo, o menino Reizinho voltou com tudo. Comandou a virada, e que virada. Ao final, estava no pódium, com a medalha no peito, sorrindo e acenando para um Brasil inteiro, que era feliz por um momento. Um momento mágico, em que um país “parece ter um só coração”. Um momento em que se pode ver a igualdade entre as pessoas, através da emoção de se sentir um brasileiro e um campeão entre outros milhões.

E Reizinho volta para casa com a medalha no peito. É recebido como herói. O Brasil inteiro o agradece pela medalha de ouro. Recebe aquilo como um incentivo para a sua carreira. É jovem, é menino e é campeão.

A vida lhe sorri como se ele tivesse sorte. A sorte que é feita pela raça e pela graça dos dribles, deixando para trás o mal que lhe deseja a queda. Reizinho revive a beleza da vitória. A medalha de ouro no peito é o próprio símbolo da vida, coroando os homens que, em um momento, se sentiram dignos de lutar. Saúda o tempo que lhe deu espaço para partir em direção à área e fazer o gol que é a certeza de um momento marcante. Agradece a torcida que alegre ficou a cantar a vitória, que sempre é prenúncio de paz. Espera o futuro que sempre contém a esperança de belos caminhos e vive a graça que a vida, por um momento, lhe pôs nas mãos...

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***********************************************Os dias foram se passando. Além de Reizinho,

Alonso também resolveu deixar o Seminário. Resolveu ser, talvez, o ferreiro que sonhara e levar uma vida simples na sua cidadezinha. Quem sabe lá, estariam seus verdadeiros amigos e a sua felicidade. Reizinho conversava muito com ele, era seu companheiro de defesa no time da Comunidade. Partiu, sem nem mesmo esperar o final do ano. Perdera o pai e sua família precisava dele. Com certeza, seria um ótimo ferreiro ou, se destacaria em qualquer outra profissão. Alonso era muito esforçado.

Muitas vezes, Reizinho sentia-se triste. Já não era mais um seminarista. Ficaria ali, somente até terminar o ano. Era uma grande perda. Ser seminarista era a garantia de muitas amizades, muita admiração e almoços gostosos. As pessoas gostam muito de padres e seminaristas. Mas, Reizinho já não era mais um seminarista. Era preciso, uma nova vida.

Seus colegas pareciam não se importar com sua saída. Reizinho não gostava daquilo. Daquela espécie de competição, quem ficava se sentia o bom. Afinal, ficara um ano ali. Ficava triste ao sentir que aqueles seminaristas deixavam transparecer, que não sentiriam a sua falta. Talvez, Reizinho também, nem sentiria falta deles. Ele, às vezes, não entendia a falta de amor entre as pessoas. Mas, era preciso ir à luta.

Naquele final de ano, o diácono José Carlos foi ordenado padre. Reizinho ganhou um convite bonito. Mas, não pôde ir, estava sem dinheiro. Houve, também, ordenações para diáconos e muita festa no Seminário. E o dia de Reizinho ir embora, se aproximava.

De uma certa forma, Reizinho gostara daquela cidade grande. Nas noites de sábado, costumava sair pelas ruas e admirava os barzinhos lotados. Havia uma quantidade imensa de meninas bonitas. Às vezes, se aproximava delas. Mas, era muito difícil cativá-las. Com certeza, se dissesse que era um seminarista, iria arrumar um montão de amigas. Porém, não queria que fosse assim. Queria que gostassem dele de verdade, e do seu jeito. Não por ele ser alguém importante.

No colégio, Reizinho passou de série. Comemorou os resultados e a aproximação do momento de deixar o Seminário. Despediu-se dos colegas. Dom Henrique o levou até a Rodoviária. Deu-lhe um montão de conselhos. Disse que as portas do Seminário estariam abertas, quando ele voltasse e ele ficou animado. Gostava muito de Dom Henrique, lembrava seu avô, já falecido, que deixara saudades. Iria sentir, também, saudades de Dom Henrique. Era uma ótima pessoa.

Durante a viagem de volta para casa, Reizinho imaginava muita coisa. Iria esquecer Amanda e estudar muito para que, quando voltasse, não tivesse problemas com o vestibular. E estava animado. Seriam dois anos sem se preocupar com os regulamentos do Seminário. Dois anos de férias. Poderia até arrumar uma namorada. Queria arranjar um emprego, para ter um dinheirinho e poder gastar nos finais de semana. Queria ser muito feliz...

Ao chegar a casa, “tudo estava igual como era antes”. Sua mãe é que parecia um pouco decepcionada com sua decisão de deixar o Seminário. Reizinho, porém, sentia que aquilo iria passar logo. Era gostoso estar em casa. Era dezembro, logo chegou o Natal. E um Ano

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Novo, trazendo muitos sonhos. Reizinho queria uma vida nova. Uma nova aventura, em que a liberdade guiasse seus passos. Sem nada de Seminário e de regulamentos.

Quando começou o Ano Novo, Reizinho foi até a cidade onde morava a sua irmã. Era uma cidade de porte médio, com boas escolas e oportunidades de emprego. Pensou em ficar ali. Porém, o preço das escolas e os salários oferecidos o desanimaram. Era melhor estudar mesmo, na sua cidadezinha. Era mais tranqüilo, tinha sua família, seus amigos e a certeza da felicidade, a cada manhã.

Depois de alguns dias naquela cidade, Reizinho voltou para casa. As férias estavam no fim. Era preciso voltar a estudar e se esforçar, para aprender cada lição. Era preciso fazer um bom segundo grau, para no futuro não ter problemas com o vestibular. Lembrava-se sempre do amigo que desistira do Seminário, por não conseguir passar no vestibular. Não queria ter o mesmo problema.

Logo, as aulas começaram. Reizinho estudava de manhã e à noite. Nas manhãs, enquanto esperava conseguir um trabalho, fazia um curso de Magistério. Não queria perder tempo. E era uma turma ótima, a deste curso. Mais ou menos, trinta garotas. Muitas vezes, ficava com vergonha por ser o único homem da turma. Mas não podia desistir. Era preciso ser forte, para crescer na vida.

***********************************************Após passar a euforia de ser campeão olímpico,

Reizinho retorna ao Vasco. O campeonato brasileiro estava pegando fogo. Era mais um campeonato a ser disputado. A vida não parava. Reizinho, às vezes, se preocupava com a

seqüência dos jogos, quase não havia tempo para uma recuperação. Descanso, nem pensar. Era preciso amar aquela profissão. Felizmente era gostoso jogar futebol. Os gritos da torcida, os aplausos para a jogada, o incentivo dos companheiros e o gol. O gol leva à loucura. Para ele, era um momento de glória. Fazer um gol era se libertar do peso de não se sentir útil e sentir prazer, o prazer do gol.

E o Vasco foi disputando seus jogos, e acabou chegando à fase semifinal. Seu adversário era o Bahia, o Bahia da terra de todos os Santos, do Candomblé e da magia de Oxalá. No primeiro jogo, no Maracanã, Reizinho se machucou e com quinze minutos de partida, teve que deixar o gramado. O Vasco passou o maior sufoco para vencer o jogo por um a zero. Agora, iria a Salvador e jogaria pelo empate. Nos dias que antecederam à partida, ficou em tratamento, sem saber se daria ou não, para jogar contra o Bahia, em Salvador.

Ainda como dúvida, chegou a Salvador, fez testes e acabou liberado para disputar a partida. Porém, por precaução, o técnico do Vasco preferiu deixá-lo no banco.

Em Salvador, Reizinho ficou impressionado com o misticismo daquele povo simples. Havia uma força espiritual muito forte naquele estádio, um ar de macumba, que, de certa forma, o preocupava.

Daquele banco, mil pensamentos o atormentavam. Lembrou de uma cartomante, que, certa vez, lhe disse que estava enfeitiçado e que aquilo precisava ser desmanchado. Aquilo deixara Reizinho preocupado por vários dias e, ainda, era um peso por ser algo desconhecido. No intervalo, ao caminhar para o vestiário, foi abordado por uma baiana, que lhe disse para não entrar naquele jogo,

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porque se entrasse, sofreria uma contusão séria devido a um despacho. Aquilo o abalou mais ainda. Sabia que era intenção do técnico, colocá-lo em campo para o segundo tempo. Logo, o treinador o mandou para o aquecimento. Não tinha como se negar a entrar em campo. Era como se tivesse que enfrentar uma fera, não tinha como fugir.

Por um momento, pensou em Deus e pensou na liberdade que faz a vida ser bela. Sentiu que era ele mesmo, o único responsável por sua vida. Tinha sido assim nos testes, nas vitórias e nos momentos difíceis em que dera a volta por cima. Não seria nenhum feitiço que iria modificar alguma coisa. E Reizinho entrou em campo, disse para si mesmo, que nada o seguraria naquele jogo. Nunca mais iria ter medo de macumba ou qualquer outro tipo de superstição.

Jogou aquele segundo tempo com uma raça incrível. Os baianos não entendiam cada vez que aquele garoto partia para cima da defesa do Bahia e fazia estragos. Os marcadores tentavam, de todas as formas, pará-lo. Davam-lhe botinadas sem nenhum sucesso. O menino Reizinho corria em busca da vitória. Final de jogo, o Vasco vencera por quatro a dois e estava na final. Reizinho vibrava como nunca, tinha vencido tudo: o medo, o azar, as superstições e sentia o gosto da liberdade, que só se conquista através da força que vem do coração.

Novamente, Reizinho treina para uma decisão. Toda a sua atenção está voltada para os jogos decisivos, que serão os últimos do ano. Depois irá curtir suas férias. Agora, já poderá escolher para onde ir, pelo menos não precisará ficar em casa por falta de dinheiro. Mas, ainda

falta o Internacional. É preciso treinar, é preciso ganhar mais uma decisão e, fazer a torcida do Vasco feliz.

No primeiro jogo, o Vasco vai a Porto Alegre e perde a partida por três a dois. A torcida do Internacional faz a festa, afinal tinha vencido o Vasco de Reizinho. Mas, ainda, faltava outro jogo, desta vez, seria no Maracanã e uma vitória, por qualquer placar, daria o título ao Vasco da Gama. Parecia que iria ser fácil e Reizinho já sonhava com uma nova festa em São Januário.

12 de dezembro de 1988. Debaixo de muita chuva, Vasco e Internacional entram em campo para decidirem quem seria o novo campeão do Brasil. O Internacional jogava pelo empate. Ao Vasco só interessava a vitória. Reizinho sente o campo pesado, mas luta com vontade. Aos dez minutos ele solta uma bomba da entrada da área, o goleiro do Internacional não segura e o centroavante do Vasco faz um a zero. Aos vinte e dois minutos, Reizinho cobra uma falta e aumenta para dois a zero. Ainda no primeiro tempo, o Vasco faz três a zero e no intervalo tudo é alegria. No segundo tempo, o Vasco não para. Faz mais três e sagra-se campeão brasileiro de 1988.

Mais uma vez, a torcida faz a festa. Dentro de campo, Reizinho dá mais uma volta olímpica como campeão do Brasil. Tinha sido pelo Botafogo, agora era campeão pelo seu time do coração. O Vasco era novamente o melhor time do Brasil.

Após as festas, começariam as férias de fim de ano e Reizinho se sentia um herói. Iria para as férias com carro próprio e dinheiro no bolso. Parecia um sonho. O ano de 1988 vinha sendo o máximo e, ainda, faltava o finalzinho para ele curtir à vontade.

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***********************************************Reizinho esperava conseguir um emprego. Estava

achando chato os finais de semana, por não ter dinheiro. Muitas vezes, não podia nem mesmo freqüentar a danceteria. Era preciso ter um dinheirinho, para as cervejas. Mas estava muito difícil conseguir um trabalho.

Padre Inácio até lhe prometera um trabalho, na secretaria da paróquia. Porém, ficara doente. Fizera uma ponte de safena e tivera problemas durante a cirurgia. Quem estava tomando conta da paróquia, durante este tempo, era o padre Edmundo. Um negrão que gostava muito de jogar bola e de carnaval.

No carnaval, Reizinho saiu do sério. Bebeu muito, como nunca havia feito antes. Sentia seu corpo livre e sambava como um louco. Nunca havia se sentido tão bem e tão livre. Abraçava as meninas e sentia-se querido por elas. Era uma sensação de se estar por cima. Nem se importou, quando quis dançar com Márcia e ela lhe deu um fora. O clube estava lotado de garotas e Márcia, naquele momento, lhe pareceu insignificante. E Reizinho beijou algumas garotas naquele carnaval. Aquilo era para ele, uma espécie de vitória sobre a rejeição que sentia.

A quarta-feira de cinzas foi de ressaca. Uma sensação enorme de ter exagerado no álcool e uma preocupação pelo medo de tornar-se um viciado. Reizinho sentia, ainda, a vontade de voltar para o Seminário. Não era bom que ficasse bebendo muito. Tinha que dar um bom exemplo. Procurou esquecer aquele carnaval. Precisava de seriedade na vida.

A vida seguiu. Reizinho continuava estudando e tudo ia entrando nos eixos. Nas tardes, ia jogar futebol, era, naquele momento, sua maior paixão. E amava suas colegas de escola. Queria se apaixonar por uma delas, mas era difícil de tanto que eram lindas. Depois, Reizinho lembrava-se de Márcia e Amanda, sofrera muito. Não é fácil ter um amor não correspondido. Mas, estava amando a vida. Amava suas amigas da escola, o futebol que jogava e a liberdade que, agora, tinha. Esquecera, um pouco, o Seminário. Sentia-se de férias e era gostoso viver assim.

Nas tardes de domingo ia à Missa. Sonhava voltar um dia para o Seminário. Voltar numa situação melhor, sem aquelas cobranças da Comunidade Vocacional de Dom Henrique. Às vezes, vestia a túnica branca e ajudava padre Inácio nas celebrações. Era para ele um sinal de vínculo com o Seminário. Sentia-se bem com aquela túnica branca. Prova de que o sonho de ser padre, não tinha acabado.

Numa noite de sábado, porém, viu que seu sonho de ser padre iria enfrentar muitos obstáculos. Era uma festa junina, iria dançar quadrilha e tinha ao seu lado uma linda garota. Chamava-se Flávia. Os olhos verdes, um sorriso lindo e o coração de Reizinho passou a bater mais forte. Ter uma companheira ao lado era a melhor coisa do mundo. Renunciar a isso para ser padre, não é nada fácil. O solitário carrega uma cruz muito mais pesada na vida.

Reizinho sentiu ali, que estava novamente apaixonado. Por um lado, aquilo era bom. Aumentava a adrenalina e viver tornava-se mais emocionante. Mas, carregava ainda a dor da rejeição sofrida por causa de Márcia e de Amanda. Assim, evitava uma maior

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aproximação de Flávia. Não queria ter uma nova decepção. Olhava de longe aquela menina e sonhava com um grande amor.

O tempo passou, sem que ele se aproximasse de Flávia. E apareceram outras Flavinhas na sua vida. Era a beleza que só existe nas meninas e que encantava Reizinho. A beleza das meninas é indescritível. Mais que qualquer outra obra da natureza. Não há poesias, não há canções e não há quadros que possam expressá-la. Talvez, nem sejam os olhos que a enxergam, mas o coração que a sente.

Quem não estava bem era padre Inácio. Tinha ido para outra cidade, para ficar junto de suas irmãs. Precisava de cuidados. Reizinho sentia saudades dele. Padre Inácio era uma pessoa ótima. O padre mais amigo que conhecera. Por mais de trinta anos, fôra o pároco da cidade de Reizinho. Todos, naquela cidade, gostavam muito dele. Não faltavam os momentos de oração em favor da recuperação de sua saúde. Mas, o seu problema era sério.

E chegou um novo pároco para a cidade. O padre Zé Ana. Muito experiente e muito seguro da sua função. Passava para Reizinho a imagem de alguém sábio no lidar com a comunidade e exigente nas mínimas coisas. Houve muita festa na sua chegada. Todas as beatas na igreja. Todos querendo dar as boas vindas ao novo pároco.

Padre Zé Ana fez algumas mudanças na paróquia e era aplaudido por todos. Reizinho o ajudou nos trabalhos de limpeza, mas não era o seu forte. Quem acabou sendo escolhido para sacristão, foi o seu amigo Bebeto, que, de vez em quando, levava uma fumada do padre, que era bem

bravo. Reizinho sentiu muito a saída dos coroinhas, seus amiguinhos da igreja. Mas, a vida seguiu.

***********************************************E Reizinho escolheu Salvador para curtir as suas

férias. A mesma Salvador, onde passara pela experiência de se libertar do medo das forças ocultas. Ali, ele pôde admirar o povo baiano, suas músicas, sua fé e sua animação. Ficou empolgado com a acolhida daquele povo que lhe fazia de tudo. Tratavam-no como se fosse um rei. E ele nem se lembrava mais das férias anteriores, quando não tinha dinheiro nem para pagar uma passagem de ônibus. Costumava mesmo era pensar em como seria bom se pudesse voltar à infância e lhe dar todos os presentes que não tivera. Às vezes, aquilo parecia ser possível. Reizinho sentia-se um menino e alguma coisa o cobrava muito, era como se lhe pedisse uma passagem para que pudesse ser adulto.

Porém, não adiantava pensar no passado, ele estava perdido. O importante mesmo era curtir cada um daqueles dias e eles passaram deixando lembranças inesquecíveis. Ao terminar o ano de 1988, Reizinho vai para a casa dos pais, para os últimos dias de suas férias. Era preciso esquecer as maravilhas da Bahia, colocar os pés no chão e voltar à realidade para mais um ano que estava começando. Na sua cidade e junto de sua família, pôde sentir um pouco da simplicidade da vida e recobrar as energias perdidas em um ano de competições e de badalações.

Sua cidade era um lugar onde ainda se podia curtir um ar puro, longe da poluição e do barulho das grandes cidades. Lugar onde a violência se restringia apenas às

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brigas no campo de futebol e na pracinha e, que, eram facilmente contornadas. Ali, Reizinho se preparava para mais um ano e, com certeza, seria mais um ano difícil. O Vasco tentaria o tri-campeonato carioca. Ainda iria disputar a Taça Libertadores da América, no segundo semestre e, Reizinho já sonhava com o título mundial de Clubes para o seu time. Teria ainda a Seleção brasileira, que iria disputar a Copa América e ele adorava jogar na nossa seleção. Era um orgulho e tanto entrar em campo com a camisa amarelinha.

Assim, Reizinho curtia suas férias e sonhava com a volta aos gramados. Para ele, jogar futebol tinha se transformado em um prazer. Era a sua profissão e sentia-se realizado com ela. Agora, ria do tempo em que olhava para o futuro e não via nenhuma perspectiva de uma vida melhor, onde as chances de se conseguir um bom emprego, pareciam inexistentes. Agora, ele estava bem. Porém, havia seus amigos e Reizinho se preocupava com a situação atual do país, onde os jovens se deparam com um mercado de trabalho restrito e, quase sempre, saturado.

Reizinho retorna ao batente. O Vasco começa a se preparar para mais um ano de competições. O campeonato carioca de 1989 está para começar e é preciso treinar para recuperar o tempo parado nas férias. Um novo ano e com ele, novos companheiros chegam para o time. Agora, Reizinho já tem um ano de clube, sente que garantiu um espaço e deseja o mesmo para os novos jogadores. Sente saudades dos amigos que saíram do time e começa a compreender a vida no clube, onde uns entram, outros saem e somente o clube continua como antes. Pensa ser da mesma forma o mundo, onde as pessoas nascem e morrem,

deixando apenas, aquilo que plantou de bom e que, de alguma forma, pode ser aproveitado pela humanidade. Esta é a herança mais valiosa que nós temos. O avanço que nos faz viver em um mundo modernizado e que custou a vida de um grande número de gerações e de grandes homens que deixaram marcas na História da nossa Civilização.

O Campeonato carioca começa. O Vasco parte firme em busca do tri-campeonato. Reizinho quer mais um título. De repente, começa a achar que está virando um mercenário, que quer ganhar tudo. Será que está ficando egoísta? Era preciso analisar a situação do atleta, que dá tudo de si em busca do mais alto estágio que se possa alcançar. Visa com isso, conhecer ao máximo os limites do homem, deixar registrado as marcas do récord, mostrando as pessoas a força do ser humano. Totalmente diferente do mercenário que se interessa pelo acúmulo de riquezas, muitas vezes sem se preocupar com o seu semelhante.

Assim, Reizinho descobre ser bonito o seu ideal, de querer ser campeão, de querer dar dribles cada vez mais bonitos, de querer fazer gols e mais gols, o tanto quanto puder, sem medir esforços. Tudo pelo orgulho de mostrar aos homens a força e a magia do ser humano, e mostrar a liberdade de fazer da vida o próprio destino. Desmanchar todas as formas de previsões e destruir todas as máscaras de uma característica, para assim, poder construir seu próprio papel.

Os jogos foram acontecendo e o Fluminense aparece como a grande surpresa do campeonato carioca de 1989. Revela novos valores, contrata alguns craques e passa a dar um sufoco nos adversários. Assim, o Fluminense chegou à final do primeiro turno e enfrentou o

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Vasco, em um jogo emocionante. Reizinho sofria uma marcação duríssima, por parte dos jogadores do Fluminense. Recebia faltas constantes. Mesmo assim, fez o primeiro gol da partida. Após este gol, o Fluminense partiu para cima do Vasco. Marcou dois gols, virou a partida e tentava, de todas as formas, garantir aquele título. O Vasco tentava empatar aquela partida e não conseguia. Por duas vezes, Reizinho acertara a trave e nada da bola entrar. Quarenta minutos do segundo tempo e o placar continuava dois a um para o Fluminense. Sua torcida porém, continuava calada, parecia temer um gol de Reizinho.

Dentro de campo, Reizinho começava a ficar desesperado. O tempo estava passando e o Vasco poderia perder. Ele não seria campeão, não daria a volta olímpica. Era a primeira decisão que iria perder e aquilo era inconsolável. Os companheiros pareciam querer resolver sozinhos aquela situação. Aquele individualismo era prejudicial ao time. Reizinho se irritava com isso, começou a reclamar com os companheiros e a pedir calma. Porém, era impossível acalmar aqueles jogadores naqueles minutos finais.

Quarenta e três minutos. A bola chega até Reizinho que está quase na área adversária. Ele gira o corpo e fica de frente para a defesa do Fluminense. Vê a sua esquerda um companheiro pedir a bola. Ele, porém, não toca. Parte para cima do primeiro beque, dribla-o. Passa pelo segundo, pelo terceiro, pelo quarto e o goleiro vem com tudo. Só faltava ele, tinha que dar certo. Finge que vai driblar pela direita, o goleiro do Fluminense salta sem sucesso e ele entra com bola e tudo, empatando o jogo. Sai correndo, comemora com os companheiros. Era o gol mais lindo de

sua vida, o gol mais suado, o gol mais sofrido. Nasceu de um momento em que era preciso deixar a equipe de lado e decidir sozinho. Aquele gol era só dele. Ali, Reizinho teve a certeza de que era um craque. Apagou o medo que lhe cobrava perfeição, tinha agido certo em arriscar a jogada. Era isso mesmo que a torcida e os companheiros esperavam dele, que ele decidisse o jogo. Afinal, era um craque e o papel dos craques é decidirem os jogos.

Na prorrogação, Reizinho marcou mais um gol e garantiu o título do primeiro turno para o Vasco. Cumprimentou os jogadores do Fluminense que tinham valorizado aquela vitória e, por pouco, não levaram a taça. Recebeu os merecidos aplausos, comemorou com os companheiros e sorria, sorria com a certeza do dever cumprido. Tinha feito, mais uma vez, a torcida do Vasco feliz e se orgulhava do golaço que havia marcado. Era gostoso ouvir os comentários sobre o seu gol e, melhor ainda, poder revê-lo no vídeo-tape da partida.

No segundo turno daquele campeonato, o Vasco foi ganhando todos os jogos. Os times foram caindo diante do time de Reizinho e, com três rodadas de antecipação, o Vasco conquistava o tri-campeonato do Estado do Rio de Janeiro. Era impossível segurar aquele timaço, comandado por Reizinho, que se emocionava por ver o seu time tri-campeão. Depois das festas, pôde parar um pouco, pensar no que estava acontecendo e analisar as propostas, que, novamente chegavam, para tentar levá-lo do Brasil. Ele, porém, de forma alguma, queria deixar o país. Tinha muito o que fazer no Brasil. Naquele ano fazia planos de ganhar a Copa América pela Seleção brasileira e, levar o Vasco,

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seu time do coração, a conquistar o título de campeão mundial de Clubes.

***********************************************Começou um novo ano. Era o que faltava para

Reizinho terminar o segundo grau e voltar para o Seminário. E ele encontrou outra amiguinha de olhos verdes. Adorava estar ao seu lado. Ela trabalhava em um estabelecimento comercial e Reizinho, passava as tardes ali. Como era amigo do dono, tinha liberdade para ajudá-la nos trabalhos. Ficava até sentir que estava na hora de começar a peladinha, com os amigos.

Assim, os dias passavam rápidos e Reizinho era feliz. Abandonara o Curso de Magistério, por sentir-se sem jeito para lidar com as crianças. Agora estudava somente à noite. Abandonara, também, a idéia de trabalhar, porque só faltava um ano para ele voltar para o Seminário. Era preciso aproveitar aquele tempo. Reizinho curtia cada dia e era muito feliz.

Veio o carnaval e Reizinho conheceu Marina. Ela trabalhava fora e, sempre voltava àquela cidade, nos feriados e festas. Começou a paquerar Reizinho, que não resistiu e passou o carnaval ao seu lado. E foi um carnaval mais calmo do que o anterior. Bebeu pouquinho. Sentiu muito a falta dos amigos e dos outros carnavais. Era gratificante ter alguém do seu lado. Mas, sentia falta da liberdade de conversar com as outras meninas e de tomar uns goles de cerveja com os amigos.

E o carnaval passou... Marina foi embora e prometeu voltar logo. Gostara de Reizinho. E ele não quis revelar sua intenção de voltar para o Seminário. Não quis

estragar aqueles momentos. Mas não se apaixonou por Marina. Logo que ela foi embora, a rotina voltou e ele sentia que era apaixonado mesmo, por sua amiguinha de olhos verdes. Todas as tardes, ia até o seu trabalho e era gratificante, aquele sorriso lindo.

O tempo, porém, era muito rápido. Um dia, sua amiguinha não quis mais trabalhar e as tardes de Reizinho se encheram de tristeza. Somente quando a bola rolava, seu coração voltava a sorrir. Custou a se recuperar daquela perda. Tinha se deixado cativar por aquela menina de olhos verdes e sentia muito a sua falta.

A vida, porém, continuou. Reizinho sentia que estava chegando a hora de voltar para o Seminário. Sentia, também, a falta de carinho das pessoas. Desde que deixara o Seminário, notara a ausência de certas pessoas. Sentia que elas não confiavam mais nele. Daí, a vontade de voltar e provar, que podia ser padre. Às vezes, sentia a necessidade de provar alguma coisa às pessoas ou, talvez, a si mesmo. E deixava o tempo passar.

Suas amigas, que pareciam adorá-lo enquanto estava no Seminário, agora nem o cumprimentavam mais. E ele questionava o valor daquelas amizades. Era preciso ter amigos de verdade e ele considerava muito seus amigos de futebol e da pracinha. Eles não viam a necessidade de Reizinho ser padre. Era amigo e pronto.

Reizinho era feliz. Sentia, ainda, saudades de sua amiguinha de olhos verdes. Logo, porém, sentiu a necessidade de buscar outra paixão, para preencher sua vida. Também era preciso estudar, o final do ano estava chegando e com ele o vestibular. Tinha que se preparar bem.

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Encontrou muitos outros motivos para ser feliz. Entre eles, Marina, que, de vez em quando aparecia. Ele, porém, não dizia a ela que iria voltar para o Seminário. Não queria que ela soubesse. Às vezes, tinha até vontade de abandonar a sua vocação. Mas, ao pensar melhor, sentia vontade de crescer na vida e isso incluía mais estudos. O Seminário era como se fosse uma porta para ser alguém na vida. Quem sabe, com o tempo, Reizinho iria discernir sua verdadeira vocação. Queria ajudar as pessoas e queria ser feliz.

Assim, numa manhã de outubro, Reizinho chegou novamente ao Seminário. Conversou com padre Bianor sobre suas possibilidades de voltar. Depois de uma longa conversa e muitos questionamentos sobre sua vocação, padre Bianor disse-lhe que podia voltar. Até emprestou-lhe dinheiro para fazer a inscrição no vestibular. Reizinho sentia-se feliz, voltou para casa radiante. Prometeu para si mesmo estudar bastante. Iria passar no vestibular e dedicar-se muito à sua nova oportunidade no Seminário. Tinha fé no futuro e rezava muito para que Deus o abençoasse.

O final daquele ano passou muito rápido. Reizinho quase não estudou. Arrumou emprestado um montão de livros e apostilas, mas ficaram sobre a mesa. Veio à formatura de segundo grau e ele se emocionou. Pensava já, na formatura da Universidade. Iria passar no vestibular. Não via outra opção, era o seu sonho.

Reizinho estava otimista. Sempre fôra dedicado na escola e agora, era o momento de provar para si mesmo. Queria dar um presente para sua escola e seus professores. Passar no vestibular era uma forma de retribuir tudo o que

lhes haviam ensinado. Alguns de seus amigos e amigas, também estavam se preparando. Reizinho sentia a tensão deles. O vestibular era tido como um bicho-papão.

***********************************************Reizinho decide ficar no Brasil. Está ganhando

bem, todos parecem gostar dele, joga na Seleção brasileira e parece não lhe faltar nada. Aceita com naturalidade, que seus amigos prefiram ir jogar na Europa. É um desejo deles e as condições financeiras são, realmente, muito melhores. Ele, porém, quer ficar mais um ano no Brasil e se preparar para a Copa do Mundo. Quem sabe, após a Copa, ele se sinta mais amadurecido para enfrentar a vida lá fora. Reizinho tem medo de deixar os amigos e ir para um lugar estranho. O medo da solidão parece amarrá-lo às pessoas amigas, não quer deixá-las, de forma alguma.

Reizinho era totalmente dependente das pessoas, parecia ter encontrado no Vasco aquilo que procurava. A torcida, a convivência no clube, e a alegria de viver no Rio de Janeiro era tudo para ele. Não queria, de forma alguma, que aquilo se acabasse, por isso não queria mudar-se. Era preciso continuar no time, ser campeão e aproveitar cada momento, sem pensar no amanhã que poderia ser triste.

O Brasil treina para a Copa América. Reizinho está super-empolgado com esta competição. Quer ser novamente campeão pelo Brasil. A lembrança das Olimpíadas, ainda está bastante viva em sua memória. Como é bom ver o sorriso dos brasileiros. O brasileiro que sofre com a inflação, com o salário mínimo e que, por um momento, pára e torce por seu país. Por um momento, não importa se o presidente não é bom ou, se a recessão não

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termina. O que importa é sorrir e vibrar com o Brasil campeão.

O assunto nas ruas passa a ser a Seleção brasileira. O time está bem, cheio de craques. O Brasil em campo é a certeza de gols. Gols, que, por um momento, trazem a paz a um país. Gols que fazem a cabeça do mais simples torcedor ao grande empresário. E faz com que o ideal de todos, passe a ser somente o desejo de vitória para o país, escondendo por alguns instantes, a tão comentada crise.

A Copa América começa. O Brasil encanta os torcedores nas primeiras partidas. Reizinho vinha jogando um bolão, fazendo a torcida esquecer os craques do passado e vibrar com jogadas de gênio. O gênio agora é Reizinho, craque de dribles desconcertantes, de jogadas velozes e de lançamentos. Enfim, um craque perfeito. E ele via seu sonho realizado, tinha se tornado o craque que sonhara na infância. Aquilo era maravilhoso. Podia driblar, já não tinha mais aquele medo de errar. Se errasse, poderia tentar de novo. Como tinha sido bom aquele crescimento! Às vezes, olhava e via toda a luta cumprida, tudo o que passara para chegar até aquele momento e se achava um herói. Um herói como tantos outros meninos, que agora estavam com ele na Seleção e, com orgulho no peito, vestiam a camisa amarela.

Reizinho admirava muito aqueles jogadores, especialmente os mais fracos tecnicamente e que, quase ninguém dava nada por eles. Ali, eles eram partes de um grupo e não chegaram por acaso. Mesmo limitados, eram craques e faziam parte da Seleção Brasileira. Chegar à Seleção Brasileira é o sonho de milhões de meninos.

Porém, somente poucos realizam este desejo e Reizinho os considera heróis, heróis de verdade.

Brasil e Argentina se enfrentam na noite de 29 de junho de 1989, pela fase semifinal da Copa América. Reizinho e seus companheiros entram em campo, sabendo das dificuldades da partida. A Argentina é sempre, um adversário difícil. Sempre apresenta ao mundo, uma grande equipe.

A bola rola solta no gramado. O Brasil começa a mandar no jogo, mas esbarra na raça dos jogadores argentinos. Reizinho é marcado de perto, sofre uma falta atrás da outra. O jogo esquenta e o primeiro tempo termina sem gols. No segundo tempo, o Brasil vem com tudo. Aos dez minutos, Reizinho entra na área e é derrubado. O juiz marca pênalte. Ele mesmo bate e faz um a zero. Três minutos depois, o Brasil faz mais um, tranqüilizando a torcida. Aos vinte e dois minutos, a Argentina diminui o placar, o que aumenta ainda mais o calor daquela partida.

Aos trinta e cinco minutos, Reizinho desce pela direita. Não tem tempo de desviar do carrinho do jogador argentino, que surgiu como um foguete. Sente, apenas, quando a sola da chuteira do argentino lhe acerta a perna direita. Ouve o estalo e cai desesperado. Sua perna está quebrada. As dores são violentas e ele é retirado do estádio.

É levado a um hospital, para ser operado. De repente, tudo roda em sua cabeça. O futuro, a Copa do Mundo, tudo parece estar perdido. Apenas uma pancada, um segundo e, ele vê indo por água abaixo, muitos de seus sonhos. É preciso ser forte, não há saída. É preciso suportar a dor e aguardar o tempo. A decisão é somente

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dele, do tempo que mata e do tempo que cura. Reizinho está nas mãos do tempo e não há saída.

Reizinho é operado. Sua cabeça fica transtornada com tudo o que aconteceu. Não consegue ver culpa no jogador argentino, mas fica indignado com a violência no futebol. Ele sabe que no calor do jogo tudo pode acontecer, porém, não havia nenhuma necessidade de um carrinho daqueles. Foi violência a troco de nada. Ele estava longe da área, não era preciso quebrá-lo. Reizinho, às vezes, via o homem como um ser violento, que muitas vezes, mata por impulso, sem ao menos pensar se aquilo é necessário.

Assim, Reizinho se preocupava com o mundo atual, onde o homem se tornou mecanicista, onde já tem tudo prontinho e, quase, não sobra espaço para o pensamento, para a reflexão. Acaba sendo levado pelas ideologias presentes, sem ter como abrir caminho para um novo espaço. O século XXI surge trazendo a máquina da exploração de massas humanas, levando o homem a se explorar mutuamente, tendo como única lei, a lei do mais forte.

Naquele hospital, Reizinho ficou sabendo que ficaria no mínimo, seis meses sem poder jogar futebol. Com isso, não jogaria mais naquele ano. Desespera-se com a notícia. Tinha muitos planos para aquele ano. Queria levar seu time a ser campeão do mundo e, agora, este sonho estava perdido. Havia, ainda, a Copa do Mundo, que estava chegando, só faltava um ano. Será que daria tempo de se recuperar? Será que sua perna ficaria boa? Tudo isso o atormentava. De repente, ele se via sem ação, não podia fazer nada. Às vezes, sentia vontade de sair correndo, de fugir de tudo, mas como, se sua perna estava quebrada. Era

preciso dar uma parada, acalmar os nervos e esperar pela passagem do tempo.

***********************************************Reizinho chegou no Seminário e encontrou outros

quatro colegas, também vivendo a experiência do vestibular. Nelson, Fábio Augusto e Mazinho, além de Danilo. Danilo já havia passado para outra Comunidade, era a segunda vez que tentava o vestibular. Falava com temor sobre a redação. Queria fazer uma dissertação sobre o Papa, seu grande ídolo. Mazinho, como sempre, estudioso, debruçava sobre os livros e mantinha uma postura séria. Fábio Augusto brincava um pouco, mas também, deixava transparecer sua tensão. Nelson era muito inteligente, só falava no primeiro lugar. Com o Seminário de férias, estavam ali, somente os vestibulandos. Assim, havia a liberdade para conversar e brincar.

Dom Henrique havia se mudado definitivamente para a Casa do Bispo. Deixara para padre Bianor, a formação da Comunidade Vocacional. Reizinho estava tranqüilo e na manhã seguinte, foi para a Universidade fazer a primeira prova. E fez, num instante a redação. Nem se importou de corrigir alguns pequenos erros, que notara ao reler. Tinha feito uma boa redação e saiu confiante. Encontrou algumas colegas de sua cidade, que, também, estavam prestando vestibular. Deu uma volta pela cidade antes de retornar ao Seminário. Conversou com seus amigos e não entendeu a preocupação deles.

Brincava com eles, se dizendo otimista. Porém, no fundo, também tinha medo. Se não passasse, sua situação ficaria mais difícil. Embora, seus colegas dissessem, que

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haveria o Curso de Filosofia no Seminário e, que se não passasse, estudaria do mesmo jeito. Reizinho pensava diferente. Queria estudar na Universidade. Morar no Seminário e estudar ali mesmo, iria ser muito chato. Seria bom ir para a Universidade e ter um tempinho longe da Comunidade. Daí, a necessidade de passar naquele vestibular.

Assim, Reizinho fez todas as provas. Sentiu que tinha se saído bem e voltou confiante para casa. Disse a seus amigos que passaria, com certeza. Porém, esperava com ansiedade pelo resultado. A coisa não era tão fácil assim, o vestibular reprovava muita gente. E os dias foram se passando. Reizinho viveu cada um deles, sem pensar muito no futuro. Logo, teria de voltar para o Seminário. Acabariam suas férias. Não era bom pensar no futuro.

Ele porém, chegou. Trouxe o resultado do vestibular. Reizinho havia passado, sentiu-se empolgado. Recebeu muitos parabéns. Seus professores, professoras, amigos e parentes ficaram felizes. Logo, seus colegas rasparam-lhe a cabeça e ele tomou um copo de cachaça. Estava todo contente. Havia passado no vestibular. Tinha valido a pena os tempos de estudo. Iria para o Seminário e estudaria na Universidade.

A princípio, queria esconder sua volta para o Seminário. Não gostava da pressão que havia em torno dos seminaristas. As pessoas gostam muito de seminaristas e ele queria que as pessoas gostassem dele, do seu jeito. Daí, não queria dizer que era, de novo, um seminarista. Iria para a Universidade e queria que as pessoas o valorizassem por isso. Talvez, não conseguiria mesmo ser padre. A

vocação sacerdotal exige muito. Reizinho sabia de todas as dificuldades e tinha medo.

Assim, Reizinho chegou de volta ao Seminário. Foi muito bem recebido por todos e sentiu-se em casa. A princípio, o medo de ter que ficar muito tempo naquele lugar. Era muito diferente de sua casa. O Seminário lhe passava a imagem de um colégio interno. Sentia assim, um pouco da sua liberdade reprimida. Sentia medo do tempo.

Logo, porém, passou essa impressão e Reizinho começou a se inteirar na nova Comunidade. O novo tempo que ia viver no Seminário chamava-se propedêutico e seria de um ano. Sua Comunidade teria padre Bianor, como formador. Reizinho teria ainda, mais sete companheiros.

Nelson, que tinha conseguido o primeiro lugar no vestibular. Fábio Augusto e Mazinho, que tinham sido reprovados e não iriam para a Universidade. Nelo, Benjamim e Custódio, eram novatos no Seminário. Além deles, Gilvã que tinha passagens por um Seminário franciscano. Já tinha feito dois anos de Filosofia. Era, assim, o mais culto do grupo.

Nelo era uma pessoa muito simples, vindo de uma pequena cidade. Tinha estudado enfermagem e falava com muita convicção sobre o seu sonho de ser padre. Uma ótima pessoa. Benjamim era muito extrovertido. Sua cidade era a mesma do Seminário, sua família estava próxima. Talvez, por isso, demonstrava tanta confiança. Havia feito um curso de Técnico Agrícola e falava da necessidade de cuidar da horta. Custódio era um moreno forte. Vindo de um bairro barra pesada, daquela cidade. Tinha até uma pinta de elemento perigoso. Havia estudado eletrônica. Trouxe um aparelho de som e alguns litros de

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vodka. Gostava muito de tomar uns goles. Era muito extrovertido, logo começou a brincar com Reizinho. Era um bom amigo.

Assim era a nova Comunidade de Reizinho. Morariam no mesmo predinho onde antes, era a Comunidade Vocacional de Dom Henrique. Acima ficava o prédio grande e as Comunidades Maiores. As refeições não seriam mais feitas em conjunto. Cada Comunidade teria sua própria cozinheira. Não haveria mais a reunião de todo o Seminário, na hora das refeições. Reizinho sentia falta daquele momento, onde se podia partilhar experiências com os seminaristas mais adiantados.

Padre Bianor fez uma reunião com todos, para definir os horários e os regulamentos da Comunidade. Ficou definido um tempo para as orações, os trabalhos de limpeza da casa e para os cuidados da horta. Havia também, um tempo de estudos para ser observado. E finalmente, um tempo de lazer, para os esportes, a piscina ou, uma volta pela cidade. Nos finais de semana, haveria as pastorais nos bairros e todos tinham que participar. De repente, Reizinho viu novamente seu tempo tomado de segunda a segunda e sentiu medo. Dava até um friozinho na barriga, ouvir todos aqueles compromissos.

Reizinho e Nelson seriam os únicos a estudarem na Universidade. Era um alívio, pelo menos teria um tempinho longe da Comunidade. Reizinho tinha alguns momentos de depressão e deles, parecia vir o medo de ter sua liberdade diminuída. Mas queria ser padre. Não se imaginava um padre preso a horários ou a compromissos. Mas queria ser um padre amigo das pessoas, que, a qualquer hora tivesse a liberdade de visitar alguém, para

levar uma palavra de consolo. Às vezes, achava que o Seminário era muito exigente na formação dos seminaristas.

***********************************************Reizinho ficou feliz com os amigos que lhe deram a

maior força. Mais uma vez, todos torciam por ele. Via pela televisão, as imagens dos torcedores que se entristeceram com sua perna quebrada. Por algum tempo, não se veria aquele menino driblando, correndo e fazendo a alegria do povo. Aqueles torcedores precisavam dele, para que, por alguns instantes, sentissem a magia de se ser torcedor e de se ter um ídolo. O ídolo, que representa os nossos sonhos e que, de alguma forma, os realiza. Reizinho era o garoto simples que todos admiravam, o garoto que driblava com simplicidade os beques da vida. E ele, muitas vezes, sentia a solidão, a solidão de viver em um mundo onde é preciso complicar tudo, onde nada pode ser facilitado.

Alguns dias depois, o Brasil entrava em campo para decidir a Copa América de 1989. Entrava em campo sem Reizinho. Os jogadores prometeram-lhe aquela conquista. Aquilo o reconfortara, sentia-se querido pelos amigos. Assistiria aquela partida como nos tempos de torcedor e, tinha certeza de que iria ser gostoso ficar novamente na torcida. Ficar com o coração na mão a cada lance de perigo e comemorar cada gol como se fosse seu. Esperar a vitória e com ela, o prazer de se ser vencedor. Ser torcedor é estar integrado, é ser parte da vida que cobra a união entre as pessoas. O Brasil vence o Uruguai e conquista a Copa América. Reizinho se emociona com cada companheiro

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que vem até ele e lhe dá um abraço. Vibra com o Brasil campeão. Não se cansa de elogiar a cada jogador e, por alguns momentos, consegue até esquecer que sua perna está quebrada. Tinha sido um jogão, algo fantástico de se assistir. Agora, porém, era preciso parar e Reizinho vai para a casa dos pais, onde pensa encontrar um pouco de paz para a sua recuperação.

Os dias, vão se passando lentamente. São dias e noites que parecem intermináveis. A idéia de sentir-se inútil machuca Reizinho, que queria estar treinando, que queria estar jogando. Passa os dias lendo e assistindo televisão. Foi a forma que encontrou para matar o tempo e se manter aceso para a vida.

Seu contrato com o Vasco havia terminado e ele aguardava, com ansiedade, uma definição. O certo era que só voltaria a jogar no ano seguinte. O Vasco teria que disputar o campeonato brasileiro, a taça Libertadores da América, e mesmo que ganhasse essa competição e fosse decidir o título mundial de Clubes, teria de jogar sem Reizinho. Entristecia-se, cada vez que o Vasco entrava em campo. Queria jogar. Era o seu grande sonho ver seu time de coração campeão do mundo. Agora, porém, só restava torcer e esperar que os seus amigos conseguissem vencer os obstáculos e levassem o Vasco à vitória. E torcia, torcia como nunca, era o que podia fazer e fazia de coração.

Um dia, recebeu a visita de um empresário, que queria levá-lo para o Flamengo. Reizinho estava sem contrato no Vasco e começou a pensar na hipótese de ir para o Flamengo. Começou a ver naquela transferência o início de uma vida nova. Era preciso começar de novo. Iria

ter que se recuperar lentamente, e um novo clube, seria uma motivação a mais.

Reizinho começava a sonhar em jogar com a camisa rubro-negra. Ainda tinha na cabeça, as imagens das decisões em que enfrentara o mengão. Aquela torcida fantástica tinha lhe deixado marcas de algo bonito, a imensa massa humana, que aos gritos de mengo, faziam a maior festa. Aquilo era como uma religião, uma força imensa que fazia daquele clube, um clube querido e que despertava, até mesmo em Reizinho, que era torcedor do Vasco e rival do rubro-negro, uma grande admiração. Para ele, o Flamengo é o próprio símbolo do povão, que acredita sempre e que faz da vida uma festa constante.

E o Flamengo acabou comprando o passe de Reizinho. Aquilo, para ele, era uma nova vida. De alguma forma, iria esquecer um pouco o passado. O passado que tinha lhe dado glórias, que tinha lhe permitido jogar no seu time e ser campeão. Mas era passado. Tinha que pensar era no futuro e ver o melhor para si mesmo. Queria jogar no Flamengo e balançar as redes, mesmo que fossem as redes do Vasco. Certamente teria que enfrentar o Vasco. Aquilo o fazia voltar no tempo em que jogou pelo Botafogo e enfrentou o seu time de coração. Naquele jogo sentiu-se mal, por enfrentar o seu time. Agora, porém, estava mais amadurecido e tinha que vencer aquele trauma. Queria crescer na vida, ser um grande profissional e, para isso, sentia a necessidade de deixar as paixões um pouco de lado. Era preciso ser homem de verdade, nunca se deixar abater por traumas. Afinal, os traumas vem do passado e o passado é para ser superado. A vida não pode, de forma

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alguma, ficar agarrada. É preciso desamarrar aquilo que nos prende e assim crescer, e ser feliz.

Quem se entristecera com a saída de Reizinho foi a torcida do Vasco, que ficara sem entender aquele negócio. Agora, quando ele voltasse a jogar, estaria do outro lado, com a camisa do Flamengo e aquilo era inaceitável. Ver o seu maior ídolo com a camisa do maior rival.

Por outro lado, a torcida do Flamengo fazia a festa. Reizinho era uma grande contratação, mesmo estando machucado. Era a esperança do time e todos aguardariam, com ansiedade, a sua recuperação e a sua estréia. Aquela mudança fez bem a ele, que agora passava os dias mais tranqüilos e até já imaginava a sua estréia no Flamengo, com o Maracanã lotado.

Logo chegou o dia de retirar o gêsso. Já estava louco para se livrar daquele peso e poder caminhar livremente. Após a retirada do gêsso, começava o lento processo de recuperação e ele enfrentava a tudo com muita dedicação. Queria voltar a jogar e sabia da necessidade de fazer tudo certinho. Muitas vezes, ficava com medo de sua perna não ficar boa, medo de que quando voltasse a jogar, ficasse com receio de dividir as jogadas. Lembrava de muitos jogadores que quebraram a perna e que nunca mais conseguiram jogar como antes. Aquilo porém, eram só pensamentos e, pensamentos ruins, que teria de tirar da cabeça. O importante era que estava fazendo tudo para se recuperar e tinha no peito, a certeza e a vontade de voltar a jogar. E jogar como antes, sem medo dos zagueiros, sem medo de nada e ser campeão de novo.

Reizinho vivia em meio à dúvidas. Eram bons e maus pensamentos passando por sua cabeça. Eles eram

constantes e não tinha como evitá-los. Vivendo tudo isso, vibrava com cada degrau de sua recuperação e cada degrau alcançado era um pensamento negativo que ficava para trás.

O tempo foi passando e cada dia era vivido com intensidade. Começava a sentir que sua perna estava ficando boa e que logo, poderia voltar a jogar. Com isso, a vida lhe sorria novamente. Podia pensar no futuro e na Copa do Mundo que estava se aproximando. A Copa do Mundo iria ser o máximo, o mundo todo estaria lhe assistindo e Reizinho já planejava um show. O show dos dribles bonitos, que fariam o Brasil inteiro sorrir. Já nem sentia mais sua perna. Até chegar a Copa, ela estaria melhor que nunca, e poderia imitar seu ídolo “Garrincha”, e driblar os gringos. E ser campeão do mundo.

***********************************************Reizinho chegou à Universidade. Um pouco

acanhado por chegar a um local tão importante. A primeira aula foi de português e estavam reunidos, alunos dos cursos de Filosofia, História e Ciências Sociais. Uma sala lotada. Algumas garotas bonitas. E ele assistiu calado, àquela primeira aula.

A Universidade era, para Reizinho, algo totalmente diferente do seu mundo. Uma quantidade enorme de cursos importantes e professores, que pareciam ser os grandes sábios da atualidade. Via os alunos nos seus carrões e ficava inibido por não ter nada. Tinha que pegar os ônibus lotados e chegava sempre atrasado para as aulas. No anfiteatro, ouvia as palestras e ficava imaginando se algum

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dia, teria coragem de falar num local como aquele. E ficava calado, totalmente inibido.

Tornou-se muito amigo de Nelson. Dividiam o mesmo quarto no Seminário. Iam juntos para a Universidade. E faziam, também, o trabalho na Comunidade. Reizinho e Nelson estudavam fora e, por isso, ficavam um bom tempo, ausentes da Comunidade. Assim, ficaram responsáveis por fazerem o café da manhã e lavar as vasilhas após o jantar. Saíam cedo e voltavam para o almoço. Nas terças, quintas e sextas, ainda tinham aulas na parte da tarde e voltavam à Universidade. Retornavam apressados, para não perderem o momento de oração da tarde na Comunidade. Era uma vida muito corrida. Ao se deitar, Reizinho dormia como uma pedra.

Padre Bianor, além de formador da Comunidade Propedêutico, era, agora, o Reitor do Seminário. Era dele a última palavra em todas as decisões. Padre Arnaldo era, agora, o conselheiro espiritual dos seminaristas. Padre Tôni estava em Roma, fazendo um curso de aprofundamento. E haviam chegado novos padres para trabalhar no Seminário.

Padre Otávio era o formador de uma das Comunidades. Gordinho e educado, era, também, muito exigente nos seus objetivos. Coordenava toda a dimensão pastoral do Seminário. A princípio, Reizinho tinha dificuldades em se fazer seu amigo. Sentia medo de confiar nele.

Padre José era um intelectual e filósofo. Todos diziam que era um gênio. Reizinho até estranhava tantos elogios. Era um homem como qualquer outro, mas todos ali, diziam que era um gênio. Assim, sentia-se inibido

diante dele. Até que um dia, padre José lhe deu uma carona. Falou dos seus estudos em Roma, comprou cigarros e disse sentir vontade de dar aulas na Universidade.

Reizinho sentiu sua simplicidade. Mesmo os gênios tem sonhos a realizar. Padre José era uma ótima pessoa. Às vezes, vivia fechado no seu mundo. E a vida seguia... O Seminário continuava como antes. Muitos dos colegas de Reizinho haviam saído. Entre eles, Túlio, Donato, Zezinho, Emiliano e Quinzinho. Era muito sentida a falta deles. Mas, haviam chegado outros. É assim o Seminário. Como diziam os padres, “muitos são chamados, mas poucos são escolhidos”.

Para o trabalho pastoral, os seminaristas foram divididos dois a dois, e enviado às comunidades. Para companheiro de Reizinho, foi escolhido o estudante de Teologia Toninho, um dos mais conceituados seminaristas. Iriam trabalhar numa vila bastante pobre. Era um desafio para Reizinho.

Sentia medo de sua timidez. A princípio, vinha à sua mente a idéia de que fazer pastoral, significava fazer discursos. Era o seu ponto fraco. Tinha muito medo de falar em público. Um sentimento ruim, de baixa estima. Imaginava-se sem nenhuma bagagem cultural e tinha vergonha de falar errado. Mas a pastoral era obrigatória. Tinha que deixar o medo de lado.

A Universidade era cheia de meninas bonitas. Um colírio para os olhos de Reizinho. E ele adorava esperar o ônibus, sempre dava para conhecer uma nova gatinha. Era o momento de esquecer as preocupações do Seminário e relaxar. Sua turma de Curso tinha como maioria, rapazes.

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Eram somente três garotas. Liliane era alta e magra. Iramar era morena e gordinha. Érica era baixinha e logo, desistiu do Curso, para se casar. Assim, Liliane e Iramar eram as duas filósofas da turma.

Sábado era o dia de sair para a pastoral. A vila em que iria trabalhar era muito carente. Não havia um local específico para dormir. Assim, Reizinho e Toninho combinaram de ir para lá, somente aos domingos. O sábado ficou livre e ele adorou ter um dia para descansar e passear na cidade.

Logo veio o primeiro sábado. Seus companheiros saíram para as pastorais e Reizinho ficou só. Achou ótimo, era um momento de sossego. Também sentiu medo, pois a idéia de dormir sozinho em uma casa tão grande era aterrorizante. Porém, estava livre, poderia sair à noite e nem teria horário marcado para voltar. Pela primeira vez, sentia-se livre de verdade, no Seminário.

No domingo, pela manhã, foi juntamente com Toninho, conhecer a vila onde iria trabalhar. Chegaram à casa de dona Gilda, que ficava no alto de um morro. A vila era um punhado de casas e um monte de barracos. O pessoal das casas, tinham um trabalho definido e pareciam viver bem. Porém, os moradores dos barracos viviam na miséria. Reizinho ouviu muitos comentários sobre bandidos e sentiu medo de estar ali. Era a sua região pastoral.

Dona Gilda tinha uma grande família. Acolhia com muito carinho os seminaristas. Toninho já tinha muitas experiências pastorais e parecia à vontade. Fizeram, naquela tarde, um momento de oração, do qual participaram alguns vizinhos de dona Gilda e, voltaram

para o Seminário. Reizinho não gostou daquele lugar. À primeira vista, não se simpatizou com as pessoas daquela vila. Pelo menos, iria fazer pastoral somente aos domingos. Um tempo pequeno para passar ali, naquela vila.

***********************************************Um dia, Reizinho apaixonou-se por uma das

garotas que freqüentavam o clube. Era linda e começou a atrair toda a sua atenção. Passou a pensar nela o dia todo, quase não conseguia mais treinar. Ficava horas e horas admirando aquela garota e deixando de lado muitos de seus compromissos. Por um momento, esqueceu que era jogador de futebol, que estava treinando para voltar a jogar, que tinha contrato com o Flamengo e que a Copa do Mundo estava se aproximando. Aquela garota parecia ser diferente de todas, as que conhecera antes e, naquele momento, era tudo o que ele queria na vida. Passava horas pensando em uma maneira de se declarar para ela. Tinha um medo enorme de levar um fora e, em um segundo, ver toda a sua paixão ir por água abaixo. Porém, tinha que fazer alguma coisa. Aquela indefinição estava lhe deixando maluco, quase não treinava mais. Recebia reclamações de todos os lados e sua vida estava se tornando complicada.

Finalmente criou coragem e falou com a garota, que aceitou sair com ele. Reizinho ficou radiante. Uma sensação de felicidade que o deixava nas nuvens. Aquele encontro foi esperado com uma expectativa imensa. Dali em diante, Daniela não lhe saía mais da cabeça, estava totalmente apaixonado. Não conseguia mais olhar o mundo, tinha à sua frente a imagem de sua amada a lhe cegar de paixão.

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Pela primeira vez, começava a namorar sério e estava apaixonado por aquela menina. Ao seu lado sentia ter encontrado o amor. Às vezes, queria que o tempo parasse e ele nunca mais precisasse sair de perto de sua amada. E Reizinho viveu dias de paixão intensa. Porém, um dia, acordou desesperado, vendo as horas que haviam se passado e ele perdera mais um dia de trabalho. Tinha que se dedicar mais. Os dias estavam passando e as pessoas cobravam dele mais determinação na vida. E ele, decidiu recuperar o tempo perdido. Voltou a se dedicar como nunca a sua recuperação. Às noites, podia encontrar sua amada e curtir momentos felizes.

E houve nova mudança na vida de Reizinho. Estava num clube novo, recuperando-se bem da contusão e, ainda, estava amando. Tinha uma namorada que passou a ser a maior razão de sua vida. Agora sim, sentia-se motivado a treinar, uma motivação de verdade, tinha uma recompensa por seu trabalho. A cada beijo de sua menina, ganhava um espírito novo, que lhe dava toda a força do mundo. A cada dia, acordava com a certeza de estar em forma e treinava como um menino que queria passar no primeiro teste. Daniela tinha lhe dado um novo ânimo. Podia sorrir sempre, pois estava se achando o máximo.

Os dias foram se passando e o ano de 1989 chegou ao seu final. Reizinho se preparava para voltar a jogar futebol e estrear no Flamengo. Era preciso esperar para ver a reação de sua perna. Ela precisava estar boa, mais que nunca, precisava dela. Agora, tinha a sua amada, não era só ele e o seu futuro que estava em jogo. Tinha, também, o futuro de Daniela. Precisava ganhar dinheiro e, com certeza, iria aceitar as próximas propostas do futebol

europeu. Já não poderia mais jogar futebol por amor à camisa. Havia algo mais importante em jogo, que era Daniela. E faria tudo por ela, tudo o que ganhasse seria para Daniela. Estava totalmente sufocado pela paixão.

No dia dezesseis de janeiro de 1990, Reizinho se apresenta ao Flamengo, que vai iniciar os preparativos para uma nova temporada. Traz consigo os sonhos de uma boa recuperação e, assim, poder jogar no Flamengo e garantir uma vaga na Seleção Brasileira. É mais uma vez o ano da Copa do Mundo e, todos os jogadores sonham e brigam, palmo a palmo, por uma das vinte e duas vagas. Naquele momento, Reizinho travava uma briga consigo mesmo. Era a ansiedade de entrar em campo e ter a certeza de que sua perna agüentaria a dureza de uma partida.

Na sua apresentação, sentiu o carinho dos amigos, todos querendo saber como ele estava e quando seria a sua estréia. Ganhou uma quantidade enorme de presentes da torcida, o que lhe deixava a imaginar a festa que seria a sua estréia e, a festa que seria se ele conseguisse ser campeão pelo Flamengo. E Reizinho já sonhava com um título no Flamengo. Era um sonhador. Sua vida tinha sido, até aquele momento, de sonhos e queria continuar sonhando. Sonhando com novos títulos, com a Copa do Mundo e, até com uma transferência para o futebol europeu. Sonhava jogar no Milan ou no Roma, no Barcelona ou, quem sabe, no Real Madrid, e sonhava com milhões de dólares, que poderiam fazer Daniela feliz.

Daniela era filha de um rico empresário. Reizinho estava apaixonado por ela. Sentia que precisava ganhar muito dinheiro, ficar muito rico, para assim poder casar-se com sua amada. Por isso, desde que conhecera Daniela,

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que ele andava preocupado com sua situação financeira. Jogara no Tupi, no Botafogo e no Vasco, mas nunca fizera grandes contratos. Perdera oportunidades de jogar em grandes clubes da Europa e o seu salário atual no Flamengo não era tão bom, até porque, vinha de uma contusão séria. Nunca se importara com isso, sempre achara que estava ganhando até demais, se comparado ao salário de milhões de pessoas. Agora, porém, se apaixonara por alguém da alta sociedade e precisava mudar de vida. Decidiu que dali em diante, iria cobrar caro por seu futebol e ganhar muito dinheiro. Iria ficar rico e casar com Daniela. Para ele, naquele momento, isso era tudo o que importava.

***********************************************Na Universidade, Reizinho não gostou de uma aula.

O professor começou a questionar os mistérios das religiões. Eram muitos questionamentos. Nunca havia pensado daquela forma. De repente, viu questionado, aquilo que tinha de mais sagrado no mundo, a sua fé. Ao terminar a aula e comentar com um colega que aquele professor era ateu, ficou mais pirado ainda. Seu colega lhe disse que aquele professor era padre. Como um padre poderia falar tão contrário, do que se ouvia nas igrejas. Assim, Reizinho entrou em uma crise espiritual.

Os momentos de oração no Seminário passaram a ser estranhos para Reizinho. Não entendia o porquê de tantos rituais, se a fé era como um salto no escuro. De repente, parecia-lhe que os padres estavam mentindo, quando faziam todos aqueles atos de piedade. Começou a sentir muitas dificuldades, nos momentos em que era

obrigado a fazer sua parte nas orações da Comunidade. Deixou de rezar o terço, como fazia todas as noites. Estava vivendo um momento muito difícil da sua vida.

Reizinho estava sendo um seminarista sem fé. Até que conversou com Nelson.

- Nelson, estou cheio de dúvidas, e você?- Também tenho dúvidas. Mas, Jesus deu a sua vida

por nossa causa e ninguém faz isso. Vale a pena seguir o seu ideal, ainda que existam dúvidas na nossa cabeça.

E Reizinho aprendeu com o caçulinha do Seminário. Não era preciso desistir de ser padre, por causa de alguns questionamentos. Tinha, agora, os ideais de Cristo para seguir. O amor às pessoas era o primeiro passo. O segundo era a construção do Reino de Deus, que começa aqui na terra. Um lugar de justiça, onde todos sejam felizes.

O tempo foi passando. Reizinho continuou a fazer sua pastoral aos domingos. Sentia as dificuldades dos pobres daquela vila. Moravam em barracos e faltava-lhes o dinheiro para os alimentos. Reizinho e Toninho iam visitá-los e era gostoso ver a alegria deles, mesmo estando em dificuldades.

Na vila havia também, pessoas que viviam em casas confortáveis, cercadas por muros. E eles queixavam-se do medo da violência. Diziam haver bandidos no local, era preciso estar atento. Não era fácil ajudar as pessoas daquela vila. Quem tinha alguma coisa se isolava no seu canto. E quem não tinha nada era isolado no seu barraco. Era muito difícil tentar unir as duas partes.

Toninho dirigia momentos de oração naquela vila. Os participantes eram, quase sempre, algumas beatas e

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moças. Uma minoria da comunidade. Reizinho recordava seus sonhos. Sentia vontade de reunir toda a vila, para falar do Reino de Deus. Isso, porém, não era fácil e ele se fechava no seu canto, sem dizer nada.

Às vezes, alguém cobrava seu jeito quieto e ele se desculpava, dizendo que era assim mesmo. Toninho falava como se estivesse em casa. Era cheio de intimidades e as beatas gostavam dele. Toninho tinha facilidade para cativar as pessoas e Reizinho queria, algum dia, ser como ele. Mas, enquanto isso, portava-se como ajudante. Afinal, Toninho era o teólogo e sobre ele, caíam as maiores responsabilidades.

Na Semana Santa, os trabalhos na vila foram mais intensos. A comunidade se reuniu em maior número, para acompanhar os momentos de oração. Reizinho viu, pela primeira vez, quase toda a vila reunida e eram na maioria, pessoas simples.

Toninho parecia empolgado. Preparava com carinho todos os rituais. Durante a Via-Sacra, Reizinho foi pego de surpresa para comentar algumas estações. Fez alguns questionamentos para a comunidade e não gostou, quando Toninho riu de suas intenções. De volta ao Seminário, procurou esquecer de tudo.

Aquela comunidade era muito simples. Não devia ser questionada. Aquelas pessoas já tinham muitos problemas. Precisavam de consolos, não de questionamentos. Mas, Reizinho não gostava muito de ir àquela vila. Não tinha nada de interessante. Não havia, nem mesmo, um campo de futebol. As garotas dali, pareciam estranhas. Começou a achar um saco, fazer pastoral naquela comunidade.

E Reizinho comentava isso com os colegas, como se não houvesse nenhum problema. Falava também, dos sábados em que ficava sozinho no Seminário e podia sair sem ter ninguém para vigiar seu horário de volta. Falava dos lugares que ia, das garotas que conhecia e se orgulhava do privilégio que tinha. Às vezes, seus colegas lhe diziam para ter cuidado, porque suas atitudes eram observadas pela formação do Seminário. Qualquer deslize e ele, poderia ser mandado embora.

Reizinho, porém, sentia que estava fazendo sua parte. Esforçava-se para cumprir seus compromissos. Levantava cedo, juntamente com Nelson, e preparava o café para a Comunidade, antes de sair para as aulas. E as aulas da Universidade eram, também, complicadas para a sua cabeça. Antropologia Filosófica, Lógica e Teoria do Conhecimento, pareciam não dizer muita coisa para a sua vida. Reizinho viajava durante as aulas, pensando coisas distantes.

Nas tardes de sexta-feira havia as aulas de Psicologia da Personalidade. Eram três aulas seguidas, logo após o almoço. A professora começava a falar de Freud e logo, os alunos começavam a abrir a boca. Reizinho achava difícil os discursos daquela professora, e começava a cochilar. E os dias se passaram... Vieram os trabalhos e a prova. Afundou naquela matéria. Acabou ficando de prova final.

Passara em todas as outras matérias. Mas ficara agarrado nas teorias de Freud. Agora, teria que estudar umas oitenta páginas de um texto muito difícil. Reizinho leu uma vez e não entendeu nada. Era uma tarde de quinta-

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feira, véspera da prova. E aquela tarde foi linda como um sonho.

Estava começando a reler o texto, quando Nelson chegou acompanhado de uma garota.

- Esta é a Alessandra. Vai trabalhar aqui no Seminário. É muito linda, não é mesmo, Reizinho?

Era realmente linda. Reizinho sentiu como se tivesse encontrado a grande paixão de sua vida. Era uma garota, como tantas outras. Mas, ele sentiu algo diferente. Conversou com ela por alguns minutos. Era encantadora! Quando foi embora, deixou Reizinho com a cabeça nas nuvens e ele, ainda releu os textos de Freud.

***********************************************Os dias foram passando. O Flamengo estreou no

Campeonato Carioca de 1990 ainda sem poder contar com o Reizinho. Ele ainda não estava totalmente recuperado, e apesar da grande vontade de estrear, precisava ainda de mais algum tempo. Durante este período, saiu a lista dos jogadores convocados para a Seleção Brasileira, na qual também não constava o nome de Reizinho. Faltavam apenas quatro meses para a Copa do Mundo e ele, desesperado, sem saber se iria ou não disputá-la. Treinava com toda ansiedade do mundo. Era a necessidade de estrear no Flamengo, de mostrar serviço e ser convocado para a Seleção Brasileira. E assim conseguir a desejada transferência para o futebol europeu e ganhar os milhões de dólares, que lhe dariam segurança para pedir a mão de Daniela em casamento.

Durante os primeiros treinos coletivos, Reizinho sentiu uma dificuldade enorme na perna direita. Às vezes,

sentia que ela não era sua perna, que ela havia sido trocada. Passado algum tempo, aquela sensação foi desaparecendo e ele começou a treinar com mais desenvoltura. Porém, ainda, temia a dureza de uma partida. Tinha medo de que sua perna não estivesse colada totalmente e que uma nova pancada no local a quebrasse com facilidade. Mas, era preciso arriscar, precisava do futebol, era a sua profissão. E treinava com vontade, queria, de todas as formas, estrear logo, para poder ser chamado para a Seleção e garantir um lugar no time.

Reizinho dedicava-se totalmente ao trabalho. Chegava sempre na hora certa para os treinos. Sabia que aquele momento era decisivo em sua vida. Somente nos momentos de folga ia encontrar Daniela e ainda se policiava, tinha que ir para casa na hora certa. Era preciso descansar, para estar em forma no dia seguinte e treinar mais ainda do que no dia anterior. Sua vida estava totalmente controlada. Havia hora para tudo, mas ele estava contente. Sabia que precisava daquela disciplina, era o seu futuro que estava em jogo.

Finalmente, após um bom período de treinamentos, foi marcada a estréia de Reizinho no Flamengo. Estrearia num domingo, dia 12 de março, quando faltavam noventa e quatro dias para a estréia do Brasil na Copa do Mundo. E ele vivia com expectativa àquela estréia. Foram quase nove meses, afastado dos gramados. Finalmente iria voltar e estava se sentindo ótimo. Os treinamentos lhe deram confiança. Estava louco para começar a partida. Já não tinha mais dúvidas quanto ao sucesso da recuperação de sua perna e agradecia a todos que o ajudaram naquele

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trabalho, que o estava levando de volta aos campos de futebol.

A torcida do Flamengo lotou o estádio para ver a sua estréia. Reizinho foi bastante aplaudido ao entrar em campo. Com a camisa dez do mengão às costas, ele vibra e saúda a torcida. E a bola rola para Flamengo e Bangu, que disputam uma difícil partida pelo Campeonato Carioca. O Flamengo precisa vencer. Todos torcem por Reizinho, para que ele se sinta bem em campo e faça uma boa partida. Em campo, ele protege, de uma certa forma, a perna direita. Evita as divididas mais fortes, joga com um certo cuidado. Mesmo assim, consegue se destacar em campo. É habilidoso e acerta quase todos os passes. Em um passe de Reizinho, o Flamengo faz um a zero e todos o abraçam. A torcida o aplaude como se o gol fosse dele. Sente ali, que estava voltando com o pé direito e também, sente uma grande alegria por estar em campo de novo depois de tudo que passou. Saúda a torcida e volta para o meio de campo, para continuar a festa de sua estréia no Flamengo e de sua volta aos gramados.

Ao terminar o primeiro tempo, todos o cercam. Reizinho é só alegria, a sua estréia tinha sido ótima. Nem queria mais voltar para o segundo tempo. Queria era sair com sua namorada. Curtir aquele momento de glória, como a maior vitória de sua vida. E merecia, afinal, sentia que sua volta, não poderia ter sido melhor. Agora, era esperar os próximos jogos e a convocação para a Seleção Brasileira.

No jogo seguinte, Reizinho jogou melhor ainda. Fez o primeiro gol com a camisa do Flamengo e encantou a torcida. Dali em diante, cada jogo mostrava progressos

na recuperação do jogador, que aguardava, com ansiedade uma convocação para a Seleção Brasileira. Sentia que ela iria chegar. O que precisava era manter a calma e cuidar-se para que não houvesse outra contusão. Era preciso não se desesperar. Disputava as partidas de uma forma consciente. Evitava as divididas mais perigosas e procurava menos as jogadas individuais. Tocava a bola de primeira e armava as jogadas de ataque do Flamengo. Destacava-se pela eficiência nos passes, quase todos tinham um destino certo.

No Brasil, todos pediam a convocação de Reizinho. Era um ídolo e mesmo ainda não estando bem, fisicamente, era a maior esperança da nossa Seleção para aquela Copa. A Copa do Mundo que estava chegando e deixava o Brasil inteiro na expectativa de mais uma vez parar e torcer, para a conquista do mundo.

E o Brasil precisa ser campeão do Mundo! Precisa alegrar a torcida e fazê-la sentir que somos o melhor país. O País do Futebol, que seja o melhor futebol, mas que um dia seja também, o melhor país do mundo de verdade. Quando não mais houver famílias sem casas, nem crianças sem escolas e nem jovens sem trabalho. Aí sim, seremos de verdade, o melhor país do mundo.

***********************************************Naquela noite, Reizinho dormiu embalado por

sonhos que traziam a imagem daquela menina. Na manhã seguinte, mais calmo, leu mais uma vez o texto e, após o almoço foi fazer a prova. Eram somente duas perguntas e exigiam duas palavras. Duas palavrinhas em um texto de oitenta páginas. E ele não se lembrou delas. Aliás, nem Nelson se lembrou e foram reprovados.

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Foi a primeira vez que Reizinho sentiu a dor de uma reprovação e Padre Bianor queria saber o motivo. Mais uma vez, encontrou Alessandra, que já estava em sua sala de trabalho. Era muito linda! A garota mais linda que encontrara na vida. E Reizinho apaixonou-se por ela. Foi para as férias, disposto a esquecer, um pouco, o Seminário. Mas, não esquecia, um só minuto a sua nova paixão.

Os dias se passaram. Reizinho sentia-se feliz por estar em casa. Acordava tarde, saía um pouco pelas ruas e as horas voavam. Jogava futebol à tardinha e à noite, ia conversar com os amigos na praça. Todas as meninas que encontrava, o faziam lembrar de Alessandra. E ele já sentia saudades.

Logo, telefonou para o Seminário e perguntou por Alessandra. O porteiro disse que ela estava doente, não trabalhava a alguns dias e Reizinho ficou preocupado. Passou a ligar todos os dias, para saber notícias. Até que as férias se acabaram e ele voltou para o Seminário, ao mesmo tempo, em que Alessandra, também, retornava ao trabalho.

Ao chegar ao Seminário, Reizinho e seus colegas foram imediatamente para um sítio. Iriam fazer um retiro espiritual de três dias. Esses retiros aconteciam a cada seis meses e eram dedicados à reflexões. Para Reizinho eram dias chatos, em que sua liberdade ficava limitada. Porém, eram dias de confraternização entre os seminaristas. Todos pareciam mais unidos. Também eram bonitos os locais escolhidos. Lugares ótimos, junto à natureza, para se descansar e refletir sobre a vida.

Na volta do retiro, finalmente, reencontrou Alessandra. Estava mais linda do que nunca. Era dourada

como o sol! Reizinho estava encantado. E ela lhe disse ter sentido saudades. Ficaram conversando por um bom tempo. E o Seminário ficou muito mais bonito, com a presença de Alessandra.

Reizinho voltou a estudar na Universidade e a assumir as responsabilidades do Seminário. Todas as tardes, porém, tirava um tempinho para conversar com Alessandra. E logo, os comentários surgiram. Reizinho estava apaixonado e o Seminário todo sabia. Começaram a cobrar dele, que se afastasse de Alessandra. Porém, ele levava aquilo na brincadeira. Afinal, conversava com ela somente nos momentos de folga. Eram somente amigos.

Às vezes, Reizinho deixava seu lado brincalhão falar mais alto. Expunha aos colegas suas idéias malucas. E dizia que quando se tornasse um diácono, iria organizar uma greve entre os ordenandos, para pedir ao Papa que liberasse os padres do celibato. E aqueles momentos eram inesquecíveis.

E Reizinho foi proibido de conversar com Alessandra. Ao mesmo tempo em que Nelson desistira de viver no Seminário. Reizinho perdera o seu companheiro. Agora, teria de preparar o café da manhã e, arrumar a cozinha após o jantar sozinho. E o seu trabalho ficou muito mais pesado.

Reizinho não entendia a ordem de não poder conversar com Alessandra. Afinal, sentia viver em um Seminário progressista, em pleno ano de 1990 e, eram somente amigos. Quando a saudade apertava muito, ele passava apressado em frente à sala onde ela trabalhava. Quem ficava conversando com Alessandra, era o porteiro do Seminário, e também, o irmão Aluísio.

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O irmão Aluísio era um velhinho muito simpático e bom de garfo. Comia mais do que quase todos os seminaristas. Perdia somente para o Juliano. Gostara muito de Alessandra. Quando falavam dela, ele sorria de felicidades, ficava todo empolgado.

Alessandra era linda demais, para Reizinho. Sua vocação começou a balançar muito. Ainda mais, porque não gostara daquela idéia imposta, de que não podia nem ao menos, ser amigo dela. Reizinho levantava antes das seis. Enquanto a água fervia, ele buscava o pão e o leite. Fazia o café, tomava um gole e saía para a Universidade. Voltava para o almoço. Nas tardes de segunda e de quarta, não precisava voltar à Universidade. Eram os dias em que poderia conversar com Alessandra. Como não podia, ele lia algum livro ou, ouvia músicas. Era um momento livre. Não entendia o porquê de não poder conversar com sua amiga. Às quinze horas, havia um tempo de esportes, que também, era livre. E Reizinho jogava bola, mas preferia mesmo era bater um bom papo com Alessandra.

Às cinco da tarde, participava da Missa. Logo após, o jantar e Reizinho tinha que arrumar a cozinha. Não tinha mais o companheiro Nelson para ajudá-lo. Além dos pratos e talheres, haviam as panelas. Aliás, uns panelões. O jantar era requentado e o fundo das panelas ficavam queimados. Dava um trabalhão enorme para limpá-los. Começou a ficar revoltado, porque o trabalho dele tinha dobrado com a saída de Nelson e ninguém se prontificou a ajudá-lo. Começou a deixar algumas panelas de molho, para que os outros se tocassem de que ele precisava de ajuda.

A noite, Reizinho estudava e fazia os trabalhos da Universidade, quase sempre, com sono. Os trabalhos nunca

ficavam bons. Suas notas quase nunca passavam de sete, enquanto seus amigos tiravam nove ou dez. Às vezes, pensava ser menos inteligente do que eles ou, que os professores não gostavam dele. Mas deixava a vida correr...

***********************************************Os dias continuaram a passar. Reizinho continuava

apaixonado por Daniela e, quase louco, de ansiedade pela convocação que não chegava. Às vezes, pensava que a convocação não viria, que ele iria ficar de fora da Copa do Mundo e aquilo o desesperava. Desde que iniciara a carreira, que sonhava com o momento de entrar em campo e defender a Seleção Brasileira numa Copa do Mundo. A possibilidade de ter que esperar mais quatro anos lhe doía por dentro. Queria ser campeão do mundo e tinha que ser agora. Quatro anos até a Copa do Mundo seguinte, era muito tempo. Tempo que pode mudar tudo, destruir tudo.

No dia dezesseis de abril, Reizinho entrava em campo para disputar o primeiro Fla x Flu de sua vida. Um jogo que sem nenhuma dúvida, seria emocionante. Dois times tradicionais, disputando um clássico eterno, que envolve uma série de fenômenos e que por detrás da magia dos nomes Fla e Flu, agitam um país inteiro. E o Fla x Flu seria um jogo decisivo. Tanto para o Flamengo que brigava pela liderança do campeonato, quanto para Reizinho que tinha entre o público presente no Maracanã, o treinador da Seleção Brasileira a lhe observar. Sabia que era a sua grande chance. Talvez, a última chance de mostrar que estava recuperado e que poderia ser convocado sem nenhum receio. De repente, veio lhe à

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mente a imagem de todos os brasileiros, que, certamente, estavam torcendo por ele. Podia notar até na fisionomia dos seus adversários, que todos queriam que ele ficasse bom e jogasse a Copa do Mundo. O Brasil precisava de Reizinho, cabia a ele responder àquele chamado.

E o Fla x Flu novamente foi mágico. Mostrou para o Brasil, o milagre de um menino, que, de forma alguma, parecia ter quebrado a perna. Reizinho novamente jogava fácil. Tratava a bola com carinho, fazia tudo com ela. Muitas vezes, seus dribles pareciam mágicos, era como se a bola o obedecesse sem que ele precisasse tocar nela. Sentia durante o jogo, que seria convocado, que mais uma vez passara em um teste e, cada vez, que a torcida o aplaudia, ele se enchia de emoção. Daniela se fazia presente em todos os momentos da partida. Não esquecia dela um só segundo, em cada drible a imaginava sorrindo. Uma inspiração que o levava a esquecer o passado e viver aquele momento, onde era rei e sentia o prazer de estar livre e com seus dribles de menino, podia mostrar as pessoas um pouco do sabor da liberdade.

No dia seguinte, o treinador da Seleção Brasileira anunciou a convocação de Reizinho. Faltavam cinqüenta e oito dias para a estréia do Brasil na Copa do Mundo e a partir dali, ele se integraria ao grupo que estava treinando. Durante os fins de semana, ficaria liberado para jogar pelo Flamengo. Reizinho recebeu com euforia, aquele chamado. Era tudo o que lhe faltava naquele momento. Agora, era continuar se cuidando para que nada de ruim lhe acontecesse até o início da Copa do Mundo. O pesadelo da perna quebrada estava terminando. Voltara a jogar e estava novamente, convocado para a Seleção Brasileira. Sua vida

era só alegria. Jogava no Flamengo, tinha uma namorada linda e estava convocado para disputar a Copa do Mundo. Nada poderia ser melhor. Tinha conseguido tudo o que sonhara.

A vida seguia ótima, para Reizinho, que, a cada dia, sentia-se em melhor forma. Vivia a planejar as jogadas que iria executar na Copa e que, certamente, desmanchariam as mais sólidas defesas. Lembrava sempre das decisões que disputou e sorria ao relembrar dos momentos em que esbanjou talento. Agora, ele precisava enfrentar mais um desafio, o maior de todos e precisava de garra. A garra que o levou a enfrentar à infância pobre, o primeiro teste, as grandes decisões e a espera da recuperação de sua perna. E lutar contra os gigantes do futebol, que estariam em campo na mais fantástica das competições, o Campeonato Mundial de Futebol Profissional.

Flamengo e Vasco se classificaram para disputar a final do Campeonato Carioca daquele ano. Seria apenas um jogo. Apesar da insistência dos dirigentes da CBF, que queriam deixar à decisão para depois da Copa, para assim preservar os jogadores do Flamengo e do Vasco que estavam na Seleção, o jogo foi mantido. Assim, no dia quatorze de maio, à trinta e um dias da estréia do Brasil na Copa, Reizinho entra em campo para mais uma grande decisão.

Desta vez, ele parece estar do lado errado. Vestindo a camisa do Flamengo e tendo pela frente o seu time do coração, que buscava um tetra-campeonato inédito. Reizinho recorda a primeira vez em que enfrentou o Vasco e que não se sentiu bem. Porém, já tinha voltado a jogar

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contra o seu time e sentia que aquele trauma estava superado. Agora, era um verdadeiro profissional e seu único compromisso era com o Flamengo. Seu objetivo era ser campeão pelo Flamengo, ver aquela massa imensa gritar seu nome e depois, comemorar com Daniela.

As torcidas do Flamengo e do Vasco lotaram o Maracanã, para assistirem a grande decisão. A torcida do Flamengo fazia a festa, enquanto a do Vasco parecia indignada com a presença de Reizinho no time rubro-negro. Dentro de campo estava sendo disputado um jogão, digno de uma grande decisão. As jogadas eram disputadas com toda força possível, o que, inclusive, colocava em risco os jogadores que se preparavam para a Copa do Mundo. Às vezes, Reizinho ficava com medo, olhava seus ex-companheiros e sentia que, ali, eram inimigos e tudo o que eles queriam, era vê-lo longe de sua área. E o primeiro tempo termina com o placar de dois a um para o Flamengo, com dois gols de Reizinho.

No segundo tempo, o Vasco veio para tentar a virada e o Flamengo passou a jogar nos contra-ataques. Aos trinta e um minutos, o Flamengo tomava um sufoco do Vasco, o placar continuava dois a um, quando a bola é rebatida pela defesa rubro-negra e sobra para Reizinho, livre no meio de campo. Ele avança com velocidade, vê o goleiro saindo e toca por cobertura, fazendo um golaço e liquidando a partida. Comemora como nunca aquele gol e, ao final da partida, era novamente campeão. Campeão pelo Flamengo. E vibrava com a festa da torcida, nem se lembrava mais do tempo em que ficou parado. Novamente era campeão. Não importava se foi contra o seu time, era campeão e era tudo o que importava. O Flamengo era o

grande campeão do Rio de 1990, tendo em seu time o garoto Reizinho, que se transformara no novo ídolo da torcida rubro-negra. Ao lado de Daniela, ele comemorou àquele título e foram momentos inesquecíveis. Momentos onde havia o orgulho de ser campeão e a paixão por Daniela. Parecia ser o próprio dono do mundo, não lhe faltava nada.

***********************************************Na Comunidade, ninguém se tocou de que ele

estava sobrecarregado de trabalhos. Enquanto os demais estudavam ali mesmo, Reizinho tinha que andar um bocado. Esperava os ônibus, quase sempre, lotados e aquilo o deixava cansado. Pelo contrário, todos começaram a reclamar quando algumas panelas foram encontradas sem lavar. A empregada que vinha fazer o almoço e, que poderia lavar as panelas, já fáceis por terem ficado a noite toda de molho, também começou a colocar as mangas de fora e a reclamar dele. E Reizinho sorriu, quando padre Bianor disse que queria ter uma conversa com ele.

Padre Bianor falou tudo o que tinha direito. Falou das panelas, das suas notas na Universidade, da matéria que tinha sido reprovado, das suas roupas que eram velhas e até, da sua barba que não estava sendo feita regularmente. Reizinho sentiu-se revoltado, quando ouviu que, do seu jeito, ele não poderia ser nada na vida. E sentiu uma certa tristeza, quando padre Bianor disse que ele teria que sair, por um tempo, do Seminário. Que estava sendo um fracasso.

Antes de sair, porém, teria que falar com padre José e fazer alguns testes, que, talvez, o ajudassem na vida.

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Reizinho começou a sentir-se fora do Seminário. Teria que abandonar a Universidade e procurar trabalho. E as palavras de padre Bianor martelavam a sua cabeça. Do seu jeito, ele não poderia ser nada na vida, seria preciso mudar. E era melhor voltar para casa e, começar tudo de novo. Uma nova vida. Uma profissão mais simples. E, de uma hora para outra, viu seu sonho de ser alguém importante, ir por água abaixo.

O Seminário só o tinha machucado. A Universidade o fez questionar a religião, que mais lhe dava forças na vida. E Reizinho começou a achar o mundo injusto. Teria que esquecer Alessandra. Como sonhar com ela, se não teria chances de ser alguém importante. Nem teria chances de continuar estudando na Universidade. Era muito caro, morar naquela cidade grande e estava, ainda, no primeiro ano de seu Curso. A situação estava ficando difícil para ele.

Após uma semana de angústia, foi chamado por padre José, para fazer os testes. Eram testes vocacionais e, após três dias de quebra-cabeças, veio o resultado. Padre José disse a Reizinho, que ele apresentava sinais de uma vocação sacerdotal, surgida na infância. Aqueles resultados não podiam ser desprezados no Seminário. Assim, foi mandado, novamente, à presença de padre Bianor.

Padre Bianor disse a Reizinho, que ele teria uma nova chance. Porém, era preciso que mudasse seu jeito de ser. Era preciso uma melhor postura. Uma maior dedicação aos trabalhos. Teria que fazer ainda, uma terapia. Uma análise, para ajudá-lo nas mudanças necessárias. Tinha, também, que esquecer Alessandra. Padre Bianor deu-lhe,

ainda, algumas roupas. Como seminarista, tinha que ter uma melhor aparência. E Reizinho sorriu novamente.

Ficou empolgado com a nova oportunidade. Era preciso uma mudança rápida. Padre Bianor dissera que qualquer deslize e, ele não teria outra chance. E Reizinho passou a lavar as panelas com mais empenho. Passou a se dedicar mais aos estudos e à vida comunitária. Queria terminar seu Curso na Universidade e não podia perder aquela chance. Sentia, que nem queria mais ser padre. Mas queria aproveitar aquela oportunidade e mudar o seu modo de ser, para conseguir ser alguma coisa na vida. Todo esforço valeria a pena, já que se saísse dali, teria que trabalhar pesado. Era muito difícil conseguir um bom emprego e ele passou a se comportar no Seminário, como um bom menino.

Somente achava estranho não poder falar com Alessandra. Mas, não queria se complicar. Somente, às vezes, inventava uma desculpa e passava em frente à sala onde ela trabalhava. Alessandra parecia saber tudo o que acontecera. Era como se entendesse Reizinho. Olhava-o de cara fechada, como se não pudesse sorrir para não prejudicá-lo. E ele voltava triste para o seu quarto, pensando que ela não gostava mais dele. E o tempo ia passando devagarinho.

Reizinho começou a fazer análise. Falava, falava e falava em busca de respostas, que a sua analista parecia não ter. A vida no Seminário passou a ser mais difícil, devido à sua maior dedicação às tarefas. O Curso na Universidade também era prejudicado, devido ao pouco tempo para fazer os trabalhos exigidos. Os momentos de oração eram para ele, uma oportunidade para a busca de

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compreensão para o sagrado, que seus estudos questionavam. Na pastoral, não teve jeito. Não gostara mesmo daquela vila e, por fim, não quisera mais ir lá. Não via sentido, ficar refletindo com algumas beatas, enquanto a vila era cheia de pessoas carentes. E ele não podia fazer nada.

***********************************************No outro dia, Reizinho descansou como um herói.

Pensou na vida que estava lhe sorrindo e à noite, como de costume, foi encontrar Daniela. Daniela era tudo para ele, queria casar-se com ela e sentia que estava chegando a hora. Afinal, sua vida não podia estar melhor. Era campeão pelo Flamengo e iria disputar a Copa do Mundo. Certamente, iria chover propostas para levá-lo para o exterior, onde pretendia ganhar muitos dólares e acertar definitivamente a vida.

A princípio, aquele encontro parecia que ia ser igual aos outros, em que Reizinho se sentia o homem mais feliz do mundo. Porém, naquele encontro, havia algo errado com Daniela. Via nos seus olhos que ela queria dizer-lhe alguma coisa. De repente, Daniela começa a falar que não o ama, que não quer continuar o iludindo e que quer terminar tudo

Reizinho sentiu algo como uma facada no peito. Uma dor violenta invadiu seu ser. Por um momento ficou sem ação. Era como se fosse morrer. Voltou para casa, arrasado. Aquela noite foi a pior de sua vida. Não conseguiu fechar os olhos. Debatia-se numa dor imensa. Na manhã seguinte, andou horas e horas sem destino. Não foi treinar, não queria mais treinar. Não queria mais

disputar a Copa do Mundo. Lembrava de tudo o que fizera na vida, os títulos conquistados, a convocação para a Seleção Brasileira e sentia, que tudo aquilo não era nada se comparado aos seus sentimentos por Daniela. E ele não se conformava com a perda de Daniela. Para Reizinho, tudo estava perdido e nada mais importava na vida.

E aquele dia passou, e passou outro. Reizinho parecia ter perdido tudo, nada mais tinha importância para ele. A vida já não tinha sentido. Ser campeão do mundo já não lhe parecia importante. Tudo o que fizera, desde menino, foi se preparar para que um dia pudesse jogar na Seleção Brasileira e ser campeão do mundo. Agora, porém, queria desistir de tudo. Queria ficar só, a solidão que ele sempre fugira, agora parecia ser um remédio.

Logo, os dirigentes da Seleção Brasileira o procuraram. Queriam saber o porquê dele não ter ido se integrar ao grupo, que estava treinando. Reizinho não quis falar nada. Disse apenas, que não queria jogar mais na Seleção e que queria ficar só. Os dirigentes, logo perceberam que ele estava mal. Que sua namorada o havia deixado e tentaram convencê-lo, de todas as formas, a abandonar aquela idéia absurda de não querer disputar a Copa do Mundo. Falaram de tudo o que ele havia feito até chegar àquele momento. De todo um Brasil, que contava com ele e, de tudo o que ganharia com a Copa do Mundo. Além do mais, a sua namorada poderia voltar, ou ele poderia encontrar outra melhor ainda. Não havia nenhuma razão para abandonar todo um trabalho realizado. O que ele precisava, era botar a cabeça no lugar e ir treinar, já que, cada dia, ficava mais próxima a estréia do Brasil na Copa do Mundo.

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Reizinho, porém, não queria aceitar aqueles argumentos. Estava triste, precisava de um tempo. Uma quantidade enorme de repórteres e curiosos cercavam o seu apartamento, todos querendo uma explicação para o fato. E ele queria fugir de tudo aquilo, queria encontrar um lugar onde ninguém o incomodasse. Mais isso parecia impossível, pois o Brasil todo o conhecia e queria vê-lo na Seleção. Reizinho se desesperava ao sentir que toda uma multidão o pressionava e, se revoltava com a vida que não o deixava livre naquele momento de dor.

Trancado naquele apartamento, Reizinho viveu dias terríveis. Porém, o tempo foi passando e, devagarinho, ia levando a dor que sentia. Começou a pensar no que tinha acontecido e a buscar respostas que o devolvessem a vontade de viver e de jogar futebol. De repente, todos os sonhos que trazia desde a infância foram destruídos por Daniela. Era como se por detrás daqueles sonhos, se escondesse o sonho maior, que era o de encontrar um amor e Daniela o havia levado. Agora, jogar na Seleção Brasileira e ser campeão do mundo, já não era mais um sonho importante, pois o sonho maior estava perdido.

Assim, continuava com a idéia fixa, de não mais disputar aquela Copa do Mundo. Sentia que precisava de um tempo. Da forma como estava, ele só atrapalharia a Seleção. Não iria ajudar em nada, não tinha nenhuma motivação para jogar futebol.

Os dias continuaram a passar e, apesar da insistência dos dirigentes para que Reizinho esquecesse tudo e voltasse para a Seleção, ele continuava irredutível. Vivia mergulhado num vazio imenso e nada o fazia sair daquela situação. Quando sentia fome, saía para comer

alguma coisa e logo, era cercado pelas pessoas, que lhe perguntavam porque abandonara a Seleção. Ele respondia que não estava bem, que o seu estado de espírito iria atrapalhar o grupo da Seleção Brasileira e, pedia às pessoas que respeitassem o seu momento.

Numa noite, em que Reizinho estava assistindo televisão, o telejornal mostrou uma menina de nove anos que tinha uma doença grave. Precisava fazer um tratamento no exterior e, mais do que nunca, precisava de ajuda financeira. Naquele momento, Reizinho sentiu um nó na garganta, uma vontade imensa de chorar e durante toda a noite, aquela menina não lhe saía da cabeça. No dia seguinte ele levantou-se cedo, pegou o carro e foi até a casa daquela menina. Ao chegar ao local, encontrou Karina, uma criança que lhe sorriu e o olhou da mesma forma que os menores abandonados, que sempre encontrava nas ruas. E, naquele olhar, descobriu algo muito mais importante do que a namorada que ele havia perdido: aquela criança que queria viver e que precisava viver. Ficou, por um bom tempo, com Karina. Prometeu disputar a Copa do Mundo e todo o dinheiro que ganhasse, seria para ajudar no seu tratamento.

Reizinho já tinha um novo motivo para jogar futebol. Faltavam exatos, quatorze dias para a estréia do Brasil na Copa do Mundo e ele, mais que depressa, ligou para o treinador da Seleção. Disse que havia ficado bom e queria saber se, ainda, tinha um lugar para ele no grupo. Ouviu a resposta através dos gritos de euforia do treinador, que correu a espalhar a notícia. Naquele dia ainda, se apresentou ao grupo, disposto a recuperar os dias perdidos e a entrar em forma para a estréia.

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O Brasil inteiro vibrou com a sua volta. A Copa do Mundo já seria mais alegre, teria os dribles do garoto Reizinho. E ele, novamente, sorria. Um sorriso ainda marcado pela dor, mas sorria. E sonhava, sonhava com a conquista da Copa do Mundo e com o dia em que pudesse ver a saúde de volta àquela criança pobre. A partir dali, os dias voaram e Reizinho já estava na Copa do Mundo, na maior competição de futebol do mundo. E contava com a torcida de um Brasil imenso, um Brasil que precisava sorrir e, certamente, iria sorrir com cada gol da Seleção e com cada gol de Reizinho.

***********************************************

Padre Bianor, agora, parecia compreendê-lo. Elogiava seu novo comportamento. O tempo foi passando. Aproximaram-se o final do ano e as férias. Vieram também, as provas. Mais uma vez, Reizinho se encravou em uma matéria e ficou de prova final. Sofreu novas ameaças de padre Bianor. Se não passasse teria de arrumar as malas e deixar o Seminário. Fez aquela prova de História, sob uma pressão terrível. Era seu Curso todo que estava em jogo. Passou raspando e comemorou como nunca.

Naquele final de ano foram ordenados alguns padres no Seminário. Entre eles, o padre Tião Alves. Uma pessoa ótima, vivia sempre sorrindo. Reizinho sentia ser ele, um grande amigo. Houve uma grande festa na sua ordenação. Padre Tião iria substituir padre Bianor na formação da Comunidade de Reizinho. E ele achou ótimo,

tinha um certo medo de padre Bianor, que, dali em diante, seria somente o Reitor do Seminário.

Os seminaristas adoravam quando as ordenações eram em cidades pequenas. Tomavam conta da cidade. Eram muito assediados. As garotas gostam muito de seminaristas. A maioria arrumava uma namoradinha e tudo era alegria. Na volta ao Seminário, não faltavam as estórias de cada um. Nestes momentos era muito bom ser seminarista.

Reizinho foi para sua cidadezinha passar as férias. Todas as terças, porém, voltava ao Seminário para fazer sua análise. Aproveitava a ausência de padre Bianor, de férias na Europa, e se aproximava de Alessandra. Conversavam muito. Era apaixonado por ela. Na sua análise falava de Alessandra, buscando uma resposta para tão grande paixão. Achava até que ela poderia ter sido seu grande amor em vidas passadas, embora não gostasse dessa teoria. Talvez, Alessandra seria mesmo, sua alma-gêmea. Assim, começava a sentir que não poderia ser padre. Mas teria que continuar no Seminário e estudar para crescer na vida. E um dia, ter um bom emprego e casar com Alessandra.

Ao começar as férias, quem apareceu na cidade de Reizinho foi Marina. Aproximou-se dele, como se nem soubesse que era um seminarista. Ele, também, não quis contar e ficaram juntos. Marcaram de se encontrarem novamente, no dia seguinte. Reizinho, porém, não foi a esse encontro. Era um seminarista, mesmo consciente de que dificilmente iria ser padre. Lembrava-se das palavras de Dom Henrique. Era preciso comportar-se como se não fosse sair nunca do Seminário. Dias depois, se encontraram

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na rua e Marina desviou-se dele. Nunca mais conversaram. E o tempo passou...

As férias se acabaram e Reizinho voltou para o Seminário. Da Comunidade saíra Gilvã e entrara Ferreira. Ferreira era um moreno bom de bola, e muito paquerador. Tornou-se um grande amigo para Reizinho. Gostavam de sair juntos e tomar uns goles. O novo formador da Comunidade era o padre Tião Alves. Um padre amigo e muito menos exigente do que padre Bianor. E a vida continuou como antes. Reizinho levantava cedinho e preparava o café para a Comunidade, antes de sair para a Universidade. À noite, arrumava, com cuidado, a cozinha. Queria fazer tudo certinho para não arriscar a sua permanência no Seminário.

Um dos maiores problemas de Reizinho, era a falta de fé nas coisas da Igreja. Perdera-a na Universidade e nem as Missas e as orações de todos os dias no Seminário, aquietavam o seu coração. Seus formadores e seus colegas, pareciam não ter argumentos para convencê-lo a querer ser padre. E a vida de Reizinho parecia não ter muito sentido no Seminário.

Achava que Alessandra era o que tinha de mais importante na vida. Via nela a presença de Deus. Reizinho achava o mundo injusto e a Igreja Católica omissa, no sentido de ajudar as classes menos favorecidas. Tinha, porém, que esconder todos os seus pensamentos. Dependia do Seminário para estudar e tinha que seguir seus regulamentos.

Continuava a evitar Alessandra, mas acreditava que era só por um tempo. Queria terminar seu Curso, deixar o Seminário e arrumar um emprego. Queria casar com

Alessandra. Era um sonhador, acreditava no destino. Tinha que dar tudo certo.

Reizinho foi fazer pastoral em outro bairro. Desta vez, adorou a nova comunidade. Teria Mazinho, como companheiro. Era alguém com os mesmos estudos que ele. Teria mais liberdade para expressar suas idéias. Toninho era, quase, um padre e Reizinho ficava inibido diante dele. Com Mazinho seria diferente, não precisaria sentir como se fosse um coroinha.

Era um bairro bem afastado do centro da cidade. Tinha um jeito de cidadezinha do interior. Pessoas muito simples, que logo cativaram Reizinho. Havia um ar de família em cada casa daquele bairro. Fez muitos amigos. Adorava os finais de semana que ali passava.

Saía do Seminário nas tardes de sábado. Eram dois ônibus até o bairro e Reizinho chegava contente. Visitava algumas famílias e dormia numa casinha que ficava ao lado da igreja. Não gostava do cemitério que ficava em frente. Mas, adorava as refeições, que eram feitas a cada semana em uma casa diferente. As famílias preparavam com carinho as refeições. Mesmo nas casas mais simples, se fazia um banquete para receber Reizinho e Mazinho. Havia um carinho enorme da comunidade para com os seminaristas.

A pastoral, além das visitas, tinha a Missa nas manhãs de domingo, como prioridade. Era uma comunidade de aparência unida. A igreja ficava sempre lotada. Os aniversariantes eram comemorados. Havia, realmente, uma vivência de fé naquele meio. Reizinho adorava passar o domingo ali. Era gratificante.

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No Seminário as coisas mudaram para melhor. Padre Tião não era tão exigente quanto padre Bianor. Reizinho confiava nele. Já não sofria tanta pressão. Estava tendo um bom relacionamento com os colegas. O mais difícil era Benjamim, que tinha um jeito mimado e gostava das coisas ao pé da letra. Reizinho, às vezes, se irritava com ele. Mas tudo passava. Na Universidade ia tudo muito bem. Esforçava-se para não ficar novamente, nas provas finais.

***********************************************Dia quatorze de junho de 1990, o Brasil pára por

alguns momentos, a fim de acompanhar a estréia da Seleção na Copa do Mundo. Os times de Brasil e Escócia entram em campo e se preparam para começar a partida. Reizinho está em campo, emociona-se ao ouvir o Hino Nacional e acena para um Brasil inteiro, que está diante da televisão. Naquela partida ele reencontra o prazer de jogar futebol. Por um momento esquece tudo o que aconteceu e corre pelo gramado. Ao final da partida, a festa do Brasil, que venceu por cinco a zero, mostrando toda a força do nosso futebol. Reizinho marcou três gols e saiu na frente da briga pela artilharia. O país inteiro começava a acreditar na Seleção, que estreara com um show de bola e encantara o mundo com um futebol-arte. E Reizinho sorria, tentando cobrir o vazio deixado por Daniela.

Dia dezoito de junho, o Brasil enfrenta a Suécia na sua segunda partida pela Copa do Mundo. Mais uma vez, os olhos do mundo inteiro se voltam para o garoto Reizinho, que veste a camisa dez do Brasil. E ele não decepciona, marca dois gols e ajuda o Brasil a conseguir

mais uma vitória, agora por cinco a um. É novamente festa no país do futebol.

Dia vinte e dois de junho, o Brasil enfrenta o México na última partida da primeira fase da Copa do Mundo. Reizinho dá um show de bola e marca cinco gols, na vitória de seis a zero da Seleção Brasileira. O mundo parecia não acreditar naquele menino que corria por todo o campo e que driblava com uma força incrível. Com a vitória, o Brasil ficou em primeiro lugar no seu grupo e o país inteiro caiu no samba. Reizinho, agora, teria seis dias para se recuperar das pancadas e enfrentar uma nova batalha. A partir dali, os jogos seriam decisivos e as Seleções, mais fortes. O Brasil inteiro acreditava na Seleção, que estava jogando por música. O único medo era a violência. A violência que poderia parar Reizinho e calar um mundo sedento de dribles e de liberdade. Liberdade que vêm do vôo dos pássaros e dos craques.

Dia vinte e oito de junho, Brasil e Holanda se enfrentam disputando uma vaga para a fase seguinte da Copa do Mundo. Um jogo difícil, onde as jogadas eram disputadas com o maior rigor possível. Trinta e dois minutos do segundo tempo, o Brasil perdia por dois a um, quando a bola é cruzada da ponta direita. Reizinho mergulha e toca de cabeça na bola que entra no ângulo, empatando o jogo. Logo depois, ele bate uma falta e vira a partida. Final de jogo.O Brasil vence por três a dois, com dois de Reizinho e o país todo comemora a classificação. Reizinho vencera mais uma etapa, saíra de campo inteiro, apesar das faltas violentas. Vinha sendo o grande destaque da Copa do Mundo e recebia diversas propostas para deixar o Brasil. E ele não estava bem, sentia um vazio

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enorme na sua vida, queria ir embora. Decidiu que iria jogar na Itália, após a Copa do Mundo, só faltava escolher o Clube. Com certeza iria ganhar milhões de dólares, quem sabe não seria feliz com eles?

Dia dois de julho, Brasil e Itália disputam uma vaga para a fase semifinal da Copa. O Brasil faz uma excelente partida e vence por quatro a zero, com três gols de Reizinho, que brilha como o grande artilheiro da Copa do Mundo. A torcida faz uma nova festa. Reizinho esquece um pouco as tristezas e comemora com os companheiros. Ele desmontara totalmente a marcação italiana. No final da partida, foi aplaudido por todo o estádio. Emocionava-se, ao lembrar de Karina, a menina que precisava dele. Certamente era a sua maior torcedora e não poderia decepcioná-la, tinha que ser campeão.

Dia cinco de julho, Brasil e Inglaterra entram em campo para disputar uma vaga para a grande final da Copa do Mundo. Reizinho vive a expectativa de mais um grande jogo. A notícia de que o Milan da Itália, ofereceria após a Copa, uma quantia irrecusável por seu passe o deixara numa grande ansiedade. Queria ir embora, deixar o Brasil em busca de novos sonhos e a possibilidade de ir jogar no Milan era fantástica. Durante o jogo, Reizinho fez de tudo. Correu como nunca, marcou um gol de placa e ajudou o Brasil a segurar o placar de um a zero. Com este resultado o Brasil estava classificado para disputar a grande final. O país inteiro caiu no samba. Reizinho também vibrou muito, estava em mais uma decisão e, desta vez, seria a mais importante da sua vida, a final da Copa do Mundo.

E Reizinho, mais uma vez, se preparava para uma decisão. Todos sentiam que ele não estava bem. Ainda não

se conformara com a perda de Daniela. Mesmo assim, era o craque da Copa do Mundo, o grande destaque até aquele momento. Jogara bem em todas as partidas. Em seis jogos, marcara dezesseis gols. Sempre que entrava em campo ele se transformava. Queria ser um eterno menino, driblar a fome, driblar a dor e driblar tudo aquilo que o rejeitava. Quando entrava em campo ele esquecia o passado ou, quem sabe, sentia-se no passado e podia correr atrás de algo que perdera. Reizinho precisava encontrar uma saída. E buscava-a, corria como um louco, tinha o apoio de um Brasil inteiro que estava torcendo por ele. Agora, era entrar com tudo na grande final e ser campeão do mundo.

***********************************************O tempo passava e Reizinho continuava gostando

de Alessandra. Um dia, ao passar pela sala onde ela trabalhava, recebeu um bilhete. Alessandra dizia que não iria mais trabalhar ali, mas queria continuar sendo sua amiga. Pedia a Reizinho que ligasse para a sua casa, sempre que sentisse saudades.

Reizinho sentia saudades de Alessandra, a cada instante. Quase sempre, dava uma fugidinha do Seminário e telefonava para ela. Dizia coisas bonitas e ouvia outras, ainda mais lindas. Adorava aquela menina! Sentia que ela também gostava dele. E confiava no destino. Acreditava que um dia, ele iria uní-los para sempre.

No Seminário, Reizinho acabou arrumando mais encrencas. Numa manhã de sábado, ele saíra. Não tinha nenhum compromisso e fôra até o centro da cidade, dar uma espiada no movimento. Ao voltar, soube que padre

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Bianor tinha procurado por ele. E não o encontrando, ficara muito bravo.

Reizinho foi falar com padre Bianor e, ele estava uma fera. Foi logo o levando até o quintal e mostrando-lhe uma grande área, onde haviam sido plantadas, mudas de laranjeiras e precisava de limpeza. Disse-lhe, que dali em diante, ele seria o responsável pela capina daquela área. E aquilo levava dias de trabalho. Era uma espécie de grama, dura de se cortar e que crescia muito. Dali em diante, quase todos os momentos de folga, Reizinho passava ali, no cabo da enxada. E sorria, imaginando que estavam de marcação com ele. Afinal, eram quase cinqüenta seminaristas e ele, trabalhava ali sozinho. Mas trabalhava contente. Imaginava sair dali um dia e dar a volta por cima. Já não acreditava mais nas palavras de padre Bianor, que dissera um dia, que do seu jeito não seria ninguém na vida. E lutava por seus sonhos.

Às vezes, Reizinho sentia vontade de sair mesmo do sério. Seu companheiro era o Ferreira. Saíam pela cidade e tomavam todas. Voltavam de madrugada. Entravam em casa, evitando fazer barulho. E era difícil subir as escadas depois de muitas doses. Foram muitas manhãs de ressaca e muitas aventuras. Entre elas, Reizinho não esquece um show do cantor Zé Ramalho. Assistiram no maior pique. Ferreira era um grande companheiro nas farras.

O tempo passou e Reizinho fechou mais um período na Universidade. Vieram as férias e o merecido descanso. Mesmo assim, voltava todas as semanas ao Seminário. Havia a terapia, eram duas sessões por semana. Reizinho gostava. Esperava um dia, encontrar uma

resposta para suas dúvidas. Uma resposta que o fizesse compreender o porquê de suas limitações.

Ao voltar das suas férias foi preciso trabalhar duro, para capinar o mato que havia crescido em volta das mudas de laranjeiras. Logo, uma greve paralisou a Universidade. Sem aulas era moleza cumprir as obrigações do Seminário. Foram uns quarenta dias de greve e Reizinho, já não agüentava mais a falta das aulas. Os dias se tornaram monótonos. Era muito chato não ter nada para fazer. Queria ir para casa e não podia, por causa da vida em comunidade.

Finalmente, depois de reclamar um pouco, Reizinho ganhou uma semana de folga. Era a semana do seu aniversário e, ela passou voando. Num instante chegou o dia de voltar para o Seminário. Não havia ainda, previsão para o fim da greve. Mas, havia uma viagem marcada de todo o Seminário, para um encontro com o Papa.

Este encontro seria em Brasília. Reizinho e todos os outros seminaristas aguardavam a viagem com muita expectativa. Danilo, fã número um do Papa, era o mais empolgado. Queria até conseguir um autógrafo. Alguns levaram máquinas fotográficas e muitos filmes para as fotos. O Papa era especial para os seminaristas. Muitos queriam mesmo, era que ele liberasse os padres, para que pudessem se casar.

Foram dezessete horas de viagem, muitos sanduíches e muitas frutas. Alguns passaram mal. O primeiro foi o irmão Aluízio, comera demais. E todos brincavam e cantavam durante a viagem, até que chegaram a Brasília e ficaram hospedados em um colégio. Padre Bianor tinha ali, muitos parentes e amigos, e os

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seminaristas foram muito bem recebidos. Almoços, churrascos e muitas cervejas. Reizinho sentia-se empolgado.

Visitaram o Museu, a Catedral, e passearam pelas ruas. Reizinho ficou emocionado ao ver o Papa descendo a rampa do Palácio, ao lado do presidente Collor e de Dona Rosane. Gostou muito dos passeios que fizeram às cidades vizinhas. Visitaram uma seita, onde centenas de pessoas viviam em comunidade, com roupas coloridas. E finalmente o encontro com o Papa. O encontro realizou-se em um grande colégio. Reizinho se empolgava ao ver, presentes ali, os seminaristas de todo o Brasil. Alguns conservadores pareciam felizes com suas batinas. E fazia um calor enorme. Quando o Papa chegou, todos se reuniram em torno de um palanque. O Papa falou, durante um bom tempo. Reizinho ficou atento ao início do seu discurso. Porém, era difícil compreendê-lo. Por fim, lembrava-se de Alessandra. Sentia muitas saudades...

***********************************************Dia nove de julho, Brasil e Alemanha entram no

gramado para disputar a grande final da Copa do Mundo de 1990. Reizinho, com a camisa dez às costas, carrega a esperança de milhões de brasileiros. Seus companheiros pareciam eufóricos, com a possibilidade de conquistar a Copa do Mundo. Para ele, era mais uma decisão, a primeira em que não se sentia bem e nem a provável proximidade de uma grande festa, após a conquista, o deixava feliz. Sentia-se um solitário, em meio a milhares de pessoas que se encontravam no estádio e a milhões de pessoas espalhadas por um Brasil inteiro, que dariam tudo

para poder abraçá-lo. Ele, o ídolo de milhões de pessoas, estava se sentindo só e havia um enorme vazio em sua vida.

Mais uma vez, Reizinho olha por todo o estádio, que estava lotado. Pensa na responsabilidade de defender o Brasil. Lembra de Karina, o motivo pelo qual aceitou disputar aquela Copa. Levanta os olhos para o céu e pede as bençãos de Deus. Era hora da bola rolar, momento de esquecer tudo e jogar futebol. Jogar como se ainda estivesse na infância, disputando uma pelada com os amigos e precisasse esquecer que não estava podendo freqüentar a escola e que não teria presentes no Natal. Jogar pelo prazer de dar um passe a um amigo e receber de volta. Jogar pelo prazer do gol e do grito que pode abrir um novo caminho.

No início do jogo os dois times tocam a bola, preocupados com a possibilidade de tomar um gol, logo de saída. Os vinte e dois jogadores pareciam nervosos com a importância da partida. Reizinho logo percebe que terá de encarar um alemão enorme, que o marca por todo o campo. Desloca-se por toda a parte, tentando enganar a marcação, mas o alemão é atento e o segue a todo momento. Tenta o primeiro drible e perde a bola. Porém, na segunda tentativa de drible, o alemão fica sem ação e só pode olhar Reizinho, que parte para o ataque. Pouco depois, a Alemanha faz um a zero. O Brasil se descontrola em campo e quase toma o segundo.

Reizinho volta para ajudar os companheiros. É preciso garra e o jogo prossegue com a reação da Seleção Brasileira, que parte em busca do empate. O Brasil perde um gol, e perde outro. A Alemanha manda uma bola na

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trave e o jogo continua quente. Aos trinta e sete minutos, Reizinho pega um rebote na entrada da área e manda uma bomba. A bola bate no travessão e entra, para a vibração do Brasil inteiro. O primeiro tempo termina com o placar de um a um.

Após o intervalo, as duas seleções retornam ao campo de jogo e recomeçam a partida. Aos dez minutos, o Brasil manda uma bola na trave, para desespero da torcida. Aos vinte e cinco, a Alemanha desempata e cala mais uma vez, um país que sofre de Norte a Sul. Reizinho se entristece. Aquele gol dificultava tudo, os companheiros pareciam preocupados com a derrota eminente. Era preciso reagir. A partir dali, a Alemanha recuou, fechou-se toda para tentar segurar o resultado. O Brasil tocava a bola, mas não conseguia aproximar-se da área alemã. Reizinho começa a tentar as jogadas individuais. Dá dribles sensacionais, quase sempre é derrubado. Aos trinta e dois minutos, ele cobra uma falta no travessão e sente ali, que não era dia do Brasil. Aos trinta e nove, entra driblando na área, quando vai marcar o gol é derrubado e o juiz marca pênalte, para delírio dos brasileiros.

Os alemães catimbam a cobrança. Reizinho sente que aquela pode ser a última oportunidade do jogo. Se perder, tudo vai por água abaixo. Ajeita a bola com carinho, olha para o goleiro, sente que está no momento mais sério de sua vida e decide bater forte, com toda a força que puder e, se possível, acertar o ângulo. Há uma expectativa enorme no mundo inteiro. Toma uma grande distância, diferente de todas as vezes em que batera pênaltes. O mundo inteiro percebe a tensão no seu rosto, o Brasil fica numa torcida enorme e ele parte em direção à

bola. Chuta forte, o goleiro não consegue nem ver a bola, que quase fura a rede. Reizinho é abraçado pelos companheiros, numa festa que se estende ao país inteiro. Alguns minutos depois, a partida termina e o placar registra dois para o Brasil e dois para a Alemanha. Será necessário uma prorrogação de trinta minutos e, quem sabe, uma decisão por pênaltes.

Novamente, as Seleções de Brasil e Alemanha estão em campo, para continuarem a partida. A Seleção Brasileira toca a bola, tentando envolver a Alemanha, que tem uma seleção forte e ameaça a todo instante a área do Brasil. Aos cinco minutos, Reizinho recebe uma bola nas proximidades da área. Faz a tabela com o centroavante, entra livre e toca na saída do goleiro, fazendo três a dois para a Seleção Brasileira. Os jogadores vão à loucura, juntamente com milhões de brasileiros. Pela primeira vez na partida, o Brasil está na frente e tenta de todas as formas manter a vantagem e esperar pela passagem do tempo. O tempo que, agora, se mostra numa lentidão terrível, era como se os ponteiros do relógio tivessem diminuído a marcha. Finalmente terminam os quinze minutos iniciais da prorrogação. Agora, faltavam os quinze minutos finais e a ordem para o time era manter a calma e segurar a partida a qualquer preço.

O jogo recomeça com uma pressão terrível da Alemanha. Três minutos, a Alemanha ataca pela esquerda. De repente, o lateral direito do Brasil rouba a bola. Vê Reizinho no meio do campo e arrisca o passe. A bola chega até ele, que domina, gira o corpo e escapa do seu marcador. O outro defensor vem com tudo, na tentativa de pará-lo e leva um drible sensacional de Reizinho, que

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escapa da falta e dispara na direção do gol. O goleiro surge desesperado, é driblado. E Reizinho vê o gol vazio à sua frente, toca rasteiro e acompanha a trajetória da bola até o fundo da rede. Naquele momento sentiu que tudo tinha valido a pena. A vida lhe sorriu novamente e ele correu em direção à torcida. Caiu de joelhos, levantou os braços para o céu e logo sentiu o calor humano dos companheiros que saltaram sobre ele. Voltou para o meio de campo chorando. Lembrou de um Brasil inteiro que estava feliz. Faltava pouco para ser campeão do mundo.

O Brasil recua. Os jogadores começam a sentir o sabor do título. Reizinho grita, diz que ainda falta muito e pede garra aos companheiros. Volta para a defesa, dá carrinhos, chutões e torce para o tempo passar. No Brasil a euforia toma conta das pessoas e em campo, o menino Reizinho já não pensava em mais nada, estava feliz por jogar futebol. E jogava com a força de um gigante e uma garra maior ainda. Cada dividida era encarada como se estivesse defendendo a própria vida. Toda a luta para recuperar a perna quebrada, para conseguir esquecer Daniela e para vencer os adversários, parecia recompensada. E ele partia com o coração na chuteira, para disputar mais uma jogada.

O Tempo vai passando, faltavam três minutos e a Seleção brasileira continuava vencendo por quatro a dois. Reizinho começa a sentir que os alemães estão perdidos, e começa a sorrir de alegria pelo título que se aproxima. Ele é campeão do mundo! O garoto que, um dia, chegara ao Tupi assustado, com medo do teste, agora era campeão do mundo e artilheiro da Copa. Marcara vinte gols, jogara um

futebol buscado na força do coração, na vontade de ir além dos limites e derrotar tudo.

Um minuto apenas, faltava para o fim do jogo. Reizinho vai para mais uma dividida e ganha a jogada. Ainda não dera tempo de dar o passe, quando um alemão vem com tudo e acerta uma pancada violenta no seu joelho esquerdo. Reizinho caiu sentindo uma dor terrível e rola pelo gramado, em meio a um estádio que ficara calado, sentindo a gravidade da sua contusão. Os jogadores da Seleção se desesperam. É retirado de maca, ao mesmo tempo em que o juiz expulsa o jogador alemão e termina a partida. O Brasil é campeão mundial de 1990! Os jogadores, ainda abalados pelo que acontecera, vão até Reizinho que sorri em meio às dores e agradece a cada companheiro pelo título. O país, por um momento, esquece Reizinho e começa um carnaval de Norte a Sul e de Leste a Oeste. Por toda a parte há um brasileiro sorrindo, enquanto ele é levado para uma ambulância.

E o menino Reizinho é impedido de pular e abraçar os companheiros, como fazia após o término das decisões. Tinha conquistado o seu título mais importante e não podia levantar. Estava preso em meio a dores terríveis. E era um menino campeão do mundo, que respondera sim a cada cobrança e fizera de cada drible, um limite a menos na luta pela vida.

E era um menino, que o poeta permitiu voar até o fim da poesia, sorrir em um mundo que o fizera triste e encontrar a liberdade em um mundo que cobra cada espaço...

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De volta ao Seminário, a vida seguiu. Finalmente a greve acabou e as aulas voltaram. Com elas, os dias eram mais divertidos. Não ficava o tempo todo no Seminário. Era gostoso ir para a Universidade, encontrar outros amigos e ver um montão de meninas diferentes.

Reizinho adorava também, quando chegavam os fins de semana e ia, com Mazinho, para a pastoral. Adorava aquele bairro, que lembrava um pouco sua cidadezinha. Aos poucos foi fazendo amigos e pensava até em se mudar para lá, quando deixasse o Seminário. Ali, havia também, muitas garotas bonitas, que abalavam o restinho da vocação de Reizinho. Mas, ele amava Alessandra...

Um dia, telefonou para Alessandra e se surpreendeu com um convite para ir à sua casa. Não resistiu e, meio sem jeito, passou toda uma tarde com a família de Alessandra. Ficou mais apaixonado ainda. Chegou ao Seminário atrasado para a oração. Disse ter ido fazer um trabalho da Universidade, na casa de um amigo. E nunca mais esqueceu aquele dia. Alessandra era a menina mais linda do mundo. Reizinho tirava do seu sorriso, a força para vencer suas dificuldades na vida.

A cada semestre, acontecia no Seminário, o encontro dos pais dos seminaristas. Era um fim de semana em festa. Havia brincadeiras, orações e muitas homenagens aos pais. Eles adoravam, pareciam orgulhosos de seus filhos. Alguns eram de uma simplicidade enorme e logo, tornavam se alvo de brincadeiras e apelidos. Mas, o melhor dos encontros, eram as irmãs dos seminaristas. Algumas eram lindas, deixavam o Seminário mais bonito. E Reizinho ficava feliz...

O pai de Reizinho não perdia um encontro. Gostava muito das apresentações dos seminaristas, que se transformavam em artistas. Cantavam, tocavam instrumentos, contavam piadas, faziam teatro e tudo era alegria. O Seminário, nesses dias, ficava cheio de crianças, jovens, adultos e velhos. Parecia uma grande família.

Naquele final de ano, a Comunidade de Reizinho, ainda foi fazer outro passeio. Desta vez, para o litoral do Espírito Santo. Foram alguns dias de pura magia, à beira do mar. Dias em que os seminaristas esqueciam, um pouco, suas obrigações e curtiam momentos de puro encanto. Não faltavam as cervejinhas e os suspiros, diante das garotas de fio dental.

Padre Otávio estava com eles naquele passeio. A Comunidade de Reizinho, exceto Ferreira, iria subir de posto e padre Otávio seria o formador, a partir do ano seguinte. Era uma oportunidade para começarem a se entrosar. Reizinho, porém, tinha um certo receio em relação a ele. Mesmo assim, saiu à noite. Saiu só, seus amigos preferiram ficar em casa. E achou linda a noite na praia.

Na viagem de volta, Reizinho imaginava tudo o que ia perder, quando saísse do Seminário. Os passeios e o reconhecimento das pessoas. O povo gosta muito de padres e seminaristas. Sentia-se triste por perder essas coisas. Mas, ele amava Alessandra. Achava que viver sem ter uma companheira era muito triste. Achava injusto, os padres não poderem se casar. E tinha que esconder todos os seus pensamentos. Precisava estudar e dependia do Seminário.

No Seminário, seus colegas entraram de férias. Reizinho ficou, por causa da greve. Tinha que repor as

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aulas perdidas. Os padres viajaram. A casa ficou enorme e silenciosa. No prédio grande, ainda, haviam ficado outros dois seminaristas, o irmão Aluísio e o porteiro. Era um consolo. Às vezes, Reizinho sentia-se feliz com isso. Não tinha mais nenhum horário para cumprir. Podia sair à noite e voltar na hora que bem entendesse. Era muita liberdade para um seminarista.

Certa noite, estava assistindo televisão no andar, que ficava no térreo do predinho. De repente, ouviu passos na escada. Pensou que fosse algum seminarista que tivesse chegado, seus colegas tinham cópias da chave. Os passos passaram em frente à sala, onde se encontrava e desceram para a cozinha. Teria ido comer alguma coisa? Reizinho ficou esperando, só que ninguém voltou. Foi até a cozinha e não havia nenhum sinal de que alguém estivera ali. Pensou que o lugar estivesse mal-assombrado e saiu correndo para o prédio grande, onde estavam Tadeu e Danilo, além do porteiro e do irmão Aluísio. Contou a eles o que ouvira e todos sorriram. Reizinho, porém, não quis voltar para o predinho. Dormiu ali, tentando encontrar uma resposta para aqueles passos.

No dia seguinte, contou aos outros empregados e logo, aquilo virou uma piada. Naquele dia chegaram um montão de garotas, que iriam fazer um curso. O Seminário, às vezes, era alugado para a realização de encontros e cursos. Aquela mulherada fez com que Reizinho esquecesse, um pouco, as assombrações. À noite, porém, preferiu dormir no prédio grande, não quis se arriscar. No outro dia, levou à questão para sua psicóloga. Queria uma explicação, mas não encontrou nenhuma. Resolveu encarar o problema. Mesmo com medo, dormiu sozinho naquele

predinho. E a noite se passou tranqüila, graças a Deus. Mas, Reizinho nunca encontrou uma resposta para aqueles passos.

Por um lado, aquilo era bom. Deixava em dúvidas, toda a ciência da Universidade. A vida não era de toda explicada. Mas, os dias se passaram e tudo foi sendo esquecido. Veio o Natal. Reizinho ganhou uma folga e viajou para sua cidadezinha. Viveu dias felizes. Tomou muito vinho e um Ano Novo chegou, trazendo muitos sonhos. E Reizinho voltou para o Seminário. Era preciso terminar o período, atrasado pela greve, na Universidade.

***********************************************Reizinho é examinado e os médicos percebem a

gravidade da sua contusão. Logo, é levado aos Estados Unidos para se submeter a uma cirurgia. Sob um clima de enorme tensão, ele é operado e logo após, volta a si, caindo numa depressão terrível. Era campeão do mundo, via pela televisão, as imagens da festa no Brasil. Seus companheiros recebendo as maiores homenagens e ele, deitado naquele hospital solitário. As imagens do jogo com a Alemanha voltam à sua cabeça e o machucam. Estava bem, estava adorando aquela partida. Estava recuperando a alegria de viver e no último minuto, aquele acidente lhe tira todo o prazer. Iria acertar com o Milan, ganhar bastante dinheiro, morar na Itália e, agora, nem sabe quando poderá voltar a jogar futebol. Queria estar no Brasil, participar com os companheiros das comemorações e, no entanto, somente podia ler os telegramas que chegavam até ele. Pelo menos era lembrado, recebia mensagens de todas as partes do mundo, desejando-lhe

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melhoras e o parabenizando pelo título. Mas estava só e aquilo causava uma dor forte no seu coração. Reizinho estava só e era a pior dor do mundo.

Naquele hospital, Reizinho viveu dias de angústia. Dias em que pôde recordar toda a sua vida, olhar todo um passado e sentir todos os limites da existência humana. Lembrou da sua infância, da sua família, dos amigos, das escolas, da juventude, dos amores, dos títulos conquistados no Tupi, no Botafogo, no Vasco, no Flamengo e na Seleção Brasileira. Lembrou dos momentos emocionantes, vividos nos bailes da vida e dos momentos de glória, vividos em meio aos torcedores. Sentiu que até aquele momento, vinha sendo uma pessoa importante. Tinha muitos amigos, havia muitas garotas querendo ficar com ele e ainda, tinha a alegria de ver os pais e irmãos com saúde. E era um craque de futebol consagrado, um campeão do mundo, que adorava as músicas de “Caetano”, de “Milton” e de “Cazuza”. Que era católico, apesar de algumas dúvidas, e que sonhava, um dia, se casar e ter muitos filhos. Buscava cada detalhe. Era como se estivesse fazendo uma terapia. Queria recordar todo um passado e buscar algo perdido. Porém, não encontrou nada, mas chegou a triste conclusão de que faltara algo na sua vida. Não sabia o que era, mas sentia que faltara alguma coisa na sua vida. Reizinho que vivera até aquele momento cercado por pessoas que o ajudaram, que pareciam ter feito tudo por ele, sentia no seu íntimo que faltara alguma coisa na sua vida. Talvez, algo que o impedia de amar e de se sentir amado.

Reizinho sentiu que todo o seu passado era um enorme vazio. Seu olhar triste voltava sempre que

acabavam os momentos de euforia e esses momentos, eram tão rápidos quanto um pássaro a voar sobre nossas cabeças.

Ali, vivendo toda angústia do mundo, Reizinho pensou em suicidar-se. Porém, olhou mais uma vez todo o vazio passado e imaginou todo o vazio que a morte representa para o homem. Sentiu que o vazio em que se encontrava a sua vida e o vazio da morte eram exatamente iguais. Morrer não iria representar nenhuma saída e ele desistiu da idéia. Precisava encontrar uma saída e só vivendo, poderia encontrá-la. Tinha que haver um novo sentido e para encontrar este novo, era preciso permanecer no vazio da vida.

Reizinho ainda permaneceu por vários dias naquele hospital, onde pôde perceber a fragilidade da vida humana. Antes de lhe dar alta, o médico, utilizando-se de um intérprete, falou da sua cirurgia e de todo o trabalho que seria necessário para a sua recuperação. Maguinho terá que fazer uma série enorme de exercícios. A sua preparação para a carreira de atleta fôra deficiente. Até os vinte e um anos, ele jamais havia feito qualquer trabalho muscular orientado e aquilo dificultaria demais a sua recuperação. O médico, previu um tempo mínimo de um ano, em que ele não poderia jogar futebol e ainda falou de uma série de dificuldades, que poderiam impedí-lo de agüentar a dureza de uma competição de futebol profissional.

Dia dois de agosto de 1990, Reizinho retorna ao Brasil. Ao chegar ao aeroporto do Rio de Janeiro, uma multidão o esperava. Todos querendo homenagear o garoto campeão do mundo. Andando de muletas, Reizinho saudou a torcida. Ficou por um bom tempo distribuindo

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autógrafos. Falou com a imprensa. Participou de algumas audiências e, finalmente, foi descansar no seu apartamento.

No outro dia, levantou-se cedo. Pegou um táxi e foi até a casa de Karina. Ao chegar, Karina lhe sorriu e Reizinho sentiu uma paz imensa. Ficou numa alegria enorme ao saber que o Brasil inteiro estava contribuindo para que ela recuperasse a saúde. E Reizinho, como prometera, assinou um cheque doando a Karina, o dinheiro que ganhara na Copa do Mundo. Agora, Karina já podia viajar para o exterior e fazer todo o tratamento necessário para a recuperação de sua saúde. E Reizinho chorou ao ver as lágrimas que desciam dos olhos de Karina e de seus pais. Voltou para casa sentindo uma grande paz, uma espécie de conversão. Parecia que Deus o estava agradecendo pela ajuda.

Ainda naquele dia, Reizinho viajou para a casa de seus pais. Na sua cidadezinha, foi festejado durante vários dias. Somente após esses dias, a sua vida voltou à normalidade. Todo aquele assédio porém, não mudou a opinião de Reizinho sobre a sua vida. Ele era um solitário, mesmo em meio a sua família e a uma quantidade enorme de amigos. A vida, porém, teria de continuar e ele começava a acreditar que a vida era realmente um grande vazio e que a esperança que ele tinha de encontrar um sentido para a sua existência era apenas uma utopia.

A vida seguiu para Reizinho que logo teria de voltar para o Rio de Janeiro e começar o trabalho necessário para a recuperação do seu joelho. Ele, porém, parecia estar derrotado. Não sabia onde encontrar motivação para voltar a treinar. Sentia-se só. Muitas vezes, ficava com raiva das pessoas. A sua vida estava ficando

insuportável. Já estava pensando seriamente em usar algum tipo de droga, que pudesse aliviar a sua dor.

Mas, Reizinho não podia usar drogas. Era apenas um menino de idade adulta, que não compreendia a humanidade. Um menino tímido, que se sentia rejeitado e por isso, era só no mundo. E decidiu não usar drogas. Ele era, apenas, um menino e precisava crescer. Iria treinar e voltar a jogar futebol. Iria crescer e aprender a conviver com os adultos. Assim, Reizinho vencia mais uma idéia ruim. Vencera a primeira, que era a idéia de se matar e vencera a segunda, que era a idéia de usar drogas. O fato de sua vida não ter sentido, não poderia de forma alguma, ser motivo para ele se matar ou se entregar as drogas. Iria lutar para não continuar só. Não iria desistira nunca.

Reizinho continuou sua trajetória no mundo. Começou o trabalho de recuperação do seu joelho e mesmo se sentindo sozinho, ele não se entregava. Compensava o vazio da vida, quando podia brincar com as crianças. Adorava as crianças, porque elas nunca fizeram pouco caso dele. E lutava, em busca de um novo sonho, que o fizesse novamente acreditar no futuro.

Os dias se passaram e Reizinho pediu para sair do Flamengo. Queria mudar de clube, queria jogar no Fluminense. A princípio, o Flamengo não entendeu aquele pedido, mas como sabia das dificuldades que ele teria para voltar a jogar, não se importou em emprestá-lo ao Fluminense. E Reizinho foi recebido no Fluminense com festas, nem parecia que estava machucado e que ainda demoraria um bom tempo para que ele pudesse estrear com a camisa tricolor. Somente não entendia, porque o carinho das crianças e o carinho da torcida, não eram suficientes

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para libertá-lo da solidão em que se encontrava. E novamente chegava à conclusão de que faltara algo na sua vida, alguma coisa que o impedia de amar e de se sentir amado. O problema era encontrar esta coisa que o estava deixando amarrado na vida. E os dias continuaram passando, sem que nenhuma mudança ocorresse na vida de Reizinho. Ele estava amarrado e não encontrava uma saída.

***********************************************Reizinho terminou o período, ao mesmo tempo, em

que os outros seminaristas retornavam das férias. Era um novo ano e com ele, havia a chegada de muitos novatos para o Seminário. Às vezes, Reizinho se lembrava de tudo o que tinha passado. Iria, agora, para o último ano da Universidade. Os dias de ameaça haviam se passado. Ninguém mais falava em expulsá-lo do Seminário.

Padre Bianor elogiava sua mudança de comportamento. Dava-lhe roupas e perfumes. Quando sentia que o seu cabelo havia crescido, dava-lhe dinheiro para o corte. Reizinho o admirava por sua postura elegante. Não entendia bem as palavras de padre Bianor, que o machucaram no passado. Mas, talvez, ele tenha sido enérgico, para ajudá-lo a crescer na vida.

Reizinho lutara muito, para se manter no Seminário. Mesmo sem muita vocação, todos ali sabiam disso, ele se portou como alguém digno. Às vezes, repetia a sua psicóloga, as palavras de padre Bianor. Se você não mudar o seu modo de ser, não será ninguém na vida. Sua psicóloga ficava quieta. Entendia que não havia mudado. Mas lutara muito, para compensar suas deficiências. Depois, não precisava mudar. Tudo o que precisava era de

dignidade. E Reizinho se manteve no Seminário. Mesmo na sua simplicidade e no seu jeito de encarar a vida como se ela fosse um brinquedo. Amava Alessandra. Era o seu modo de protestar contra a rigidez da vida no Seminário.

Enquanto todos no Seminário começavam um novo ano letivo, Reizinho ganhou uma semana para descansar. Foi para sua cidadezinha e levou as anotações que fizera sobre a vida. Disse a seus amigos que iria fazer um livro e todos compraram a sua idéia. Voltou para o Seminário cheio da grana.

Foi até uma gráfica e seu dinheiro dava para fazer quinhentos livros. Havia vendido trezentos, iria sobrar-lhe duzentos. Quis saber da aceitação do seu livro no Seminário. Ofereceu sua idéia, como havia feito na sua cidade, aos padres, funcionários e, também, aos seminaristas que já davam aulas e poderiam comprar o livro. E somente um dos seminaristas, o Dálcio, lhe deu apoio. E Reizinho sentiu que seus verdadeiros amigos estavam mesmo, na sua cidadezinha.

Logo, voltaram as aulas da Universidade. Era o seu penúltimo período e Reizinho teve que aumentar as disciplinas, para conseguir completar seu curso naquele ano. Estudava de manhã e tinha, ainda, algumas aulas à tarde e à noite. Ficava quase pirado de tanto estudar. Ainda por cima, não entendia um professor, que queria fazer com que seus alunos, compreendessem do seu jeito, quase toda a História do mundo, em apenas um período. E Reizinho se esforçou muito, sentia que não poderia repetir nenhuma matéria.

No Seminário, sua Comunidade tinha agora, como formador o padre Otávio. Reizinho não iria mais fazer

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pastoral no bairro que tanto gostara. Seu novo companheiro era o Benjamim. Iriam para uma nova comunidade. Reizinho sempre tivera dificuldades no convívio com Benjamim. Tiveram duas discussões feias. Aquilo, porém, era passado. Agora, além da pastoral, dividiriam o mesmo quarto na Comunidade.

A partir dali, Reizinho viu que Benjamim era uma ótima pessoa. Tornou-se um grande amigo. A nova comunidade pastoral não era como a anterior. Ficava em um bairro mais centralizado e as famílias, pareciam seguir o ritmo das grandes cidades. Não havia, no bairro, um local definido para eles ficarem. Assim, eram recebidos na casa de uma família. Um casal já idoso, que tinha umas netinhas lindas. O senhor Everaldo era ótimo e dona Chica tratava os seminaristas como se fossem seus filhos. Fazia um almoço que era uma delícia. E Reizinho, ainda tomava um vinho saboroso.

A pastoral ali, iniciava-se com uma Missa nas tardes de sábado. À noite, Reizinho e Benjamim davam uma volta pela pracinha. Porém, tinham que voltar cedo, não podiam incomodar dona Chica. No domingo, pela manhã, havia uma reunião para preparar a Missa do sábado seguinte. Era uma reunião muito chata, onde todos queriam impor suas idéias e Reizinho preferia se fechar no seu canto, para não sorrir. Benjamim, com sua postura de padre, falava muito e a reunião durava, pelo menos, umas três horas.

Reizinho já estava cansado de ser seminarista. Sentia que aquele seria seu último ano no Seminário. Assim, não se importava com as cobranças, de que quase não falava nas reuniões. Na verdade, ele não gostara

mesmo, daquela comunidade. Faltava-lhe carinho. Achava que aquelas pessoas o discriminavam, por sentirem que ele não estava disposto a se entregar totalmente à atenção deles. Todos os sábados, ia para lá somente por obrigação. Não queria deixar de cumprir seus compromissos, para que padre Bianor não tivesse motivos para expulsá-lo do Seminário. Afinal, ainda faltava quase um ano de estudos na Universidade. Era preciso segurar aquela barra.

Quem tinha muitas responsabilidades no Seminário, era o padre Bianor. Era preciso muito dinheiro para suprir as despesas e pagar os empregados. Reizinho o ajudava a receber as contribuições de uma associação e ficou triste, quando soube que teria que parar com a terapia. Conversou com sua psicóloga, que também, não gostou nada. Queria que ele se virasse para conseguir dinheiro. Reizinho disse que não dava e queria uma resposta para seus quase dois anos de análise. Queria saber o que ela tinha achado de sua personalidade. Sua psicóloga, porém, não disse nada e ele sentiu que aquela terapia não tivera nenhum sentido. Teria que lutar sozinho se quisesse encontrar, as respostas que buscava.

***********************************************Um dia, em uma das esquinas da vida, Reizinho

encontrou uma Princesinha. Tinha no olhar o brilho de uma paz infinita. Na sua pele, a cor de todas as cores possíveis. Trazia em seu ser a essência de todo o bem que pudesse ser imaginado. Era a própria beleza e, talvez, pudesse conter o tão procurado amor. Sentiu como se tivesse encontrado algo que perdera ao nascer, levando o sentido da sua vida.

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Não era filha de um Rei, nem de uma Rainha, mas era uma Princesinha. Não vivia em um castelo, nem tinha muito ouro, mas era uma Princesinha. Uma Princesinha linda, que estudava, que trabalhava e que tinha muitos sonhos. Uma Princesinha linda, que merecia um príncipe encantado e toda a felicidade do mundo. Uma Princesinha linda, a mais linda do mundo, encantada por um coração que parecia ser o próprio amor.

Após encontrá-la, Reizinho foi se libertando aos poucos da solidão. Era uma Princesinha de uma sabedoria imensa. Dizia palavras que destruíam todos os nós que amarravam Reizinho. E ele pôde perceber à sua frente um novo caminho, um novo sonho e uma nova vida. Dali em diante, já não se sentia mais sozinho, havia alguém que acreditava nele de verdade, que compreendia as suas tristezas e que o ajudava a encarar a vida. Já não precisava mais ir a psicólogos, tinha alguém com quem desabafar e era alguém que torcia de verdade para que ele ficasse bom. E Reizinho passou a sorrir para o mundo, tinha encontrado uma Princesinha. Uma Princesinha que preencheu todo o vazio que existia na sua vida.

Reizinho, depois de driblar todo um vazio, encontrara uma Princesinha. Uma Princesinha que tinha muito amor e lhe ensinou a amar. E começou a compreender o amor, “o amor que não é possessivo, que não é egoísta e que não é vaidoso”. Compreendia na simplicidade daquela Princesinha, toda a amargura que tinha feito parte da sua vida até aquele momento. Assim, podia entender o porquê, do carinho dos amigos e das crianças não serem suficientes para libertá-lo da solidão. Tinha sido bloqueado por uma infância carente de afeto e

tudo o que fazia na vida era tentar compensar aquela deficiência. Isso o tornara egoísta e incapaz de compreender o amor. O verdadeiro amor, que se manifesta através de um afeto espontâneo, que irradie carinho e compreensão. O amor não exige nada, ele somente quer a felicidade do outro. Na felicidade do outro é que se encontra a nossa verdadeira felicidade. E Reizinho compreendeu que “ainda que conquistasse o mundo todo e até mesmo o universo, sem amor ele seria eternamente infeliz”.

Assim, tudo o que precisava era ver a sua Princesinha feliz. O amor passou a fazer parte da sua vida. As manhãs ficaram mais bonitas e as flores mais coloridas. Reizinho já não era mais sozinho, tinha uma Princesinha e tinha toda a felicidade do mundo.

***********************************************A turma de Reizinho vivia um ano de transição no

Seminário. Era um ano especial. Iriam passar do Curso de Filosofia, para o Curso de Teologia, que era o último antes de serem ordenados padres. Padre Otávio, o novo formador ficava em cima dos seminaristas. Quase sempre chamava Reizinho para uma conversa. Parecia desconfiado de suas intenções e ele as escondia ao máximo. Queria terminar seu Curso na Universidade e sair do Seminário, talvez, somente por um tempo. Queria trabalhar e provar para si mesmo, que poderia vencer na vida sem precisar ser padre. Quem sabe, algum dia, voltaria para o Seminário. Mas, precisava de um tempo. Ainda gostava muito de Alessandra e tinha que negar aquilo, se quisesse continuar

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no Seminário até o final do ano. Padre Otávio não lhe dava folgas.

Até mesmo seus colegas o discriminavam. Às vezes, sentia-se um intruso no Seminário. Todos os seus colegas, certinhos de sua vocação, cobravam dele uma postura que lhe faltava. Padre Bianor, às vezes, levava Reizinho quando ia celebrar em algum lugar mais distante. Conversavam muito. Padre Bianor tinha esperanças de que sua vocação ficasse mais forte. Queria fazer dele um grande padre. E ele precisava esconder suas verdadeiras intenções. Mas era muito bom conversar com padre Bianor. Era uma pessoa inteligente e de muito carisma.

Uma das paixões de padre Bianor era o futebol. Adorava jogar uma partidinha. Às vezes, até brigava com os seminaristas durante os jogos. Era um grande artilheiro. Muito forte fisicamente, queria impor-se, ainda, por ser o Reitor do Seminário. E as peladas eram constantes. Havia, também, os torneios em dias de festas. Vinham equipes de diversos lugares. Todos querendo ganhar do time dos padres, que era muito bom. Os padres, já veteranos, corriam como garotos. Comandados por padre Bianor, davam um trabalho enorme. E havia sempre uma festa no Seminário.

O tempo passava e Reizinho esperava, com ansiedade, a entrega dos seus livros, por parte da gráfica. Enquanto isso estudava muito, para não perder matéria na Universidade. Quem apareceu no Seminário, foi padre Tôni. Tirara umas férias do seu curso em Roma. Foi recebido como herói. Um dia, convidou Reizinho para ir com ele à casa de seus pais, numa cidade vizinha. Durante a viagem, padre Tôni rezou o terço enquanto dirigia.

Aquilo mexeu com os sentimentos de Reizinho. Nunca mais rezara o terço, desde que aquele professor da Universidade o fizera questionar algumas coisas da Igreja. E era somente um curso de Filosofia. Padre Tôni passara por todos aqueles estudos, ordenara padre e, ainda, estudava em Roma. Nem por isso, deixara de rezar o terço a Nossa Senhora. Reizinho sentiu-se por baixo. Tinha que repensar todos os questionamentos do seu curso.

Finalmente seus livros ficaram prontos. O lançamento foi marcado para sua cidadezinha. Na dedicatória, uma declaração para Alessandra. E Reizinho sentia que aquela dedicatória era o seu fim no Seminário. Mas, era assim que ele queria o seu livro. Alessandra era, naquele momento, mais importante do que tudo. Até porque, seu coração estava vazio. Acreditava que somente ela tinha a felicidade que procurava.

Reizinho entrara para o Seminário, para ter uma maior intimidade com Deus. Via, agora, a necessidade de sair com o coração vazio. Teria que lutar, como nunca, para encontrar o Deus que buscava. Via em Alessandra, a pista mais clara para este encontro. Amava muito aquela garota. Era a sua Princesinha.

O lançamento do livro de Reizinho, “Aos humanos, com carinho...”, foi uma festa. Lá estavam sua família, seus amigos e amigas, seus antigos professores e professoras e alguns colegas do Seminário. E estava Alessandra, que viera com a família. Parecia muito orgulhosa, por ser a musa de Reizinho.

Reizinho autografou uma centena de livros e se emocionou, com tantos parabéns. Logo, porém, a festa acabou. Alessandra foi embora e deixou uma certa tristeza.

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Era preciso coragem para encarar aqueles momentos. Reizinho sentia que não daria mais para continuar no Seminário. Tinha sido muita ousadia, dedicar o livro a Alessandra.

***********************************************Mais uma vez, a vida de Reizinho sofria mudanças.

Agora, podia ver verdades em fatos que pareciam mentiras. Podia ver bondade em coisas que pareciam erradas. Assim, compreendia melhor as pessoas e o mundo à sua volta. E continuava o trabalho de recuperação do seu joelho. Os dias se passavam. Era preciso voltar a jogar e estrear no Fluminense. Novamente o futuro se abria de uma forma brilhante para Reizinho. Havia constantemente o prenúncio de uma felicidade que parecia eterna.

A volta de Reizinho ao futebol não parecia ser fácil. Sua contusão tinha sido gravíssima. Era preciso um trabalho muito sério para fortalecer a musculatura do seu joelho. Muitos previam mil dificuldades para sua volta ao futebol. Diziam que mesmo que voltasse, nunca mais conseguiria jogar como antes. Ele, porém, acreditava na sua volta. O futebol era a sua profissão, era o que fazia de melhor na vida. Queria voltar e para isso, treinava. Treinava horas e horas a fio. Queria ser campeão de novo e dedicar o título à sua Princesinha. Não media esforços na hora dos treinos. Treinava, treinava e treinava... Surpreendia a todos que achavam que ele não gostava de treinar e, de acordo com o seu momento, fazia o possível e o impossível para recuperar o seu joelho.

Depois de um trabalho que durou meses, o seu joelho parecia estar bom novamente e Reizinho sorria, por

se aproximar o momento de estrear no Fluminense. Jogara no Botafogo, no Vasco e no Flamengo, tinha sido campeão em todos eles, faltava o Fluminense. Por isso treinava tanto para voltar a jogar e ser novamente campeão, campeão pelo Fluminense! E tinha uma torcedora especial, uma Princesinha linda que lhe dava toda a força do mundo.

Dia onze de setembro de 1991, um ano e dois meses após a contusão de Reizinho, o Maracanã está em festa. Ele está de volta ao futebol. A torcida do Fluminense canta nas arquibancadas para ver o menino campeão do mundo, que fazia a sua estréia no tricolor. O jogo de estréia de Reizinho é contra o Botafogo, jogo válido pelo campeonato carioca daquele ano. O Fluminense entra em campo e, mais uma vez, Reizinho está no gramado, ouvindo os gritos da torcida. Para ele era grande o orgulho, por estar de volta. Poder jogar futebol era algo como uma vitória sobre o próprio tempo. Estar em campo era a prova de que tinha lutado, de que tinha valor, de que não tinha sido campeão do mundo por acaso.

Reizinho era um atleta, alguém que desde o primeiro teste fizera do futebol a sua vida. Vida interrompida, apenas, pela paixão por Daniela, que quase o destruiu. Mas, ele dera a volta por cima, estava vivendo uma nova vida, tinha encontrado uma Princesinha e toda a felicidade do mundo. Tinha novamente a liberdade para jogar futebol e fazer as pessoas felizes. E sentia o orgulho de sempre ter feito as pessoas felizes, mesmo nos momentos em que estivera mal. Como na Copa do Mundo, em que sua vida estava mergulhada num imenso vazio e encontrara forças para ajudar o Brasil a ser campeão. Agora, o que queria mesmo era esquecer os momentos

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ruins e tirar de tudo uma lição, que o deixasse mais forte para encarar as adversidades da vida.

Começa o jogo da estréia de Reizinho no Fluminense. A bola rola e procura Reizinho que a acaricia num momento empolgante, um momento que é somente deles, do craque e da bola. E durante vinte e cinco minutos ele corre distribuindo passes e encantando todo o estádio. Porém, seu joelho sente o esforço e Reizinho é obrigado a deixar a partida. Sai de campo derrotado, mas logo é reconfortado por sua Princesinha que o anima a esperar uma nova partida.

Três semanas depois, Reizinho está de volta aos gramados. Corre durante quarenta minutos e sai de campo sentindo novas dores. Volta a campo nos jogos seguintes. Esforça-se como nunca, tentando vencer as dores e é aplaudido, a cada vez que é vencido e obrigado a deixar o gramado. Um dia, porém, num jogo duro disputado em um campo pequeno, Reizinho não consegue evitar um lance mais perigoso e o seu joelho esquerdo, o mesmo que havia sido operado, é atingido violentamente. Novamente ele cai no gramado, sentindo dores insuportáveis. É retirado de maca e levado para exames. Após os exames é constatado a necessidade de uma nova cirurgia no seu joelho. Reizinho se entristece. Uma nova cirurgia significaria novos sofrimentos. Por um momento, ele recorda a primeira cirurgia e se desespera por ter que encarar tudo de novo.

***********************************************

Ao retornar para o Seminário, Reizinho percebeu que sua barra estava mesmo pesada. Logo, padre Otávio lhe chamou para uma conversa.

- Você quer mesmo continuar no Seminário e passar para o Curso de Teologia, no próximo ano?

Reizinho já não agüentava mais aquela situação. Poderia ter inventado um monte de desculpas. Mas, aquela pergunta foi muito direta.

- Padre Otávio, acho que preciso de um tempo. Quando terminar meu curso, penso em sair por um ano, ou dois, para resolver alguns problemas. Depois eu volto, se Deus quiser!

Disse ainda, tudo o que sentia por Alessandra. Não era justo continuar no Seminário e estar apaixonado ao mesmo tempo. Precisava de um tempo. Mas, também, precisava terminar seu curso na Universidade.

Padre Otávio rasgou o verbo. Disse que ele, realmente, não tinha vocação. Que a comunidade onde fazia pastoral, reclamava dele. Que as empregadas do Seminário diziam que ele estava ali, somente para estudar. Que seus colegas de Comunidade, também o achavam sem vocação. Enfim, que ninguém acreditava nele. E disse que ia conversar com o Reitor, sobre o seu caso.

Já no dia seguinte, Reizinho estava diante de padre Bianor.

- Então, você precisa de um tempo, fora do Seminário?

E Reizinho falou de todos os seus problemas. Da necessidade de terminar seu curso na Universidade. Faltavam, ainda, seis meses e ele não tinha para onde ir. Padre Bianor, porém, se mostrou insensível.

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- Você tem dez dias para deixar o Seminário...Logo, Reizinho foi afastado da sua Comunidade.

Teve que ir para um quarto de empregados. Sentiu-se um marginal. Por que não podia ficar mais esses dias com seus amigos? Será que iria contaminá-los com suas idéias? E foram dias de angústia. Eram os últimos do período na Universidade. Fez as provas sob uma tensão e uma revolta enorme. Conseguiu, porém, os pontos necessários e fechou o período.

Assim, Reizinho arrumou as malas e se preparou para partir. Teria trinta dias de férias, antes de iniciar o último período de seu curso na Universidade. Pensava em, onde iria morar quando voltasse. Não tinha dinheiro e sua mãe, muito menos. Não teria como trabalhar, porque tinha matérias pendentes na Universidade e seria preciso estudar em tempo integral. Olhava o prédio enorme do Seminário, havia uma grande quantidade de quartos vagos. Bem que poderiam deixá-lo ficar no quartinho de empregados. Já tinha até se acostumado com ele. Nas horas vagas, poderia capinar as laranjeiras. Elas estavam bonitas. Reizinho cuidara bem delas, por um bom tempo.

Porém, não quis pedir nada. Iria partir. Mas, não iria levar mágoas de ninguém. Padre Bianor fôra legal, por muito tempo. Ensinara-lhe muitas coisas. Padre Otávio, também, tinha sido importante em alguns momentos. Seus colegas de Comunidade eram uns carneirinhos, muito bonzinhos. Reizinho sempre dizia isso a Nelson, quando iam para a Universidade e, reclamavam a ausência deles. Os outros padres e seminaristas eram também, ótimas pessoas.

Enfim, eram todos filhos de Deus. Cheios de problemas, iguaizinhos a Reizinho. Mas eram os escolhidos para serem os mensageiros da Boa Nova de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era preciso amá-los...

E Reizinho despediu-se deles, com carinho. Quem sabe, um dia, sentiria vontade de voltar. E ninguém se importou de ir com ele até a porta. Ficaram parados, como se ele não tivesse vivido ali, por quase quatro anos. Na saída, sem querer, a porta bateu com força, como se ela quisesse protestar por ele. E Reizinho ainda pensou. Droga de porta, eles vão pensar que eu saí revoltado.

Subiu até o ponto de ônibus, com o coração vazio. Entrara para o Seminário em busca de uma aproximação maior com Deus e saía sentindo-se só. Rezara uma quantidade enorme de vezes. Participara de muitas Missas. Fizera pastoral em lugares diferentes. Convivera com um punhado de padres. E partia com o coração cheio de dúvidas.

Ao chegar em casa, Reizinho ainda, teve de ouvir as reclamações de sua mãe.

- Onde você estava com a cabeça, quando dedicou seu livro para aquela moça.

E Reizinho sorria. É preciso sorrir, em qualquer circunstância.

Sua mãe ficara brava. Queria ter um filho padre. Porém, disse que tinha uma prima que havia se mudado para a cidade, onde ele estudava. Era uma prima de segundo grau, mas uma pessoa ótima. Tinha certeza de que ela ajudaria Reizinho.

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Logo Depois, Reizinho viaja para os Estados Unidos, para fazer uma nova cirurgia no seu joelho. Algum tempo depois, ele está operado e se recupera no mesmo quarto, que ficara após a primeira cirurgia. Agora, porém, não se sentia sozinho. Tinha consigo as imagens de uma Princesinha. Quando as dores ficavam mais fortes, ligava para sua Princesinha e ouvia palavras que o faziam mais forte do que todas as dores do mundo.

Reizinho não estava mais sozinho, tinha uma Princesinha. Uma Princesinha que era mais importante do que tudo. Uma Princesinha que o cativara num segundo. Uma Princesinha que o ajudara a compreender o mundo. Uma Princesinha que precisava ser a mais feliz do mundo. Uma Princesinha que ele adorava mais que a própria vida ou, talvez, uma Princesinha que era a sua própria vida.

Reizinho esperava com ansiedade o momento de voltar para o Brasil. De repente, não compreende quando o médico, com um olhar preocupado, começa a lhe falar. Através do intérprete, ele fica sabendo que o médico o aconselha a abandonar o futebol. O seu joelho não suportaria mais uma torção ou uma pancada mais forte. Por um momento, entrou em pânico. Não esperava, de forma alguma, aquela notícia. Passado o pânico, conversa novamente com o médico, que lhe explica todo o trabalho que terá de fazer para recuperar o seu joelho. Uma volta ao futebol, certamente, lhe traria logo nas primeiras partidas, novos problemas e novas cirurgias. Disse que a decisão de parar ou não, era somente dele. Mas, advertiu que ele seria um louco se tentasse jogar novamente.

Reizinho entra em crise. Lembra de todo o trabalho feito após a primeira cirurgia, dos jogos em que não

conseguira nenhuma firmeza e da pancada que o levou à segunda cirurgia. Seu joelho parecia mesmo que não iria agüentar mais nada em termos de futebol. Reizinho se entristece ao sentir que não vai mais poder dar os dribles que o faziam sentir liberdade. O sonho de lembrar “Garrincha”, ficara apenas gravado em algumas jogadas. Era duro ter que abandonar o futebol. O futebol que por um bom tempo lhe segurara a barra de viver.

Milhares de pensamentos passavam pela cabeça de Reizinho. De repente, ele pensava em fazer todo um trabalho e voltar novamente a jogar. Porém, certamente, não conseguiria mais fazer as jogadas de garra, que caracterizaram o seu futebol. Logo, pensava que era mesmo hora de parar de jogar futebol e começar a aprender uma nova profissão. E Reizinho se desesperava ao pensar que o futebol era a única coisa que sabia fazer bem. Abandonando o futebol, teria que trabalhar duro e, quem sabe, voltar a estudar. E a vontade de estudar mexia com ele, que sempre quis fazer faculdade. Apesar de uma timidez excessiva, a idéia de se tornar um professor o fascinava. E por uma noite inteira, se viu tomado por pensamentos que lhe cobravam uma decisão. Por fim, adormeceu, pensando em sua Princesinha que era mais importante do que qualquer decisão.

No outro dia, acordou mais tranqüilo e pôde pensar melhor no assunto. Com o coração apertado, sentia que a vida lhe pedia uma mudança. Sentiu que tinha crescido, viu no futebol um passado bonito, que um dia fez dele um eterno menino. O tempo, porém, passara e até mesmo a eternidade é pequena diante dos nossos olhos. Reizinho sentia que era o momento de abandonar o futebol e

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começar uma vida nova. Precisava arrumar um emprego, como os jovens da sua idade e tentar esquecer o passado ou, pelo menos, não fazer dele algo importante.

***********************************************Assim, Reizinho foi até à casa de dona Joana e

contou sua história. E ela, gentilmente, disse que ele poderia ficar em sua casa, até concluir seus estudos. E Reizinho já tinha onde ficar. Fez sua matrícula e, quando as férias se acabaram, estava ali, pronto para terminar seu curso.

Era uma casa de dois andares. Dona Joana morava no andar de cima, com seus dois filhos, Reginaldo e Paulinho. Embaixo moravam sua filha Milza, o genro Marquinhos e os netinhos Guilherme e Gabriela. Todos acolheram Reizinho com o maior carinho. Logo, ele se sentiu em casa.

Reizinho sofreu muito por causa de Alessandra. Sentiu que ela foi se afastando aos poucos de sua vida. Quando telefonava, já não ouvia as palavras carinhosas de antes. Sentia perder aquilo que era mais importante em sua vida. Mas, ainda acreditava, que um dia, pudesse conquistá-la. Acreditava no destino e nele, Alessandra era sua alma-gêmea. O destino não poderia falhar.

Estudou tranqüilo, os meses que faltavam. Adorava brincar com Gabriela ao voltar das aulas. Guilherme e Paulinho, também se apegaram muito a ele. Reginaldo, um jovem bacana, tinha toda uma alegria de viver. Marquinhos, um trabalhador, muito gente fina. Milza, uma pessoa encantadora. E dona Joana era como uma mãe, fazia o almoço no capricho, para agradar Reizinho.

Nos finais de semana, pegava uma carona e ia para sua cidadezinha. Conheceu muita gente boa, na estrada. Gostava de conversar com os caminhoneiros, todos elogiavam a sua simplicidade. E Reizinho se orgulhava de tantos elogios. Ficava a imaginar, porque não dera certo no Seminário. E achava que padre Bianor, não gostara da sua simplicidade. Queria que ele se transformasse num cara arrumadinho. E ele queria ser um padre simples.

De vez em quando, após as aulas, passava no Seminário. Gostava de conversar com seus amigos. Deu um de seus livros a padre Bianor, que parecia contente por vê-lo bem. Reizinho estava feliz.

Sempre que podia, Reizinho ia à Missa. Não queria perder seus costumes. Às vezes, tinha ainda, muitas dúvidas em relação à sua fé. Mas, era um lutador, não iria desistir nunca de suas buscas. E amava Alessandra.

O tempo passou. Reizinho fez estágio. Fez provas. Fechou todas as matérias. Conseguira terminar seu curso. Depois de muita luta, ele vencera todos os obstáculos e sentia-se orgulhoso. Era um vencedor. Conseguira driblar a falta de vocação, a falta de dinheiro, a timidez e toda a simplicidade da sua vida.

***********************************************Dia vinte de novembro de 1991, Reizinho retorna

ao Brasil e anuncia a decisão de não mais jogar futebol. O mundo não entende que o seu melhor jogador, um jovem que acabara de completar vinte e seis anos, tenha decidido abandonar a carreira. No seu intimo, Reizinho sentia muito medo, medo de encarar uma nova vida, onde não teria mais a torcida do seu lado. Agora, teria de lutar sozinho,

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numa sociedade onde as oportunidades são disputadas no grito. Porém, sentia que era mesmo hora de deixar para trás a fantasia dos dribles e trabalhar sério. E o mundo ficou mais triste, não se veria mais dali em diante, o menino Reizinho correndo, driblando e fazendo gols. A torcida perdia mais um menino, que como tantos outros, fizera dos campos de futebol uma fábrica de emoções. E Reizinho podia sentir a dor da torcida. Era a mesma que sentira um dia, com a falta do “Rivelino”, do “Jairzinho”, do “Zico”, do “Falcão”, do “Reinaldo”, do “Nelinho” e de tantos outros.

Muitos repórteres lhe perguntavam se aquela decisão de parar de jogar futebol, não estava sendo precipitada. Respondia, dizendo que tinha sido aconselhado pelo médico que o operara. Depois, o futebol já não o realizava mais como pessoa. Aquelas contusões tornaram-se interrupções muito fortes na sua vida. Precisava de uma nova profissão que o realizasse, que o despertasse para a vida e acrescentou. “O Reizinho jogador de futebol foi um menino, que deu vida ao seu melhor brinquedo. Pôde viver com ele enquanto menino, mas era preciso crescer e cresceu. Agora, o Reizinho jogador de futebol, representava apenas um sonho, o sonho de fazer da vida uma eterna montanha e buscar o alto a todo instante. Como menino chegara lá no topo, porém, o derrubaram para que ele crescesse. E ele cresceu, não daria mais para subir no topo da montanha. O que precisava mesmo era cuidar de sua Princesinha e deixar para os outros meninos a necessidade de se chegar ao topo da montanha”.

Tudo o que Reizinho queria com seus dribles, era encontrar a felicidade que deveria existir em cada pessoa, e a liberdade de poder fazer uma caminhada, do fracasso à realização do mais lindo sonho. Encontrou, porém, uma barreira intransponível, que derrota todos os homens: O tempo que transforma tudo, deixando a necessidade de um Deus. Um Deus que tenha pena da fragilidade de suas criaturas.

Agora, era preciso amar a sua Princesinha e ajudar as pessoas que dele precisavam. Este pensamento, o fez lembrar de Karina e logo, foi visitá-la. Ganhou de presente um sorriso, um sorriso de alguém que agora estava com saúde. Karina estava estudando e estava crescendo. Recuperara a saúde graças a ajuda de muitas pessoas e Reizinho estava entre elas. O sorriso de Karina era um orgulho para ele, era uma vida que estava salva. Mas, ainda havia muitos meninos abandonados nas ruas. Meninos que trazem no olhar um brilho que vale mais que todo o dinheiro do mundo: a vontade de viver. É preciso fazer alguma coisa por eles e não deixar que se apague o brilho de uma vida. Um menino salvo é um menino que pode se tornar um craque e nós precisamos dos craques. Precisamos dos craques para que o sonho de Reizinho tenha seqüência e para que o mundo encontre a paz.

***********************************************No domingo seguinte, Reizinho estava em sua

cidade. Foi até a igreja, participar da Missa. De repente, prestou uma atenção maior ao altar. Olhou para a cruz e sentiu na garganta, um nó. Chorou como um garotinho. Sentiu uma felicidade mais completa, como nunca sentira

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antes. Compreendeu ali, um pouco daquilo que buscava em sua vida. Compreendeu que era Jesus quem dizia que havia algo muito mais importante do que a paixão que ele sentia por Alessandra. Era o amor de Deus. O amor é Deus, presente no Sacrário, na Cruz e em todos os lugares. Estivera tão perto de Deus e somente agora, o encontrara. Compreendeu, também, que teria que carregar a sua cruz de cada dia. É preciso buscar a Deus, constantemente. O amor de Deus está presente em todos os lugares e em todas as religiões que louvam o seu Nome.

Não basta estudar em Universidades e conhecer todas as teorias. Todo o conhecimento do mundo nos leva ao nada, se não acreditarmos no amor de Deus e na eternidade da nossa vida. Reizinho aprendeu muitas coisas, mas somente compreendeu a felicidade, quando olhou com carinho, para o sofrimento de Cristo. Ele amou a cada um de nós, de um modo tão apaixonado e somos tão pequenos, para compreender tão grande amor. Somente quando olhamos para a Cruz, e deixamos Jesus nos enviar a sua mensagem, é que podemos nos sentir mais próximos de Deus.

É preciso amar! Somente o amor nos faz sentir felizes e realizados. O amor é encontrado em abundância nas pessoas. Mas, é difícil saber amar. É difícil saber doar. O amor é a doação de si mesmo. É um abraço, uma palavra de carinho e uma ajuda. É preciso amar as pessoas...

***********************************************Dia dezesseis de dezembro de 1991, termina o

campeonato carioca e o Fluminense é o grande campeão do ano. No dia seguinte, Reizinho recebe um convite para

participar da festa tricolor, em comemoração àquele título. Tinha jogado algumas partidas daquele campeonato e, também, era campeão. Ganhava assim, o último título de sua carreira, era campeão carioca pelo Fluminense. Ele, que havia sido campeão mineiro pelo Tupi, Campeão carioca duas vezes pelo Vasco e uma pelo Flamengo. Campeão brasileiro pelo Botafogo e pelo Vasco. E, ainda, campeão Olímpico, campeão da Copa América e campeão do Mundo pela Seleção Brasileira. Agora, Reizinho fechava a sua carreira, como campeão carioca pelo Fluminense. O título que buscara para dedicar à sua Princesinha.

Dia vinte e três de dezembro de 1991, o Corinthians, “o querido Timão da Fiel”, vai ao Maracanã para o jogo de entrega das faixas ao Fluminense e, também, o jogo que marca a despedida de Reizinho. É o momento de dizer adeus à torcida. Reizinho, que ainda não consegue caminhar direito, entra no gramado com seus companheiros e sente uma emoção, que não se pode traduzir em palavras. Saúda pela última vez a torcida, da mesma forma que um dia “Garrincha e Pelé” fizeram deixando um vazio que somente um novo menino poderá preencher. Um menino que tenha em si a liberdade de caçar passarinhos ou a graça de saber voar.

Aquele garoto, que um dia entrara em campo com o coração disparado e driblara os marcadores, que queriam impedir a realização dos seus sonhos, deixava para os meninos a esperança. A esperança de um mundo melhor, feito pela vontade das pessoas. Um mundo onde os meninos possam driblar a fome e encontrar o caminho da escola, um caminho no qual se aprenda a simplicidade da

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vida, onde o novo está surgindo a cada momento. Um mundo em que os meninos possam cuidar da mãe-terra, para que a vida não termine nunca. Reizinho deixava a esperança para os meninos, para que eles possam acreditar em si mesmos e driblar a velha postura egoísta, para assim encontrarem a beleza da vida. Beleza que não vem das drogas, que não vem da sensualidade e que não vem do poder, mas que vem do amor e somente os que se tornam meninos conseguem encontrar.

Para mim, como autor, o Reizinho nasceu de um sonho e deixou a imagem dos dribles conseguidos através da garra. Garra de alguém, que, talvez, nem fosse tão bom, mas que colocou o coração acima de tudo e conseguiu vencer o destino, que parecia não querer vê-lo campeão do mundo.

Para a torcida ficava a esperança do surgimento de um novo menino, que tenha a liberdade de fazer do Tupi, Botafogo, Vasco, Flamengo, Fluminense, Atlético, Cruzeiro, São Paulo, Palmeiras, Corinthians, Santos, Internacional, Grêmio, Bahia..., eternos campeões.

E mais uma vez, Reizinho recebe a faixa de campeão. Faixa que era de todos os meninos que correm descalços nos campinhos, nas quadras e nos clubes. De todos os meninos, que o faziam voltar a infância e correr em direção ao sonho de um dia ser o craque da Seleção Brasileira, e um campeão do mundo. Faixa que era de sua Princesinha, que o acordou de um sonho e o levou a passear pelos campos, onde as flores esperavam para serem colhidas.

Reizinho já não era mais sozinho. Tinha uma Princesinha linda. Sentia que ela poderia sumir a qualquer

momento, afinal, parecia ser um anjo. Mas, o que importava mesmo, era que ele tinha uma Princesinha e era a mais linda do mundo. Uma Princesinha que tinha no olhar, tudo aquilo que ele precisava para viver. E pela primeira vez, Reizinho sentiu carinho de verdade. Aquilo era tudo o que parecia ter lhe faltado na vida. Assim, deixava para trás todo um passado, que fizera do seu coração uma pedra. Agora, ele podia bater feliz. Sua existência já não era mais vazia, tinha uma Princesinha, tinha um sentido, ele o encontrara e era o seu tesouro...

***********************************************A vida no Seminário não é fácil. É preciso doar-se

por inteiro. Não se pode querer ser padre, sem uma entrega de si mesmo. Uma entrega que Reizinho ainda não aceitava. Talvez, porque o mundo lhe negara muitas coisas. E sentia necessidade de provar, que podia vencer suas deficiências. Por isso lutara muito contra os regulamentos do Seminário e suas próprias angústias. Mas, vale a pena querer ser padre. Muitos dos colegas de Reizinho conseguiram e são muito felizes.

Reizinho gostara do Seminário. Aprendera muitas coisas. E havia uma promessa. Mesmo que Reizinho não conseguisse ser padre, tinha que dar uma resposta ao chamado de Cristo. É preciso amar as pessoas. Em todos os momentos e em todos os lugares.

Os momentos de oração no Seminário foram muitos. Muitas Missas, muitas reflexões, muitas vigílias. Às vezes, Reizinho sentira-se disperso. Mas, foram os momentos mais lindos que viveu no Seminário. Deram-lhe a força necessária para não desanimar nunca. Nem mesmo

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nos momentos de dúvida. Reizinho buscava sempre o amor e Deus tem o momento certo de acolher os nossos pedidos. Por isso é preciso atenção às palavras de Jesus. “Pedi, e ser-vos à concedido; procurai, que achareis; batei, que a porta vos será aberta. Porque todos os que pedem recebem; e quem procura encontra; e àquele que bate será aberta a porta”.

A vida não para nunca. A vida é uma busca constante. Uma procura de amor. Uma procura por Deus. Como disse Santo Agostinho, há mais de mil e seiscentos anos atrás: “Para Ti, ó Deus nos criaste; e irrequieto anda o nosso coração, enquanto não repousa em Ti”.

Chegou o dia da formatura de Reizinho. Ficou todo orgulhoso ao receber seu diploma. Abraçou seus colegas de Curso. Era uma conquista importante. Ganhou um abraço apertado de Alessandra. E ela disse gostar muito dele. Queria ser sua amiga, para sempre. Reizinho, porém, a amava e, ainda, acreditava no destino...

***********************************************

Reizinho voltou para sua cidade. Algum tempo depois, foi convidado para dar aulas. Chegou ao colégio meio sem jeito. Logo, recebeu um sorriso de boas vindas. Era uma menina linda. Tinha os olhos azuis e um sorriso mágico. E ficou a pensar nos seus sonhos. Talvez, conseguiria esquecer Alessandra e encontrar uma nova paixão.

A escola era a mesma que Reizinho ajudara a construir. Um grande prédio, com um belo pátio, que

ficava mais lindo na hora do recreio, enfeitado pelos adolescentes. E eles conversavam e sorriam, como se estivessem protegidos de todos os perigos.

A escola é um local de sonhos. Onde cada aluno tem um espaço para mostrar seu talento. Muitos, porém, se escondem nos cantos e deixam passar este tempo precioso. E deixam de curtir essa mãe, que é a escola. E muitos fogem dela.

Reizinho estava ali para dar sua primeira aula. Vivera muitos momentos de dificuldades, para chegar até ali. Lembrava-se das primeiras professoras, de tantos anos que passara naqueles bancos. Às vezes, distraído, confuso, brincando ou sonhando com a menina mais linda da escola. Mas, quase sempre, prestando atenção nas lições ensinadas.

Aquela primeira aula era um desafio. Estudara em um Seminário, formara-se em uma Universidade conceituada, mas sentia-se limitado diante de um grupo de jovens. Pensava nas coisas terríveis, que os alunos costumam aprontar, para os professores de primeira viagem.

O sinal tocou e todos aqueles pensamentos foram interrompidos. Com o coração disparado, Reizinho dirigiu-se para a sala. Ao entrar, porém, sentiu-se acolhido, pois a turma era encantadora. Mais ou menos, vinte alunos. Algumas perguntas, todas simples, e ele sentiu que dar aulas é algo bem legal. Aquela aula passou num instante. Ao voltar, parou no barzinho do seu primo, para comemorar o sucesso naquela primeira aula. Seus amigos pareciam curiosos, para saber como ele havia se saído. Reizinho sentia que, quase ninguém acreditava no seu

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potencial. Mas, ele tinha se dado bem e vencido aquele primeiro desafio. E todo contente, tomou umas doses de cachaça para comemorar.

Naquela noite, Reizinho sonhou com aquela aula. E com aquela aluna de olhos azuis e um sorriso mágico. Buscava mesmo alguém que o fizesse esquecer sua antiga paixão. Assim, sentiu seu coração bater mais forte. Acordou feliz e foi caminhar sob o sol. O céu azul daquela manhã estava lindo. Reizinho caminhou feliz, como quem busca flores para dar a pessoa amada.

Era muito linda aquela menina, ou melhor, moça. Dezenove anos de pura simpatia. Pele clara, cabelos negros e um encanto que o fazia vibrar com a vida. As primeiras conversas foram tímidas. Mas foi crescendo uma amizade que, de certa forma, atrapalhava os sonhos de Reizinho.

Foi uma bela amizade. Momentos de pura magia! Conversas inesquecíveis, em que aquela moça lhe contava seus sonhos. Belos sonhos, quase impossíveis, como o amor de Reizinho. E ele logo percebeu que o seu sonho, não cabia nos sonhos daquela menina. E deixou de sonhar por um tempo...

Continuou dando aulas. Recebeu seu primeiro salário e sentiu o quanto é difícil ser professor. O Brasil deveria pagar melhor, seus professores. E Reizinho voltou a sonhar. Estava escrevendo seu segundo livro e imaginava que ele seria um sucesso. Iria ser escritor e sonhava com sucesso e muito dinheiro. Poderia até abandonar a carreira de professor. E era bom sonhar, como aquela moça, que queria pilotar aviões. E os dias iam passando...

Havia sempre uma pelada no fim da tarde. Jogar futebol era a maior paixão de Reizinho. Era um momento

para esquecer os problemas. Correr e sentir o prazer do drible, do passe e do gol. Jogar futebol é uma forma de se sentir inserido, um time pode ser um grupo maravilhoso. E todos nós, sentimos necessidades de fazer parte de alguma coisa. Por isso é que todo garoto sonha em ser um jogador de futebol, para jogar num grande time...

Reizinho já era um professor. Mas era ainda muito inseguro. Teve muitas dificuldades no início de sua carreira. Os alunos gostam muito de testar os professores jovens, principalmente quando os sente inseguros. Assim, várias vezes ele ficou aborrecido, mas jamais pensou em desistir. E foi ganhando confiança a cada aula. Assim, a vida seguia bela. A vida é bela!

A cidade de Reizinho, Bom Jardim de Minas, é encantadora. Tem muitas festas... Na época, duas eram especiais. A festa de maio e a festa de Agosto, organizadas pela Paróquia. Missas, procissões, leilões, banda de música, barracas de comida, bebida e quase sempre, um friozinho. Mas, havia muita alegria! Reizinho adorava aquelas festas. A praça ficava repleta de gente. E havia duas boates: a dos ricos e a dos pobres. Claro, que todos podiam ir às duas. Mas era nítida, a separação e, quase sempre, as pessoas ficavam naquela segundo suas posses.

A festa de maio se aproximava e havia sempre uma grande expectativa para os jovens. Para Reizinho, era a primeira depois de deixar o Seminário. E ela chegou com promessa de muita diversão. Muita bebida e uma boate lotada, fizeram com que Reizinho e uma moça se esbarrassem. E logo pintou um clima, muitos beijos e tudo era festa. Após o baile, acompanhou a moça até sua casa. E foi ouvindo palavras de amor. A moça dizia já gostar dele

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há muito tempo, e parecia toda orgulhosa. Aquilo foi muito bom para o seu ego, mas Reizinho gostava das coisas difíceis e nunca mais quis sair com aquela garota. Uma ótima pessoa, que se casou tempos depois. E ele continuou sonhando com uma princesa...

Naquele ano, a festa de agosto também foi ótima. Naquele tempo Reizinho gostava de tomar uns goles e, naquela festa encheu a cara. Bem, pelo menos ficava corajoso e chegava nas meninas. Acabou ficando com uma garota, que parecia ter um sorriso lindo. As luzes da discoteca e o álcool na sua mente, faziam daquela garota um avião. E ele guardou com carinho o seu endereço, em uma cidade vizinha. Semanas depois, resolveu visitá-la e descobriu que ela não se parecia nada, com a menina que beijara na festa. Voltou para casa decepcionado, pensando em parar de beber.

A bebida faz com que vejamos tudo muito bonito, tudo muito bom, quando na verdade está tudo errado. Gostoso é viver a realidade. Ainda que ela não esteja tão bela, é a nossa companheira na vida. E podemos fazer com que ela se torne muito melhor, através do nosso empenho. Este esforço nos fará amar a realidade, que Deus nos concede como graça.

Reizinho continuava escrevendo seu livro. E sonhava, imaginando que poderia chegar ao sucesso. Ah! Como é bom ser jovem! Fazer planos e acreditar neles, ainda que absurdos. Mas é bom sonhar que vamos conseguir vencer as dificuldades, realizar nossos sonhos e encontrar o amor.

O amor é a perfeição que buscamos. É um sonho que não passa nunca na nossa vida. O amor está em toda

parte, mas só o vemos plenamente, quando trazemos Deus no nosso coração. Como nossa fé é pequena, estamos sempre em busca de amor.

A escola de Reizinho era repleta de meninas bonitas. E ele gostava de uma de olhos azuis. Um azul quase impercebível, mas que ele via muito bem. Talvez, porque olhava com o coração. Via naquele olhar todo o azul do mar. Paixão é fogo, não há como fugir. É preciso viver e sofrer, porque, quase sempre, paixão é dor.

A paixão de Reizinho tinha muitos sonhos. Assim, como, quase todas as garotas de sua cidade, queria ir embora para uma cidade grande. Ele, porém, já não se empolgava com as grandes cidades. Achava o máximo viver em sua cidadezinha, onde tudo lembra paz. Cidade grande é muito bom para se viver, desde que você tenha muito dinheiro, e tenha um carro porque é tudo distante. Juiz de Fora, onde vivera por quatro anos, já deixava Reizinho angustiado. Imagine São Paulo, que era para onde, a menina que ele gostava queria ir. Sentia-se assim, totalmente fora do sonho dela. Mas adorava ouvi-la falar dos seus planos. Só não queria, que chegasse o dia, em que ela fosse embora.

Mas, os tempos felizes passaram depressa. O tempo voa quando estamos nos divertindo. Logo veio a formatura de sua primeira turma. Reizinho ficou todo orgulhoso de ter participado da formação daqueles alunos. Apesar do pouco tempo, se afeiçoou a eles. Gostara de ser professor, ainda que o salário fosse tão pequeno. Era gratificante ver o brilho no olhar de cada jovem. Imaginava o sonho que cada um trazia e torcia por eles. Torcia especialmente por uma certa menina de olhos azuis, que lhe pareceu mais

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linda naquela noite. E havia um caminho livre no mundo: o futuro que, com certeza, é o grande trunfo dos jovens. E há que se cuidar para que ele seja um futuro feliz...

***********************************************Naquele final de ano, Reizinho lançou seu segundo

livro, “A Biografia de um Sonho”. Acreditava muito no seu sucesso. Depois dos autógrafos na sua cidade, foi até uma cidade maior, para divulgá-lo. Descobriu a boa vontade dos meios de comunicação, para divulgar seu livro. Sentiu, porém, que há uma dificuldade imensa para se vender livros. A grande maioria das pessoas não tem o hábito de ler. E quem gosta de ler, só se interessa pelos escritores famosos. Para ser um escritor famoso é preciso, além de muito talento, convencer uma grande editora a acreditar no seu livro. E Reizinho voltou para casa pensando numa forma de encontrar essa editora. Mas sentia-se decepcionado e o sonho de ser famoso, já não o fascinava mais. Ser escritor era muito difícil. Escrever, porém, era fascinante.

Havia um novo ano pela frente. Era preciso trabalhar. Reizinho era formado em Filosofia. Um curso muito bonito, onde se aprende a valorizar o conhecimento e a busca da verdade. Porém, muitos alunos não estão nessa busca. Os jovens estão mais preocupados em viver a moda e o momento presente. Por isso, não é fácil ser professor! Muitas vezes, para ensinar é preciso comprar uma briga. E existiam poucas aulas de Filosofia nos colégios. Com poucas aulas, Reizinho ganhava pouco dinheiro. E, só por isso, às vezes, voltava o sonho de tornar-se um escritor famoso, para ganhar mais dinheiro.

Quando as aulas voltaram, o colégio não tinha mais aquela menina de olhos azuis, que Reizinho gostava, assim parecia mais triste. Mas, logo ele foi se acostumando com as turmas novas e o colégio foi ganhando um novo encanto. Cheio de meninas lindas! Era gostoso, quando os alunos se interessavam pela matéria. Mas, pelo contrário, era muito triste quando eles só queriam brincar. E Reizinho teve problemas com alunos indisciplinados. É duro lidar com eles, quando não temos experiência e somos inseguros. Mas, aos poucos, foi contornando os problemas e cativando a todos. O melhor dia era sábado, quando os alunos se reuniam para um futebolzinho. Ali, podiam brincar de verdade, e era o máximo bater uma bolinha com eles.

Um dia triste, foi quando uma de suas turmas fechou, porque tinha poucos alunos. Um absurdo, mas aconteceu. Reizinho ficou comovido, diante de uma das meninas, que chorava como se todos os seus sonhos, tivessem ido por água abaixo. E sentiu muito, a falta daquela turma. Era uma turma pequena, muito mais acessível. Podia dar atenção a cada aluno, cobrar mais e, até ser mais amigo deles. Mas, para o Estado, aquela turma dava prejuízo. As salas precisam ser lotadas, como outras, que Reizinho lutava, para conseguir ser ouvido. E, quase sempre, voltava para casa frustrado, porque, a maioria dos alunos, não prestaram atenção, quando ele quis explicar a matéria. Bem, pelo menos, aquela menina que chorou, voltou a escola, alguns anos depois. E voltou para dar aulas de educação física. Tinha se formado e realizado o seu sonho, mostrando que não há nada, que não podemos superar com o nosso esforço.

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Na Semana Santa, havia em sua cidade, um teatro que representava a Última Ceia, a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os atores eram pessoas da comunidade. Reizinho foi chamado para representar o apóstolo Tiago. Todas as noites havia ensaios, mas ele faltava sempre. Assim, estava muito inseguro, quando chegou o dia da encenação.

A Semana Santa é um momento onde todos buscam a Deus. No dia da encenação, o pátio da igreja estava lotado. Reizinho subiu ao palco com os colegas, sentindo aquele frio na barriga. Até, porque não levara a sério os ensaios. E, pintou um problema...

Somente quando a encenação começou é que ele percebeu, que havia esquecido um detalhe. O apóstolo Tiago era responsável, por buscar o jarro com água e a bacia, para Jesus lavar os pés dos apóstolos. Como não havia ensaiado no palco, não sabia onde estavam o jarro e a bacia. Começou a pensar no vexame que seria, quando Jesus o chamasse e lhe pedisse para buscá-los. As cenas se passaram velozes, e logo chegou a sua vez...

Quando já ia dizer que não sabia onde estavam, viu um figurante no cantinho do palco, com a bacia e o jarro com água. Assim, a cena foi salva por um figurante e Reizinho viu, que não é fácil ser ator. Aliás, nada é fácil. Precisamos levar a sério, tudo o que vamos fazer. É o segredo do sucesso.

Nos anos seguintes, Reizinho ensaiou mais e não teve mais problemas. Eram gratificantes aqueles momentos. As conversas com os amigos e amigas. As piadas, os erros no ensaio, os novos atores e atrizes. E muitos, sentiam-se profissionais naquele meio. Como seu

primo, que chegou ao estágio máximo, representando Jesus. E não quis mais cortar os cabelos, nem tirar a barba.

O sobrinho de Reizinho, ainda pequeno, vinha de Barra Mansa e adorava aquelas cenas. De alguma forma, elas despertaram seus sonhos, e ao crescer, escolheu o teatro como profissão. E, torço para que ele fique famoso. Enfim, a Semana Santa, na cidade de Reizinho é especial. E deve ser assim para sempre. É um momento de nos voltarmos para Deus e buscar, aquilo que precisamos, para sermos melhores...

Veio a Copa do mundo e nossas atenções, se voltaram para Romário, Bebeto, Branco, Tafarel e os outros craques. Bem, para quem viu Zico, Falcão, Cerezo, Sócrates e Eder jogarem, a seleção de 94 não era brilhante. Mas, os jogadores se esforçaram, e conquistaram o tetra. O último jogo com a Itália foi bastante tenso e, Reizinho tomou uns goles para acalmar, e depois para comemorar. Houve um grande carnaval na sua cidade, e ele só se lembra, que acordou no dia seguinte com uma grande ressaca. Aliás, lembrava também de um sorriso, que ganhara de uma menina. E aquele sorriso, tornou-se a coisa mais importante, que ficou daquela Copa do Mundo. Por muito tempo encheu seu coração de sonhos.

Quando deixava de lado os sonhos e a realidade surgia, o bar de seu primo era onde gastava grande parte de seu tempo. Era freqüentado por muitos amigos e o bate papo corria, por horas a fio. Reizinho não era de beber sempre, preferia os doces. Mas, havia alguns freqüentadores, que bebiam como loucos. Um pasteleiro, que chegava cedo, com uns pastéis deliciosos e bebia o dia todo. Tempos depois sumiu, não se sabe pra onde... Um

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primo, que para ir embora era um custo, pois suas pernas endureciam e se não fossem os amigos... E era engraçado ver um freqüentador ir para casa, três passos para frente e, dois para trás para pegar um chinelo, que sempre teimava em ficar... Alguns nem conseguiam chegar em casa, antes de um bom sono na calçada. Bem, tinha um que não bebia, mas trazia as notícias da cidade. Sabia de todas as fofocas e todos gostavam dele.

Nos dias de Santo Antônio, São João e São Pedro, seu primo fazia uma festa junina. Ficava animada e Reizinho, não se esquece de uma quadrilha, em que uma de suas alunas apareceu e dançou com ele. Não vai se esquecer nunca, porque tempos depois, ela veio a falecer. Uma tristeza! Mas Deus sabe o que faz...

Aquele bar ficava entre a sua casa e o centro da cidade. Assim, muitas vezes, Reizinho não conseguiu chegar a praça. A cachaça dali era muito boa, mas muito forte e ele tinha que voltar correndo para casa, e cama, porque o fogo era grande.

Era muito bom, quando não bebia, e ia para a praça encontrar os amigos. Primeiro ia a boate mais chic, o point das Patricinhas da cidade. Era muito difícil conseguir uma menina ali. Assim, no final da noite, quase todos os seus amigos iam para a outra boate. O “risca faca”, como é conhecida ainda hoje. Lá era mais fácil conseguir uma garota, ainda que não se parecesse com a Patricinha dos seus sonhos. E foi um tempo de farras, na vida de Reizinho. Um tempo que passou muito rápido.

Durante aquele ano, Reizinho deu suas aulas e foi muito feliz. Teve alunos maravilhosos! Foi na formatura deles e sentiu como é gratificante, ver a alegria nos olhos

de um jovem formando. Guardou com carinho, o cartão de Natal ganho de uma aluna, que dizia ter gostado muito dele. Viveu uma bela passagem de ano, nos braços de uma morena. E fazia muitos planos...

Um de seus planos era abandonar a escola. Estava ganhando muito pouco e sonhava com outro emprego. Pensava em fazer algum curso técnico. Talvez mecânica ou computação. Ou, quem sabe, um curso de cabeleireiro. Tinha um amigo, que ganhava mais para cortar um cabelo, do que ele ganhava para dar uma aula. E deve ser bem mais fácil, pensava Reizinho.

Reizinho estava disposto a buscar coisas novas para sua vida. Foi até São José dos Campos, ver se tinha algo bom por lá. Visitou seu tio, andou pela cidade e passou pelas fábricas, deixando currículos. Sentiu muito o calor de janeiro, mas pensava que poderia se acostumar, quando arranjasse um bom emprego. Não gostou do trânsito na Via Dutra, mas, achou linda algumas moças, que conheceu na cidade.

Depois de alguns dias, sem encontrar um emprego decente, achou melhor voltar para casa. Sentia, como é difícil para um jovem, conseguir um bom emprego. Sem ninguém que o indique é quase impossível. Assim, muitos jovens andam pela vida, sem nenhuma perspectiva de um futuro tranqüilo. Mas, vale a pena se preparar e esperar o momento certo de conseguir um lugar ao sol. E este lugar está sempre perto daqueles que tem boa vontade e, não se importam de subir pelas escadas.

Por alguns dias, Reizinho curtiu novamente sua cidadezinha, que é muito melhor do que as grandes. Jogou futebol com os amigos. Não bebeu cerveja, mas bebeu

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pinga, porque era mais em conta. Quando as férias se acabaram, não quis voltar ao colégio. Sentia que era preciso tentar algo melhor. Sabia que não era fácil, deixar a vida boa de sua pequena cidade. Mas era preciso batalhar por um futuro mais digno. Assim, numa tarde, embarcou num trem, em direção a Barra Mansa.

Barra Mansa era onde vivia sua irmã, e muitos outros parentes. O mais gostoso daquela viagem, era o trem azul, que sempre encantou Reizinho. Desde criança, quando ia com seus pais, e seus irmãos, aquelas paisagens da beira da linha o fascinavam. Especialmente, quando o trem passava próximo ao Rio Paraíba. A natureza, que Deus criou é fascinante! Felizes, os que sentem amor por ela...

Bem, aquela viagem, foi a mais especial de todas. Em uma das estações, o trem acolheu uma morena lindíssima. Reizinho acompanhou seus passos até a última poltrona. Ela sentou-se só. Seu coração é que disparou, e não sossegou, até que ele criasse coragem para ir até ela. Era um encanto aquela moça. Deu-lhe uma imensa atenção, e o restante daquela viagem foi inesquecível. O tempo muito fechado! A chuva fina que rimava com o barulho do trem, formando uma melodia de filme de amor. Aquela morena linda ao seu lado. E a felicidade, que chegara num instante, escondendo todo o mal do mundo. O trem devagar, porque o tempo não era bom. E tanto não era, que passou num segundo. A moça desceu do trem e se foi, levando o coração de Reizinho. Mas, ele jamais se esqueceu daquela imagem, vinda do trem, da chuva e daquela menina. Uma das recordações mais lindas de sua vida.

Como em Barra Mansa, os empregos também não estavam dando sopa. Reizinho resolveu fazer mesmo, um curso de cabeleireiro. Imaginava, que quando formasse, daria para conciliar o trabalho em um salão, com suas aulas de filosofia, e assim, ganhar um bom dinheirinho. E foi para Juiz de Fora, fazer lá o curso almejado. Foi morar com seus primos, na mesma casa dos tempos da faculdade. E foi novamente um tempo difícil. Teve que pegar muitas caronas, porque andava duro. Mas, todos os dias, sua prima fazia uma macarronada, porque ele não gostava de arroz. E é impossível pagar tanta atenção, só mesmo pedindo a Deus, que a recompense.

O curso teve duas professoras. Uma que falava o tempo todo, explicando tudo sobre cabelo. E outra, que ensinou a prática. Tão legal, que parecia uma dona de casa, dessas que tem um salãozinho e recebem os clientes, como se fossem hóspedes.

A turma era excelente. Quatro homens e uma mulherada. E logo, Reizinho se encantou por uma. Uma gata, que todos os dias lhe levava bolos, doces e frutas. Era muito linda! Mas, dizia ser amigada com um sargento do exército. E Reizinho adorava aqueles agrados, que ela lhe fazia. Mas, mulher de outro tem sempre cheiro de bala. Ainda mais, se o outro é da polícia e já anda sempre armado. Ela, porém, não deixou de ser sua amiga, até o fim do curso. Uma amiga inesquecível...

O tempo voava e ele ia aprendendo a cortar cabelos. Nos finais de semana, voltava para casa e sempre tinha alguém para testar seus conhecimentos. Cortou, algumas vezes, o próprio dedo. E, até a orelha de um senhor. E também, nunca viu seu pai tão feio, como após o

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seu corte. Mas, nunca pensou em desistir, e foi aprendendo.

No final do curso, estava quase um profissional. Sua professora queria até lhe indicar para começar a trabalhar, no salão de uma de suas amigas. E Reizinho estava animado, disposto a crescer na profissão. Queria trabalhar sério, para ser alguém na vida. Queria voltar a dar aulas e escrever um novo livro. Estava cheio de sonhos. Sonhos bonitos... ***********************************************

Poucos dias depois de pegar seu certificado, e despedir dos colegas, chegou aquilo, que o médico disse ser depressão. Seu coração disparava e Reizinho entrava em pânico, achando que ia morrer. O médico receitou-lhe um monte de vitaminas e um antidepressivo.

Na manhã seguinte, tomou seu primeiro comprimido antidepressivo e sentiu-se diferente. Era como se aquele remédio fosse muito forte. Mas, o que sentia era só tristeza, de se achar dependente de um remédio. Queria ser forte, mas via sua vida tão frágil. Mesmo tomando o remédio, seu coração disparou muitas vezes. Em outras, parecia querer parar. Em algumas, doía como se estivesse realmente doente. Mas, por algum tempo, ele ficava bom. E Reizinho aproveitava este tempo, para escrever um novo livro, cortar cabelos e até ver novelas, com a sua mãe.

Foram momentos difíceis, até o final daquele ano. Mas, teve ainda, uma coisa muito boa. Ao conversar com o padre e falar de seus problemas, foi convidado a entrar em um grupo, que ele estava formando. Uma comunidade de

leigos, chamada Água viva. No primeiro encontro, Reizinho sentiu ter encontrado um lugar diferente, parecia fora do nosso mundo. Um lugar onde as pessoas o acolheram com um abraço verdadeiro. Estavam ali, muitos dos seus amigos e amigas. E ali, eles pareciam diferentes, muito melhores. O padre dizia que ninguém daquela comunidade, podia passar necessidades. Todos precisavam ajudar a quem precisasse. E Reizinho sentiu-se confortado, por fazer parte de um grupo tão bonito. Voltou para casa, extasiado com o calor humano recebido naquele encontro. Todos os sábados havia um novo encontro e, era como um oásis, na sua vida.

Começou um novo ano e Reizinho continuou, tomando antidepressivos. Com isso teve de parar de tomar cachaça, e o bar do seu primo perdeu mais um freguês. E era bem divertido tomar uns goles, mas é muito melhor cuidar da saúde, para que a vida possa continuar bela.

Finalmente voltou a dar aulas. Aquele compromisso o ajudou muito a superar seus problemas. Na escola tinha um monte de amigos. E a beleza das meninas, o fazia novamente ter sonhos bonitos. E precisamos deles, para o nosso coração bater feliz.

Mas, mesmo feliz, sentia que já não era mais o mesmo e começou a abandonar o futebol. Sentia que correr poderia ser perigoso. O futebol é um esporte, que exige muito esforço. Mesmo nas peladinhas, os colegas cobram muito, e se a gente não corre, eles reclamam demais. Assim, aos poucos, foi deixando de fazer uma das coisas, que mais gostou na vida. Jogar futebol é o máximo! Por isso, quase todo menino sonha em ser um jogador, como Reizinho sonhara muito tempo. Mas, era mais um sonho

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perdido. Já não poderia correr como antes e jogar futebol sem correr, não tem nenhuma graça. E ele ficou triste por muito tempo. Nem gostava mais de assistir os jogos de seu time na televisão. Era horrível a sensação de não poder jogar, como aqueles seus ídolos. Era o fim de uma grande paixão.

Como, enquanto há vida existe esperança, de vez em quando ele vencia o medo e ia jogar bola com os colegas. Porém, alguns piques depois, sentia novamente que era melhor parar. Mas nunca parou de vez. Sempre corria um pouquinho. Às vezes, sentia umas palpitações e saía do jogo preocupado. Porém, nunca desistiu de tudo e de vez em quando batia novamente uma bolinha. Doze anos depois, ainda marcaria um gol. Assim, era Reizinho, com aquilo que o médico dizia ser depressão.

No carnaval, nem quis saber se estava tomando remédios e amarrou um fogo daqueles. No outro dia acordou com lembranças, de que havia beijado algumas mulheres e tinha sido uma noite daquelas. Mas, não se lembrava de como havia chegado em casa, e nem onde deixara seus óculos. Nunca mais os encontrou. Também nunca mais se esqueceu daquela noite de carnaval. Ainda mais, depois que os colegas lhe contaram, que uma das mulheres que ele tinha ficado era feia demais. Bem, era carnaval...

Após o carnaval, a vida seguiu seus passos. Nas aulas seguintes, Reizinho ficou com vergonha dos alunos, que o viram bêbado. Começou a sentir que não era só por causa dos remédios, que precisava abandonar a bebida. Chegou a conclusão de que a bebida, nos faz idiotas, e a

alegria que ela traz é passageira. É muito melhor não beber, em nenhum momento e em nenhum lugar.

Houve ainda, uma experiência, que não foi legal em sua vida. Foi quando alguns colegas o convidaram, para ir até a casa de um amigo. Reizinho nem imaginava que eles iam lá, para fumar maconha. Para não desapontar os colegas, ele puxou alguns tragos. Bem, fumar maconha não traz uma sensação boa. Quando voltou para a rua, estava sentindo muita sede. Ao conversar com uma garota, sentiu que não estava legal. Parecia que sua voz, só saía um tempo depois que ele falava. Imaginou que ela perceberia logo o seu estado, devido a maconha. Voltou para casa e nunca mais, quis saber de nenhum tipo de droga. A gente deve ser feliz de cara limpa.

É preciso evitar qualquer ambiente, onde exista droga. E também, saber escolher nossos amigos. Infelizmente, muitos deles são consumidores de drogas e ainda se acham bons. Mas, bom mesmo é quem diz não as drogas, e encara a vida de cara limpa...

Reizinho continuava gostando de participar da Comunidade Água Viva. Continuava dando aulas e o tempo passava muito rápido. Logo, chegou o dia de lançar seu terceiro livro, “A Pequena Poesia”. Era gratificante olhar as páginas bem impressas, a capa bonita que uma de suas alunas desenhara e, sentir-se autor de uma obra. Havia caprichado naquele livro. Bem, poucas pessoas pareciam tê-lo entendido, e mais uma vez, Reizinho sentiu-se frustrado. Escrevera cada palavra com tanto carinho e no final, o livro parecia não ter tocado quase ninguém.

Bem, algumas meninas gostaram e o elogiaram muito. Isso o confortou um pouco. Mas, ele esperava que

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não só as meninas gostassem. Esperava que, também, as pessoas grandes como as professoras de Literatura, o padre, os advogados, os políticos, os poetas da cidade, lhe dissessem que o seu livro era bom e o incentivasse no seu trabalho. Mas, eles se calaram e Reizinho nunca mais caprichou nos seus livros. Continuou escrevendo, mas havia acabado ali, seu sonho de escrever um bom livro. Tinha descoberto que, na visão de muitas pessoas, livro bom é aquele que algum intelectual anuncia na televisão. Ou seja, o que faz um livro ser considerado bom é a propaganda. Assim, não existem livros bons de quem não seja famoso.

Reizinho gostava agora, não mais daquela menina de olhos azuis, mas de uma de olhos verdes. Uma aluna, que parecia adorar conversar com ele. Era muito sozinho e, aquela aproximação foi deixando-o apaixonado. Era ficar um pouquinho com ela e já voltava pra casa feliz. A sensação de felicidade é a melhor coisa que podemos ter na vida. Não é como as drogas, que nos dão a mesma sensação, mas trazem depois uma série de males, que nem é preciso citar. A felicidade de gostar daquela menina embriagava Reizinho, assim ele era feliz.

Um dia, ela o convidou, para entrar no “grupo de jovens” da igreja. Sentiu um pouco de vergonha, afinal, tinha acabado de completar trinta e um anos. Mas, como era um pedido da menina, que ele gostava, tinha de ir. E foram momentos maravilhosos, vividos ao lado de um grupo, onde Reizinho ficou por dez anos. Tinha sempre, um monte de amigos e amigas, que faziam reuniões, passeavam, ficavam juntos em retiros espirituais, e

rezavam. Rezar é o que podemos fazer de mais importante na vida, pois nos aproxima de Deus.

No grupo, sempre entravam novos componentes e era uma alegria. Mas, também havia muitas despedidas. Jovens, que iam estudar em outras cidades. Jovens, que amadureciam e iam atrás de outros objetivos. E todos que passaram por ali, ficaram no coração de Reizinho.

Chegou o final de mais um ano e, também, as férias. Reizinho não esquece a viagem, que o grupo de jovens fez até Angra dos Reis. Todos colaboraram, para arrecadarem o dinheiro e, foi um passeio maravilhoso. Visitaram praias bonitas e era gratificante, ver os sorrisos dos colegas. Alguns, nunca tinham visto o mar e pareciam radiantes, diante dessa imensa obra de Deus. Na volta, muito cansaço. E todos dormiam nas poltronas, nem pareciam os jovens do início do passeio. No meio daqueles jovens, Reizinho sentia-se mais moço e se divertia demais.

No início do novo ano, foi com sua mãe, visitar seu tio. Ele estava com câncer, em estado terminal. Parecia sereno diante do fim. Às vezes, agia como se nem estivesse para morrer, mostrando se preocupado com algumas coisas. Reizinho sentiu o tanto que os homens de sua família são fortes. Vinha-lhe na mente, as lembranças de seu avô, e seus outros tios já falecidos, todos foram pessoas de muita fibra. Assim, sentia que também precisava ser forte, para vencer a depressão, que o médico lhe dissera ter. Como ter depressão, se era de uma família tão forte? E ia jogar futebol com os colegas. Quando não dava pra correr, fazia caminhadas, e sonhava que o futuro ia ser lindo.

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Às vezes, pensava em voltar para o Seminário. Mas, algumas extra-sístoles, ou batidas irregulares do seu coração, o faziam pensar, que não daria conta de cuidar de uma paróquia. E mudava de idéia. Iria tocar a vida do jeito que desse. E buscaria a felicidade nas pequenas coisas, existem muitas para nos distrair. Assim, Reizinho continuou dando aulas e cortando cabelos. Nem tinha muitos clientes. Até porque ele não queria se estressar, com tanto trabalho.

O salão de Reizinho era na sua própria casa. Normalmente, ele não parava em casa. Saía sempre, para encontrar os amigos, o que decepcionava seus clientes. Mas muitos insistiam e, em alguma hora o encontravam. Estando em casa, ele jamais se negou a atender alguém. Se não dava naquele momento, sempre marcava um novo horário. E aquele horário era um compromisso sério para ele. Mas não para os clientes, e isso é um dos grandes problemas de se marcar horas com alguém. A gente fica esperando e nada... Mas Reizinho teve ótimos clientes. Sempre ganhou um dinheirinho, que completava seu pequeno salário de professor. E a vida seguia maravilhosa, como deve ser.

Um dia, decidiu procurar um cardiologista. Era muito legal acreditar no seu médico, que lhe dizia ter apenas uma depressão. Tinha medo de que o médico de coração, descobrisse uma doença de verdade. Mas, era preciso encarar a realidade e assim, ele foi.

O cardiologista disse-lhe, que o seu coração tinha um ruído diferente, e lhe pediu um montão de exames. Reizinho saiu dali desesperado. Parecia que o seu

problema era realmente sério. Parecia ser o fim de muitas coisas...

Foi uma tensão horrível. Mas os dias se passaram. Reizinho passou bem por todos os exames. Menos o eco-cardiograma, que trouxe o diagnóstico. Uma assincronia septal, e um leve prolapso na valva mitral, o deixou em pânico. Afinal, o coração é o dono da nossa vida, se ele parar...

O médico tentou acalmá-lo. Disse que não era nada sério. Poderia continuar batendo uma bolinha, o que para Reizinho, era um sinal de vida. Mas teria de tomar cuidado, quando precisasse tratar os dentes, ou fazer uma cirurgia. Não poderia esquecer de tomar antibiótico, para evitar uma infecção. Pior ainda, eram os sintomas que poderia sentir: palpitações, taquicardia, dores no peito, falta de ar. E aí sim, Reizinho passou um bom tempo deprimido.

Bem, não era tão grave assim. Mas, para Reizinho, que sonhava viver oitenta anos, era um fim do mundo. Ficou vários dias angustiado. Porém, o tempo foi passando e, devagarinho ele ia superando os medos. Tinha que dar aulas, cortar cabelos, participar na Igreja da comunidade Água Viva e do Grupo de Jovens. Tinha que jogar um futebolzinho, para não perder a forma. E tinha uma menina de olhos verdes para conquistar. Era muita coisa para fazer. E a felicidade foi voltando.

***********************************************Reizinho encontrava-se sempre com a menina de

olhos verdes, que gostava. Um dia, para sua surpresa, ela lhe disse, que queria escrever um livro com ele. Nunca

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imaginara um livro, que pudesse ser escrito por duas pessoas, mas aquele convite era irrecusável. Ele adorava aquela menina!

Escrever um livro não é fácil. A menina tinha muitas idéias. Mas um livro não é escrito só com idéias. É preciso trabalho, porque as idéias garantem algumas páginas, mas um livro não pode ser tão pequeno. Assim, aquela menina desistiu. E Reizinho seguiu triste por muito tempo. Tinha perdido não só a companhia para escrever o livro, mas também, o encanto que sentia por ela.

Mas, ele conhecia uma menina encantadora que se chamava Michelle. E ela se prontificou a ajudá-lo no seu livro. Assim, por muito tempo, Reizinho escreveu seu quarto livro, “Brincar de Escrever”. A Michelle o ajudou muito! Foi um tempo maravilhoso, de conversas inesquecíveis, que preencheram um montão de páginas. Reizinho só se sentiu triste, quando o livro chegou ao fim. Mas, a amizade que ficou, com certeza, será eterna...

Nos finais de semana, Reizinho sempre saía para as baladas. A praça de sua cidade continuava movimentada e as boates cheias. Mas, havia um problema. Ele não podia beber como antes. Continuava tomando o remédio anti-depressivo, para evitar que o seu coração ficasse triste e precisasse de outros remédios. Mas, se divertia assim mesmo.

Sem a bebida, era muito mais difícil ficar com alguma menina. Quando não estamos bêbados, escolhemos demais e quase sempre ficamos sozinhos. E Reizinho queria encontrar uma namorada, que o fizesse feliz. Jamais desistiu desse sonho. Ia sempre à pracinha. Lá tinha muitos amigos, todos com o mesmo sonho. Uma namorada

perfeita que nos complete. Afinal, ninguém quer ser sozinho.

Mais um ano foi chegando ao fim. Reizinho encerrou mais um ano de trabalho na escola e pôde curtir as férias. Era dezembro, ele sempre coordenava a novena de Natal, na sua rua. Sempre achou importantíssimo participar desta novena, que envolve toda a cidade. Pelo menos uma vez no ano, é bom um vizinho visitar o outro. Mas, muitos ainda se negam, a deixar um pouquinho a comodidade de seu egoísmo. O Natal perde todo o sentido, quando as pessoas se fecham em suas casas, achando que não precisam de amigos. O Natal deve ser um momento de oração e fraternidade. Qualquer festa, que não comece assim, será sem o verdadeiro sentido do Natal: o amor entre nós...

Aquelas férias passaram num instante. Alguns passeios, um futebolzinho no final da tarde e, os dias de sossego se acabaram. Logo as aulas voltaram e Reizinho encontrou novas turmas, para ensinar. A escola é assim, não há rotina. Uma turma se vai e outra chega. O professor conhece tantos jovens, que corre o risco de perder o encanto pela juventude. Felizmente, sempre tem uma jovem, com uma beleza sem igual. E não há como fugir da paixão. É ela que move a nossa vida.

Quando chegou o carnaval, Reizinho tirou uma noite para amarrar um fogo e esquecer, que tomava um remédio controlado. Ruim, era a ressaca do outro dia, que o fazia sentir, que tomar remédios é muito melhor do que tomar cachaça. E o carnaval é sempre um momento, para a gente refletir sobre o melhor para a nossa vida.

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Reizinho queria publicar o livro, que escrevera com a Michelle. E não era fácil. Era preciso a ajuda dos amigos. Assim, ele fazia um orçamento e ficava sabendo o tanto que precisava. Dividia pelo tanto de amigos, que possuía. E cada amigo, e cada amiga, davam-lhe o dinheiro, que precisava para pagar sua impressão. Era gostoso, quando os livros ficavam prontos. Seus amigos lotavam a noite de autógrafos, para buscarem o livro que ajudaram a fazer.

A vida de Reizinho era emocionante. Não havia tempo para pensar em depressão. Às vezes, sentia as palpitações que o assustavam. Mas, graças a Deus, elas sempre passavam e a felicidade voltava. E a noite de autógrafos com a Michelle foi emocionante, um sucesso...

Um dia, entrou numa auto-escola. Era um sonho de infância. Logo, saiu guiando o carro por uma estrada deserta. Depois passou por cada rua da cidade. Foi muito gostoso realizar aquele sonho. Era a mesma sensação de quando, na infância, empurrava seus carrinhos de plástico. Após dez aulas, o instrutor lhe disse, que precisava de mais umas dez, para poder fazer as provas em busca da carteira de habilitação. Mas, Reizinho já tinha realizado o sonho de aprender a dirigir. E não voltou mais, naquela auto-escola.

Naquele ano, seu time, o Vasco da Gama, estava completando 100 anos. E tinha um timaço, que conquistou o título mais importante de sua história: a Taça Libertadores da América. E Reizinho voltou a se emocionar com o futebol. Gostava de ver na TV, seu time dar show.

Reizinho, às vezes, se empolgava. Como, por exemplo, no dia do seu aniversário. Teve uma corrida de rua na sua cidade, e ele resolveu acompanhar a turma.

Correu muito, somente no final, sentiu que precisava diminuir o ritmo. Mas, mesmo assim, chegou a tempo de ganhar uma medalha. Recebeu das mãos da menina de olhos verdes que gostava. Até voltou a sonhar com ela. Reizinho amava a vida. A vida que exige esforço e coragem.

Veio o final de mais um ano. Ah! A vida passa lentamente e, quando a gente vê, muito tempo já passou. E o tempo é o bem mais precioso que temos. Precisamos aproveitá-lo ao máximo, para ser feliz e construir um caminho, que nos leve até Deus. E o caminho se faz pouco a pouco, passo a passo com o bem que fazemos.

Chegaram as férias. Férias merecidas para os professores, que como Reizinho, batalharam para ensinar. E claro, também para os alunos, que chegam cansados ao final do ano. Naquelas férias, foi visitar sua irmã e seus tios em Barra Mansa. Um de seus primos fazia um trabalho nas igrejas, de conscientização sobre o dízimo. Viajava para muitas cidades e o convidou, para ir com ele em uma delas. Foi uma bela viagem...

Passaram pelo Rio de Janeiro, que Reizinho não conhecia e foram, até uma cidadezinha, muito linda, Santo Aleixo. Cortada por um riacho cheio de pedras. Seu primo era bom de papo e, fez uma palestra bastante persuasiva. O padre era muito acolhedor e ofereceu a eles, um farto jantar. Na volta, seu primo ainda tentou convencê-lo a ajudá-lo, na sua tarefa. Dizia ter muitas cidades precisando deste trabalho. Que ele ia ganhar muito mais dinheiro, do que dando aulas.

Reizinho sentiu-se tentado a trabalhar com seu primo. Seria maravilhoso conhecer muitos lugares, muitas

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pessoas... Bem, mas é um trabalho estressante, não tem um lugar certo para descansar. E ele amava a paz de sua cidadezinha. Tinha como novo projeto, escrever a sua história. E voltou para viver nela, o último ano do milênio.

Houve a municipalização das primeiras séries do ensino em sua cidade. Com isso houve a necessidade de um remanejamento entre professores. Reizinho perdeu algumas aulas e, como o seu salário era pequeno, quase desapareceu. Assim, resolveu investir na profissão de cabeleireiro.

Pediu a uma amiga cabeleireira, que o ajudasse a melhorar seus cortes. E, por alguns meses, freqüentou o salão de sua amiga, tentando aprender os segredos, em especial dos cortes femininos. Mas, cortar cabelo de mulher foi algo que não entrou em sua cabeça. Tem coisas na vida, que é melhor desistir. Deus dá dons diferentes a cada um de nós, precisamos discernir os nossos. Mas, Reizinho melhorou muito, seus cortes masculinos e ganhava um dinheirinho, que completava o seu salário de professor.

Com a ajuda de seus alunos, começou a pesquisar a história de sua cidade. E foi um trabalho difícil... Mas, ele queria concluir esta história, era o seu próximo livro, precisava ficar bonito. E muitos pedaços foram surgindo. Foi se formando um álbum, que precisava ser organizado. Era gratificante descobrir um passado, constituído por pessoas, que viveram antes de nós. E a história ia ficando bonita.

Aquele ano, o último do milênio, era envolvido por uma série de superstições. Há tempos ouvia-se dizer, que o mundo acabaria antes da chegada do ano dois mil.

Reizinho até viu uma assombração, quando caminhava numa tarde, por uma estrada deserta. Bem, nem tem certeza se era mesmo uma assombração. Acho que ninguém tem certeza, se já viu uma coisa dessas. Mas, ele viu e até sonhou em uma noite, que o mundo estava acabando. E Reizinho contava aos colegas do Grupo Jovem. Era muito gostoso aquelas conversas, que aconteciam principalmente nos retiros, que o grupo fazia. E o tempo passava...

Um dia, acordou com uma dor na barriga, que parecia não ter fim. Não conseguiu nem tomar café. Sua mãe chamou seu primo, que o levou ao hospital. Depois de uma injeção, a dor foi passando, um alívio. Depois de alguns exames, ficou sabendo que era uma infecção na urina. Muito antibiótico, e muito chá de quebra-pedra e, Reizinho ficou bom. Não esqueceu mais o susto daquela dor e, passou a tomar muita água, como lhe pediu o médico. A água é boa, é um santo remédio!

Em uma noite de dezembro, ele saiu para ir a casa de um amigo, como sempre fazia, para digitar seu livro. Passou próximo a um bar e viu um amigo discutindo com outro. Como tinha muita gente para separar, caso brigassem, Reizinho nem se importou de parar. Seguiu seu caminho. Na volta, soube que seu amigo tinha levado uma facada e morrido. E, era um menino bom, que Reizinho viu crescer. Juntos, jogaram muito futebol. Vinte poucos anos, e aquele garoto não viu a passagem do milênio, para tristeza da família. Um garoto pai, que deixou um filho pequeno. É muita dor no coração da gente! Mas, a gente sabe que a vida é um fio e todo cuidado é pouco.

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O dia da virada chegou. Reizinho sempre ia à Missa, antes de ir para a praça. Meia noite, ele estava na rua, pensando se valeria a pena beber um pouco de vinho. E, como todos os seus colegas ali presentes, estavam bebendo, resolveu acompanhar. Afinal, era uma data histórica, um novo milênio que começava para a humanidade. E aquela noite foi de festa, para Reizinho e seus amigos. Muito vinho e muita alegria.

O outro dia foi de ressaca e começou a chover. Choveu muitos dias. Foi a maior enchente, que Reizinho viu na sua cidade. A água passou sobre uma ponte e, faltou pouco para invadir sua casa. Mas, atingiu a casa de muitos, que ficaram desabrigados. Reizinho ficou preocupado. Mais um pouquinho de chuva e, a história seria bem pior. Mas, era gostoso conversar com as pessoas, que vinham ver o rio. Todos se aproximavam da enchente, uma grande atração. Duro é saber, que em muitos lugares, as enchentes levam vidas, todos os anos. É um problema sério do mundo de hoje, que invadiu a margem dos rios. As cidades estão crescendo muito.

A enchente se foi. Dureza mesmo, foi ver o Vasco, mais uma vez, perder a chance de ser campeão do mundo. Foi triste ver Edmundo perder um pênalte e o título ir para o Corinthians. Mesmo assim, temos que valorizar o grande Vasco da Gama, duas vezes vice-campeão do mundo. E, naquele ano, chegaríamos ao tetra-campeonato brasileiro, com um baile de Romário. Mas também, foi o último grande time que tivemos. De lá para cá, só tristezas. Mas Reizinho continua torcendo. O futebol é emocionante...

No carnaval, Reizinho arrumou uma namorada e viveu noites felizes. Porém, elas voaram e sua namorada se

foi para longe. Era de uma cidade distante, mas prometeu voltar em algum feriado próximo. E ele teve de voltar ao batente porque as aulas recomeçaram.

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Em uma de suas turmas, apareceu a Nívia, a aluna mais encantadora que já teve. Era de uma simpatia enorme e cativou num instante o coração de Reizinho. E como a escola tinha uma diretora excelente, que tinha os alunos na palma da mão, as aulas eram tranqüilas. Podia deixar a Nívia passar a matéria no quadro e, ainda brincar, dizendo que ela tinha autoridade para tirar pontos, de qualquer um que não se comportasse. Bons tempos, em que dar aulas era uma paixão para Reizinho.

A sala de sua casa era onde cortava cabelos. Reizinho sentia a necessidade de um salão, para não incomodar a sua família. Seu avô deixara para sua mãe, além da casa, três lotes pequenos. Reizinho sabia que tinha direito a um deles. Assim, resolveu construir, não só um salão, mas também um quartinho, para ter um pouquinho mais de liberdade. Num instante, o dinheiro que tinha guardado acabou, e foi uma luta para acabar a construção. Teve que aprender a economizar. Também viu sentido nas palavras do padre, quando diz que, Deus abençoa quem ajuda a igreja. Assim, a casinha foi ficando bonita e, pouco depois, já tinha um salão novo para trabalhar. Embora, muitos que cortavam o cabelo quando era na casa de sua mãe, não vieram para experimentar o novo salão. Muitos fregueses são mesmo estranhos, mas como se diz eles sempre tem razão.

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De vez em quando, Reizinho gostava de ir em uma romaria, a Aparecida do Norte. Naquele ano, seu irmão mais novo também foi. Juntos, irmãos que a vida tornou, pelas dificuldades, a convivência complicada. E era gostoso lembrar, do tempo em que eram crianças e, e nem sonhavam que a vida pudesse ter dificuldades. É muito bom visitar Aparecida e rezar diante da Santa Padroeira, Mãe de Jesus e Mãe de todos nós. Aparecida tornou-se uma cidade bonita, com muitos atrativos. A gente se diverte, compra lembranças e volta sempre feliz, com Deus no coração. Deus está em toda parte, mas acredito que sua casa é a igreja e, precisamos visitá-lo sempre!

Aquele foi um ano de eleições em sua cidade. Era preciso escolher um novo prefeito. E foi um tempo muito animado. Todo mundo saindo de casa, para defender seu candidato. A chegada da eleição é como uma festa. A praça vira um ponto de encontro, e gente que nunca sai de casa, nesta época vai para a rua. Cada voto é disputado no grito.

Reizinho não era de se manifestar politicamente. Ficava no seu canto. Mas acabava sempre com medo do novo prefeito, porque quem não se manifesta, leva a fama de ser do contra. Ia sempre, na festa do vencedor e naquele ano, foram vários dias, onde os foguetes deixavam os perdedores arrasados. A cidade de Reizinho é um lugar maravilhoso, onde quem perde hoje, daqui a quatro anos comemora e vai tocando a vida...

A historia deste lugar foi escrita por Reizinho. Era o seu quinto livro “Bom Jardim, Uma História, de Minas”. E ele ficou pronto naquele final de ano. Sentiu orgulho de ter resgatado uma história, que parecia perdida em papéis

velhos e na boca de pessoas idosas. Mas que ele foi procurando, pedaço a pedaço, unindo-os para ter um sentido e cuidando, para que não se perdesse novamente.

Depois, teve que correr atrás de dinheiro, porque não tinha patrocínio. E pagou caro, mas valeu a pena, porque sua cidade ganhou uma história. Mas, nem todo mundo gosta de história. Como aquele jogador de futebol, que estava presente na foto do time campeão de 1972, que não quis comprar o livro de Reizinho. Poderia mostrar aos amigos, quantos não gostariam de ter jogado naquele time? E o livro ficou esquecido. Provavelmente, porque quase ninguém acha que o passado importa. Mas, é através dele, que encontramos as pegadas para seguir novos caminhos. E existe um livro, com a história da cidade de Reizinho. Uma história que recomendo a todos, que fazem parte dela.

Rapidamente aquele ano passou para dar lugar a um novo. É assim a vida, passa veloz e se a gente dormir no ponto, perde o transporte. Na escola, Reizinho teve problemas, porque houve uma mudança na grade curricular e tiraram a Filosofia, que ele lecionava. Ainda tentou argumentar diante da diretora, da inspetora e do secretário de educação. Mas, para que um contador, ou um enfermeiro precisa de filosofia? Tempos depois, estudando enfermagem, chegou à conclusão, que um enfermeiro precisa aprender, que um ser humano, é muito mais do que um conjunto de ossos, artérias, nervos e carne. A vida é muito mais que isso...

Bem, por causa da política, muita gente dançou e Reizinho viu ali, a oportunidade para não ficar desempregado. Tinha uma vaga para professor de Ensino Religioso na zona rural, e ela sobrou para ele. Era preciso

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viajar quase uma hora de ônibus para chegar lá, mas valia a pena.

Tinha que se adaptar as novas turmas, diferente das de antes. Dar aulas de quinta a oitava séries é bem diferente, do que no ensino médio. São quase crianças e brincam muito mais. Não foi fácil acostumar com as novas turmas. Reizinho acostumado com a simpatia de seus antigos alunos, passou a trabalhar com turmas que jamais o deixaram sossegado. Bem, mas também tinha alunos ótimos e, ótimos colegas professores, que compartilhavam daquela viagem por uma estradinha que precisa ser asfaltada. Na chegada, a imagem da igreja de São Sebastião é um conforto, para quem vai a Taboão. E, por um tempo, Reizinho só trabalhou ali. Conheceu muitas pessoas, e teve muitos alunos e alunas inesquecíveis...

O carnaval chegou, para dar uma pausa nos nossos problemas. Entra ano e sai ano, ele é sempre aguardado. Na sua cidade, chega sempre muita gente de longe, e veio a namorada, que arrumara no carnaval passado. Reizinho aproveitou para tirar o atraso, mas gostava mesmo era de outra morena. Pensava muito nela e fazia muitos planos.

Reizinho sempre foi um sonhador. Imaginava conquistar aquela morena e ser feliz para sempre. O tempo, porém, foi passando sem que ele falasse do seu amor a ela. Não sei o que ele esperava. Talvez um momento melhor, ou até mesmo um milagre, que a trouxesse até ele.

Até que em uma noite, ele chegou a rua e viu outro beijando-a. Sentiu seu coração disparar e até doer dentro do peito. Voltou arrasado para casa e tudo o que queria era desaparecer por um tempo. Mas nada sumia de sua mente. Teve de suportar aquela noite. Até os pensamentos

pareciam doer. E a dor daquela paixão foi só aumentando, porque o tempo foi passando e o namoro da morena se firmando. Reizinho ficava a pensar, se valia a pena sonhar com um grande amor, ou se é melhor entregar-se a quem nos quer bem. E por muito tempo, viveu angustiado.

Um dia, resolveu atender, o pedido de uma amiga, para ajudá-la na catequese da paróquia. Quase todo início de ano, ela o chamava e naquele ano, 2001, resolveu aceitar. Lembra-se, que era uma tarde de sábado. Tinha saído para fazer sua caminhada, quando lembrou que era hora da catequese de sua amiga. Nem teve tempo de voltar em casa, para trocar de roupa. Foi com uma calça, que nem estava muito limpa e com um tênis velho. Mas, aquelas meninas lhe sorriram com tanto carinho, que ele nunca mais ficou triste, quando lembrava, da morena que gostava.

Durante três anos, acompanhou aquela turminha. Algumas saíram, outras entraram, algumas permaneceram durante todo o tempo. E os sorrisos continuaram os mesmos, embalavam o coração de Reizinho.

Aos domingos, Reizinho sempre ia à Missa. Em uma delas, viu uma menina que parecia um anjo de verdade. E parecia tanto, que semanas depois, uma menina de verdade sentou-se ao seu lado e ele julgou ser ela. Mas, até hoje não tem certeza...

Bem, essa menina de verdade, chamava-se Shirley e tornou-se sua amiga. Reizinho convidou-a, para entrar na sua turma de catequese. Como escritor, quis escrever um livro só para ela. Assim, nasceu a história da menina inventora e do menino poeta. A Shirley tinha uma família maravilhosa, que sempre ia visitar. Adorava o café com

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queijo, que nunca faltava. O novo livro de Reizinho tinha o jeito daquela menina linda, que inventava seus sonhos, com o sonho de ser modelo e desfilar nas passarelas do mundo inteiro.

A menina inventora do seu livro precisava de um nome e ele surgiu, enquanto fazia a chamada de sua catequese. Havia uma moreninha chamada Inajá, de uma simpatia imensa. Uma lourinha que se chamava Júlia, de olhos azuis como o céu. E outra menina linda que se chamava Nayara. E ele imaginou Inajuyara, achou que ficaria bonito. Assim, a menina inventora ganhou o nome de três meninas, que Reizinho adorava. E a vida seguia feliz...

A vida seguia feliz. Reizinho nem mais se preocupava muito com o futuro. Gostava muito de viver aqueles momentos de ternura. Adorava sua turma de catequese. Quando terminava, levava as meninas para uma quadra de esportes, para jogarem futebol, handebol e voley. E foram tardes inesquecíveis, em que jogar handebol era a coisa mais gostosa do mundo. Corria como um menino, e a felicidade que sentia custava a passar. Assim, torcia para chegar logo um novo sábado, para encontrar de novo, aquelas meninas.

O tempo, porém, passou rápido e um dia a Shirley teve que ir embora, mudou-se para Três Corações. Reizinho por um tempo parecia ter ficado sem o seu coração, que foi com ela. Qualquer perda é triste nesta vida. A saudade é sempre doída. A gente fica sem saber o que fazer, fica perdido. Assim ficou Reizinho naquele final de ano. De férias, nem aulas tinha para preencher seu tempo. Os dias tornaram-se longos. Aquela amizade era a

coisa mais importante em sua vida, naquele momento. E tinha ido embora, para longe.

Mas a vida tinha que continuar. Era preciso publicar o livro que escrevera com ela. Tinha novamente que ir atrás de seus amigos, que eram os patrocinadores de seus livros. Todos pareciam gostar dos seus livros. Nem precisava mais ficar falando sobre o que tinha escrito, seus amigos compravam e pronto. Aquilo lhe dava a certeza de que era um bom escritor.

Desta vez, sentiu medo de decepcionar seus amigos, porque seu livro era destinado especialmente as crianças. Um livro infantil. As crianças da catequese deram-lhe um pouco de carinho e ele quis retribuir. Depois, já não achava que valia a pena, quebrar a cabeça para escrever um livro muito bom. Não tinha mesmo uma editora que o publicasse. Assim, era muito melhor escrever sobre aquilo que gostava. De coisas simples, como as poesias que fazia para as meninas que admirava. Estava começando a desistir de ser escritor, para ser poeta...

Nas férias, tudo parece dar um tempo. E é muito bom para quem tem grana, para viajar... Ele tinha, mas queria fazer mais um puxadinho em sua casinha. Para isso precisava economizar e era necessário ficar quieto em casa. Saindo, a gente gasta mesmo. Seu primo é que viajou e deixou um monte de passarinhos, para ele cuidar. Tinha até um mico, muito bonitinho, mas que lhe mordeu a mão e, o deixou a imaginar alguma doença, que poderia vir a ter no futuro. Reizinho Sempre foi hipocondríaco. Qualquer coisinha e já imaginava o fim do mundo. Até já conversara com vários psicólogos, buscando uma solução. Só que a única solução é viver para ver. O futuro pertence a Deus,

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cabe a nós viver o presente, que Ele nos dá. E viver é o máximo, uma grande aventura...

Aquelas férias foram longas e para se distrair, Reizinho ia para a rua. Lá, conversava com os velhos amigos. E eles sempre pareciam felizes, tomando uma cervejinha, jogando uma sinuca. Seria bom entrar na deles. Não esquentar muito a cabeça! Assim, jogava uma sinuca e sentia-se tentado a tomar uma cervejinha. Mas, como tomava remédios, tinha que se controlar. Conversava com seus amigos e o papo, muitas vezes, era para falar das mulheres. E, muitos deles, como Reizinho, sentiam também, a falta de uma namorada, que lhes desse carinho.

Bem, não era fácil conseguir esta namorada. Por isso, muitos já haviam desistido e buscavam consolo na cachaça. Reizinho sentia pena deles, também se sentia sozinho. Mas a cidade estava assim de gatinhas. Nas férias, a pracinha ficava lotada, e não havia como, não ficar de olhos nas meninas que passavam. Aos poucos, a saudade da Shirley ia diminuindo e o sonho de ser feliz não podia ser esquecido.

É preciso acreditar, que Deus tem sempre uma surpresa boa para nossa vida. Nesta vida, o mais importante de tudo é aceitar as dificuldades, porque elas existem para todo mundo. E ter fé em Deus! Porque Ele sabe de tudo o que precisamos. Na sua bondade infinita, sabe o momento certo de nos ajudar. Com sua ajuda, vamos realizando sonhos e nos aproximando da felicidade, que é sempre uma busca. Somos felizes a partir do momento em que visualizamos a felicidade, ainda que um pouquinho distante, com alguns passos...

Reizinho tinha uma amiguinha, que adorava brincar com ele. Tinha acabado de perder um dente e era uma gracinha. Assim, sempre que se sentia triste, ia até o bar da mãe da Tauane, sua nova amiguinha. E passava horas brincando de qualquer coisa. E tudo era paz em sua vida...

Acabaram-se as férias, passou o carnaval e a vida era bela. Reizinho trabalhava na escola e no seu salão de barbeiro. Nem tinha muito tempo livre. Mas era feliz cada vez, que saía para caminhar. Andava, às vezes, pela cidade, outras, fora dela. Mas. Nunca deixou de fazer um pouquinho de exercícios, para manter seu coração tranqüilo.

Aquele era ano de Copa do Mundo. Reizinho já não se empolgava tanto com o futebol. Nem quis assistir aos primeiros jogos do Brasil, que foram de madrugada. O inverno em sua cidade é muito frio e ele só ficava sabendo dos gols do Brasil, por causa dos foguetes que o acordavam. Somente na final, ele ficou empolgado.

Brasil e Alemanha, era a mesma final que sonhara ter jogado um dia. Até escrevera em seu livro, publicado nove anos antes. Até imaginou que a coincidência fosse valorizar o seu livro, para finalmente conseguir uma editora. Assim, ele foi até Juiz de Fora, para divulgar o fato na imprensa. Conseguiu até uma entrevista em um canal de televisão. Porém, tudo passou, todo mundo esqueceu seu livro e a única alegria foi ver Ronaldinho fazer dois gols, parecidos com os que imaginara ter feito em seu sonho.

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Foi muito legal, o lançamento do seu sexto livro, “Inajuyara, a Menina Inventora”. Enquanto caminhava para o clube, ouvia a banda tocar e sentia-se importante, por ser a causa daquela festa. Matou a saudade da Shirley que veio de Três Corações. Fez questão de convidar, para dar autógrafos ao seu lado, além da Shirley, a Michelle, que o ajudara no quarto livro. A Tauane que substituiu a Inajá, que se mudara para Rubim. A Júlia que foi a menina mais linda, que já viveu na sua cidade. E a Nayara para não faltar ninguém naquele momento feliz. Os amigos e amigas de Reizinho lotaram o clube e foi uma noite emocionante e inesquecível...

Bem, as emoções pasaram. Por um tempo, Reizinho não pensou em livros. Viveu de novo a realidade das aulas, dos cortes de cabelo e dos problemas, porque, de vez em quando, seu coração o assustava. Mas tinha que tocar a vida e enfrentar o medo. Porque quem trabalha não pode entregar os pontos. Assim, não perdia nenhuma aula e nem deixava de atender seus clientes. Era um guerreiro. E a vida seguia...

Reizinho resolveu fazer mais um quartinho e uma salinha, para aumentar sua casinha. Por muito tempo, se viu de novo, acompanhando o trabalho dos pedreiros e comprando materiais, que levavam sua poupança abaixo. Mas, foi gratificante, quando terminou a obra e viu sua casinha maior e mais bonita. Não é fácil melhorar as coisas. É preciso lutar para melhorar nossa vida e realizar nossos sonhos. Sem dúvida, é o trabalho que nos realiza. Através dele, podemos comprar muitos sonhos. E ainda, por mais duas vezes, Reizinho se viu envolvido em construção, para terminar sua casinha. E é muito bom ter

uma casinha da gente, para receber os amigos, ouvir música, descansar e esconder do frio, ou da chuva. E sonhar com o dia de encontrar a namorada dos nossos sonhos...

Naquele final de ano, começou a escrever um novo livro. Quis que a Júlia o ajudasse. Adorava aquela menina que ia a sua catequese e jogava futebol na sua escolinha. E era a mais linda que existia. Os cabelos, como se fossem raios de sol numa manhã bonita. O sorriso como se fossem todas as estrelas a brilhar numa noite sem nuvens. E os olhos, como se fossem o céu inteiro azul...

E como o livro era para a Júlia, tinha que ser de poesias. E as poesias eram simples, porque Reizinho nem é um grande poeta. Mas, a Júlia era linda e ele escrevia as poesias, como se fizesse um jardim. Por isso, o título “Poesia para as Flores”. E nunca foi tão fácil escrever um livro, por causa de uma menina linda, a mais linda que já existiu...

Chegou dezembro, vieram às férias e Reizinho foi visitar sua irmã em Barra Mansa. Sua irmã e o marido dela são pessoas de muita fibra, trabalham muito. São autônomos e vendem pulseiras brincos e outros artigos, que embelezam as pessoas. Ou seja, vendem sonhos em uma pequena barraca. Em compensação, possuem uma casa bonita e muito conforto. Um filho que quer ser artista e, tomara até esse livro sair, já seja importante. E duas filhas lindas, estudiosas e extrovertidas. Além deles, Reizinho tem tias, só ficou um tio, mas um montão de primos e primas, naquela cidade. Era muito bom visitá-los. Mas, não ficava muito tempo, porque tinha seus pássaros. Assim, depois de alguns dias, voltava com novas energias.

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Viajar faz um bem danado. Novos ares, novas paisagens, nos lembram, que Deus fez a natureza, para a gente curtir. Mas, também, para a gente cuidar dela.

Um novo ano começou e começo de ano é sempre um recomeço. E naquele ano, Reizinho teve poucas aulas e somente na zona rural. Bem, Taboão é um lugar maravilhoso. E os alunos de lá são bem espertinhos, dão até mais trabalho e se falar que eles são da roça... Reizinho cresceu na roça e, já morou em uma casinha toda cercada de matas. E sabe que não existe lugar mais bonito para se viver.

Aquele foi o único ano, em que não teve aulas na sua cidade. Tinha acabado de formar os últimos contadores e enfermeiros, que estudaram filosofia. Agora, seria preciso esperar uma nova oportunidade e ele nem acreditava mais, porque na outra escola em que trabalhara, estava assim de professores excedentes, que pegavam suas aulas de filosofia. Assim, tinha que investir e dar mais duro no seu salão de cabeleireiro. E, Por um tempo, sentiu-se um verdadeiro barbeiro.

Novidade naquele ano foi o festival de Música Popular Brasileira, que aconteceu em sua cidade. Quantos cantadores bons possuem o nosso país! Quantos poetas, que fazem letras lindas! Foi um momento diferente, com músicas que nos fazem pensar na beleza da vida. Um pouco diferente das músicas que fazem sucesso hoje e servem apenas, para a gente dançar e agitar. As músicas de MPB nos levam a sentir poesia.

Reizinho queria ser poeta. Fez até uma música, para o seu grupinho de catequese cantar. Foi maravilhoso ouvir a platéia gritar, já ganhou, ao final da canção. Bem,

ela acabou não ganhando o prêmio, mas foi maravilhosa a sensação de participar de um evento inesquecível. Era um evento para ser repetido nos anos seguintes, mas ficou só naquele. A cultura precisa de muito incentivo neste nosso país.

Um dia triste, foi quando a Júlia se mudou. A menina lourinha mais linda do mundo deixou apenas uma foto. Como uma flor, que Reizinho colocou na capa do seu livro, que ela ajudara a fazer com seu sorriso. Sua mãe prometeu trazê-la, quando fosse a noite de autógrafos. Mas, a tristeza ficou no seu coração, por muito tempo.

Reizinho precisava espantar aquela dor e resolveu viajar. É gostoso ver novas paisagens, conhecer novos lugares e rever amigos que se foram. E foi assim, que chegou em Três Corações, para visitar a Shirley. Achou linda a cidade e matou as saudades que sentia. Foi gostoso ouvir da Shirley, que a escola onde estudava, sempre a homenageava, por causa do livro que escreveram juntos. Como era bom ver aquela menina feliz! E quem diria, que sua mãe, além de gostar de passarinhos, era pescadora. Tinha pegado alguns peixes e estavam uma delícia, como todo o almoço. Foi mais um momento de alegria na vida de Reizinho. Na volta, o gostoso é pensar que podemos fazer outras viagens e sair um pouco da rotina do dia a dia. É maravilhoso conhecer, encontrar, ou pelo menos buscar algo novo. Por isso precisamos ter sempre um sonho em mente. E nem precisa ser grandioso, basta ser um sonho!

Como havia prometido, a Júlia voltou para a noite de autógrafos do seu novo livro. Foi uma noite muito especial, com a presença de muitos amigos e amigas de Reizinho. Ele sempre se orgulhou daqueles momentos

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mágicos, que os lançamentos de seus livros proporcionavam. E naquele, não faltou nada. Os cantores da cidade, seus amigos artistas, soltaram suas vozes com brilho, cantando belas canções. E a presença da Júlia, a menina lourinha mais linda do mundo, já era completa alegria no seu coração. E aquela lembrança será eterna para Reizinho.

Assim, Reizinho chegava ao sétimo livro publicado. Mais um trabalho que deixava escrito para os seus amigos. As crianças adoraram suas poesias. Ficava empolgado, quando via suas poesias ilustradas e colocadas no mural da escola. Poesia para as Flores, é sem dúvida, um de seus melhores trabalhos...

A Tauane ainda era pequena e brincava muito com Reizinho. Estava sempre no bar de sua mãe. Jogavam dominó, baralho, jogo da velha e tudo o que ela inventasse. No vôlei e no futebol, era muita sorte não quebrarem as lâmpadas. E a Tauane ganhava sempre, mas Reizinho voltava pra casa feliz. E acho que isso é tudo, que a gente mais precisa nesta vida.

A Tauane até o ajudou a arrumar uma namorada. A moça viu que estavam sempre brincando e deixou com ela, uma carta apaixonada para Reizinho. E foram muitos beijos gostosos, até que ele resolveu terminar. Nem teve um motivo. Talvez, porque sonhasse e sempre acreditou nos seus sonhos e eles eram impossíveis, e aquela moça já tinha sido conquistada. Reizinho sempre sonhou com o impossível, ou talvez, era feliz e nem precisava ter uma namorada. E mais um ano chegou ao fim.

Quando começou um novo ano e as aulas voltaram, aconteceu o que ele nem esperava mais. Surgiu novamente para ele, uma vaga no colégio de sua cidade. Aquilo era maravilhoso. Reizinho tinha uma amiga, de quem gostava muito e estudava lá. Assim, a primeira coisa que pensou, não foi no dinheiro que iria ganhar, mas no prazer que ia sentir, ao dar aulas para sua amiga.

Agora, tinha dois empregos. Um pela prefeitura na escola da zona rural e um pelo estado, na escola próxima a sua casa. Seu salário aumentou e era gratificante saber, que poderia gastar mais um pouquinho. Poderia fazer novos planos e sonhar com um futuro melhor.

Reizinho gostou de todas as novas turmas. Bem, uma andou pegando no seu pé. Mas, aos poucos, foi cativando-a e conseguiu mais um montão de amigos. No carnaval daquele ano, saiu com bastante dinheiro no bolso. Desfilou em uma escola de samba e bebeu todas. Foi bom porque se divertiu muito e foi só uma noite. Bebida é fogo! Reizinho não sabe é como tem gente, que bebe cinco, seis e até mais dias, sem parar. Acho que beber demais está por fora. O melhor é manter a cabeça boa.

Sua turma de catequese cresceu e foi estudar outras coisas. Mas, Reizinho não deixou de ser catequista. Arrumou uma nova turma. Não era igual a de antes, mas também lhe deu muitas alegrias. Nela conheceu a Monize, que o ajudou a escrever seu oitavo livro, “A Filosofia do Menino Poeta”. E ele sempre quis escrever um livro sobre filosofia, em que era formado. Achava que poderia escrever um livro, onde as crianças e as pessoas simples

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pudessem aprender um pouco e, tirar aquela idéia, de que filosofia é coisa de pessoas superdotadas ou fascinadas pelo saber. Assim como ele também imaginava antes de entrar na faculdade. Quando estudava, achou alguns professores orgulhosos demais em saber algo, que nem é o principal na vida. Para Reizinho, o mais importante é saber, que nem podemos conhecer tudo. Os grandes mistérios continuarão insondáveis para a nossa inteligência. Mas, a filosofia nos ensina a buscar soluções para melhorar nossa vida e o mundo à nossa volta. E nos leva a concluir, que a gente existe, porque um Deus maravilhoso nos criou e nos deu vida e inteligência para amar.

O tempo passou rápido naquele ano. Com mais compromissos, os dias voavam e deixavam em Reizinho, a sensação de que somos impotentes diante do tempo. Via muitos de seus sonhos quase perdidos. Era preciso fazer muitas coisas. Mas, o mais importante a ser feito, são obras que nos dignifiquem diante de Deus.

A Igreja que Reizinho participa, parece ser uma das formas de um bom trabalho. A vida parecia ter mudado, mas os pobres continuam passando muitas dificuldades. O governo até criou alguns programas assistenciais. Mas, muito pouco para diminuir a desigualdade, no nosso meio. É preciso melhorar muita coisa, começando pela educação. Reizinho nem precisa falar do seu salário. Para quem luta com dificuldades, falar em mudança social é complicado. Por isso, via na igreja, o caminho para se chegar a Deus. A Igreja sim, por ter mais poder, deve lutar mais pelas mudanças sociais. Assim, ele ajudava-a, mesmo

imaginando que a igreja era muito mais rica que ele. Abaixava a cabeça, sempre que ia até ela e via tudo limpinho. E sentia, que ela realmente precisa ser muito mais rica do que todos nós. Porque somente nela, nos sentimos acolhidos de verdade. Ajudando-a, podemos melhorar o mundo. Mas não podemos ser cristãos de braços cruzados. Temos que agir e gritar, se ela mesma não estiver agindo. Jesus Cristo é o exemplo a ser seguido.

Aquele ano foi chegando ao fim, Reizinho chegava ao final de mais um ano de trabalho. Eram novas turmas que se formavam. Ele sempre ia à formatura de seus alunos da Escola São Sebastião. O distrito de Taboão é muito bonito. Tem um povo animado, que vem de lugares distantes até chegar a igreja. Igreja que é o ponto mais bonito do local. Situa-se no alto de um morro, de onde se avista as mais ou menos cem casas do povoado. A escola onde Reizinho leciona é também, muito bonita. Dela avista-se um cruzeiro, no morro em frente, que reflete a fé daquele povo. Taboão é um local cheio de serras. Para se chegar lá, tem uma descida de dar arrepios. Felizmente, parece-me que nunca ocorreram acidentes. Sinal de que os motoristas de lá são bons. Mas, voltando ao assunto da formatura, a Igreja se enche para a Missa e no final, são entregues os certificados aos alunos, que no ano seguinte, terão que estudar na cidade.

Já os alunos da cidade também fazem uma formatura bonita e, naquele ano, convidaram Reizinho, para fazerem um passeio com eles. Foram a Aparecida do Norte, um passeio maravilhoso. Chegar a Aparecida é uma sensação diferente. A igreja destaca-se imponente. Quase

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sempre os romeiros chegam ao amanhecer e tem-se aquele sentimento de paz. Naquela manhã Reizinho estava feliz. Era a primeira vez, que viajava com os alunos. Sentia-se responsável e até mesmo, com medo de se perder deles. Mas, o dia foi lindo. Somente achou, que, rezaram pouco. Após uma pequena passagem pela Basílica, foram para o parque e o resto do dia foi de diversão. O Magic Park tinha muitos brinquedos e Reizinho procurou aproveitar ao máximo. Era como se tivesse voltado a ser criança, andou até na montanha russa. Foi um passeio maravilhoso!

O tempo passa muito rápido e logo, uma nova temporada de futebol começava. Para sua surpresa, seu amigo Erivelton, começou a brilhar como goleiro do Americano de Campos. Reizinho prestou uma atenção danada no jogo contra o Botafogo, transmitido ao vivo para sua cidade. Era emocionante ver aquele menino, que antes jogava com ele, agora sendo um profissional. E meses depois, ele estava no Vasco, o time de Reizinho, onde também fez partidas brilhantes. Pena que não teve mais chances, voltando para os times pequenos. Mas deu muito orgulho a todos de sua cidade.

Reizinho lançou mais um livro, desta vez ao lado da Monize. E a presença mais importante, era a de seu pai. Estava empolgado com aquela festa, a banda, os corais e todos os amigos de Reizinho. Quando ia buscar mais cadeiras, seu pai perguntava se ainda ia chegar mais gente. E muitas pessoas ainda foram chegando e a noite de autógrafos foi maravilhosa, para orgulho do pai de Reizinho.

Como Reizinho estava ganhando melhor, resolver fazer mais um aumento na sua casinha. Desta vez, ela ficou enorme com varanda, garagem e grades, passou a ser uma casa de verdade. E seu pai dizia: “você não está fazendo uma casa, está fazendo uma mansão”. E a casa ficou mesmo bonita com três jardins, que fez para nunca mais esquecer das meninas, que deram nome à menina inventora: Inajá, Júlia e Nayara.

Um dia, seu pai voltou da rua com sua bicicleta. Disse que tinha levado à oficina, para dar-lhe uma ajeitada. Tinha até dado uma gorjeta para o rapaz que a consertou. Foi a última vez, que Reizinho falou com ele. Pouco depois ele foi para a roça. A antiga casa de seu avô. Vivia lá a maior parte de seus dias. Vinha a cidade, geralmente aos sábados, para ir a Missa de domingo. A roça era uma paixão desde sempre. Foi criado nela. Trabalhara um pouco nas cidades, mas durante a maior parte de sua vida, morou na roça. Passara muitas dificuldades antes de se aposentar. Mas sempre trabalhando, aqui e ali, nunca lhe faltou um dinheirinho. E Reizinho sentia orgulho dele.

Dias depois, seu pai foi encontrado morto, por um primo de Reizinho. Ao ser avisado, foi para lá e viu seu pai deitado de bruços, agarrado a relva e a terra. Para Reizinho, a maior sensação de tristeza na vida. Uma dor sem dor, que o envolveu vários dias...

A casa toda revirada, como ele nunca vira antes. Tudo o que havia nas gavetas, nas caixas, embaixo dos colchões, tudo jogado no chão. E a polícia levada ao local, afirmou e assumiu, que algum aproveitador, encontrando a casa aberta, resolveu procurar algum bem, ou dinheiro.

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A vida seguiu triste por muito tempo, para Reizinho. A saudade ia aumentando, de acordo com o passar dos dias. E a esperança ficou só em Deus, o Senhor da vida, que nos revelou a existência de outra muito melhor do que essa: a vida eterna. Onde reencontraremos aqueles, que conviveram conosco e, que foram portadores da paz neste mundo. E Reizinho, sempre às voltas com o medo do seu coração dar problemas, sabe que a vida aqui na terra é finita. Tudo passa num instante. O mais importante não é pensar em vinganças, até porque, nem sabe como seu pai morreu. Se foi assassinado, ou se foi de forma natural. Assim, tudo o que tinha a fazer era rezar, para Deus dar um bom lugar para seu pai ser feliz.

A opinião de Reizinho sobre seu pai, era de alguém que errou muito pouco, porque tudo o que fazia ou buscava, era com o coração. Nunca se importou de enfrentar as dificuldades, talvez por isso, permaneceu pobre a vida toda. Mas, acho que jamais fez algo que não concordasse, ou que não quisesse. Foi uma pessoa livre...

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Reizinho continuou dando aulas, catequese e tocando a vida, como deve ser. A Tauane entrou para a sua turma de catequese e permaneceu ali por dois anos, sendo a sua alegria. Era a primeira que chegava e, quase nunca perdia um encontro. Tinha também que ser escritora. E quando ele pensou em escrever um livro sobre a catequese. Com as lições, que nem sempre conseguia passar nos encontros. Até porque a catequese é, quase sempre, uma

festa pras crianças. Onde a atenção delas não é grande, e não dá para conseguir muita qualidade na aprendizagem. Um livro, porém, poderia sempre ser lido e relido por elas, além de atingir muitas outras pessoas. Sendo assim, ninguém merecia mais do que a Tauane, escrever com ele, aquele novo livro. E Reizinho escreveu mais um livro: “Os caminhos de Deus”.

Gostoso mesmo era assistir televisão com sua mãe. Todas as noites, ela adorava ver a novela das oito e Reizinho ficava ali. Não saía até dar meia noite, quando ia para sua casa. Somente quando ia a rua, ele não assistia televisão com sua mãe. Sem seu pai, o negócio agora é rezar para ter sua mãe por muitos anos. Escrever sobre mãe, nem é preciso muito. A gente sempre acha ela, a melhor pessoa do mundo. Ainda que, às vezes, não concorde com alguma coisa, temos que deixar para lá, porque mãe sabe muito mais que a gente. O melhor mesmo é assistir televisão e escutar seus conselhos. Mãe é Tudo na nossa vida. Enfim, a mãe de Reizinho só podia ser uma rainha.

Um novo ano chega ao fim e tudo se renova na escola. Novas turmas se formam e vão em busca de seus sonhos. Deixam saudades, levam a esperança que Reizinho tem, de que realizem seus sonhos. Como aquela aluna que se formou em educação física, depois de ter chorado, quando a turma em que estudava foi extinta. Como aquele aluno que hoje é médico, advogado, vereador, engenheiro. Aquelas três alunas, que tempos depois, tornaram-se suas diretoras na escola. Aquela aluna sua prima, que um dia tornou-se sua professora, a melhor que já teve. A aluna que

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tornou-se agente de saúde e sempre lhe trazia o remédio que precisava. Todos são um orgulho para Reizinho. Mas, os que mais o emocionam , são os que ele encontra trabalhando em uma obra, virando um concreto. Talvez, nunca vão ficar ricos, por faltar-lhes grana para uma faculdade. Mas, também, nem Reizinho é rico.

Mais um ano começa, ano de Copa do Mundo e de emoções fortes para Reizinho. Foi um ano de muitas alegrias. Chato mesmo, foi ver o Zidane fazer a melhor partida individual, que ele já viu. Colocou Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Zé Roberto no bolso e dominou o meio de campo. A derrota de um a zero foi pouco, a França poderia ter feito uns três gols. Todo aquele show de Zidane despertou nele a vontade de jogar futebol novamente. E, depois de seis anos ele volta à quadra da escola, para disputar uma partida de futebol com os amigos. Domina a bola na entrada da área. Finge que vai driblar para a direita, mas com um elástico traz a bola para o meio e bate de esquerda, no ângulo do goleiro Diego. Mais um golaço na sua vida.

Reizinho ganhou mais uma sobrinha, a Ruth. Seu irmão do meio tornou-se um pai todo orgulhoso. É um homem sério. Conseguiu com muito esforço se firmar na profissão de motorista! A vida proporcionou a Reizinho viver sempre perto de seus irmãos, o que é um motivo de alegria. Seu irmão mais novo é que ainda não teve a sorte, assim como muitos, de ter um emprego mais estável. Assim, às vezes, fica irritado, o que é compreensível. E a convivência torna-se mais difícil. Mas, o mundo está aí, imenso. Sempre há um lugar para quem busca um sonho,

que não seja muito grande, mas contenha o essencial: a felicidade! E ela se encontra tanto em um palácio, quanto em um barraco. A felicidade mora mesmo é no coração das pessoas...

O lançamento do seu nono livro, Os caminhos de Deus, foi um sucesso. A Tauane estava linda, toda feliz. Reizinho, mais uma vez, ficou todo orgulhoso com tantos amigos presentes. Assinou um montão de livros. Era mais um trabalho realizado. Seus livros tornavam-se uma espécie de bem, que espalhava aos amigos. Sempre espera que um dia eles possam se espalhar por outros lugares e chegar a muitas outras pessoas.

Seu livro, Os caminhos de Deus, traz em si a mensagem cristã. Faz-nos pensar de novo na história da Salvação. Pensar de novo, porque já existem milhares de livros falando sobre o assunto. Mas, o livro de Reizinho é mais um para nos lembrar, que Jesus Cristo é o modelo a ser seguido. O nosso caminho neste mundo nos leva a Deus, e Jesus se revelou a nós, como o Caminho, a Verdade e a Vida. E, com certeza, precisamos de um Caminho, porque quase sempre, nos sentimos perdidos. Precisamos da Verdade, porque nas nossas maiores dificuldades, ficamos sempre em dúvida. E a Vida é o que temos de mais precioso. Assim, a fé em Jesus é o maior tesouro que podemos ter. E precisamos fazer algumas obras, para consolidar nossa fé, que ás vezes, se enfraquece por causa dos nossos imensos medos. Somente Jesus é a nossa segurança, e é preciso que esse Jesus, o Filho de Deus, chegue aos corações de todos. Precisamos ser missionários para que isso aconteça.

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Aquele ano se aproximou do fim e Reizinho foi para Guarapari, passear com seus alunos. Foi uma semana de alegrias, ao lado de uma turma maravilhosa que brincava o tempo todo. Uma cidade tranqüila, com belas praias, uma natureza exuberante e um povo acolhedor. Adorou ver seus alunos se divertindo, muitos nem conheciam o mar, pareciam encantados diante de tamanha obra de Deus. Foi muito bom sentir que todos se respeitaram e foi uma semana inesquecível. Alguns alunos até lhe sugeriram escrever um livro sobre o passeio. Bem, um livro eu não sei, mas um parágrafo...

O amor sempre chegava na vida de Reizinho. Um sentimento, sempre novo, que vinha de surpresa e deixava sua vida muito mais emocionante e feliz. Eram momentos de pura magia, sem nenhuma explicação, que o faziam viajar por espaços, que pareciam o céu. E sempre imaginava, que ele seria eterno. Acostumava-se com a felicidade que o embriagava e tudo lhe parecia mais belo. A vida com mais sentido, a fé com mais certeza. O amor, para ele, era sempre um presente de Deus. E todo o resto passava a ficar em segundo plano. Era feliz, parecia não precisar de mais nada...

Até que o amor se ia. Tão de repente, quando chegava. Sem aviso prévio, sem deixar recado, simplesmente ia. E Reizinho que tinha se acostumado a ele, sentia-se totalmente perdido. Como viver sem aquela felicidade que o embriagava? E começava um tempo difícil, onde a tristeza incomodava muito o seu coração. E tinha que reaprender a viver como antes. Como um reizinho simples, que nem tinha um amor, mas adorava

viver. Tinha que reaprender a gostar das pessoas simples, onde está o verdadeiro sentido do amor. E tinha que reaprender a gostar dos seus passarinhos, das flores dos seus jardins e dos caminhos onde passava em suas caminhadas. E tinha que recolocar em primeiro plano, muitas coisas que deixara de lado. E rezar para que Deus lhe desse um novo amor. Um amor mais sólido que é o sonho de todo mundo...

A vida tinha que continuar, e Reizinho nunca deixou a peteca cair. Dava suas aulas e suas catequeses. Nunca deixava de ir a nenhuma, mesmo estando triste. É muito difícil aceitar nossos limites. Saber que, na maioria das vezes, a gente sai perdendo. E é preciso assimilar essa derrota, e encontrar um incentivo para buscar algo melhor. A vida é luta constante e as perdas devem ficar para traz. A felicidade é importante, mas a gente não veio a esse mundo para viver num paraíso. Aquele amor, que nos faz deixar de lado muitas coisas importantes, talvez o essencial, não pode ser verdadeiro. O verdadeiro amor deve ser aquele que nos faz ter compaixão das pessoas que sofrem. E aquele que nos faz alegrar-se com as pessoas simples, que estão do nosso lado no dia a dia.

O amor não pode ser somente essa relação entre duas pessoas. Quase sempre, um deixa o outro sofrendo, porque encontrou alguém melhor... Para Reizinho, o amor é também a necessidade de calor humano, que temos na vida. Preenchendo esta necessidade, podemos dizer que temos amor. Então, jamais faltou amor em sua vida. É impossível ser professor, catequista e dizer que sente falta de calor humano, falta de amor. Talvez por isso, tenha

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resolvido escrever um livro contando sua história, mesmo não sendo alguém importante. Sentia-se rico, porque na sua vida, foram raros os momentos, em que não teve uma paixão. E essa vida não é nada sem paixão.

Um dia, dirão que o menino poeta foi alguém, que amou todas as meninas bonitas que conheceu. Mas não gostava daquelas que se dispunham a fazer aborto, impedindo de nascer, talvez, a menina mais linda do mundo. Achava que uma mulher que faz um aborto é tão criminosa, quanto uma que joga uma criança pela janela de um prédio. Da mesma forma, um médico, que executa um aborto para ganhar uma mixaria, é tão criminoso quanto um bandido, que mata para roubar, ou um cidadão comum que mata por vingança.

Bem, ninguém é feliz sozinho. Assim, Reizinho continuava esperando encontrar alguém, para dividir sua vida. E o mundo está assim, cheio de pessoas maravilhosas. A gente é que, às vezes, fica cego quando exagera no gostar de alguém. E o futuro está nas mãos de Deus. Não se pode prever muitas coisas. Assim, é preciso cuidar da natureza. Não gastar tudo o que ela nos proporciona, porque muitos virão depois de nós e também, merecem ter aquilo que temos hoje.

A vida é um caminho que passamos. Os momentos que nos julgamos felizes, são aqueles que nos sentimos grandes demais... Assim como nos momentos de tristeza, nos sentimos pequenos demais... Precisamos orar para não esquecer de Deus nos momentos de orgulho. E para que não nos falte a fé, quando nos sentirmos pequenos demais. Felicidade é a vida que nos foi dada por Deus! Viver é a

felicidade!E a vida vai continuar sendo um mistério. Poderá trazer sempre uma nova surpresa, que inundará o nosso coração de alegrias. Até essa chegada, poderemos nos divertir com o que temos em mãos. É preciso amar as pessoas e fazer tudo para ajudá-las a serem melhores... E Reizinho era um reizinho, que muitas vezes, sentia-se um menino poeta. E escrevia um novo livro, com a Maryanna...

Agradecimentos:

A Deus, pelo dom da vida!!!

A meus pais, por tudo o que fizeram por mim...

A Inajá, Júlia, Nayara, Shirley, Nívia, Michelle, Monize, Tauane, Marina, Miguel, Erivelton e Dom Roque, que são os personagens, que tiveram mantidos seus nomes verdadeiros...

E aos demais personagens, os quais tiveram os nomes trocados, por motivo de privacidade. Todos são pessoas amigas e especiais por fazerem parte da história de Reizinho.

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