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SEMINRIO DE TESE 1 TRABALHO FINAL PROFESSOR: THEREZA CARVALHO ALUNA: DANIELLE BARROS DOUTORADO 01/2014
O MEDO E A CIDADE: REPRESENTAES SOCIAIS E PRTICAS COTIDIANAS.
O CASO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
1. APRESENTAO
Este trabalho constitui um primeiro ensaio sobre as possibilidades de pesquisa e olhares que
se descortinaram luz do pensamento de alguns autores trabalhados na disciplina de
Seminrio de Tese I.
Neste contexto, na primeira seo destaco a questo do mal, a partir da abordagem de Santo
Agostinho, Kant e Hannah Arendt. O objetivo pensar sobre a questo apresentada no
projeto de tese, que busca compreender e identificar as estratgias e/ou tticas onde o
sentimento de medo acionado para definir e/ou legitimar determinadas decises da vida
urbana seja no campo poltico, econmico e social.
Na segunda seo revisito o trabalho de Carlo Ginszburg de modo a reconhecer possveis
caminhos de pesquisa para abordar algumas questes apresentadas no projeto de tese que
prope, mediante uma abordagem histrico-social, reconhecer quem eram os sujeitos
promotores do sentimento de medo e seus discursos legitimadores, os sujeitos estigmatizados
em cada perodo histrico, bem como as estratgias de segregao adotadas no espao
urbano e, por que no, a insurgncia contra essas representaes que buscam o controle
social de um determinado grupo e/ou comportamento.
Por fim, a partir do destaque de alguns princpios da hermenutica da facticidade de Heidegger
procuro refletir sobre seu uso na anlise dos discursos, mensagens, representaes e aes
estratgicas que determinados agentes proclamam, mas principalmente identificar quais so
as ideologias e projetos de cidade que eles procuram esconder e que, muitas vezes, esto
permeados sobre a gide do medo e da vergonha. Outro desafio ser o de reconhecer as
lacunas existentes nas abordagens sobre o medo e suas representaes sociais, entendendo-o
enquanto um discurso que trata do eu, mas principalmente do outro. Tal abordagem
tambm se aproxima do trabalho de Ginzburg.
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2. POR QUE DISCUTIR O MAL?
A reflexo sobre o problema do mal, no recente, desde a antiguidade os pensadores j
debatiam sobre ele. Talvez seja pela atrao que o tema sugere sobre sua origem e seu
desdobramento no cotidiano. Basta abrir o jornal para ver mortes, violncia, desastres,
corrupo, etc. e a pergunta que vem tona, na maioria das vezes, como pode haver tanto
mal no mundo? A conseqncia desta reflexo sobre o mal pode ser rebatida sobre a difuso
do sentimento de medo, quer seja o medo do castigo divino, quer seja o medo do julgamento
moral do outro, quer seja o medo do terror institudo enquanto poltica vigente.
Mas ser que sabemos o que realmente o mal? O fato de nos rebelarmos contra o mal e s
vezes o combatermos no significa que tenhamos plena conscincia do que ele . O policial, o
juiz, o promotor, lidam diariamente com um inimigo que lhes parece conhecido, mas que na
verdade no o . Tanto que, quando instigados a definir este adversrio, o mximo que
conseguem so citar exemplos de coisas ms. Na maioria dos casos, o mal definido num
determinado perodo a partir do contexto histrico-social vigente.
Com o medo tambm assim, o mximo que conseguimos citar exemplos de coisas que nos
do medo. Deste modo, acredita-se que a reflexo produzida por alguns filsofos possam
iluminar esta discusso. Afinal, o medo, na maioria das vezes, provm de algo que
consideramos mal. Da a importncia de se visitar os aportes tericos que discutiram o
problema do mal buscando compreender suas intersees e seus caminhos de pesquisa. Neste
contexto escolhemos Santo Agostinho, que trata do mal enquanto uma ausncia de bem,
determinado pelo pecado que o resultado do livre arbtrio do homem; a evoluo do
pensamento de Kant sobre o mal, ao discuti-lo como uma ao que provm da vontade
humana e que se d no mbito do que se considera moralmente aceito; e, por fim, o trabalho
de Hannah Arendt, que discute o mal enquanto uma ausncia do pensar que interfere na ao
do homem que passa, enquanto massa, a seguir os ditames de um determinado poder, o mal
se torna banal porque o homem perdeu sua capacidade de pensar se tornando suprfluo.
Todas estas reflexes ajudam a lanar um olhar sobre como podemos encarar o medo
discutindo-o enquanto um subproduto da problemtica do mal e, mediante o pensamento de
Hannah Arendt contextualiz-lo com o pensamento moderno e seus desdobramentos nos
termos da ao.
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2.1. O MAL EM SANTO AGOSTINHO: O LUGAR DO PECADO E DO LIVRE ARBTRIO
Santo Agostinho tem um papel central na difuso da concepo de mal que prevalecer em
quase toda filosofia crist. Ele compreende o mal como uma ausncia de um bem, algo que
no tem existncia prpria, embora exera consequncias em nossa vida, na medida em que
assume a forma de pecado e sofrimento. Assim, o bem pode existir sem o mal; mas o mal no
pode existir nunca sem o bem: s pode haver ausncia daquilo que , s pode haver uma falta
naquilo que existe. No preciso buscar uma causa especfica para o que no . O que
Agostinho se prope a investigar a razo por que determinado grau de ausncia de bem o
mal - est no mundo.
Ele inicia esta discusso na obra livre arbtrio apresentando os dois sentidos do mal: o mal que
algum praticou (o chamado mal moral ou pecado) ou o mal que algum sofreu (o chamado
mal fsico ou natural - sofrimento). Partindo do pressuposto que Deus bom e justo, e que a
providncia divina regula tudo no mundo, Agostinho inicia a discusso sobre o tema do pecado
e sofrimento. Sendo bom, Deus no pode fazer mal, isto no pode ser autor do mal no
primeiro sentido (pecado). Se justo, premia os bons e castiga os maus, cujas penas sofridas
so um mal no segundo sentido (sofrimento). Finalmente, como a providncia universal e
ningum padece injustamente, Deus deve ser autor de todo o mal enquanto sofrimento. J os
homens, ou melhor, a vontade dos homens responsvel pelo mal enquanto pecado. Assim,
Agostinho conclui que o sofrimento sendo uma justa punio para a ao do homem, no
propriamente um mal.
Com isso, o mal propriamente dito reduz se ao agir mal. No entanto, uma nova questo vem
tona o que fazer mal? O que pecar? Na discusso com seu discpulo Evdio, Santo
Agostinho conclui que o desejo desgovernado, interior ao pecador que constitui o pecado.
Mas do que o ato em si, a inteno que determina que ele seja mau ou no. Um dos
exemplos citados por ele o caso de um carrasco que cumpre uma sentena de morte,
segundo Agostinho, no seria pecado, pois no foi o desejo de matar e sim uma ao judicial
que definiu o ato. Tais consideraes iro de encontro, em certa parte, com o debate
promovido por Hannah Arendt em a banalidade do mal.
Por fim, ele contradiz alguns dos seus argumentos ao inserir o dogma teolgico do pecado
original para justificar a inclinao dos homens para o pecado. Neste contexto, no est mais
nas mos do homem ser bom, pois sem a ajuda de Deus ele sempre ir pecar. O medo, neste
perodo, o da punio divina! O livre arbtrio enquanto liberdade para seguir o bem, vai de
encontro com a discusso do mal moral estabelecida por Kant, como iremos ver mais a frente.
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2.2. O MAL MORAL EM KANT
Kant d prosseguimento ao pensamento de Agostinho quando afirma que A histria da
natureza comea pelo bem, pois a obra de Deus; a histria da liberdade comea pelo mal,
pois obra do homem (KANT, 2010: 25). precisamente neste contexto da liberdade que se
inscreve o conflito entre o bem e o mal moral. Segundo Kant, a propenso para o mal na
natureza humana resultado da liberdade, ou seja, uma propenso moral e no uma
propenso fsica fundada sobre impulsos sensveis, pois o que moralmente mau diz respeito
prpria ao do homem.
Para Kant as aes morais so aquelas que afirmam o princpio da vontade como efeito da
liberdade. O conceito de bom ou mau no pode e no deve ser definido antes da lei moral. De
acordo com Kant a vontade pura ou a inteno pura que faz ser bom aquilo que ela quer.
Neste contexto, ele avana para a discusso do imperativo categrico que ir guiar a vontade
pura. Este se resume na seguinte sentena: Age de tal modo que a mxima de tua vontade
possa sempre valer simultaneamente como um princpio para uma legislao geral (KANT,
2010: 42). Atendendo esta mxima a ao estaria em conformidade com o dever. O
imperativo categrico orienta-se, pois, segundo um valor bsico, inquestionvel e universal: a
dignidade da vida humana.
Com respeito aos juzos morais, as coisas no so nem boas nem ms, so indiferentes ao bem
e ao mal. Os qualificativos morais no correspondem quilo que o homem faz efetivamente,
mas sim, quilo que ele quer fazer. Esta postulao com respeito aos juzos morais conduz
concluso de que a nica coisa que verdadeiramente pode ser boa ou m a vontade humana.
A inclinao para o mal acaba ditando o imperativo categrico voltado para uma lei universal.
Assim, se eu perteno a uma nao imperialista e acredito na superioridade dos meus valores
relativamente aos das outras naes, devo usar todos os meios para imp-los. Neste contexto,
o sujeito tem o dever de impor esta sua lei universal a todos os outros homens, para bem da
humanidade. Para que a lei se torne de fato universal. Desta construo de Kant, legtimo
concluir que eu no amo o meu semelhante, como lhe nego a possibilidade de ele se guiar por
uma lei moral diferente da minha. Recuso a ver o mundo pelo seu olhar; pelo contrrio, tudo
farei para impor o meu, que considero superior. Tudo farei para que todos os seres humanos
olhem o mundo pelo mesmo olhar, por coincidncia, o meu prprio olhar. No foi isso que o
nazismo tentou fazer? Este seria o mal radical, a vontade humana que desconsidera a
dignidade humana como princpio para a lei moral.
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2.3. A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT
Santo Agostinho, cuja obra de Arendt sempre manteve um intenso dilogo, considera que
impossvel fazer o mal por causa do mal. Os homens so bons cometem o mal porque so
corruptveis. Como Agostinho, Arendt tambm no pensa em termos de uma vontade maligna,
disposta a deliberadamente a cometer o mal. Entretanto, ela no considera que o mal, pelo
menos o mal banal, possa ser uma questo relacionada corruptibilidade. Esse aspecto do
mal, para Arendt, algo que Agostinho e, tampouco Kant, puderam imaginar. Para a tradio
do pensamento, a maldade encontra disposio na fraqueza humana, sempre inclinada a
ceder tentao. Dentro dessa perspectiva, o mal encarado como tentao, e o bem, como
esforo. O problema que em um Estado totalitrio como o nazista que transformou crime
em lei o bem que ganha o carter de tentao. O mal convertido no cumprimento de um
dever.
Mesmo Kant, que em sua filosofia moral acaba concebendo o bem como uma espcie de
tentao j que para o homem, para agir moralmente, deve seguir apenas o mandamento
ditado pela sua razo, afastando toda inclinao subjetiva, no importa se para fazer o bem ou
o mal. A ao de praticar o mal est relacionada ao ato de ceder s inclinaes. A questo,
para Arendt, que praticar o mal pode no ser necessariamente uma questo de inclinao,
que pressuponha uma inteno expressa do agente.
A reflexo de Arendt sobre o fenmeno totalitrio comea com a constatao da facilidade
com que um povo se deixou arrastar pela ideologia dos regimes totalitrios. Em Eichmann vai
a Jerusalm, ela demonstra a obedincia cega incapaz de discernir entre a ordem e a lei.
Eichmann se revelou o prottipo do cidado respeitador das leis, paradigma do homem de
massa, um prisioneiro da necessidade. A vida social de massa devora a vida privada e a vida
poltica. assim que o homem moderno vai conhecer o isolamento, que o impasse para o
qual so conduzidos os homens, a partir do momento em que a esfera poltica de sua vida
comum destruda (ARENDT, 2012:633).
Este o contexto propcio para que se constitua o sujeito ideal do totalitarismo, esse homem
desagregado, que no se relaciona mais aos outros homens. Este sujeito destitudo como
sujeito poltico, sem conscincia moral, incapaz de pensar e de julgar e, por este motivo,
capaz de fazer banalmente o mal. A partir do momento que esse homem se torna um ser
suprfluo, ele no mais um fim em si mesmo. Assim, seu valor como homem se encontra
relativizado; ele passa a ser, ao mesmo tempo, a vtima e o agente desse mal banal (FELCIO,
2005:544).
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A banalidade do mal conectada ausncia da faculdade de pensar impele os indivduos a
aderirem a tudo o que as regras de conduta indicam em uma dada poca para uma
determinada sociedade. Em outras palavras, essa ausncia de pensamento induz ao
conformismo e alienao.
A liberdade um ponto comum a Arendt e Kant para se pensar o homem, com a ressalva de
que, o homem de Kant pensado, originalmente, em sua moralidade e o de Arendt, em sua
ao poltica. No entanto, cabe destacar que Arendt reinterpreta o problema do mal em Kant
inserindo novos elementos: o esvaziamento da ao poltica e do pensamento humano em
nossa contemporaneidade. Com a nfase recaindo no vazio de pensamento ela aponta para
a presena dessa marca do nosso tempo que, conjugada aos sinais inconfundveis da
banalizao da violncia nas sociedades de massa, so reveladores desse lado sombrio da
nossa contemporaneidade (FELCIO, 2005:545).
A violncia, neste contexto, se converte numa linguagem compartilhada, a partir da qual
possvel pensar os limites da sociabilidade, sua crise e suas possibilidades, situando o medo e a
insegurana como determinismos socializadores cada vez mais presentes no convvio urbano.
O sujeito moderno passa a ser tutelado ento pelo terror ao que lhe estranho e ao que lhe
apontado como estranho, muitas vezes abrindo mo da sua faculdade de pensar. A anlise
elaborada por Hannah Arendt sobre a banalidade do mal permite instituir uma nova
abordagem sobre o medo e, a possibilidade de sua transformao em ferramenta de poder,
ditando comportamentos individuais e suas manifestaes coletivas, bem como no espao
urbano.
3. A MICRO-HISTRIA DE CARLO GINZBURG E SUAS POSSIBILIDADES DE INVESTIGAO
A contribuio de Carlo Ginszburg se d mediante o reconhecimento da inter relao de seus
conceitos de micro e macro histria, bem como suas metodologias de pesquisa para a
investigao no campo antropolgico/etnogrfico de temas complexos - cujo material de
pesquisa bastante ambguo e cheio de lacunas, ajudaram a pensar sobre como abordar
algumas questes apresentadas no projeto de tese.
Neste contexto, destaca-se que a proposio de anlise histrica de Carlo Ginzburg que
defende uma delimitao temtica especfica por parte do historiador (inclusive em termos de
espacialidade e de temporalidade), onde, numa escala de observao reduzida, a anlise
desenvolve-se a partir de uma explorao exaustiva das fontes, tendo a preocupao com uma
narrativa histrica diferenciando-a da narrativa literria, mas sem desconsider-la. Segundo o
autor, os historiadores (e, de outra maneira tambm os poetas) tm como ofcio alguma coisa
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que parte da vida de todos: destrinchar o entrelaamento de verdadeiro, falso e fictcio que
a trama do nosso estar no mundo (GINZBURG, 2007:14).
O autor refora a importncia da fico para compreender determinados usos e costumes de
uma determinada poca. Considerando que pretendo analisar o medo do outro num vis
histrico, identificando, a partir de diversas fontes de quem se tinha medo e como as pessoas
se relacionavam com esse medo, o captulo sobre fico e histria bastante rico, pois o autor
apresenta uma discusso metodolgica sobre a anlise e identificao de elementos histricos
nas fices. Citando o trabalho de Jean Chapelain (1647) ele expe: um escritor que inventa
uma histria, uma narrao imaginria que tem como protagonistas seres humanos deve
representar personagens baseados nos usos e costumes da poca em que viveram: do
contrrio no seriam crveis(2007:82). E continua Permite-nos, como nos mostrou Chapelain,
construir a verdade a partir das fices, a histria verdadeira a partir da falsa (GINZBURG,
2007:93).
No obstante, Ginzburg aponta para o papel das mltiplas narrativas para a construo de um
fato histrico, bem como a necessidade de se compreender as intenes/informaes ocultas
presentes em determinados documentos. Ao citar os documentos da inquisio, ele observa a
ausncia de neutralidade e objetividade deles, e alerta para a importncia da leitura destes
documentos enquanto produtos de uma relao especfica, profundamente desigual. Neste
contexto, Ginzburg conclui que para decifr-los, devemos aprender a captar por trs da
superfcie lisa do texto um sutil jogo de ameaas e medos, de ataques e retiradas. Devemos
aprender a desembaraar os fios multicores que constituam o emaranhado nesses dilogos
(GINZBURG, 2007:287).
Diante do exposto podemos destacar a fala de Jean Delumeau, historiador francs, que ao
tratar da histria do medo, e mais especificamente de sua manifestao no perodo da Idade
Mdia, demonstra a dificuldade que a sociedade sempre teve em apresentar o medo por meio
de sua histria: Por que esse silncio prolongado sobre o papel do medo na histria? Sem
dvida, por causa de uma confuso mental amplamente difundida entre medo e covardia,
coragem e temeridade. Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a lngua falada o
primeiro influenciando a segunda tiveram por muito tempo a tendncia de camuflar as
reaes naturais que acompanham a tomada de conscincia de um perigo por trs das falsas
aparncias de atitudes ruidosamente hericas (DELUMEAU, 1989:13).
Ao tratar da micro-histria o destaque o reconhecimento dos limites dos rastros e dos
documentos, e a possibilidade de explor-los transformando-os em um elemento narrativo.
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Assim, os obstculos postos pesquisa constitutivos da documentao, as hipteses, as
dvidas, as incertezas tornam-se parte da narrao. Neste contexto, a busca da verdade
tornava-se parte da exposio da verdade obtida (e necessariamente incompleta) (GINZBURG,
2007:265). Esta considerao de extrema importncia para uma pesquisa que pretende
tratar o sentimento de medo enquanto fenmeno histrico-social.
Por fim, Ginzburg conclui que o acmulo de conhecimento sempre ocorre assim: por linhas
quebradas em vez de contnuas; por meio de falsas largadas, correes, esquecimentos,
redescobertas; graas a filtros e esquemas que ofuscam e fazem ver ao mesmo tempo
(GINZBURG, 2007:111).
4. UMA APROXIMAO COM A HERMENUTICA DA FACTIDADE DE HEIDEGGER
Heidegger descreve as caractersticas essenciais do Dasein (ser a), incluindo a interpretao e
a interpretao de si. A interpretao do Dasein e do ser em geral envolve a interpretao de
textos. Seu intento de fazer com que a interpretao ou leitura do texto gere uma viso
heterognea e apresente outras perspectivas em relao abordagem, ao novo. Segundo
Heidegger, as palavras no tm significados fixos e unvocos independentemente de seu uso e
aplicao. Os significados acumulam-se nas palavras a partir de inter-relaes que constituem
nosso mundo. Neste sentindo a hermenutica da facticidade pode auxiliar na reflexo sobre os
discursos, mensagens, representaes e aes estratgicas que determinados agentes
procuram descortinar.
Para Heidegger se h algo que pode ser mostrado pela fenomenologia, esse algo, certamente,
no h de ser aquilo que pode tornar-se evidente para uma subjetividade, mas justamente o
que permanece velado. E o que permanece de diferentes modos velado, diz Heidegger,
precisamente o que d sentido e fundamenta aquilo que se mostra diretamente. Essa
convico da tendncia do ser para o ocultamento marca de forma decisiva no apenas o
mtodo fenomenolgico de Heidegger, como toda a sua meditao posterior sobre a verdade
(SARAMAGO, 2008:40). Se a linguagem capaz de desvelar o ser, tambm verdade que ela
pode encobri-lo (HEIDEGGER, 1984: 156).
Como inspirao para o processo de decifrao deste ocultamento, no caso especfico do
espao urbano, resgato o alerta de Lefebvre (2001:61): Sim, l-se a cidade porque ela se
escreve, porque ela foi uma escrita. Entretanto, no basta examinar esse texto sem recorrer ao
contexto. Escrever sobre essa escrita ou sobre essa linguagem, elaborar a metalinguagem da
cidade no conhecer a cidade e o urbano. O contexto, aquilo que est sob o texto a ser
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decifrado (vida cotidiana, as relaes imediatas, o inconsciente do urbano, aquilo que no se
diz e que se escreve menos ainda [...]) aquilo que est acima desse texto urbano (instituies,
as ideologias), isso no pode ser esquecido na decifrao.
A hermenutica da facticidade se apresenta com nitidez quando o autor prope investigar de
que maneira, a partir de determinadas situaes concretas, inseridas numa cotidianidade
imediata, se apresenta fenomenologicamente o mundo. Mundanidade e desencobrimento
constituem a compreenso do ser a imerso na sua vida ftica. Na estrutura do encontro
inerente ao mundo, a significatividade a antecipao de sentido de tudo o que se manifesta e
a compreenso desse sentido (SARAMAGO, 2008:63). O que existe como cotidiano, ele
afirma, no se mostra como aquilo que propriamente antes de seu para-qu ou para-
quem; mas seu ser a funda se precisamente nesse para-qu e para-quem. Estas ltimas
questes so fundamentais a qualquer projeto de pesquisa que se pretende desenvolver, da
sua relevncia.
5. CONSIDERAES PARCIAIS
Eu quase que nada no sei. Mas desconfio de muita coisa1.
Para Ginzburg Conhecer, como ensinou Plato, sempre reconhecer. s o que sabemos, o
que j faz parte da nossa bagagem de experincias que nos permite conhecer o novo, isolando-
o da massa de informaes desordenadas e casuais que chovem continuamente sobre ns
(GINZBURG, 2007:304-305). Acredito que este tenha sido o principal objetivo deste ensaio,
ampliar a bagagem de experincias e conhecimento de modo a reconhecer o novo em meio
massa de informaes coletadas.
No ltimo captulo do seu livro, Ginzburg narra sua experincia de pesquisa com os feiticeiros
e xams, os caminhos e descaminhos da pesquisa, mudanas de orientao a partir das
informaes coletadas, e at mesmo, o porqu da sua atrao por este tema. Em parte, penso
ser este o ponto da pesquisa em que me encontro, coletando informaes, alinhavando
mltiplos olhares sobre o mesmo tema, buscando reconhecer para conhecer e me reconhecer,
e quem sabe buscando o anormal, como diria Ginzburg.
1 Riobaldo, dos personagens de Guimares Rosa, em Grande Serto: veredas.
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6. BIBLIOGRAFIA
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