o medo e a cidade-trabalho final

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  • SEMINRIO DE TESE 1 TRABALHO FINAL PROFESSOR: THEREZA CARVALHO ALUNA: DANIELLE BARROS DOUTORADO 01/2014

    O MEDO E A CIDADE: REPRESENTAES SOCIAIS E PRTICAS COTIDIANAS.

    O CASO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

    1. APRESENTAO

    Este trabalho constitui um primeiro ensaio sobre as possibilidades de pesquisa e olhares que

    se descortinaram luz do pensamento de alguns autores trabalhados na disciplina de

    Seminrio de Tese I.

    Neste contexto, na primeira seo destaco a questo do mal, a partir da abordagem de Santo

    Agostinho, Kant e Hannah Arendt. O objetivo pensar sobre a questo apresentada no

    projeto de tese, que busca compreender e identificar as estratgias e/ou tticas onde o

    sentimento de medo acionado para definir e/ou legitimar determinadas decises da vida

    urbana seja no campo poltico, econmico e social.

    Na segunda seo revisito o trabalho de Carlo Ginszburg de modo a reconhecer possveis

    caminhos de pesquisa para abordar algumas questes apresentadas no projeto de tese que

    prope, mediante uma abordagem histrico-social, reconhecer quem eram os sujeitos

    promotores do sentimento de medo e seus discursos legitimadores, os sujeitos estigmatizados

    em cada perodo histrico, bem como as estratgias de segregao adotadas no espao

    urbano e, por que no, a insurgncia contra essas representaes que buscam o controle

    social de um determinado grupo e/ou comportamento.

    Por fim, a partir do destaque de alguns princpios da hermenutica da facticidade de Heidegger

    procuro refletir sobre seu uso na anlise dos discursos, mensagens, representaes e aes

    estratgicas que determinados agentes proclamam, mas principalmente identificar quais so

    as ideologias e projetos de cidade que eles procuram esconder e que, muitas vezes, esto

    permeados sobre a gide do medo e da vergonha. Outro desafio ser o de reconhecer as

    lacunas existentes nas abordagens sobre o medo e suas representaes sociais, entendendo-o

    enquanto um discurso que trata do eu, mas principalmente do outro. Tal abordagem

    tambm se aproxima do trabalho de Ginzburg.

  • 2. POR QUE DISCUTIR O MAL?

    A reflexo sobre o problema do mal, no recente, desde a antiguidade os pensadores j

    debatiam sobre ele. Talvez seja pela atrao que o tema sugere sobre sua origem e seu

    desdobramento no cotidiano. Basta abrir o jornal para ver mortes, violncia, desastres,

    corrupo, etc. e a pergunta que vem tona, na maioria das vezes, como pode haver tanto

    mal no mundo? A conseqncia desta reflexo sobre o mal pode ser rebatida sobre a difuso

    do sentimento de medo, quer seja o medo do castigo divino, quer seja o medo do julgamento

    moral do outro, quer seja o medo do terror institudo enquanto poltica vigente.

    Mas ser que sabemos o que realmente o mal? O fato de nos rebelarmos contra o mal e s

    vezes o combatermos no significa que tenhamos plena conscincia do que ele . O policial, o

    juiz, o promotor, lidam diariamente com um inimigo que lhes parece conhecido, mas que na

    verdade no o . Tanto que, quando instigados a definir este adversrio, o mximo que

    conseguem so citar exemplos de coisas ms. Na maioria dos casos, o mal definido num

    determinado perodo a partir do contexto histrico-social vigente.

    Com o medo tambm assim, o mximo que conseguimos citar exemplos de coisas que nos

    do medo. Deste modo, acredita-se que a reflexo produzida por alguns filsofos possam

    iluminar esta discusso. Afinal, o medo, na maioria das vezes, provm de algo que

    consideramos mal. Da a importncia de se visitar os aportes tericos que discutiram o

    problema do mal buscando compreender suas intersees e seus caminhos de pesquisa. Neste

    contexto escolhemos Santo Agostinho, que trata do mal enquanto uma ausncia de bem,

    determinado pelo pecado que o resultado do livre arbtrio do homem; a evoluo do

    pensamento de Kant sobre o mal, ao discuti-lo como uma ao que provm da vontade

    humana e que se d no mbito do que se considera moralmente aceito; e, por fim, o trabalho

    de Hannah Arendt, que discute o mal enquanto uma ausncia do pensar que interfere na ao

    do homem que passa, enquanto massa, a seguir os ditames de um determinado poder, o mal

    se torna banal porque o homem perdeu sua capacidade de pensar se tornando suprfluo.

    Todas estas reflexes ajudam a lanar um olhar sobre como podemos encarar o medo

    discutindo-o enquanto um subproduto da problemtica do mal e, mediante o pensamento de

    Hannah Arendt contextualiz-lo com o pensamento moderno e seus desdobramentos nos

    termos da ao.

  • 2.1. O MAL EM SANTO AGOSTINHO: O LUGAR DO PECADO E DO LIVRE ARBTRIO

    Santo Agostinho tem um papel central na difuso da concepo de mal que prevalecer em

    quase toda filosofia crist. Ele compreende o mal como uma ausncia de um bem, algo que

    no tem existncia prpria, embora exera consequncias em nossa vida, na medida em que

    assume a forma de pecado e sofrimento. Assim, o bem pode existir sem o mal; mas o mal no

    pode existir nunca sem o bem: s pode haver ausncia daquilo que , s pode haver uma falta

    naquilo que existe. No preciso buscar uma causa especfica para o que no . O que

    Agostinho se prope a investigar a razo por que determinado grau de ausncia de bem o

    mal - est no mundo.

    Ele inicia esta discusso na obra livre arbtrio apresentando os dois sentidos do mal: o mal que

    algum praticou (o chamado mal moral ou pecado) ou o mal que algum sofreu (o chamado

    mal fsico ou natural - sofrimento). Partindo do pressuposto que Deus bom e justo, e que a

    providncia divina regula tudo no mundo, Agostinho inicia a discusso sobre o tema do pecado

    e sofrimento. Sendo bom, Deus no pode fazer mal, isto no pode ser autor do mal no

    primeiro sentido (pecado). Se justo, premia os bons e castiga os maus, cujas penas sofridas

    so um mal no segundo sentido (sofrimento). Finalmente, como a providncia universal e

    ningum padece injustamente, Deus deve ser autor de todo o mal enquanto sofrimento. J os

    homens, ou melhor, a vontade dos homens responsvel pelo mal enquanto pecado. Assim,

    Agostinho conclui que o sofrimento sendo uma justa punio para a ao do homem, no

    propriamente um mal.

    Com isso, o mal propriamente dito reduz se ao agir mal. No entanto, uma nova questo vem

    tona o que fazer mal? O que pecar? Na discusso com seu discpulo Evdio, Santo

    Agostinho conclui que o desejo desgovernado, interior ao pecador que constitui o pecado.

    Mas do que o ato em si, a inteno que determina que ele seja mau ou no. Um dos

    exemplos citados por ele o caso de um carrasco que cumpre uma sentena de morte,

    segundo Agostinho, no seria pecado, pois no foi o desejo de matar e sim uma ao judicial

    que definiu o ato. Tais consideraes iro de encontro, em certa parte, com o debate

    promovido por Hannah Arendt em a banalidade do mal.

    Por fim, ele contradiz alguns dos seus argumentos ao inserir o dogma teolgico do pecado

    original para justificar a inclinao dos homens para o pecado. Neste contexto, no est mais

    nas mos do homem ser bom, pois sem a ajuda de Deus ele sempre ir pecar. O medo, neste

    perodo, o da punio divina! O livre arbtrio enquanto liberdade para seguir o bem, vai de

    encontro com a discusso do mal moral estabelecida por Kant, como iremos ver mais a frente.

  • 2.2. O MAL MORAL EM KANT

    Kant d prosseguimento ao pensamento de Agostinho quando afirma que A histria da

    natureza comea pelo bem, pois a obra de Deus; a histria da liberdade comea pelo mal,

    pois obra do homem (KANT, 2010: 25). precisamente neste contexto da liberdade que se

    inscreve o conflito entre o bem e o mal moral. Segundo Kant, a propenso para o mal na

    natureza humana resultado da liberdade, ou seja, uma propenso moral e no uma

    propenso fsica fundada sobre impulsos sensveis, pois o que moralmente mau diz respeito

    prpria ao do homem.

    Para Kant as aes morais so aquelas que afirmam o princpio da vontade como efeito da

    liberdade. O conceito de bom ou mau no pode e no deve ser definido antes da lei moral. De

    acordo com Kant a vontade pura ou a inteno pura que faz ser bom aquilo que ela quer.

    Neste contexto, ele avana para a discusso do imperativo categrico que ir guiar a vontade

    pura. Este se resume na seguinte sentena: Age de tal modo que a mxima de tua vontade

    possa sempre valer simultaneamente como um princpio para uma legislao geral (KANT,

    2010: 42). Atendendo esta mxima a ao estaria em conformidade com o dever. O

    imperativo categrico orienta-se, pois, segundo um valor bsico, inquestionvel e universal: a

    dignidade da vida humana.

    Com respeito aos juzos morais, as coisas no so nem boas nem ms, so indiferentes ao bem

    e ao mal. Os qualificativos morais no correspondem quilo que o homem faz efetivamente,

    mas sim, quilo que ele quer fazer. Esta postulao com respeito aos juzos morais conduz

    concluso de que a nica coisa que verdadeiramente pode ser boa ou m a vontade humana.

    A inclinao para o mal acaba ditando o imperativo categrico voltado para uma lei universal.

    Assim, se eu perteno a uma nao imperialista e acredito na superioridade dos meus valores

    relativamente aos das outras naes, devo usar todos os meios para imp-los. Neste contexto,

    o sujeito tem o dever de impor esta sua lei universal a todos os outros homens, para bem da

    humanidade. Para que a lei se torne de fato universal. Desta construo de Kant, legtimo

    concluir que eu no amo o meu semelhante, como lhe nego a possibilidade de ele se guiar por

    uma lei moral diferente da minha. Recuso a ver o mundo pelo seu olhar; pelo contrrio, tudo

    farei para impor o meu, que considero superior. Tudo farei para que todos os seres humanos

    olhem o mundo pelo mesmo olhar, por coincidncia, o meu prprio olhar. No foi isso que o

    nazismo tentou fazer? Este seria o mal radical, a vontade humana que desconsidera a

    dignidade humana como princpio para a lei moral.

  • 2.3. A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT

    Santo Agostinho, cuja obra de Arendt sempre manteve um intenso dilogo, considera que

    impossvel fazer o mal por causa do mal. Os homens so bons cometem o mal porque so

    corruptveis. Como Agostinho, Arendt tambm no pensa em termos de uma vontade maligna,

    disposta a deliberadamente a cometer o mal. Entretanto, ela no considera que o mal, pelo

    menos o mal banal, possa ser uma questo relacionada corruptibilidade. Esse aspecto do

    mal, para Arendt, algo que Agostinho e, tampouco Kant, puderam imaginar. Para a tradio

    do pensamento, a maldade encontra disposio na fraqueza humana, sempre inclinada a

    ceder tentao. Dentro dessa perspectiva, o mal encarado como tentao, e o bem, como

    esforo. O problema que em um Estado totalitrio como o nazista que transformou crime

    em lei o bem que ganha o carter de tentao. O mal convertido no cumprimento de um

    dever.

    Mesmo Kant, que em sua filosofia moral acaba concebendo o bem como uma espcie de

    tentao j que para o homem, para agir moralmente, deve seguir apenas o mandamento

    ditado pela sua razo, afastando toda inclinao subjetiva, no importa se para fazer o bem ou

    o mal. A ao de praticar o mal est relacionada ao ato de ceder s inclinaes. A questo,

    para Arendt, que praticar o mal pode no ser necessariamente uma questo de inclinao,

    que pressuponha uma inteno expressa do agente.

    A reflexo de Arendt sobre o fenmeno totalitrio comea com a constatao da facilidade

    com que um povo se deixou arrastar pela ideologia dos regimes totalitrios. Em Eichmann vai

    a Jerusalm, ela demonstra a obedincia cega incapaz de discernir entre a ordem e a lei.

    Eichmann se revelou o prottipo do cidado respeitador das leis, paradigma do homem de

    massa, um prisioneiro da necessidade. A vida social de massa devora a vida privada e a vida

    poltica. assim que o homem moderno vai conhecer o isolamento, que o impasse para o

    qual so conduzidos os homens, a partir do momento em que a esfera poltica de sua vida

    comum destruda (ARENDT, 2012:633).

    Este o contexto propcio para que se constitua o sujeito ideal do totalitarismo, esse homem

    desagregado, que no se relaciona mais aos outros homens. Este sujeito destitudo como

    sujeito poltico, sem conscincia moral, incapaz de pensar e de julgar e, por este motivo,

    capaz de fazer banalmente o mal. A partir do momento que esse homem se torna um ser

    suprfluo, ele no mais um fim em si mesmo. Assim, seu valor como homem se encontra

    relativizado; ele passa a ser, ao mesmo tempo, a vtima e o agente desse mal banal (FELCIO,

    2005:544).

  • A banalidade do mal conectada ausncia da faculdade de pensar impele os indivduos a

    aderirem a tudo o que as regras de conduta indicam em uma dada poca para uma

    determinada sociedade. Em outras palavras, essa ausncia de pensamento induz ao

    conformismo e alienao.

    A liberdade um ponto comum a Arendt e Kant para se pensar o homem, com a ressalva de

    que, o homem de Kant pensado, originalmente, em sua moralidade e o de Arendt, em sua

    ao poltica. No entanto, cabe destacar que Arendt reinterpreta o problema do mal em Kant

    inserindo novos elementos: o esvaziamento da ao poltica e do pensamento humano em

    nossa contemporaneidade. Com a nfase recaindo no vazio de pensamento ela aponta para

    a presena dessa marca do nosso tempo que, conjugada aos sinais inconfundveis da

    banalizao da violncia nas sociedades de massa, so reveladores desse lado sombrio da

    nossa contemporaneidade (FELCIO, 2005:545).

    A violncia, neste contexto, se converte numa linguagem compartilhada, a partir da qual

    possvel pensar os limites da sociabilidade, sua crise e suas possibilidades, situando o medo e a

    insegurana como determinismos socializadores cada vez mais presentes no convvio urbano.

    O sujeito moderno passa a ser tutelado ento pelo terror ao que lhe estranho e ao que lhe

    apontado como estranho, muitas vezes abrindo mo da sua faculdade de pensar. A anlise

    elaborada por Hannah Arendt sobre a banalidade do mal permite instituir uma nova

    abordagem sobre o medo e, a possibilidade de sua transformao em ferramenta de poder,

    ditando comportamentos individuais e suas manifestaes coletivas, bem como no espao

    urbano.

    3. A MICRO-HISTRIA DE CARLO GINZBURG E SUAS POSSIBILIDADES DE INVESTIGAO

    A contribuio de Carlo Ginszburg se d mediante o reconhecimento da inter relao de seus

    conceitos de micro e macro histria, bem como suas metodologias de pesquisa para a

    investigao no campo antropolgico/etnogrfico de temas complexos - cujo material de

    pesquisa bastante ambguo e cheio de lacunas, ajudaram a pensar sobre como abordar

    algumas questes apresentadas no projeto de tese.

    Neste contexto, destaca-se que a proposio de anlise histrica de Carlo Ginzburg que

    defende uma delimitao temtica especfica por parte do historiador (inclusive em termos de

    espacialidade e de temporalidade), onde, numa escala de observao reduzida, a anlise

    desenvolve-se a partir de uma explorao exaustiva das fontes, tendo a preocupao com uma

    narrativa histrica diferenciando-a da narrativa literria, mas sem desconsider-la. Segundo o

    autor, os historiadores (e, de outra maneira tambm os poetas) tm como ofcio alguma coisa

  • que parte da vida de todos: destrinchar o entrelaamento de verdadeiro, falso e fictcio que

    a trama do nosso estar no mundo (GINZBURG, 2007:14).

    O autor refora a importncia da fico para compreender determinados usos e costumes de

    uma determinada poca. Considerando que pretendo analisar o medo do outro num vis

    histrico, identificando, a partir de diversas fontes de quem se tinha medo e como as pessoas

    se relacionavam com esse medo, o captulo sobre fico e histria bastante rico, pois o autor

    apresenta uma discusso metodolgica sobre a anlise e identificao de elementos histricos

    nas fices. Citando o trabalho de Jean Chapelain (1647) ele expe: um escritor que inventa

    uma histria, uma narrao imaginria que tem como protagonistas seres humanos deve

    representar personagens baseados nos usos e costumes da poca em que viveram: do

    contrrio no seriam crveis(2007:82). E continua Permite-nos, como nos mostrou Chapelain,

    construir a verdade a partir das fices, a histria verdadeira a partir da falsa (GINZBURG,

    2007:93).

    No obstante, Ginzburg aponta para o papel das mltiplas narrativas para a construo de um

    fato histrico, bem como a necessidade de se compreender as intenes/informaes ocultas

    presentes em determinados documentos. Ao citar os documentos da inquisio, ele observa a

    ausncia de neutralidade e objetividade deles, e alerta para a importncia da leitura destes

    documentos enquanto produtos de uma relao especfica, profundamente desigual. Neste

    contexto, Ginzburg conclui que para decifr-los, devemos aprender a captar por trs da

    superfcie lisa do texto um sutil jogo de ameaas e medos, de ataques e retiradas. Devemos

    aprender a desembaraar os fios multicores que constituam o emaranhado nesses dilogos

    (GINZBURG, 2007:287).

    Diante do exposto podemos destacar a fala de Jean Delumeau, historiador francs, que ao

    tratar da histria do medo, e mais especificamente de sua manifestao no perodo da Idade

    Mdia, demonstra a dificuldade que a sociedade sempre teve em apresentar o medo por meio

    de sua histria: Por que esse silncio prolongado sobre o papel do medo na histria? Sem

    dvida, por causa de uma confuso mental amplamente difundida entre medo e covardia,

    coragem e temeridade. Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a lngua falada o

    primeiro influenciando a segunda tiveram por muito tempo a tendncia de camuflar as

    reaes naturais que acompanham a tomada de conscincia de um perigo por trs das falsas

    aparncias de atitudes ruidosamente hericas (DELUMEAU, 1989:13).

    Ao tratar da micro-histria o destaque o reconhecimento dos limites dos rastros e dos

    documentos, e a possibilidade de explor-los transformando-os em um elemento narrativo.

  • Assim, os obstculos postos pesquisa constitutivos da documentao, as hipteses, as

    dvidas, as incertezas tornam-se parte da narrao. Neste contexto, a busca da verdade

    tornava-se parte da exposio da verdade obtida (e necessariamente incompleta) (GINZBURG,

    2007:265). Esta considerao de extrema importncia para uma pesquisa que pretende

    tratar o sentimento de medo enquanto fenmeno histrico-social.

    Por fim, Ginzburg conclui que o acmulo de conhecimento sempre ocorre assim: por linhas

    quebradas em vez de contnuas; por meio de falsas largadas, correes, esquecimentos,

    redescobertas; graas a filtros e esquemas que ofuscam e fazem ver ao mesmo tempo

    (GINZBURG, 2007:111).

    4. UMA APROXIMAO COM A HERMENUTICA DA FACTIDADE DE HEIDEGGER

    Heidegger descreve as caractersticas essenciais do Dasein (ser a), incluindo a interpretao e

    a interpretao de si. A interpretao do Dasein e do ser em geral envolve a interpretao de

    textos. Seu intento de fazer com que a interpretao ou leitura do texto gere uma viso

    heterognea e apresente outras perspectivas em relao abordagem, ao novo. Segundo

    Heidegger, as palavras no tm significados fixos e unvocos independentemente de seu uso e

    aplicao. Os significados acumulam-se nas palavras a partir de inter-relaes que constituem

    nosso mundo. Neste sentindo a hermenutica da facticidade pode auxiliar na reflexo sobre os

    discursos, mensagens, representaes e aes estratgicas que determinados agentes

    procuram descortinar.

    Para Heidegger se h algo que pode ser mostrado pela fenomenologia, esse algo, certamente,

    no h de ser aquilo que pode tornar-se evidente para uma subjetividade, mas justamente o

    que permanece velado. E o que permanece de diferentes modos velado, diz Heidegger,

    precisamente o que d sentido e fundamenta aquilo que se mostra diretamente. Essa

    convico da tendncia do ser para o ocultamento marca de forma decisiva no apenas o

    mtodo fenomenolgico de Heidegger, como toda a sua meditao posterior sobre a verdade

    (SARAMAGO, 2008:40). Se a linguagem capaz de desvelar o ser, tambm verdade que ela

    pode encobri-lo (HEIDEGGER, 1984: 156).

    Como inspirao para o processo de decifrao deste ocultamento, no caso especfico do

    espao urbano, resgato o alerta de Lefebvre (2001:61): Sim, l-se a cidade porque ela se

    escreve, porque ela foi uma escrita. Entretanto, no basta examinar esse texto sem recorrer ao

    contexto. Escrever sobre essa escrita ou sobre essa linguagem, elaborar a metalinguagem da

    cidade no conhecer a cidade e o urbano. O contexto, aquilo que est sob o texto a ser

  • decifrado (vida cotidiana, as relaes imediatas, o inconsciente do urbano, aquilo que no se

    diz e que se escreve menos ainda [...]) aquilo que est acima desse texto urbano (instituies,

    as ideologias), isso no pode ser esquecido na decifrao.

    A hermenutica da facticidade se apresenta com nitidez quando o autor prope investigar de

    que maneira, a partir de determinadas situaes concretas, inseridas numa cotidianidade

    imediata, se apresenta fenomenologicamente o mundo. Mundanidade e desencobrimento

    constituem a compreenso do ser a imerso na sua vida ftica. Na estrutura do encontro

    inerente ao mundo, a significatividade a antecipao de sentido de tudo o que se manifesta e

    a compreenso desse sentido (SARAMAGO, 2008:63). O que existe como cotidiano, ele

    afirma, no se mostra como aquilo que propriamente antes de seu para-qu ou para-

    quem; mas seu ser a funda se precisamente nesse para-qu e para-quem. Estas ltimas

    questes so fundamentais a qualquer projeto de pesquisa que se pretende desenvolver, da

    sua relevncia.

    5. CONSIDERAES PARCIAIS

    Eu quase que nada no sei. Mas desconfio de muita coisa1.

    Para Ginzburg Conhecer, como ensinou Plato, sempre reconhecer. s o que sabemos, o

    que j faz parte da nossa bagagem de experincias que nos permite conhecer o novo, isolando-

    o da massa de informaes desordenadas e casuais que chovem continuamente sobre ns

    (GINZBURG, 2007:304-305). Acredito que este tenha sido o principal objetivo deste ensaio,

    ampliar a bagagem de experincias e conhecimento de modo a reconhecer o novo em meio

    massa de informaes coletadas.

    No ltimo captulo do seu livro, Ginzburg narra sua experincia de pesquisa com os feiticeiros

    e xams, os caminhos e descaminhos da pesquisa, mudanas de orientao a partir das

    informaes coletadas, e at mesmo, o porqu da sua atrao por este tema. Em parte, penso

    ser este o ponto da pesquisa em que me encontro, coletando informaes, alinhavando

    mltiplos olhares sobre o mesmo tema, buscando reconhecer para conhecer e me reconhecer,

    e quem sabe buscando o anormal, como diria Ginzburg.

    1 Riobaldo, dos personagens de Guimares Rosa, em Grande Serto: veredas.

  • 6. BIBLIOGRAFIA

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    ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2012.

    ARENDT, Hannah. A condio Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2014. 11 edio.

    CORREIA, Adriano. O Conceito de Mal Radical. Trans/Form/Ao: So Paulo, 28: 83-94, 2005.

    DELUMEAU, Jean. Histria do medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    FELCIO, Carmelita Brito de Freitas. Do mal radical banalidade do mal: Entre Kant e Arendt. Revista Fragmentos de Cultura. Goinia: IFITEG/SGC/UCG, v. 15, n 3, maro 2005 (p. 531-546). ISSN 1414-9494

    GINZBURG, Carlo. O fio e os Rastros. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    LEFEBVRE, Henri. O direito cidade. So Paulo: Centauro, 2001.

    OLIVA, Lus Cesar. O Mal. So Paulo. Editora Barcarolla: Discurso Editorial, 2013.

    SARAMAGO, Lgia. A Topologia do Ser: lugar, espao e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2008.