o jornal a gargalhada - texto jadiel lima

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Distribuição Gratuita Publicação do Buraco d`Oráculo ano IV :: nº 25 :: set/12 Ser TÃO Ser Se o povo soubesse o valor que ele tem... Resistência Viajante Realidade Povo Casa Migração Terra Direito Impacto Campinho Humanidade... Comunidade Bahia Medo Ciclo Favela Dureza Opressão Perseverança Não sobrou Buchada do Costela Luz Cachorro Realidade surreal Rotina Gente bicho Polícia. – A última REPRESSÃO.

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Page 1: O JORNAL A GARGALHADA - TEXTO JADIEL LIMA

Distribuição Gratuita

Publicação do Buraco d`Oráculoano IV :: nº 25 :: set/12

Ser TÃO Ser

Se o povo soubesse o valor que ele tem...

ResistênciaViajanteRealidadePovoCasaMigraçãoTerraDireitoImpactoCampinhoHumanidade...Comunidade Bahia Medo Ciclo FavelaDureza Opressão Perseverança Não sobrou Buchada do Costela Luz CachorroRealidade surreal Rotina Gente bicho Polícia. – A última REPRESSÃO.

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Editorial

O jornal A Gargalhada, que surge na perspectiva de divulgar os projetos do Buraco d`Oráculo e como prestação de contas públicas da realização de seus projetos, tem se tornado uma referência para o público e os artistas, inclusive fora de São Paulo, pois seu conteúdo nunca se restringiu ao fazer do grupo. Ao contrário, sempre se buscou ampliar as discussões, sobretudo sobre o teatro de rua. Com esse objetivo, foi ampliada a quantidade de páginas e a tiragem e a mesma sempre fica disponibilizada no site do grupo, para que pessoas que não tiveram acesso ao conteúdo impresso possa tê-lo virtualmente. O objetivo é partilhar e ampliar a discussão.

Nessa edição as discussões passam pelo teatro documentário, sobre o uso da música no teatro de rua, sobre políticas públicas, entre outros. Apesar de parecerem díspares, os assuntos estão interligados, pois a reflexão impulsiona o nosso fazer, que, por sua vez só avança se o Estado investe, retornando o ciclo a nova reflexão.

A Gargalhada está no ar! Boa leitura!

Expediente:

Buraco d`Oráculo: Adailton Alves, Edson Paulo Souza, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho e Selma Pavanelli | Colaboradores: Fernando Kinas, Jadiel Lima, Jussara Trindade, Sarau Quilombaque. | Projeto gráfico: Maurício F. Santana. | Contato: [email protected] | www.buracodoraculo.blogspot.com | Tel.: (11) 98152-4483 / 98188-3670 | Tiragem: 6000 exemplares

O projeto Narrativas de Trabalho II está sendo desenvolvido na região de São Miguel Paulista e Itaim Paulista, extremo leste da cidade de São Paulo. São diversas as ações que o compõe, desde a reunião do material produzido no projeto anterior, bem como o estudo sobre a precarização do tra-balho, o teatro épico, estudo da música e o aperfeiçoamento artístico dos integrantes do grupo. Por isso, o projeto apresenta duas ações norteadoras: a) uma ação artística e b) uma ação pedagógica; que são divididas em três etapas.

A ação artística é a forma de manter o grupo em relação com as comunidades e é composto de uma mostra teatral – 7ª Mostra de Teatro de São Miguel Paulista –, a ser re-alizada em dezembro de 2012; e a circulação do espetáculo que será produzido no desen-volver do projeto. O espetáculo, inicialmente nominado de Opera do Trabalho, será criado juntamente com atores e não atores da região, que participarão de uma oficina preparatória, a ser iniciada em novembro próximo. Ainda dentro da ação artística, tem o aperfeiçoa-mento técnico dos integrantes do grupo, que recebem aulas de corpo, percussão, canto e de instrumentos musicais.

No que diz respeito à ação pedagógi-ca, a mesma é composta de uma oficina tea-tral para até 20 pessoas, que receberão aulas teóricas e práticas, como forma de prepará--los para o espetáculo a ser criado. Além dis-so, como complemento teórico, ainda haverá mais três encontros do Café Teatral, em que

O que será feito no projeto Narrativas do Trabalho II

se discutirá o assunto tratado no espetáculo (precarização do trabalho) ou aspectos esté-ticos.

Como forma de registro do processo será publicada três edições de A Gargalha-da, que o leitor tem em mãos, com tiragens de seis mil exemplares cada.

Por fim, o projeto prever a manutenção da sede do grupo, Casa d`Oráculo, e produ-ção de novo espetáculo, que cumprirá diver-sas apresentações nas comunidades e outros pontos da cidade de São Paulo.

Poesia da Capa

Criada coletivamente pelo Sarau Quilombaque, após a apresentação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (a 99ª), dentro da programação da IV Mostra de Teatro de Rua da Zona Norte, realizada pelo Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo.

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O negocio não está na partida e nem na chegada, está na travessia.

J. G. Rosas

A soma de 100 apresentações do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem alcançada pelo Buraco d`Oráculo, torna-se um marco na trajetória do espetáculo e do grupo. Desde agosto de 2009, quando teve sua estreia, o Ser TÃO ser já percorreu 48 cidades de sete estados das cinco regiões do país. Sabemos que o número alcançado é pouco se comparado a espetáculos que cumprem seguidas temporadas em espaços fechados. No entanto, se não esquecermos que Ser TÃO Ser é um espetáculo de rua, e que a cada nova apresentação – assim como os feirantes – nos deslocamos e montamos a estrutura, apresentamos e tornamos a guardar tudo, a quantidade de 100 apresentações é muito significativa. Além disso, produzido em grupo, fruto de intenso trabalho técnico e reflexivo, apresenta, por meio de sua temática, a tomada de partido da classe trabalhadora, tão marginalizada. Nesse percurso, estimamos que um público de 25.000 pessoas já tenha presenciado o espetáculo. Dessa forma, podemos considerar que a trajetória percorrida ao longo destas 100 apresentações, firma a certeza do caminho escolhido pelo Buraco d`Oráculo.

O espetáculo é resultado de um profundo mergulho em histórias coletadas em seis comunidades da região do extremo leste da cidade de São Paulo, realizada dentro do projeto “10 Anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória do Buraco”, graça aos recursos do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Ao iniciar o projeto tínhamos a certeza do que queríamos ver em cena: os sujeitos históricos que

Ser TÃO 100

fizeram as comunidades percorridas, mas não tínhamos o caminho, a forma do espetáculo. Tínhamos em mãos histórias de luta de um povo desterritorializado, aguerrido e jogado à margem de uma grande cidade. Queríamos mostrar esse povo, trazê-lo para o centro de nosso trabalho. Então o recorte escolhido, foi a luta por um pedaço de chão: a moradia. Essa questão social esteve presente em quase todas as histórias colhidas em mais de 80 horas de vídeo gravado e outras tantas escutas em trajetos e conversas com os parceiros envolvidos direta ou indiretamente com o projeto. Como afirmou Leon Tolstoi: “Cante tua aldeia e cantarás o mundo”. Decidimos cantar o nosso pedaço de chão, pois nos identificamos como seres desterritorializados, afinal todos os integrantes do grupo fazem parte de algum tipo de sertão.

O Ser TÃO Ser pode ser considerado o trabalho mais autoral do grupo, mas ele não está isolado na história de quase 15 anos de Buraco d`Oráculo. Desde o inicio, cada projeto, cada novo trabalho é continuidade, desdobramento dos anteriores. Não renegamos nada que tenhamos feitos anteriormente, mesmo os equívocos. As tomadas de decisões erradas fazem parte de nossa trajetória contínua de aprendizado e amadurecimento. Para chegar ao Ser TÃO Ser foi necessário percorrer um caminho que solidificasse a história do grupo, o entendimento político e histórico no qual estamos inseridos e, principalmente, uma aproximação e uma relação com o nosso público. Foi com o público da periferia, mais especificamente de São Miguel Paulista, na

zona leste, que fomos trocar experiências. Dessa forma, Ser TÃO Ser é o sertão que já estava dentro de nós desde o nosso inicio enquanto grupo de teatro de rua.

As primeiras apresentações do espetáculo foram feitas ainda em meio a acertos, em que retirávamos ou acrescentávamos novos elementos. Muita coisa ficou para trás nas primeiras investidas na rua. Inúmeros parceiros foram consultados como provocadores, em um exercício de escuta, de maneira a adquirirmos elementos para a construção de um trabalho que fosse verdadeiro e levasse à a reflexão por meio das histórias contadas. Levamos à cena o humano, construído de forma narrativa e poética, sem perder o questionamento e a provocação necessária, a quem se propõe usar o teatro como veículo de transformação.

Mesmo com todo empenho e dedicação depositados na sua construção do espetáculo, sempre pairou uma dúvida em relação a sua longevidade. Não sabíamos ao certo a estrada que iríamos percorrer com esse trabalho. Queríamos, é certo - e continua a disposição - ampliar as relações com os movimentos sociais, sobretudo os de moradia, para levar esse espetáculo, porém esse caminho foi ainda pouco percorrido. Por outro lado, frequentamos a programação de diversos festivais e instituições culturais, sempre levando a discussão da luta por moradia, sempre atual em um país de muita exclusão.

Edson PauloAtor do Buraco d`Oráculo.

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distanciado da cena, mas pelo deslocamento do espetáculo no espaço e pela participação ativa daqueles que o acompanhavam, em seus movimentos e sons.

É a partir da ideia dessa recepção multissensorial - por parte não só de um espectador, mas um espectador-ouvinte - que defendo aqui a necessidade de ampliarmos os nossos canais perceptivos, aprofundando o entendimento do espetáculo de teatro de rua de modo a percebê-lo como uma arte capaz de abranger simultaneamente várias camadas de recepção igualmente importantes. Não se trata, evidentemente, de substituir uma primazia (visual) por outra (auditiva), mas de mergulhar mais fundo na obra de arte, e absorver o fenômeno teatral por outras vias que a modernidade renascentista, em seu ideal de Ciência, frequentemente deixou à sua margem. Trata-se de compreender o espetáculo teatral de rua como obra artística essencialmente audiovisual, e não apenas visual.

Nesse sentido, o caminho que proponho abordar é o sonoro-musical, ou seja, o da audição e da escuta – dimensão sensorial que transcende o fenômeno estritamente acústico, para abranger esferas mais amplas do humano, inscritas também no social, no cultural, no urbano e no contemporâneo. Se o “ouvir”, possibilitado pelo aparelho auditivo, cumpre uma função fisiológica, o ato da “escuta” vai além e se converte num meio para a atribuição de sentido do mundo, pois é também uma construção histórico-cultural e, como tal, condicionada pela época na qual está inserida (HARNONCOURT, 1998). Ou seja, aquilo que ouvimos como “som” também nos informa sobre a realidade circundante, ajudando-nos a lembrar, associar, raciocinar, tomar decisões; enfim, a sobreviver no mundo e, também, transformá-lo.

A multidimensionalidade do teatro de rua coloca em questão a noção teatral de recepção enquanto processo estritamente visual, o que poderia ser sintetizado na ideia de escuta cênica como um modo de recepção próprio dessa modalidade, uma vez que na rua o espectador mantém com o espetáculo uma relação mais complexa do que aquela

Musicalidade,

imagem

sonora, escuta

cênica: novas

possibilid

ades de

recepção no teatro

de ruaO verbete recepção é definido pelo

Dicionário de Teatro de Patrice Pavis – importante obra de referência para os estudos teatrais da atualidade - como “interpretação da obra pelo espectador” e “análise dos processos mentais, intelectuais e emotivos da compreensão do espetáculo”. Mas, ainda que logo a seguir o autor utilize como recurso explicativo uma imagem do espectador como que imerso “num banho de imagens e sons”, ao desenvolver suas considerações sobre os códigos perceptivos da recepção a atividade teatral é descrita apenas dentro de um quadro referencial visual, corroborando a tendência de apreensão do espetáculo ainda sob os parâmetros da perspectiva - conceito da pintura que inseriu, no palco renascentista, o princípio cartesiano de separação radical entre observador e objeto observado, entre espetáculo e espectador.

Numa época ávida por explicações científicas, a noção de perspectiva ofereceu ao teatro burguês meios de criar, sobre um painel plano colocado no fundo da cena, a ilusão da profundidade em um palco espacialmente limitado. A inovação trouxe o espaço tridimensional para dentro das salas teatrais, substituindo a visão real da vida cotidiana pela ilusão “realística” do ponto de vista do espectador ideal, sentado no centro da plateia. Desta forma, o teatro burguês não teve mais qualquer necessidade de espaços abertos, pois podia inventar o seu próprio mundo “real” a partir das leis da perspectiva visual. Enquanto isso, do lado de fora das salas fechadas, o teatro que se realizava em espaços públicos da cidade permanecia atuando a partir de uma realidade multidimensional, dada não pela ótica de um observador estático e

Jussara Trindade

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que foi historicamente definida pelo palco renascentista. Em meio aos múltiplos e incontroláveis estímulos – especialmente visuais e sonoros – presentes no espaço urbano, o teatro de rua é potencialmente um centro para o qual tende a convergir a atenção de um público que, a princípio, se encontra ali de passagem; e a musicalidade do espetáculo é um fator essencial neste processo, motivo pelo qual muitos teatristas de rua tornam-se, também, atores-músicos.

Frequentemente, é a música – mobilizada pela escuta cênica – o fator determinante através do qual o espectador eventual da rua se sente atraído pelo espetáculo e decide interromper o seu trajeto cotidiano para assisti-lo, ou mesmo acompanhá-lo num cortejo. É amiúde pela musicalidade que um espetáculo de rua obtém sucesso no desafio de instaurar, no ambiente caótico e fragmentado da cidade contemporânea, um espaço cênico capaz de religar o cidadão às suas matrizes mais profundas, restaurando o seu sentido de pertencimento a uma comunidade, a um lugar.

Mas, a que se poderia atribuir esta notável capacidade? Segundo pesquisas no campo da neurologia e da psicoacústica, estímulos sonoro-musicais criam imagens sonoras na mente do ouvinte.

Originalmente, a noção de imagem sonora se relaciona com um tipo de construção mental pré-conceitual, pois é, basicamente, um padrão de impulsos neurais interpretado pelo cérebro como a percepção sensível daquilo que é captado pelo ouvido. As imagens sonoras – ou seja, as imagens mentais evocadas por sonoridades – formam-se no córtex cerebral onde são identificadas, armazenadas na memória e, eventualmente, enviadas a outros centros cerebrais (ROEDERER, 2002). É por isso que, ao escutarmos um dobrado, o badalo de um sino ou um estampido, podemos experimentar sensações de alegria, nostalgia e medo, antes mesmo de podermos visualizar mentalmente e racionalizar sobre as imagens mentais decorrentes dessas percepções auditivas: uma cena de circo, a igreja convocando os fiéis para a missa e um tiro.

memória afetiva; enfim, alcançar dimensões inacessíveis apenas pelo verbal/conceitual.

Estudos de semiologia musical, como os do etnomusicólogo Jean-Jacques Nattiez, levam à identificação de uma “sintaxe musical” – um sistema de relações formais entre os elementos constituintes do fenômeno musical (melodia, harmonia, estilos) - e uma “semântica musical” que relaciona as sensações auditivas a outras esferas, além da sensorial: emoção, cultura, ideologia. Para o pesquisador, há dois níveis de recepção musical: no primeiro, mais consciente, o ouvinte percebe sensações físicas; no segundo, mais profundo, as sensações se ligam a sentimentos. Além disso, se por um lado procedimentos sonoro-musicais podem ser empregados numa cena teatral com o propósito de suscitar no público associações como as descritas por Nattiez, por outro cumprem também a função de organizar sonoramente o jogo dos atores, pois a música de cena favorece ao ator manter-se plenamente consciente dos laços existentes entre cada trecho, frase musical, tonalidade de uma canção, e o ritmo, a duração e intensidade de uma cena ou mesmo do espetáculo como um todo.

Deste modo, a escuta cênica das imagens sonoras produzidas na cena teatral de rua parece ser um caminho através do qual é possível transcender os limites bidimensionais de uma recepção estritamente visual (FLÜSSER, 2002) e expandir os canais de recepção para uma apreensão multidimensional do espetáculo - principalmente através de sua musicalidade - uma vez que a percepção do som pelo ser humano se dá por todas as direções, diferentemente da percepção visual que é prioritariamente frontal (e em menor medida, lateral).

Todas estas possibilidades em torno da musicalidade do teatro de rua, aqui apenas esboçadas, apontam para a ideia de que esta modalidade possui aspectos estéticos e exigências técnicas diferentes daquelas que a sociedade ocidental moderna acostumou-nos a compreender como sendo as “do” teatro e que, a rigor, foram erigidas para atender ao teatro das salas fechadas.

A noção de imagem sonora permite-nos vislumbrar a complexa rede de relações que se estabelecem entre espetáculo e espectador-ouvinte a partir de uma escuta cênica, pois diferentes maneiras de se utilizar de elementos musicais num espetáculo evocam também diferentes imagens sonoras. Por isso, a musicalidade do teatro de rua pode ir muito além da simples utilização de “música” como um recurso acessório da cena. O impacto das imagens sonoras produzidas pelos atores contribui para multiplicar, polifonicamente, os sentidos do espetáculo, possibilitando ainda a economia de elementos cênicos que o ambiente frequentemente ruidoso do espaço aberto não favorece, como a palavra e o diálogo. Uma simples canção pode tornar desnecessária uma longa explicação ao público e potencializar, com os seus elementos musicais (o ritmo, a melodia, o timbre dos instrumentos musicais utilizados, o trabalho vocal), os sentidos menos explícitos, as associações com outros fatos que se deseja mencionar, a

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Por isso, apresenta-se para o teatro de rua o desafio de construir as próprias referências, com base em suas especificidades estruturais, como aporte imprescindível para o desenvolvimento de atividades de pesquisa estética, análise do espetáculo e crítica teatral, voltadas especificamente para a modalidade.

O teatro documentário, ou documental, constitui um conjunto de ideias e práticas teatrais complexo e estimulante, seja sob o ponto de vista estético, quanto social. Pouco estudado e praticado no Brasil, suas possibilidades de utilização continuam, portanto, insuficientemente exploradas. Para investigar a atualidade desta modalidade teatral seria preciso aliar a investigação teórica com a análise da produção teatral contemporânea, brasileira e estrangeira. Esta tarefa poderia, ainda, contribuir para a reflexão geral a respeito de temas que lhe são correlatos: novas exigências no trabalho de interpretação, impacto no ensino teatral, relação com a crítica especializada, alterações na recepção e caráter inter ou transdisciplinar.

A matriz europeia do teatro documentário – existem formas muito variadas de teatro documentário, da América Latina à Ásia – tem um ponto de inflexão nos anos 1960, com a obra do dramaturgo Peter Weiss (1916-1982). Para ele, o teatro documentário filia-se à tradição do teatro político e realista (proletkult, agitprop, experimentos teatrais de Piscator, peças didáticas de Brecht). Mesmo não sendo precursor – diretores russos e alemães dos anos 1920 já tinham dado exemplos destas práticas –, Weiss introduziu de forma radical o “documento” na cena (atas, relatórios, estatísticas, comunicados da bolsa, entrevistas, balanços bancários, cartas, reportagens).

Jussara TrindadeDoutora em teatro pela Unirio; integrante do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de

Teatro de Rua.

Referências bibliográficas

FLÜSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume, 2002.HARNOUNCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significações musicais. Tradução de Silvana Zilli Bomskov. In: Per Musi. Revista Acadêmica de Música. Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais, nº 10, jul-dez/2004, p. 5-30.PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.ROEDERER, Juan. Introdução à Física e Psicofísica da Música. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

A atualidade política

do teatro documentário

Fernando Kinas

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Embora defendendo a recusa de toda forma de invenção (certamente uma reação ao status quo teatral da sua época), o teatro documentário, tal como proposto por Weiss, mantém a condição de obra artística: “Mesmo quando tenta se liberar do quadro que faz dele um meio artístico, mesmo quando abandona as categorias estéticas (...) o teatro documentário é no final das contas um produto artístico e deve sê-lo, se quiser justificar sua existência.”1 Para Weiss, o teatro documentário mostra “a imagem de uma parcela da realidade arrancada ao fluxo contínuo da vida” e tem como objetivo “estabelecer um modelo das contradições reais”. Evidentemente, na continuação direta da tradição brechtiana, este mecanismo deve revelar a condição histórica da atualidade e a possibilidade da sua alteração. A tarefa deste tipo de teatro seria, então, fazer a crítica radical da camuflagem, da falsificação da realidade e da mentira.

Esta proposta teatral, pelas suas opções formais e de conteúdo, pretende investigar a realidade social, opondo-se, portanto, à desinformação e às diferentes estratégias de opressão e dominação. É preciso lembrar que Peter Weiss nasceu em plena Primeira Guerra Mundial, viveu a Segunda e escreveu sob o impacto da Guerra do Vietnã e das lutas anticoloniais (Weiss escreveu, por exemplo, uma peça

sobre a libertação da Angola, Canto do Fantoche Lusitano).

Apesar de diferentes visões artísticas e políticas relacionadas ao teatro documentário, entre as quais não se pode ignorar aquela que deriva da vaga pós-moderna, pode-se afirmar que parte importante delas apontam na direção da inteligibilidade da atualidade, isto é, a realidade pode e deve ser explicada. Cabe, então, localizar e estudar experiências teatrais inspiradas nesta matriz (tanto sob o ponto de vista formal, como político) que participam desta tarefa de compreensão do momento histórico atual.

O teatro documentário é, portanto, uma forma artística veiculadora de potenciais novas formas e novos conteúdos, neste sentido, ele está em sintonia com o rearranjo que caracteriza o teatro contemporâneo das últimas décadas. Uma das vertentes deste debate diz respeito à recusa do regime ficcional canônico. Anatol Rosenfeld, na época em que estas experiências estavam no apogeu (década de 1960), afirmou que “tanto Hochhuth [escritor e dramaturgo alemão, nascido em 1931] como outros expoentes do teatro documentário procuram eliminar, na medida do possível, o elemento ficcional”.2 Ainda que um puro teatro de relatório, pela própria natureza do dispositivo teatral, não pareça

possível, é inegável a recusa da imitação, a ruptura com a ilusão cênica e o interesse pelo exame das estruturas sociais no lugar dos embates entre subjetividades. Mesmo se há dificuldades em evitar o elemento ficcional, como afirma Bernard Dort3, Weiss e Kipphardt (cf. O caso Oppenheimer), aproximam-se da exposição imediata (não mediada) dos fatos. Este trabalho dramatúrgico, sobretudo no caso de Peter Weiss, não parece ter sido inteiramente absorvido e desenvolvido pelas novas gerações.

No entanto, hoje são frequentes os trabalhos cênicos que exploram a utilização do material documental em cena, indício da atualidade desta modalidade teatral. Nossa hipótese, confirmada por inúmeros casos recentes, no Brasil e no exterior (Luis Antônio - Gabriela, de Nelson Baskerville; Accidens, matar para comer, de Rodrigo Garcia; Genova 01, de Fausto Paravidino; Rwanda 94, de Jacques Delcuvellerie; O interrogatório, de Eduardo Wotzik; Tableau com existências marginais, de Björn Auftrag e Stefanie Lorey), é de que há, simultaneamente, referência ao modelo histórico de teatro documentário e exploração de novas possibilidades. Os resultados estéticos e políticos destas experiências, evidentemente, são desiguais.

Peter Weiss sistematizou e exercitou um tipo de teatro que, segundo ele mesmo, abandonou “os cânones estéticos do teatro

1 Peter Weiss, “Notes sur le théâtre documentaire”, in Discour sur la genèse et le déroulement de la très longue guerre de libé-ration du Vietnam illustrant la nécessité de la lutte armée des opprimés contre leurs oppresseurs, Paris, Seuil, 1968, p. 10. As próximas citações são igualmente deste texto.

2 Anatol Rosenfeld, “O teatro documentário”, in Prismas do teatro, São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 122.

3 Cf. Bernard Dort, O teatro e sua realidade, São Paulo, Pers-pectiva, 1977, pp. 28-30.

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tradicional” e desenvolveu “novas técnicas adaptadas às novas situações”4. Seria importante, agora, identificar e estudar estas novas possibilidades do teatro documentário contemporâneo. O surgimento nos últimos anos de coletivos teatrais que rejeitam os padrões da produção canônica e comercial mostram o vigor da produção atual. Muitos destes grupos dialogam explicitamente com a tradição do teatro documentário. Analisar estas contribuições significa também extrair reflexões capazes de extrapolar o âmbito restrito em que elas ocorrem. Do conjunto destas experiências pode-se vislumbrar um modo de trabalho cênico e de reflexão capazes de servir como referência para a ação teatral crítica.

Seria preciso destacar alguns fenômenos relacionados ao teatro documentário, como a reorganização da ação do ator/atriz em função de exigências diversas daquelas feitas pelo teatro dramático, uma vez que são alteradas noções como as de personagem, conflito intersubjetivo, progressão e desenlace. Via de regra, estes marcadores clássicos do teatro perdem sua centralidade. Reflexos importantes destas práticas teatrais documentais também podem ser percebidas na recepção, já que o público estaria menos preparado para lidar com estas propostas cênicas avessas ao teatro “aristotélico”. Temas correlatos também mereceriam análise mais detida, como a relação entre teatro documentário e performance; o “efeito do real” (a expressão, no âmbito do cinema, foi usada, entre outros, por Ismail Xavier5); o retorno, potencial, ao subjetivismo (teatro biográfico, de depoimento ou confessional); as revisões da fronteira entre arte e vida e o reivindicado “fracasso da representação” (cf., por exemplo, as produções do Rimini Protokoll, Forced Entertainment e coletivo LFKs).

Um programa de estudo se apresenta e suas implicações são potencialmente ricas. Para que isto aconteça é decisivo não desvincular as esferas formais e de conteúdo, estabelecer uma base conceitual sólida e ancorar a análise na realidade social, definindo campo, valores e horizonte políticos.

Durante 21 dias, e alguns mais, o Ocupa Nise reuniu artistas, cientistas, curadores, cidadãos e alguns bichos transeuntes – enfim, loucos para saudar a expressividade e a própria Loucura, homenageando e aprendendo com os ensinamentos de Spinoza, Nise da Silveira, Nelson Vaz, Amir Haddad e outras(os) educadoras(es) da cultura e da arte popular.

Internos em um plasma às vezes leve, às vezes denso, experimentamos o prazer de nos surpreender a cada momento, por cada momento de sensibilidade que nos embelezava. Neste clima, o hospital psiquiátrico Dom Pedro II – no bairro de Engenho de Dentro (pra fora), Rio de Janeiro – recebeu experiências e relatos vindos de todos os cantos, práticas corporais, plásticas, sonoras e espirituais, momentos de cuidado e de cura.

Fernando KinasDoutor em Teatro pela Universidade

Sorbonne Nouvelle e Universidade de São Paulo. Dirige desde 1996 a Kiwi Companhia

de Teatro/Cooperativa Paulista de Teatro.

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4 Peter Weiss, op. cit., p. 14.

5 Cf. Ismail Xavier, Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro. In: Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 70-85.

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Sem gritos, pra poder ouvir todo mundo e atrair quem se diz estar externo. Ou se gritarmos, que nosso grito seja como um murmúrio, um afago!:

“Escuta, escuta O outro, a outra já vem Escuta, acolhe Cuidar do outro faz bem”. (Ray Lima)

Por passar momentos tão intensos de transformação, de criação, de filosofia-ação, de místicas que não conhecia, não me sinto reabilitado. Pois a questão não é estar apto para se integrar novamente e ser aceitado no “mundo dos normais” – o mundo capitalista, que faz com que arregalemos nossos olhos para um cardápio de espantos, que desvenda os mistérios, a profundeza e os segredos das coisas, dos sentimentos, até nos tornarmos contempladores estáticos, consumidores manipulados e manipuladores, encarcerados e torturadores.

A terapia ocupacional que começa a se desenvolver não tem relação com a simples reabilitação. Ela dialoga com a construção de outro sentido para o mundo, ou mesmo outro universo: é a medicina/ciência/modo de vida que permite que cada um descubra e transforme suas realidades, suas essências e se comunique, sem preconceitos, com as do outro. É a revolução que cada um se propõe a fazer em si e que constrói, a partir da expressividade dessa mudança, a revolução coletiva.

A luta que aqui se trava não se firma em enfrentar inimigos, não se contenta em buscar as culpas e as desculpas. “Desculpa cú”, como me diz uma amiga. A luta está em não haver culpa nenhuma e sim em que

grau em que as mostram conscientemente ou não. Chegamos a uma malha onde não mais impera o objetivo fajuto, cerceado pelo subliminar malicioso e triste.

Desatamos nós por nós, até que nossa rede livre fez encontrar em nossa arte, em nosso teatro, em nossa vida, o objetivo e o subjetivo. E é tão bonito quando entendemos também a subjetividade, quando tornamos claras as nossas linguagens.

Não precisamos mais estar certos. O campo que escolhemos adentrar, porque muito novo e inovador, é recheado de incertezas. A nossa clareza tem de ser livre da certeza cartesiana recriminadora, opressora, anti-diversificadora. No mundo certinho, é esta a certeza que domina: às vezes rígida como uma parede de aço; às vezes flexibilíssima, como quando se pode vender e comprar a verdade.

Ter clareza não é ter certeza. É a partir da incerteza, da dúvida, que construímos a coragem e o compromisso plenos, a disposição de lidar com a obscuridade e os devaneios. Precisamos então ter clareza do que queremos, do que compreendemos e do que ainda não, de quando entrar ou do que fazer quando entrar ou se não entrar em cena, das nossas escolhas.

Muito inquietante o que está se construindo, não? Mas não podemos nos aperrear. Como Vitor Pordeus me alerta: “Não é pra enlouquecer”, não pela ansiedade e pelo escândalo. Nosso grito não é grito de guerra. Não queiramos travar uma nova guerra. Muitos dos que estão lá fora esperam por isso, se preparando para vender mais armas no seu podre mercado.

Não haveria como sair de lá intacto, sem toques, sem ranhuras, sem se cortar, sem provocações internas ou à flor dos tatos. Avisava Ray Lima: “Estamos mexendo em cacho de marimbondo”. Assim, as manifestações foram aparecendo, como um enxame ou a maré que vem enchendo até transbordar.

No início, de mansinho, alguns calados, alguns já com empolgação, os protagonistas do espetáculo-terapia-festa-novela começaram a contar quem são, de onde vieram, as marcas do cotidiano e de um outro mundo – mágico, surreal, que os rodeia e que se faz presente, mareando aquele local. São os atores-personagens principais sem nem estrelar numa megaprodução fantástica de Hollywood ou numa falsa realidade como a do Big Brother. Não precisam. Eles são as estrelas de suas próprias vidas. De suas luzes traduzem, como singelas e grandiosas oferendas, as poesias, composições, cantorias, danças, pinturas, o humor, o amor. Vão modificando suas caricaturas, desconstruindo e reconstruindo o espaço e as energias como artesãos. Grandes Arquitetos do Universo, Gadú! O imenso mar que nos apresentaram, esses mergulhadores, nadadores e pescadores geniais, mareia agora nossas vidas!

Nós fomos pra chuva! E dançamos para ela, que nos banhou, amoleceu os recantos ainda rígidos do nosso corpo, da nossa mente; lavando a sujeira acumulada de anos: lixo orgânico, lixo industrial, lixo hospitalar, lixo nuclear, lixo visual, lixo sonoro, lixo intraorgânico, lixo mental – dos quais ainda não nos livramos, também porque é uma terapia, uma luta pra ser travada um dia após o outro.

A cura é árdua e às vezes dolorosa. Ficar abstinente do individualismo, das mentiras do conformismo me deixou com o ego, a alma e as carnes à mostra. Cada apelo por carinho e cuidado, cada palavra sincera, cada olhar vai nos perfurando, extraindo, gota por gota, o veneno que nos seca. Vamos religando nossa sensibilidade.

Agora olhamos as pessoas na rua e enxergamos todas as suas loucuras, no

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Todos sabem, ou deveriam saber, que governar não é o mesmo que ter o poder para fazer o que bem entende, mas sim encaminhar os projetos daqueles que realmente detêm o poder. Marilena Chauí – que foi gestora da cultura na cidade de São Paulo de 1989 a 1992, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) ganhou a primeira eleição nessa cidade – afirma que para os dirigentes do PT a cultura é vista sob três aspectos: como saber de especialistas, campo das belas-artes e instrumento de agitação política.

Na primeira, a cultura é vista pelo viés da competência, isto é, poucos sabem e muitos recebem passivamente, logo, faz parte da ideologia dominante. No segundo, campo das belas-artes (teatro, dança, música etc.), a cultura é vista como própria dos talentosos, daqueles que receberam formação específica. Assim, é espetáculo, entretenimento, não se valoriza a criação e seu processo, mas os resultados. O terceiro reúne os dois anteriores, com o objetivo de persuadir as massas; coloca-se a serviço da política.

Questiona Chauí, em Cidadania cultural:

Qual o paradoxo? Em lugar de tomar a cultura como uma das chaves da prática social e política da esquerda, os dirigentes petistas deixam de lado a dimensão crítica e reflexiva do pensamento e das artes e simplesmente aderem à concepção instrumental da cultura, própria da sociedade capitalista (2010: 9-10).

eu mesmo tenho um problema pra resolver, um compromisso para cumprir, caminhos inteiros a seguir, milhares de escolhas a fazer. E tudo isso em uma vida apenas. E uma vida que não acaba.

Que sejamos mais livres e que descubramos onde em nós essa liberdade ainda não foi conquistada, buscando aprendê-la logo em seguida. Que mergulhemos fundo no oceano que nos foi apresentado e no qual muitos já viviam. Que subamos um pouco à superfície, quando precisarmos respirar, olhar pro céu e mergulhemos de novo. Que estejamos dispostos, mesmo que nunca prontos, a receber, se comunicar e respeitar o outro, quem quer que seja, de maneira incondicional. Que sejamos incondicionalíssimos.

Gratidão a todos, por tudo!

“Nós podemos ir até onde nós quisermos” – Judith (entidade Naná, Rei Reginaldo Terra e gerente do Hotel da Loucura).

Jadiel Lima, Maraguape-CE, 12 de agosto de 2012.

II Seminário Amazônico de Teatro de Rua6

Adailtom Alves Teixeira

A história da sociedade capitalista é a história da inclusão de todos os indivíduos e de todas as coisas no mercado ou a redução de todos e de tudo à condição de

mercadoria.Marilena Chauí. Cidadania cultural: o direito à cultura

No entanto, ainda segundo a pensadora, a cultura e a esquerda tem laços indissolúveis e se faz necessário um trabalho crítico que desvele a realidade e engaje novos sujeitos na transformação social.

Para a esquerda, a cultura é a capacidade de decifrar as formas da produção social da memória e do esquecimento, das experiências, das ideias e dos valores, da produção das obras do pensamento e das obras de arte e, sobretudo, é a esperança racional de que dessas experiências e ideias, desses valores e obras

Reginaldo/Dona Judite/Nanã - Interno que se tornou o “gerente do Hotel da Loucura”, durante o Ocupanise.

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Apesar das três dimensões, simbólica, cidadã e econômica, o horizonte maior é o aspecto econômico, isto é, a cultura como mercadoria. Por isso a ênfase na tal da economia criativa, indústrias criativas, entre outras. Portanto, a cultura não é vista como direito e como processo do desenvolvimento humano, mas pela ótica do econômico. O objetivo é atingir 4,5% do PIB (Produto Interno Bruto). A cultura é mercadoria. Em sendo mercadoria, não é para todos, é para quem pode comprar; e também não será qualquer um que poderá criar, apenas “os criativos”, “os empreendedores”. Portanto, entra na ótica já apontada por Marilena Chauí. É sempre bom se questionar: em quais bolsos irão parar esses 4,5% do PIB? Provavelmente nos bolsos dos mesmos privilegiados, isto é, daqueles que já são os donos das tais indústrias criativas. Claro que um artista ou outro possa furar esse cerco da economia criativa, tornando-se uma exceção (que existe para confirmar a regra), este será destacado, justamente para demonstrar como o projeto é maravilhoso e “democrático”. Afinal o capitalismo já faz isso há séculos: só os melhores conseguem; e a ideologia faz muitos crer que basta lutar para se sair vencedor.

Para completar a tragédia ou a farsa (e claro que faz parte do pacote, a ditadura burguesa sempre vem travestida de democracia), existe um falso diálogo entre o governo e a sociedade civil, que mesmo com tanta grita de todos os lados, faz ouvidos moucos. O último exemplo é o processo eleitoral para o CNPC (Conselho Nacional de Política Cultural), eminentemente excludente, apesar de vir sob a aparência de democrático. Afinal a internet não é

democrática? Mas quantos brasileiros tem acesso e dominam as ferramentas digitais? Muitas são as perguntas.

Para completar a tragédia farsesca, existe um refluxo dos movimentos culturais, cansados de esmurrar as pontas de facas sempre afiadas. Como diria certo camarada: que fazer?7

surja um sentido libertário, com força para orientar novas práticas e políticas das quais possa nascer outra sociedade (CAHUÍ, 2010: 8-9).

Por isso mesmo, a cultura permite desvelar a luta de classes, possibilitando a contraposição à oficialidade, criando, a partir da memória, outros símbolos, outros espaços.

Muitos Podem pensar que doze anos de governo do partido supracitado, pareciam caminhar dentro dessa proposta, mas não. Devido à extensão do texto, também não vamos nos debruçar sobre todos os supostos avanços e nem sobre todos os retrocessos. Mas, peguemos um exemplo, sem esmiuçá-lo item por item: as Metas do Plano Nacional de Cultura (PNC). As metas são uma orientação, um norte das ações do governo federal e deveriam estar valendo desde 2011, com validade até 2020. É uma “experimentação” do que deve vir a ser a cultura brasileira. Mas nem mesmo o prazo foi cumprindo, tudo só começará pra valer em 2013.

Mesmo assim, o prazo não é o maior problema, mas o norte apontado pelo próprio PNC. Criado em conjunto com a sociedade civil, por meio de conferências e outros mecanismos participativos, o documento deveria, em tese, expressar a vontade da sociedade civil, ou pelo menos daqueles que se envolveram diretamente na construção do mesmo. Mas não é bem assim. E não sabemos onde nós, sociedade civil, perdemos a mão, onde as coisas se embaralharam e começaram a apontar em outra direção. Muitos trabalharam, pensaram, discutiram, visando criar um documento que norteasse a política cultural brasileira, no sentido do desenvolvimento humano. No entanto, o resultado final parece que já estava pronto a partir de práticas contrárias ao sentimento de sua construção. Se somarmos a organização e o processo de construção, foram décadas de luta. Para quê? Para transformar o PNC e as ações daí decorrentes no que se combatia. Afinal o PNC aponta para a uma prática mundial: a reinvenção do capitalismo por meio da cultura.

Adailtom Alves TeixeiraMestre em Artes pela Unesp; membro do

Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua; articulador da RBTR; ator do

grupo Buraco d`Oráculo.

6 Texto produzido como início das reflexões na Roda 3 – Políticas Públicas Para as Artes, ocorrida no dia 25/07/12, ao lado do Rio Madeira, no Complexo da Es-trada de Ferro Madeira Mamoré – Porto Velho/RO.

7 Apesar do aparente cansaço, a sociedade civil conti-nua organizada e mobilizada, pois sabem que qualquer conquista para os trabalhadores só vem com muita luta. Em relação aos artistas que escolheram os espaços pú-blicos abertos – que não se enganam em relação aos novos caminhos que parece seguir a política cultural de nosso país –, tem demonstrado vigor de sua organiza-ção. No Seminário Amazônico de Teatro de Rua, havia articuladores de 13 estados do Brasil. E lá, em mais uma tentativa, foi criada a campanha nacional “Dilma, não desmanche! Dialogue Já.” A perspectiva é que todos os seguimentos culturais abracem a campanha e apresente as suas reivindicações. Talvez seja insuficiente, mas não se pode parar de lutar. Ainda no seguimento de teatro de rua, está agendado de 13 a 16 de setembro de 2012 o XI Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua, que ocor-rerá na cidade de João Pessoa-PB.

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realização

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Serão 12 espetáculos de teatro de rua!Vila Mara e Cidade Nova, São Miguel Paulista – São Paulo-SP

07A16DEZ2012.

VII Mostra de Teatrode São Miguel Paulista

vem aí

Oficina de Teatro de Rua duração de seis meses

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