o imaginÁrio no processo de racializaÇÃo, escravidÃo/aboliÇÃo (1880 – 1900)

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O IMAGINÁRIO NO PROCESSO DE RACIALIZAÇÃO, ESCRAVIDÃO/ABOLIÇÃO

(1880 – 1900)

EMERSON FELICIANO MATHIAS1

Resumo: Este artigo pretende analisar o processo de racismo nas últimas décadas do século

XIX e no pós abolição, através do imaginário da sociedade escravagista, abrangendo política,

religião, cultura, ciência e economia, no contexto social da época. Como o ex escravo passa

de propriedade a um simples “negro”, ou seja, um estorvo para a sociedade que não sabia

lidar com uma nova relação de trabalho e hierarquia perante o ex escravo. Como manter o

negro no seu “lugar”? Este artigo se propõe a analisar este processo de racialização que vigora

em nossa sociedade até os dias atuais.

Nas últimas décadas do século XIX, periódicos utilizavam de temáticas recorrentes

para descrever o escravo, o negro alforriado e o africano. Estereótipos negativos eram

constantemente citados para relacionar o negro a um 'ser inferior' , as ciências propagadas na

Europa sobre a superioridade do homem 'branco', influenciava toda a sociedade escravista. A

escravidão era o alicerce de toda estrutura política e econômica do Brasil colonial, apoiada

juridicamente por leis que a tornavam legítima, ou seja, a escravidão era uma empresa

legalizada e reconhecida pela Igreja, o que dava total direito aos senhores de escravos de fazer

o que bem quisessem com seus escravos. O escravo não era visto como um ser humano

racional, e sim como uma “peça”, uma engrenagem, uma ferramenta nas fazendas ou nos

engenhos, enfim, meramente uma propriedade como outra qualquer.

Para a maior parte dos donos de escravos era auto-evidente a razão das garantias

constitucionais da cidadania não se estenderem aos escravos, que afinal de contas, não

eram cidadãos. (…) quando a Constituição condenou os açoitamentos, a tortura e a

marcação a fogo, “e todas as outras punições cruéis”, e sua declaração de liberdade e

igualdade como “direitos inalienáveis dos homens”, isso foi simplesmente

compreendido como não se aplicando aos escravos. (ANDREWS, 1998)

Scharcwz, em Retrato em branco e preto, relata que no Jornal A Província, as idéias

da nova “ciência”, com suas teorias positivistas e evolucionistas serviam para justificar

qualquer situação ou questão do momento, desde o problema racial, como o político, ou

mesmo as relações com o “belo sexo”.

Devemos ressaltar as revoltas e fugas de escravos que ajudaram nesse imaginário da

1Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Nove de Julho, com o projeto “ Escravidão, abolição

e cidadania em São Paulo (1880-1900), sob orientação da Profª Enidelce Bertin e do Profº Juliano Custódio

Sobrinho.

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racialização, o medo dos senhores de escravos e da sociedade de que ocorresse um “Haiti”2 no

Brasil era enorme. A situação por todo o País era tensa, com muitas contendas entre escravos

e seus senhores, percebe-se a desarticulação da escravidão e seu fim iminente.

Como nos revela o texto de Machado em O Brasil imperial:

V. Excia. Deve saber das contínuas revoltas de escravos que se dão nas Fazendas desta

província e da atitude que os mesmos têm tomado de tempos para cá. As sociedades

libertadoras e abolicionistas crescem de momento a momento e se tornam mais

exigentes e desrespeitosas do legítimo direito da propriedade escrava. Há só nesta

capital para mais de 100 escravos com pecúlios depositados e portanto com sua

liberdade pendente de litígio, e número superior a contado, conforme reclamações que

diariamente recebem em diversas casas particulares ignoradas, já é grande o número

de libertos, que filhos da transição rápida de escravos para não escravos. Querem para

mais gozarem de sua liberdade, viver na mais absoluta ociosidade. Estando as cousas

nesse estado Exmo Sr, têm como justo o fundamento que de um momento para outro

revoltem-se muitos escravos existentes nas diversas Fazendas e que unidos com os

desta Capital e com grande grupo de desordeiros que por ai anda e perturbem a

tranquilidade pública de modo considerável. (MACHADO, 2010: 378)

O termo racialização é empregado por Albuquerque, em O jogo da dissimulação,

onde a autora através de histórias intencionalmente desconexas, nos leva ao “clima”, nos leva

a entender toda a atmosfera política e social da época. Manter a estrutura, a hierarquia sobre o

escravo liberto e sua condição de “senhor”, ou seja, mais do que nunca após a abolição, o

negro deveria saber o seu 'lugar'.

Revoltas e fugas nas últimas duas décadas do século XIX eram frequentes e

preocupavam toda a sociedade escravagista. Para melhor compreensão desse fenômeno

Enidelce Bertin, Machado e Albuquerque, narram histórias isoladas de escravas que através

de artimanhas e rebeldia, tinham um certo conhecimento sobre as leis e tentavam ganhar sua

liberdade, essas histórias nos deixam perceber que existiam redes de informações e ajuda

entre os escravos, e que esses fatos não eram raros e sim corriqueiros no final do século XIX.

(...) Esta negra, Exmo Sr, muito incômodo deu no tempo da extinta Fazenda

Normal ao administrador Vandelli, segundo me informam dois negros que cá

existem e [que] foram desse tempo; estava quase a maior parte do tempo fugida, tem

já esse rico dote por hábito, é má negra na extensão da palavra, atrevida, de má língua,

possuída da liberdade, um precipício (...) a africana nada quer fazer, só o que quer é

comer o feito e estar com o filho nos braços e se apertar por ela alguma coisa fazer,

2Em 1971, uma mobilização composta por escravos, mulatos e ex escravos se uniu com o objetivo de dar fim ao

domínio exercido pela ínfima elite branca que controlava os poderes e instituições políticas do local sob a

atuação do líder negro Toussaint Louverture os escravos conseguiram tomar a colônia e extinguir a ordem

vigente. Três anos mais tarde, quando a França esteve dominada pelas classes populares, o Governo

Metropolitano decidiu acabar com a escravidão em todas as colônias. Disponível em:

<http://www.brasilescola.com/historia-da-america/independencia-haiti.htm> Acesso em: 21 de fev. 2012

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foge, ela já está bem conhecida e por isso ninguém quer arrematar seus serviços,

acha-se grávida de seis para sete meses, que é para o que, segundo me parece tem

serventia, daqui a dois ou três meses deve esperar-se por mais este aborrecimento,

incômodo,despesa e estorvo. (BERTIN, 2011)

Segundo Machado, com a implementação de leis emancipacionistas em torno da

década de 1880, iniciaram-se intervenções públicas no mundo privado dos senhores de

escravos, criando grandes conflagrações de interesses políticos nos distritos cafeeiros. O

crescente desgoverno dos escravos parece ter sugerido às autoridades policiais, que em

situações críticas o mais importante seria defender a ordem pública e não os interesses dos

fazendeiros.

Com a crescente situação de desgoverno os periódicos reforçavam a temática

pejorativa em relação ao negro, seja ele africano, liberto ou escravo. Segundo Eric

Hobsbawm, no texto de Scharcwz, a importância da ciência era tão global e completa que a

descrença em Deus tornou-se relativamente fácil. As novas teorias científicas que

“iluminavam” o pensamento europeu da época, contagiavam o imaginário da sociedade

brasileira através dos jornais. Criou um ideário positivista e evolutivo e passou a dar conta de

diferentes questões que assolavam o País, disputando espaço com a religião e a Igreja, até

então as grandes “fontes” dos discursos fechados e competentes da época.

Eram frequentes os estereótipos anti negros nos periódicos como, negro dependente,

bruto, vadio, ocioso, entre outros. “(…) Era constante inclusive a tentativa de comprovar que

o negro liberto se encontrava em pior situação que o escravo, insistindo assim na sua “natural

dependência” em relação ao branco.” (SCHARCWZ)

Para SCHARCWZ, com o fim da escravidão o elemento negro, escravo ou

recentemente liberto, passa a figurar nos periódicos como o negro violento, das brigas e das

ocorrências polícias, embriagado, ocioso, vagabundo, feiticeiro, o negro primitivo das sessões

científicas, relatado com ironia, das notícias sensacionalistas e misteriosas. Os jornais criavam

contos e mitos, estabelecendo uma dicotomia entre brancos e negros. Sempre cabendo nas

histórias o branco com qualificações de familiaridade e respeito e ao negro imagens que

denigrem sua pessoa e condição.

Assim por exemplo, o conto A última jornada, que saía em 27 de janeiro de 1893 no

Correio, tratava do caso da “encantadora”, menina “Mariquinha Rosa”, filha de um

“conhecido” e “distinto” lavrador da região e que se apaixona por “Manuel Rita”:

“rapaz de cor morena e mulata que eram os seus feitiços” e que começou a estorvá-la

“com ardentes afagos como um namorado querido a bolinar-lhe nos queixos, nas

ancas das mãos...”. O conto termina lamentando a sorte de Mariquinha, que se deixa

“seduzir” pelo mulato, o qual prontamente, após realizados os seus “desejos”, fugiu

sem dar qualquer amparo à pobre “desiludida”. (SCHARCWZ, p. 152)

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Em O jogo da dissimulação, sua autora tem como tema central o estruturalismo da

sociedade escravagista, que através de sua política, economia e cultura criaram símbolos,

verbais e visuais que fortaleceram o imaginário social pejorativamente contra o ex escravo, o

africano, o negro. Com o fim da escravidão, Albuquerque em seu livro nos revela o processo

de racismo dessa massa humana. O ex senhor de escravo, a elite, não poderiam perder seu

lugar na hierarquia, não poderiam perder a alcunha de 'senhor', ou seja, o negro deveria se

manter no seu “lugar”. “(...) esses modos de sentir atravessam as classes, passam a se insinuar

na análise do historiador como elementos constituintes da estrutura mental dos homens de

toda uma época”. (BARROS, 2004)

Segundo Andrews, para reforçar esse imaginário social do escravo submisso e

inferior, a religião era um dos principais baluartes do regime escravista. Os escravos eram

obrigados a servir seus senhores como serviriam a Deus, para que pudessem receber sua

recompensa no outro mundo.

A paixão de cristo parte foi de noite sem dormir, dia sem descansar, e tais são as

vossas noites e vossos dias; cristo despido, e vós despidos: cristo em tudo maltratado,

e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões os açoutes, as chagas, os nomes

afrontosos, de tudo isso se compões vossa imitação, ou se for acompanhada de

paciência, também terá merecimento de martírio (…) e que cousa há na confusão

deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer desses vossos engenhos?3 (PE.

ANTÔNIO VIEIRA)

Com esse cenário, onde a religião, a ciência e a política tinham papel preponderante

na opinião e na vida de toda população, sendo ela de escravos, ex escravos, africanos, brancos

pobres, senhores de escravos e a elite. Podemos analisar o contexto destas informações e das

mudanças sociais que se estabeleciam no Brasil e na mentalidade de todos. Lembrando que

grande parte da população não sabia ler, e não tinha acesso a todas informações, portanto,

toda informação chegava ao “resto” da população pobre, entre eles, brancos, negros livres,

africanos e alforriados de uma forma como a “elite” queria que chegasse, ou seja, carregada

de estereótipos negativos e racistas. “(...) O imaginário mostra-se dessa forma uma dimensão

tão significativa das sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é encarado como

a realidade efetiva.” (BARROS, 2004)

Para MACHADO (2010), haviam revoltas de escravos em que esses puniam o

administrador da fazenda ou o capataz e depois se entregavam a polícia, provando um certo

3Alfredo, Bosi. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 173-4.

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conhecimento da lei. Para manter o poder senhorial sobre sua propriedade e não passar

humilhação diante da sociedade, muitos senhores inocentavam seus escravos para depois

puni-los exemplarmente, ou seja, única forma que esses senhores podiam considerar capaz de

tamanha inversão da ordem.

O trecho de um sargento revela a covardia de um senhor de escravo. Seria um fato

raro?

Hoje a uma hora da madrugada fiz seguir uma escolta forte de dez homens,

comandada pelo sargento aqui destacado, em socorro do fazendeiro Francisco

Cardoso, no bairro do Jardim, deste termo, voltaram às onze horas trazendo presos

nove dos chefes da insurreição de escravos de Cardoso ficando todos acomodados,

digo ficando o resto dos escravos acomodados sem que houvesse nenhum incidente na

diligência, porém como todo tirano é covarde, Cardoso que tremia de medo vendo que

onze sabres saltaram da bainha em seu auxílio, tornou-se um valentão e quer dilacerar

os escravos... (MACHADO, 2010: 385)

Diversas pesquisas e historiadores como, Machado, Andrews, Scharcwz,

Albuquerque e Bertin, revelam que fatos como esses não eram raros, o medo dos senhores de

escravos nas últimas décadas do XIX, levavam a sociedade escravista cada vez mais criar

estereótipos anti negros e racistas que perduram até hoje

(…) buscando a explicação do idílio racial no Brasil, documentaram em vez disso uma

forte desigualdade racial e uma ampla difusão de atitudes e estereótipos anti negros.

(…) novo trabalho realizado nas décadas de 1970 1980 foi ainda mais crítico das

realidades raciais brasileiras, algumas delas chegando ao ponto de caracterizar o Brasil

como uma África do Sul sem apartheid4 (ANDREWS, 1988: 22)

4Para sumários úteis da produção sobre as relações raciais no Brasil, ver o ensaio de Emília Viotti da Costa “The

Myth of racial Democracy: A Legacy of the Empire”, em seu The Brazilian Empire: Miths and Histories

(CHICAGO, 1985); Thomas E. Skidmore, “Race and Class in Brazil Historical Perspectives”, em Pierre-

Michel Fontaine, ed., Race, Class and Power in Brazil ( LOS ANGELES, 1985); e Pierre-Michel Fontaine,

“Research in the Political Economy of Afro-Latin America”, Latin American Research Review 12, 1 (1980),

pp. 111-141. A obra da geração de críticos pós-1970 está amplamente discutida no capítulo 6. Comparações

da situação racial do Brasil com aquela da África do Sul parecem ter se originado, e não ainda muito

frequentemente ouvidas, entre os mais militantes dos ativistas negros pós 1950, discutidos no capítulo 7. Ver,

por exemplo, a análise de Abdias do Nascimento da “democracia racial” brasileira como a “versão sul-

americana da União Sul-Africana...O apartheid é uma política que é separada, mas igual, a 'democracia racial'

no Brasil.” O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado (RIO DE JANEIRO, 1978),

p.87. Nos últimos anos, porém as comparações Brasil-África do Sul passaram a integrar um discurso político

mais amplamente aceito, particularmente pela Esquerda. O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro compara

os sistemas raciais dos dois países em “Racismo à brasileira”, Folha de São Paulo (12 de dezembro de 1984),

p. 23: em “Joana e o paraíso da opressão”, Folha de São Paulo (23 de setembro de 1984), e em “Cem anos de

solidão”, Caderno B, Jornal do Brasil (8 de maio de 1988), p. 8, onde descreve a situação brasileira como

apartheid implícito” e “apartheid não escrito”. Luís Inácio “Lula” da Silva, líder do partido dos

Trabalhadores, que obteve 47 por cento dos votos nacionais nas eleições presidenciais de 1989, também

comenta as similaridades entre o apartheid e o sistema brasileiro de relações raciais: “Não se trata de um

apartheid de direito, enquanto instituição filosófica, jurídica e sócio-econômica, embasada em princípios

teóricos e na legislação. Mas é um apartheid de fato, no sentido político, enquanto representa a supremacia

de uma elite dominante, branca, para a qual existe uma correlação entre a cor da pele e as possibilidades de

acesso aos direitos e ao poder.” Luís Inácio “Lula” da Silva, “A mistificação da democracia racial”, Folha de

São Paulo (16 de fevereiro de 1988), p. 3.

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No dia 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, se

formalizou oficialmente o fim da escravidão. Fazendeiros de café em São Paulo se

congratularam por terem antecipado a libertação de seus escravos, sem a intervenção do poder

público. Um ano após a abolição a Monarquia perde seu lugar para a República, fazendeiros

oligarcas e a elite se beneficiaram com esse regime. A República era o regime dos fazendeiros

que mantinham o controle sobre o Estado e a política nacional, eram ex senhores de escravos,

portanto, a estrutura social perante o negro seguia a mesma.

O movimento republicano acabou impondo, com a queda da Monarquia, o

presidencialismo, o federalismo e a ampliação do regime representativo. Ao limitar,

entretanto, o direito do voto ao alfabetizado, marginalizou ampla camada do povo,

pois sabemos que, no final da década de 1920, 80% da população brasileira vivia no

campo, onde dominava o analfabetismo. (CASALECCHI, 1987: 11-12)

Portanto, o negro foi relegado ao segundo plano na primeira República, não era um

cidadão com plenos direitos civis e políticos. Essa tendência em se tratar o “negro” pelo

Estado foi uma política recorrente. Outra política praticada foi a imigração de estrangeiros

para substituir os ex escravos nas fazendas de café paulistas, a política racista do

“embranquecimento” da população. Fatos esses que merecem referência para elucidarmos o

processo de racialização que discutimos nesse artigo.

“A verdade é que a Província de São Paulo, pela iniciativa particular de seus filhos,

vai tomando tanto incremento que tudo quanto faz aparece e brilha e a sua iniciativa

oferece evidente contraste com a inércia de outras províncias, onde não penetrou ainda

a clara visão do problema de transformação do trabalho. Daqui vem que os paulistas

manifestam, pelo seu espírito audaz, empreendedor e transformista, uma acentuada

confiança no futuro, preparando-se para recebê-lo sem temores, enquanto outros se

consagram à rotina do passado e às tristes preocupações do presente, sem associar-se a

uma só das idéias triunfantes do nosso tempo.”5 (CASALECCHI, 1987: 18)

Vejo aqui a necessidade de novas pesquisas e análises mais profundas sobre

substituição do negro pelo lavrador estrangeiro e branco e a política de “embranquecimento”.

Voltando ao nosso tema, o racismo foi enraizado no imaginário brasileiro de uma

forma silenciosa e perigosa. Em todas sociedades do mundo, da mais antiga civilização até a

nossa, houve uma escravidão com esses aspectos, ou seja, meramente econômica e política,

mas com apoio de uma ciência evolucionista que propagava a superioridade do homem

5 Discurso de Antonio Prado, do Partido Conservador, na Associação Provincial em 1882, ao propor projeto

favorável à imigração. Ver Prado, Nazaré, Antonio Prado no Império e na República, Rio de Janeiro, F. Briguiet,

1929, p. 163.

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branco europeu e a inferioridade biológica do africano, do negro. Reforçada pela Igreja que

legitimava essa superioridade do homem branco, culto, civilizado e inteligente, perante o

negro africano primitivo, bárbaro, inferior. O homem civilizado tinha o direito de escravizá-lo

e educá-lo na sua religião e dentro de suas leis “civilizadas”. Tinha o direito e o dever divino

de levar esse homem bruto, ignorante, primitivo e bárbaro rumo a “civilização e o progresso.”

Vemos nesse processo de racismo elementos racionais e irracionais, o homem branco

europeu acreditava na ciência, nas leis (política) e na religião, portanto em Deus, que

realmente era superior a todas as raças fora da Europa e que isso legitimava suas ações

perante o negro africano, e portanto, o escravo trazido para o Brasil para ele não passava de

um ser inferior, irracional e parte integrante de sua politica econômica, ou seja, uma

mercadoria como outra qualquer. “(...) o imaginário como um sistema ou universo complexo e

interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais, mentais e verbais,

incorporando sistemas simbólicos e atuando na construção de representações diversas.”

(BARROS, 2004)

Um fato muito importante não pode ser deixado de lado, nos meses que se seguiram

a abolição, José do Patrocínio criou a Guarda Negra para defender “supostamente” a família

imperial dos ex proprietários de terras insatisfeitos com a abolição, alistou ex escravos e

costumava invadir reuniões de republicanos com violência. Segundo ANDREWS (1998), o

jornal A Província dizia que a luta era entre negros libertos monarquistas e brancos

republicanos, e que cada gota de sangue branco que caísse mancharia o governo. Não se

tratava mais de propaganda republicana e sim do bem estar da sociedade, da moral e da

supremacia da raça branca.

Novamente vemos nitidamente a ideologia da superioridade racial apoiada pela

ciência e tão propagada por todo o século XIX. O parágrafo acima foi citado para mostrar que

atualmente essa situação separatista entre negros e brancos não se alterou muito.

Em Negros e brancos em São Paulo, o autor nos relata:

(…) é um país em que – ao contrário da África do Sul ou do sul norte americano

segregacionista – a desigualdade racial, pelo menos no século XX, não tem sido

imposta pela força da lei. Está não é uma distinção corriqueira. Quando a

discriminação racial é prescrita pela lei, ela opera de uma maneira muito mais rígida e

inflexível que nas sociedades em que ela é informal e depende da vontade do

indivíduo. (ANDREWS, 1998: 23)

No Brasil republicano pós abolição o racismo começou a ser “velado”, pois com o

fim da escravidão que era uma empresa legitimada por lei, o ex escravo, o negro

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juridicamente não era mais uma propriedade, era um cidadão, mesmo com todas as limitações

impostas por sua condição de recém liberto. Como lidar com esse ex escravo? A elite, os ex

senhores de escravos passam a ter ao seu lado apenas o imaginário de sua superioridade

científica perante o negro, pois a política, a religião (Igreja), já não corroboravam com os

ideais da empresa escravagista. Mas as ideias fixadas por um longo imaginário6 não se

dissipam assim em pouco tempo.

O racismo não pode ser combatido quando não se tem um corpo, uma instituição, ou

seja, ele opera de uma maneira inconsistente e imprevisível e nem sempre é identificável

como tal.

A História do imaginário estuda essencialmente as imagens produzidas por uma

sociedade, mas não apenas as imagens visuais, como também as imagens verbais e em

última instância, as imagens mentais. O imaginário será aqui visto como uma

realidade tão presente quanto aquilo que poderíamos chamar de 'vida concreta'. Essa

perspectiva sustenta-se na ideia de que o imaginário é também reestruturante em

relação a sociedade que o produz. (BARROS, 2004)

Retomando alguns fatores importantes no processo de racialização, para

ALBUQUERQUE (2009), a elite branca via por toda parte a ameaça da anarquia, notícias

vindas da Europa criavam esse medo na sociedade escravagista. Alguns temiam até a divisão

de suas terras, e o fim das normas de convívio social e da autoridade senhorial. O fim da

escravidão representou muito mais que a perda de sua propriedade, os senhores de terra e

escravos perderam também suas referências de identidade perante seus cativos.

Qual a maneira de manter sua superioridade, sua hierarquia diante do ex escravo que

era sua propriedade e passou a ser cidadão livre? O texto abaixo responde essa pergunta:

A racialização foi, a um só tempo, o sinal mais evidente da decadência do escravismo

e da arrojada tentativa de garantir que o edifício social montado durante a escravidão

fosse preservado, mantendo-se privilégios, demarcando-se fronteiras e recompondo

antigos territórios. Como bem disse o jornalista do recôncavo no dia 13 de maio de

1888, era preciso preservar a palavra “senhor”. (ALBUQUERQUE, 2009: 243)

6A História do Imaginário, por seu turno, traz a primeiro plano certos padrões de representação, certas potências

da imaginação que se concretizam em imagens visuais, verbais ou mentais, mas que não necessariamente se

formam em processos de longa duração (embora isto possa acontecer). O Imaginário, conforme se salientou,

pode ser objeto de uma arquitetura política, ser interferido por ela – pode ser gerado rapidamente sob

determinadas circunstâncias, pode ainda ser produzido a partir da representação artística e gerar suas próprias

conexões. O Imaginário nem sempre surgirá como uma dimensão coletiva (embora isso possa ocorrer), o que

já se dá necessariamente com aquilo que foi chamado de Mentalidades pelos historiadores que acreditam na

possibilidade de identificar um substrato comum entre os homens de uma mesma época, ou pelo menos de

um mesmo setor da sociedade. BARROS, José D. O Campo da História – Especialidades e Abordagens,

Petrópolis: Vozes, 2004.

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Segundo ANDREWS (1998), politicamente após a abolição, os negros viram na

Monarquia um poder benevolente que libertou mães escravas em 1871, os sexagenários em

1886 e por fim, toda a população escrava em 1888. Os negros recém libertos não estavam

seguros com os fazendeiros e ex senhores, e sabiam que eles não tinham interesse em seu bem

estar. Muito pelo contrário, muitos ex senhores de escravos não estavam dispostos a

abandonar a distinção de cor e raça que os separava da maioria dos brasileiros. “(...) A

escravidão foi a grande mazela brasileira, os ex escravizados continuavam a ser meras peças

manipuláveis do mecanismo que alimentou as relações escravistas.” (ALBUQUERQUE,

2009: 185)

Um fator muito importante para entendermos esse complexo processo de racismo

brasileiro é analisado em Negros e brancos em São Paulo. “(...) como observou o cientista

político Stanley Greenberg, os dois campos teóricos na verdade compartilham a crença de

que, a longo prazo, o desenvolvimento capitalista vai tender a destruir as identidades baseadas

na raça e na etnicidade e substituí-las pelas categorias mais modernas de classe e cidadania.”

( ANDREWS, 1998: 34)

Infelizmente não é o que vemos no século XX, a história oferece pouco subsídio para

essa ideia de Stanley. As diferenças raciais e étnicas continuam a surgir por todo o mundo

como vemos nos Estados Unidos, Europa, Oriente Médio e Ásia. “(...) O status racial superior

pode ser usado por um grupo de trabalhadores para competir (…) Os empregadores podem

explorar as divisões raciais ou étnicas dentro da força de trabalho para reduzir suas despesas

salariais ou para frustar esforços, a organização e a barganha coletiva de seus trabalhadores.”

(ANDREWS, 1998: 34-35)

Como vemos os resultados dessas pesquisas atuais são reflexos de um pós abolição

onde não se levou em conta grande parte da população, entre eles ex escravos, africanos,

mulatos e brancos pobres. Com a República sendo instaurada logo após a abolição, a elite se

viu em um “redemoinho” político e social, onde seu principal interesse era o de manter seu

poder e sua influência política na nova República. Vemos esse total desinteresse pela maioria

da população na Constituição de 1891, onde foi negado o direito de voto aos analfabetos,

além de outras leis de exclusão social que propiciaram o surgimento de políticas raciais e de

exclusão. Fato que já ocorria muito antes da abolição e da República. “(…) em 1877, a

habilidade do Ministério da Justiça para atrair imigrantes europeus e afastar africanos e

asiáticos explica que por dentro do projeto emancipacionista corria de modo velado,

subterrâneo, uma forma de se pensar as relações sociais a partir de uma noção racial.”

(ALBUQUERQUE, 2009: 75)

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Scharcwz, em Imagens, personagens e representações: O “negro” nos jornais,

analisou e reproduziu vários textos com fortes tendências e temáticas recorrentes, com a

mesma retórica, sempre com estereótipos negativos anti negros. Criando contos e histórias

sobre o negro sempre mostrando-o como vadio, sensual, violento, ébrio, feiticeiro,

dependente, sujo, primitivo, entre outros não menos desabonadores.

O exemplum é um relato breve, apresentado como verídico e destinado a inserir-se

num discurso (em geral um sermão) para convencer um auditório por meio duma lição

salutar. A História é breve, fácil de reter; convence. Faz uso da retórica e dos efeitos

de narrativa; impressiona. Divertida ou, mais frequentemente, assustadora, dramatiza.

(…) Trata-se apenas dum esquema, a partir do qual o pregador enfeita a narração.(LE

GOFF, 1986: 13)

Enfim, o processo de racialização é muito complexo e requer muitas pesquisas na

área, porém fica claro que não é somente uma questão puramente racial, apesar de ser um

fator preponderante dentro da história da escravidão/abolição brasileira. Vemos interesses

políticos, econômicos e sociais constituídos e criados dentro de uma estrutura que foram

transmitidas por fatores mundiais, principalmente vindos da Europa. O etnocentrismo

europeu, as ideias da “nova” ciência, as grandes Revoluções (Francesa e Industrial), a Igreja,

a economia e a política. Tudo contribuiu para esse racismo “velado” que vemos hoje em nossa

sociedade que leva a maioria da população à exclusão social.

“A desigualdade social, econômica e política na sociedade brasileira chegou a tal grau

que se torna incompatível com a democratização da sociedade. Por decorrência, tem se

falado na existência da apartação social. No Brasil a discriminação é econômica,

cultural e política, além de étnica. Este processo deve ser entendido como exclusão,

isto é, uma impossibilidade de poder partilhar o que leva à vivência da privação, da

recusa, do abandono e da expulsão inclusive, com violência, de um conjunto

significativo da população, por isso, uma exclusão social e não pessoal. Não se trata de

um processo individual, embora atinja pessoas, mas de uma lógica que está presente

nas várias formas de relações econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade

brasileira. Esta situação de privação coletiva é que se está entendendo por exclusão

social. Ela inclui pobreza, discriminação, subalternidade, não eqüidade, não

acessibilidade, não representação pública.” (WANDERLEY, 2001: 20)

O título do texto de Machado em O Brasil Imperial, dito por um delegado no século

XIX, não poderia ser mais profético quanto ao quadro atual de nossa sociedade:

“Teremos grandes desastres, se não houver providências enérgicas e

imediatas”: a rebeldia dos escravos e a abolição da escravidão.

Continuamos aguardando “pacientemente” por essas providências...

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BIBLIOGRAFIA

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