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1 O IDEÁRIO POLÍTICO NAS CANÇÕES DE GESTA E SUA RELAÇÃO COM A FRANÇA CAPETÍNGIA doi: 10.4025/XIIjeam2013.arias5 ARIAS, Ademir Aparecido de Moraes 1 Já faz alguns anos que iniciamos nossas pesquisas sobre a traição na Idade Média a partir da poesia épica francesa e, atualmente, estamos envolvidos com um projeto de Doutorado, o qual constitui a continuação dos trabalhos desenvolvidos através de nossa Dissertação de Mestrado (ARIAS, 2005). De 2002 a 2005, nós nos concentramos em um único texto, o Renaut de Montauban, como uma preparação para uma empreitada de maior fôlego. Hoje estudamos cinco fontes: a Chanson de Roland, o Girard de Vienne, o Renaut de Montauban, o Gaydon e o Jehan de Lançon. Procuramos extrair os conteúdos político e moral relativos à traição de cada um desses poemas, relacionando-os com a situação vivida no reino da França governada pela dinastia Capetíngia (987-1328), particularmente do final do século XII até o início do século XIV. Um primeiro ponto levado em conta foi a influência do chamado “agostinismo político” nas Canções de Gesta, representação através da qual era imaginada e defendida a relação entre o monarca e seus vassalos nas narrativas épicas. No pensamento político “agostiniano”, esboçado pelos Padres da Igreja da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média, como Santo Agostinho de Hipona (354-430), Gregório Magno (540-604) e Santo Isidoro de Sevilha (560-636), a ordem natural era absorvida pela ordem sobrenatural; a justiça não seria atingida no mundo terreno em decorrência do pecado original e, portanto, ela só existiria no mundo celeste (ARQUILLIÈRE, 1972; VILLEY, 2009). Uma missão religiosa era atribuída ao rei: defender a Igreja e o povo de Deus, ajudando os cristãos a obter a sua salvação, tanto dos indivíduos separadamente, ao falecerem, quanto da comunidade inteira, no advento da Parúsia. Essa proteção não se limitaria a repelir os ataques de inimigos externos, mas também a combater, internamente, tudo o que pudesse prejudicar ou rebaixar a fé cristã, da 1 Doutorando em História Social pela FFLCH-USP.

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O IDEÁRIO POLÍTICO NAS CANÇÕES DE GESTA E SUA

RELAÇÃO COM A FRANÇA CAPETÍNGIA doi: 10.4025/XIIjeam2013.arias5

ARIAS, Ademir Aparecido de Moraes1

Já faz alguns anos que iniciamos nossas pesquisas sobre a traição na Idade Média a

partir da poesia épica francesa e, atualmente, estamos envolvidos com um projeto de

Doutorado, o qual constitui a continuação dos trabalhos desenvolvidos através de nossa

Dissertação de Mestrado (ARIAS, 2005). De 2002 a 2005, nós nos concentramos em um

único texto, o Renaut de Montauban, como uma preparação para uma empreitada de maior

fôlego. Hoje estudamos cinco fontes: a Chanson de Roland, o Girard de Vienne, o Renaut

de Montauban, o Gaydon e o Jehan de Lançon. Procuramos extrair os conteúdos político e

moral relativos à traição de cada um desses poemas, relacionando-os com a situação vivida

no reino da França governada pela dinastia Capetíngia (987-1328), particularmente do final

do século XII até o início do século XIV. Um primeiro ponto levado em conta foi a

influência do chamado “agostinismo político” nas Canções de Gesta, representação através

da qual era imaginada e defendida a relação entre o monarca e seus vassalos nas narrativas

épicas.

No pensamento político “agostiniano”, esboçado pelos Padres da Igreja da

Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média, como Santo Agostinho de Hipona (354-430),

Gregório Magno (540-604) e Santo Isidoro de Sevilha (560-636), a ordem natural era

absorvida pela ordem sobrenatural; a justiça não seria atingida no mundo terreno em

decorrência do pecado original e, portanto, ela só existiria no mundo celeste

(ARQUILLIÈRE, 1972; VILLEY, 2009). Uma missão religiosa era atribuída ao rei:

defender a Igreja e o povo de Deus, ajudando os cristãos a obter a sua salvação, tanto dos

indivíduos separadamente, ao falecerem, quanto da comunidade inteira, no advento da

Parúsia. Essa proteção não se limitaria a repelir os ataques de inimigos externos, mas

também a combater, internamente, tudo o que pudesse prejudicar ou rebaixar a fé cristã, da

1 Doutorando em História Social pela FFLCH-USP.

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simonia perpetrada por membros do clero à heresia deturpadora dos ensinamentos da fé

considerados como “verdadeiros” pela hierarquia eclesiástica. Justificava-se isso pela

necessidade da força coercitiva material a ser aplicada nas situações onde a pregação e as

exortações espirituais falhassem. Essa função religiosa de apoio acabaria apresentada

como a razão e a justificativa divinas para a existência dos poderes seculares.

O rei e seus representantes eram mostrados, tanto quanto os eclesiásticos, como

responsáveis pela salvação das populações colocadas sob sua direção. O monarca passava

a exercer um ministério (regale ministerium), deveria governar o povo de Deus de acordo

com uma justiça espelhada na da Cidade Celeste e, assim, manteria a harmonia na Cidade

Terrestre. Era através da aplicação dessa justiça superior que se obteria a paz dentro da

Cristandade, entretanto essa justiça e essa paz dela resultante não estariam direcionadas

para o atendimento dos interesses humanos na terra, o bom governo dos homens ou a

felicidade terrena destes, mas inspiradas pelo mundo celeste preparariam a humanidade

para atingir o seu “verdadeiro” objetivo, a salvação eterna. Esse ideário só poderia colocar

os poderes laicos em uma posição subordinada aos poderes eclesiásticos, justificada na tese

defendida pela Igreja, desde Gelásio II (492-496), de serem os assuntos espirituais

superiores aos assuntos temporais e a responsabilidade do papa e dos bispos ser muito

maior que a dos reis, pois aqueles deveriam também responder perante Deus pela salvação

dos monarcas terrenos, por serem estes membros do povo cristão.

Com Carlos Magno (768-814) verifica-se uma inversão nessa relação de poder

(FOLZ, 1989; GANSHOF, 1949; HALPHEN, 1979), pois esse monarca assume não

apenas a função defensiva das terras da Cristandade ocidental, mas também procura

expandir seus territórios e fazer da conversão dos pagãos ao cristianismo um projeto para o

estabelecimento da paz régia. Governando uma vasta extensão territorial, na qual

habitavam povos muito diferentes entre si na língua e nos costumes, o soberano via na

religião uma forma de integrar todos os indivíduos sob sua autoridade em uma Respublica

Christiana. Se Carlos apoiava as reformas e o fortalecimento dos bispados e mosteiros,

também exercia um pesado controle sobre eles e influía na escolha dos seus dirigentes. Era

entre os dignitários eclesiásticos que ele encontrava os mais fiéis e instruídos servidores de

seu governo, cuja organização administrativa e burocrática era insipiente e não primava

pela eficiência. Antes e após a coroação imperial do ano 800 suas ações o colocavam

como superior ao próprio papa, a quem encaminhou escritos nos quais procurava

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determinar claramente as obrigações cabíveis ao bispo de Roma e as atribuídas a ele como

rei/imperador. Carlos reservava para si um papel ativo nos assuntos tanto

terrenos/seculares quanto os relacionados às questões espirituais, inclusive convocando e

acompanhando o desenrolar de concílios voltados aos problemas da doutrina cristã; o

pontífice romano, tal como Moisés, passivamente, deveria orar a Deus, pedindo sua

interseção em favor do monarca e de seu povo.

Se, a partir de Luís o Piedoso (814-840) e com seus sucessores, os bispos e os papas

puderam retomar uma preeminência moral que os colocava como superiores aos monarcas

e obrigava estes a proteger a Roma papal, o enfraquecimento do império e dos reinos

carolíngios determinou uma decadência do próprio papado, vítima das ingerências de uma

aristocracia romana não muito disposta a seguir as disciplinas impostas pela vida

eclesiástica, mas interessada no prestígio e vantagens advindas com a obtenção do título

pontifício. Quando da ascensão dos imperadores germânicos da dinastia Otônida (962-

1024) o poder laico procurou restabelecer a dignidade do papa em Roma, defendendo-o de

seus inimigos internos, mas também determinando a conduta a ser tomada pelo sucessor de

São Pedro e mesmo destituindo os indivíduos cujo comportamento representasse um

escândalo para a Igreja. Retomava, portanto, a ideia de primazia do imperador como

cabeça da Cristandade e responsável perante Deus pela condução do “povo eleito”. A

interpenetração entre os interesses políticos terrenos e os interesses religiosos que levavam

a uma aliança dos monarcas com os altos representantes da Igreja fazia destes últimos

servidores do império recém-criado por Oto I (962-973). Esse sistema funcionou enquanto

houve imperadores capazes de se impor perante as aristocracias germânica e romana,

entretanto viu-se ameaçada a partir do século XI, quando a Igreja procurou livrar-se das

ingerências laicas em seus assuntos internos, nas eleições episcopais e abaciais, na direção

e utilização das propriedades do patrimônio eclesiástico e no recebimento de rendimentos

extraídos desse patrimônio. A chamada “questão das investiduras” gerou o confronto entre

os papas e os imperadores. Obviamente as outras realezas também foram afetadas, pois a

Igreja tentou tirar dos monarcas qualquer característica que os ligasse ao sagrado e os

transformasse em concorrentes na esfera do espiritual ou do sobrenatural. No caso do

reino da França não parece ter tido muito sucesso essa pretensão, pois os reis capetíngios

mantiveram sua sagração e coroação marcadas por um aparato cerimonial sagrado e

perseveraram em uma tradição taumatúrgica, através da qual procuravam distinguir-se dos

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demais príncipes territoriais, enquanto buscavam obter o respaldo dos membros da ordem

sacerdotal em suas terras.

A ligação entre Canções de Gesta e os ideários políticos correntes na França dos

séculos XII e XIII, durante o reinado da dinastia Capetíngia, é algo aceito desde a metade

do século XIX pelos estudiosos dedicados a extrair os melhores ensinamentos dessas

fontes. Para os pesquisadores os diversos poemas traziam em suas narrativas os

problemas, os conflitos e as soluções para os embates entre a realeza e os seus

subordinados, a quem eram unidos pelos laços feudo-vassálicos, e cujo bom entendimento

era necessário para a manutenção da harmonia e da paz numa sociedade cristã ideal.

Em 1869, Léon Gautier escreveu um artigo voltado à questão da presença da

política nas Canções (GAUTIER, 1869). Obviamente suas conclusões foram marcadas

pelo nacionalismo e pelo enaltecimento da França do Segundo Império, às vésperas da

Guerra Franco-Prussiana de 1870. Um poema ao qual Gautier dava muita importância por

expressar um forte ideal monárquico era o Couronnement de Louis (COURONNEMENT,

1984) cujos versos iniciais constituíam uma aula dos deveres do rei/imperador franco

quando este cingia a coroa. Tratava-se dos discursos tanto do jogral ao seu público (v. 10-

26) quanto do idoso Carlos Magno diante de uma assembleia reunida para ver a

transmissão do poder do velho imperador ao seu jovem filho Luís (v. 62-98; 166-213). O

ideal expresso nesse trecho é o do rei guerreiro, condutor das suas hostes contra os

sarracenos, voltado à defesa e expansão da Cristandade; do justo a prestar socorro e

proteção aos fracos, em especial as viúvas e os órfãos; do sábio dirigente a honrar a Igreja

e a aristocracia laica do império para ter-lhes o auxílio; e do governante consciente da

dignidade a ele concedida por Deus, o que implicava não aceitar qualquer contestação ao

exercício de seu poder e a obrigação de perseguir e punir quem ousasse desafiá-lo.

Estudos posteriores sobre o Couronnement ligaram o poema às crises enfrentadas

pelos Capetíngios quando da sucessão ao trono por Luís VI e, principalmente, por Luís

VII. O primeiro enfrentou a concorrência de irmãos ilegítimos e o segundo só tornou-se

rei, ainda jovem, devido ao falecimento de seu irmão primogênito, Felipe, em um acidente.

A Canção exortava a fidelidade dos vassalos para com o herdeiro da coroa, independente

deste mostrar ou não o caráter enérgico apregoado no início da narrativa. Para R. Van

Waard tratava-se também da defesa do princípio da hereditariedade da função régia (VAN

WAARD, 1946) numa linhagem que somente em 987 havia sido eleita pelos grandes do

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reino e ainda buscava justificar a sua ascensão em detrimento da linhagem anterior, a de

Carlos Magno.

Alguns estudiosos viram nas Canções de Gesta uma propaganda monárquica

consciente, na qual o clero teria o papel de incentivador de determinadas versões poéticas

enaltecedoras da realeza capetíngia. Hans-Erich Keller (KELLER, 1989, p. 77-92)

defendeu ter a Chanson de Roland, na versão do manuscrito de Oxford, sido escrita no

mosteiro de Saint-Denis, a abadia-necrópole real, durante ou pouco depois do abaciado de

Suger (1122-1151). Através do elogio a Carlos Magno, guerreiro e defensor da fé cristã,

eram enaltecidos os monarcas capetos Luís VI, envolvido nas lutas contra os indóceis

castelões da Île-de-France, e Luís VII, que participara da Segunda Cruzada (1147-1149).

Desde a segunda metade da década de 1970, Dominique Boutet vem desenvolvendo

estudos nos quais observa o conteúdo político-ideológico presente nas Canções de Gesta

(BOUTET, 1972; 1976; 1982; 2000). Ele demonstrou o quanto o “agostinismo político”

influiu nos poemas, com suas noções de justiça a ser promovida pelo monarca e a

subordinação de todos os atos terrestres aos desígnios celestes, com a atribuição de missões

específicas ao rei e aos seus cavaleiros. Mostrou ainda como a poesia épica se afasta de

uma literatura aristocrática antimonárquica ou limitadora do poder monárquico, de modo

que o rei da épica carolíngia constituiria uma representação muito diferente do monarca

arturiano, pois enquanto este detém apenas uma função simbólica, aparecendo como uma

personificação passiva do reino, nas histórias de Carlos Magno e de Luís o Piedoso

cobrava-se também o exercício efetivo do poder por parte desses personagens.

Primeira manifestação literária em língua francesa, as Canções de Gesta teriam

surgido na segunda metade do século XI, após uma longa gestação baseada na transmissão

oral de eventos ocorridos dos séculos VIII ao X, conforme os defensores da teoria dita

“Tradicionalista”. Já pela teoria “Individualista” a poesia épica fora criada no final do

século XI, tendo os mosteiros, guardiões de relíquias e antigos anais, como interessados na

sua difusão para incentivar peregrinações aos seus estabelecimentos e a partida de

guerreiros nas expedições armadas dirigidas à Palestina e para a Reconquista Ibérica. As

duas vertentes de estudos concordam, entretanto, ter a difusão sido feita por jograis e o

público para o qual os poemas estavam destinados ser, principalmente, o cavaleiresco.

Os temas neles predominantes eram as guerras movidas contra os pagãos ou as

lutas travadas dentro da Cristandade entre os grandes potentados e destes contra o rei,

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durante o reinado da dinastia carolíngia. Ocorre uma simplificação ou mesmo confusão

entre os diversos monarcas dessa dinastia, os quais se reduzem, na poesia épica a apenas

quatro: Carlos Martel, Pepino o Breve, Carlos Magno e Luís o Piedoso. Esse passado é

extremamente idealizado e mostrado como uma época materialmente mais rica, onde havia

mais homens no mundo e estes eram mais fortes fisicamente. Apesar das características

quase míticas expostas nas Canções de Gesta, esta literatura “atualizava” suas narrativas

fazendo com que os seus personagens, armamentos, hábitos e a organização da sociedade

épica se assemelhassem ao existente no reino da França capetíngia, apesar dos evidentes

exageros impostos pelo gênero épico e criados para mostrar os franceses como superiores e

até senhores dos demais povos europeus, seus vizinhos (alemães, italianos, ingleses).

Ao lermos e analisarmos os poemas escolhidos para a pesquisa, observamos,

primeiramente, a inexistência da preocupação com as relações de poder estabelecidas entre

a Igreja e as autoridades civis, ou seja, não há a menção do confronto entre o Sacerdócio e

o Império/Reino, entre o papa e/ou os bispos e a monarquia de Carlos Magno dentro da

épica francesa. As narrativas estão centradas em heróis laicos, quer seja o rei/imperador,

nelas mostrado como o supremo representante da Cristandade, quer sejam os diversos

cavaleiros responsáveis pela defesa de seu senhor ou, pelo contrário, por combaterem a

este. Não encontramos qualquer pregação eclesiástica versando sobre a prioridade do

espiritual sobre o temporal ou da superioridade do papa em relação ao rei. Na verdade, a

poesia épica mostra o poder laico como responsável pelos assuntos terrestres e/ou celestes

de maior importância, simplesmente excluindo a presença de um poder eclesiástico

concorrente. Se há uma relação efetiva de poder ela se refere àquela existente entre o

senhor feudal/real com os seus vassalos. Com base nisso se desenvolvem as noções de

dever, de obrigação, de direito ao rompimento da fidelidade de cada um dos envolvidos no

serviço/ajuda ou nos conflitos expostos nos poemas. Há um pensamento político e

propostas “políticas” expressos nessas fontes, mas envolvendo apenas os laicos, apesar de

baseados em premissas extraídas dos exemplos bíblicos ou dos ensinamentos da Igreja,

como é o caso do “agostinismo político”.

Embora os capetíngios não sejam mencionados nas Canções, muitas dessas

narrativas poderiam ser relacionadas com essa dinastia, estando esta relação encoberta com

os traços de seus antecessores carolíngios. Os problemas dos séculos XII-XIII podiam ser

transpostos para os poemas – como demonstram os estudos sobre o Couronnement de

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Louis. Também as relações entre o monarca e seus vassalos e a representação de uma

monarquia ideal estavam presentes nos cantos/textos. As noções políticas existentes nas

Canções de Gesta foram elaboradas a partir dos ensinamentos ministrados pelos

pensadores e teólogos cristãos, desde Santo Agostinho, e permaneceriam válidos até o

aristotelismo, redescoberto e estudado nas Universidades no século XIII, colocar o político

como algo eminentemente humano e rejeitar, desse modo, a submissão defendida pelo

“agostinismo político” da Cidade dos Homens à Cidade de Deus e a visão dos governos

como mero fruto do pecado original.

Nos poemas épicos temos um ideal monárquico que coloca o rei/imperador como o

poder supremo no mundo e como o representante de Deus na Terra. Carlos Magno pode

ouvir os conselhos de seus barões e bispos, mas não é obrigado a obedecer a qualquer

outro personagem humano, nem mesmo o papa, cuja ausência é marcante nos poemas por

nós estudados, a Chanson de Roland, o Girart de Vienne, o Renaut de Montauban, o

Gaydon e o Jehan de Lançon. Em certo sentido o Carlos Magno épico assemelha-se ao

seu modelo de fins do século VIII e início do século IX, ao considerar-se o dirigente

máximo da Cristandade e o responsável direto perante Deus pela condução do Seu povo.

Poemas belicistas feitos para guerreiros, as Canções de Gesta mostram como

função principal do rei ideal a defesa da Cristandade diante das ameaças pagãs e a

expansão da sua fé para os territórios sarracenos, através da conquista armada e da

conversão forçada. Esse proselitismo pela espada relaciona-se à própria ideia de salvação,

pois dentro da visão escatológica cristã o segundo advento do Cristo dar-se-ia quando as

palavras dos Evangelhos fossem conduzidas a todos os povos do mundo e estes

convertidos. O imperador, como ajudante de Deus, trabalhava para a concretização dos

desígnios divinos na Terra. A Chanson de Roland, cuja versão do manuscrito de Oxford é

considerada o mais antigo poema desse gênero literário, trata basicamente dessa questão,

com a longa guerra de Carlos Magno pela conquista da Espanha. Para nós ela serve de

elemento de base comparativa das transformações posteriores das Canções de Gesta que

desembocaram nos poemas do Ciclo dos Vassalos Rebeldes, cujos enredos diferem muito

do deste poema.

Surgida e difundida no reino da França durante a monarquia capetíngia, essa poesia

épica desenvolveu-se paralelamente ao reforço do poder da realeza e da paulatina

submissão da aristocracia territorial. Num primeiro momento, sob Hugo Capeto (987-

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996), Roberto II o Piedoso (996-1031), Henrique I (1031-1060) e Felipe I o Gordo (1060-

1108), os reis capetos não tiveram um papel relevante nos grandes acontecimentos da

Cristandade ocidental (a questão das investiduras, as Cruzadas), mas procuraram garantir a

continuidade da coroa francesa dentro de sua família, transmitida hereditariamente ao filho

primogênito. Com Luís VI o Gordo (1108-1137) e Luís VII o Jovem (1137-1180) inicia-se

o fortalecimento monárquico, fazendo-se o rei mais presente em diversos assuntos,

reduzindo à obediência os castelões de seus próprios domínios, exigindo a fidelidade de

seus grandes vassalos em diversas ocasiões, colocando-se como defensor do reino da

França quando da ameaça de invasão imperial germânica, em 1124, ou mostrando-se como

guia das hostes francesas e cristãs quando da Cruzada de 1147-1149. Já sob Felipe II

Augusto (1180-1223), Luís VIII o Leão (1223-1226) e São Luís (1226-1270) a monarquia

deu os passos decisivos para exercer o poder efetivo sobre todos os príncipes territoriais

que lhe deviam obediência vassálica. A derrota dos Plantagenetas (Bouvines, 1214;

Taillebourg, 1242) e a Cruzada contra os albigenses (1209-1229) não apenas aumentaram a

riqueza capetíngia como ainda elevaram seu prestígio diante de outros reinos e do próprio

império romano-germânico. Felipe III o Ousado (1270-1285) e Felipe IV o Belo (1285-

1314) puderam robustecer o poder monárquico a ponto de o rei francês conseguir fazer

frente ao papado e sair vitorioso da contenda contra Bonifácio VIII, em 1303.

Curiosamente as Canções de gesta sofrem uma alteração em certo sentido contrária

ao do fortalecimento do poder Capeto. Se durante o seu período de fraqueza a poesia

exaltava o Carlos Magno guerreiro, condutor da Cristandade e sempre certo em suas ações,

entre 1180 e 1200 começam a ser dirigidas críticas ao rei, censurando sua falta de justiça e

desejo de poder. De 1200 em diante o Ciclo dos Vassalos Rebeldes chega a rebaixar a

figura real frente aos cavaleiros e barões que o combatem. Carlos Magno é apresentado

por vezes como senil, cobiçoso, intratável e vingativo, esquecendo os deveres de sua

função régia, e irreconhecível se for comparado ao poema sobre Roncesvalles e a tomada

de Saragoça.

A Chanson de Roland (1990) serve, em nosso estudo como modelo de gesta inicial,

na qual Carlos Magno é exaltado e a monarquia respeita as regras impostas pelo “sistema

feudo-vassálico”, como a do conselho dos barões, o que nem sempre garante a segurança

da Cristandade. Partem das cortes nas quais os grandes do reino dão seus pareceres ao

imperador as decisões desfavoráveis aos franceses e ao seu rei: a aceitação da proposta de

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paz de Marsílio, a escolha de Rolando e dos doze pares para a retaguarda da hoste, o voto

pelo perdão do traidor Ganelon. O poema deixa entrever serem as decisões pessoais de

Carlos as mais convenientes, mas os limites impostos pela obrigação de seguir os

conselhos dos barões bloqueiam o poder régio trazendo prejuízos à França. Assim, seguir

as propostas dos homens é danoso nessa Canção, ainda mais quando o monarca é mostrado

como protegido e orientado diretamente por Deus. Através de sonhos enviados através de

anjos, Carlos tem uma ideia dos acontecimentos futuros e é amparado celestialmente para

não sucumbir diante do emir Baligante, o chefe-mor dos pagãos. Essa ligação com o plano

divino poderia traduzir a defesa pelo poeta da necessidade de uma monarquia forte e

decidida a por em prática as suas decisões. Os limites impostos ao poder régio

constituiriam uma ameaça ao reino/império, especialmente quando o rei estava agindo em

conformidade com os desígnios de Deus. Escrita entre 1060 e 1100, a Chanson de Roland

é da mesma época na qual a monarquia capetíngia apresentava-se fraca diante dos diversos

príncipes territoriais seus vassalos. Dispondo de poucos recursos e de limitada força

militar, ela é o oposto do Carlos Magno do poema. Para impor sua vontade o Capeto

depende da ajuda de um dos grandes potentados do reino e faz uso constante das querelas

entre as diversas casas aristocráticas para não ser sobrepujado por alguma delas. A

Chanson de Roland, portanto, serve para manter vivo um ideal superior de monarquia a

qual precisaria ser obedecida por todos e deveria deter um poder efetivo sobre seus

subordinados.

O Girart de Vienne (1977) cuja versão completa hoje disponível é atribuída a

Bertrand de Bar-sur-Aube, um poeta ligado à corte dos condes de Champanhe, e escrita

cerca de 1180, apresenta alterações marcantes em relação à Chanson de Roland e, ao que

tudo indica, a outros poemas épicos que o antecederam. Para sorte dos pesquisadores, dois

resumos da luta entre Geraldo e Carlos Magno são conhecidos e, através deles, são

perceptíveis as escolhas feitas por Bertrand ao compor sua narrativa. Tanto na

Karlamagnus Saga (SAGA DE CHARLEMAGNE, 2000) quanto na Chronique Rimée de

Philippe Mousket (1925), Geraldo é apresentado como um vassalo orgulhoso e

descumpridor de seus deveres para com o imperador. Por conta disto, Carlos cercara

Vienne com sua hoste até o rebelde submeter-se. A versão escrita no final do século XII

converte Geraldo em um fiel servidor do rei e, descrito como originário da linhagem de

Garin de Monglane, a mesma de Aymeri de Narbonne e de Guilherme de Orange, tinha

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acentuado esse caráter de fidelidade. A causa da guerra é colocada no imperador, o qual

recusara fazer justiça ao herói do poema por uma ofensa a ele dirigida pela rainha da

França. Obstinado no desejo de punir o rebelde, Carlos move uma guerra malvista por

seus conselheiros próximos e não consegue uma vitória decisiva. Ao sair para uma caçada,

durante o assédio, o imperador acaba por encontrar-se frente a frente com seu adversário,

mas Geraldo ao invés de prendê-lo pede para seu senhor fazer a paz e perdoa-lo pela

revolta. Carlos, que começara a respeitar o senhor de Vienne aceita a proposta e é

conduzido como hóspede à cidade de seu ex-inimigo. Conforme observa Van Emden,

entre 1180-1184, Felipe Augusto esteve em conflito com o conde de Champanhe, apesar

de este ser seu tio materno, pois o conde Felipe de Flandres havia se colocado

antecipadamente como conselheiro responsável pelo jovem rei, após a morte de Luís VII.

A versão de Bertrand de Bar-sur-Aube do Girart de Vienne teria sido escrita nessa época,

com a intenção de mostrar um monarca injusto com seu vassalo mais fiel, mas sem negar a

possibilidade de uma reconciliação.

O Renaut de Montauban (1989), cuja versão do manuscrito Douce é da primeira

metade do século XIII, mostra-se bem mais crítico em relação a Carlos Magno. O rei

comete várias injustiças contra seus vassalos levando-os à revolta. No prólogo há a

tentativa de obrigar Beuves de Aigremont a justificar sua ausência na corte e a reconhecer

sua submissão. Uma embaixada enviada de Paris acaba em tragédia com a morte do filho

do imperador pelas mãos do barão rebelde. Carlos concordou em perdoar Beuves caso este

viesse prestar-lhe homenagem e servi-lo, mas depois autorizou uma emboscada para por

fim à vida de seu desafeto. Em outra oportunidade o rei se nega a fazer justiça a Reinaldo,

o herói do poema, esbofeteado por seu sobrinho Bertolai. Reinaldo mata seu agressor com

um golpe de tabuleiro de xadrez e com isso é vítima de uma dura perseguição movida pelo

imperador, nas Ardenas e na Gasconha. Quando a luta chega à Gasconha, Reinaldo e seus

irmãos Aalard, Guiscardo e Ricardinho já haviam se tornado senhores de Montauban. Em

várias oportunidades o herói pediu a paz a Carlos Magno, deixando a este a escolha da

penitência expiatória a ser cumprida pelo barão. Todavia o imperador aferrara-se à

vingança e negava a possibilidade de acordo, mesmo contrariando os seus melhores

conselheiros e a própria vontade divina que não lhe permitia vencer o rebelde. Neste

poema o rei parece esquecer o essencial de suas funções de distribuidor de justiça e

mantenedor da paz. Movido por um desejo cego de revanche e intransigente em relação a

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qualquer contestação de seu poder, Carlos age como um senhor qualquer, movido pelos

próprios interesses, e não como um ministro de Deus. Como não está cumprindo sua

função, o rei não tem sucesso em seus empreendimentos, e afasta de si os melhores barões

e cavaleiros de seu reino. Apesar do caráter negativo, o Renaut de Montauban não faz de

Carlos Magno um personagem fraco ou ganancioso: ele é um rei guerreiro e devotado à

sua honra, às vezes colocada acima até da sua função. Os rebeldes reconhecem estarem

numa situação ingrata por lutarem contra seu senhor e, também, admitem ser o corpo deste

intocável e a sua vida inviolável. Se a paz acontece pela aquiescência do monarca em

perdoar os jovens a quem combatera ferozmente e a recebê-los em sua corte, a palavra

final é sua, pois é Carlos quem determina a expiação através da qual Reinaldo ficará quite

de suas faltas.

Já no Gaydon (1872), composto na metade do século XIII, os defeitos do monarca

são acentuados. Carlos Magno é ingrato justamente com Thierry (Gaydon), o cavaleiro

que venceu Pinabel e mostrou a traição de Ganelon na Chanson de Roland. O imperador é

representado como senil, não agindo de forma coerente e, por vezes, parecendo uma

criança chorona e frágil. Além disso, ele seria cobiçoso, aceitando riquezas oferecidas em

troca do favorecimento dos corruptores presentes na sua corte. Carlos se apoia nos maus

vassalos do reino, a linhagem de Ganelon, em detrimento de quem melhor poderiam servi-

lo e chega a perseguir quem tentava reconduzi-lo ao bom caminho. Dessa forma o rei

esquecia as suas obrigações e deixava de exercer o poder para tornar-se uma marionete às

mãos da linhagem dos traidores. E o interesse dos Ganelidas é bem claro: usurpar a coroa

da França. Para isto recorrem às tentativas de envenenamento do imperador ou do

sequestro deste. Seus planos são continuamente frustrados pela ação de Thierry e dos

parentes deste, mas o acordo final é mais difícil de ser obtido devido à característica senil

do monarca. Apesar de Carlos apresentar todos os defeitos capazes de desqualificá-lo

como chefe da Cristandade, a sua deposição estava fora de cogitação, cabendo aos fiéis

cavaleiros e barões protegê-lo, apesar de estarem em luta contra ele. Vigora ainda, nesse

texto, o princípio segundo o qual o monarca escolhido por Deus era inviolável, devendo ser

deixado a cargo de Deus qualquer punição ao indivíduo mau cumpridor de sua função

régia.

No último poema estudado, o Jehan de Lançon (2004), há outra mudança radical

em relação ao caráter do monarca. Embora enquadrado no Ciclo dos Vassalos Rebeldes,

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essa Canção mostra um rei determinado a ver concretizados os seus planos, um guerreiro

competente e alguém capaz de ouvir os bons conselhos que permitirão o sucesso contra seu

adversário. Para começar, Carlos não tolera a existência de príncipes territoriais

independentes da submissão vassálica a ele, não importa o poder e a riqueza deles. Daí o

envio de uma embaixada para exigir a presença de Jean de Lanson na corte imperial. O

monarca, também, não aceita questionamentos sobre os motivos de suas ações, razão pela

qual obriga os doze pares a serem os seus mensageiros. Apesar disto, a figura de Carlos

não é diminuída nesse poema em decorrência dessa intransigência. Pelo contrário, ela sai

fortalecida, pois a proteção divina o acompanha na sua empreitada e ele pode contar a seu

lado com ajuda do mágico Basan para obter a vitória. Visando reforçar o direito régio e a

justiça da luta movida pelo rei para submeter um barão isento dos laços vassálicos o poeta

estabelece a ligação de sangue de Jean com a linhagem de Ganelon. Como essa parentela

era o símbolo de todos os vícios e erros presentes no império, aqui o personagem do

vassalo rebelde não aparece de forma simpática para o público. Por conta desse

particularismo, o rei consegue impor sua vontade, derrotar o seu adversário e enviá-lo ao

cárcere. Todos os territórios da Cristandade ficam reduzidos a um só dirigente ao qual

caberia defender o povo cristão e conduzir suas tropas contra os inimigos pagãos.

Como podemos ver pelo exposto sobre as Canções de Gesta estudadas acima, há

um forte conteúdo político em suas narrativas, onde são manifestos os comportamentos

tidos como ideais para os monarcas e para os seus vassalos. Apesar disso a poesia épica

não constituía algo similar a tratados políticos, meditados para explicar e justificar o poder,

e sim eram obras de diversão, utilizadas para entreter ou encorajar cavaleiros através dos

exemplos dos heróis do passado franco. Todavia, ao ter como personagens principais reis,

barões e guerreiros lendários, unidos por laços de fidelidade, o conteúdo político não

poderia deixar de existir, pois é em meio às relações de poder e serviço que esses

personagens circulam e agem. Além disso, as Canções de Gesta são influenciadas pelo

cristianismo latino corrente na Europa ocidental e este tinha ensinamentos sobre o

comportamento do rei justo e sobre as obrigações deste para com o povo ao qual deveria

conduzir à salvação. As próprias ideias formuladas pelo “agostinismo político” não eram

estranhas aos poetas/jograis, frequentadores das cortes principescas, acampamentos

militares ou torneios. Mas esse “agostinismo” era interpretado e usado em favor dos laicos,

na poesia épica.

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Nas Canções de Gesta os cavaleiros são mostrados como superiores aos clérigos,

pois é a atividade guerreira que está sendo destacada. Os religiosos, em especial os

monges, aparecem poucas vezes nos poemas por nós estudados. No caso do Renaut de

Montauban a entrada em um mosteiro é uma forma de fugir à uma punição por um crime

grave, como é o caso da traição feita pelo rei Yon da Gasconha contra os quatro filhos de

Aymon de Dordonne. Do mesmo modo, o imperador épico é superior ao papa,

personagem ausente dos poemas. Em nenhum momento o bispo de Roma aparece nos

nossos textos pedindo ou exigindo a paz entre o rei e seu vassalo, cobrando a Carlos

Magno um comportamento verdadeiramente digno de chefe cristão e nem pregando a

guerra santa contra os pagãos. Toda a iniciativa cabe ao monarca e este aparece como o

elo entre o Céu e a Terra, pois é mostrado como o legítimo representante de Deus neste

mundo.

Esses poemas transmitem um ideário político caro à aristocracia, onde os príncipes

territoriais e os cavaleiros tem um papel importante na condução dos assuntos da

Cristandade, quer em relação à luta contra os infiéis, quer no seu papel de conselheiros

e/ou defensores de seu senhor/rei. As lutas contra Carlos Magno significariam um

rompimento entre o vassalo e o senhor, criando uma crise que enfraqueceria a Cristandade,

pois o monarca não podia agir sozinho ou confiando apenas nos bajuladores de sua corte e

os rebeldes não podiam viver à margem do império e alienados do seu governante. Por

outro lado, a aristocracia não tinha condições de dispensar a presença do rei como um guia

e intermediário nas suas disputas internas.

Não nos parece terem constituído os poemas sobre a épica carolíngia uma

propaganda conscientemente disseminada pela monarquia capetíngia ou por seus auxiliares

do clero. A realeza estava mais interessada em mostrar seu caráter sagrado, adquirido com

a unção, e não a fazer uso de uma literatura cujo enredo poderia não enaltecer

convenientemente o monarca carolíngio épico e, em consequência, a função régia exercida

pelos “Rois de Saint-Denis”.

A Canção de Gesta, por mais aristocrática que se mostre, não podia negar a

preeminência e a necessidade da monarquia dirigindo o reino franco/francês. Ela defendia

uma monarquia em busca do equilíbrio nas suas relações com os príncipes territoriais e

promovia uma realeza não limitada apenas a um símbolo de unidade do reino ou da

Cristandade. O monarca da poesia épica tinha um papel ativo a cumprir quer na proteção

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das terras a ele confiadas por Deus, quer na distribuição da justiça aos homens a ele

submetidos. A paz era uma necessidade, mas ela também envolvia combater quem a

violasse, aos perturbadores da ordem em um reino terrestre ansioso por imitar o pacífico

reino celeste. Se o próprio rei era quem violava essa paz, caberia a seus vassalos conduzi-

lo à via correta. O direito de resistência era reconhecido ao barão cujos direitos haviam

sido violados pelo seu senhor ou pela negação de justiça por parte deste. Mas resistir não

significava destituir o imperador ou ameaçar-lhe a vida. Nas Canções de Gesta não se

defendia a derrubada do monarca que cometera atos contrários à sua função. Aliás, quem

planejava usurpar a coroa eram os integrantes da má linhagem, os Ganelidas, cuja imagem

negativa jamais cativaria o público ao qual a poesia épica estava destinada. Ao não negar a

monarquia, ao coloca-la como uma necessidade para o bom funcionamento do mundo, as

Canções de Gesta a promoviam; elas precisavam de um rei para dirigir a Cristandade e a

aristocracia mais ainda, pois através dele se mantinha o equilíbrio entre as várias linhagens

dentro do império. Deste modo, no final das contas, as Canções de Gesta acabavam sendo

muito mais monárquicas do que aristocráticas. Seu ideal político aproximava-se dos

esforços dos capetíngios em reforçar seu poder, expandir seus meios de ação e,

efetivamente, controlar os grandes príncipes territoriais do reino da França.

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