o jardineiro

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O Jardineiro Em todo o Grande Porto, desde a Póvoa a Vale de Cambra e de Paredes a Espinho, não havia melhor ourives de plantas do que o Sr. Zé do Campo. Sebes, arranjos, esculturas, esquemas, tudo esboçava e definia no sítio desejado, à vontade do freguês ou à sua maneira, quando lhe parecia o melhor, porque, “às vezes, quem encomenda o trabalho tem o gosto muito parolo”, dizia. Cedro, bambu, pitósporo, bordo, cipreste, teixo, louro, buxo, lavanda, rosmaninho, alecrim eram amigos íntimos dos quais conhecia as manias e manhas, os jeitos e quedas, as doenças e moléstias. Tratava-os pela alcunha familiar e descompunha-os, se mostravam renitência em seguir-lhe as indicações, em sofrer-lhe as ordens do ancinho, a dor necessária da poda, o acerto da tesoura. Espicaçava-os com a forquilha, ameaçava-os com a serra ou o machado. Mas beijava-os se se adoçavam e exibiam a beleza das suas criações. Começara por simpatia, ocupando o fim de semana em casa do dono do armazém onde trabalhava. Era um patrão decente, mesmo no tempo da ditadura, e pedira-lhe que limpasse, arrumasse e alindasse o jardim da entrada do palacete da família. O hortelão, envelhecido nos achaques, partira há meses para a terra, lá para os lados de Vila Real, a gozar a parca reforma que recebera, “enquanto me aguento nas pernas, doutor, senão estico o pernil e nem uns anitos tenho para descanso.” Como tratava já do pomar, atrás da casa, o Sr. Zé apiedou-se do espaço, nas barbas do solar, infestado de ervas daninhas, com as plantas asselvajadas pelo abandono, esquecidas do barulho da tesoura, do sabor do adubo, do arranjo do ancinho. Os canteiros descalcetados confundiam- se com o saibro das veredas, e apagara-se o desenho dos buxos e a cor dos arbustos. - Vai ser cá uma trabalheira, dr. Fonseca! – disse, coçando a testa donde tirara a boina, segura na mão esquerda. - Eu sei, sôr Zé. Mas pago-lhe o trabalho à parte, o que deve dar-lhe jeito nas contas, não? E fazia-me um grande favor. - Bem, vamos lá ver o que se pode arranjar! Assim começara e, um mês depois, no clube de hóquei, na Igreja, no restaurante onde almoçava, já os amigos do doutor lhe perguntavam como desencantara o jardineiro milagroso que mudara a casa grande. Ganhou, então, dobradas encomendas das relações do patrão. Acedia, de vez em quando, pela insistência dele, a tratar dos jardins de amigos mais chegados. Mas o tempo era pouco, que os fins de semana não

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História breve sobre o amor eterno.

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Page 1: O Jardineiro

O Jardineiro

Em todo o Grande Porto, desde a Póvoa a Vale de Cambra e de Paredes a Espinho, não havia melhor ourives de plantas do que o Sr. Zé do Campo.

Sebes, arranjos, esculturas, esquemas, tudo esboçava e definia no sítio desejado, à vontade do freguês ou à sua maneira, quando lhe parecia o melhor, porque, “às vezes, quem encomenda o trabalho tem o gosto muito parolo”, dizia.

Cedro, bambu, pitósporo, bordo, cipreste, teixo, louro, buxo, lavanda, rosmaninho, alecrim eram amigos íntimos dos quais conhecia as manias e manhas, os jeitos e quedas, as doenças e moléstias. Tratava-os pela alcunha familiar e descompunha-os, se mostravam renitência em seguir-lhe as indicações, em sofrer-lhe as ordens do ancinho, a dor necessária da poda, o acerto da tesoura. Espicaçava-os com a forquilha, ameaçava-os com a serra ou o machado. Mas beijava-os se se adoçavam e exibiam a beleza das suas criações.

Começara por simpatia, ocupando o fim de semana em casa do dono do armazém onde trabalhava. Era um patrão decente, mesmo no tempo da ditadura, e pedira-lhe que limpasse, arrumasse e alindasse o

jardim da entrada do palacete da família. O hortelão, envelhecido nos achaques, partira há meses para a terra, lá para os lados de Vila Real, a gozar a parca reforma que recebera, “enquanto me aguento nas pernas, doutor, senão estico o pernil e nem uns anitos tenho para descanso.”

Como tratava já do pomar, atrás da casa, o Sr. Zé apiedou-se do espaço, nas barbas do solar, infestado de ervas daninhas, com as plantas asselvajadas pelo abandono, esquecidas do barulho da tesoura, do sabor do adubo, do arranjo do ancinho. Os canteiros descalcetados confundiam-se com o saibro das veredas, e apagara-se o desenho dos buxos e a cor dos arbustos.

- Vai ser cá uma trabalheira, dr. Fonseca! – disse, coçando a testa donde tirara a boina, segura na mão esquerda.

- Eu sei, sôr Zé. Mas pago-lhe o trabalho à parte, o que deve dar-lhe jeito nas contas, não? E fazia-me um grande favor.

- Bem, vamos lá ver o que se pode arranjar!Assim começara e, um mês depois, no clube de hóquei, na Igreja, no restaurante onde almoçava, já os

amigos do doutor lhe perguntavam como desencantara o jardineiro milagroso que mudara a casa grande.Ganhou, então, dobradas encomendas das relações do patrão. Acedia, de vez em quando, pela insistência

dele, a tratar dos jardins de amigos mais chegados. Mas o tempo era pouco, que os fins de semana não estendiam as horas. Chegou, no entanto, para criar a merecida fama que, anos depois, na reforma, lhe ocupava os momentos todos.

Conheci o Sr. Zé, quando, ainda estudante, fui passar uns dias de verão a sua casa, acompanhando o filho mais velho, o António, grande amigo da universidade. Ouvi-lhe as histórias, desenhadas tão bem como as figuras de bichos que desvendava nos arbustos. E era excepcional nisso, já o disse.

Passei algumas férias mais na sua companhia, não só pela amizade recíproca, mas também por interesse afetivo, namorando uma das filhas. Mas o tempo e o romance passaram.

A vida orientou-se por outros mapas e, afora as conversas apressadas com o António, que encontrava esporadicamente na cidade, perdi o contato com a casa e a aldeia.

Um dia, porém, chegando do trabalho, ao abrir o correio, vi uma carta do Sr. Zé. Ora ali estava uma valente surpresa, sem dúvida nenhuma. Rompi o envelope ainda no elevador e, numa letra desenhada à primária, li o gosto dele pelo romance que eu editara nesse ano, os elogios à história e palavras, o seu encanto pelos poemas que o ilustravam. Informava-me que fora o filho que lho levara, agradecia a minha dedicatória e convidava-me a passar uns dias na aldeia, com ameaças terríveis, se recusasse. Claro que aceitei.

Encontrei-o rijo e escorreito, parecido ao da minha memória, apenas mais dobrado e com a pátina das estações na pele e no cabelo, que recuava na testa alta. A expressão era a mesma no vivo azul do olhar e o sorriso franco alargou-se ao apertar-me nos braços.

- Ainda bem que vieste, rapaz. Ou será senhor escritor? Ou poeta, que gosto mais?

Page 2: O Jardineiro

- Ora, sôr Zé, deixe-se disso. Só faltava! Sou o mesmo. Apenas mais velho.- Não, velhice é cá comigo. Já cá cantam oitenta e dois.- Não acredito! Está a brincar… Dava-lhe menos uns vinte, sem exagero.- Vocês, poetas, são todos uns grandessíssimos mentirosos – disse o velhote com uma risada gorda que

me contagiou.Almocei um formidável pica-no-chão, criado por ele, no galinheiro do fundo do quintal. Escusado será

dizer que tratava as panelas com a mesma competência e esmero usados nos jardins.Depois, quis que fosse com ele dar uma volta pela aldeia. Tinha uma “bicharada” a mostrar-me numas

quantas casas, pelo caminho e no palacete do falecido patrão, “Deus o tenha ao seu lado, que era um bom homem”. Continuava a tratar-lhe das plantas, enquanto as pernas enferrujadas lhe obedecessem e tivesse força nas lâminas da tesoura.

- Devo-lhe isso e muito mais, sabes? Era um bom amigo. Foi pena morrer cedo… - parou um momento, comovido – rais parta o cancro.

O passeio foi lindo pela beleza dos campos de milho e o verde nortenho perdulário nos tons e cheiros da paisagem, pela companhia carinhosa e inteligente, pelas jóias vegetais que as mãos do sôr Zé lapidavam nos jardins. Já não ia para longe, mas, sozinho agora, após a morte da mulher, companheira de sessenta anos, tratava de muitos canteiros do lugar e arredores. Casas, prédios e condomínios gabavam-lhe o engenho e a arte.

E foi ao regressar a casa, à tardinha, que achei um tom discordante no cenário. - Ó sôr Zé, posso fazer-lhe uma pergunta?Olhou-me estranhado, parando no degrau do portão, a mão pousada no ferrolho.- Com certeza. Que pergunta?Baixei os olhos, ladeei o corpo e, apontando para o terreno em frente à pequena casa onde criara um

rancho de filhos, deixei sair as palavras a meia voz.- O sôr Zé, tem os jardins das redondezas num brinco, mas já viu como o seu está abandonado?Ele não estranhou e riu-se, ao empurrar o portão, convidando-me a entrar.- Pois é. Reparaste, não foi? Já muitos me perguntaram o mesmo. Mas entra, entra, que já te explico.Segui-o até ao alpendre, a um banco corrido junto a uma pequena mesa de madeira, que servia para as

refeições ligeiras no bom tempo. Mandou-me sentar, enquanto ia à cozinha. Pouco depois, trazia pão, presunto e uma garrafa de gelado

vinho verde espadeiro para a merenda. Com mais uma viagem, forrou a mesa de azeitonas, broa e queijo de mistura.

- Anda, serve-te. Prova lá este presunto e diz-me se há coisa melhor.Não me fiz rogado, pois o passeio abrira-me o apetite e o pitéu rescendia. Cortei uma avantajada fatia de

broa, colei-lhe o lençol que o meu hospedeiro aparara do pernil do porco preto e voltei à questão.- Então, sôr Zé, como é que tem este espaço em frente à casa assim tão desleixado? Calculo que lhe faça

confusão!- Sabes, os vizinhos perguntaram-me isso muitas vezes, no início. Fui respondendo com as tretas do

costume… que não tinha tempo… que chegava cansado e sem paciência… que pouco parava por casa… A reacção era sempre a mesma, o nosso povo tem pouca imaginação, que em casa de ferreiro espeto de pau, coisas dessas.

- Desculpe lá, sôr Zé, mas também me parece. - Sim? – e olhou as ervas espalhadas, o buxo rebelde, as roseiras agressivas, os canteiros escondidos nos

arbustos sem controlo – está um bocado abandalhado, não é – e riu-se de novo.- Não estou a entender. Agora o sôr Zé tem tempo e forças não lhe faltam. Parece-me difícil manter as

desculpas.

Page 3: O Jardineiro

- Tens razão. O pessoal também notou. “O sôr Zé diz que não tem tempo, mas está muitas vezes sentado aí no alpendre a tarde toda a olhar p’ra ontem”, diziam. Nunca liguei. Não valia a pena estar a explicar as coisas a esta gente. Ainda me chamavam maluco!...

- Olhe, agora é que me perdi de vez. O sôr Zé tem isto assim de propósito?Parou o que fazia, o corte delgado das fatias de presunto e queijo, sentou-se no banco, que puxou para

perto de mim e disse, olhando carinhosamente para o horto abandonado.- Ora bem, quem tratava deste bocado de terra era a minha Maria. E desde que se foi embora, não lhe

toquei mais… - fez uma pausa breve de comoção e recomeçou – Ao início, custava-me olhar para ali – e apontava o local, com um movimento de cabeça – Vinham-me as lágrimas aos olhos, quando via as roseiras dela e entrava pelo quintal. Depois habituei-me a ver o jardim assim, à vontade da chuva e do sol… E sabes uma coisa… – alegraram-se-lhe os olhos e animou-se-lhe a voz – as rosas foram ficando mais lindas com o passar do tempo – dobrou-se na minha direção e sussurrou - Cá para mim, a minha velhota continuava a vir tratar delas... – endireitou-se, sorriu de orelha a orelha e continuou – Desconfiei e pus-me à coca… Ao fim da tarde, sentava-me aqui, sem barulho, e ficava à espera… Não demorou muito até ela aparecer com as ferramentas. E fez tudo como era costume. Limpou os canteiros, arranjou as pedras, podou as roseiras, correu com os sapos… aquela mulher tinha um ódio aos sapos que nunca compreendi. Apesar de estar sempre a dizer-lhe que são os melhores ajudantes …

- Vá-se lá entender as mulheres!... – interrompi eu, entre encantado e perplexo.- Isso mesmo – concordou – Outra coisa que nunca entendi foi que graça é que ela achava ao trevo do

campo, que é uma praga e ela nunca me deixou limpar do jardim. E nem valia a pena dizer nada, que teimosinha como ela não havia outra…

Calou-se, de sorriso leve no rosto, alheado na admiração dos canteiros. Pouco depois, afirmou, como se acordasse

- E vem cá sempre, dia sim, dia não.- Estou a ver, sôr Zé… Mas já lá vão dois anos. Não acha que podia pôr bonito o jardim da sua mulher?

Ela havia de gostar, não lhe parece?Ele olhou-me condescendente, abanando ligeiramente a cabeça, com ar apiedado.- Ai esta juventude! Não entendeste, pois não? Fraco poeta me saíste! Parou, olhou o longe, desalentado com a minha incompreensão, e disparou, segundos depois.– Então, olha lá, se estivesse tudo arranjadinho, que razão é que ela tinha para voltar? Não me dizes? É o

voltas…

Manuel Rocha