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O MEDO INSTRUMENTALIZADO NA LITERATURA UTILITÁRIA: ANÁLISE DA REVISTA INFANTIL E CATÓLICA “O BEIJA-FLOR” (1916-1918)

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  • Revista Labirinto, Porto Velho-RO, Ano XV, Vol. 22, p. 379-399, 2015. ISSN: 1519-6674. _____________________________________________________________________________________________________

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    O MEDO INSTRUMENTALIZADO NA LITERATURA UTILITRIA: ANLISE DA

    REVISTA INFANTIL E CATLICA O BEIJA-FLOR (1916-1918)

    Yohan Leoni

    Resumo: O objeto de estudo deste artigo a revista infantil e catlica O Beija-Flor, publicada em Petrpolis (RJ) a partir de 1915. Especificamente, sero analisados exemplares de 1916 a 1918. Baseando-se nos contos publicados, pretende-se traar um exame sobre o papel do medo relacionando-o s possveis caractersticas da literatura utilitria em consonncia com o universo simblico religioso da igreja catlica brasileira do incio do sculo XX. Para tal, inserimos a revista no contexto editorial dos peridicos do perodo, com objetivo de melhor delinear a sua leitura e posicionamento, assim como contextualizar a prpria literatura infantil da poca. O exame se basear nos pressupostos tericos de Perrotti (1986), no que concerne a literatura utilitria, e em Dborah Lupton (1999) e David Le Breton (2007), no que se refere ao medo, alm do apoio da historiografia que estuda o tema e o perodo.

    Palavras-chaves: Revista infantil O Beija-Flor; Literatura utilitria; Representao do medo.

    Resumen: El objeto de este artculo es la revista catlica y infantil "O Beija-Flor", publicado en Petrpolis (RJ) comezando en 1915. En concreto, las copias sern analizadas desde 1916 hasta 1918. Basado en los cuentos publicados, tiene la intensin de dibujar un examen de la funcin del "miedo" en relacin a las posibles caractersticas de la literatura utilitaria en lnea con el universo simblico religioso de la Iglesia Catlica brasilea de principios del siglo XX. Para esto, insertamos la revista en el contexto editorial de las revistas de la poca, con el fin de delinear mejor su lectura y posicin, as como contextualizar la literatura infantil de la poca. El examen se basa en supuestos tericos de Perrotti (1986), con respecto a la literatura utilitaria, y Deborah Lupton (1999) y David Le Breton (2007), en relacin con el "miedo" y el apoyo de la historiografa que estudia el periodo.

    Palabras clave: Peridico infantil O Beija-Flor; Literatura utilitria; Representacin del miedo.

    Introduo

    O final do sculo XIX e incio do XX palco da produo em massa da

    literatura infantil. A evoluo das tcnicas de impresso possibilitou o surgimento

    das revistas para o pblico em geral. Entretanto, as mudanas na percepo da

    funo da literatura infantil no mudaram do mesmo modo que as tcnicas do

    impresso. Desde o sculo XVIII at meados do sculo XX, a literatura infantil

    possua funo predominantemente pedaggica, como salienta Perrotti:

    Hoje, j se tronou lugar-comum reconhecer que a literatura para crianas e jovens tem desempenhado um papel predominantemente pedaggico,

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    desde o sculo XVIII, quando da sua constituio em forma de comunicao escrita dirigida por um adulto a uma criana. (1986:27)

    Esse tipo de literatura, salienta o autor, caracterizada pela falta de

    preocupao esttica em prol do objetivo didtico, ou seja, a produo pensada

    para comunicar determinada mensagem, independente das consequncias

    estticas.

    No incio do sculo XX, a literatura infantil ainda possui este carter

    pedaggico, no entanto, as concepes pedaggicas e polticas do perodo, como

    destaca Ariesii, objetivam a criana como objeto passvel de determinada

    construo, como prognstico. Neste momento, comum encontrar literatura infantil

    com propostas que visam construo do valor cvico em busca do progresso da

    naoiii.Os contos que sero examinados esto inseridos neste contexto.

    Buscar-se- as caractersticas utilitrias com base nos pressupostos de

    Perrotti e analisar-se- o papel do medo como possvel instrumento utilitrio.

    Algumas questes paralelas devem ser consideradas, visto que a revista faz parte

    de uma investida catlica no seio dos impressos em um perodo que este meio

    comunicativo mostrou-se de grande valor social.

    Uma dessas questes a investigao do universo simblico da igreja

    catlica brasileira do incio do sculo XX e do prprio meio editorial do qual faz parte.

    Para tal, utilizaremos, principalmente, os estudos de Martins e Luca (2008) e Manoel

    (2004). As obras circundam a rea do impresso, a relao com a poltica do perodo

    e os pressupostos do pensamento catlico do incio do sculo. Alm desses

    estudos, cabe salientar que os pressupostos que concernem concepo de

    representao e prticas compartilham das concluses de Roger Chartier, que

    considera a leitura como prtica criadora e produtora de sentidos singulares

    (2002:123).iv

    Estas questes possuem importncia vital para a anlise proposta neste

    artigo. Uma vez que necessrio delimitar os referenciais simblicos da igreja

    catlica, para, a partir disso, considerar de que modo o medo pode ser utilizado

    como um instrumento para a literatura dispostas na revista.

    Este exame prope, portanto, indicar a relao do universo simblico da igreja

    catlica brasileira do incio do sculo XX com a possibilidade de instrumentalizar o

    medo na produo de sua literatura distribuda pela revista O Beija-Flor. Busca-se

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    salientar como o medo foi materializado nos contos e de que modo, se ocorrer, ele

    assume uma funo instrumental nas narrativas.

    Referencial terico

    Dada a natureza da fonte e da prpria problemtica da investigao, convm

    iluminar os caminhos tericos a serem percorridos e que serviro como base para as

    proposies que sero produzidas. A primeira linha terica refere-se literatura

    utilitria.

    H uma extensa discusso sobre o estatuto da literatura enquanto discurso

    utilitrio, esttico ou engajado, entretanto, neste artigo, utilizaremos os conceitos de

    acordo com a delimitao proposta por Perrotti, para quem a literatura utilitria

    distingue-se por fazer do texto um suporte ideolgico. Segundo o autor:

    Visto isso, o problema que nos fica o de que a literatura para crianas e jovens no se satisfez com a tradio da arte concebida enquanto instrumento apenas em um de seus nveis, mas, exagerando a tradio, reduziu-se a isso, fazendo do contingencial, estrutural e da literatura, propaganda, ao buscar apenas o exortativo, o edificante, o didtico [...] (1986:38)

    Ao que concerne ao medo, baseamo-nos na sociologia do risco, mais

    especificamente em Lupton, na Obra Risk (1999). De acordo com a autora, o medo

    possui caracterstica criadora, uma vez que busca evitar uma situao de riscov.

    Consequncias que antes apenas afetavam o indivduo tornam-se riscos, sistematicamente causados, estatisticamente descritveis e, nesse sentido, tipos de evento previsveis, que podem tambm ser sujeitos a normas supra individuais e polticas de reconhecimento, de compensao e outras para os evitar [...] (1999:6)

    Assim, certos medos, no perodo moderno, so vistos como previsveis,

    diferenciando-os da concepo medieval, na qual, em sntese, as adversidades

    esto relacionadas s causas divinas e naturais que fogem a qualquer possibilidade

    de preveno ou controle. Especificamente, neste exame, o medo da laicizao da

    sociedade, por parte da igreja catlica brasileira, torna necessrio a ao

    eclesistica de divulgar um contedo destinado a prevenir essa mudana. As

    narrativas analisadas, portanto, esto inseridas neste contexto.

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    Para delimitarmos contextualmente o perodo e o espao que cerceia nosso

    exame, utilizaremos, principalmente, o livro Histria do Brasil na imprensa de Martins

    e Luca (2008) que investiga a evoluo tcnica do impresso, os incentivos a

    aquisio de papel e a alfabetizao.

    Segundo as autoras, as mudanas sociais decorrentes da sociabilidade

    moderna e a disponibilidade tecnolgica do perodo, possibilitaram a produo de

    um novo formato de peridicos. Portanto, no incio do sculo XX que ocorre o

    nascimento desse tipo miditico destinado a um pblico especfico.

    Este perodo, denominado de Belle poque (1900-1920)vi, tem como

    caracterstica as revistas especializadas. Convm, uma vez que nosso objeto um

    peridico que se encaixa na classificao supracitada, determinar as caractersticas

    das revistas ditas modernas. Estas revistas possuam ilustraes coloridas com

    qualidade e tratavam de assuntos variados de maneira breve. As ilustraes

    visavam garantir que mesmo os analfabetos pudessem consumir as informaes.

    Como descreve de Luca:

    As inovaes no se limitaram s mudanas na estrutura de produo, organizao, direo e financiamento, mas atingiram tambm o contedo dos jornais e sua ordenao interna, que comeou a exigir uma gama variada de competncias, fruto da diviso do trabalho e da especializao. Este, por sua vez, no se circunscreveu composio e a impresso propriamente ditas, mas redatores, articulistas, crticos, reprteres, revisores, desenhistas, fotgrafos, alm de empregados administrativos e de operrios encarregados de dar materialidade aos textos. (2008:152)

    Entre as revistas que se destacaram como referncia para o conceito de belle

    poque, podemos citar a revistas Kosmos (1904-1909), Fon-Fon (1907- 1945) e a

    Careta (1907- 1945). Estes peridicos, talvez como produto da prpria sociabilidade

    moderna, traziam de maneira sintetizada os mais variados assuntos, desde poltica,

    passando pela arte, cincia, literatura e teatro. Segundo Maria L. Eleutrio, estas

    revistas eram:

    [...] como paradigma do mais bem acabado empreendimento entre as revistas consideradas modernas. [...] Em Kosmos encontra-se a viso do progresso material e civilizatrio que permeou aqueles tempos eufricos, metaforizados em nossa belle poque. [...] Em outro estilo, Fon-Fon (1907-1945), integrando em seu nome uma conotao francamente urbanizante, congregava os simbolistas, figurando a representao do modernismo carioca. Suas capas e pginas espelhavam a autoimagem que a elite e as classes mdias em formao faziam do progresso: fotografias de modernos edifcios, a amplitude da avenida central, flagrantes de transeuntes nas

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    movimentadas ruas de comrcio no centro da cidade, figuraes do urbanismo, tudo isso impresso em papel couch de alta gramatura, veiculando os textos entre guirlandas art nouveaux. (In: MARTINS e LUCA, 2008:90)

    A abundncia de cores, os inovadores planos grficos e a diviso do peridico

    em colunas, diferenciava-o do formato utilizado durante o sculo XIX. Essas

    mudanas grficas acompanhavam as transformaes que ocorriam a nvel urbano,

    social, tcnico e comunicacional.

    No mbito da noo de progresso e de belle poque, relacionado s

    consideraes da igreja catlica do perodo, servir de base a obra O pndulo da

    Histria, de Manoel (2004). O autor examina a concepo catlica sobre o progresso

    laico, relacionando-o com a cosmogonia catlica e sua interpretao das mudanas

    na sociabilidade brasileira.

    De acordo com o autor, diante da crescente influncia da ideia do homem

    possuir a capacidade de produzir a prpria histria, como, por exemplo, em

    pressupostos da poltica liberal e das vertentes filosficas iluministas, a concepo

    da histria escatolgica catlica perde importncia. Esse contexto, portanto,

    preocupa a elite religiosa. Ainda sobre a histria na perspectiva religiosa, o autor

    argumenta:

    A filosofia da histria elaborada pelo catolicismo ultramontano do sculo XIX e primeira metade do sculo XX, coerente com seus pressupostos, seguir um trajeto diferente, oposto. [...] enquanto os tericos do catolicismo ultramontano se lamentavam pela consolidao do mundo moderno, os pensadores leigos racionalistas se felicitavam por essa mesma consolidao, exatamente porque, pensavam eles, o movimento histrico, produzido pelo prprio homem, seria o construtor da perfeio humana [...]. (MANOEL, 2004:81)

    Evidenciado o caminho terico, busca-se o exame dos contos de maneira

    orgnica, de modo que a anlise no pretende ser separada por blocos especficos,

    uma vez que ambos os suportes tericos circundam a investigao e o objeto

    investigado.

    Exame dos contos

    Proposto a entender como se compe, caso ocorra, os fios da tela que

    permitem a relao do utilitarismo literrio e o uso do medo para determinado fim,

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    iniciaremos a investigao apresentando as reas gerais que delimitaro os

    conceitos e a maneira que seguir a anlise. Assim, examinaremos os contos de

    maneira orgnica, ou seja, pretendemos compreend-los de modo que no se torne

    blocos independentes dentro do desenvolvimento que foi proposto. A fonte utilizada,

    como supracitada, ser a revista infantil e catlica O Beija-Flor (1916-1918).

    Evidentemente, no sero analisados todos os contos publicados durante o

    perodo, focaremos apenas em cinco contos. Tal caracterstica deve-se s

    delimitaes necessrias para constituio do problema proposto neste artigo. As

    narrativas foram selecionadas de modo qualitativo, visando enfatizar o tema principal

    da investigao.

    Este exame pressupe duas reas correlatas: a crtica literria e a histria da

    cultura. Evidentemente, a crtica literria abarca uma srie de pressupostos, mas,

    aqui, ser tratada com base nas teorias mais recentes e que possuem relao

    prxima historiografia francesa, sobretudo a partir da proposta de Roger Chartiervii.

    Tanto a historiografia cultural desta vertente, como a crtica literria mais

    recente, no considera o texto como uma unidade, buscando sua desconstruo,

    sua funo e no seu significado. Deste modo, prope-se examinar qual a relao

    do medo com os contos, sua funo, como materializado e de que forma articula-

    se na narrativa. De modo geral, esta ser a problemtica que este artigo tentar

    responder.

    Sobre o medo, utilizaremos como pressuposto os exames tecidos pela

    sociloga citada anteriormente. Especificamente, neste artigo, tentaremos traar

    como o medo est articulado nas narrativas que compe a revista. Cabe destacar,

    de maneira resumida, a percepo de medo proposta por Lupton (1999). Segundo

    a autora, posteriormente a noo da filosofia iluminista de conhecimento social e

    natural, o medo passa a ser relacionado com o risco, podendo ser pensado de

    maneira a ser prevenido.

    Partindo desse pressuposto, podemos considerar que o medo,

    possivelmente articulado nos contos, tem como objetivo prevenir determinadas

    prticas sociais. Nessa linha, podemos considerar que o medo causado pela

    modernizao da sociedade garante que a igreja instrumentalize sua literatura com a

    sua prpria representao do medo.

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    A fonte a ser analisada surge em um perodo em que j existe um campo

    infantil de impressos, considerando a abordagem de ries. A literatura infantil do

    incio do sculo XX, como destaca o autor (Aires, 1981), baseada em

    pressupostos didticos e ideolgicos que so pensados e articulados para confluir

    com determinada postura. Considerando que a revista um pretexto para o recurso

    ideolgico, cabe tecer algumas consideraes acerca da concepo catlica do

    incio do sculo XX e da entrada da instituio no meio da comunicao impressa.

    Segundo a igreja catlicaviii, as mudanas sociais provenientes e influenciadas

    pelo advento da modernidade assemelhavam-se ao pecado original e, por isso,

    deveriam ser combatidas. Em vista disso, podemos questionar de que modo esta

    literatura se mostrava utilitria e como o medo era utilizado para tal. Segundo

    Manoel, para a igreja catlica:

    A histria teve incio com o ato humano negativo, porque foi um ato de orgulho e desobedincia. Por isso, histria um processo negativo, considerando da perspectiva religiosa [...] porque Ado poderia ter desobedecido a qualquer outra restrio, mas radica no mvel do seu ato a busca do conhecimento. ( 2004:111)

    O Beija-Flor era destinado ao pblico jovem - sobretudo aos cristos - e

    possua um objetivo claro: garantir que os preceitos morais no fossem esquecidos

    por fora das mudanas que ocorriam na sociedade do perodo. A maneira de

    alcanar o pblico jovem, evidentemente, era organizando histrias que

    interessassem a eles. Longe de buscar o puro entretenimento, as histrias infantis

    possuam um objetivo pedaggico. A revista trata, principalmente, questes

    relacionadas noo de progresso baseada na concepo de cincia da poca.

    Assim, cabe questionar como as fbulas publicadas tentam encaminhar

    determinada leitura, onde se posiciona o medo e qual funo cumpre. Buscamos,

    portanto, analisar como o medo tem determinado papel para consolidar uma lio

    moral que visa alertar as crianas e/ou os adultos. Compreender o papel deste

    sentimento nos contos publicados, baseando-se, sobretudo, nos pressupostos

    tecidos por Perrottiix sobre o discurso esttico e utilitrio.

    Antes de contextualizar a literatura infantil do incio do sculo XX, demonstrar-

    se-, apoiando-se no autor citado, as caractersticas utilitrias que esto presentes

    nos contos, visto que quando citados tero como foco o tema do medo.

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    O discurso utilitrio, como descreve Perrotti, ajustou-se com as expectativas

    burguesas do final do sculo XIX e incio do XX. Buscava-se um modelo de criana

    que representasse a postura moderna e progressista da belle poque.

    Neste perodo, no mbito do pblico infantil, comum verificar narrativas que

    se enquadram na literatura denominada de utilitria tradicional, na qual o narrador

    introduz um discurso doutrinrio de maneira a dialogar diretamente com o leitor. H,

    tambm, outra forma de utilitarismo, denominado de s avessas. Este

    caracterizado pela camuflagem do discurso doutrinrio na narrativax.

    Em um dos contos examinados possvel notar caractersticas do utilitarismo

    tradicional, no qual o autor discursa diretamente com o leitor, como ser destacado

    em: A m imprensa e as ms campainhasxi. Os outros so estruturados de acordo

    com as caractersticas da literatura utilitria s avessas, ou seja, a doutrina

    mascarada nos valores impostos implicitamente, camuflando-se no discurso do

    personagem e na prpria expanso narrativa.

    As histrias e fbulas existem h muito tempo e serviam para alertar crianas

    e adultos, assim como para suprimir algum desejo ou garantir momentos de

    divertimento. H evidncias que muitos contos camponeses existiam sculos antes

    de serem transcritos pelos folcloristas europeus do sculo XIX. Muitos destes,

    quando influenciados por outros de origens distintas, so adaptados para o contexto

    no qual seriam reproduzidos, permitindo, assim, a decifrao da ideia central da

    narrativa. Portanto, a audincia implica ao produtor do conto a modelagem de alguns

    aspectos. Outro fator relevante a prpria especificidade do espao e do tempo no

    qual o sujeito produtor est inserido.

    Uma histria que serve para exemplificar as adaptaes que um conto ou

    fbula pode sofrer o caso da cinderela chinesa. No conto, ao invs de fada

    madrinha e do baile real, a cinderela encontra um peixe mgico e vai a uma festa de

    aldeiaxii. A estrutura do conto continua a mesma, apenas sendo esteticamente

    moldada conforme a realidade chinesa. Evidentemente, no so apenas os

    ornamentos que so transformados, algumas questes ganham novos significados e

    s vezes contos so pegos aqui e acol se transformando em um s. o que ocorre

    nos contos da revista O Beija-Flor.

    Como salienta Lajolo e Zilberman (1991), as adaptaes dos contos europeus

    surgiram no Brasil no final do sculo XIX e possuam caracterstica cvico-

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    pedaggica. Neste contexto, insere-se a revista aqui estudada. Os seus contos,

    permeados de moral, so escritos pensando no contanto com o pblico infantil,

    muitas vezes por intermdio de um adulto. O primeiro conto, de novembro de 1916,

    intitulado A mendiga, conta a histria de uma pobre mendiga que acolhida por um

    casal campons. No dia seguinte, o mesmo casal convidado para jantar no castelo

    vizinho. Eis, que para a surpresa do casal, a mendiga, na realidade, era a dona do

    castelo. Aps oferecer-lhe um belo jantar, a dona profere:

    Essa boa famlia acrescentou, mostrando o campons e sua mulher foi a nica que me tratou caridosamente [...]. Quanto a vs outros contentai-vos com o que vedes nestes pratos, por ser justamente o que ontem me destes, e lembrai-vos de que assim sereis um dia tratados no outro mundo. (1916:337)

    Outro conto, publicado na mesma edio, relata a histria de Pupo e seu

    amigo Patatufo. O conto, intitulado viagem lua tem como tema a viagem feita por

    Pupo lua, relatando as incrveis faanhas que fizestes no lugar. Segundo Pupo, a

    Lua foi o melhor lugar que conheceu: A Lua... sim, a Lua... L no falta nada... L

    tudo beleza, sade, gorduras... [...] Quando l estive lamentei no ter levado

    fogo... Na Lua tudo h; s fogo que no (1916:338). Deslumbrado com a beleza

    sobre o mundo lunar, Patatufo questiona o amigo sobre porque voltou e recebe

    resposta que foi devido aos credores. Pupo continua narrando sua viagem e se

    contradiz quando relata que: l na lua existe tanta caa continuou o sabido Pupo -

    que nos risonhos e felizes dias em que por l andava, alimentava-me

    exclusivamente de carne! (Ibid. p. 338) esquecendo que havia dito que no havia

    fogo na lua. Aps o relato do amigo, Patatufo, furioso, indaga: Com a brca! .... Que

    histria esta, doutor Pupo? .... No engulo esta plula.... Est por demais

    salgada... (Ibid. p. 339)

    Em A rosa, uma fbula publicada em 1917, uma garota a vista uma rosa e

    quando vai colh-la, acaba por se machucar com o espinho. A rosa, depois de

    mord-la lhe d uma lio: Ouve Mariazinha. A vida isto: s vezes uma rosa,

    mas, o espinho. [...] trata bem as flores e os animais e tu sers feliz. (1917:232)

    Todas as histrias possuem um carter moral, a primeira, na qual a gentileza

    sem ganncia garante aos camponeses um jantar, muito semelhante a um conto

    campons denominado Le deable et le marechal ferrantxiii. Este conto francs, narra

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    a histria de um soldado que, arruinado, acaba tornando-se mendigo e diante de

    alguns na mesma posio, acaba por dividir o pouco que lhe restava com outros.

    Como no conto da revista, neste, um dos mendigos era So Pedro disfarado, o que

    lhe rende, posteriormente, algumas regalias.

    Provavelmente, muitas das histrias narradas pelos padres e publicadas na

    revista tenham influncias das histrias camponesas da Europaxiv, por meio da

    organizao realizada, no incio do sculo XIX, pelos irmos Grim. Apesar da

    impossibilidade de encontrar a fonte exata que os padres utilizaram, alguns contos

    tm a estrutura semelhante aos transmitidos oralmente pelos camponeses durante

    sculos. Alis, no conto A Mendiga, os camponeses so convidados a jantar em um

    castelo, um cenrio muito mais prximo da Europa do que do Brasil no incio do

    sculo XX.

    Apesar de alguns contos serem baseados em contos camponeses da Europa

    de sculos antes do surgimento da Boa Imprensaxv, cabe ressaltar que a condio

    contempornea revista objetiva-os de maneira distinta. No conto A mendiga, a

    garantia de bom tratamento no cu a maior recompensa. Este aspecto muito

    distinto da verso francesa, na qual So Pedro concede um desejo ao soldado que,

    sem hesitar, pede um prato de comida.

    Esta comparao nos permite notar alguns aspectos dos mundos sociais

    vinculados ao conto. Na verso francesa, torna-se evidente que a comida um luxo,

    em contrapartida, o conto da revista privilegia a ao dos personagens. Nota-se a

    distino entre a recompensa espiritual e terrena. A questo que me propus analisar

    pode no comparecer explicitamente nesta primeira anlise, mas h caractersticas

    importantes que esta comparao nos destaca, a fim de compreender como o

    medo utilizado pela revista O Beija-Flor.

    Nos contos A rosa e A mendiga, podemos notar que o medo fundamental.

    No primeiro, Mariazinha se machuca, mas entende que deve manter-se como uma

    boa pessoa, no fazendo mal s flores e aos animais. Assim como em A mendiga,

    neste, tambm, o indivduo recompensado de maneira espiritual. Nota-se,

    entretanto, que a principal motivao o medo. Mariazinha se machuca e por

    medo de se machucar de novo, deve seguir o conselho. Em A mendiga, o medo

    onisciente, propiciando sua internalizao, uma vez que se acredita estar

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    monitorado. Em viagem lua, a mensagem provm de Patatufo, quando no aceita

    a histria do amigo. Algo para alertar a desconfiana para questes extraordinrias.

    A Histria de um sapateiro, publicado em janeiro de 1918, conta a histria de

    Tibrcio, um sapateiro honesto e trabalhador. Vivia de maneira humilde, mas feliz,

    com casa prpria e sem dvidas. Mas, um emissrio de satans, disposto a colocar

    um bice quela existncia feliz (1918:17), chegou sua cidade. Instalara-se na

    cidade o telgrafo; e com este melhoramento veio como bagagem, uma praga

    horrenda, inseparvel hoje, na nossa desventurada terra, deste invento humano.

    Veio, sabem o que? O jogo do bicho (ibid:18).

    O sapateiro se nega a jogar, mas devido a uma mentira contada por seu

    amigo, o qual dizia sobre as facilidades de ganhar, acabou por apostar. Desde esse

    dia (pois, ganhou), arraigou-se no corao do bom homem a sede do jogo, perdia

    mais do que ganhava, mas, no entanto, no deixava de jogar xvi

    O conto termina com Tibrcio descalo e sem chapu, pois os vendeu para

    tentar recuperar o dinheiro perdido no jogo. Estes ltimos contos possuem

    desfechos e estruturas semelhantes. Em viagem lua, Pupo mentiroso, pois narra

    faanhas extraordinrias; A Histria de um sapateiro, tambm possua um papel

    chave para a mentira. Instrumento usado para convencer Tibrcio a jogar no bicho.

    No conto de Tibrcio, o medo materializa-se no desfecho de sua histria.

    o medo de perder tudo que, teoricamente, garante que as crianas e os adultosxvii

    no se relacionem com o jogo do bicho. Ao invs de interagir em primeira pessoa ou

    do narrador aparecer de forma onisciente e guiar a leitura, nestes contos o medo do

    desfecho serve como instrumento regulador da leitura.

    Como salienta a sociloga Lupton (1999), o medo possui relao com uma

    determinada situao de risco. Assim, uma vez materializado no conto e dispondo

    de um preceito chave na narrativa, acaba tornando-se uma ferramenta para o

    discurso utilitrio. Ou seja, o conto tem como norte da leitura o medo proporcionado

    pelo desfecho e no uma relao dialgica direta ou indireta. Isso, evidentemente,

    construdo por uma anteviso estratgica. No caso analisado, essa estratgia torna-

    se mais pertinente se considerarmos o campo social.

    Considerando que os contos foram, de certa maneira, estrategicamente

    construdos, de acordo com as caractersticas que citamos, podemos delimitar a

    posio do medo na narrativa, permitindo-nos algumas consideraes. Os

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    desfechos das narrativas possuem lugar comum, so personagens que se deixam

    tentar pelas mentiras que lhes so ditas ou pela prpria ganncia. Assim, podemos

    analisar em quais referenciais esse sentimento se materializa e como o medo

    busca garantir determinada postura ideolgica e prtica.

    Em todos os contos analisados, o medo busca traar uma determinada

    interpretao e, se interiorizado, influencia nas prticas discursivas e no discursivas

    do leitor. Em A Rosa, o narrador dirige-se ao personagem de modo a dialogar,

    indiretamente, com o leitor, caracterstica comum da narrativa utilitria s avessas.

    Esses contos so publicados em edies que trazem vrios outros contos

    semelhantes aos de A Rosa e A mendiga, nitidamente repleto de valor moral cristo

    e deixando claras as recompensas e dvidas nos assuntos que aludem

    espiritualidade catlica.

    Diante dos pontos demonstrados e considerando que o medo est

    relacionado a uma situao de risco que busca uma ao especifica em

    determinadas prticas cotidianas, ser examinado como a educao torna-se

    caracterstica a partir desses aspectos.

    Podemos considerar que os contos publicados pela revista foram, ao menos

    neste momento, um dos meios de catequese contra a nova forma de sociabilidade.

    Assim, o medo articulado nas narrativas da seguinte forma: Em A mendiga e A

    rosa o medo est vinculado a uma noo de garantir um bom tratamento no outro

    mundo, nota-se que as duas narrativas propem, implicitamente, que os seres

    humanos esto constantemente sendo testados e vigiados; em Viagem a lua e no

    conto Histria de um sapateiro, o medo induz a desconfiar das promessas. Nesse

    ltimo caso, a histria de um sapateiro mostra o resultado da no desconfiana, ou,

    podemos considerar, da falta de medo, quando Tibrcio termina perdendo tudo

    para o jogo do bicho.

    O medo possui um modo imaterial e onipresente. Essa caracterstica baseia-

    se na prpria constituio da demonologia. Os medos citados e caracterizados

    confluem com a percepo teolgica das aes de Sat. Segundo Delumeau:

    Adversrio sobre-humano, sedutor, ardiloso e enganador assim como o define a bblia . O diabo um extraordinrio ilusionista, um prestidigitador temvel. A literatura teolgica da poca inesgotvel sobre o tema e, pelos passes de mgica demonacos, explica todos os surpreendentes conhecimentos de que no se pde dar conta de outro modo. ( 2009:379)

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    Considerando que o pblico partilha do universo simblico religioso e,

    portanto, possui a percepo dessas artimanhas de Sat, podemos compreender o

    significado e a dimenso do medo na necessidade de garantir um bom tratamento

    no outro mundo.

    Deste modo, negar ajuda a um desconhecido, tratar mal os animais ou as

    plantas tornam-se situaes de risco, pois no se sabe quando estar diante de uma

    ao divina ou das artimanhas satnicas. A convico de que Sat engana

    continuamente os homens com suas armadilhas atravessou os tratados de

    demonologia do final da Idade Mdia e incio da Renascena, encontrando em uma

    revista infantil do incio do sculo XX uma nova forma de catequese.

    neste ambiente que o medo torna-se um instrumento para a literatura

    divulgada pela O Beija-Flor. A incerteza de estar diante de uma artimanha de sat,

    como na histria de Tibrcio, ou de estar sendo testada como em A mendiga,

    garante ao medo um papel utilitrio nas narrativas. Ainda segundo Delumeau:

    A ubiquidade da ao diablica leva a postular no s o extraordinrio poder de Lcifer, mas tambm a existncia de um exrcito de anjos do mal que obedecem docilmente a seu chefe como os anjos executam as ordens de Deus. Mesmo que o prprio sat, como acreditam certos telogos, reside no inferno, seus agentes habitam o nosso universo[...]. ( 2009:381)

    At aqui, contentamo-nos a examinar as narrativas e sua relao com o

    medo. Entretanto, cabe algumas questes que extrapolam os contos analisados at

    o momento. Como os contos eram lidos? Em quais momentos eram enfatizados?

    Onde ocorriam as variaes de tom? Esse universo carece de fontes, mas so

    possveis algumas consideraes baseadas na prpria revista.

    Examinamos, portanto, se a revista indica uma maneira de ler ou interpretar a

    leitura. Na edio de agosto de 1918, h um conto que possui algumas

    caractersticas importantes para a pesquisa. Intitulado A m imprensa e as ms

    companhias, diferente dos outros, neste conto, o narrador introduz uma

    interpretao da sociedade antes de iniciar a narrativa:

    De todos os monstros sociais, o pior e mais temvel a m imprensa em cujas garras aduncas e facnoras se oculta a ferocidade inaudita. To temveis e desprezveis como a m imprensa, as ms companhias constituem um pau infecto de males e vcios, que contaminam o organismo social, tornando-o doentio, insalubre. (1918:247)

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    Esta introduo pretende deixar clara a causa da imoralidade do mundo

    contemporneo revista, essa caracterstica do discurso direto com o leitor

    caracterstico da literatura utilitria tradicional. As coisas consideradas ruins so

    monstros, pois tem como objetivo o ambiente cultural infantil. Para alertar as

    crianas necessrio modelar as palavras e seus referentes medida que possa

    ser claro para este pblico. Especificamente neste conto, o autor dirigiu-se

    diretamente ao leitor para garantir determinada interpretao da leitura,

    caracterstica usada, como salienta Perrotti (1986), na literatura utilitria. Como

    denota o ttulo, a relao entre a m imprensa e a m companhia evidente. Mesmo

    assim, o autor v necessrio introduzir o leitor e os ouvintes em determinada esfera

    interpretativa.

    Neste conto possvel considerar que a leitura consistia, provavelmente, com

    um adulto lendo para um grupo de crianas. Configurao que pode mudar a

    maneira de leitura. Uma leitura em grupo ou uma leitura para o grupo ocorre de

    maneiras distintas, assim como a leitura individual d mais espao interpretao

    em oposio coletiva.

    Tratando-se de uma revista infantil e de um perodo que a alfabetizao em

    massa estava sendo ensaiada, compreensvel que os contos fossem estruturados

    e narrados de modo a serem lidos em voz alta. No final da introduo do conto sobre

    a m companhia, o narrador diz: Ouam. Ou seja, pressupe-se que a leitura seja

    feita por um adulto para as crianas.

    A preocupao do autor em explicar o que mal, destina-se s crianas e,

    claro, ao adulto. Tal perspectiva coincide com a baixa qualidade e quantidade das

    imagens. Se a revista pensada para a leitura em grupo, de um adulto para,

    possivelmente, vrias crianas, no necessrio aumentar os recursos para a

    qualidade grfica.

    Trata-se de uma revista produzida em um perodo que o texto era pretexto

    para o recurso didtico, como salienta Perrotti. comum, no perodo, como destaca

    Lajolo e Zilberman, que a literatura infantil possusse carter cvico-pedaggico,

    como fica bem claro na revista infantil O Tico-Ticoxviii, que buscava garantir o ensino

    cvico e, assim, o progresso nacional.

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    No caso analisado, devido ao lugar social, as narrativas tomam alguns

    instrumentos de maneira peculiar. evidente que as narrativas so construdas para

    doutrinar e, portanto, no possuem preocupao esttica. Entretanto, podemos

    diferenci-los do lugar comum da literatura infantil do incio do sculo XX, pois,

    nestas narrativas, o sentimento de medo parece ter uma funo fundamental no

    conto, assim como na cosmogonia religiosa. Em todos os contos examinados o

    medo a melhor estratgia de doutrinar, sendo mais importante que a prpria

    tentativa de relacionar-se dialogicamente com o leitor, apesar de alguns contos

    utilizarem essa tcnica.

    Esta proposio torna necessrio esclarecer alguns postulados sobre o

    utilitarismo que foi considerado, articulado e que serviu como base para a

    investigao principal. Exceto no conto A m imprensa e as ms companhias, nos

    qual o narrador interfere diretamente com o leitor, como na literatura utilitria

    tradicional, nos demais, a narrativa segue o carter da literatura utilitria s avessas,

    esta, de acordo com Perrotti (1986), caracterizada pela manipulao dos registros

    (narrativos/discursos), criando no leitor a iluso de que no se trata de um

    ensinamento, at o final, quando este j est dado e o jogo pode explicitar-se

    (1986:125).

    O lugar social de produo determinante para a construo da estratgia da

    literatura utilitria. Como visto aqui, o sistema cosmognico religioso garantiu que o

    medo, e no a relao dialgica direta fosse o principal instrumento garantidor da

    interpretao nica. Trata-se de ter medo por ser vigiado permanentemente, como

    em A mendiga, ou de ser instigado pelo mal como na Histria de um sapateiro. A

    utilidade do medo para a narrativa tem um raio maior para quem compartilha desse

    universo simblico da igreja catlica brasileira do incio do sculo XX.

    Evidentemente, este sentimento no exclusivo desta revista e aparece, se

    examinado minuciosamente, na maioria da literatura do tipo, mas, especificamente

    nesta, o medo toma um carter fundamental para caracterizar pedagogicamente os

    contos, sendo necessrio compreender, para entender a funo do medo, o universo

    simblico das pessoas que compartilham essas crenas.

    Nada de muito novo se pensarmos no exame como descrio ou anlise de

    literatura utilitria, ou basearmos a leitura deste artigo na dicotomia esttico/utilitrio.

    H vrios trabalhos sobre isso. Como salienta Perrotti (1986), no que concerne ao

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    Brasil, o discurso literrio dirigido s crianas s tomou novo rumo na dcada de

    1970.

    Anteriormente s novas maneiras de escrever a literatura infantil, a narrativa

    a servio no contemplou apenas os grupos sociais de maior poder aquisitivo ou

    militante da causa cvica do progresso nacional, tambm a religio comeou a agir

    com os mesmos instrumentos, mas, claro, fundamentando-se e agindo de acordo

    com seus pressupostos.

    Buscando confluir o exame do campo social catlico brasileiro do incio do

    sculo XX, assim como os preceitos bsicos do exame do discurso utilitrio, da

    concepo da crtica literria e de algumas consideraes amplas do campo da

    historiografia, foi possvel, mesmo que de maneira rpida, compreender a relao do

    medo enquanto instrumento utilitrio na literatura infantil produzida pela igreja

    catlica brasileira neste espao e tempo determinado.

    Consideraes finais

    A investigao organizou-se de modo a compreender caractersticas da

    literatura infantil do final do sculo XIX e incio do sculo XX, localizando-se

    temporalmente e espacialmente, no que concerne literatura infantil e a prpria

    postura cosmognica e institucional da igreja catlica brasileira do incio do sculo

    XX.

    Os cinco contos analisados e escolhidos de modo qualitativo permitiram tecer

    os fios que compe a relao do medo com a literatura utilitria. Apesar de breve,

    este exame permitiu iluminar a relao deste sentimento com este modo de

    literatura. O medo mostrou-se fundamental na estrutura dos contos analisados e

    torna-se, no desfecho, elemento essencial da narrativa.

    Ao que circunscreve as caractersticas cosmognicas religiosas, assim como

    o universo simblico, possvel notar, pelo menos nos contos trabalhados, que a

    funo principal das narrativas era combater a verdade cientfica. Destaca-se,

    tambm, que apesar da impossibilidade de diagnosticarmos detalhadamente a

    concepo de verdade, tratei o tema com base nos pressupostos da noo de

    representao e da literatura historiogrfica sobre a Belle poque.

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    O medo, portanto, foi instrumentalizado na narrativa, sem que fosse

    necessrio explicit-lo de maneira lingustica. Exceto no conto A rosa, o uso do

    discurso direto ou indireto, considerando a dicotomia produtor/receptor, no foram

    utilizados pelos produtores. Em todos os contos, o medo foi o agente principal da

    funo da narrativa. Tornando-se fundamental se pensarmos no universo simblico

    no qual foi inserido.

    A breve investigao indicou que possvel estabelecer uma relao de um

    sentimento especifico - medo - com a anlise da literatura utilitria, confluindo com

    questes sociolgicas e historiogrficas. Para demonstrar essa relao, procuramos

    fundamentar nossos pressupostos na concepo de representao e prtica da

    historiografia cultural, assim como na sociologia do corpo, no que diz respeito ao

    sentimento.

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    NOTAS

    i Graduao em Histria pela UEL(2014). Especializao em Lingua Portuguesa e Literatura Brasileira pela UTFPR (2015). Atualmente discente do PPGH/UDESC.

    ii Segundo Aries, a literatura infantil surgiu no sculo XVI, mas somente a partir do sculo XVIII que pensada diretamente para o pblico infantil, em consonncia com o maior grau de distino entre infncia e a vida adulta, que vai ficando mais claro a partir deste perodo. Sobre o tema, ver: Aries, Philippe. Histria social da criana e da famlia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editora, 1978.

    iii Para um estudo mais detalhado, ver: MARTINS, Ana L. Revista em revista: impresso e prticas culturais do tempo da Republica. So Paulo: Eduesp/Fafesp/Imesp, 2007 e NOVAIS, Fernando (Coord). Histria da vida privada no Brasil: Republica da Belle poque era do rdio. So Paulo: Companhia das letras, 1998, V.3.

    iv Especificamente sobre a noo de representao, Chartier salienta: As representaes no so simples imagens, verdadeiras ou falsas, de uma realidade externa; elas possuem uma energia prpria que leva a crer que o mundo ou o passado , efetivamente, o que dizem que . (2009: 51-52)

    v A concepo de medo relacionado a situao de risco, delineada pela autora, difere-se do modelo referente as causas naturais ou divinas que, supostamente, no podem ser evitadas. Para uma anlise pormenorizada, ver: (BITENCOURT; ALMEIDA, 2014)

    vi Esta delimitao temporal, do perodo denominado de belle poque, segue a considerada em: NOVAIS, Fernando (coord.) -Histria da vida privada no Brasil. Repblica: da Belle poque era do rdio (v.3). So Paulo: Cia das letras, 1998.

    viiSobre a crtica literria e a historiografia francesa da quarta gerao, ver: HUNT, Lynn. Histria, Cultura e Texto, In: A nova Histria Cultural. 1Ed. 1992.p 1-33.

    viiiAs consideraes acerca do pensamento catlico foram baseadas na tese de Livre-docncia de Ivan Manoel intitulada O pndulo da histria, defendida em 1988 junto a FHDSS UNESP Franca.

    ixEspecificamente sobre o tema, ver: Discurso esttico e utilitrio, In: PERROTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. So Paulo; cone, 1986.

    x Evidentemente que esta simples apresentao no abarca toda discusso acerca do utilitarismo na literatura, mas necessrio ter essa qualificao em mente para ler este artigo. Para uma discusso conceitual, ver: (PERROTTI, 1986).

    xi Essa caracterstica ser explicitada posteriormente.

    xiiSobre est anlise, ver: DARNTON, Robert. O GRANDE MASSACRE DE GATOS: e outros episdios da histria cultural francesa. 5. ed. SP: Editora Graal, 2006.p- 36

    xiii Sobre o conto, ver: DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos: e outros episdios da histria cultural francesa. 5. ed. SP: Editora Graal, 2006.p- 52.

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    xiv Informao baseada nos estudos de Lajoto e Zilberman (1987)

    xvDa dcada de 1830 Incio das publicaes at 1870 a circulao e produo dos impressos catlicos foram realizadas pela iniciativa de clrigos ou leigos que visavam divulgar os preceitos religiosos. A partir da secularizao do Estado, a igreja v a necessidade de combater as ideias laicas com maior controle. Deste movimento surge a Boa Imprensa. Tal nome, segundo a prpria editora em comunicado, refere-se imprensa laica, uma vez que ela considerada uma m imprensa. Sobre este estudo, ver: (CAES, 2002).

    xvi Idem

    xvii Est questo ser analisada melhor posteriormente.

    xviii Sobre a revista, ver: ROSA, Zita de Paula. O Tico-Tico: meio sculo de ao recreativa e pedaggica. Bragana Paulista: EDUSF, 2002.

    Received on July 29, 2015.

    Accept on August 16, 2015.

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