o libertino passeia por braga, a idolátrica, o seu esplendor

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O LIBERTINO PASSEIA POR BRAGA, A IDOLÁTRICA, O SEU ESPLENDOR Outubro, 15. Noite em Vieira do Minho friorenta e agitada por pesadelos, incongruências, palpitações. Já de madrugada, O Mensageiro das Trevas aparece-me na cama, agarra-me quase ao colo com os seus dedos de aço nos braços e diz-me baixo, numa voz irónica mas simpática (ou cínica e trocista?): "Ontem (referência, parece, a um sonho meu da véspera, em que me surgira A Morte, com a sua caveira comum, de dentuça à mostra, cara desgraçada!), ontem viste-me com a minha triste cara verdadeira, hoje venho alegre (a face dele era uma máscara apalhaçada, coberta de giz) mas é para te dar uma má notícia, coitado 1 : 1 o cinismo da personagem é bem evidente nesta palavra de simpatia, não acham? 1

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Page 1: o libertino passeia por braga, a idolátrica, o seu esplendor

O LIBERTINO PASSEIA POR BRAGA, A IDOLÁTRICA, O SEU

ESPLENDOR

Outubro, 15. Noite em Vieira do Minho friorenta e agitada por pesadelos,

incongruências, palpitações. Já de madrugada, O Mensageiro das Trevas

aparece-me na cama, agarra-me quase ao colo com os seus dedos de aço

nos braços e diz-me baixo, numa voz irónica mas simpática (ou cínica e

trocista?): "Ontem (referência, parece, a um sonho meu da véspera, em

que me surgira A Morte, com a sua caveira comum, de dentuça à mostra,

cara desgraçada!), ontem viste-me com a minha triste cara verdadeira,

hoje venho alegre (a face dele era uma máscara apalhaçada, coberta de

giz) mas é para te dar uma má notícia, coitado1:

AMANHÃ MESMO MORRERÁS!

Acordo aos estremeções, aflito, com uma consciência muito nítida do

encontro, e começo por fazer figas debaixo da roupa ao Intruso, mas

depois, cheio duma superstição infantil (que me ficou da criança que fui,

entenda-se), faço o sinal-da-cruz. E para não tirar as mãos debaixo do

1 o cinismo da personagem é bem evidente nesta palavra de simpatia, não acham?

1

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quente das mantas, engrolo gestos e palavras mesmo sobre o peito, à

matroca, como um aprendiz de catequese faria. Sossego mais. Começo a

pensar como morrerei. Desastre? colapso? ou loucura súbita e logo

suicida? Adormeço nisto. Ao acordar conto ao Forte o meu sonho, para o

esconjurar. Ou talvez para criar uma testemunha do meu presságio

nocturno, se sair certo. Figas! Cruzes! Malandro! Canhoto! E logo eu, que

gosto tanto da Vida! A caminheta dos livros segue para Braga; primeira

paragem, em Esporães ou Esporões2, outra terra a que perdi o nome3 e

depois Somar. Eis a grande revelação da jornada: Deolinda da Costa

Rodrigues, 14 anos, no 3º ano do curso comercial, residente no lugar de

Assento. Fico varado! Mas é a Lolita tal-e-qual do Nabokov, é a Super-

Gêninha jamais esquecida. A Super-Super-Gêninha, que talvez me vá

fazer esquecer de vez a outra. Baixa, encorpada, ancas cheias como se

quer, barriga abaulada, leveza nos modos, gravidade e força de mulher

no corpo, uma suave expectativa de adolescente. Que beleza! Que

maravilha! Morena, olhos atentos, cabelo entrançado (seria? ou rabo-de-

cavalo?). Adivinho e aspiro o perfume do seu sexo; leio-lhe nos olhos os

gritos que ela daria de prazer se a possuísse agora, nesta luta de vida ou

de morte contra o Mafarrico, a última, a grande vitória do Libertino. O

espichar de corpo, o estrebuche no orgasmo, que beleza, que maravilha!

Sou eu que lhe ensino a preencher a ficha de inscrição, depois perco-me

dela, para não revelar a minha exaltação. Ela é que escolhe os livros: três

volumes Condessa de Ségur ("O Enjeitadinho"? "O Corcundinha"?, são

livros de títulos tristes). Espero-a fora da caminheta, estendo a mão, pego

nos livros que pediu, faço perguntas calmas; ela é grave, concisa,

responde logo com naturalidade ao que lhe pergunto: "Andas a estudar?

sim. Em que ano? terceiro ano da escola comercial. Estás adiantada". Ela

fica ainda perto da caminheta uns minutos, a ver os que entram e saem,

2 Uma miudinha esfarrapada e esperta, um-padre-Amaro-sósia-do-outro; uma

capelita com escadaria Bom-Jesus em miniatura (lembro-me de subir lá acima e fazer um pacto; mas a escadaria é alta, ainda); uma bonita minhota de cetim preto, com olhos largos e calmos, belos olhos que nunca mais verei.

3 (3) Umas miúdas de 4, 5 anos, a quem peço tremoços e castanhas, e depois

ficam muito excitadas, e começam a levantar as saias umas às outras, dizendo (quem diz, é uma desdentadinha, magrizela e encarvoada): «Mostra a zabelinha, mostra a zabelinha a este senhor!». Olha que putitas!

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e depois segue num passo lento por uma azinhaga que desce entre

muros. Faço umas manobras disfarçatórias, ando por aqui por ali, e acabo

por enfiar alvoroçadamente azinhaga abaixo, na esperança de a tornar a

ver, mesmo de longe! e desfocada em vulto com as minhas múltiplas

dioptrias! ou falar-lhe, o que era já improvável. Pergunto a uns indígenas

muito sujinhos, benza-os Deus, onde era o lugar de Assento, novitos,

nunca ouviram falar (nem chego até a perceber se entenderam o que

lhes disse). Sigo pela azinhaga. Está uma manhã puríssima e silenciosa.

Casas velhas, palheiros de gente e gado, tons pela verdura de castanho,

ruivo, sanguínea nas parreiras e árvores. Conversas que me chegam,

abafadas pelos muros grossos das empenas, pela distância, pela sua

própria peculiar intimidade, que se espalham no ar e congelam em cima

de mim uma súbita tristeza, ou isolamento de angustiado: quem me dera

ser um deles! ser um da casa! eles conhecerem-me!, mas não como

agora, mas desde o princípio, um como eles, na pureza fresca e larga

desta manhã dos arredores de Braga no Outono, com a vizinhança

permanente da Deolinda e seu cheiro de terra lavrada por semear.

Medito, ocorre-me por um instante a diferença das classes e fossos vários

que as separam, do qual o maior não será o económico sendo o mais

decisivo como maquilhagem das pessoas (explico: sem um tostão na

algibeira, eu era tão pobre como um deles ou mais pobre ainda, mas o

que nos separaria para sempre era aquela estranheza feita dos nossos

tempos diferentes e de como cada qual os tínhamos gasto, eles ali como

plantas, húmus, eu sempre por casas e terras e gentes afinal a mim

alheias). Como lhes fazer compreender agora a minha vida, ou contá-la

como novela ao serão, quem sou, quem fui, o que fiz, e onde tudo

começou e em que capítulo ficámos na última noite e onde tudo irá

acabar... Impossível saber e eles saberem-no, sofrer como eles sofreram

ou eles sofrerem por mim as minhas dores passadas, gozar eu com as

suas alegrias e nada, nada disto nos poderá ser comum.

Regresso à caminheta e venho a saber depois que o lugar de Assento é

estrada abaixo, para ao pé da igreja. Voltamos todos para Braga. Apontei

o nome da miúda e o resto. Almoçarada em Gualtar com o Forte e o King-

Kong, o motorista, que paga tudo e está simpatiquíssimo comigo e com o

Mundo. Frango com arroz, à minhota, uma delícia. Vinho verde, à

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minhota, uma delícia. Como bundaradas porque adoro arroz de cabidela

e vinho verde e minhotas: "Deolinda da Costa Rodrigues, 14 anos, no

lugar de Assento, cá me ficas, mas este arroz marcha à frente!". Bebo

mais que um Arcebispo, com o Bom-Jesus em cenário. Deixo de pensar

na Morte, essa magana. Estou um tanto pesado e alegrote. Voltamos a

Braga. Cafés. Decido ficar. O Forte dá-me cinco escudos, que é quanto

lhe resta. Um bom Libertino não precisa de dinheiro. Decido ficar e fazer

uma tarde de luxúria mental em Braga, para esconjurar o cheiro a

incenso e mofo de padre que empestam estas ruas.

Largo o casaco e a sacola num tasco. Meto mais verde. Telefono ao.

Victor de Sá, a quem vinha incumbido de entrevistar para a "Seara".

Grande confusão política em Braga: há duas listas da Oposição, uma, a

boa, que o Governo cortou, "da maneira mais arbitrária...", diz-me o V.S.;

outra, a dos moderados ou mortos (é o termo dele). E que não dá

entrevista, que tem muito que fazer, que estão a estudar uma

reclamação ou petição, etc. Oh diacho, é outro caso de pré-deputado ou

candidato a deputado, que chega ao dia das eleições sem saber se vai, se

o deixam ir, se lhe contam os votos, se as listas de eleitores lhe são

facultadas, a cegada do costume. E duas listas da Oposição, em

Braga?!... É para ver se perdem mais depressa, ah!... ah!... (isto sou eu a

rir-me dos políticos de Braga). Concluo que em Braga a política é uma

trampa, uma trampa aflita em dias de sol deste, com raparigas na sua

folga de domingo, o Vianense a jogar contra o Braga, logo excursões de

Viana ali perto, com certeza - e a Deolinda perdida entre azinhagas e

casas velhas, o lugar de Assento ao pé da igreja, a Deolinda ainda não

esquecida mesmo depois do frango do almoço. Vou-me a ela!

Mas passam por mim duas miúdas: uma, grande cu descaído, badalhoca

de cara, trouxa de carne a dar às pernas - é a que me tenta; outra, muito

compostinha no trajar, casaco preto, saia branca ou creme, muito viva,

muito espevitada. Atiro pontaria na badalhoca, a ver se avanço depressa

o negócio, jogando no ganha-perde da beleza física e no cálculo das

probabilidades dos complexos das feias. Vou-as seguindo, de rabo alçado

como um garanhão, e a gorduchona já me topou. Olha para trás, por

vezes. Já comunicou à parceira. A andar, a andar, chegamos a uma

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espécie de logradouro público, com certo ar antiquado e bancos largos de

pedra, onde finda a linha dos eléctricos para o estádio (vejo o nome,

Estádio 28 de Maio, oh a Política!, ah! ah!, isto só em Braga). Mas agora o

grupo das meninas complicou-se: entrou por ali uma velha gorda, e inútil,

e naturalmente sabichona e danada por invejar o prazer dos outros como

é próprio de velhas; com ela, e tão empatas como ela, duas estúpidas de

duas garotitas, broncas e também inúteis para questões de sexo. Sento-

me num banco e faço de grão-senhor, porque assim disfarço as calças

rotas no rabo. A miúda mais bonita dá-me uma chance? (será isso?).

Atira-se a dizer: "Eu sento-me já aqui", e vem toda lampeira para o meu

banco, mas depois passa ao do lado. Manobra provocatória, mas feita por

uma quase amadora? assim o entendi, e lanço-lhe uns olhares de

desfazer pedras, o meu olhar mágico, de megatoneladas de cio (assim

penso, mas com as 17 ou mais dioptrias e o estigmatismo e as lentes, e

as clarabóias do verde, que olhar será o meu?). A trupe das estúpidas,

porém, escolhe um banco lá pro fim e depois ficam todas sentadas e de

costas umas para as outras e caladas. Domingos divertidos passam estas

raparigas em Braga! quase tanto como o V.S. a preparar as suas petições

para o ministro limpar o rabo a elas. Crio fastio de posar ao grão-senhor,

distraído e benevolente com a paisagem. E começo a deambular, de

árvore para árvore, e vou comprar castanhas ao cimo duma escadaria

porque as duas miúdas broncas para coisas de entre-pemas vieram

também ali abastecer-se; o meu fito era chegar à fala com elas e daí às

mais graudinhas. Começo a comer castanhas e fico raivoso - ou

embuchado? Escrevo então dois bilhetinhos (de que desculparão o estilo

parvóide: nestas coisas de engates de miúdas e, até, de graúdas,

segundo opinam os entendidos, quanto mais estúpidas as declarações de

amor mais resultadodão, aqui a intenção, a sugestão é tudo), em folhas

arrancadas da agenda, assim: Preciso muito de falar consigo, diga-me o

seu nome e morada; outro, assim: Lambia-te toda, desde as maminhas

até ao pipi. Verás que gozo, é melhor que bom, em linguagem

infantilizada, a ver se pega. Amachuco-os até caberem numa bolinha

dentro duma casca vazia de castanha, que guardo na algibeira da blusa,

ao lado da bolota que me caiu em cima dos ombros esta manhã e

considero um talismã... ora agora aqui se podem rir da minha

infantilidade, mas olhem que vi O Mundo a Seus Pés. Viram ? A castanha

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amorosa é para mandar à gorducha ou à outra, a tal compostinha, isto se

chegarmos à fala, do que já começo a duvidar; sinto que estou a perder

tempo (como o outro tonto, a redigir petições sinceras) e precipito os

acontecimentos. Aproximo-me do banco delas e faço um jogo declarado

de olhares furiosos, de cem megatoneladas, para a gorducha lorpa, que é

a que me deita as trombas de frente; a outra, a sagaz, está de costas. A

velha topa-me ou é informada (porque há gente capaz de tudo, seria

alguma das miúdas ou das brutinhas primárias?), e resolve arrecadar o

rebanho para casa. Vou-as seguindo a distância, e pelo caminho inda

catrapisco umas malfeitonas que andam a saber o seu Destino numa

maniqueta chegada da América que diz se o que se tem no pensamento

sairá certo ou errado, e dá uma sina disparatada a cada cliente, tudo por

dez tostões (esqueci-me de dizer que no caminho para lá, para o repouso

ao pé do estádio, a miúda gira tinha ido consultar a maquineta, muito

azougada e preocupada com o seu futuro, e foi aí, até, que reparei como

era vivaz e um tanto parecida (ou não seria ilusão minha?), nos modos e

cabrice, com a Geninha. Começo a ver que, com guardiã à perna e

saloias até mais não, destas fulanas não levo nada. Preparo uma

vingança digna dum Libertino nos domingos sonolentos de Braga. Elas

vão ao fundo da avenida; então, chamo um puto com cara de esperto:

"Eh pá, queres ganhar uma croa? (eu tinha só três) sim, senhora! atão,

entrega esta castanha àquela menina que vai ali, de casaco preto e saia

branca. Mas de modo que ninguém veja...". O puto desata numa corrida e

eu atravesso logo para o outro passeio, como o bombista que se afasta

dos estilhaços que ele próprio provocou. Anarquismo minhoto!

Meto a caminho de Somar. Saem-me à estrada duas bezerras,

tasquinhando castanhas. Peço-lhes de que comer, mostra-me uma um

naco de pão com carne ou presunto. "Que o reparta", digo. Mas elas são

duas toiras muito sabidas e não vão às primeiras com o meu ar tedibói

pobretana. A de cá, da direita, é um belo pedaço de mulher, coxas reais,

pernas, cabelos e cara, bicho para dar trabalho de cu-abaixo-cu-acima a

um batalhão. Vão para um baile ou encontro furtivo. Que as fodam! Dou-

me todo a pensar na minha Deolinda e aperto a bolota-talismã. Chego ao

local onde a vira primeiro, de manhã, com uma casa afidalgada na curva

da estrada e a azinhaga que enviesga para os campos, à direita. Farei

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referência pela igreja, já que o lugar de Assento é vizinho e depois

bisbilhotarei pelos campos, usando o meu faro atiradiço. Onde estará

agora a casta diva? Lá se vê a capela, e pergunto a quatro moçoilas onde

é o lugar de Assento, "que é por ali", respondem, "então sigam à minha

frente que é para eu as ver melhor" , digo, a fingir de domador de potras

vadias. Estas são mais novas que as duas de há bocado na estrada, aí

entre os 15 ou os 18, mulherzinhas já, mas não fazem concorrência à

Deolinda, ah! não, p.q. as pariu! Vão numa grande galhofa, e eu rio-me

cá atrás, para saberem que lhes estou interessado nas falas. A que vai do

meu lado, à esquerda da azinhaga, é uma loira espigadota, bonitota,

provocante; é a que mais vezes se volta e encaro-a com o meu olhar

mágico de duzentas megatoneladas e um riso de dizer (e o pior era o

bafo, a mosto...) "anda cá, rapariga, estou cheio de tesão por ti, pois não

vês?". Vamos neste jogo modesto até ao lugar de Assento e eu já arranjei

pretexto para andar por ali, com o meu traje um tanto invulgar: blusão de

nylon preto, calças rotas no rabo, sapatos rotíssimos nas solas e sujos de

poeira por cima, uma coisa entre o tedibói e o vagabundo, com a pêndula

a dar neste quando melhor se reparasse que blusão, calças e sapatos,

novos ou rotos, velhos ou rebrilhantes, não iam com o meu corpo por

medida senão por força de hábito e contrariados. O pretexto é: que me

disseram que a capela ou igreja é muito, muito antiga e tem muito que

ver; faço-me de Raul Proença ou Torga, a coscuvilhar raridades perdidas

na Província, preocupado com velharias e ossos, quando o que quero são

caras e bocas e olhos e risos. E mãos e pernas. Tudo, etc., de mulheres.

Dou com a capela aberta: fazem um baptizado. O padre tem cara de

cabra doente. Puta que o pariu mais ao pai da criança (que, depois, vim a

sabê-lo, está em Angola-é-Nossa. Boa ocasião de conhecer melhor a mãe

do neófito, para compensá-la do patriotismo do marido). As raparigas

sentaram-se numa pedra e faço o mesmo, mesmo ao pé delas. Então

entro em palestra, que toma logo um caminho picante: se a igreja é

muito antiga, se elas são solteiras, se moram por ali, se há na casa da

loirita um quarto a mais ou uma cama (abespinha-se: "isso num chei!") e

mais isto e aquilo. Não dão muito pela minha curiosidade arqueológica e

não sabem bem a qual delas me atiro ou que faço ali. Duas saem aos

saltos, à outra peço-lhe tremoços que mos atira, caem no chão, pede

desculpa, dá-me mais na mãozinha, pergunto se não há vinho para os

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forasteiros. Estou nisto e sai da porta, mesmo ao pé da igreja, a Lindita, a

minha Lolita, a Super-Geninha. A bolota-talismã não me desenganou. Sai

a correr, leva um cântaro e desaparece numa azinhaga. (A esta

maravilha perco-a sempre por azinhagas). Estou em ir ou não ir atrás

dela, mas disfarço o jogo, por causa das quatro sabichonas e também

porque ela, tendo-me visto, não deu mostras de me reconhecer. O que

me parece pouco natural, dado o meu blusão negro, característico, os

óculos, a cara espantada, as calças todas amachucadas. Vira-me ainda

não há umas 5 horas. Falara com ela duas vezes. Rondara-a com os

olhos. Mas talvez não desse à minha ida ali qualquer significado especial,

talvez não me topasse por eu estar a pôr-lhe os cornos com as outras,

qualquer delas me servia para abrir o meu apetite da Super-Geninha, se

isso fosse preciso. Mas o foder dá a vontade do foder (mais). Reparou em

mim? não reparou? Daí a nada voltava a correr, sem o cântaro, e olhou-

me como da primeira vez e eu olhei-a, com naturalidade. As quatro

sabichonas não deram por nada. Entretanto, tinham-se ido sentar mais

adiante e eu dei-lhes sopa, porque não aturo más-criações (mesmo

fingidas e provocadoras) e agora que já vira a Super-Lolita-Super-Geninha

não me calhava estar a namorar com elas. Vou-me para a capela, na

minha nova pele de arqueólogo amador, neo-Proença. Surge o sacristão,

que olhou para a blusa nova e não reparou nas calças esfiampadas, rotas

e cosidas no cu. Óptimo. Falo para o futuro (dele): que quero tirar umas

fotos àquela igreja tão antiga (muito, muito, diz-me o tipo a impingir-me a

mercadoria), vejo uns baixos-relevos muito antigos (?) e muito toscos

também, entro na capela, bisbilhoto tudo. O baptizo já acabou, e estão

agora todos cá fora a conversar. Falo ao tipo na minha reportagem, em

fotos - ele aí atrapalhou-me porque está um tipo precisamente cá fora a

tirar fotografias ao bebé ranhoso e ao padre cara-de-cabra-doente, mas

digo que a minha máquina é melhor, é minha. (Não tenho máquina

nenhuma).

O tipo concorda, está à espera duma gorja bestial mas eu lanço-o no

caminho das grandes esperanças (no futuro). Falo da Fundação

Gulbenkian, de milhões, de petróleo. Sou agora repórter da Fundação,

faço de Santana Dionísio. Logo a seguir tomo nota do nome e morada do

cavalheiro a aprazar vinda próxima, pois é nesta terra que me sinto bem.

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Entretanto, catrapisco ao longe a Super, que está numa bela pose

inclinada a ver o grupo a tirar poses e mais poses para mandar ao pai da

criança. Se a pudesse engatar! Vou atrás daquelas bestas, sempre

metendo fantasias na pinha do sacristão, que é um espertalhão-estúpido,

típico maloio de Braga. E vou-me. Marcho para Braga, está a fazer-se

tarde e faz frio. Gasto a última coroa para a caixinha da rapariguita que

me guardou a bagagem. Visto o casaco e vou ao ataque da Pensão

Oliveira, onde há que fazer meter na pinha do hospedeiro que sou um

velho e fiel cliente da casa. Havia nesta pensão duas velhotas Antigo

Regime, uma sala de cortinados com um piano e duas maganas que

tinham (uma delas) bigodaça loira. Tá tudo mudado: bar americano,

tasco infame, forno de assar frangos. "As velhas morreram, para dar

lugar à gente, antão?!", diz-me a filha do dono. Este leva-me ao meu

antigo quarto no 2º andar, pergunto pelo piano, ainda lá está porque não

há quem o queira. E na antiga cozinha é agora um quarto para noivos ou

casais que façam muito uso de água, porque tem chuveiro e bidé sanitas

anexo. Um regalo para encontros furtivos. Aqui a luxúria envolveu-se no

campo perigoso da política, ah! ah! Bebo mais um copo, que me dá uma

grande volta às tripas.

Tenho de ir para o jardim passear, com vómitos embrulhados na língua.

Aguento. Jantar. Dois moços de fidalgas famílias ou de massa? são

estúpidos mas gulosos de mulheres. Meto conversa. Pergunto como é isto

aqui de putas em Braga. Faço-lhes um sinalzinho com o dedo indicador

em curva para virem até à minha mesa e levo o assunto para o minete,

reforçado depois com o biminete. Dizem que há aqui o 28, que tem uma

(pelo menos) gaja boa. Pergunto se já fizeram ou viram fazer minete.

Explico-lhes o biminete. Pretendo com isto uma bacanal a cinco, que eles

pagariam para me ver e foder as miúdas. Ficaram chocados com a minha

declaração de que o foder já não se usa, cansa muito e eu tenho tesão,

mas não fodo. São eles que terão de foder as mulheres. Não percebo bem

se estão espantados, irritados ou entusiasmados. Querem ir ao 28 mas

digo que depois de jantar, nada. Mais tarde. Eles então vão para o cinema

e eu fico de ir esperá-Ios à porta. Saem jurando vingança! Cravo um

maço de Paris ao balcão e fósforos. E perco-me pouco depois a explicar a

um melro que o Totobola não prejudica isto da lotaria porque o lucro vai

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para a mesmíssima sereníssima beatíssima Misericórdia. Depois aparece

um velho ginja que é monárquico, um tipo assanhado com um olho com

um grande penso branco e um cabo ou sargento (não entendo de divisas)

que vai para Angola e diz que um rei alemão, que nem sabe falar

português, não lhe serve. Grande barafunda, berraria, copos, risadas. Eu

vou de grupo a grupo, dou razão ao que está mais perto, digo ao

sargento que o ginja pode ser um agente da Pide e provocador, o do olho

entrapado diz que ele é um caixeirote, que nem fidalgo é, etc. O sargento

diz que ele é que é da Pide, que pode até mostrar o cartão, que o

monárquico é um mentiroso. Nessa altura levo os dois republicanos ao

meu quarto (o monárquico acabara de revelar a sua isenção cívica,

declarando que tirava o chapéu à bandeira verde-vermelha, porque era a

bandeira da Pátria, a Nação em forma de trapo, e que isso da bandeira

azul-e-branca era uma história). Percebo que é um monárquico convicto,

mas desiludido: está-se cagando para o D. Duarte Nuno, e diz apenas que

há-de morrer assim, já que sempre foi monárquico.

No meu quarto dou ao sorja o Depoimento duma Angolana. Ele começa a

ler em voz alta. Lê bem, mesmo as gralhas. O tipo do olho branco começa

a ficar branco pró resto da cara. Abre a porta o dono da pensão (diz)

porque viu luz. Suporia panascaria? Fecho a porta, à chave, depois de o

ter tranquilizado que era tudo gente de bem. Discussão atrapalhada ou

trapalhona sobre Angola-é-Nossa, pretos maus e brancos bons e vice-

versa, com o sorja. O do olho tapado diz que tem gente à espera e

desaparece. A discussão com o sorja nunca se azeda: ele diz que sempre

é bom um tipo estar informado, eu digo-lhe que ele me pode prender ou

mandar prender, mas que é o meu dever (tirada de editor patriota), ele

tem medo de deixar as impressões digitais no papel, eu digo-lhe que a

autora (branca, note, branca, e filha de brancos e casada com um

branco) já foi chamada à Pide, ele suporá agora que sou eu da Pide,

estamos os dois bêbados e taralhoucos, acaba por jurar que pode morrer

mas aquilo é nosso e foi nosso, sim, que há uma razão para se defender,

e que pensa que há-de ter a sorte de matar ao menos um preto antes de

o matarem a ele, e pira-se, clamando mortes e glórias. É um doido.

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Saio para a rua e vou à cata dos dois pequenos libertinos ricos. Passeio

pelas ruas de Braga, sigo ora uma miúda ora outra, deito olhares de

megatoneladas, fumo. O cinema ainda não acabou. Vigio de longe o jogo

amoroso duma mocinha a palrar na rua com um marçanito, muito

gesticulosa, muito espalha-brasas, e com o corpo todo pendurado para

cima dele que com a mão esquerda na algibeira vai entretendo o caralho

com as promessas que a vista lhe está a demonstrar.

Até aqui, tudo muito bragal. Mas está-me a apetecer agora abjecção; saí

da porta do cinema chateado com a demora dos rapazinhos, até porque

não sabia se teriam ido ao Teatro Circo se ao Geraldo, onde também

havia sessão. E aconteceu então o inesperado: tudo aliás muito

naturalmente encadeado.

Faço o meu primeiro engate de magala, na rua. Não me digam tragédias:

é facílimo. É a coisa mais natural do Mundo! Venho diante do café das

Arcadas e de repente noto a meu lado um magala, de passo a par do

meu. Olho-o uma vez e ele olha-me; olho-o segunda vez e ele volta a

encarar comigo. Silêncio. Puxo do tabaco e ofereço-lhe: ele pára, pega no

cigarro, dou-lhe lume, acende o meu, seguimos lado a lado. Entabula-se a

conversa: trato-o logo por tu, mas sem superioridade, singelamente,

como um velho camarada. Tem bom tipo: cara magra, olhar triste, rosto

varonil e um pouco fatigado. Não é bonito, mas também não é boçal nem

repelente. Magro de corpo, altura média. Um tipo calmo. Sei-Ihe a história

num quarteirão de casas. Não é daqui, mas de Vila Franca de Xira ou

perto, tem família em Lisboa, tios e tias, está danado de estar aqui (há

dois meses), já emagreceu, por causa da comida; e mulheres, nada ou

quase nada, não se safa: o tal 28 é a trinta paus cada virada, onde terá

ele massa para isso com o pré da tropa (uns tostões, coisa que nem

chega a 5 coroas). Segue amanhã às 3 para Lisboa, vai levado para a

Amadora (?) fazer um treino e lá para o fim do ano, ala para Angola-é-

Nossa. Parece que é mecânico ou coisa assim. A meio do cigarro apaga-o,

para guardar a beata para o dia seguinte. Desconvenço-o. Acendo-lha

outra vez e dou-lhe mais dois cigarros, que ele guarda um pouco

avidamente na bolsa. Vamos conversando como dois velhos amigos, de

repente eu olho-o muito a direito na cara, admiro-lhe o rosto. Ele já deve

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estar convencido que eu sou um paneleiro rico e tem a noite safa. Mas a

conversa mantém-se sempre num plano de grande dignidade: malvadez

da comida nos quartéis, carestia das putas, política no Ultramar (restos

da minha discussão com o sargento), guerra em Angola-é-Nossa. Não é

um herói, tudo isso o entristece muito, mas sem emoção. Lamenta-se

mas não choraminga. A nossa conversa tem por vezes longos silêncios de

metros. Vamos agora na estrada que conduz ao quartel: é aquelas duas

luzes lá ao fundo; digo que sei mas não distingo senão manchas

esborradas de luz, que podem ser os candeeiros da estrada. Passam por

nós, em andar cadenciado de marcha, um rancho de taratas, à pressa de

chegarem ao quartel antes da meia-noite. Olham o par arrebenta mas

não têm uma palavra. Dum primeiro andar umas raparigolas dão uns

risinhos e dizem uns dichotes.

- Estão a meter-se comigo - diz o meu companheiro cheio de calma.

Voltamos a ficar sós na estrada. Parece-me que já consigo agora

distinguir as tais duas luzes do quartel. Devo-lhe uma explicação.

- Gostas de broche? - pergunto e encaro-o fito nos olhos, muito sério,

muito natural.

- An, nem por isso - responde sempre calmo.

- Pois é só o que eu te posso fazer - digo, como se me desculpasse de não

ser o Calouste Gulbenkian.

- E quanto me dá? - pergunta desagradável feita em tom meramente

comercial.

- Olha, não te posso dar nada - diz o falso Calouste - dava-te se tivesse,

mas estou tesíssimo, não tenho um tostão,já o tabaco foi fiado na

pensão, só amanhã é que recebo um vale de Lisboa, amanhã às duas e

meia.

- 'tão, nada feito - diz a sua honra camponesa, e pela primeira vez noto

como me apetecia aquele corpo, ser dono ou servo daquele aparato

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movediço de carne, pele, ossos, pêlos, força. E também me pareee que

ele está pronto a ir atrás de uma promessa, duma mentira qualquer, e

que a recusa pela venda comercial é onde ele esconde a sua pronta

adesão. Talvez o seu vício. Mas para comercial, comercial e meio.

- Se tivesse dava-te, já te disse.

Acreditou? não acreditou? O meu blusão rico de nylon, a minha barba mal

feita, toda a nossa conversa, deram-lhe algum entendimento de mim?

- Ao menos, qualquer coisa para um maço de tabaco.

- Já te disse que não tenho um tostão Mas se queres tabaco, vens comigo

à pensão e eu cravo lá um maço e bebes um copo ou uma cerveja. É

fiado.

Paramos os dois na estrada. Aí - tenho a certeza - um pouco de

insistência minha, qualquer promessa, fariam voltá-lo para trás. Mas não

fiz nada disso; devo ter-lhe parecido um velho forreta, gabiru em chupar

caralhos de borla. Resistiu.

- Só por isso não vale a pena, não interessa.

- Tens pouco tempo, não é?

- Não, posso recolher até à uma e mesmo ficar a noite fora. Mas não vale

a pena - diz o ribatejano - é longe...

- Não sei - digo eu, quase no mesmo jogo, muito diplomata.

Voltamos a caminhar lado a lado. Calados.

- Vou ali fazer uma mija - diz o gajo.

- Vê lá se te vêem. Aqui há casas.

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- Não faz mal, há aqui um sítio.

Descemos um carreiro em bico à direita da estrada. Escuridão. É o lugar

ideal para mijar, cagar ou brochar discretamente. Calculo que ele está a

provocar-me com o caralho fora das calças, quer festa, mas eu estou

muito senhor de mim.

- É pena não ter dinheiro, aqui era um bom sítio.

- O senhor tem, há bocado disse que tinha - diz o franjolas a mijar à

minha frente (e nem para a picha lhe olhei).

- Não tenho, já te disse que não tenho um tostão.

Sacudiu a gaita, voltámos à estrada.

- Ao menos, podia-me dar esse maço que tem aí...

- Toma.

E dou-lho, puxando um cigarro:

-Tiro este para mim.

Andamos, paramos. Estudamo-nos?

- Se quiseres aparecer, estou na Pensão Oliveira.

- Onde é que é isso ?

- Ali ao pé da Polícia de Trânsito, no Campo da Vinha, mesmo defronte.

- Ao pé do posto da Polícia?

- Sim.

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- Então ficamos assim: amanhã das nove às nove e meia estou lá, perto

do posto da Polícia.

-Tá bem.

Dou-lhe um aperto de mão.

- Como te chamas?

- António.

- E eu Luiz.

- Até amanhã, então.

- Até amanhã.

Volto para Braga. Mas o cinema já fechou. E como estou um bocado

tonto, passeio um bocado. Onde será o 28? Volto para a Pensão. Lá estão

os dois rapazolas; ou serão outros, parecidos?

Pergunto:

- Que tal esse cinema?

- Não foi mau - respondeu com ar de zangado.

Ora vão pró caralho! Não aturo meninos depois de ter tido homens na

mão. Bebo não bebo mais verde? bebo não bebo mais cerveja? ou uma

água de Castelo? Fumo? Peço mais fiados? Volto a passear e aproveito

para meter aqui o episódio da excursão vianense.

Quando andava a passear à tarde fui ao Campo da Vinha. 3 autocarros da

Viação Courense (? Paredes de Coura ?). Farejei minhotas. Dentro,

maioria de velhas e velhos, gente cansada, garotos com sono. Duas ou

três mulheres cantam, um velhadas bate palmas a compasso. O

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problema estava em que duas das viandantes tinham cá os namorados e

andam à solta. A chefa da excursão está arreliada e diz-lhe um home:

- Nós agora tínhamos o direito dirmos embora e deixá-las acá.

Mas a chefa tem as suas responsabilidades. Eu giro à roda daquelas

caixas de gente envidraçada, olho uns, olho outros cá debaixo. Elas

cantam. Há uma mulheraça à janela, que quer entusiasmar a malta.

Canta. Parece a minha Rosinha (Rosa da Costa Vaz, de Viana, Santa

Marta de Portuzelo ), mais velha, mais fodida. Canta bem. Eu acabo por

ficar fixado na janela dela. Olho debaixo. Não me apetece como mulher

fito-a como fantasma. E eu próprio sou um fantasma do que era há cinco

anos ou seis quando aqui estive com a Rosinha - Rosa da Costa Vaz que

foste, minha mulher (que não foi) minhota. Como eu a amei! Chegam as

transviadas. Vêm refilonas, suadas, queriam mais foda. Barafustam com

a chefa, a chefa barafusta com elas. Os carros começam a andar. Eu

estou especado outra vez debaixo da janela da mulheraça (Rosinha,

Rosinha, onde estarás?).

E esta que fingiu nunca dar por mim, quando o carro arranca e me deixa

esquecido, diz:

- Adeus, meu senhor .

Como quem diz: estavas aí e me viste e me desejaste, e quiseste o meu

cono, e fui tua. Nunca mais me verás, fantasma de blusão negro e óculos

grossos cara aparvalhada, fica-te, tarrenego!, sei lá quem tu és - não sou

para ti.

E eu que era para ela. Outra qualquer. Dentro e fora da memória,

fantasma para fantasmas.Vou para a cama. O vinho pesa-me na cabeça.

Bebo água fria para desenjoar a gorja. Durmo como um bendito. Acordo

no escuro, cedo, 6 ou 5 horas, há um grupo na Pensão que se está a

levantar, batem portas. Estou excitadíssimo. O meu homem virá ao

encontro? Onde o hei-de meter? Nestes quartos ouve-se tudo.

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Abjecção. Remorsos. Decido não ir. Misturo a Deolinda com o António e

sem mexer na picha estou quase a vir-me. De repente, tudo é tão

violento que tenho de bater uma punheta.

Como a Natureza previu todas as nossas fraquezas e ausências, dotou-

nos também com outro caralho para o cu detrás. Meto o dedo (médio?)

todo no cu, bato a punheta. E a ejaculação, forte porque há dias que

estou sem deitar nada cá para fora, dá-me contracções no esfincter.

Gozozíssimas. Venho-me imenso. Estou cada vez mais excitado. Cada

passo na escada parece julgo que é o António que vem e me penetra e

me obriga a chupar-lhe o delicioso caralho que não vi. Escândalo.

Tribunal Militar.Vergonha. Filhos a saberem tudo. Loucura. Suicídio. Tomo

meio Calmax. A pouco e pouco a corda vai-se aligeirando, estou melhor.

Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver.

Descubro que o êxito e o fracasso são uma e a mesma cadeia e em tudo.

O êxito para cima, o fracasso para baixo, e quando digo baixo digo baixo:

sujidões, dívidas, vergonhas, podridão, loucura. Mas o que toma tudo

igual é que ambas as cadeias se encontram, nada a fazer, meus caros,

daqui a cem anos ninguém se lembra.

E a nossa lição-abjecção a quem aproveitará?

Já tanto faz.

Tanto nos faz.

Braga, 16 ou 17 de Outubro, 1961.

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