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RESPEITABILIDADE, RACIALIZAÇÃO E SILÊNCIOS NAS EXPERIÊNCIAS DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL REPÚBLICA (1895-1920) Luara dos Santos Silva 1 Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGH-UFF) [email protected] Introdução Pretendo discutir representações e experiências cotidianas de mulheres negras na cidade do Rio de Janeiro entre 1895 e 1920. Tendo por fontes publicações da imprensa, produções literárias e (pseudo) científicas, fragmentos das trajetórias de mulheres negras letradas e documentos oficiais da Instrução Pública, procuro problematizar os sentidos sociais dos usos e silêncios em torno dos rótulos raciais nas experiências femininas. Em algumas publicações da imprensa as mulheres negras são rotuladas ora como “mulatas” ora como “mulheres de côr”, ao mesmo tempo em que impera o silêncio a esse respeito. Publicações de cunho literário, (pseudo) científicas e filosóficas também recorriam intensamente ao uso de rótulos raciais, reforçando estereótipos e visões hierarquizadas a respeito da população negra e em especial das mulheres. O recorte cronológico em questão corresponde a dois tempos históricos simultâneos, mas que nem sempre estiveram associados na historiografia: o pós- abolição e a Primeira República. Os estudos sobre a dita “República Velha” cristalizaram narrativas e análises históricas onde as elites oligárquicas, os coronéis, o clientelismo e a completa exclusão popular são as principais marcas do período. Uma “república que não foi”, segundo o pesquisador José Murilo de Carvalho (2000), marcada pela inexistência da cidadania, visto que a maioria da população não participava do sistema eleitoral oficial e não tinha suas demandas atendidas pelas autoridades políticas, exceto sob a forma do “clientelismo”. Carvalho também defende a perspectiva de que o governo republicano representou não os interesses do povo, mas os 1 Doutoranda em História Social, bolsista CNPQ.

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RESPEITABILIDADE, RACIALIZAÇÃO E SILÊNCIOS NAS EXPERIÊNCIAS

DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL REPÚBLICA (1895-1920)

Luara dos Santos Silva1

Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História Social

(PPGH-UFF)

[email protected]

Introdução

Pretendo discutir representações e experiências cotidianas de mulheres negras na

cidade do Rio de Janeiro entre 1895 e 1920. Tendo por fontes publicações da imprensa,

produções literárias e (pseudo) científicas, fragmentos das trajetórias de mulheres

negras letradas e documentos oficiais da Instrução Pública, procuro problematizar os

sentidos sociais dos usos e silêncios em torno dos rótulos raciais nas experiências

femininas. Em algumas publicações da imprensa as mulheres negras são rotuladas ora

como “mulatas” ora como “mulheres de côr”, ao mesmo tempo em que impera o

silêncio a esse respeito. Publicações de cunho literário, (pseudo) científicas e filosóficas

também recorriam intensamente ao uso de rótulos raciais, reforçando estereótipos e

visões hierarquizadas a respeito da população negra e em especial das mulheres.

O recorte cronológico em questão corresponde a dois tempos históricos

simultâneos, mas que nem sempre estiveram associados na historiografia: o pós-

abolição e a Primeira República. Os estudos sobre a dita “República Velha”

cristalizaram narrativas e análises históricas onde as elites oligárquicas, os coronéis, o

clientelismo e a completa exclusão popular são as principais marcas do período. Uma

“república que não foi”, segundo o pesquisador José Murilo de Carvalho (2000),

marcada pela inexistência da cidadania, visto que a maioria da população não

participava do sistema eleitoral oficial e não tinha suas demandas atendidas pelas

autoridades políticas, exceto sob a forma do “clientelismo”. Carvalho também defende a

perspectiva de que o governo republicano representou não os interesses do povo, mas os

1 Doutoranda em História Social, bolsista CNPQ.

das principais oligarquias do país. Outras pesquisas do campo vêm mostrando que o

período é muito mais amplo do que sugere a chave de leitura da “República que não

foi”.

Para trazer à tona “aquilo que foi” ou “as tentativas para que fosse”, é preciso

investigar as experiências dos sujeitos para além das esferas da política oficial,

alargando os entendimentos e definições sobre esse campo. Neste sentido, Hebe Mattos

defende que esse contexto oligárquico esteve repleto de disputas coronelísticas e de

cunho ideológico, colocando em xeque a pretensa unidade de objetivos entre as

principais oligarquias do período, Rio e São Paulo. Isto é, o cenário político da Primeira

República envolveu muito mais uma gama de conflitos e disputas do que efetiva

unidade entre os “mandantes do poder”. Propostas de reforma eleitoral, que incluíam o

voto secreto e o de analfabetos, por exemplo, estiveram em pauta a despeito de terem

sido derrotadas (MATTOS, 2012).

Esse também é o tempo histórico do pós-abolição, marcado na historiografia de

maneira contundente pelo paradigma da “anomia negra”. Para alguns estudiosos das

relações raciais, entre eles Florestan Fernandes e Roger Bastides, fatores como a

exclusão social, a violência material e simbólica seriam “heranças da escravidão” que

determinariam a vida de grande parte da população negra no pós-abolição. Assim, a

“anomia do escravo sem desejos e nem vontades”, “sem família” e “deformado pela

escravidão” e a “desorganização social” das populações negras no pós-abolição estariam

diretamente vinculados. Uma situação de “patologia social” que levava os negros à

“incapacidade” de se integrarem à nova ordem social capitalista (FERNANDES, 2007).

Em “Memórias do Cativeiro”, Hebe Mattos e Ana Lugão (2005) defendem a

importância da construção de leituras críticas a esse paradigma que nos permitam

descortinar os sujeitos para além do “escravo coisa”, o negro para além da “anomia”.

Encarando, assim, os livres, libertos e seus descendentes enquanto agentes históricos. A

partir dessas perspectivas decorrem outras como as “possibilidades de negociação”,

“resistência e revolta”, “formação e reconstituição familiar”, “produção de cultura”,

vêm sendo construídas. 2

Os anos iniciais da Primeira República foram palco de intensas transformações

políticas, urbanas, culturais e sociais. Nesse contexto estava também em curso uma

“reestruturação da arquitetura social”, conforme aponta a historiadora Wlamyra

Albuquerque. Isto significa dizer que havia uma “dubiedade entre a ruptura das relações

escravistas e forte empenho pela continuidade das hierarquias”. (2012, p.98). No

contexto da chamada Belle Èpoque3 carioca, muitos homens negros se lançaram na

empreitada de fazer valer seu status de cidadão e o direito de serem devidamente

reconhecidos como iguais. Em termos concretos, essa igualdade significava para tais

homens o reconhecimento público de sua cidadania, de seus talentos e saberes para além

dos rótulos raciais que lhes eram pejorativamente conferidos.

Algumas das atuais pesquisas sobre o os anos finais do regime escravista e o

imediato pós-abolição carioca têm construído análises a partir das experiências de

figuras masculinas pertencentes aos círculos letrados. Em suas experiências individuais

e coletivas homens como José do Patrocínio, André Rebouças, Hemetério dos Santos,

Monteiro Lopes, dentre outros, empreenderam ações antiescravistas e antirracistas,

buscaram participar da política oficial, atuaram na vida pública de cidades como Rio de

Janeiro e São Paulo.4 Vozes masculinas que se projetaram na esfera pública,

2 Nesse grupo se inserem os estudos realizados por Robert Slenes, Flávio Gomes, Sidney Chalhoub e

Maria Helena Capelato, dentre outros, que também buscaram construir novas interpretações acerca do

pós-abolição, defendendo o postulado da “agência negra”.

3 Período histórico em que as autoridades da cidade e os intelectuais investiram seus esforços na

construção de uma cidade “civilizada”, “moderna” e européia. E que também incluiu uma vida intelectual

ativa, onde alguns homens buscaram se organizar em círculos literários, escrevendo e publicando artigos

em jornais pequenos e famosos. VER mais em: CHALLOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da “Belle Époque”. 2ª edição – Campinas, SP: Editora da

Unicamp, 2001. E em VELLOSO, Mônica. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de

Janeiro: Funarte, 1988.

4 DANTAS, Carolina Vianna. Manoel da Motta Monteiro Lopes, um deputado negro na I República.

Programa Nacional de Apoio à Pesquisa FBN/Minc, 2008; PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de

liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas/SP: Editora Unicamp,

2018; SILVA, Luara dos Santos. Etymologias, preto: Hemetério José dos Santos e as questões raciais de

seu tempo (1888-1920). 165f. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-

Raciais – CEFET/RJ, 2015.

conquistando visibilidade e algum reconhecimento dentro dos círculos prestigiados dos

quais faziam parte. Mas, onde estavam as mulheres negras que eram irmãs, esposas,

mães, filhas, sobrinhas desses homens? O que falavam ou por que se calavam?

Representações, discursos e a (des) construção de estereótipos raciais e de gênero

Em 1890 o intelectual José Veríssimo, um dos fundadores da Academia

Brasileira de Letras, publicou a primeira edição da obra “A educação nacional” (com

posterior edição em 1906). Nela o intelectual discutia questões sobre formação e

identidade nacional, discorrendo sobre a importância da educação nesses processos. Em

tempos de pleno vigor das teorias raciais (SCHWARCZ, 1993) e de expectativas diante

do recém-instaurado regime republicano, Veríssimo ecoava as teses de que a despeito

de pretensas deformidades hereditárias a educação seria o meio de saná-las e possibilitar

à nação alcançar o almejado progresso. Segundo ele:

Nunca se notou bastante a depravada influência deste peculiar tipo brasileiro, a mulata, no amolecimento do nosso caráter. ‘Esse

fermento afrodisíaco pátrio', como lhe chama o dr. Sylvio Romero, foi

um dissolvente da nossa virilidade física e moral. (...) [grifos meus] (VERÍSSIMO, 1890, pp. 34-35

Veríssimo contrapõe a sua visão pessimista sobre a “mulata” aos “elogios” feitos

em canções e poemas populares onde esse “tipo brasileiro” é celebrado em seus

“encantos”, “volúpia”, “magia”, “luxúria”, “feitiços”, “faceirice”, “desejosa” e

“sensual”. Para o autor há oposição de ideias, visto que todos os atributos salientados

lhes soavam elogiosos – e certamente o mesmo ocorria aos que entoavam tais canções e

poemas. Não há oposição e, sim, duas facetas de um mesmo processo que racializa e

sexualiza o corpo de mulheres de descendência negra. O mesmo pode-se dizer em

relação às publicações feitas pelo médico Nina Rodrigues, discutindo a questão racial

no Brasil sob as perspectivas de “raças superiores” e “inferiores”. Para ele seria

frequente “(...) entre pessoas da raça negra a sensualidade tomar um aspecto

francamente patológico, ou pelo menos de degenerescência manifesta.” (RODRIGUES,

2008, p.44). Em estudo sobre as relações entre raça, gênero e criminologia, a

pesquisadora Naila Franklin analisa a atuação de Nina Rodrigues na legitimação de

estereótipos raciais e a desqualificação das mulheres negras (“mulatas”, “mestiças”,

“quase brancas”) em casos de violência sexual. Segundo a pesquisadora, ao reforçar que

a constituição genital das mulheres negras se assemelharia aos casos de himens

rompidos ele ajudava a desqualificar as denúncias feitas por meninas e mulheres

defloradas (2017, p.123).

Na literatura também são fartas as imagens construídas acerca das mulheres

negras, ressaltando diferenças entre “negras” e “mestiças”/ “mulatas”, porém

racializando e sexualizando todas aquelas que não fossem brancas. A historiadora

Giovana Xavier analisa alguns dos principais estereótipos construídos acerca da mulher

negra escravizada na literatura dos oitocentos. Segundo ela,

(...) suas imagens foram utilizadas por diferentes escritores como

metáfora da patologia, da corrupção e do primitivismo, configurando

o corpo feminino negro como doente e, portanto, nocivo à saúde de uma nação em construção. (...) É dentro desse contexto que nasceram

tipologias literárias como as da bela mulata, da crioula feia, da

escrava fiel, da preta resignada, da mucama sapeca ou ainda da

mestiça virtuosa. [grifos da autora] (XAVIER, 2012, p.67)

Duas dessas “tipologias literárias” analisadas por Xavier são a “preta

quitandeira” Bertoleza e a “mulata lavadeira” Rita Baiana, personagens de “O Cortiço”

(1890). Através de diversos “tipos” residentes na capital republicana, o autor Aluísio de

Azevedo constrói perspectivas onde raça e pobreza são mescladas e representadas como

sinônimos da patologização das classes subalternas. A escrava Bertoleza representa a

“crioula trintona”, “sempre suja e tisnada”, que exercia trabalhos braçais pesados e que

confiava cegamente em homens brancos com os quais se relacionava porque “(...) não

queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à

sua” (AZEVEDO, 1890, p.02). Já a “mulata” Rita Baiana, representa a mulher capaz de

abandonar todos os compromissos por noites de festa e bebida e ser aquela que “(...)

respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas.”

(1890, p.29). A oposição entre as duas personagens é aparente, pois ambas são

racializadas ainda que de maneiras ligeiramente distintas: Bertoleza é construída

enquanto uma personagem extremamente crédula e com pouca capacidade intelectual;

Rita Baiana, astuta, é movida pelo desejo e o prazer de desfrutar de uma boa música,

bebidas e amantes.

As publicações da imprensa eram outro lócus de construção e consolidação de

estereótipos raciais e de gênero. Em anúncios de produtos capilares e para a pele

localizei duas situações aparentemente opostas, mas que se complementam: de um lado

uma infinidade de anúncios onde beleza, suavidade e brancura estavam diretamente

vinculados; de outro, produtos que prometiam resolver os problemas “até mesmo das

pessoas de cor”. É o caso dos produtos Lugolina, Lysodor e Pilofero, anunciados em

jornais e revistas entre os anos de 1895 e 1930.

Vendida a 3$000, a Lugolina era um produto que prometia resolver o problema

do “suor fétido dos pés e do sovaco” que “Não somente as pessoas de côr costumam

sofrer desse suor no sovaco, mas também as pessoas brancas muitas vezes o sofrem.

Esse mal é às vezes tão persistente que resiste à maior limpeza.” (Gazeta de Notícias,

1900, p.06), (grifos meus). O Lysodor, dos quais localizei cerca de quinhentos anúncios

entre os anos de 1916 e 1935, também ao preço de 3$000, prometia um alisamento “por

mais encrespados ou ondulados” que os cabelos fossem. Prometia igualmente um bom

resultado e cabelos lisos “até mesmo em pessoas de côr!” (grifos meus). O Pilofero era

anunciado como uma “assombrosa descoberta”, dominação da natureza pela ciência e a

grande revolução: “Não há mais cabelos crespos (pixaim). Não se distingue mais as

pessoas de côr pelos cabelos. Use o Pilofero!”. Adjetivos como “crespo”, “pixaim” e

“encarapinhado” eram utilizados para qualificar os cabelos de pessoas negras que

seriam positivamente modificados em “cabelos lisos e sedosos” graças às intervenções

químicas.

Entre 26 de janeiro e 25 de fevereiro do ano de 1922 foram publicados dez

anúncios desse produto no jornal A Noite, todos com o mesmo texto transcrito linhas

acima. Em 11 de fevereiro daquele ano o anúncio sobre a “assombrosa descoberta” veio

acompanhado de uma ilustração onde não se via homem ou mulher, mas sim uma figura

animalesca e com a cor preta:

Jornal A Noite, 11/02/1922, p.05.

O “outro” lado dessa história diz respeito aos diversos anúncios de produtos

estéticos voltados para pele e cabelo onde não havia racialização, mas, sim, a ênfase em

figuras de mulheres brancas e aburguesadas remetendo às qualidades positivas como

beleza e higiene. Dentre os inúmeros produtos voltados à “cútis” feminina, aqueles

publicados em revistas ilustradas como O Malho, Fon-Fon! e Careta são os mais

reveladores da associação direta entre brancura e boas qualidades físicas e

comportamentais. Em um desses anúncios, publicado por Careta em 25 de fevereiro de

1922, a mensagem é direta:

Ter uma cútis branca, fresca e delicada, significa possuir o fator fundamental da beleza feminina, porque em rigor da verdade, não há

nada que possa trazer ao rosto maior somma de atractivos physicos.

(Revista Careta, 25/02/1922, p.11)

O anúncio fala ainda sobre suas três variedades que se dirigiam às mulheres

“claras de pouca cor”, para as loiras e, na cor creme, o “especial para as morenas”. É

bastante provável que esta última variedade fosse voltada às moças pardas/ “mulatas”,

mas de modo geral a mensagem transmitida por texto e imagem (uma mulher branca

aparentando ter olhos claros) é a de que “beleza” seria sinônimo de brancura ou o mais

próximo que se chegasse dela.

Ainda em 1922 é possível localizar anúncio semelhante publicado na revista O

Malho: “Cutisol Reis, produto scientífico”. O produto, cuja eficácia seria garantida

pelos “mais notáveis professores da Faculdade de Medicina”, proporcionaria a extinção

de sardas, espinhas e manchas, fazendo “a pele feia ficar chic e mimosa e a velha ficar

nova e bela”, clareando a cútis e realçando a beleza:

Revista O Malho, ano XXI, n.1.027, 20-05-1922, p.51.

Mulheres brancas eram apenas “mulheres”, enquanto as mulheres

pretas/pardas/mulatas/morenas eram “de cor”. Assim, a raça era conferida a estas

últimas e não às primeiras – entendidas como “universais”. Outra questão importante é

o fato de que os produtos capilares voltados de maneira genérica “às pessoas de côr”,

não faziam distinção entre homens e mulheres, sem qualquer preocupação em atender às

especificidades de mulheres negras – ao contrário do que vemos nos inúmeros anúncios

onde figuravam mulheres brancas. Mulheres negras pertenceriam à categoria das

“pessoas de côr”, por vezes negligenciadas e por muitas outras animalizadas. No

cotidiano dessas mulheres certamente não se tratava de apenas imagens abstratas e sem

qualquer interferência em suas vidas. Ao contrário, eram imagens que estampavam

revistas populares e bastante consumidas – sendo potencialmente capazes de construir e

solidificar imagens acerca de “beleza”, “feiura”, “riqueza”, “pobreza”, atuando de modo

bem decisivo na definição de padrões de feminilidade e mesmo de respeitabilidade.

Uma mulher negra que acessasse tais anúncios certamente seria impactada, do mesmo

modo que mulheres brancas reforçariam concepções de superioridade.

Longe de ser mero “espelho” a representar a realidade, a imprensa foi - e

continua sendo, guardadas as devidas proporções - espaço de intervenção na sociedade.

De acordo com Marialva Barbosa a imprensa atua e constrói a realidade, e na chamada

“Belle Èpoque Tropical”, periódicos como o Jornal do Brasil, Gazeta de Notícias,

Correio da Manhã, O Paiz e Jornal do Commercio – os principais da época – compõem

o processo legitimação de uma nova institucionalidade, a República. Esse processo

envolveu também a construção da própria imprensa enquanto instituição autorizada

quanto à participação nos acontecimentos políticos e sociais da então capital

republicana. Segundo a historiadora:

A outros discursos produzidos com o sentido claro de normatizar a sociedade - como o médico-higienista, o jurídico e o político – agrega-

se o da imprensa, que passa a aliar ao texto impresso a veracidade da

fotografia e a crítica das caricaturas ou a ‘reprodução’ da realidade

contida nas ilustrações. Promovendo campanhas, os periódicos unificam os vários discursos da sociedade, em busca do ideal de

progresso e civilização. (BARBOSA, 2000, p.12)

Na cidade do Rio de Janeiro do início do século XX e seus mais de 600.000

habitantes, as transformações urbanísticas e sociais, a “febre da modernização”

passavam pelas páginas dos jornais. Passavam por essas páginas também “escândalos

sensacionais, palpites do jogo do bicho, as notícias dos cordões e blocos carnavalescos”,

dentre diversos outros assuntos do cotidiano e “com a preocupação de atingir um

universo significativo, vasto e heterogêneo de leitores”. (BARBOSA, 2000, p.25).

Sendo um espaço em disputa, houve quem se propusesse a intervir diretamente sobre as

imagens construídas a respeito das pessoas negras. Usando de seu prestígio e

reconhecimento intelectual, o professor Hemetério dos Santos em alguns de seus artigos

e conferências buscou elementos na história da humanidade que comprovassem as

qualidades de homens e mulheres negras, lançando algumas notas sobre as mulheres.

Em caloroso debate com Alcindo Guanabara - intelectual, proprietário do jornal “A

Imprensa” e senador da República – o professor rebate duramente afirmações que

pretendiam reforçar visões estereotipadas acerca dos negros:

(...) o negro nunca foi estúpido, fraco, imoral ou ladrão. (...) Todos

sabem como o negro, em pouco tempo, vinculando-se ao solo,

perdendo o hábito de nomada, adquiriu a rudimentar ciência conhecida de seus dominadores, e se tornou o único lavrador nosso, a

quem, na mingua e na má qualidade dos alimentos, o inclemente sol

respeitava, desenvolvendo-lhe, sem letras e sem livros, a inteligência

portentosa pelo calor que lhe derramava no cérebro, dando-lhe admiráveis qualidades assimiladoras, tornando-o de cedo o só operário

nosso da cidade, o abridor de roteiros, o prático de estradas de ferro, o

artesão, o artista, nos vários aspectos da estética, cantor em desafios,

repentista e troveiro, tudo isto no estado de incultura, empiricamente...

(O Imparcial, 20-10-1913, p.05)

Alguns anos antes, em 1906 o jornal O Paiz noticiou a conferência “Pretidão de

Amor” realizada por Hemetério, sob o pseudônimo de Benedicto Severo, no “Gremio

das Senhoras” em 1905 e posteriormente publicada em livro. De acordo com o

periódico, tal conferência era em verdade, “a defesa da raça negra no Brasil,

principalmente da mulher mestiça, tão intimamente ligada à nossa organização

nacional” (O Paiz, 04/01/1906, p.01). Os artigos e conferências de Hemetério

costumavam versar sobre a população negra de modo geral, mas nas entrelinhas de sua

“defesa da raça negra” é possível perceber o enfoque dado aos homens. Nessa

conferência em especial, embasado em seus conhecimentos históricos, ele tece

comentários acerca da importância das mulheres negras (“mestiças”) para a humanidade

e o Brasil. Segundo o historiador Aderaldo dos Santos, trata-se de uma mobilização do

“(...) sentimento feminino para a trincheira dos combatentes que tentavam convencer o

poder branco e masculino a abrir concessões para que os filhos da mulher negra

tivessem a oportunidade de estudar.” (SANTOS, 2019, p.226). Falando do amor em

geral e mais especificamente de um “amor negro”, Hemetério, ao que tudo indica, busca

enfatizar junto às senhoras outra construção discursiva acerca das pessoas negras. Ele

associa “beleza”, “amor”, “branco”, “negro”, especialmente quando constrói a metáfora

do “beijo de amor” dado por “Portugal, senhor nobre e cavalheiresco” à face da

“portentosa África”.

Nessa “arena discursiva” que era a imprensa - e em diálogo com a literatura e as

produções (pseudo) científicas - pululavam imagens de positivação e exaltação da

brancura, de estereótipos raciais e ao mesmo tempo de discursos como o do professor

Hemetério dos Santos que buscava interferir e alterar o panorama das relações raciais de

seu tempo. Um espaço valioso e de bastante eco, visto que a leitura - individual ou

compartilhada em voz alta – fazia parte do cotidiano dos moradores da então capital

federal, colocando em contato com essas publicações mesmo os que não dominassem

por completo as habilidades leitoras. Assim, pode-se dizer que havia em grande número

um “público ouvinte” que consumia jornais e revistas como os que foram tratados nesta

seção (BARBOSA, pp.199-200). As vozes que falavam em primeira pessoa sobre/ para

os corpos e mentes femininas eram as masculinas, isto é, os discursos negativos ou

afirmativos não tinham sua autoria diretamente associada às mulheres – mesmo as

brancas. Portanto, além de espaço de disputas narrativas a imprensa foi local de

afirmação e imposição de uma masculinidade branca, letrada, patriarcal e aburguesada.

Defesa ou oposição à hierarquização racial aconteciam enquanto embates “de homem

para homem”.

Magistério, respeitabilidade e algumas notas sobre raça, classe e gênero

Em 22 de março de 1907 um grupo de pais e candidatas à matrícula na Escola

Normal enviou um requerimento ao “Exmo. General Dr. Prefeito do Distrito Federal”

solicitando a ampliação do número de vagas na Escola Normal, triplicando as cinquenta

já existentes. Os cento e cinco requerentes - dos quais setenta e oito eram mulheres-

levantavam dois aspectos que respaldavam esse pedido: o “espírito altamente

esclarecido” em matéria de administração e instrução pública do governante da cidade;

e a “progressão sempre crescente de analfabetos existentes na Capital da República” que

esbarrava na “falta de escolas regularmente constituídas”. Elogiando as qualidades do

“espírito acostumado ao estudo” do chefe político, os requerentes faziam coro ao

patriotismo e ao princípio de que “educando V. Excia a mulher de hoje, fatalmente

educará o homem d’amanhã.”5 O coro majoritariamente feminino enfatizava a

importância da educação para a pátria, justificando o acesso das mulheres à educação

formal com o objetivo futuro de educar os homens. Educados, ele poderiam ser os

novos chefes políticos, os que participariam da vida política da cidade e os que

tomariam parte de modo direto na vida pública.

Permitir às mulheres que acessassem a educação formal não era um fim em si

mesmo, mas um caminho que levaria ao objetivo principal que seria a formação

intelectual de novos homens. Ao menos era este o argumento central que justificava a

reivindicação de candidatas e seus pais. Não nos é possível ter a certeza plena de que os

reclamantes concordavam integralmente com tal argumento ou se havia discordâncias,

mas é importante destacar que este era um argumento contundente e socialmente aceito,

5 AGCRJ, Coleção Prefeitura do Distrito Federal, Série Instrução Pública, pasta Escola Normal, pp.76-78.

podendo levá-los a alcançarem o objetivo pleiteado. Ainda que na prática fossem

poucos os homens que participariam da política oficial, o uso do argumento continua

demonstrando que o acesso das mulheres à educação formal só poderia ser plenamente

aceito à luz da figura masculina.

Para aquelas que conseguiam conquistar uma vaga na Escola Normal o percurso

de formação era bastante árduo, incluindo aulas aos sábados, disciplinas diversas,

provas orais e escritas, estágios e para algumas a conciliação entre estudos no período

noturno e o exercício do magistério durante o dia. Além da própria vida familiar que

incluía cuidados com a casa, marido e filhos. Era o caso da professora Rufina Vaz

Carvalho dos Santos, e em parte o de sua amiga Elvira Pilar Guimarães da Silva, ambas

mulheres negras. As duas iniciaram os estudos em fins dos anos de 1880 na “Escola

Normal da Corte”, ainda durante o governo Imperial, vindo a concluí-los somente em

1896 (“Escola Normal Livre”). Em 1891 elas passaram a integrar o magistério público

municipal, sendo nomeadas “professoras adjuntas interinas” – o primeiro passo rumo à

efetivação na carreira docente. Sete anos depois, em 1898, Elvira Pilar e Rufina

chegavam ao topo da carreira sendo promovidas ao cargo de “professora catedrática”.6

Essa promoção significava o aumento dos vencimentos, mas também conferia certa

distinção dentro do grupo das professoras públicas primárias. Além disso, ser professora

pública, oficialmente diplomada, chegando ao topo da carreira significava não apenas o

aumento do salário, mas, sobretudo, a ocupação de um lugar social que conferia alguma

respeitabilidade e reconhecimento.7

E é exatamente nestes termos em que falam duas biografias publicadas na

imprensa, afastadas no tempo em quarenta e três anos, sobre as professoras Rufina e

Elvira Pilar. Em 1956, a professora Rufina Vaz foi biografada por Mariza Lira na

coluna “Nossas Mestras” (Jornal do Brasil, 26/02/1956, pp.17-18). Em texto

6 As informações sobre a incorporação das duas professoras ao posto de “adjuntas interinas” e

“professoras catedráticas” encontram-se respectivamente nos jornais Diário de Notícias (06/5/1891, p.01) e A Notícia (23/09/1898, p.01). Os mesmos encontram-se disponíveis em:

https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

7 Segundo a historiadora da educação Maria Lúcia Rodrigues Muller, a figura da professora primária

paulatinamente foi sendo colocada no lugar da “construtora da nação” e de responsável por transmitir

“elementos de civilidade e moralidade” aos alunos.

extremamente laudatório, a autora descreve a trajetória da educadora de “tipo lindo de

mestiça” desde o nascimento até sua velhice, enfatizando suas notáveis qualidades de

mãe, esposa e professora. Além disso, as origens familiares de Rufina, neta do

respeitado editor e tipógrafo Francisco de Paula Brito (SANTOS, 2019, p.139), são

utilizadas também como elementos enaltecedores de sua trajetória. A moça, de acordo

com a biografia publicada, era “descendente de dois nomes brilhantes da Educação

Infantil e da Literatura do Brasil”, além de pertencer a “uma família de recursos”.

Jornal do Brasil, 26/02/1956, p.17.

No texto biográfico não há informações sobre a data desta fotografia, mas é

certo afirmar que tenha sido feita algumas décadas antes dessa publicação em vista do

falecimento da professora em 10 de novembro de 1952, aos noventa e dois anos de

idade (SANTOS, 2019, p.149). Apesar da qualidade ruim, a fotografia nos permite

identificar uma mulher com cabelos, roupas e expressão facial extremamente formais.

Uma mulher mestiça segundo com Lira e “mulata” de acordo com seu próprio esposo, o

professor Hemetério dos Santos em artigo já citado (O Imparcial, 1913). Em 1913 e em

1956 a professora, apesar da aparência bastante clara, não deixa de ser racializada. Na

primeira ocasião o sentido é positivo e indicativo de boas qualidades, na segunda é

como uma característica que vai indicar um “apesar de” e que pode ser aceita diante de

tantos outros atributos físicos, familiares e intelectuais. Uma rotulação que embora

pareça sutil não deixa de ser feita, ao contrário de outras educadoras biografadas que

eram brancas.

Quatro décadas antes, entre março e abril de 1913 a revista A Cidade, feita por e

para funcionários da municipalidade carioca, publicou uma série de biografias sobre as

professoras municipais e dentre elas estava Elvira Pilar:

A Cidade, 05/03/1913, p.05.

A professora formalmente vestida, séria e de olhar compenetrado apresenta

traços fenotípicos que não geram qualquer dúvida quanto ao fato dela ser uma mulher

negra. A pele clara (ou clareada pela luz da fotografia), assim como os cabelos

visivelmente alisados muito provavelmente levavam as pessoas (e talvez ela própria) a

rotularem como uma mulher “mulata”. É uma imagem forte que transmite mensagens

totalmente opostas às imagens racializadas e sexualizadas veiculadas pela imprensa,

literatura e a (pseudo) ciência daquele tempo. O texto biográfico tem o mesmo efeito

que a imagem, reforçando as boas qualidades da “Dona” Elvira Pilar que fizera no

magistério o “justo renome”. Contrariando esses “ventos” racialistas, a publicação da

folha “principalmente dedicada aos assumptos municipaes” não faz qualquer menção ao

assunto. É provável que estivesse se enquadrando ao modelo da gestão republicana que

oficialmente silenciava quanto à questão.

Na documentação produzida pela “Instrução Pública” são escassos, quase nulos,

os momentos em que algum rótulo racial é sinalizado. Analisando documentação entre

fins da década de 1880 e o anos da década de 1920 posso afirmar que não passam de

dez as ocorrências em que é mencionada a cor da pele das professoras municipais e

alunas da Escola Normal. Enquanto imprensa e literatura estavam gritando sobre raça

para todos os lados, rotulando mulheres e homens negros – fossem eles pobres ou

“remediados” -, a republicana administração silenciava por completo sobre esta questão.

Assim, não nos é possível saber quais daquelas professoras que integravam listas

intermináveis seriam brancas/ “mulatas” / “mestiças” / “de côr”, ocorrendo o mesmo em

relação às crianças e adolescentes cujos pais solicitavam vagas nas escolas públicas da

cidade.

Os próprios censos após o ano de 1890 irão suprimir a possibilidade de

identificação racial da população brasileira. Neste caso, nos parece que o projeto de

modernidade e os ideais de “ordem e progresso” mobilizaram a gestão republicana (e os

seus tributários) ao silenciamento da raça em discursos e políticas públicas, visando

suprimir quaisquer possibilidades de mobilizações coletivas pautadas na identidade

racial. Formalmente seriam todos “cidadãos brasileiros” integrados à nação,

independentemente das origens étnico-raciais. Na prática a história seria bem diferente

vide as leis promulgadas contra a “vadiagem” e a prática da capoeira que, embora

aparentassem neutralidade quanto à questão racial, atingiam em cheio pessoas negras.8

Em “Das cores do silêncio” (2013), a historiadora Hebe Mattos afirma que no

contexto do sudeste cafeeiro em tempos de pós-abolição a grande questão residia

exatamente sobre os sentidos atribuídos à liberdade e à cidadania. Os fazendeiros,

outrora “senhores”, enxergavam a manutenção de rótulos raciais enquanto um caminho

viável para a continuidade das hierarquias e do controle social. Já os libertos teriam

interesse em silenciar essas marcas que remeteriam diretamente à condição cativa de um

passado recente, o que a autora identificou na extensa análise de certidões de

nascimento que realizou. Assim, “perder o estigma do cativeiro era deixar de ser

reconhecido como ‘liberto’ (...) e como ‘preto’ ou ‘negro’, até então sinônimos de

escravo ou ex-escravos (...) e de não cidadãos” (2013, p.290). A cidade do Rio de

8 Vide o Código Penal Republicano, decreto N° 847, de 11 de outubro de 1890, que dedica o capítulo XIII

exclusivamente aos “vadios e capoeiras”. Tanto os que “deixassem de exercitar profissão ou ofício e que

ganhe a vida” quanto os que fossem pegos fazendo “exercícios de agilidade e destreza corporal”

conhecidos como “capoeiragem”, seriam penalizados como infratores da lei e criminosos.

Janeiro foi convertida em “capital federal” da república, tendo por horizonte as

referências culturais e políticas europeias. Um universo urbano bastante diferente do

que é estudado por Hebe Mattos, portanto é preciso cautela ao traçar paralelos. Os

silêncios da administração pública quanto aos rótulos raciais coadunavam com os

princípios liberais expressos em sua Constituição - além de sustentarem projetos de

poder via controle social. Por outro lado, é possível suspeitar que as pessoas negras

desse espaço urbano também buscassem formas de fugirem aos enquadramentos raciais.

Pessoas negras tanto do mundo rural quanto urbano nutriam aspirações de igualdade,

liberdade, cidadania e plena inclusão social.

Hebe Mattos afirma que em tempos republicanos o termo “cidadão” passa a ser

utilizado em inquéritos policiais como designador de status social. Assim, eram

chamados a depor “homens”, “mulheres” e “cidadãos” (2013, p.291). Nas fontes que

venho levantando identifiquei o uso desse mesmo termo para fazer referência ao

prefeito do Rio de Janeiro, mais alto cargo administrativo da cidade, como sinônimo de

deferência, respeito e distinção. Ser cidadão era ser homem, participar ativamente da

política oficial, ser respeitado publicamente e ter algum poder diante das relações

interpessoais que não separavam por completo as esferas pública e privada. Deste

modo, em tempos republicanos o conceito de cidadão tinha o sentido de distinção de

classe e também de gênero. Uma distinção que não fechava por completo suas portas à

entrada de alguns homens negros e suas famílias, pois não havia impedimento legal à

ascensão à condição de “cidadão”.

Por outro lado, a associação entre racialização, criminalidade e pobreza era o

principal fio condutor da patologização das classes populares, significando em linhas

gerais a desumanização de homens e mulheres enquadrados em estereótipos dessa

natureza e que recaíam em cheio sobre pessoas negras, mesmo aqueles pertencentes aos

círculos letrados. A historiadora Silvana Santiago aponta que raça e classe estavam

intrinsecamente associadas uma vez que “(...) a pobreza tende a escurecer a cor da pele

no caso de indivíduos lançados dentro do aparato policial construído a partir dessas

premissas.”. Neste sentido, em sociedades com a presença de “marcadores raciais”,

classe e gênero seriam representações “coloridas pela raça”. O fator raça contribuiria,

então, para a construção de representações de gênero, classe e sexualidade. (2006, pp.07

e 11). Segundo Carla Akotirene (2018) uma “encruzilhada interseccional” onde raça,

gênero, classe e sexualidade atravessam as existências de mulheres negras como as

professoras Rufina e Elvira Pilar.

Considerações finais

Mulheres negras precisavam lidar com a racialização e a sexualização dos seus

corpos ao mesmo tempo em que encaravam os inúmeros ataques racistas proferidos

contra os homens negros de seus círculos familiares. Portanto, “respeitabilidade” seria o

lugar a ser preservado como uma resposta à discriminação vinda de “fora” ao passo que

a “feminilidade respeitável” seria o porto seguro que as blindaria dentro e fora dos

“círculos negros”. Interpretar as experiências de mulheres negras como as professoras

Rufina e Elvira Pilar à luz do conceito de “feminilidade respeitável” (XAVIER, 2012) é

um caminho que nos ajuda a entender as formas pelas quais raça, classe e gênero se

entrelaçam nas experiências cotidianas de mulheres negras na Primeira República. Essa

feminilidade articulava elementos como “distinção de classe” e o afastamento de alguns

dos estereótipos raciais e de gênero.

Os investimentos discursivos que buscavam reiterar diariamente a brancura

enquanto padrão, símbolo de boas qualidades e ideal a ser alcançado podem

perfeitamente serem entendidos enquanto expressões políticas. Uma política do

cotidiano que, direta ou indiretamente, proporcionava os elementos que consolidavam

hierarquias raciais, de classe e de gênero.

Os estudos sobre a Primeira República avançaram bastante, rompendo com

perspectivas centradas numa história da política oficial e de seus agentes diretos -

homens brancos e detentores de posses. Outros sujeitos históricos e suas experiências

vêm sendo investigados, sendo possível ouvirmos as suas vozes e “contar” outras

histórias. Deste modo, falar de racialização, de estereótipos de gênero, da

supervalorização da estética branca é também contar a história do pós-abolição e da

república.

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