o julgamento de sócrates

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O julgamento de ScratesRaphael L. PiaiaElaborado em 12/2010. Pgina 1 de 2 Desativar Realce A A

DO RESUMO Objetiva-se o estudo do Julgamento de Scrates a partir de fontes variadas sob a luz do Direito Moderno. O resultado indica que a condenao de Scrates, ainda que injustificada, foi provocada pelo prprio ru. Tenciona-se, outrossim, apontar legados relevantes deixados ao Direito pela Grcia antiga, bem como demonstrar que a ndoa que paira sobre Atenas por conta da condenao de Scrates tratou-se de episdio transitrio na plis motivado por traumas recentes. Palavra Chave: Julgamento de Scrates. Julgamento Histrico. Direito Natural. Liberdade de Expresso.

DA INTRODUOEstudar Scrates sinnimo de estudo interposto. Semelhante ao judeu crucificado que inspirou o cristianismo, Scrates nunca escreveu nada, todas as informaes que temos sobre ele, seus dilogos, seus mtodos, vm de seus discpulos especialmente Plato e Xenofonte ou de fontes mais tardias, portanto, suspeitas, como Plutarco e Digenes Larcio (que produziram suas obras cerca de cinco sculos depois do filsofo tico). No que tange ao julgamento do ateniense, a principal fonte tetralogia platnica composta por Eutfrone, Apologia, Crton e Fdon, logo ao lado da Apologia de Xenofonte. Tais autores, entretanto, no podem ser tomados como imparciais, uma vez que pupilos do velho filsofo. Diante dessa dificuldade, recorremos a Janer Cristaldo, escritor, filsofo e jornalista brasileiro que consideramos um dos nossos mentores intelectuais. Cristaldo recomendou obras clssicas j por ns conhecidas, como a tetralogia platnica, A Repblica, A Cidade Antiga, bem como leituras que descobrimos deliciosas e das quais fizemos uso quase que ad nauseam no decorrer do estudo, como O Julgamento de Scrates, do sagaz Isidor Feinstein Stone (Stone, lenda no jornalismo, quando da sua aposentadoria dedicou toda a dcada de 1970 ao estudo do grego arcaico com o fim de melhor compreender a Grcia antiga). Nosso objetivo principal foi analisar os aspectos jurdicos (materiais e instrumentais) e argumentativos encontrados no julgamento, sem, contudo, olvidar

incidentes curiosos no decorrer dessa histrica contenda. Tambm buscamos cotejar, sempre que possvel, o Direito que vigia na Grcia antiga com o Direito moderno. Por conta da celeuma de informaes, indispensvel a anlise crtica e interpretativa de todas as fontes, sendo essa a nossa inteno nesse estudo.

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1- DA ACUSAOHodiernamente, a despeito de pequenas variaes regionais tratando-se de Direito de extrao anglo-sax ou romano-germnica o Estado costuma ser o titular da ao penal. assim nas culturas que evoluram at o entendimento de que tais questes, por sua prpria natureza, so de interesse superior, da no se permitir que sejam legadas ao mbito privado. Assim, no sistema ptrio,verbi gratia, o titular da ao penal , via de regra, o Ministrio Pblico (CF. Art. 129, inciso I c/c CP. Art. 100, 1 e CPP. Arts. 24 e 257, inciso I). Exceo se encontra nos casos de queixa-crime, onde dado ao querelante promover a ao penal (CP. Art. 100, 2). Na Atenas da antiguidade, contudo, qualquer do povo podia fazer as vezes do parquet. Conforme aponta I. F. Stone, em seu O Julgamento de Scrates: "No havia promotor pblico em Atenas. Qualquer cidado podia apresentar uma acusao em juzo" . No caso de Scrates, sua acusao foi promovida por trs atenienses representantes de trs grupos da plis: Meleto (pelos poetas), Anito (pelos artfices) e Lcon (pelos oradores) . A denncia consistia em duas acusaes: corromper a juventude ateniense e impiedade.2 1

1.1- DA CORRUPO DA JUVENTUDETem-se por curioso que uma cidade extraordinariamente nica como Atenas, famosa por seus filsofos e a profuso de pensamentos, pudesse cercear um dos direitos que compunham a prpria essncia da cidade, ou seja, pudesse cercear a liberdade de expresso de um dos seus cidados. Sem tal direito, alis, seria possvel afirmar que Atenas nunca teria se tornado o que foi: bero da cultura ocidental. Isidor Stone, atento a essa contradio, relembra que a acusao de Scrates no atribuiu ao filosofo a violao

de nenhuma lei especfica, donde possvel inferir que a sociedade ateniense poderia estar abalada com alguma instabilidade civil recente, de modo que sua tradicional tolerncia e esprito liberal restassem diminudos. Na interpretao do jornalista americano:Quando Atenas processou Scrates, a cidade se traiu. O paradoxo, a vergonha do julgamento de Scrates o fato de uma cidade famosa pela liberdade de expresso nela existente processar um filsofo que no era acusado de outra coisa seno exercer o direito de se exprimir livremente. Para trazer lembrana algumas falhas da democracia americana, em Atenas no havia nada semelhante s nossas Leis dos Estrangeiros e da Sedio(...) Nada podia ser mais contrrio ndole da cidade, como podemos depreender das orgulhosas frases iniciais do discurso fnebre de Pricles, que celebram uma cidade aberta e uma mentalidade aberta. Em Atenas, jamais existiu Comit de Investigao de Atividades Antiatenienses (aqui, Stone faz aluso ao Comit de Investigao de Atividades Antiamericanas, grupo criado nos EUA a poca da Guerra Fria) Ao processar Scrates, Atenas agiu de modo "antiateniense", por estar assustada com os trs terremotos polticos recentes a derrubada da democracia em 411 e 404 a.C., mais uma nova ameaa de ditadura em 401. Esses acontecimentos ajudam a explicar o julgamento de Scrates, mas no o justificam.3

V-se, desse modo, possvel justificativa para a conduta autoritria da cidade em relao ao filosofo ateniense, especialmente quando se considera que Scrates teria sido condenado quando dos seus 70 anos. Ora, diante disso, uma pergunta se impe: por que oprimir to tardiamente algum que passou tanto tempo como "gadfly" de Atenas, a mosca essa a analogia mais popular para descrever Scrates - que incomodava a cidade supostamente fazendo seus cidados pensarem e questionarem? Sob a luz dos distrbios polticos, torna-se mais fcil compreender a acusao de corrupo da juventude. Stone recorda que:A admirao de Scrates por Esparta e Creta, mencionada ironicamente no Crton, um dado desconcertante. Esparta e Creta eram, cultural e politicamente, as duas regies mais atrasadas da Grcia antiga(...) as terras eram cultivadas por servos, os quais eram mantidos submissos (ao menos em Esparta, a respeito da qual sabemos mais do que em relao a Creta) por uma polcia secreta e uma casta militar governante que praticava uma espcie de apartheid (...) A predileo socrtica por Esparta e Creta confirmada em outros trechos de Xenofonte e Plato, sendo que esses dois autores tambm preferiam Esparta sua cidade natal. Nas Memorveis,

Scrates tacha os atenienses de "degenerados" e afirma a superioridade dos espartanos (...) Na Repblica de Plato, Scrates elogia as "constituies de Creta e Esparta" como a melhor forma de governo, prefervel oligarquia, que ele pe em segundo lugar, e, naturalmente, democracia, que para ele vem em terceiro.4

Ainda se recuperando de duros golpes a sua preciosa democracia, natural imaginar por qual razo muitos olhos atenienses teriam se voltado rancorosos a Scrates e seus ensinamentos juventude de Atenas. Recorremos mais uma vez a Stone, que cita o prprio Scrates na Apologia de Plato:"Os moos que dispem de mais tempo, os filhos das famlias mais ricas, que me acompanham espontaneamente, sentem prazer em ouvir o exame dos homens, e muitas vezes se pem a imitar-me, metendo-se a interrogar os outros; e ento, creio eu, descobrem muita gente que julga saber algo, mas sabe pouco, ou mesmo nada" (...)

Na verdade, o prprio Scrates parece estar respondendo a tais suspeitas (aqui o autor se refere corrupo da juventude) quando, na Apologia, diz a seus juzes que, aps sua morte, "sero mais numerosos que antes os que lhes pediro contas, homens que at agora eu continha, ainda que os senhores no o percebessem; e eles sero mais severos". Esse comentrio enigmtico aparece na terceira e ltima seo da Apologia, depois que j foram realizadas as duas votaes cruciais, a primeira para decidir o veredicto, a segunda para determinar a pena; assim, j era tarde demais para influenciar qualquer deciso. Por que Scrates fez essa afirmao quando j no adiantava mais? Ela indicava que, embora se opusesse a democracia, Scrates jamais incitou ningum a derrub-la por meios violentos. Nesse caso, porm, ele teria de admitir que era, de fato, um professor, e que, de fato, inculcava nos seus discpulos idias antidemocrticas.5

Outra caracterstica de Scrates que pde ter contribudo para gerar animosidade contra o filosofo especialmente por conta da influncia que este tinha sobre a juventude, conforme j comentado supra - sua falta de participao cvica, como ele mesmo admite em seu discurso aos jurados, na Apologia de Plato:Mas, poderia talvez parecer estranho que eu, andando daqui para l, me cansasse dando em particular esses conselhos, e depois, em pblico, no ousasse, subindo diante do povo, aconselhar a cidade (...) E no vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; no h nenhum homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vs ou a qualquer outro do povo, e impedir que muitos atos contrrios justia e s leis se pratiquem na cidade. E no h outro caminho: quem

combate verdadeiramente pelo que justo, se quer ser salvo por algum tempo, deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negcios pblicos.6

Tal posio teria sido suficiente para gerar desprezo ou mesmo dio no mundo tico. Conforme ensina Fustel de Coulanges, no seu clssico A Cidade Antiga:O Estado no admitia que um homem fosse indiferente aos seus interesses; o filosofo, o homem de estudo, no tinha direito de viver isolado. Era sua obrigao votar na assemblia e, por sua vez, ser magistrado. A certa altura, quando as discrdias se tornaram freqentes, a lei ateniense no permitia ao cidado sequer a sua neutralidade, antes o obrigava a combater por um ou outro partido; e a quem quisesse continuar alheio s faces e se mostrasse calmo, a lei aplicava severa pena, como a da perda da cidadania.7

1.2 DA IMPIEDADECom o advento do Estado laico, leigo ou no confessional - conceito reforado e levado a efeito precipuamente por conta das Revolues Americana (1776) e Francesa (1789) - a liberdade de crena ou mesmo a falta desta crena tornou-se cada vez mais um dos direitos bsicos do homem ocidental. A Norma Excelsa de 1988, v.g., consagrou tal direito como fundamental e, por conseqncia, clusula ptrea (CRFB. Art. 5, inciso VI e VIII c/c Art. 60 4, inciso IV). No Brasil, desde o advento da Repblica (Decreto n. 119-A, de 17.01.1890) h separao entre Igreja e Estado, no existindo, assim, religio oficial na Repblica Federativa do Brasil.8 A civilizao greco-romana da antiguidade, por sua vez, sempre esteve aberta a novas influncias e perspectivas religiosas, mais do que esto algumas regies no mundo moderno (talvez, inclusive, regies que compem os pases pertencentes prpria cultura ocidental). Do Novo Testamento possvel sentir como era o esprito da poca. Stone feliz ao recordar que:Em outros lugares, Paulo fora perseguido, mas quando foi pregar em Atenas encontrou uma cidade aberta, ainda fascinada por novas idias. Embora a cidade estivesse "entregue idolatria" e ele ousasse atacar o paganismo na gora "com aqueles que se achavam presentes", a reao que Paulo encontrou foi de curiosidade intelectual, e no acusaes de impiedade. Alguns dos "epicureus e esticos" levaram-no ao Arepago, a sede do antigo e aristocrtico tribunal superior da cidade, no para um julgamento, mas para uma discusso filosfica. "Voc nos traz coisas estranhas a nossos ouvidos", disseram eles; "portanto queremos saber que coisas so essas". O autor dos Atos dos apstolos comenta, claramente surpreso, que

"todos os atenienses e forasteiros que l residiam no se ocupavam de outra coisa que no dizer ou ouvir coisas novas" 9.

Fustel de Coulanges, restringindo um pouco a impresso de farta liberdade religiosa na plis, sem, contudo, extingui-la, aponta que o homem devia acreditar na religio da cidade e nos seus deuses principais, porm lhe era dado ter ou no f, acreditar ou desprezar as divindades de carter geral, bem como aquelas das cidades vizinhas. Coulanges dos que entendem que esse foi um dos motivos para a condenao de Scrates, isto , no acreditar nos deuses da cidade10. Pode-seinterpretar, assim, na esteira das informaes deixadas pelo historiador francs, que a crena nos deuses da cidade estava mais ligada a um sentimento de patriotismo, um sentimento do mencionado e valorizado "dever cvico", dever de lealdade para com a cidade, do que necessariamente algo metafsico. Stone, autor ao qual exaustivamente recorremos, indica uma possvel interpretao semelhante a esta para explicar a acusao de impiedade. Chegaremos a ela oportunamente. Quando da discusso com Meleto, na Apologia de Plato, Scrates adota sua caracterstica argumentativa usual (e, por vezes, irritante) conduzindo Meleto, atravs da chamada maiutica, a afirmar exatamente o que o filosofo ateniense deseja. Com isso, Scrates no chega a declarar que no acredita nos deuses da cidade, apenas imputa a Meleto tal acusao. Contudo, aps sua condenao, Scrates faz uma declarao emblemtica assemblia dos jurados. Ele afirma que a voz de seu demnio, seu daimnion umaespcie de deus ou orculo pessoal do filsofo no se lhe ops nenhuma vez durante o julgamento (coisa que demonstra, alis, o desejo que o velho filsofo tinha pela morte, tema ao qual chegaremos posteriormente)11. Outras referncias ao daimnion so feitas em passagens diversas dos dilogos de Scrates. Isso posto, a acusao de "impiedade" ganha contornos mais obscuros por fora da conotao mstica desse daimnion. Seria Scrates agnstico quanto aos deuses da cidade, ateu quanto a todos os deuses ou meramente desta, i.e, um homem com seu conceito pessoal de deuses e religio, da as vrias referncias ao seu daimnion? Christopher Hitchens, polmico e instigante escritor e jornalista ingls, parece acreditar que Scrates era agnstico. A opinio de Hitchens compatvel, alis, com a clssica mxima socrtica "s sei que nada sei". Para Hitchens, quando Scrates fala em seu daimnion, ele est apenas se referindo a sua conscincia:Even though he was not in fact an atheist, he was quite correctly considered unsound for his advocacy of free thought and unrestricted inquiry, and his refusal to give assent to any dogma () Socrates believed he had a daimon, or oracle, or internal guide, whose opinion was

worth having. Everybody but the psychopath has this feeling to a greater or lesser extent () Modern vernacular describes conscience - not too badly as whatever it is that makes us behave well when nobody is looking () Those who believe that the existence of conscience is a proof of a godly design are advancing an argument that simply cannot be disproved because there is no evidence for or against it. 12

No decorrer de seu raciocnio, entretanto, Hitchens difere de Stone e nos faz acreditar que ele tambm se filia a corrente clssica que sustenta ter sido a impiedade um dos principais motivos para a condenao do ateniense (corrente tambm adotada por Coulanges, conforme apontado). esta a ilao que retiramos de sua obra quando diz que:The case of Socrates, however, demonstrates that men and women of real conscience will often have to assert it against faith () The point is that Socrates was mocking his accusers in their own terms, saying in effect: I do not know for certain about death and the gods but I am as certain as I can be that you do not know, either.13

Stone, por outro lado, com viso que nos parece inovadora no tema, indica que:Quanto acusao de no acreditar nos deuses, os atenienses estavam acostumados a ouvir afirmaes desrespeitosas em relao aos deuses no teatro, tanto em comdias quanto em tragdias. Desde dois sculos antes de Scrates que os filsofos vinham lanando os fundamentos da cincia natural e da investigao metafsica. O extraordinrio pioneirismo dos gregos no livrepensamento ainda nos surpreende quando examinamos os fragmentos dos chamados prsocrticos. Quase todos os conceitos bsicos da cincia e da filosofia podem ser encontrados neles, em forma embrionria. Foram eles os primeiros a falar em evoluo e a conceber o tomo. E, nesse nterim, os deuses antigos eram - se no exatamente destronados rebaixados e deixados de lado, reduzidos condio de fbulas venerveis ou personificaes metafricas de foras naturais e idias abstratas. ()

Todos os gregos cultuavam as divindades olmpicas de Homero (...) Em Atenas, por exemplo, Palas Atena era adorada no apenas como deusa da sabedoria mas tambm especificamente como padroeira das artes e ofcios. Pois "sabedoria" sophia originariamente designava no apenas sabedoria no sentido moderno, mas tambm qualquer habilidade ou conhecimento especfico, fosse o de forjar metais, o de tecer panos ou o de tratar doentes. Scrates, contudo, refere-se com desdm aos artesos e comerciantes que haviam comeado a desempenhar um papel to importante na assemblia e nas outras instituies democrticas da cidade. Como j vimos, o tipo de sociedade que ele admirava era Esparta, onde

s eram cidados os guerreiros-proprietrios, e no os artesos e comerciantes. Nas cidadesEstado gregas, como tambm em Roma, no reconhecer os deuses da cidade era ser desleal para com ela. (...)

H duas outras passagens de Pausnias que mencionam um Demos (o povo) deificado na tica. Uma dessas referncias fala de esttuas de "um Zeus e um Demos" uma ao lado da outra. A outra passagem tambm menciona uma esttua da prpria Democracia. Teria sido a prpria democracia personificada como uma deusa cvica em algum momento da histria de Atenas? 14

Mais uma vez, refora-se a idia de que Scrates teria atrado o dio de seus concidados no por sua suposta falta de crena nos deuses enquanto seres metafsicos, deuses em sua acepo teolgica, mas sim graas a sua aparente averso, segundo Stone, ao que eles representavam, princpios caros polis, como a prpria democracia. Stone, com maior eloqncia que a nossa, explica:Scrates meteu-se em apuros por causa de suas idias polticas, e no de suas concepes filosficas ou teolgicas. Discutir suas idias religiosas desviar a ateno das questes mais relevantes. Em toda a Apologia, no h nenhuma passagem em que Scrates sequer mencione as pilhrias a respeito de suas tendncias pr-espartanas e dos jovens pr-espartanos que o idolatravam e imitavam. O problema que temos de abordar, portanto, o seguinte: por que motivo essas velhas gozaes polticas de repente perderam a graa? 15

Isidor Stone, desta forma, faz referncia aos "trs terremotos" que ameaaram a democracia ateniense (eventos por ns comentados quando da anlise da acusao de corrupo da juventude) e, portanto, diminui ou mesmo retira a importncia da acusao de impiedade. O cerne do julgamento estaria na aparente falta de apreo pela democracia, que Stone atribui a Scrates, combinada com a influncia que o velho filsofo ateniense exercia sobre a juventude e os recentes traumas pelos quais a democracia da plis havia passado.

LGAMENTO DE SCRATES

qui, 25 de novembro, 2004

Scrates foi, provavelmente, o maior filsofo de todos os tempos. Ele viveu em Atenas, na Grcia, por volta de 500 anos antes do nascimento de Jesus. Foi a mente mais iluminada do ocidente em sua poca, enquanto no oriente, por volta da mesma poca aparecia um tal de Buda, que causou uma revoluo no modo de pensar e se relacionar com a vida. Durante os seus 70 anos de vida, Scrates procurou ensinar, atravs da dialtica (dilogos), as verdades espirituais eternas, questionando sempre as falsas tradies da cultura helenstica. Acabou despertando dio e inimizades entre os detentores do poder e da cultura, que o acusavam de estar corrompendo a juventude ateniense. Foi levado a julgamento e condenado morte pela ingesto de cicuta, um poderoso veneno. O texto a seguir foi condensado do livro Apologia de Scrates, escrita por Plato (seu principal discpulo). Ele descreve o julgamento de Scrates, apresentando a sua defesa e suas consideraes finais, aps a sentena de condenao. A DEFESA A acusao diz: "Scrates comete crime, investigando indiscretamente as coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razo mais dbil, e ensinando aos outros". Mas nada disso tem fundamento, pois no instruo e nem ganho dinheiro com isso. Talvez pudessem dizer de mim: "Enfim, Scrates, o que que voc faz? De onde nasceram essas calnias? Se suas ocupaes no fossem to diferentes das dos outros, no teria ganho tal fama e no teriam nascido acusaes". Scrates responde: Acontece que Xenofonte, uma vez indo a Delfos, ousou interrogar o orculo e perguntou-lhe se havia algum mais sbio do que eu. Ora, a pitonisa respondeu que no havia ningum mais sbio. Ao ouvir isso, pensei: "O que queria dizer o deus e qual o sentido das suas palavras? Sei bem que no sou sbio, nem muito nem pouco." E fiquei por muito tempo sem saber o verdadeiro sentido de suas palavras. Ento resolvi investigar a significao do seguinte modo: Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a inteno de refutar, por meio deles, o orculo e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: "Este mais sbio que eu, enquanto voc disse que sou eu o mais sbio". Examinando esse homem no importa o nome, mas era um dos polticos - e falando com ele, parecia ser um verdadeiro sbio para muitos e, principalmente, para si mesmo. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sbio sem o ser. Da veio o dio dele e de muitos dos presentes aqui contra mim.

Ento, pus-me a considerar comigo mesmo, que eu sou mais sbio do que esse homem, pois que, nenhum de ns sabe nada de belo e de bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa sem sab-la, enquanto eu, como no sei nada, tambm estou certo de no saber. Parece, pois, que eu seja mais sbio do que ele nisso: no acredito saber aquilo que no sei. Fui a muitos outros daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e me pareceu que todos so a mesma coisa. Da veio o dio deste e de muitos outros. E ento me aconteceu o seguinte: procurando segundo o critrio do deus, pareceume que os que tinham mais reputao eram os mais desprovidos, e que os considerados ineptos eram homens mais capazes quanto sabedoria. Tambm procurei os artfices e devo dizer que os achei instrudos em muitas e belas coisas. Eles, realmente, eram dotados de conhecimentos que eu no tinha e eram muito mais sbios do que eu. Contudo, eles tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar bem a prpria arte, cada um pretendia ser sapientssimo, tambm, nas outras coisas de maior importncia e esse erro obscurecia o seu saber. Dessa investigao, cidados atenienses, tanto me originaram calnias como tambm me foi atribuda a qualidade de sbio. E totalmente empenhado em tal investigao, no tenho tido tempo de fazer nada de aprecivel, nem nos negcios pblicos, nem nos privados, mas encontro-me em extrema pobreza, por causa do servio do deus. Alm disso, os jovens, seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens. Eles, muitas vezes, me imitam por sua prpria conta e decidem tambm examinar os outros, encontrando grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa mas pouco ou nada sabem. Da, aqueles que so examinados encolerizam-se e, por essa razo, dizem que h um tal Scrates que corrompe os jovens. Saibam, quantos o queiram, que por esse motivo sou odiado; e que digo a verdade, e que tal a calnia contra mim e tais so as causas. Cidados de Atenas, creio que vocs no tm nenhum bem maior do que este meu servio do deus. Por toda a parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a no se preocuparem exclusivamente com o corpo e com as riquezas, como devem se preocupar com a alma, para que ela seja o melhor possvel. Absolvendo-me ou no, no farei outra coisa, nem que tenha de morrer muitas vezes. Dessa forma, parece que o deus me designou cidade com a tarefa de despertar, persuadir e repreender cada um de vocs, por toda a parte,

durante todo o dia. possvel que vocs, irritados como aqueles que so despertados quando no melhor do sono, levianamente me condenem morte, para dormirem o resto da vida. A CONDENAO A minha impassibilidade, cidados de Atenas, diante da minha condenao deriva, entre muitas razes, que eu contava com isso, e at me espanto do nmero de votos dos dois partidos. Por mim, no acreditava que a diferena fosse assim pequena. Os meus acusadores pedem, para mim, a pena de morte. Que pena ou multa mereo eu? O que convm a um pobre benemrito que tem necessidade de estar em paz para lhes poder exortar ao caminho reto? Para um homem assim conviria que fosse nutrido e mantido pelo Estado. Por no terem esperado um pouco mais, vocs iro obter a fama e a acusao de haverem sido os assassinos de um sbio, de Scrates. Pois bem, se tivessem esperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si mesma: vejam vocs a minha idade. Talvez, senhores, o difcil no seja fugir da morte. Bem mais difcil fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. Eu, preguioso e velho, fui apanhado pela mais lenta: a morte. J os meus acusadores, vlidos e leves, foram apanhados pela mais veloz: a maldade. Assim, eu me vejo condenado morte por vocs; vocs, condenados de verdade, criminosos de improbidade e de injustia. Eu estou dentro da minha pena, vocs dentro da sua. E estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte um mal. Porque morrer uma destas duas coisas: ou o morto no tem absolutamente nenhuma existncia, nenhuma conscincia do que quer que seja; ou, como se costuma dizer, a morte uma mudana de existncia e uma migrao deste lugar para outro. Se, de fato, no h sensao alguma, mas como um sono, a morte como um presente, porquanto todo o tempo se resume em uma nica noite. Se a morte, porm, como uma passagem deste para outro lugar e se l se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir maior do que este? Quero morrer muitas vezes, se isso verdade, pois para mim a conversao acol seria maravilhosa. Isso constituiria indescritvel felicidade.

Vocs devem considerar esta nica verdade: que no possvel haver algum mal para um homem de bem, nem durante sua vida, nem depois de morto. Por isso mesmo, o que aconteceu hoje a mim no devido ao acaso, mas a prova de que para mim era melhor morrer agora e ser liberto das coisas deste mundo. Por essa razo no estou zangado com aqueles que votaram contra mim, nem contra meus acusadores. Mas j hora de irmos: eu para a morte, e vocs para viverem. Mas quem vai para melhor sorte segredo, exceto para Deus.