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O IMPACTO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO BRASIL MERIDIONAL: CONTÁGIOS, DOENÇAS E ECOLOGIA HUMANA DOS POVOS INDÍGENAS Carina Santos de Almeida 1 Ana Lúcia Vulfe Nötzold 2 RESUMO Com a imigração e colonização europeias no Brasil meridional, houve um impacto na ecologia humana de grupos indígenas, principalmente pelo contágio de certas doenças infecciosas, como o caso de gripe, sarampo, catapora, bem como de doenças graves, tais como pneumonia e varíola. Um número significativo de indígenas e grupos, porém, até hoje não contabilizado, feneceu vitimado por moléstias até então desconhecidas. Nesse sentido, Darcy Ribeiro (1996) já destacou o papel singular das epidemias na diminuição da população indígena brasileira. O presente estudo apresenta alguns indícios desse impacto demográfico entre a população nativa que, inclusive, favoreceu a ocupação territorial por imigrantes europeus e seus descendentes. Com base em relatos de viajantes, tais como de Mabilde (1983), Avé- Lallemant (1980) e Saint-Hilaire (2002) e em estudos sobre o Brasil meridional, procurou-se demonstrar o quanto o contágio e as epidemias se deram à revelia de uma política de proteção ao indígena e contribuíram para a depopulação. PALAVRAS-CHAVE: Povos Indígenas. Imigrantes. Doenças. ABSTRACT With the european immigration and colonization in southern Brazil, there was an impact on the human ecology of indigenous gropus, specially by the infection with some diseases as the influenza, measles, chickenpox, or serious illness, as pneumonia and smallpox. A significant number of indigenous and groups – but this number has never been measured – faded, victim of diseases that were unknown untill that time. In this way, Darcy Ribeiro (1996) have highlighted the main role of the epidemics at the decreasing of the brazilian’s indigenous population. This study presents some evidence of this demographic impact among the native people that have benefited european immigrants and their descendants at the land occupation. Based on treveler’s reports, as Mabilde’s (1983), Avé-Lallemant (1980) e Saint-Hilaire’s (2002) and in studies on the southern Brazil to demonstrate how the contagion and epidemics were to default of a policy of protection of the indigenous and contributed to the low population. KEYWORDS: Indigenes Populations. Immigrants. Diseases. 1 Doutoranda em História Cultural/Ufsc, bolsista do Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI/Capes) e pesquisadora do Laboratório de História Indígena (Labhin/Ufsc), [email protected] 2 Etno-historiadora, professora no PPGH/Ufsc, coordenadora do Observatório da Educação Escolar (OEEI/Capes) e do Laboratório de História Indígena (Labhin/Ufsc), [email protected]

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Page 1: O IMPACTO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO BRASIL …

O IMPACTO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO BRASIL MERIDIONAL: CONTÁGIOS, DOENÇAS E ECOLOGIA HUMANA DOS POVOS INDÍGENAS

Carina Santos de Almeida1 Ana Lúcia Vulfe Nötzold2

RESUMO

Com a imigração e colonização europeias no Brasil meridional, houve um impacto na ecologia humana de grupos indígenas, principalmente pelo contágio de certas doenças infecciosas, como o caso de gripe, sarampo, catapora, bem como de doenças graves, tais como pneumonia e varíola. Um número significativo de indígenas e grupos, porém, até hoje não contabilizado, feneceu vitimado por moléstias até então desconhecidas. Nesse sentido, Darcy Ribeiro (1996) já destacou o papel singular das epidemias na diminuição da população indígena brasileira. O presente estudo apresenta alguns indícios desse impacto demográfico entre a população nativa que, inclusive, favoreceu a ocupação territorial por imigrantes europeus e seus descendentes. Com base em relatos de viajantes, tais como de Mabilde (1983), Avé-Lallemant (1980) e Saint-Hilaire (2002) e em estudos sobre o Brasil meridional, procurou-se demonstrar o quanto o contágio e as epidemias se deram à revelia de uma política de proteção ao indígena e contribuíram para a depopulação.

PALAVRAS-CHAVE: Povos Indígenas. Imigrantes. Doenças.

ABSTRACT

With the european immigration and colonization in southern Brazil, there was an impact on the human ecology of indigenous gropus, specially by the infection with some diseases as the influenza, measles, chickenpox, or serious illness, as pneumonia and smallpox. A significant number of indigenous and groups – but this number has never been measured – faded, victim of diseases that were unknown untill that time. In this way, Darcy Ribeiro (1996) have highlighted the main role of the epidemics at the decreasing of the brazilian’s indigenous population. This study presents some evidence of this demographic impact among the native people that have benefited european immigrants and their descendants at the land occupation. Based on treveler’s reports, as Mabilde’s (1983), Avé-Lallemant (1980) e Saint-Hilaire’s (2002) and in studies on the southern Brazil to demonstrate how the contagion and epidemics were to default of a policy of protection of the indigenous and contributed to the low population.

KEYWORDS: Indigenes Populations. Immigrants. Diseases.

1 Doutoranda em História Cultural/Ufsc, bolsista do Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI/Capes) e pesquisadora do Laboratório de História Indígena (Labhin/Ufsc), [email protected] 2 Etno-historiadora, professora no PPGH/Ufsc, coordenadora do Observatório da Educação Escolar (OEEI/Capes) e do Laboratório de História Indígena (Labhin/Ufsc), [email protected]

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A história das relações entre índios e brancos no Brasil ensina que as armas de conquista foram alguns apetites e ideias, um equipamento mais eficiente de ação sobre a natureza, bacilos e vírus – sobretudo

vírus.

Darcy Ribeiro

De todas as armas transportadas nas caravelas dos europeus, nenhuma foi tão eficaz quanto suas doenças para dobrar a resistência dos povos do Novo Mundo. Na verdade, a doença epidêmica é a chave

para se compreender o curso do imperialismo no Novo Mundo.

Warren Dean

INTRODUÇÃO

A chegada dos europeus a solo brasileiro provocou consideráveis mudanças na

organização social, política, cultural e espacial dos povos ameríndios. As relações

sociais estabelecidas entre colonizadores e indígenas ao longo dos 500 anos da história

do Brasil acarretaram uma profunda transformação do modus vivendi e do habitus3

social dos autóctones, principalmente no que concerne à migração, à ecologia humana e

à saúde. Ao longo da construção do Estado nacional brasileiro, houve um

reordenamento do território que promoveu a subjugação, o confronto e a resistência, e,

ainda, a extinção de muitos povos ameríndios. Em decorrência disso, delimitou-se o

espaço de circulação dos autóctones, interferindo na dinâmica das migrações – muito

corrente entre alguns grupos –, vindo a condicionar a relação com a paisagem e o meio

ambiente e a pressionar os limites interétnicos que havia.

A dominação europeia no Brasil adquiriu força à medida que interferiu na

reprodução social, visto que os ameríndios passaram a ser alvo seja das missões

religiosas e catequese, da escravidão ou de algo mais avassalador: das guerras e

conflitos diretos e das epidemias de doenças que causaram baixas demográficas e

extinguiram aldeias inteiras. Se na chegada dos europeus ao Brasil, estima-se que

3 O habitus é “[...] uma noção filosófica antiga originária do pensamento de Aristóteles e na Escolástica medieval [...]”. In: WACQUANT, Loïc. Esclarecer o Habitus. Sociologia. Problemas e Práticas. Lisboa, 14, 2004, p.35. Assim, desde então, muitos foram os intelectuais que desenvolveram esse conceito. Aqui, tomou-se como base a noção desenvolvida por BOURDIEU, Pierre. O habitus e o espaço dos estilos de vida. In: A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. p. 162 - 212, que compreende que o habitus na sociedade se refere às representações sociais e aos espaços de estilos de vida, assim: “[...] o habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida” (p. 162).

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houvesse milhões de ameríndios4, os quais falavam cerca de mil línguas diferentes e,

hoje, estão reduzidos, de acordo com a Funasa,5 a pouco mais de 500 mil indígenas,

tendo mantido apenas 180 línguas e dialetos, é porque vários fatores contribuíram para

isso.6

Entrementes, acredita-se que as doenças infecciosas impactaram a saúde dos

ameríndios porquanto haveria uma ausência de genes relacionados à capacidade de

resposta imune, por outro lado, a homogeneidade genética certamente se enquadra mais

como resposta sobre os fatores biológicos que facilitaram as infecções. As relações dos

ameríndios com os europeus aproximaram grupos geneticamente heterogêneos. O

intercâmbio de doenças fragilizou mais os ameríndios que os europeus, as doenças

autóctones do continente americano, com exceção da sífilis, não chegaram a se tornar

epidemias entre os europeus e seus descendentes nem no Brasil, nem na Europa.

Von Martius7, em analogia à fábula de Néssus8, alertou para camisas e outras

peças do vestuário “inficionadas” ou infectadas e deixadas intencionalmente por

imigrantes europeus, colonos e portugueses nas matas e proximidades como forma

“maliciosa” de revide por conta dos ataques dos índios. Os indígenas grandemente

foram compreendidos como empecilhos à civilização. No Brasil meridional e em Santa

Catarina, não foi diferente, em função dos constantes conflitos entre indígenas e não-

indígenas e em prol do povoamento e da colonização europeia, a fábula de Néssus se

4 Segundo CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 14; MELATTI, Júlio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Ed. USP, 2007. p. 44-47, entre outros, as estimativas sobre a população ameríndia no Brasil e na América ainda são controversas, mas nas terras baixas da América do Sul, parecem oscilar, de acordo com o pesquisador (Julian Steward, Willian Denevan, John Hemming, entre outros), entre 1 milhão de habitantes até 8,5 milhões. 5 Funasa, www.funasa.gov.br 6 Instituto Socioambiental, www.socioambiental.org; Funai, www.funai.gov.br; LUCIANO, Gersem dos Santos – Baniwa. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Projeto Trilhas de Conhecimentos – Laced/Museu Nacional, 2006. 7Karl F. P. Von Martius publicou em München, no ano de 1844, a obra Das Naturell, die Krankheiten, das Arztthum und die Heilmittel der Urbewohner Brasiliens, no Brasil fora traduzida e editada com o título MARTIUS, K.F.P. Von. Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos índios Brasileiros. São Paulo; Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939. 8 “[...] Quando ia oferecer sacrifícios aos deuses, em honra de sua vitória, Hércules mandou pedir à esposa uma túnica branca, para usar na cerimônia. Dejanira, achando a ocasião oportuna para experimentar o feitiço, embebeu a túnica no sangue de Néssus. Naturalmente, teve o cuidado de eliminar os sinais de sangue, mas o poder mágico permaneceu e, logo que a túnica se aqueceu ao contato de Hércules, o veneno penetrou em seu corpo, provocando-lhe terríveis dores. Frenético, Hércules, agarrou Licas, que levara a túnica fatal, e atirou-o no mar. Ao mesmo tempo, procurava arrancar do corpo a túnica envenenada, mas esta saía com pedaços de sua carne, em que se colara. [...].” In: BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula) histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p.182.

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concretizou como alternativa mascarada para eliminar aqueles que ameaçavam a

civilização, seja por meio de iniciativas isoladas ou da chancela governamental.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ECOLOGIA HUMANA, CONTÁGIO E DOENÇAS AMERÍNDIAS

As pegadas microscópicas da migração humana indicam que o homem alcançou

a América tanto pela clássica explicação pautada na passagem da região da beríngia até

chegar ao norte desse continente – devido aos achados do “homem de Clóvis” – quanto

por meio de rotas e ondas migratórias humanas transpacíficas. A partir de estudos em

paleopatologia, paleoparasitologia, arqueologia e epidemiologia, foi possível conhecer

aspectos importantes da história da saúde de grupos indígenas pré-colombianos, assim

como avaliar o impacto demográfico que as doenças e suas formas de contágios

impeliram às populações ameríndias pós-contato. Tais estudos, além de reforçarem a

teoria das ondas migratórias via navegação costeira, permitem avaliar como o contato

com o europeu se encaminhou para um desequilíbrio na ecologia humana ameríndia

porquanto permitiu a entrada de bactérias e vírus nunca dantes vistos entre as

populações autóctones.9

Segundo Ujvari,10 há

[...] um parasita que contribuiu para esclarecer nossa rota de entrada da América, o Ancylostoma duodenale presente em coprólitos de índios americanos. [...] É conhecida como amarelão. [...] é uma verminose típica de país tropical.

Os primeiros americanos, via embarcações, trouxeram consigo essa verminose,

cujos ovos e larvas, de acordo com o clima do Estreito de Bering, não teriam condições

de sobreviver sem um clima quente favorável. Assim, à medida que as migrações do

homem americano foram sendo conduzidas a leste e sul (na América), por caçadores e

coletores em busca de áreas férteis fornecedoras de vegetais e animais, portanto, em

busca de alimentos, as civilizações indígenas trouxeram um microrganismo agressivo, a

bactéria da tuberculose, que teria assolado muitos ameríndios enfraquecidos pela

9 SANTOS, Ricardo V.; COIMBRA JR., Carlos E. A. (Orgs.). Saúde & povos indígenas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. 10 UJVARI, Stefan Cunha. A história da humanidade contada pelos vírus. São Paulo: Contexto, 2008. p. 71.

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migração. Ujvari11 afirma que essa doença manifestou-se de maneira tímida, porém,

causou maiores estragos quando do florescimento das civilizações. Portanto, a

tuberculose já existia na América muito antes da inserção do gado, que por meio de sua

domesticação seria a suposta origem da doença. A tuberculose não chegou à América

somente com os europeus, por outro lado, com o “descobrimento” em 1492, houve

novas ondas da doença.

Quando da chegada dos europeus à América ou “invasão” como sugere Cunha,12

os ameríndios apresentavam, em seu modo de vida, vínculos estreitos com a natureza. O

manejo e o uso do solo praticados pelos ameríndios de forma sustentável foram

alterados com a colonização. À medida que o colonizador foi varrendo os grupos

autóctones de certos espaços e/ou confinando-os em aldeamentos, por meio da

catequização e de políticas indigenistas, tanto a ecologia humana ameríndia foi

impactada quanto os biomas de florestas, que passaram a ser desmatados para que

houvesse o reordenamento do território como também a racionalização da agricultura,

pastoreio e, posteriormente, o incremento da industrialização.

A ecologia ameríndia não foi impactada somente porque os indígenas tiveram

seu espaço de circulação reduzido, mas também por não terem acesso a certos territórios

e biomas, a medicina tradicional, a dieta alimentar, as práticas sociais, culturais e

religiosas e a cosmologia sofreram alterações. Sem acesso a determinados espaços, o

ameríndio necessitou modificar seu habitus social em virtude do novo modus vivendi.

As reduções, as missões e os aldeamentos aglomeravam os ameríndios, não preservaram

o indígena do genocídio, se este último não veio pela guerra, veio, sobretudo pelas

doenças que se espalhavam rapidamente e agiam por meio de ondas epidêmicas.

Darcy Ribeiro13 afirmou categoricamente que as doenças significaram o

primeiro fator interveniente na queda demográfica das populações indígenas no Brasil,

as relações sociais estabelecidas entre alóctones e autóctones em nossa história, podem

ser pensadas como uma “crônica de chacinas”. A aproximação entre núcleos europeus e

indígenas causou, muitas vezes, ondas epidêmicas de doenças, esvaziamentos

demográficos, dizimação de grupos inteiros ou uma fuga territorial por parte do índio.

As doenças foram levadas aos indígenas por meio do contato com a “civilização”.

Enfermidades como gripe, sarampo, catapora, varíola, malária, pneumonia, febre

11 Ibidem, p.74. 12 CUNHA, 2008, op. cit., p.14. 13 RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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amarela e, em certa medida, tuberculose14, trazidas de fora do continente americano, não

encontraram resistência imunológica entre os ameríndios.

É contundente a ação da varíola no Brasil entre 1562 e 1563, o padre Anchieta15

narrou que essa doença, também conhecida como “mal das bexigas”, atingiu

aldeamentos de catequese indígena na Bahia, tendo falecido mais 30 mil pessoas, entre

índios e escravos dos portugueses. A varíola prestou auxílio na conquista espanhola da

América, ainda assim, pode ter sido trazida por escravos africanos que portavam o vírus

nas embarcações negreiras. Essa é provavelmente originária da África ou da região

oeste da Ásia, não está certo ainda se o vírus se originou do gerbo16 ou do camelo, em

solo africano ou asiático, porém, do animal que forneceu o vírus, esse último sofreu

mutações e adaptações e atingiu o homem.17

Para Anchieta18, como também Ribeiro19 e Melatti20 a enfermidade debilitava o

corpo para as práticas sociais cotidianas, impedindo os indígenas de coletar, recolher e

produzir os alimentos necessários, o que acarretava em muitos casos, antes morte pela

fome que propriamente pela doença. Warren Dean21 considera que microparasitas

atuaram no Novo Mundo, com virulência renovada e aterrorizante à medida que os

autóctones brasileiros não possuíam anticorpos que os protegessem de infecções como

14 UJVARI, 2008, op. cit., p.73-75, afirma que ossos indígenas apontam para a existência da tuberculose antes mesmo da chegada dos europeus nas Américas. Mas esta não chegou a ser avassaladora como a nova onda que se expressou entre os ameríndios após o contato com os europeus. “A bactéria da tuberculose humana, a Mycobaterim tuberculosis, é muito semelhante a outra que acomete o gado, a Mycobacterium bovis. Essa também atinge o homem e causa doença. [...] Hoje em dia encontramos raramente doentes pela M. bovis. Contudo, gerações passadas presenciaram sua agressão, principalmente os europeus entre os séculos XVIII e XIX.” (p. 31). O autor afirma que a ciência atual, por meio de análises de DNA conseguiu provar que um ancestral bacteriano comum originou as bactérias mutantes da M. tuberculois e da M. bovis, assim, antes mesmo da domesticação do gado e do surgimento da M. bovis já existia a tuberculose entre os humanos. Esse ancestral bacteriano comum era Mycobacterium canetti, originária do continente africano, deu origem as bactérias da tuberculose atual, mas ainda não existem certezas sobre a origem da tuberculose. 15 ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Cartas Jesuíticas 3. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1988. 16 Gerbo é um animal semelhante ao hamster e pode ser tratado como de estimação, é um roedor originário da África e Ásia, continentes que disputam o aparecimento da varíola. A varíola foi extinta em 1970 após uma campanha de vacinação mundial. 17 UJVARI, 2008, op. cit., p. 135 - 138. 18 ANCHIETA, 1988, op. cit., p.356, “No mesmo ano de 1562, por justos juízos de Deus, sobreveio uma grande doença aos índios e escravos dos portugueses e, com isto, grande fome, em que morreu muita gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos portugueses a se fazer escravos, vendendo-se por um prato de farinha, e outros diziam que lhes pusessem forretes, que queriam ser escravos: foi tão grande a morte que deu neste gentio, que se dizia que entre escravos e índios forros morreriam 30 mil no espaço de dois ou três meses.” 19 RIBEIRO, 1996, op.cit. 20 MELATTI, 2007, op. cit. 21 DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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ocorrera grandemente aos europeus, mas também aos asiáticos, principalmente de

regiões portuárias e, que, desenvolveram, ao longo de gerações, anticorpos capazes de

defesa em relação às reinfecções.22 Portanto, conforme Black,23 certa homogeneidade

genética dos ameríndios, comparada com a heterogeneidade dos europeus, que

percorriam o mundo em embarcações e por rotas terrestres havia tempos, possibilitou a

fragilidade dos indígenas frente aos patógenos aportados na América.24

Se na descoberta da América e do Brasil, muitos foram os microrganismos que

desembarcaram com os colonizadores, como a varíola e o sarampo, a peste negra, a

gripe, até a própria tuberculose, que provocou uma nova crise de contaminação pós-

Colombo, os indígenas pouco ofereceram de ameaça em termos de vírus e bactérias aos

europeus. Contudo, a sífilis certamente se enquadra como um prenúncio de

contaminação a partir da América para o Velho Mundo. A sífilis se espalhou pela

Europa a partir do período das grandes navegações, esta doença foi associada ao

pecado, por ser transmitida sexualmente, no início do século XX, seu temor e estigma

poderiam ser comparados aos da Aids no mundo hodierno.25

Mas, segundo Ujvari,26 o mapeamento do DNA da sífilis por pesquisadores e

cientistas indica que a bactéria é antiga e sofreu mutações em solo americano a partir da

bactéria da framboesia. A bactéria da framboesia é originária da África e se espalhou

pelo mundo com as migrações humanas, assim, chegou à América e sofreu mutações,

surgindo a sífilis no continente americano. Por meio do contato sexual entre ameríndios

e europeus, a sífilis chegou à Europa ainda no período quinhentista e causou não apenas

feridas e cicatrizes nas genitálias feminina e masculina, mas se disseminou pelo sangue

e órgãos vitais, vindo a deixar lesões repugnantes na face, estigmatizando aqueles que a

possuíam, consequentemente, levando à morte.

22 Por outro lado, existem doenças que pertencem ao ecossistema americano, como o parasita da doença de Chagas, Trypanosoma cruzi. 23 BLACK, Francis L. Infecção, mortalidade e populações indígenas: homogeneidade biológica como possível razão para tantas mortes. In: SANTOS, Ricardo V.; COIMBRA JR., Carlos E. A. (Orgs.). Saúde & povos indígenas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. p.63 - 87. 24 Ibidem, p. 63, “[...] pode-se adiantar que as doenças infecciosas foram sem dúvida, o fator biológico mais importante. Argumenta-se também que a principal razão das doenças infecciosas terem tido tamanho impacto não se deveu necessariamente à ausência de genes específicos relacionados à capacidade de resposta imune, mas ao fato de as populações ameríndias serem biologicamente muito homogêneas do ponto de vista genético.” 25 UJVARI, 2008, op. cit. 26 Ibidem.

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A seguir, apontaremos especificamente alguns casos de epidemias, doenças e

contágios de grupos ameríndios meridionais, ocorridos principalmente no século XIX e

início do século XX.

AMERÍNDIOS MERIDIONAIS: O CONTATO COM O COLONIZADOR E AS DOENÇAS

As ondas epidêmicas não foram apanágio dos indígenas que habitavam próximo

ao litoral, os núcleos urbanos mais fervorosos ou o centro do País. As moléstias dantes

desconhecidas pelos ameríndios foram adentrando na interlândia brasileira à medida que

os não indígenas fundavam povoados, aldeamentos, vilas e rotas de comércio. No Brasil

e especificamente na Região Sul, as reduções e missões jesuíticas foram os primeiros

redutos de epidemias,27 porém, foi no século XIX, como também no século XX, que os

registros de viajantes, os relatórios governamentais e outros documentos acusam

epidemias tanto entre a população não indígena quanto indígena.

Um número significativo, porém, até hoje não contabilizado, de indígenas

morreu vitimado por moléstias até então desconhecidas em seu meio. As epidemias

ocorrem com mais incidência em centros urbanos, onde a circulação de pessoas e a

densidade demográfica são maiores. Aldeias menores e mais isoladas na maioria das

vezes foram menos afetadas por doenças. Von Martius28 afirmou que a “doença

maligna” ou Mereba-ayba na língua Tupi, conhecida como varíola, foi a principal

doença que afetou os ameríndios, os “gentios” possuíam verdadeiro “terror” e “pânico”

enquanto “as raças mixtas negros e brancos” suportariam mais facilmente a varíola.29

Além da varíola, o historiador faz menção às várias doenças que atingiram as

comunidades ameríndias no século XIX e que constituíram os piores “flagellos dos

aborígenes brasileiros”, como a “falsa varíola” ou Mixûa-ráma (em Tupi), conhecido

sarampo, a sífilis, chamada pelos brasileiros e espanhóis de “Buba” que “Como é

sabido, a syphilis actualmente se tem propagado bastante entre os índios. Penetrou nas

27 MONTEIRO, John. Entre o etnocídio e a etnogênese: identidades indígenas coloniais. In: MONTEIRO, John M.; FAUSTO, Carlos. (Orgs.) Tempos índios: histórias e narrativas do Novo Mundo. 2007, p. 25-65. Disponível em: < http://www.ifch.unicamp.br/ihb/HS18-09textos/JMMEtnocidio.pdf>. Acesso em: Mar. 2010. 28 MARTIUS, 1939, op. cit. 29 Ibid., p.99 e 100, “[...] a varíola representa na raça vermelha o mesmo papel da peste oriental. Onde explode, separam-se os membros da família; muitas vezes, os pacientes são deixados em desamparo; os sãos dominados por cego terror e desnorteados, fogem, em debandada, para as matas [...] Geralmente, se observa que, onde os índios vivem aldeados, a varíola grassa mais intensa do que entre os livres, isolados, esparsos, isto é, que apenas mantêm poucas relações com os europeus”.

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regiões mais remotas, e, semelhante a um verme corrodente, consome a vitalidade dessa

desleixada raça humana [...]”,30 entre outras.31

O contato do branco “civilizado” com os indígenas no Sul e Sudeste do Brasil

foi marcado pela construção e expansão de ferrovias, pelo aumento das lavouras,

sobretudo de café em São Paulo e Paraná, pela colonização teuta e ítala em Santa

Catarina e Rio Grande do Sul, ou seja, pelo imperialismo como sugere Warren Dean32

citado na epígrafe.

Nesse sentido, o século XIX foi marcante para a ecologia humana dos povos

ameríndios meridionais. À medida que se deu a expansão e a colonização europeia em

terras de Santa Catarina e Rio Grande do Sul compreendidas pela política brasileira

como devolutas, os povos indígenas, que adentravam cada vez mais às matas e florestas,

para evitar o confronto direto, foram sendo impelidos a guerras, conflitos e fricções

interétnicas constantes. Muitos povos de tradição guarani, sobretudo jê – coroados,

botocudos, conhecidos como kaingang e xokleng –, eram vistos como empecilhos ao

desenvolvimento brasileiro – catarinense e rio-grandense – que visava, por meio do

ordenamento do território, colonizar terras “devolutas”, teoricamente desabitadas, e o

incremento da atividade agrícola. Os últimos espaços de povoamento e colonização

“civilizadora” no Brasil meridional abrigavam indígenas taxados de hostis, selvagens e

bárbaros em virtude de suas posturas de defesa do território que habitavam.

A Região Sul do Brasil atualmente conta com os grupos étnicos de tradição jê,

conhecidos como jê meridionais, kaingang e xokleng, e os guarani, de tradição tupi-

guarani.33 Segundo o mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, adaptado na figura 1, os

kaingang, botocudos (xokleng) e guaranis habitavam praticamente todo o território sul,

com fronteiras étnicas bem definidas.34 A medida que se intensificaram o povoamento e

a colonização no século XIX e início do século XX, os territórios tradicionais de muitos

30 Ibid., p. 126. 31 Ibid., p. 129 e 130; p. 142, a sífilis não era uma doença autóctone: “[...] Cuidadosa investigação sobre o assunto, que em todas as oportunidades procurei fazer, confirmou-me na certeza de que essa doença não era primitivamente indígena entre os peles-vermelhas brasileiros. [...]” e “É crença geral entre os índios que a doença foi introduzida pelos europeus. A syphilis é desconhecida nas tribos até hoje inaccessíveis aos brasileiros; por isso, não hesitamos confessarmo-nos decididos pela opinião que a considera como doença do Velho Mundo”. Conforme já foi explicado anteriormente no corpo do texto, provavelmente a sífilis é americana e se originou, adaptou e sofreu mutações da framboesia africana. 32 DEAN, 1996, op. cit., p. 79. 33 No caso do Rio Grande do Sul, apresentam-se também os charrua, que, apesar de terem sido considerados extintos, atualmente vêm recuperando sua identidade indígena. 34 O mapa original de Curt Nimuendajú indicava também os povos indígenas que, por consequência dos confrontos e guerras com a sociedade não indígena, em 1944, já não mais habitavam seus territórios tradicionais e podem ser pensados como grupos em processo de desterritorialização ou em extinção, como é o caso dos minuanos, patos e charruas no Rio Grande do Sul.

Page 10: O IMPACTO DA COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO NO BRASIL …

grupos ameríndios foram sendo reduzidos e direcionados à instalação de colônias

agrícolas para receber imigrantes europeus. Logo, conflitos, contatos, aldeamentos,

epidemias e mortes marcaram a história desses povos meridionais.

Robert Avé-Lallemant35, quando de passagem pela Província de Santa Catarina,

acusou o medo dos “bugres”, que esporadicamente “saqueavam plantações”, “atacavam

propriedades” e provocavam “assassinatos”. O viajante cita um caso ocorrido numa

recém-instalada colônia à margem do rio Tijucas, quando no ano de 1847 os “bugres”

assaltaram e assassinaram nove colonos. Ainda assim, Avé-Lallemant registra ao longo

de sua narrativa muitos outros casos de saques, ataques, “brutalidade” e mortes

provocados por “bugres”, fez referência a “duas tribos selvagens”, os coroados,

conhecidos como kaingang, que formam “bandos errantes de bandidos” no oeste e norte

de Santa Catarina com a Província do Paraná, e os botocudos, chamados de xokleng,

“bandidos perigosos” que vivem nos recantos de serras e matas entre o planalto e as

terras baixas de Santa Catarina.

Avé-Lallemant36 afirmou que faltavam médicos na província, o que impelia

muitas vezes os moradores e habitantes aos cuidados “oriundos das próprias condições

da natureza primitiva”, destacou que, no ano de sua passagem, 1858, assolava as

“bexigas” ou varíola em Laguna e outras localidades, sem qualquer medida de

contenção e vacinação sendo feita.

Auguste Saint-Hilaire37 décadas antes, quando de passagem pela Região Sul do

Brasil, especificamente Rio Grande do Sul, destacou que a varíola era uma das

principais causas do despovoamento desta província. Segundo o viajante, atingia mais

aos índios que “doutras raças” e mesmo havendo vacina para tal flagelo,

administradores se eximiam de auxiliar os ameríndios no combate à varíola.38 Num

determinado momento desta mesma narrativa, referindo-se a um povoamento de índios

na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, chegou a afirmar que as mulheres e

35 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas Províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980. p. 55. 36 Ibid, p. 42 e 43. 37 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. 38 Ibid., p.366, “Desde o tempo dos jesuítas, ela vem de três em três anos, arrebatando vidas. Sabe-se que essa moléstia, em geral, poupa menos os índios que os homens doutras raças. [...] O Marechal Chagas jamais procurou introduzi-la (vacina) entre os índios das Missões e mesmo após haver testemunhado o mal causado pela varíola não se preocupou em antecipar-se contra o retorno do flagelo.”

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filhas de índios transmitiam indiscriminadamente doenças venéreas aos soldados e que

seriam mais perigosas “do que o contágio com uma negra ou branca”.39

Figura 1: Mapa da espacialização dos povos indígenas da Região Sul do Brasil, segundo Curt Nimuendajú

Fonte: Reelaborado pela autora a partir de Mapa Etno-histórico de Curt Nimuendajú de 1944.

As relações conflituosas entre xokleng, comumente mencionados como

botocudos, e a sociedade não indígena na região do Vale do Itajaí acusam para um

genocídio dos ameríndios. Wittmann40 destaca que a noção de periculosidade dos índios

acabou legitimando a violência realizada contra o grupo. Até o momento de sua

39 Ibid., p.243. 40 WITTMANN, Luisa Tombini. O vapor e o botoque. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.

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“pacificação”41 e aldeamento no ano de 1914, muitas foram as hostilidades, algumas

crianças ameríndias que eram capturadas nas caçadas dos bugreiros foram entregues às

ordens religiosas ou para famílias que estavam dispostas e empenhadas na adoção e

“civilização”, contudo, a mortalidade das crianças ameríndias foi significante. Se as

crianças não estavam doentes, acabavam por adquirir moléstias e, na maioria dos casos,

vinham a falecer por gripe, bronquite, tuberculose, pneumonia, entre outras. Para citar

um episódio marcante, em 1918, alguns xokleng foram levados da reserva de Ibirama

para uma visita à cidade com o governador do Estado, a maioria dos índios do grupo

ficou doente pela gripe, tendo se tornado tal visita o início de uma grave epidemia entre

os xokleng.42

Sobre os mesmos xokleng que vivenciaram muitos confrontos no Vale do Itajaí,

sobretudo a partir de 1852, com a fundação da Colônia de Blumenau, Darcy Ribeiro43

cita o episódio de quando os ameríndios haviam roubado crianças de colonos e as

levado à aldeia. Entretanto, foram tomados pelo pavor com a contaminação pela gripe,

assim, acabaram matando todas as crianças “tossideiras” uma vez que acreditavam que

possuíam “poderes malignos”. Os xokleng tentaram “exorcizar” as epidemias de gripe,

sarampo, malária que os assolavam, mas suas práticas tradicionais para antigas doenças

não eram eficientes para tais moléstias desconhecidas. Em 1917, o grupo já “pacificado”

foi tomado pela malária, em 1918, surgiu uma epidemia de coqueluche, no ano seguinte,

foram acometidos pela “gripe espanhola”, conforme acusa Ribeiro44 sobre essa última

epidemia, tamanha “[...] foi a mortalidade que nem se davam conta de enterrar os

mortos; os cadáveres eram deixados insepultos, servindo de pasto à cachorrada da

aldeia.”

As epidemias foram cruciais para uma baixa demográfica entre os xokleng,

assim, em poucas décadas foram reduzidos drasticamente. Ribeiro45 afirma que os

xokleng sofreram com as febres puerperais e o tétano nos recém-nascidos, com a

verminose, que se transformou em endêmica em 1922, em 1927, com uma epidemia de

sarampo, em 1939, com uma epidemia de blenorragia ou gonorreia, que causou mortes,

esterilidade e cegueira. Por fim, os dados são alarmantes, em 1914, o grupo xoclengue

41 Ou silenciamento, como sugerem os xokleng, que preferem ser denominados como laklãnõ. 42 WITTMANN, 2007, op. cit., p. 141. 43 RIBEIRO, 1996, op. cit. 44 Ibid., p. 318. 45 Ibid., p. 312, 318 - 320.

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contava com pouco mais de 800 pessoas, em 1933, estavam reduzidos a 106, e,

conforme acusa Darcy Ribeiro, em 1952, contabilizavam 189 pessoas.

Ítala Becker46, em grande medida baseada em Mabilde47 como fonte para retratar

os índios kaingang no Rio Grande do Sul, considera que quatro fatores contribuíram

para as causas da queda populacional dos kaingang no final do século XIX: a

mortalidade infantil, as epidemias, as migrações colonizadoras ou de cunho interno e as

guerras. No planalto meridional, ocorreram algumas epidemias que assolaram e

marcaram os kaingang, em 1812, ocorrera em Guarapuava, em 1849, em Nonohay, em

1864, em Caseros, que, segundo Becker,48 a varíola acabou assolando os kaingang,

assim, embasada em Schaden49, cita o caso do Cacique Doble, que numa visita a Porto

Alegre para solicitar auxílio, recebeu do governo provincial uniformes de soldados

falecidos em consequência da varíola, que havia acometido o quartel. Nesse episódio, as

roupas não desinfetadas foram entregues a Doble, logo a epidemia se alastrou pelo

Toldo, que não possuía qualquer ajuda médica. Os indígenas se jogavam na água fria

quando sentiam o calor da febre, o que segundo Schaden,50 contribuiu para uma

mortalidade catastrófica. No ano de 1883, uma epidemia atingiu Estiva e Campina,

segundo Francisco,51 não há “[...] estimativas seguras das mortes resultantes de cada

uma dessas epidemias, no entanto, podem-se estimar as alterações por elas provocadas,

com destaque para a diminuição da população indígena do planalto”.

Pierre Mabilde52, em seu relato sobre os indígenas coroados do Rio Grande do

Sul (meados do século XIX), afirmou que o uso da roupa entre os aldeados veio a ser

outro “regime de higiene na vida selvática”, vindo a causar moléstias, sobretudo porque

os ameríndios se descuidavam com o frio, assim o corpo suava e produzia um choque

ou uma reação violenta. Mabilde ainda afirma que os ameríndios coroados, ao

perceberem que a morte se aproximava em virtude de moléstias, costumavam sair dos

aldeamentos e entranharem-se nas matas e florestas, de forma que preferiam morrer

46 BECKER, Ítala Irene Basile. Os índios Kaingang no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1995. 47 MABILDE, Pierre François Alphonse Booth. Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul: 1836 - 1866. São Paulo: Ibrasa; Brasília: INL, fundação Nacional Pró-Memória, 1983. 48 BECKER, 1995, op. cit., p. 96 e 97. 49 SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo: Ed. USP, 1974. 50 Ibid. 51 FRANCISCO, Aline R. Selvagens e intrusos em seu próprio território: a expropriação do território Jê no Sul do Brasil (1808-1875). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), 2006. p. 196. 52 MABILDE, 1983, op. cit., p.36.

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isolados. É interessante ressaltar que, ao nascer um kaingang, costumava-se enterrar o

umbigo, de forma que, ao falecer, o indígena kaingang deveria ser sepultado na mesma

terra/território,53 portanto, abandonar o local onde está marcado o nascimento

significava romper com o habitus social e suas representações socioculturais.

Quanto aos guaranis, Egon Schaden54 coloca que duas questões angustiavam

esse povo, as numerosas doenças que os afligiam e a ideia mítica do fim do mundo,

cada vez mais próximo. Schaden argumenta que os ameríndios encontravam explicação

para a origem da enfermidade “[...] nas más intenções de pessoas conhecedoras e

portadoras de recursos mágicos.” Isso significa que o aparecimento de uma epidemia

em um dado espaço de tempo pode acarretar consequências sociais para a comunidade

ou grupo, gerando desconfiança, desunião, assim como brigas e inimizades. As questões

do senso místico, da solidariedade ou mesmo das práticas de magias, para os guaranis,

são encaradas como técnicas racionais com vistas a um fim. Assim, mais que dizimar

indígenas, as doenças ou epidemias que assolaram muitos povos, causaram discórdia e

desconfiança na própria comunidade.

Segundo Costa,55 em 1903, o médico alemão Jorge Clarke Bleyer fez uma visita

aos indígenas kaingang da Terra Indígena Xapecó, no oeste catarinense56, e se deparou

com uma epidemia que assolava o grupo, tendo vitimado 30 homens, seis mulheres e

quatro crianças. Esse mesmo médico, que entrara em contato com os kaingang por

intermédio de seu compatriota, etnólogo e antropólogo Karl van den Steinen, fez parte,

entre 1905 e 1908, da comissão médica da estrada de ferro São Paulo/Rio Grande do

Sul, da Brazil Railway Co. e Brazil Development & Colonization Co., nessa comissão

presenciou febres do grupo tifóide, de varíola, de septicemia carbunculosa57, que

atingiam as comunidades ameríndias do oeste, sobretudo, os kaingang.

53 NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; MONFROI, Ninarosa Mozzato da Silva. Ouvir memórias contar histórias: mitos e lendas Kaingang. Santa Maria: Editora Pallotti, 2008. 54 SCHADEN, 1974, op. cit., p.124. 55 COSTA, Terezinha de J. T. B. M. Caminhos percorridos pelo dr. Jorge Clarke Bleyer nos campos da medicina tropical e da pré-história brasileira. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 10(1):272-85, p.1–14, jan.-abr. 2003. 56 Segundo NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe. Nosso Vizinho Kaingáng. Florianópolis: Imprensa Universitária da Ufsc, 2003, a Terra Indígena Xapecó foi estabelecida pelo Decreto nº 7 de 18/6/1902, como forma de pagamento dos indígenas kaingang pelo trabalho na construção de uma linha telegráfica, assim, o cacique Vanhkrê solicitou terras entre o rio Chapecó e Chapecosinho. Contudo, em virtude do assédio de não indígenas no decorrer do século XX, apenas parte das terras pertencem aos kaingang. 57 A septicemia é a designação para o conjunto de manifestações patológicas devidas à invasão, por via sanguínea, do organismo por germes patogênicos provenientes de um foco infeccioso. O carbúnculo é uma doença infecciosa aguda provocada pela bactéria Bacillus anthracis e a sua forma mais virulenta é altamente letal.

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À medida que os indígenas no Sul do Brasil foram condicionados aos

aldeamentos, ou como sugeria o presidente da Província do Rio Grande do Sul, Conde

de Caxias em 1846, “acarenciavam-se” à “civilização”,58 as doenças infecciosas

tornaram-se inevitáveis e uma realidade negligenciada pelos governos, pois a saúde dos

ameríndios esteve relegada à sorte, ao desconhecimento e sem a devida atenção e ajuda

médica aos toldos, aldeamentos de “catechese e civilização” implementados pelas

políticas indigenistas provinciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito de os cronistas do século XVI louvarem os “bons ares” do Brasil, as

epidemias marcaram as relações sociais estabelecidas entre colonizadores e ameríndios,

grandemente em detrimento destes últimos. A história brasileira, como sugere Ribeiro,

pode ser pensada como uma “crônica de chacinas”, se aldeias inteiras não eram

dizimadas, aqueles que sobreviviam fugiam da aldeia, das moléstias e do colonizador

portador de patógenos, vindo a vaguear pelo território. Reduções e missões, traficantes e

bandeirantes, colonizadores e imigrantes, navios negreiros e escravos africanos, enfim,

muitos foram os que trouxeram vírus e bactérias para o continente americano.

Infelizmente, o ameríndio era o que menos possuía defesas para as doenças e epidemias,

seja em virtude de sua imunologia ou experiência genética.

Parafraseando Manuela Carneiro da Cunha59, o Brasil indígena hoje não passa

de fragmentos “[...] de um tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente,

cobria provavelmente o território como um todo”. O decréscimo populacional

ameríndio não pode ser explicado apenas pelos conflitos e guerras emergidas entre

indígenas e colonizadores, estes últimos, como vetores de patógenos, promoveram um

etnocídio já destacado por Monteiro. Por outro lado, este etnocídio não foi acidental, na

maioria dos casos, ocorreu com a chancela governamental, uma vez que a aniquilação

de grupos ameríndios de certos espaços facilitaria a ocupação, o povoamento, o

incremento da imigração e a colonização europeia, a expansão da agricultura, do

pastoreio e da industrialização e, por fim, da tão almejada “civilização do Brasil”.

58 CAXIAS, Conde de. Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: 1º de março de 1846. Disponível em: site da Universidade de Chicago <http://www.crl.edu/content/brazil/gras.htm>. Acesso em: jul. 2009. 59 CUNHA, 2008, op. cit., p.12.

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Como bem destacou Warren Dean, os vírus e as bactérias contribuíram para a

dominação do Novo Mundo. A literatura clássica entra em consenso quando afirma que

as epidemias foram os verdadeiros causadores de baixas demográficas entre os povos

ameríndios. Por outro lado, ainda se faz necessário reconstituir a amplitude do que as

epidemias significaram para o habitus social dos autóctones, porém, como no caso dos

xokleng, estas não apenas significaram a morte de pessoas em poucas décadas, mas o

fim de rituais, conhecimentos e saberes tradicionais. O etnocídio ameríndio no Brasil

meridional ainda precisa ser melhor explicado e exemplificado, para que não se pense

que a depopulação indígena tenha sido resultado apenas de guerras e conflitos diretos ou

de contágios casuais.

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