o insurgido · não sei por que isso ... outros três agudos para os surdos como eu que não se ......

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O INSURGIDO

CAPITULO 01

CIDADE CITIADA

“O despertador sempre toca na mesma hora. Não sei por que isso acontece em todos os bairros desta purulenta cidade mas cada vez que a ouço sinto remexer por dentro cada fibra da qual é composta esta matéria intangível chamada alma. A mesma melodia odiosa de sempre, dois toques graves para se saber presente em toda sua grandiosidade, outros três agudos para os surdos como eu que não se deixam abalar por tão vis tentativas e como um grande final, ou no caso mais específico, um terrível começo, meia-hora de ininterruptos ruídos em seus ouvidos, ou então, um toque no botão vermelho próximo a porta, outro no verde dentro do banheiro e o toque sempre pontual no amarelo a porta do trabalho.

Não culpo as outras pessoas pois são como eu, vivem sem escolha e sem poder de defesa, o que aliás é regra e lei máxima nos tempos de hoje. O que me lembra também de pedir-lhes desculpas caros leitores, suponho, não estão entendendo nada deste começo insólito e monótono que lhes descrevo. Devo então uma explicação e formal apresentação. Meu nome é David Braga de Souza. Ou pelo menos acredito que seja pois consta imutável desde que encontrei nos arquivos da Central de Informação do Estado Novo em uma ficha digital preenchida em dezembro de 2123 ano que suponho ser o meu nascimento mas confesso não sentir a menor afinidade com essa data chegando na mesma a me abdicar do bolo e meia dúzia de salgadinhos frios mandados pelo governo a todos quanto concluem ano no grande dia da ascensão do Estado Novo no mundo. Eu tive sorte em todos os sentidos.

Não me lembro de muita coisa antes desta casa. Acordei com muito frio em uma noite de tempestade há 10 anos atrás sem uma única lembrança de quem eu era ou quem eu sou. Nada mudou hoje. Tive de aceitar ser chamado ao trabalho da multinacional INTERPRISE, a grande máquina que move todo o país, ou melhor dizendo, o mundo todo.

Se você pensa na sua terra com os paises divididos por cores, estados, linhas imaginárias, onde dentro dessas porções minúsculas de terras, vivem homens que pensam que são deuses, impregnados de gente cheia de preconceito, dor e solidão, autocracia e desigualdade, pensou muito bem em minha terra, só tire as linhas da sua imaginação e o planeta numa só cor que pintaria de cinza se não fosse contra as regras criticar o governo.

Moro em um apartamento modelo. Criado pelo governo para acabar com os sem-teto. É composto por um quarto com uma cama embutida sempre próximo a janela, o outro compartimento é o banheiro, sendo quase tão apertado que sinto ter tido antes de perder minha memória claustrofobia, o ar me falta e meus colegas me chamam de "porco" pois evito tomar banhos desnecessários. A cozinha é um fogão também embutido perto de uma parede com gás fornecido pelo governo. Cada coisa usada hoje em dia é contada em seus valores mais mínimos sendo depois enviada a

conta já paga pois tudo é descontado diretamente do contracheque, o que sobra dá subsidio para a comida e para a bebida. Estou magro por causa disso, adoro beber e como pouco.

Há dispositivos por toda a parte. Um eu já lhes contei, o irritante despertador que nos controla a hora de levantar e chegar sempre no horário para o serviço. A propaganda do governo justifica o incômodo provocado com isso numa legenda indicando os altos coeficientes de produtividade nos últimos tempos. Eu discordo, entretanto, discordar é o mesmo que matar ou roubar, então me calo e levanto sempre para evitar maiores transtornos. Há outro dispositivo que nos fornece um bom sono. Isso é a propaganda que está dizendo pois não sou favorável a nada disso, a única motivação que me faz escrever tais palavras é que o filtro pelo qual envio ao seu tempo este manuscrito teria desintregado automaticamente qualquer indicio de minhas lamurias se não colocasse essas especificações. A máquina capaz de nos oferecer sono é uma interface cerebral, colocada na cama e da qual devemos usufruir sempre no horário das 22h00min horas em dias de trabalho com tolerância até às 23h00min e em finais de semana até a meia-noite. Se quisermos ficar acordado fora disso usamos a comunicação com o sistema do governo mas isso é muito chato e burocrático dado o numero de formulários e requisições para uma noite intranqüila.

Tenho pesadelos nessa máquina dos quais nunca consigo me lembrar. O máximo que lembro são vagos flashes de luz passeando entre minha vista sobre uma chuva terrível e pássaros de ferro. Escrevi isso em uma noite, encontrei depois ao acordar jogado no chão e guardo comigo como talvez minha única lembrança autêntica. Ainda falando sobre os dispositivos, há também aquele que marca nossos horários, sendo avisado através de um aparelho bip que é contra lei deixar em casa tudo que devemos fazer simetricamente cronometrado para a melhor produção.

A vida nos dias de hoje, meu hoje no caso é o seu futuro, é uma merda. Toda infração menor cometida à lei e a ordem é punida, ou recomendada como dizem, a sessão com a Interface Cerebral de Controle (ICC para os mais íntimos). Esta máquina é o substituto do psicólogo, ou quase isso. Há um profissional psicotécnico que manuseia o equipamento que mapeia a causa e a origem do distúrbio de qualquer comportamento social anormal e trabalha com uma forma de entender e através do diagnostico de tal aparelho todos nós somos avaliados e liberados caso não haja nenhum problema. Em geral, uma vez por quinzena temos essas seções patrocinadas exclusivamente pelo governo. Mas para quem comete infrações as sessões são maiores, longas, extremamente fatigantes e sempre deixam com dor de cabeça. Eu participo de duas por semana. Sou assíduo freqüentador e meus psicotécnicos dizem ser um vicio e me limito a sorrir de modo falso e encarar a cadeira com as ataduras e eletrodos e a extrema falta de mim mesmo a qual sou submetido em cada uma dessas malditas sessões.

Em suma toda a minha vida se resume a isso. Levantar, ir trabalhar, em finais de semana beber o quanto puder até cair na casa em que vivo para depois repetir a mesma rotina. Nada de anormal. Somente em mim. O canto em que trabalho é bem reservado, quase não tenho amigos, somente um rapazinho do qual nunca me lembro o nome pois dele sempre me esqueço depois de alguma sessão. Às vezes acho que se chama Hélio, outras Asdrúbal, certa vez confundi-o até em Beto. É um bom homem e não parece sofrer dos mesmos anseios e faltas que eu. Conheci-o quando derrubou papeis em minha mesa e com muita presteza ajudei a organizar novamente, sempre muito prestativo pedindo desculpas pelo inconveniente e quase implorando para não

me reportar a chefia sobre o ocorrido. Nunca poderia fazer tal coisa como tivesse sido algo intencional para diminuir minha produtividade. É novo e por isso talvez se sinta tão inseguro. Deve ter a minha idade mas nunca faço perguntas desse tipo já que quando as fazem para mim não saberia responder.

Desde o incidente sempre tomamos café juntos e conversamos qualquer coisa. Quando caminho junto dele todos nos olham como se de nossa pele emanasse alguma doença ou fossemos monstros de circo. Meu bom amigo tem uma esposa e uma filha. O nome delas eu lembro, Cleonice e o da pequena é Clara. São pessoas boas também, não sei dizer se são belas já que não tenho uma definição muito certa sobre o que seria belo mas posso dizer de meu amigo que está sempre com um sorriso no rosto quando acompanhado de suas mulheres. Nunca as visitei, vi-as somente no trabalho quando apareciam esporadicamente trazendo um lanche para meu amigo, o que causava sempre certo embaraço pois em ambiente de trabalho era sempre ruim perder tempo com visitas de gente a qual se vê todos os dias em casa.

Seria bom ter uma família também. Li esse termo “família” em um anuncio do jornal. Pessoas com as quais podemos contar e encontrar após os fatigados dias de serviços, onde sentamos em uma mesa para tomar chá ou comer um bom bife. Queria encontrar isso ao invés de panelas sujas e o frio. Meu aquecedor vive quebrado e já desisti de consertá-lo.

Em suma a vida se traduz nisso, um enorme controle social, onde não somos livres para respirar e coíbe-se tudo. Os indicadores comandam o mundo, enquanto estiverem altos tudo continuará da mesma forma, sem nenhuma mudança. Não sei se posso agüentar isso durante muito tempo. Tudo está tão negro em minha visão quanto naquela noite em que me encontraram.”

__ Já terminei doutor – falei da forma mais mecânica que poderia – tome aqui meu depoimento e faça seu trabalho.

__ Não preciso que me diga como trabalhar Sr. Souza. Sei exatamente meu protocolo e o aconselho a seguir a risca as regras daqui por diante que o meu honorário não ressarci todas as 3 horas que eu perco com você, quanto mais incomodar o processo mas edificante será curar-te desse teu mal das velhas memórias.

De súbito as cadeiras apertaram o mais como se engolisse e tremeram em retrocesso a coisa pútrida da qual cuidavam. Houve estalos e o paciente começara a gritar, seus olhos reviravam as órbitas e sua força tornou-se incomensurável diante a dor que lhe implantavam aqueles eletrodos, uma dor que não passava pelo corpo, ia diretamente ao cérebro como toda a dor, genuína no seu modo de ser, deve agir. A eletricidade, tão usada no novo regime entrou em cada neurônio defeituoso e a partir de uma tecnologia que manipula estática e física aplicada a biologia molecular corrigiu as falhas sinápticas. Todo o processo levou quase quinze minutos sem intervalos entre os gritos. É claro que o Doutor Fausto poderia ter suavizado se tivesse apertado um botão verde localizado próximo à interface cerebral, mas aquele botão era rotina, o vermelho ao qual dirigiu o dedo um pouco antes era especial, havia um protocolo quanto ao seu uso e aquele excêntrico rapaz tinha as compleições e encaixava-se mortalmente naquele processo.

O homem que entrou ali e aquele que saiu eram totalmente diferentes assim como o modo de tratamento do doutor a ambos. Enquanto um era escarnecido o outro era polido. Todos que saiam da máquina precisavam daquilo pois por instantes o pensamento ficava vago. E aqueles instantes eram imprescindíveis para o sucesso

de toda a sessão, se por acaso, alguma das lembranças apagadas viesse relampejar o processo haveria de ser feito novamente, e com David isso já aconteceu tantas vezes que perdeu a conta o doutor Fausto e por se tratar de uma sexta-feira que antecede seu dia de lazer este não queria, de forma alguma, perder tempo em outra desnecessária consulta.

David apoiou-se sobre a bancada de uma mesa ali perto e sentido fortes tonturas tentou se perguntar quem era, afinal, antes de uma única palavra o doutor ofereceu-lhe um copo de água e disse para ir para casa, que ficaria melhor assim que a cabeça se acostumasse com o ritmo do mundo. Quando saiu do escritório teve a nítida sensação que tudo dava voltas porém, sempre é normal nestes casos, pessoas caindo sem ter onde se firmar, ou acontecer de estar a um só passo do abismo e virar para trás sem saber de nada. Colocou seu chapéu e saiu por debaixo de um imenso temporal subitamente formado e preste a ser também diluído em furiosas golfadas de água, relâmpago e vento.

(continua...)