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O imaginário político no mundo operário: as esquerdas do Brasil e a imprensa militante (1922-1935) LEANDRO RIBEIRO GOMES Introdução Este conciso artigo pretende ser um resumo da produção preliminar e inicial de minha pesquisa de doutorado, que trabalha exclusivamente com a imprensa operária e militante como fonte histórica. Procuramos abarcar em nossa proposta de pesquisa fontes jornalísticas que representavam as principais correntes políticas do movimento operário da década final da chamada República Velha” (a partir de 1922) aos anos iniciais do período varguista (até 1935). Para isso, selecionamos em nosso projeto jornais ligados ao movimento anarquista, as organizações comunistas e representantes do sindicalismo revolucionário, as grandes tendências que disputavam os movimentos trabalhistas e que atuavam junto a suas organizações (como nos sindicatos, associações de classe e na sua própria imprensa), fazendo parte do próprio movimento dos trabalhadores. Inicialmente, projetamos analisar impressos principalmente das cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, os centros urbanos e industriais onde se concentravam a maior parte das organizações operárias do período, porém também propomos trabalhar com representantes de centros menores, como Santos e Porto Alegre. Objetivamos aqui discutir as propostas teóricas e metodológicas e posteriormente analisar algumas fontes de uma pesquisa que quer abordar a hipótese de trabalho de como o contexto político, altamente polarizado da época, pode ter dado margens a uma diversidade de perspectivas, ideias e interpretações no pensamento político que era produzido neste meio jornalístico. O que pode ter gerado novos formatos e variações nas ideias políticas que eram divulgadas e publicadas, e que até podiam desafiar as moldagens das tradições das correntes políticas que estes jornais estavam envolvidos. Buscando, assim, um maior entendimento das disputas políticas internas do movimento operário, através de alguns temas, e por meio de seu espaço privilegiado, a imprensa operária, principal veículo de divulgação de suas ideias e de expressão dos trabalhadores urbanos organizados. Para tanto, o trabalho com conceitos como o de imaginário político”, assim como o de práticase representações, são fundamentais Mestre em História pela UNESP-Assis e atualmente doutorando em História pela mesma instituição.

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O imaginário político no mundo operário: as esquerdas do Brasil e a imprensa militante

(1922-1935)

LEANDRO RIBEIRO GOMES

Introdução

Este conciso artigo pretende ser um resumo da produção preliminar e inicial de minha

pesquisa de doutorado, que trabalha exclusivamente com a imprensa operária e militante

como fonte histórica. Procuramos abarcar em nossa proposta de pesquisa fontes jornalísticas

que representavam as principais correntes políticas do movimento operário da década final da

chamada “República Velha” (a partir de 1922) aos anos iniciais do período varguista (até

1935). Para isso, selecionamos em nosso projeto jornais ligados ao movimento anarquista, as

organizações comunistas e representantes do sindicalismo revolucionário, as grandes

tendências que disputavam os movimentos trabalhistas e que atuavam junto a suas

organizações (como nos sindicatos, associações de classe e na sua própria imprensa), fazendo

parte do próprio movimento dos trabalhadores. Inicialmente, projetamos analisar impressos

principalmente das cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, os centros urbanos e industriais

onde se concentravam a maior parte das organizações operárias do período, porém também

propomos trabalhar com representantes de centros menores, como Santos e Porto Alegre.

Objetivamos aqui discutir as propostas teóricas e metodológicas e posteriormente

analisar algumas fontes de uma pesquisa que quer abordar a hipótese de trabalho de como o

contexto político, altamente polarizado da época, pode ter dado margens a uma diversidade de

perspectivas, ideias e interpretações no pensamento político que era produzido neste meio

jornalístico. O que pode ter gerado novos formatos e variações nas ideias políticas que eram

divulgadas e publicadas, e que até podiam desafiar as moldagens das tradições das correntes

políticas que estes jornais estavam envolvidos. Buscando, assim, um maior entendimento das

disputas políticas internas do movimento operário, através de alguns temas, e por meio de seu

espaço privilegiado, a imprensa operária, principal veículo de divulgação de suas ideias e de

expressão dos trabalhadores urbanos organizados. Para tanto, o trabalho com conceitos como

o de “imaginário político”, assim como o de “práticas” e “representações”, são fundamentais

Mestre em História pela UNESP-Assis e atualmente doutorando em História pela mesma instituição.

na compreensão das identidades políticas e dos projetos políticos dos grupos que estavam

envolvidos nesta produção jornalística.

As ideias políticas na imprensa operária brasileira do início do século XX

Em nossa pesquisa de doutorado nos concentraremos na produção da imprensa

militante durante a década de 1920 e início dos anos 30, e não mais apenas na imprensa

anarquista como trabalhamos na pesquisa de mestrado, mas também estendendo a pesquisa à

imprensa comunista e ao espaço jornalístico dos chamados “sindicalistas revolucionários”

(uma corrente política independente dedicada exclusivamente à ação sindical). Denominamos

de “esquerdas” estas correntes que foram selecionadas. Essa decisão, nesta nova fase de

pesquisa, de focar os estudos neste período recortado e de ampliar a análise às outras

correntes e posições políticas no interior do movimento operário decorre tanto das

potencialidades demonstradas no trabalho com a imprensa militante como fonte como pelas

particularidades da história do movimento operário brasileiro na década de 1920 e primeira

metade dos anos 30 – examinando o debate do anarquismo com as outras correntes políticas

em um novo cenário político.1

Em relação ao nosso recorte cronológico (1922-1935), selecionamos esse período

porque estas datas foram significativas e de grande importância para o movimento operário e

para os movimentos políticos que os acompanhavam – e também para a História Política do

Brasil. Iniciamos a nossa pesquisa no ano que terminou o nosso estudo de mestrado, pois

1922 é uma data simbólica por ter sido o ano em que foi fundado o Partido Comunista

Brasileiro, o PCB, e também por ter ocorrido o episódio dos “Dezoito do Forte de

Copacabana”, uma revolta do baixo escalão do exército que deu início ao movimento

tenentista. A pesquisa se estende até o ano de 1935 porque este foi o ano da “Insurreição

Comunista”, quando houve uma tentativa de revolta armada dos comunistas em apoio a ANL

(Aliança Nacional Libertadora), que se opunha a política de Getúlio Vargas. Tal revolta

1 Refiro-me ao trabalho que resultou na dissertação de mestrado intitulada: “Libertários e Bolcheviques: a

repercussão da Revolução Russa na imprensa operária anarquista brasileira” (GOMES, 2012). Nesta pesquisa,

em que foi analisada apenas a imprensa anarquista, ficaram evidentes as potencialidades de pesquisa deste tipo

de imprensa da época e de que ela poderia oferecer novas possibilidades de estudo, tanto de temas pouco

explorados na dissertação quanto de novas fontes não trabalhadas e levantadas na pesquisa de mestrado.

desencadeou uma perseguição violenta a todas as várias tendências revolucionárias

(comunistas, anarquistas, sindicalistas e trotskistas).2

Quanto à conjuntura do movimento operário nesse período, da também chamada

“República Velha”, não restringir a pesquisa apenas à voz anarquista da imprensa militante é

pretender focar a “produção das ideias políticas” no seu conjunto, ou seja, produzidas no

interior de um intenso debate entre as outras tendências do movimento. A nosso ver, somente

considerando o conjunto das posições entre as correntes é que poderemos ter uma visão mais

abrangente do debate político como um todo. Trata-se de um momento em que o movimento

operário no Brasil está mais dividido e heterogêneo do que em relação à década de 1910 – em

parte devido aos impactos da experiência soviética – e está sofrendo uma repressão ainda

mais sistemática do governo – algo que caracterizou a política do governo de Artur Bernardes,

de 1922 a 1926. Em função disso, as disputas políticas internas ficaram ainda mais delicadas e

polêmicas na imprensa operária nesse período. A importância e relevância da discussão de

certos temas nesta imprensa se tornou capital num momento de maior repressão policial e de

lutas políticas sérias que ocorriam no Brasil, como o tenentismo e a Coluna Prestes, que

repercutiram seus efeitos até o governo de Washington Luis (1926-1930).3

É importante salientar que partimos da hipótese de trabalho de que a revolução russa

impôs novos problemas e questões no movimento operário brasileiro, o que acabou gerando

um quadro novo, uma situação nova com novas configurações, nos contornos das suas

posições políticas e ideológicas. A nossa tese, portanto, é de que o evento russo, e o

consequente movimento comunista internacional, impulsionou uma diversidade de

perspectivas no já heterogêneo pensamento político do movimento operário no Brasil.

Observamos que a conjuntura da década de 1920 rompeu com o período anterior estudado no

mestrado e defendemos a tese que neste segundo momento a produção do pensamento político

apresentou uma multiplicidade de novas formas, que muitas vezes até desafiavam as

fronteiras entre as correntes políticas do movimento. Por isso, devemos considerar que a

imprensa e, portanto, o debate jornalístico conferem uma dinamicidade ao debate ideológico

que não se encontra nos livros, ou seja, que não se encontra nos clássicos que delimitam as

fronteiras das tradições e das tendências do movimento. De fato, enquanto os livros demoram

2 Sobre este episódio da “Insurreição Comunista”, as suas ligações com setores do exército e as repercussões da

consequente repressão governamental sobre as organizações operárias consultar: (DULLES, 1977: 424-427). 3 Sobre o contexto desta fase da Primeira República: (CARONE, 1974: 337 e 362). E sobre o conceito de

“movimento operário” que trabalhamos, enquanto a expressão “atuante” e “combativa” da classe operária, ver:

(BRAVO, 1991: 781).

a serem elaborados e publicados, “decantando” o debate, os textos na imprensa (aqui, a

imprensa operária) constituem uma resposta imediata aos conflitos do dia a dia e aos

acontecimentos vividos pelos trabalhadores organizados. Trata-se, por isso, de uma boa

amostra das “flutuações” dos pensamentos e das representações políticas, em consequência

das reflexões que eram publicadas.

Seguindo a linha de pesquisa de história política e das “ações e representações” na

política, visamos explorar as potencialidades de pesquisa que a imprensa operária do período

possui no que concerne à produção de suas “ideias políticas”, as “ações” militantes discutidas

em decorrência destas ideias e também as “representações”, ou seja, as ideias e as percepções

da realidade social produzidas por estes setores. Tudo isso privilegiando alguns temas que

foram importantes nas discussões e disputas políticas entre as tendências do movimento

operário como: as “questões relativas à liberdade e à democracia no socialismo”; a “política

e a ação militante no interior das organizações operárias e sindicais”; e os

“posicionamentos em relação às lutas políticas que estavam sendo travadas no Brasil”. Esta

pesquisa pretende estudar as relações íntimas das ideias políticas com a imprensa escrita, já

que os jornais são “aparelhos de produção e mediação” das ideias políticas, pois a finalidade

da história das ideias políticas é: “[...] conhecer melhor os sistemas de representações das

sociedades, o estudo desses sistemas tornou-se inseparável do dos aparelhos de produção e

de mediação: não é apenas a ideia que age, é também o lugar de onde ela vem [...]”

(WINOCK, 1996: 285).

Práticas e Representações

Se almejamos realizar uma história das ideias políticas na imprensa operária, o que

requer um entendimento maior de seus “sistemas de representações”, o esclarecimento destes

conceitos teóricos e propostas metodológicas é imprescindível. Por isso a importância de

remontarmos até Pierre Bourdieu.

Pierre Bourdieu, filósofo que se transformou em antropólogo e sociólogo, produziu

conceitos e teorias de grande relevância para os historiadores. Entre eles incluem o conceito

de “campo”, a teoria da prática, a ideia de reprodução cultural e a noção de “distinção”.

O conceito de “campo” refere-se a um domínio autônomo que, em dado momento,

atinge a independência em uma determinada cultura e produz suas próprias convenções

culturais. Convenções culturais que podem ser transmitidas por uma “reprodução cultural”

que é o processo pelo qual um grupo mantém sua posição na sociedade por meio de um

sistema educacional que parece ser autônomo e imparcial. Quanto a sua “teoria da prática”,

destaca-se o conceito de “habitus”, examinando a prática cotidiana em termos de

improvisação sustentada numa estrutura de esquemas inculcados pela cultura tanto na mente

como no corpo (BURKE, 2008: 76-77).

Bourdieu se utiliza bastante de uma metáfora abrangente, que tirada da economia,

analisa a cultura em termos de “bens”, “produção”, “mercado”, “capital” etc. Expressões

como “capital cultural” e “capital simbólico” entraram na linguagem de muitos historiadores.

Bourdieu também empregou a metáfora militar de “estratégia” para entender como os

indivíduos procuram a sua “distinção” uns dos outros. Como colocou o próprio Bourdieu: “A

identidade social está na diferença, e a diferença é afirmada contra aquilo que está mais perto,

que representa a maior ameaça” (BURKE, 2008: 77-78).

Interpretando as correntes revolucionárias do movimento operário e suas produções

jornalísticas de nossa pesquisa como um “campo” político e cultural específico, podemos

considerar muitas das especificidades das disputas ideológicas desta imprensa, de seus

acalorados debates teóricos e seus discursos políticos, como “estratégias”. Estratégias estas na

busca de uma “distinção”, isto é, o que diferenciava um grupo dos outros, o que cada grupo se

valia para convencer um maior número de adeptos dentro da política interna do movimento

operário. No texto: “A representação política. Elementos para uma teoria do campo

político”, Bourdieu, numa passagem importante, expressa a concepção que podemos utilizar

do quanto o acesso e o controle dos “instrumentos de expressão” cultural (como os jornais),

por um determinado grupo político, interage nas lutas de representações entre os grupos em

disputa, interferindo no “mercado” dos “produtos” oferecidos pelo campo político em

questão, na disputa que ocorre pela “percepção” do mundo social. Assim como as “censuras”

que limitam o universo do discurso político por um determinado grupo – que podem ser

expressas na forma de seus específicos componentes doutrinais, de suas formulações

ideológicas particulares, de seus sistemas de pensamento e posições políticas – são, também,

uma forma de poder simbólico que busca controlar o universo daquilo que pode ser pensável

politicamente:

Dado que os produtos oferecidos pelo campo político são instrumentos de

percepção e de expressão do mundo social (ou, se assim se quiser, princípios de di-

visão) a distribuição das opiniões numa população determinada depende do estado

dos instrumentos de percepção e de expressão disponíveis e do acesso que os

diferentes grupos têm a esses instrumentos. Quer isto dizer que o campo político

exerce de facto um efeito de censura ao limitar o universo do discurso político e,

por este modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao espaço finito

dos discursos susceptíveis de serem produzidos ou reproduzidos nos limites da

problemática política como espaço das tomadas de posição efetivamente realizadas

no campo, quer dizer, sociologicamente possíveis dadas as leis que regem a entrada

no campo (BOURDIEU, 1989: 165).

Este poder simbólico consiste no “capital simbólico” deste campo político, é o “capital

político” que as correntes políticas do movimento operário lutam por garantir e acumular,

para cada vez mais, arrebatar os corações e mentes dos leitores que “consomem” a sua

imprensa:

O capital político é uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no

reconhecimento ou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas

quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objeto – os próprios poderes que

eles lhes reconhecem. [...] O poder simbólico é um poder que aquele que lhe está

sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, uma fides, uma

auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança. É um poder que existe

porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe [...] (BOURDIEU, 1989: 187-

188).

Podemos pensar que a partir do momento que trabalhamos com um tipo de

documentação (no caso a imprensa operária) que consistia no palco em que se depositavam a

crença, as convicções e esperanças das pessoas, temos, portanto, uma fonte rica de conteúdo

do que era “imaginado” também, isto é, “sonhado”. Nestes jornais encontram-se expressões

dos contornos das “mentalidades” dos trabalhadores e militantes daquela época, seus

discursos jornalísticos são também “produções simbólicas” e, dessa forma, são

“representações” do mundo social, ou seja, como eles enxergavam os seu mundo social. A

nossa pesquisa histórica com estas fontes jornalísticas trabalha a história política numa

perspectiva de uma história cultural que, segundo o historiador Roger Chartier, que também

inspirou-se em Bourdieu, é um tipo de história que objetiva identificar como (num

determinado contexto) uma determinada realidade social é “construída”, “pensada”, “dada a

ler”. Portanto, é indispensável, ao se tratar de história da imprensa e especialmente de nossa

proposta, identificar os interesses, grupos e posições de quem produziu estes jornais, pois:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à

universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos

interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário

relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem

estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma

autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto

reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e

condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como

estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos

desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de

representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender

os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do

mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio [...] (CHARTIER, 1988:

17).

Dessa forma, as “representações” estão contidas em nossas fontes jornalísticas tanto

quanto as “práticas”. Estas práticas sociais seriam tanto as “ações” políticas, ou seja,

posicionamentos políticos, as ações e “práticas” militantes, que eram assumidas e defendidas

num determinado discurso, quanto a “prática da leitura” realizada e expressas nestas fontes.

Nesta prática da leitura compreendemos como era a “recepção” dos textos jornalísticos que

eram publicados, por parte de leitores (que sendo redatores ou não), respondiam e

comentavam na própria imprensa o que era produzido. Produzindo discursos, que por sua vez,

também eram “práticas” políticas e militantes. Portanto, a grosso modo, as disputas de

“representações” do mundo social expressas nesta documentação, também eram disputas

políticas, disputas entre as tendência pelo poder de influenciar o movimento operário.

Uma História do Pensamento Político e do Imaginário Político

Após se esboçar um campo teórico e metodológico em que se abre espaço para a

abordagem dos discursos políticos enquanto “ações simbólicas” dos grupos sociais. E os

conceitos metodológicos aplicáveis de práticas e representações, buscamos agora tratar das

ideias políticas e suas relações com o imaginário político.

Ao estudar os temas que iremos trabalhar em nossa pesquisa com os jornais operários,

levando-se ainda em consideração a experiência do mestrado em que foi trabalhado o mesmo

tipo de documentação, destacamos que nestas fontes se expressaram toda a complexidade e

riqueza do pensamento político, das práticas e projetos militantes, das mentalidades e

imaginário social e, enfim, da cultura política das camadas populares ligadas ao movimento

operário em suas várias tendências (anarquistas, comunistas e sindicalistas). Portanto, são

fontes ricas para uma História das ideias políticas e do pensamento político destas camadas, e

é onde se insere a proposta de nossa pesquisa. A publicação deste “pensamento” se

encontrava num espaço (a imprensa) em que o debate político e ideológico é muito dinâmico,

conferindo uma ampliação das discussões e debates destas próprias tradições políticas em que

estes grupos estavam envolvidos, por isso a importância da imprensa, das fontes jornalísticas,

para este campo de pesquisa:

[...] Em suma, as idéias políticas não são apenas as dos filósofos e teóricos, mas

também as do homem comum. Pela extensão de seu campo de curiosidade, a

história das idéias políticas faz necessariamente fronteira com a história da opinião

pública e a história da propaganda; distingue-se delas, mas seus entendimentos com

uma e outra encontram-se numa relação de reciprocidade, numa sociedade de

expressão pública desenvolvida. Daí resulta uma primeira renovação da história

das idéias pela extensão da curiosidade a fontes antes inusitadas (WINOCK, 2003:

278-279).

Dessa forma, o que buscamos fazer é uma história do pensamento político do

movimento operário por meio da sua imprensa, que naquela época atingia uma parcela da

população trabalhadora, e que era afetada pela dinâmica de suas lutas sociais. Trata-se de

tentar descobrir as marcas das ideias políticas em setores mais amplos da sociedade, e a

“mediação” pelo qual passava as ideias políticas até chegar neste público mais amplo, e não

apenas nos intelectuais acadêmicos – seguindo, assim, as transformações da Nova História

Política:

[...] Dedicar-se às mediações e aos mediadores, tanto quanto aos “pensadores”,

resulta da necessidade metodológica, quando o historiador quer avaliar o trabalho

das idéias na sociedade tanto quanto o reflexo dos problemas sociais do momento

da expressão jornalística. [...] esse deslocamento da curiosidade do qualitativo para

o quantitativo, dos grandes autores para os fabricantes do pensamento cotidiano ou

semanal. O público dito “culto”, assim como os eleitores “sem bagagem”, são

submetidos sem cessar aos discursos infra- e metapolíticos, e esse contato é muito

maior que seu acesso à obra dos teóricos. [...] (WINOCK, 2003: 282).

É claro também que estas ideias políticas, expressas no pensamento político da

imprensa operária, ainda que contenha a sua parcela de originalidade – transmitidas nas

“reflexões” dos “jornalistas operários” –, elas derivam, também, de suas matrizes “clássicas”,

isto é, da “tradição” política em que estavam inseridas, que no caso é o amplo, diverso e

heterogêneo movimento socialista. Movimento este que desde o início tinha ligações com o

movimento operário e que tinha consagrado suas ideias principais nos debates e disputas

ocorridas desde o século XIX. Comunistas de vertente marxista, anarquistas de várias matizes

e sindicalistas revolucionários, expressavam as várias tendências e correntes políticas dentro

do que se entendia por socialismo no seu sentido mais amplo. E por socialismo, naquela

época, entediam-se que era uma luta política para radicalizar o modelo de democracia

burguesa para uma democracia mais ampla, que estendesse os direitos sociais a todos, e em

que o proletariado, os trabalhadores, tivessem um papel decisivo na administração da

sociedade. Estas considerações são importantes porque temos que identificar mais claramente

tanto os sentidos originais em que as principais ideias políticas tiveram nos textos clássicos;

os significados que elas representavam no contexto e na conjuntura em que se insere a

imprensa operária; e as leituras (interpretações, ressignificações e apropriações) que eram

feitas pelos redatores operários e militantes.

As correntes políticas do movimento operário são “revolucionárias”, e assim se viam,

no sentido que a revolução social era visto no horizonte histórico destas tradições políticas

como um caminho para o progresso. Por isso, na imprensa que estudamos era depositado

amplos sentimentos de esperança, de expectativas e de fé nas causas que defendiam. Por isso,

na análise histórica de um jornal, devemos atentar que nele estão contidas as inflexões de uma

época, que em suas páginas se refletem as relações na sociedade, e em que se expressa as

tentativas da sociedade de se atingir uma coerência possível entre as “doutrinas” e os “fatos”

reais (WINOCK, 2003: 282).

Assim, nós trabalhamos as nossas fontes na condição que elas são também portadora

de muito do que era “sonhado” dentro de seus discursos, ou seja, do era “imaginado” em meio

ao seu pensamento político, constituindo mitos políticos como a espera de uma “nova era”

com as mudanças da revolução. Por meio desta documentação, então, trabalhamos também

com o que se chama de uma história do “imaginário político”, campo este onde o autor Raoul

Girardet presta grande contribuição.

Girardet primeiramente chama a atenção que devemos considerar, neste tipo de

estudo, a densidade social e coletiva em que são palco estes tipos de debates ideológicos que

implicam em grande conteúdo passional, e com isso a necessidade de considerar a

singularidade de uma realidade psicológica específica (GIRARDET, 1987: 9 e 14). As

reflexões do autor apontam justamente para as características dos discursos que trabalhamos

em nossas fontes, onde as grandes construções doutrinais do pensamento político

revolucionário, invocando a força do rigor demonstrativo da “ciência” e da “razão”,

invocavam fortes sentimentos de adesão:

[...] E aí se encontram, sem dúvida, para muitas delas, a origem e a explicação de

seu poder de atração: qual teria sido o destino de um marxismo destituído de todo

apelo profético e de toda visão messiânica, reduzido exclusivamente aos dados de

um sistema conceitual e de um método de análise? ... (GIRARDET, 1987: 11).

A crença em uma “nova era” social com o advento revolucionário, fundamentada sob

uma doutrina filosófica e social com suas implicações proféticas e messiânicas, claro, não foi

uma característica contida apenas nos movimentos de caráter marxista. Estes traços também

são encontrados nos discursos militantes de anarquistas e sindicalistas, cada um com seus

traços ideológicos específicos, mas que também guardavam e depositavam grandes

esperanças e energias na causa dos trabalhadores organizados.

E levando-se em consideração o período que pretendemos abarcar (1922 a 1935) esse

tipo de estudo do imaginário se torna mais fértil. Já que: [...] “é nos ‘períodos críticos’ que os

mitos políticos afirmam-se com mais nitidez, impõem-se com mais intensidade, exercem com

mais violência seu poder de atração” (GIRARDET, 1987: 180). Pois pesquisamos um período

de fortes embates e disputas no interior do movimento operário, ao mesmo tempo em que este

enfrentava a conjuntura de governos muito repressivos e autoritários com o movimento dos

trabalhadores, e sofria os impactos das grandes crises sociais e políticas do período.

Dessa forma, o imaginário político é um tipo de discurso singular, onde se expressam

as ideias na sua forma de imagens visuais, de imagens verbais, ou de imagens mentais –

constituindo-se, ao olhar do historiador, como “arenas” específicas onde as diversas forças

políticas se colocam e se confrontam. As “imagens”, nesse sentido, podem ser “empunhadas

como instrumentos de poder”, o que coloca a pertinência da discussão das interconexões

possíveis entre a História do Imaginário e a História Política (BARROS, 2005: 138).

No entanto, o historiador do imaginário tem de buscar realizar uma história

problematizada, questionadora, o que consiste em relacionar estas “imagens” – em formas de

símbolos, mitos e visões de mundo – às questões sociais e políticas de maior interesse do

contexto da produção destas fontes. Assim, é trabalhar os elementos do imaginário para a

compreensão da vida social, econômica, cultural e política do meio que a produziu,

estabelecendo interconexões diversas (BARROS, 2005: 138). E este meio social, no nosso

caso, é o movimento operário e sua imprensa, que sofria as consequências e influências das

grandes questões políticas e dos problemas sociais de seu tempo. Com isso, é importante

compreender que abordar o imaginário político na imprensa operária de nosso período é

trabalhar, também, com formas de representações próprias das sociedades modernas, o que

revela uma forma específica de História Política:

Os horizontes abertos por uma busca da compreensão do imaginário político são na

verdade inúmeros. Os modos como o poder é representado – por exemplo em termos

de “centro” e de “periferia” – ou como a estratificação social materializa-se em

imagens como a de um espectro de alturas em que as classes sociais mais

favorecidas são chamadas de “classes altas” ... eis aqui algumas imagens sociais e

políticas que podem passar a fazer parte da vida de uma sociedade. Imagens como

estas têm se entranhado a tal ponto nos discursos políticos e nas representações das

sociedades modernas fazem de si mesmas que, não raras vezes, os próprios

analistas políticos esquecem que temos aqui imagens especializadas que são elas

mesmas produtos de confrontos, de imposições silenciosas, de ideologias que se

infiltram sutilmente nos discursos. [...] (BARROS, 2005: 140).

Sendo assim, estas “imagens”, em que se expressam “representações” políticas e

sociais, constituem-se em imaginários políticos que são, em certa medida, formas de

expressões das disputas pelo poder. Considerando que a História Política se diferencia pela

sua abordagem do fenômeno do “poder”, pretendemos desvendar estas disputas pelo “poder

simbólico” que ocorriam entre as correntes políticas da imprensa operária. E assim,

compreender melhor como ocorreu as disputas políticas no interior do movimento operário,

ou seja, as suas lutas políticas internas. Lutas estas que, expressas na imprensa do movimento,

produziu um pensamento político próprio e específico na história das esquerdas devido a

conjuntura crítica daqueles anos.

As Fontes históricas: a imprensa operária e seus dilemas

Estabelecido as nossas referências, caminhos, ferramentas e conceitos teóricos e

metodológicos básicos, esboçamos por fim uma análise preliminar de algumas de nossas

primeiras fontes que já foram levantadas na própria historiografia deste campo de pesquisa.

Como um dos episódios de maior expressão das cisões no movimento operário no início de

nosso recorte temporal, tratemos do caso da disputa das federações sindicais rivais no Rio de

Janeiro em 1923. Quando as discordâncias políticas entre comunistas e anarquistas no interior

da FTRJ (Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro), criada em 1920, acabou resultando

na refundação da antiga Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ) com maioria

anarquista, definindo a permanência dos comunistas na FTRJ.

Este caso é tratado na importante obra intitulada Clevelândia, do historiador

Alexandre Samis, que apresenta uma pesquisa sobre a colônia penal no Amapá para o qual

eram degredados os presos políticos nos anos 20, sob o estado de sítio do governo de Artur

Bernardes (SAMIS, 2002). Neste livro, apesar do objeto de pesquisa ser o movimento

anarquista, a sua militância sindical e a repressão política, que tanto debilitou o movimento,

também trata dos conflitos entre comunistas e anarquistas, que igualmente prejudicou o

movimento operário. Dessa forma, tornou-se uma referência importante para indicar o fato de

que as disputas entre anarquistas e comunistas e sindicalistas revolucionários, foram intensas

no período e produziram farto material na imprensa destes movimentos.

Logo no início daquele ano, em março, no jornal A Pátria, elencado entre os

impressos que utilizaremos em nossa pesquisa, encontramos um exemplar significativo de

vozes dissonantes das posições anarquistas dentro do movimento operário. Em artigo assinado

por C. Leitão, ainda de fevereiro, é possível medir os impactos da Revolução Russa e do

pensamento socialista de viés marxista nas “imagens” que se tinha da mudança social tão

desejada pelos militantes operários, e na crítica a nova federação sindical que estava sendo

criada:

“Fizemos estas considerações porque diversas têm sido as vezes que ouvimos os

militantes anarquistas dizer, que querem a ‘Revolução Social’ e ‘ipso facto’

recusam a Revolução Proletária – essa para a qual os trabalhadores de todo o

mundo se apresentam. Não querer a Revolução Proletária é o mesmo que dizer não

organizaremos os trabalhadores sob métodos que os mantenham em constante

ascendência, evitando dessa forma a eficiência da luta de classes.

É preciso que os trabalhadores em geral, e em particular, os da Comissão

Organizadora não se suscetibilizem com esse sentimentalismo de ultra

humanitarismo. O capital encontra-se admiravelmente bem montado em seu ‘cavalo

de ouro’ com sua ‘guarda de aço’.

Para desmontar pela palavra, seria necessário uma etapa de quinhentos anos no

mínimo, e que os anarquistas assentassem arraiais ou tenda em seu seio. Isso é

utopia. Entretanto, o processo ‘soviético’ deu resultados admiráveis na desmonta do

seu ‘pedestal de ouro’.

Ao meu ver deve a “Nova Federação”, sem cair em reformismos nem ‘águas frias’

– deixar uma entrada pela qual as grandes classes possam ingressar sem esbarrar

em teorias, que só com o tempo irão assimilando.”4

O jornal A Pátria, do Rio de Janeiro, funcionou entre os anos de 1922 e 1924. Nesse

jornal havia uma seção trabalhista dirigida pelo operário anarquista e jornalista Marques da

Costa. Era um título incomum para um jornal que abrigava anarquistas, já que os anarquistas

eram contrários ao nacionalismo, mas que se explicava devido à oposição assumida deste

4 A Pátria, 01/03/1923 (Apud SAMIS, 2002: 282).

periódico ao regime de Arthur Bernardes.5 Portanto, um artigo com este teor era uma

inclinação a “bolchevização” do movimento operário, ainda sob efeitos diretos do recém

fundado PCB, e uma crítica direta aos pressupostos anarquistas do jornal, ao defender a ideia

da “Revolução Proletária” como uma prova da eficiência da “luta de classes”, e por ela ter

obtido bom êxito no “processo soviético” (se referindo aqui a Revolução Russa).

A defesa das ideias e “imagens” da “Revolução Proletária” sustentava-se pelo sucesso

das sublevações operárias que ocorreram na Revolução Russa, que conferia a imagem do

“processo soviético” como um modelo bem sucedido da eficácia da “luta de classes”, que é

um conceito chave do marxismo. Por isso, o autor criticava os métodos anarquistas que, por

ser descentralizado e não propor a tomada do poder do Estado pelo proletariado, como no

marxismo, era acusado de querer “desmontar pela palavra” as fortes estruturas do Capital e,

portanto, era tida pelo autor como uma corrente “utópica” – rotulando o movimento ácrata

com esta imagem.

Marx e Engels formularam as bases do “materialismo histórico” que fundamentam o

seu “socialismo científico”, e essas foram às sustentações ideológicas do movimento

comunista. A análise materialista da história de Marx, pressupõe a idéia de que as “condições

da produção da vida material” dos homens, condicionam a sua existência social. Por isso, as

classes sociais que detêm o poder sob os meios de produção, a classe dominante, são também,

em todas as épocas, os pensamentos dominantes (MARX; ENGELS, 1989, p. 47). Para o

pensamento de Marx e Engels, o primeiro pressuposto de toda a existência humana e de toda a

história, é de que primeiro os homens necessitam ter condições de viver, para “fazer a

história”, ou seja, beber, comer, morar, vestir-se. O primeiro fato histórico, então, seria a

produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, ou seja, a “produção da vida

material”. E com estes pressupostos, eles baseiam o conceito de “luta de classes”. 6

No entanto, alguns meses mais tarde, o mesmo jornal A Pátria publicava o que seria

os estatutos da nova Federação sindical (a FORJ), numa clara delimitação de fronteiras e

posições anarquistas diante do crescente movimento comunista nas fileiras operárias. Assim,

5 Cf.: (SAMIS, 2002: 275). O jornal A Pátria encontra-se disponível no acervo da Biblioteca Nacional no Rio de

Janeiro. 6 Sobre este “fato histórico”: (MARX; ENGELS, 1989: 22-23). A “luta de classes” é afirmada pelos autores

como sendo uma realidade em todas as sociedades que já existiram e que existem. Assim, o socialismo seria

construído pela “classe dos operários modernos”, os “proletários” das fábricas, os protagonistas da luta contra a

burguesia dominante, justamente por ser ela a classe mais explorada. Ver respectivamente nas páginas: (MARX;

ENGELS, 2007: 45 e 51-52).

os anarquistas ao fundar a nova Federação, em seu preâmbulo, já expressavam claramente os

pontos doutrinários clássicos do sindicalismo de viés anarquista:

“Não somente no Brasil mas universalmente, a luta política e a ação eleitoral vêm

empolgando as organizações trabalhistas, reforçando o Estado e, portanto, o

despotismo dos dominadores, apertando cada vez mais as algemas que prendem as

classes operárias.

Todos os partidos políticos, sem distinção de classes, têm-se infiltrado entre as

massas trabalhadoras, tentando tomar por assalto a direção de suas organizações

para mais facilmente conquistarem altas posições políticas e econômicas,

colocando-se acima e contra as populações e muito especialmente contra as mais

pobres, exploradas e oprimidas.

A politicagem tem destruído todos os sonhos de fraternização proletária, de

federação internacional do proletariado militante, combatendo e destruindo as

organizações que se colocam no verdadeiro campo da ação direta – sem

intermediários e sem diretores, na pugna subversiva tendente a fazer baquear – sem

a organização de Estados políticos, transitórios ou definitivos – o regime de todos

os poderes autoritários de todas as classes dominantes.

Considerando que todos os partidos políticos que surgiram ou surgem entre a

classe burguesa ou entre a classe trabalhadora, são poderosos elementos de

opressão econômica e política do proletariado, pois todos, absolutamente

todos, defendem a todo transe o capitalismo privado ou o capitalismo de Estado

e por consequência o regime do patronato particular ou o patronato

governamental; que todos, absolutamente todos, tendem a conservar o

ignominioso sistema do salariato;” [...].7

Marx propunha que o proletariado utilizasse o domínio político para centralizar todos

os instrumentos de produção nas mãos do Estado – que para ele seria o proletariado

organizado como classe dominante – para construir o comunismo.8 Porém, o teórico

anarquista russo, Bakunin, uma das principais bases teóricas do movimento anarquista, por

sua vez, argumentava que a escravidão política, o Estado, reproduz e conserva a miséria,

como uma condição de sua existência, assim, para destruir a miséria, era preciso destruir o

Estado por meio de uma revolução (BAKUNIN, s.d.: 97). Identificando, assim, o anarquismo

à um “comunismo libertário”.

Para o anarquismo, o governo é o fator da desordem, e só uma sociedade sem governo

poderia restaurar a harmonia social, a ordem natural, baseada sobre a liberdade e a

solidariedade: a Anarquia (GUÉRIN, 1968: 20). Por isso, o anarquista não crê na

emancipação pelo voto, que para ele é um ato de fraqueza, de cumplicidade com a corrupção

do regime da “democracia burguesa”. Com isso, os libertários foram acusados pelos

marxistas, que propõem a tomada do poder pelo proletariado com revolução ou vitórias

7 A Pátria, 06/06/1923 (Apud SAMIS, 2002: 333-334). 8 O que seria a chamada “ditadura do proletariado” Cf.:( MARX; ENGELS, 2007: 66-67).

parlamentares, de serem “abstencionistas”, de se abstraírem da política, enquanto os

“libertários” sempre afirmaram negar a “política burguesa”, propondo outra forma de se fazer

política (GUÉRIN, 1968: 25 e 26).

A partir destes pressupostos, os anarquistas no Brasil – na fonte publicada da

instituição da nova Federação – também mantinham as visões e imagens da luta política

institucional e eleitoreira, que os comunistas não negavam, como uma “politicagem” que

destrói a “fraternização proletária” – mantendo o movimento anarquista que propunha o não

aparelhamento dos sindicatos a partidos políticos dentro deste imaginário, do sonho e ideal da

“fraternidade”. Acusando a infiltração nos meios operários da ação eleitoral de partidos

políticos que acabam reforçando, segundo esta visão, o Estado e os poderes autoritários das

classes dominantes.

Com isso, quando os anarquistas publicam as bases da nova Federação em A Pátria

naquele momento, eles acusavam os comunistas de perpetuarem o capitalismo por proporem

um caminho político que criaria mais uma forma de Estado, e que este novo Estado

administraria o capitalismo – mantendo o regime social autoritário e despótico do “patronato”

e do “salariato”. Essa acusação dos anarquistas pode ser vista com ainda mais contundência se

considerarmos que nessa época, em 1923, muitas notícias do processo social da Rússia

soviética já tinham atingido o Brasil, e já era divulgado o fato da construção de uma espécie

de “capitalismo de Estado” na URSS. Bem como a bolchevização dos conselhos populares, os

sovietes, que tinham se espalhado por todo o país com a revolução, e o autoritarismo

institucional do Partido Comunista russo. Estes são fatos posteriores que manifestaram seus

efeitos mais tarde nos movimentos operários internacionais (FERRO, 1984, p. 62).

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