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Casa de farinha, de Djanira, 1974. O trabalho é a atividade humana por excelência, pela qual o homem transforma o mundo e a si mesmo. Por isso, se num primeiro momento a natureza se apresenta como destino, é o trabalho que surge como condição de transcendência e liberdade, a não ser nos sistemas onde persistem formas de exploração que levam à alienação. O HOMEM UNIDADE I

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Casa de farinha, de Djanira, 1974.

O trabalho é a atividade humana por excelência, pela qual o homem transforma o mundo e asi mesmo. Por isso, se num primeiro momento a natureza se apresenta como destino, é o

trabalho que surge como condição de transcendência e liberdade, a não ser nos sistemas ondepersistem formas de exploração que levam à alienação.

O HOMEM

UNIDADE I

As meninas-lobo

Na índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente numerosos, descobriram-se, em 1920,duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio eveio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humanoe seu comportamento era exatamente semelhante àquele de seus irmãos lobos.

Elas caminhavam de quatro patas apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos esobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos.

Eram incapazes de permanecer de pé. Só se alimentavam de carne crua ou podre, comiam e bebiamcomo os animais, lançando a cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhi-das, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram ativas e ruidosas durante a noite, procu-rando fugir e uivando como lobos. Nunca choraram ou riram.

Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se lentamente. Ela necessi-tou de seis anos para aprender a andar e pouco antes de morrer só tinha um vocabulário de cinqüenta pala-vras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos.

Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e se apegou lentamente às pessoas quecuidaram dela e às outras crianças com as quais conviveu.

A sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se com outros por gestos, inicialmente, e depois por palavrasde um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens simples.

(B. Reymond, Le développement social de l 'enfant et de l 'adolescent, Bruxelas, Dessart, 1965,p. 12-14, apud C. Capalbo, Fenomenologia e ciências humanas, Rio de Janeiro, J. Ozon Ed.,p. 25-26.)

1. Introdução

O relato desse fato verídico nos leva àdiscussão a respeito das diferenças entre ohomem e o animal. As crianças encontradasna índia não tiveram oportunidade de sehumanizar enquanto viveram com os lobos,permanecendo, portanto, "animais". Não pos-suíam nenhuma das características humanas:não choravam, não riam e, sobretudo, não fa-lavam. O processo de humanização só foi ini-ciado quando começaram a participar do con-vívio humano e foram introduzidas no mundodo símbolo pela aprendizagem da linguagem.

Fato semelhante ocorreu nos EstadosUnidos com a menina Helen Keller, nascidacega, surda e muda. Era como um animal atéa idade de sete anos, quando seus pais contra-taram a professora Anne Sullivan, que, a par-tir do sentido do tato, conseguiu conduzi-la aomundo humano das significações.

Esses estranhos casos nos propõem umaquestão inicial: Quais são as diferenças entreo homem e o animal?

2. A atividade animal

Ação instintiva

Os animais que se situam nos níveismais baixos da escala zoológica de desenvol-vimento, como, por exemplo, as aranhas, têma ação caracterizada sobretudo por reflexos einstintos. A ação instintiva é regida por leisbiológicas, idênticas na espécie e invariáveisde indivíduo para indivíduo. A rigidez dá ailusão da perfeição quando o animal, espe-cializado em determinados atos, os executacom extrema habilidade. Não há quem não te-nha ainda observado com atenção e pasmo o

A CULTURA

CAPÍTULO 1

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"trabalho" paciente da aranha tecendo a teia.Mas esses atos não têm história, não se reno-vam e são os mesmos em todos os tempos,salvo as modificações determinadas pela evo-lução das espécies e as decorrentes de muta-ções genéticas. E mesmo quando há tais mo-dificações, elas continuam valendo para todosos indivíduos da espécie e não permitem ino-vações, passando a ser transmitidas heredita-riamente.

Em certas aves chamadas tentilhões, ohábito de fazer ninhos típicos da espécie é tãofixo que após cinco gerações em que essasaves eram criadas por canários, ainda conti-nuavam a construí-los como antes.1

O psicólogo Paul Guillaume2 explicaque um ato inato não precisa surgir desde oinício da vida, pois muitas vezes apareceapenas mais tarde, no decorrer do desenvol-vimento: andorinhas novas, impedidas devoar até certa idade, realizam o primeirovôo sem grande hesitação; gatinhos não es-boçam qualquer reação diante de um rato,mas após o segundo mês de vida aparecemreações típicas da espécie, como persegui-ção, captura, brincadeira com a presa, ron-co, matança etc.

Na verdade os instintos são "cegos", ouseja, são uma atividade que ignora a finalida-de da própria ação. A vespa "fabrica" umacélula onde deposita o ovo junto ao qual colo-ca aranhas para que a larva, ao nascer, encon-tre alimento suficiente. Ora, se retirarmos asaranhas e o ovo, mesmo assim o inseto conti-nuará realizando todas as operações, termi-nando pelo fechamento adequado da célula,ainda que vazia. Esse comportamento é"cego" porque não leva em conta o sentidoprincipal que deveria determinar a "fabrica-ção" da célula, ou seja, a preservação do ovoe da futura larva.

O ato humano voluntário, em contra-partida, é consciente da finalidade, isto é, oato existe antes como pensamento, comouma possibilidade, e a execução é o resulta-do da escolha dos meios necessários paraatingir os fins propostos. Quando há interfe-rências externas no processo, os planos tam-bém são modificados para se adequarem ànova situação.

A inteligência concreta

Nos níveis mais altos da escala zooló-gica, por exemplo com os mamíferos, as açõesdeixam de ser exclusivamente resultado dereflexos e instintos e apresentam umaplasticidade maior, característica dos atos in-teligentes. Ao contrário da rigidez dos instin-tos, a resposta ao problema, ou à situaçãonova para os quais não há uma programaçãobiológica, é uma resposta inteligente, e comotal é improvisada, pessoal e criativa.

A jovem e o macaco, de Trémois. Porque o com-portamento dos símios sempre nos provoca umolhar intrigante? Talvez porque, se os gestos domacaco o fazem assemelhar-se aos homens, aomesmo tempo percebemos o abismo que sepa-ra os animais dos seres humanos, os únicos ca-pazes de consciência de si.

Experiências interessantes foram realiza-das pelo psicólogo gestaltista Kõhler nas ilhasCanárias, onde instalou uma colônia de chim-panzés. Um dos experimentos consiste em colo-car o animal faminto numa jaula onde são pen-duradas bananas que o animal não consegue al-cançar. O chimpanzé resolve o problema quan-do puxa um caixote e o coloca sob a fruta a fimde pegá-la. Segundo Kõhler, a solução encon-trada pelo chimpanzé não é imediata, mas nomomento em que o animal tem um insight(discernimento, "iluminação súbita"), isto é,quando o macaco tem a visão global do campo eestabelece a relação entre o caixote e a fruta.

Esses dois elementos, o caixote e a ba-nana, antes separados e independentes, pas-sam a fazer parte de uma totalidade. É como

1 A mente, in Biblioteca Científica Life, Rio de Janeiro, J. Olympio, p. 192-193.2 P. Guillaume, Manual de psicologia, p. 35-37.

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se o animal percebesse uma realidade novaque lhe possibilita uma ação não-planejadapela espécie. Portanto, não se trata mais deação instintiva, de simples reflexo, mas de umato de inteligência.

A inteligência distingue-se do instintopor sua flexibilidade, já que as respostas sãodiferentes conforme a situação e também porvariarem de animal para animal. Tanto é queSultão, um dos chimpanzés mais inteligentesno experimento de Kõhler, foi o único que feza proeza de encaixar um bambu em outro paraalcançar a fruta.

Trata-se, porém, de um tipo de inteli-gência concreta, porque depende da expe-riência vivida "aqui e agora". Mesmo quandoo animal repete mais rapidamente o teste jáaprendido, seu ato não domina o tempo, pois,a cada momento em que é executado, esgota-se no seu movimento.

Em outras palavras, o animal não inventao instrumento, não o aperfeiçoa, nem o conser-va para uso posterior. Portanto, o gesto útil nãotem seqüência e não adquire o significado deuma experiência propriamente dita. Mesmo quealguns animais organizem "sociedades" maiscomplexas e até aprendam formas de sobrevi-vência e as ensinem a suas crias, não há nadaque se compare às transformações realizadaspelo homem enquanto criador de cultura.

3. A atividade humana

A linguagem

O homem é um ser que fala. A palavrase encontra no limiar do universo humano,pois caracteriza fundamentalmente o homeme o distingue do animal.

Se criássemos juntos um bebê humano eum macaquinho, não veríamos muitas diferen-ças nas reações de cada um nos primeiros con-tatos com o mundo e as pessoas. O desenvolvi-mento da percepção, da preensão dos objetos,do jogo com os adultos é feito de forma simi-lar, até que em dado momento, por volta dosdezoito meses, o progresso do bebê humanotorna impossível prosseguirmos na compara-ção com o macaco, devido à capacidade que ohomem tem de ultrapassar os limites da vidaanimal ao entrar no mundo do símbolo.

Poderíamos dizer, porém, que os ani-mais também têm linguagem. Mas a natureza

dessa comunicação não se compara à revolu-ção que a linguagem humana provoca na rela-ção do homem com o mundo.

É interessante o estudo da "linguagem"das abelhas, que dançando "comunicam" àsoutras onde acharam pólen. Ninguém pode ne-gar que o cachorro expressa a emoção por sonsque nos permitem identificar medo, dor, pra-zer. Quando abana o rabo ou rosna arreganhan-do os dentes, o cão nos diz coisas; e quandopronunciamos a expressão "Vamos passear",ele nos aguarda alegremente junto à porta.

No exemplo das abelhas, estamos dian-te da linguagem programada biologicamente,idêntica na espécie. No segundo exemplo, odo cachorro, a manifestação não se separa daexperiência vivida; ao contrário, se esgotanela mesma, e o animal não faz uso dos "ges-tos vocais" independentemente da situação naqual surgem. Quanto a entender o que o donodiz, isso se deve ao adestramento, e os resul-tados são sempre medíocres, porque mecâni-cos, rígidos, geralmente obtidos medianteaprendizagem por reflexo condicionado.

A diferença entre a linguagem humanae a do animal está no fato de que este não co-nhece o símbolo, mas somente o índice. O ín-dice está relacionado de forma fixa e únicacom a coisa a que se refere. Por exemplo, asfrases com que adestramos o cachorro devemser sempre as mesmas, pois são índices, istoé, indicam alguma coisa muito específica.

Por outro lado, o símbolo é universal,convencional, versátil e flexível. Considere-mos a palavra cruz- Além de ser uma conven-ção de certa forma arbitrária (é assim em por-tuguês; o inglês diz cross, e o francês croix).Mas a palavra cruz não tem um sentidounívoco, na medida em que faz lembrar uminstrumento usado para executar os condena-dos à morte; pode representar o cristianismo;referir-se à morte (ver seção de necrologia dosjornais); se usada de cabeça para baixo, ad-quire outro significado para certos roqueiros;pode significar apenas uma encruzilhada decaminhos; ou um enfeite, e assim por diante,com múltiplas, infindáveis e inimagináveissignificações. (Consultar também o Capítulo4 — Linguagem, conhecimento, pensamento.)

Assim, a linguagem animal visa a adap-tação à situação concreta, enquanto a lingua-gem humana intervém como uma forma abs-trata que distancia o homem da experiênciavivida, tornando-o capaz de reorganizá-la

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numa outra totalidade e lhe dar novo sentido.É pela palavra que somos capazes de nos si-tuar no tempo, lembrando o que ocorreu nopassado e antecipando o futuro pelo pensa-mento. Enquanto o animal vive sempre nopresente, as dimensões humanas se ampliampara além de cada momento.

É por isso que podemos dizer que, mes-mo quando o animal consegue resolver pro-blemas, sua inteligência é ainda concreta. Jáo homem, pelo poder do símbolo, tem inteli-gência abstrata.

Se a linguagem, por meio da representa-ção simbólica e abstrata, permite o distancia-mento do homem em relação ao mundo, tam-bém é o que possibilitará seu retorno ao mundopara transformá-lo. Portanto, se não tem opor-tunidade de desenvolver e enriquecer a lingua-gem, o homem torna-se incapaz de compreen-der e agir sobre o mundo que o cerca.

Na literatura, é belo (e triste) o exemploque Graciliano Ramos nos dá com Fabiano,protagonista de Vidas secas. A pobreza de vo-cabulário da personagem prejudica a tomada deconsciência da exploração a que é submetida, ea intuição que tem da situação não é suficientepara ajudá-la a reagir de outro modo.

Exemplo semelhante está no livro 1984,do inglês George Orwell, cuja história se pas-sa num mundo do futuro dominado pelo po-der totalitário, no qual uma das tentativas deesmagamento da oposição crítica consiste nasimplificação do vocabulário realizada pela"novilíngua". Toda gama de sinônimos é re-duzida cada vez mais: pobreza no falar, po-breza no pensar, impotência no agir.

Se a palavra, que distingue o homem detodos os seres vivos, se encontra enfraquecidana possibilidade de expressão, é o próprio ho-mem que se desumaniza.

O trabalho

Seria pouco concluir daí que a diferençaentre homem e animal estaria no fato de o ho-mem ser um animal que pensa e fala. De fato,a linguagem humana permite a melhor açãotransformadora do homem sobre o mundo, ecom isso completamos a distinção: o homemé um ser que trabalha e produz o mundo e a simesmo.

O animal não produz a sua existência,mas apenas a conserva agindo instintivamen-te ou, quando se trata de animais de maior

complexidade orgânica, "resolvendo" proble-mas de maneira inteligente. Esses atos visama defesa, a procura de alimentos e de abrigo, enão devemos pensar que o castor, ao construiro dique, e o joão-de-barro, a sua casinha, este-jam "trabalhando". Se o trabalho é a açãotransformadora da realidade, na verdade o ani-mal não trabalha, mesmo quando cria resulta-dos materiais com essa atividade, pois suaação não é deliberada, intencional.

O trabalho humano é a ação dirigida porfinalidades conscientes, a resposta aos desa-fios da natureza na luta pela sobrevivência.Ao reproduzir técnicas que outros homens jáusaram e ao inventar outras novas, a ação hu-mana se torna fonte de idéias e ao mesmo tem-po uma experiência propriamente dita.

O trabalho, ao mesmo tempo que trans-forma a natureza, adaptando-a às necessida-des humanas, altera o próprio homem, desen-volvendo suas faculdades. Isso significa que,pelo trabalho, o homem se autoproduz. En-quanto o animal permanece sempre o mesmona sua essência, já que repete os gestos co-muns à espécie, o homem muda as maneiraspelas quais age sobre o mundo, estabelecendorelações também mutáveis, que por sua vezalteram sua maneira de perceber, de pensar ede sentir.

Dedalo e ícaro, de Charles-Paul Landon. Se-gundo o mito grego, Dédalo consegue fugirde seu cativeiro construindo asas para ele eseu filho ícaro. Dédalo alça vôo e pousa asalvo na Sicília, enquanto seu imprudentefilho voa em direção ao sol, cujo calor derretea cera que prende as asas e o faz tombar. Essemito simboliza a engenhosidade técnica quepermite ao homem sua liberdade, mas cujaambição desmedida pode levar à destruição.

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Por ser uma atividade relacionai, o tra-balho, além de desenvolver habilidades, per-mite que a convivência não só facilite a apren-dizagem e o aperfeiçoamento dos instrumen-tos, mas também enriqueça a afetividade re-sultante do relacionamento humano: experi-mentando emoções de expectativa, desejo,prazer, medo, inveja, o homem aprende a co-nhecer a natureza, as pessoas e a si mesmo.

O trabalho é a atividade humana por ex-celência, pela qual o homem intervém na na-tureza e em si mesmo. O trabalho é condiçãode transcendência e, portanto, é expressão daliberdade.

Veremos no Capítulo 2 (Trabalho ealienação) que o trabalho, para atingir esse ní-vel superior de condição de liberdade, não de-pende apenas da vontade de cada um. Ao con-trário, inserido no contexto social que o tornapossível, muitas vezes é condição de aliena-ção e de desumanização, sobretudo nos siste-mas onde as divisões sociais privilegiam al-guns e submetem a maioria a um trabalho im-posto, rotineiro e nada criativo. Em vez decontribuir para a realização do homem, essetrabalho destrói sua liberdade.

4. Cultura e humanização

As diferenças entre o homem e o animalnão são apenas de grau, pois, enquanto o ani-mal permanece mergulhado na natureza, ohomem é capaz de transformá-la, tornandopossível a cultura. O mundo resultante daação humana é um mundo que não podemoschamar de natural, pois se encontra transfor-mado pelo homem.

A palavra cultura também tem váriossignificados, tais como o de cultura da terraou cultura de um homem letrado. Em antro-pologia, cultura significa tudo que o homemproduz ao construir sua existência: as práti-cas, as teorias, as instituições, os valores ma-teriais e espirituais. Se o contato que o homemtem com o mundo é intermediado pelo símbo-lo, a cultura é o conjunto de símbolos elabora-dos por um povo em determinado tempo e lu-gar. Dada a infinita possibilidade de simboli-zar, as culturas dos povos são múltiplas e va-riadas.

A cultura é, portanto, um processo deautoliberação progressiva do homem, o que ocaracteriza como um ser de mutação, um ser

de projeto, que se faz à medida que transcen-de, que ultrapassa a própria experiência.

Quando o filósofo contemporâneoGusdorf diz que "o homem não é o que é, mas éo que não é", não está fazendo um jogo de pala-vras. Ele quer dizer que o homem não se definepor um modelo que o antecede, por uma essên-cia que o caracteriza, nem é apenas o que as cir-cunstâncias fizeram dele. Ele se define pelo lan-çar-se no futuro, antecipando, por meio de umprojeto, a sua ação consciente sobre o mundo.

Não há caminho feito, mas a fazer, nãohá modelo de conduta, mas um processo con-tínuo de estabelecimento de valores. Nadamais se apresenta como absolutamente certoe inquestionável.

É evidente que essa condição de certaforma fragiliza o homem, pois ele perde a se-gurança característica da vida animal, em har-monia com a natureza.

Ao mesmo tempo, o que parece ser suafragilidade é justamente a característica huma-na mais perfeita e mais nobre: a capacidade dohomem de produzir sua própria história.

5. A comunidade dos homens

Retomando o que foi dito até agora: ohomem é um ser que fala; é um ser que traba-lha e, por meio do trabalho, transforma a na-tureza e a si mesmo.

Nada disso, porém, será completo se nãoenfatizarmos que a ação humana é uma açãocoletiva. O trabalho é executado como tarefasocial, e a palavra toma sentido pelo diálogo.

Nem mesmo o ermitão pode ser consi-derado verdadeiramente solitário, pois nele aausência do outro é apenas camuflada, e suaescolha de se afastar faz permanecer a cadamomento, em cada ato seu, a negação e, por-tanto, a consciência e a lembrança da socieda-de rejeitada. Seus valores, mesmo colocadoscontra os da sociedade, se situam também apartir dela. A recusa de se comunicar é aindaum modo de comunicação...

O mundo cultural é um sistema de sig-nificados já estabelecidos por outros, de modoque, ao nascer, a criança encontra o mundo devalores já dados, onde ela vai se situar. A lín-gua que aprende, a maneira de se alimentar, ojeito de sentar, andar, correr, brincar, o tomda voz nas conversas, as relações familiares,tudo enfim se acha codificado. Até na emo-

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ção, que pareceria uma manifestação espontâ-nea, o homem fica à mercê de regras que diri-gem de certa forma a sua expressão. Podemosobservar como a nossa sociedade, preocupa-da com a visão estereotipada da masculinida-de, vê com complacência o choro feminino eo recrimina no homem.

O próprio corpo humano nunca é apre-sentado como mera anatomia, de tal formaque não existe propriamente o "nu natural":todo homem já se percebe envolto em panos,e portanto em interdições, pelas quais é leva-do a ocultar sua nudez em nome de valores(sexuais, amorosos, estéticos) que lhe são en-sinados. E mesmo quando se desnuda, o faztambém a partir de valores, pois transgride osestabelecidos ou propõe outros novos.

Todas as diferenças existentes no com-portamento modelado em sociedade resultamda maneira pela qual os homens organizam asrelações entre si, que possibilitam o estabele-cimento das regras de conduta e dos valoresque nortearão a construção da vida social, eco-nômica e política.

Considerando isso, como fica a indivi-dualidade diante da herança social? Há o ris-co de o indivíduo perder sua liberdade e au-tenticidade. É o que Heidegger, filósofo ale-mão contemporâneo, chama de "mundo doman" (man equivale em português ao prono-me reflexivo se ou ao impessoal a gente). Ves-te-se, come-se, pensa-se, não como cada umgostaria de se vestir, comer ou pensar, mascomo a maioria o faz. Os sistemas de controleda sociedade aprisionam o indivíduo numarede aparentemente sem saída.

Entretanto, assim como a massificaçãopode ser decorrente da aceitação sem críticados valores impostos pelo grupo social, tam-bém é verdade que a vida autêntica só pode

ocorrer na sociedade e a partir dela. Aí residejustamente o paradoxo de nossa existência so-cial, pois, como vimos, o processo dehumanização se faz pelas relações entre oshomens, e é dos impasses e confrontos dessasrelações que a consciência de si emerge lenta-mente. O homem move-se, então, continua-mente entre a contradição e sua resolução.

Cabe ao homem a preocupação constan-te de manter viva a dialética, a contradiçãofecunda de pólos que se opõem mas não seseparam, pela qual, ao mesmo tempo em queo homem é um ser social, também é uma pes-soa, isto é, tem uma individualidade que o dis-tingue dos demais.

Portanto, a sociedade é a condição daalienação e da liberdade, é a condição para ohomem se perder, mas também de se encon-trar. O sociólogo norte-americano PeterBerger usa a expressão êxtase (ékstasis, emgrego, significa "estar fora", "sair de si") paraexplicar o ato possível de o homem "se man-ter do lado de fora ou dar um passo para foradas rotinas normais da sociedade"3, o que per-mite o distanciamento e alheamento em rela-ção ao próprio mundo em que se vive.

A função de "estranhamento" é funda-mental para o homem desencadear as forçascriativas, e se manifesta de múltiplas for-mas: quando paramos para refletir na vidadiária, quando o filósofo se admira com o queparece óbvio, quando o artista lança um olharnovo sobre a sensibilidade já embaçada pelocostume, quando o cientista descobre umanova hipótese.

O "sair de si" é remédio para o precon-ceito, o dogmatismo, as convicções inabalá-veis e portanto paralisantes. É a condição paraque, ao retornar de sua "viagem", o homem setorne melhor.

Exercícios

1. Faça um quadro comparativo das caracte-rísticas do instinto, da inteligência concreta e da in-teligência abstrata.

2. Faça um quadro comparativo das caracte-rísticas da linguagem animal e da linguagem hu-mana.

3. Caracterize e distinga estes dois tipos deatos: uma aranha tecendo a teia e um chimpanzésubindo em um caixote para alcançar uma banana.

4. Comente: "Uma aranha executa operaçõesque se assemelham às manipulações do tecelão, e aconstrução das colméias pelas abelhas poderia en-

' P. L. Berger, Perspectivas sociológicas: uma visão humanística, p. 152.

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vergonhar, por sua perfeição, mais de um mestre-de-obras. Mas há algo em que o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha, e é o fato de que,antes de executar a construção, ele a projeta em seucérebro". (Karl Marx)

5. Comente: Sísifo, condenado, após a morte,a empurrar nos Infernos uma pedra até o alto deuma montanha, de onde ela torna a cair sem cessar,não trabalha, pois seu esforço não serve para nada.

6. Explique o que significa: "Pelo trabalho ohomem se autoproduz".

7. Critique o uso da expressão "nu natural".

8. Procure informar-se sobre a história deTarzan. Com base no que foi estudado neste capí-tulo e no texto sobre as meninas-lobo, explique porque essa lenda é inverossímil.

Leia o texto complementar e responda àsquestões de 9 a 12.

9. Explique o que significa: "O mundo do ani-mal é um mundo sem conceito".

10. Como os autores relacionam tempo e lin-guagem?

11. Qual é o significado das histórias que rela-tam as transformações de seres humanos emanimais?

12. Procure exemplos na literatura adulta e in-fantil (inclusive folclore) de histórias em que ho-mens se transformam em animais ou vice-versa.Analise o significado.

Texto complementar

O homem e o animal

O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele nenhuma palavra existe para fixar oidêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa nadiversidade das situações. Mesmo que a recognição seja possível, a identificação está limitada aoque foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar comopermanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca dopassado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal responde ao nome e não tem um eu, estáfechado em si mesmo e, no entanto, abandonado; a cada momento surge uma nova compulsão, ne-nhuma idéia a transcende. (...)

A transformação das pessoas em animais como castigo é um tema constante dos contos infan-tis de todas as nações. Estar encantado no corpo de um animal equivale a uma condenação. Para ascrianças e os diferentes povos, a idéia de semelhantes metamorfoses é imediatamente compreensívele familiar. Também a crença na transmigração das almas, nas mais antigas culturas, considera afigura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no olhar do tigre dá testemunhodo mesmo horror que as pessoas receavam nessa transformação. Todo animal recorda uma desgraçainfinita ocorrida em tempos primitivos. O conto infantil exprime o pressentimento das pessoas.

(Th. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1985, p. 230-231.)

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TRABALHOE ALIENAÇÃO

A história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação dohomem pelo homem.

(Max Horkheimer)

1. Visão filosófica do trabalho

Vimos no capítulo anterior que, pelo tra-balho, o homem transforma a natureza, e nes-sa atividade se distingue do animal porque suaação é dirigida por um projeto (antecipaçãoda ação pelo pensamento), sendo, portanto,deliberada, intencional.

O trabalho estabelece a relação dialéticaentre a teoria e a prática, pela qual uma nãopode existir sem a outra: o projeto orienta aação e esta altera o projeto, que de novo alteraa ação, fazendo com que haja mudança dosprocedimentos empregados, o que gera o pro-cesso histórico.

Além disso, para que o distanciamentoda ação seja possível, o homem faz uso da lin-guagem: ao representar o mundo, torna pre-sente no pensamento o que está ausente e co-munica-se com o outro. O trabalho se realizaentão, e sobretudo, como atividade coletiva.

Além de transformar a natureza,humanizando-a, além de proceder à "comu-nhão" (à união) dos homens, o trabalho trans-forma o próprio homem. "Todo trabalho tra-balha para fazer um homem ao mesmo tempoque uma coisa", disse o filósofo personalistaMounier. Isto significa que, pelo trabalho, ohomem se autoproduz: desenvolve habilida-des e imaginação; aprende a conhecer as for-ças da natureza e a desafiá-las; conhece aspróprias forças e limitações; relaciona-se comos companheiros e vive os afetos de toda rela-ção; impõe-se uma disciplina. O homem não

permanece o mesmo, pois o trabalho altera avisão que ele tem do mundo e de si mesmo.

Se num primeiro momento a natureza seapresenta aos homens como destino, o traba-lho será a condição da superação dos determi-nismos: a transcendência é propriamente a li-berdade. Por isso, a liberdade não é algumacoisa que é dada ao homem, mas o resultadoda sua ação transformadora sobre o mundo,segundo seus projetos. (Consultar o Capítulo30 — A liberdade.)

2. Visão histórica do trabalho

A concepção de trabalho sempre estevepredominantemente ligada a uma visão negati-va. Na Bíblia, Adão e Eva vivem felizes até queo pecado provoca sua expulsão do Paraíso e acondenação ao trabalho com o "suor do seu ros-to". A Eva coube também o "trabalho" do parto.

A etimologia da palavra trabalho vem dovocábulo latino tripaliare, do substantivotripalium, aparelho de tortura formado por trêspaus, ao qual eram atados os condenados, e quetambém servia para manter presos os animaisdifíceis de ferrar. Daí a associação do trabalhocom tortura, sofrimento, pena, labuta.

Na Antigüidade grega, todo trabalhomanual é desvalorizado por ser feito por es-cravos, enquanto a atividade teórica, conside-rada a mais digna do homem, representa a es-

CAPÍTULO 2

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sência fundamental de todo ser racional. ParaPlatão, por exemplo, a finalidade dos homenslivres é justamente a "contemplação dasidéias". Voltaremos a analisar este aspecto noCapítulo 10 (Teoria do conhecimento).

Também na Roma escravagista o traba-lho era desvalorizado. É significativo o fatode a palavra negotium indicar a negação doócio: ao enfatizar o trabalho como "ausênciade lazer", distingue-se o ócio como prerroga-tiva dos homens livres.

Na Idade Média, Santo Tomás deAquino procura reabilitar o trabalho manual,dizendo que todos os trabalhos se equivalem,mas, na verdade, a própria construção teóricade seu pensamento, calcada na visão grega,tende a valorizar a atividade contemplativa.Muitos textos medievais consideram a arsmechanica (arte mecânica) uma ars inferior.

Tanto na Antiguidade como na IdadeMédia, essa atitude resulta na impossibilida-de de a ciência se desligar da filosofia.

Na Idade Moderna, a situação começa ase alterar: o crescente interesse pelas artesmecânicas e pelo trabalho em geral justifica-se pela ascensão dos burgueses, vindos desegmentos dos antigos servos que compravamsua liberdade e dedicavam-se ao comércio, e queportanto tinham outra concepção a respeitodo trabalho.

A burguesia nascente procura novosmercados e há necessidade de estimular asnavegações; no século XV os grandes empre-endimentos marítimos culminam com a des-coberta do novo caminho para as índias e dasterras do Novo Mundo. A preocupação de do-minar o tempo e o espaço faz com que sejamaprimorados os relógios e a bússola. Com oaperfeiçoamento da tinta e do papel e a desco-berta dos tipos móveis, Gutenberg inventa aimprensa.

No século XVII, Pascal inventa a pri-meira máquina de calcular; Torricelli constróio barômetro; aparece o tear mecânico.Galileu, ao valorizar a técnica, inaugura ométodo das ciências da natureza, fazendo nas-cer duas novas ciências, a física e a astrono-mia (ver Capítulo 14 — A ciência na IdadeModerna).

A máquina exerce tal fascínio sobre amentalidade do homem moderno que Descar-tes explica o comportamento dos animaiscomo se fossem máquinas, e vale-se do meca-nismo do relógio para explicar o modelo ca-

racterístico do universo (Deus seria o granderelojoeiro!).

Nascimento das fábricas eurbanização

Na vida social e econômica ocorrem,paralelamente ao desenvolvimento descrito,sérias transformações que determinam a pas-sagem do feudalismo ao capitalismo. Além doaperfeiçoamento das técnicas, dá-se o proces-so de acumulação de capital e a ampliação dosmercados.

O capital acumulado permite a comprade matérias-primas e de máquinas, o que fazcom que muitas famflias que desenvolviam otrabalho doméstico nas antigas corporações emanufaturas tenham de dispor de seus antigosinstrumentos de trabalho e, para sobreviver,se vejam obrigadas a vender a força de traba-lho em troca de salário.

Com o aumento da produção aparecem osprimeiros barracões das futuras fábricas, onde ostrabalhadores são submetidos a uma nova or-dem, a da divisão do trabalho com ritmo e horá-rios preestabelecidos. O fruto do trabalho nãomais lhes pertence e a produção é vendida peloempresário, que fica com os lucros.

Está ocorrendo o nascimento de umanova classe: o proletariado.

No século XVIII, a mecanização no setorda indústria têxtil sofre impulso extraordináriona Inglaterra, com o aparecimento da máquinaa vapor, aumentando significativamente a pro-dução de tecidos. Outros setores se desenvol-vem, como o metalúrgico; também no campose processa a revolução agrícola.

No século XIX, o resplendor do pro-gresso não oculta a questão social, caracteri-zada pelo recrudescimento da exploração dotrabalho e das condições subumanas de vida:extensas jornadas de trabalho, de dezes-seis a dezoito horas, sem direito a férias, semgarantia para a velhice, doença e invalidez;arregimentação de crianças e mulheres, mão-de-obra mais barata; condições insalubres detrabalho, em locais mal-iluminados e sem hi-giene; mal pagos, os trabalhadores tambémviviam mal alojados e em promiscuidade.

Da constatação deste estado de coisas éque surgem no século XIX os movimentossocialistas e anarquistas, que pretendemdenunciar e alterar a situação.

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Crianças trabalhando emuma fábrica de papel naAlemanha, no século XIX.Era freqüente a arregimen-tação de mão-de-obra for-mada por mulheres e crian-ças, submetidas a extensasjornadas de trabalho.

A sociedade pós-industrial

As alterações sociais decorrentes da im-plantação do sistema fabril indicam o deslo-camento de importância central do setor pri-mário (agricultura) para o setor secundário(indústria).

A partir de meados do século XX surgeo que chamamos de sociedade pós-industrial,caracterizada pela ampliação dos serviços(setor terciário). Não que os outros setores te-nham perdido importância, mas as atividadesde todos os setores ficam dependentes do de-senvolvimento de técnicas de informação ecomunicação. Basta ver como o cotidiano detodos nós se acha marcado pelo consumo deserviços de publicidade, comunicação, pes-quisa, empresas de comércio e finanças, saú-de, educação, lazer etc.

A mudança de enfoque descentraliza aatenção antes voltada para a produção (capita-lista versus operário), agora mobilizada peloconsumo e informação, como veremos adiante.

3. O que é alienação?

Hegel, filósofo alemão do século XIX,faz uma leitura otimista da função do trabalhona célebre passagem "do senhor e do escra-vo", descrita na Fenomenologia do espírito.

O filósofo se refere a dois homens quelutam entre si e um deles sai vencedor, poden-do matar o vencido; este se submete, não ou-sando sacrificar a própria vida. A fim de serreconhecido como senhor, o vencedor "con-serva" o outro como "servo". Depois disso, éo servo submetido que tudo faz para o senhor;mas, com o tempo, o senhor descobre que nãosabe fazer mais nada, pois, entre ele e o mun-do, colocou o escravo, que domina a nature-za. O ser do senhor se descobre como depen-dente do ser do escravo e, em compensação, oescravo, aprendendo a vencer a natureza, re-cupera de certa forma a liberdade. O trabalhosurge, então, como a expressão da liberdadereconquistada.

Marx retoma a temática hegeliana, mascritica a visão otimista do trabalho ao demons-trar como o objeto produzido pelo trabalhosurge como um ser estranho ao produtor, nãomais lhe pertencendo: trata-se do fenômenoda alienação.

Em Hegel também surge o conceito dealienação. Em sua pespectiva, ela correspondeao momento em que o espírito "sai de si" e semanifesta na construção da cultura. Essa ci-são provocada pelo espírito que se exteriorizana cultura (por meio do trabalho) é superadapelo trabalho da consciência, que nesse está-gio superior é consciente de si. Com isso, se-gundo Marx, ao privilegiar a consciência,

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Hegel perde a materialidade do trabalho (oque se compreende dentro da linha idealistado pensamento hegeliano).

Isso não significa que Marx não consi-dere o trabalho condição da liberdade. Aocontrário, esse é o ponto central do seu racio-cínio. Para ele, o conceito supremo de todaconcepção humanista está em que o homemdeve trabalhar para si, não entendendo issocomo trabalho sem compromisso com os ou-tros, pois todo trabalho é tarefa coletiva, masno sentido de que deve trabalhar para fazer-sea si mesmo homem. O trabalho alienado odesumaniza. Vejamos portanto em que con-siste a alienação no trabalho.

Conceituação de alienação

Há vários sentidos para o conceito dealienação.

Juridicamente, significa a perda do usu-fruto ou posse de um bem ou direito pela ven-da, hipoteca etc. Nas esquinas costumamosver cartazes de marreteiros chamando a aten-ção dos motoristas: "Compramos seu carro,mesmo alienado".

Referimo-nos a alguém como alienadomental, dizendo, com isso, que tal pessoa élouca. Aliás, alienista é o médico de loucos.

A alienação religiosa aparece nos fenô-menos de idolatria, quando um povo cria ído-los e a eles se submete.

Para Rousseau, a soberania do povo éinalienável, isto é, pertence somente ao povo,que não deve outorgá-la a nenhum represen-tante, devendo ele próprio exercê-la. É o idealda democracia direta.

Na vida diária, chamamos alguém dealienado quando o percebemos desinteressa-do de assuntos considerados importantes, taiscomo as questões políticas e sociais.

Em todos os sentidos, há algo em co-mum no uso da palavra alienação: no sentidojurídico, perde-se a posse de Um bem; na lou-cura, o louco perde a dimensão de si na rela-ção com o outro; na idolatria, perde-se a auto-nomia; na concepção de Rousseau, o povo não

deve perder o poder; o homem comum aliena-do perde a compreensão do mundo em quevive e torna alheio a sua consciência um seg-mento importante da realidade em que se achainserido.

Etimologicamente a palavra alienaçãovem do latim alienare, alienus, que significa"que pertence a um outro". E outro é alius.Sob determinado aspecto, alienar é tornaralheio, transferir para outrem o que é seu.

Para Marx, que analisou esse conceitobásico, a alienação não é puramente teórica,pois se manifesta na vida real do homem, namaneira pela qual, a partir da divisão do tra-balho, o produto do seu trabalho deixa de lhepertencer. Todo o resto é decorrência disso.

Retomando a discussão anterior, vimosque o surgimento do capitalismo determinoua intensificação da procura do lucro e confi-nou o operário à fábrica, retirando dele a pos-se do produto. Mas não é apenas o produtoque deixa de lhe pertencer. Ele próprio aban-dona o centro de si mesmo. Não escolhe o sa-lário — embora isso lhe apareça ficticiamentecomo resultado de um contrato livre —, nãoescolhe o horário nem o ritmo de trabalho epassa a ser comandado de fora, por forças es-tranhas a ele.

Ocorre então o que Marx chama defetichismo da mercadoria e reificação do tra-balhador.

O fetichismo1 é o processo pelo qual amercadoria, ser inanimado, é consideradacomo se tivesse vida, fazendo com que os va-lores de troca se tornem superiores aos valo-res de uso e determinem as relações entre oshomens, e não vice-versa. Ou seja, a relaçãoentre os produtores não aparece como sendorelação entre eles próprios (relação humana),mas entre os produtos do seu trabalho. Porexemplo, as relações não são entre alfaiate ecarpinteiro, mas entre casaco e mesa.

A mercadoria adquire valor superior aohomem, pois privilegiam-se as relações entrecoisas, que vão definir relações materiais en-tre pessoas. Com isso, a mercadoria assumeformas abstratas (o dinheiro, o capital) que,em vez de serem intermediárias entre indiví-

1 Fetichismo: nas práticas religiosas, "feitiço" ou "fetiche" significa objeto a que se atribui poder sobrenatural; empsicologia, fetichismo é a perversão na qual a satisfação sexual depende da visão ou contato com um objeto determinado(sapatos, meias, roupas íntimas etc). O paralelo entre esses dois sentidos e o do fetichismo da mercadoria é que, nos trêscasos, os objetos inertes, sem vida, são "animados", "humanizados".

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duos, convertem-se em realidades soberanase tirânicas.

Em conseqüência, a "humanização" damercadoria leva à desumanização do homem,à sua coisificação, à reificação (do latim res,"coisa"), sendo o próprio homem transforma-do em mercadoria (sua força de trabalho temum preço no mercado).

As discussões a respeito da alienaçãopreocuparam autores marxistas como Lukács,Erich Fromm e Althusser, entre outros, e filó-sofos existencialistas e personalistas comoSartre, o cristão Mounier e o não-marxistaHeidegger, que descreveram os modosinautênticos do existir humano.

A seguir, examinaremos a alienação naprodução, no consumo e no lazer.

Alienação na produção

O taylorismo

Nos sistemas domésticos de manufatu-ra, era comum o trabalhador conhecer todasas etapas da produção, desde o projeto até aexecução. A partir da implantação do sistemafabril, no entanto, isso não é mais possível,devido à crescente complexidade resultante dadivisão do trabalho.

Chamamos dicotomia concepção-exe-cução do trabalho justamente ao processopelo qual um pequeno grupo de pessoas con-cebe, cria, inventa o que vai ser produzido,inclusive a maneira como vai ser produzido, eoutro grupo é obrigado à simples execução dotrabalho, sempre parcelado, pois a cada umcabe parte do processo.

A divisão do trabalho foi intensificadano início do século XX, quando Henry Fordintroduziu o sistema de linha de montagem naindústria automobilística (fordismo). A ex-pressão teórica do processo de trabalho par-celado é levada a efeito por Frederick Taylor(1856-1915), no livro Princípios de adminis-tração científica, onde estabelece os parâ-metros do método científico de racionalizaçãoda produção — daí em diante conhecidocomo taylorismo — e que visa o aumento deprodutividade com a economia de tempo, asupressão de gestos desnecessários e compor-tamentos supérfluos no interior do processoprodutivo.

O sistema foi implantado com sucessono início do século nos EUA e logo extrapo-

lou os domínios da fábrica, atingindo outrostipos de empresa, os esportes, a medicina, aescola e até a atividade da dona de casa. Porexemplo, um ferro de passar é fabricado deacordo com os critérios de economia de tem-po, de gasto de energia (de eletricidade e dadona de casa, por que não?); a localização dapia e do fogão devem favorecer a mobilidade;os produtos de limpeza devem ser eficazesnum piscar de olhos.

Taylor parte do princípio de que o tra-balhador é indolente, gosta de "fazer cera" eusa os movimentos de forma inadequada. Ob-servando seus gestos, determina a simplifi-cação deles, de tal forma que a devida co-locação do corpo, dos pés e das mãos possaaumentar a produtividade. Também a divisãoe o parcelamento do trabalho se mostra impor-tante para a simplificação e maior rapidez doprocesso. São criados cargos de gerentesespecializados em treinar operários, usandocronômetros e depois vigiando-os no desem-penho de suas funções. Os bons funcionáriossão estimulados com recompensas, os indo-lentes, sujeitos a punições. Taylor tentavaconvencer os operários de que tudo isso erapara o bem deles, pois, em última análise, oaumento da produção reverteria em benefíciostambém para eles, gerando a sociedade daopulência.

O homem, reduzido a gestos mecânicos,tornado "esquizofrênico" pelo parcelamentodas tarefas, foi retratado em Tempos moder-nos, filme clássico de Charles Chaplin, o po-pular Carlitos.

O sistema de "racionalização" do traba-lho faz com que o setor de planejamento sedesenvolva, tendo em vista a necessidade deaprimorar as formas de controle da execuçãodas tarefas.

A necessidade de planejamento desen-volve intensa burocratização. Os burocratassão especialistas na administração de coisas ede homens, estabelecendo e justificando ahierarquia e a impessoalidade das normas. Aburocracia e o planejamento se apresentamcom a imagem de neutralidade e eficácia daorganização, como se estivessem baseadosnum saber objetivo, competente, desinteressa-do. Mas é apenas uma imagem de neutralida-de que mascara um conteúdo ideológico (verCapítulo 5 — Ideologia) eminentemente polí-tico: na verdade, trata-se de uma técnica so-cial de dominação. Vejamos por quê.

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Não é fácil submeter o operário a umtrabalho rotineiro, irreflexivo e repetitivo noqual, enquanto homem, ele se encontra redu-zido a gestos estereotipados. Se não compre-endemos o sentido da nossa ação e se o pro-duto do trabalho não é nosso, é bem difícildedicarmo-nos com empenho a qualquer tare-fa. O taylorismo substitui as formas de coa-ção visíveis, de violência direta, pessoal, deum "feitor de escravos", por exemplo, por for-mas mais sutis que tornam o operário dócil esubmisso. É um sistema que impessoaliza aordem, que não aparece mais com a face deum chefe que oprime, diluindo-a nas ordensde serviço vindas do "setor de planejamento".Retira toda a iniciativa do operário, que cum-pre ordens, modela seu corpo segundo crité-rios exteriores, "científicos", e cria a possibi-lidade da interiorização da norma, cuja figuraexemplar é a do operário-padrão.

O recurso de distribuição de prêmios,gratificações e promoções para se obter índicescada vez maiores de produção gera a "caça"aos postos mais elevados na empresa, e esti-mula a competição em vez da solidariedade. Afragmentação dos grupos e do próprio operárioque ocorre nas fábricas facilita ao capitalista ocontrole absoluto do produto final.

É interessante lembrar que o taylorismonão é exclusivo do capitalismo, pois a "racio-nalização" da produção também foi introdu-zida na antiga URSS por Lênin, com a justifi-cativa de que o sistema não era utilizado paraa exploração do trabalhador, mas para sua li-bertação. O produto do trabalho não seriaapropriado pelo capitalista, já que a proprie-dade privada dos meios de produção fora eli-minada com a revolução de 1917. Mas, defato, o que resultou disso não foi a empresaburocratizada, mas o próprio Estado burocrá-tico. Não faltaram críticas de grupos anarquis-tas, intelectuais de esquerda em geral, acusan-do Lênin de ter esquecido o princípio da reali-zação do socialismo a partir de organizaçõesde base, ao introduzir relações hierárquicas depoder dentro do próprio processo de trabalho.

A "racionalização" do processo de traba-lho traz em si uma irracionalidade básica. De-saparece a valorização do sentimento, da emo-ção, do desejo. As pessoas que aparecem nasfichas do setor de pessoal são vistas sem amornem ódio, de modo impessoal. 0 burocrata-di-retor é apenas um profissional que manipula aspessoas como se fossem cifras ou coisas.

O filósofo alemão Habermas, herdeiroda tradição da Escola de Frankfurt, deteve-sena análise dos efeitos perversos do sistema deprodução, opondo os conceitos de razão ins-trumental e razão comunicativa, referentes adois aspectos distintos da realidade social.

A razão instrumental é predominante-mente técnica, usada na organização das for-ças produtivas que visam atingir níveis altosde produtividade e competitividade. Mas a ló-gica da razão instrumental não é a mesma darazão vital, existente no mundo vivido das ex-periências pessoais e da comunicação entre aspessoas.

Ora, a irracionalidade no mundo moder-no (e a sua patologia) decorre da sobreposiçãoda lógica da razão instrumental em setores quedeviam ser regidos pela razão comunicativa.

Não se trata de negar o valor da primei-ra, mas de resgatar o que é perdido em termosde humanização quando a razão técnica se so-brepõe à razão vital.

A alienação no setor de serviços

Marx viveu no período em que a explo-ração capitalista sobre o proletariado era mui-to explícita, e por isso achava que o antago-nismo entre as classes chegaria ao pontocrucial em que o crescente empobrecimentodo operariado levaria à tomada de consciên-cia da dominação e à conseqüente superaçãodela por meio da revolução.

Mas na chamada "sociedade opulenta"dos países economicamente mais desenvolvi-dos (não pense em termos de Brasil!) houve atendência oposta, com a diminuição da explo-ração econômica das massas tal como tinhasido conhecida no século anterior.

Com a ampliação do setor de serviços,aumenta a classe média, multiplicam-se asprofissões de forma inimaginável e nos aglo-merados urbanos os escritórios abrigam mi-lhares de funcionários executivos e burocra-tas em geral.

Na nova organização acentuam-se ascaracterísticas de individualismo que levam àatomização e dispersão dos indivíduos, o quefaz aumentar o interesse pelos assuntos davida privada (e menos pelas questões públi-cas e políticas), além da procura hedonista deformas de lazer e satisfação imediata (talvezjustamente porque o prazer lhes é negado notrabalho alienado!).

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Assim, a exploração e a alienação, em-bora ainda continuem existindo, não apare-cem como atributos da esfera da produção,mas da esfera do consumo. Ao prosperaremmaterialmente, os trabalhadores passam acompartilhar do "espírito do capitalismo", su-cumbindo aos apelos e promessas da socieda-de de consumo, como veremos adiante.

O sofrimento da natureza

Quando tratamos da produção humana,nos referimos ao poder que o homem tem detransformar a natureza e usá-la em função deseus interesses. E desde que a ciência possibi-litou a revolução tecnológica, esse poder vemsendo ampliado enormemente.

E se até aqui demos conta apenas dosprejuízos que a técnica pode causar ao homemsubmetido à alienação, é preciso não esquecerque a própria natureza tem sofrido com o abu-so exercido sobre ela. A exaltação indiscrimi-nada do progresso (ver Capítulo 11 — O co-nhecimento científico) quase nunca tem per-mitido respeitar a integridade da natureza, aponto de as organizações de defesa do meioambiente virem denunciando há tempos asameaças à sobrevivência do planeta.

A sociedade administrada

Chegamos ao impasse que nos deixa per-plexos diante da técnica apresentada de iníciocomo libertadora e que se mostra, afinal, gera-dora de uma ordem tecnocrática opressora.

Quando se submete passivamente aoscritérios de produtividade e desempenho nomundo competitivo do mercado, o homem per-mite que lhe seja retirado todo prazer em suaatividade produtora, passando a ser regido porprincípios "racionais" que o levam à perda desi. Mais ainda, na sociedade da total adminis-tração, segundo a expressão de Horkheimer eAdorno, os conflitos existentes foram dissimu-lados, não havendo oposição porque o homemperdeu sua dimensão de crítica.

Não queremos assumir a posição ingênuada crítica gratuita à técnica, mas é precisopreocupar-se com a absolutização do "espíritoda técnica" (a razão instrumental, a que já nosreferimos). Onde a técnica se torna o princípiomotor, o homem se encontra mutilado, porque

é reduzido ao anonimato, às funções que de-sempenha, e nunca é um fim, mas sempre meiopara qualquer coisa que se acha fora dele.

Enquanto prevalecerem as funções divi-didas do homem que pensa e do homem quesó executa, será impossível evitar a domina-ção, pois sempre existirá a idéia de que só al-guns sabem e são competentes e portanto de-cidem; a maioria que nada sabe é incompe-tente e obedece.

Por isso, a questão fundamental, hoje, é ada necessidade da reflexão moral sobre os finsa que a técnica atende, observando se ela está aserviço do homem ou da sua exploração.

Alienação no consumo

O consumo não-alienado

O ato do consumo é um ato humano porexcelência, no qual o homem atende a suas ne-cessidades orgânicas (de subsistência), cultu-rais (educação e aperfeiçoamento) e estéticas.

Quando nos referimos a necessidades,não se trata apenas daquelas essenciais à so-brevivência, mas também das que facilitam ocrescimento humano em suas múltiplas eimprevisíveis direções e dão condições para atranscendência. Nesse sentido, as necessida-des de consumo variam conforme a cultura etambém dependem de cada indivíduo.

No ato de consumo participamos comopessoas inteiras, movidas pela sensibilidade,imaginação, inteligência e liberdade. Porexemplo, quando adquirimos uma roupa, di-versos fatores são considerados: precisamosproteger nosso corpo; ou ocultá-lo por pudor;ou "revelá-lo" de forma erótica; usamos deimaginação na combinação das peças, mesmoquando seguimos as tendências da moda; de-senvolvemos um estilo próprio de vestir; nãocompramos apenas uma peça, pois gostamosde variar as cores e os modelos.

Enfim, o consumo não-alienado supõe,mesmo diante de influências externas, que oindivíduo mantenha a possibilidade de esco-lha autônoma, não só para estabelecer suaspreferências como para optar por consumirou não.

Além disso, o consumo consciente nun-ca é um fim em si, mas sempre um meio paraoutra coisa qualquer.

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O consumo alienado

Num mundo em que predomina a pro-dução alienada, também o consumo tende aser alienado. A produção em massa tem porcorolário o consumo de massa.

O problema da sociedade de consumo éque as necessidades são artificialmente esti-muladas, sobretudo pelos meios de comuni-cação de massa, levando os indivíduos a con-sumirem de maneira alienada.

A organização dicotômica do trabalho aque nos referimos — pela qual se separam aconcepção e a execução do produto — reduzas possibilidades de o empregado encontrarsatisfação na maior parte da sua vida, enquan-to se obriga a tarefas desinteressantes. Daí aimportância que assume para ele a necessi-dade de se dar prazer pela posse de bens. "A

Lessive Brillo, de Andy Warhol. Principal repre-sentante da Pop Art, o artista destaca pela repe-tição um objeto banal do cotidiano: uma pilhade caixas de prosaicos alvejantes de roupa, quepode nos levar a refletir sobre o impacto visualdos produtos na sociedade de consumo.

civilização tecnicista não é uma civilização dotrabalho, mas do consumo e do 'bem-estar'. Otrabalho deixa, para um número crescente deindivíduos, de incluir fins que lhe são própriose torna-se um meio de consumir, de satisfazeras 'necessidades' cada vez mais amplas."2

Vimos que na sociedade pós-industriala ampliação do setor de serviços desloca aênfase da produção para o consumo de servi-ços. Multiplicam-se as ofertas de possibilidadede consumo. A única coisa a que não se temescolha é não consumir!

Os centros de compras se transformamem "catedrais do consumo", verdadeiros tem-plos cujo apelo ao novo torna tudo descartávele rapidamente obsoleto. Vendem-se coisas,serviços, idéias. Basta ver como em temposde eleição é "vendida" a imagem de certospolíticos...

A estimulação artificial das necessida-des provoca aberrações do consumo: monta-mos uma sala completa de som, sem gostar demúsica; compramos biblioteca "a metro" dei-xando volumes "virgens" nas estantes; adqui-rimos quadros famosos, sem saber apreciá-los(ou para mantê-los no cofre). A obsolescênciados objetos, rapidamente postos "fora demoda", exerce uma tirania invisível, obrigan-do as pessoas a comprarem a televisão nova,o refrigerador ou o carro porque o design setornou antiquado ou porque uma novaengenhoca se mostrou "indispensável".

E quando bebemos Coca-Cola porque"É emoção pra valer!", bebemos o slogan, ocostume norte-americano, imitamos os jovenscheios de vida e alegria. Com o nosso paladaré que menos bebemos...

Como o consumo alienado não é ummeio, mas um fim em si, torna-se um poçosem fundo, desejo nunca satisfeito, um sem-pre querer mais. A ânsia do consumo perdetoda relação com as necessidades reais do ho-mem, o que faz com que as pessoas gastemsempre mais do que têm. O próprio comérciofacilita tudo isso com as prestações, cartõesde crédito, liquidações e ofertas de ocasião,"dia das mães" etc.

Mas há um contraponto importante noprocesso de estimulação artificial do consu-mo supérfluo — notado não só na propagan-da, mas na televisão, nas novelas —, que é a

2 G. Friedmann, Sete estudos sobre o homem e a técnica, p. 147.

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existência de grande parcela da populaçãocom baixo poder aquisitivo, reduzida apenasao desejo de consumir. O que faz com queessa massa desprotegida não se revolte?

Há mecanismos na própria sociedadeque impedem a tomada de consciência: as pes-soas têm a ilusão de que vivem numa socieda-de de mobilidade social e que, pelo empenhono trabalho, pelo estudo, há possibilidade demudança, ou seja, "um dia eu chego lá"... E senão chegam, "é porque não tiveram sorte oucompetência".

Por outro lado, uma série de escapismosna literatura e nas telenovelas fazem com queas pessoas realizem suas fantasias de formaimaginária, isto sem falar na esperança sema-nal da Loto, Sena e demais loterias. Além dis-so, há sempre o recurso ao ersatz, ou seja, aimitação barata da roupa, da jóia, do bule darica senhora.

O torvelinho produção-consumo em queestá mergulhado o homem contemporâneoimpede-o de ver com clareza a própria explo-ração e a perda da liberdade, de tal forma seacha reduzido na alienação ao que Marcusechama de unidimensionalidade (ou seja, auma só dimensão). Ao deixar de ser o centrode si mesmo, o homem perde a dimensão decontestação e crítica, sendo destruída a possi-bilidade de oposição no campo da política, daarte, da moral.

Por isso, nesse mundo não há lugar paraa filosofia, que é, por excelência, o discursoda contestação.

Alienação no lazer

Histórico do lazer

O lazer é criação da civilização indus-trial, e aparece como um fenômeno de massacom características especiais que nunca exis-tiram antes do século XX.

Antes o lazer era privilégio dos nobresque, nas caçadas, festas, bailes e jogos, inten-sificavam suas atividades predominantemen-te ociosas. Mais tarde, os burgueses enrique-cidos também podiam se dar ao luxo de apro-veitar o tempo livre.

Os artesãos e camponeses que viviamantes da Revolução Industrial seguiam o rit-mo da natureza: trabalhavam desde o clareardo dia e paravam ao cair da noite, já que a de-ficiente iluminação não permitia outra esco-

lha. Seguiam o ritmo das estações, pois a se-mente exige o tempo de plantio, tanto quantoa colheita deve ser feita na época certa. Havia"dias sem trabalho", que ofereciam possibili-dade de repouso, embora não muito, pois ge-ralmente os feriados previstos eram impostospela Igreja e havia a exigência de práticas re-ligiosas e rituais obrigatórios. As festas reli-giosas ou as que marcavam o fim da colheitaeram atividades coletivas e adquiriam impor-tante sentido na vida social.

O advento da era industrial e o cresci-mento das cidades alteram o panorama. Coma introdução do relógio, o ritmo do trabalhodeixa de ser marcado pela natureza. A meca-nização, divisão e organização das tarefas exi-gem que o tempo de trabalho seja cronome-trado, e as extensas jornadas de dezesseis adezoito horas mal deixam tempo para a recu-peração fisiológica.

Mas as reivindicações dos trabalhadoresvão lentamente conseguindo alguns êxitos. Apartir de 1850 é estabelecido o descanso se-manal; em 1919 é votada a lei das oito horas;progressivamente a semana de trabalho é re-duzida para cinco dias. Depois de 1930, outrasconquistas, como descanso remunerado, fériase, concomitantemente, a organização de "colô-nias de férias", fazem surgir no século XX o"homem-de-após-trabalho". E o início de umanova era, que tende a tomar contornos maisdefinidos com a intensificação da automaçãodo trabalho. Estamos nos dirigindo a passos lar-gos para a "civilização do lazer"...

No Brasil a legislação trabalhista demo-rou mais tempo e dependeu da tardia organi-zação sindical, uma vez que também o pro-cesso de industrialização brasileiro foi poste-rior ao dos países mais avançados. Apenas nadécada de 30, no governo populista de Getú-lio Vargas, os trabalhadores conquistaram aregulamentação das oito horas diárias de tra-balho e outros benefícios.

A diminuição da jornada de trabalhocria o tempo liberado, que não pode ser con-fundido ainda com o tempo livre, pois aqueleé gasto de inúmeras maneiras: no transpor-te — na maioria das vezes o operário moralonge do local de trabalho; com as ocupaçõesde asseio e alimentação; com o sono; comobrigações familiares e afazeres domésticos;com obrigações sociais, políticas ou religio-sas; às vezes até com um "bico" para ganharmais alguns trocados. Isso sem falar no traba-

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lho da mulher, que sempre supõe a "dupla jor-nada de trabalho".

O que é lazer?

O tempo propriamente livre, de lazer, éconsiderado aquele que sobra após a realiza-ção de todas as funções que exigem uma obri-gatoriedade, quer sejam as de trabalho ou to-das as outras que ocupam o chamado tempoliberado.

O que é lazer, então? Segundo Dumaze-dier, "o lazer é um conjunto de ocupações àsquais o indivíduo pode entregar-se de livrevontade, seja para repousar, seja para diver-tir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, paradesenvolver sua informação ou formação de-sinteressada, sua participação social voluntá-ria ou sua livre capacidade criadora, após li-vrar-se ou desembaraçar-se das obrigaçõesprofissionais, familiares e sociais"3.

Portanto, há três funções solidárias nolazer:

• visa o descanso e, portanto, libera dafadiga;

• visa o divertimento, a recreação, o en-tretenimento e, portanto, é uma complemen-tação que dá equilíbrio psicológico à nossavida, compensando o esforço que despende-mos no trabalho. O lazer oferece, no bom sen-tido da palavra, a evasão pela mudança de lu-gar, de ambiente, de ritmo, quer seja em via-gens, jogos ou esportes ou ainda em ativida-des que privilegiam a ficção, tais como cine-ma, teatro, romance, e que exigem o recurso àexaltação da nossa vida imaginária;

• visa a participação social mais livre, ecom isso promove o nosso desenvolvimento.A procura desinteressada de amigos, de apren-dizagem voluntária, estimula a sensibilidadee a razão e favorece o surgimento de condutasinovadoras.

De tudo isso, fica claro que o lazer au-têntico é ativo, ou seja, o homem não é um serpassivo que deixa "passar o tempo" livre, masempenha-se em algo que escolhe e lhe dá pra-zer e o modifica como pessoa.

É bom não reduzir o lazer criativo ape-nas aos programas com funções claramente di-dáticas. Podemos assistir ativamente a qualquertipo de programa quando somos bons observa-dores, assumimos atitude seletiva, somos sen-

síveis aos estímulos recebidos e procuramoscompreender o que vemos e apreciamos.

O lazer alienado

No mundo em que a produção e o con-sumo são alienados, é difícil evitar que o lazertambém não o seja. A passividade e o embru-tecimento naquelas atividades repercutem notempo livre.

Sabe-se que pessoas submetidas ao tra-balho mecânico e repetitivo na linha de mon-tagem têm o tempo livre ameaçado pela fadi-ga mais psíquica do que física, tornando-seincapazes de se divertir. Ou então, exatamen-te ao contrário, procuram compensações vio-lentas que as recuperem do amortecimentodos sentidos.

A propaganda da bem-montada "indús-tria do lazer" orienta as escolhas e os modis-mos, manipula o gosto, determinando os pro-gramas: boliche, patinação, discotecas, dance-terias, filmes da moda.

Até aqui, fizemos referência a determina-do segmento social que tem acesso ao tempo delazer. Resta lembrar que as cidades não têminfra-estrutura que garanta aos mais pobres aocupação do seu tempo livre: lugares onde ou-vir música, praças para passeios, várzeas para ojoguinho de futebol, clubes populares, locais deintegração social espontânea. Isso toma muitoreduzida a possibilidade do lazer ativo, não-alie-nado, ainda mais se supusermos que o homemse encontra submetido a todas as formas demassificação pelos meios de comunicação.

Vimos que o lazer ativo se caracterizapela participação integral do homem como sercapaz de escolha e de crítica. Dessa forma, olazer ativo permite a reformulação da expe-riência. Tal não ocorre com o lazer passivo,no qual o homem não reorganiza a informa-ção recebida ou a ação executada, de modo queelas nada lhe acrescentam de novo, ao contrá-rio, reforçam os comportamentos mecanizados.

É bom lembrar que o caráter de ativida-de ou passividade nem sempre decorre do tipode lazer em si, mas da postura do homemdiante dele. Assim, duas pessoas que assistemao mesmo filme podem ter atitude ativa oupassiva, dependendo da maneira pela qual seposicionam como seres que comparam, apre-ciam, julgam e decidem ou não.

3 J. Dumazedier, Lazer e cultura popular, p. 34.

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Exercícios

1. Explique: "Pelo trabalho o homem seautoproduz".

2. Qual é a idéia comum nas diversas aborda-gens do conceito de alienação?

3. Qual é, segundo Marx, a origem da aliena-ção do trabalho? Quais são as decorrências?

4. Em que consiste o taylorismo?

5. Em que sentido a "racionalidade" dotaylorismo e da burocracia leva a um irracionalismo?

6. O que distingue o consumo não-alienadodo consumo alienado?

7. Quais são as três funções do lazer segundoDumazedier?

8. Faça distinção entre lazer alienado e não-alienado.

9. Analise o significado do texto a seguir,aplicando os conceitos aprendidos (por exemplo, ode fetichismo):

"Um cartaz publicitário (...) estampa apenas aimagem de um par de olhos em que dois cifrões

tomaram o lugar das pupilas. Quer dizer: o únicoobjeto visível para esses olhos é o valor, porque ospróprios olhos transformaram-se em valor; olhar sópode ser, então, avaliar e valorizar. No capitalis-mo, olhar é calcular o que se vê, operação que nãotem sentido senão o de adicionar novas quantida-des abstratas a outras quantidades abstratas. A seumodo, o cartaz publicitário é, portanto, extrema-mente realista, pois mostra a realidade do capitalis-mo — um processo em que a visão vê o que deveser visto: a destruição de todos os códigos, de to-dos os territórios, de todos os sentidos, e a realiza-ção do valor." (Laymert Garcia dos Santos)

10. Pesquise um dos itens a seguir e faça umadissertação:

a) A evolução da técnica (o utensílio, a máqui-na, o autômato).

b) As transformações provocadas pela técnicana maneira de perceber, pensar, interpretar.

c) Como a técnica altera a relação do homemcom a natureza.

d) Os perigos da tecnocracia.e) A necessidade da filosofia como reflexão crí-

tica sobre os valores a que se destina a técnica.

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UNIDADE IIo

CONHECIMENTO

O artista, pintor brasileiro contemporâneo, buscando a linguagem maisapropriada para exprimir sua visão de mundo, penetra por trás das aparênciasdos objetos, encontrando suas formas básicas na geometria. Essa busca não

deixa de ser análoga à procura da verdade na teoria do conhecimento.

Barcos, de Árcângelo Ianelli.

O QUE ÉCONHECIMENTO

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustian-te do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, jácorroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos.

(Deleuze e Guattari)

1. Introdução

A epígrafe deste capítulo se refere ao es-forço constante que anima o homem a com-preender. Diante do caos — que não significavazio, mas desordem — procuramos estabele-cer semelhanças, diferenças, contigüidades, su-cessão no tempo, causalidades, que possibili-tem "pôr ordem no caos". Mesmo porque sóassim será possível ao homem também agir so-bre o mundo e tentar transformá-lo.

O conhecimento é o pensamento que re-sulta da relação que se estabelece entre o su-jeito que conhece e o objeto a ser conhecido.A apropriação intelectual do objeto supõe quehaja regularidade nos acontecimentos domundo; caso contrário, a consciência cognos-cente nunca poderia superar o caos.

Por exemplo, Kant diz: "Se o cinábrio[minério de mercúrio] fosse ora vermelho, orapreto, ora leve, ora pesado (...), minha imagi-nação empírica nunca teria ocasião de receberno pensamento, com a representação da corvermelha, o cinábrio pesado".

O conhecimento pode designar o ato deconhecer, enquanto relação que se estabeleceentre a consciência que conhece e o mundoconhecido. Mas o conhecimento também serefere ao produto, ao resultado do conteúdodesse ato, ou seja, o saber adquirido e acumu-lado pelo homem.

Na verdade, ninguém inicia o ato de co-nhecer de uma forma virgem, pois esse ato ésimultâneo à transmissão pela educação dos

conhecimentos acumulados em uma determi-nada cultura. No correr dos tempos, a razãohumana adquire formas diferentes, dependen-do da maneira pela qual o homem entra emcontato com o mundo que o cerca. A razão éhistórica e vai sendo tecida na trama da exis-tência humana. Então, a capacidade que o ho-mem tem, em determinado momento, dediscernir as diferenças e as semelhanças, e dedefinir as propriedades dos objetos que o ro-deiam, estabelece o tipo de racionalidade pos-sível naquela circunstância.

A apreensão que fazemos do mundo nãoé sempre tematizada, sendo inicialmente pré-reflexiva. E isso vale tanto para o homem dassociedades tribais e para a criança como paranós, no cotidiano da nossa vida. Não é sempreque estamos refletindo sobre o mundo (aindabem!), e a abordagem que dele fazemos seencontra primeiro no nível da intuição, da ex-periência vivida.

Se de início o homem precisa de cren-ças e opiniões prontas (nas formas de mito oudo senso comum), a fim de apaziguar a afli-ção diante do caos e adquirir segurança paraagir, em outro momento é preciso que ele sejacapaz de "reintroduzir o caos", criticando asverdades sedimentadas, abrindo fissuras e fen-das no "já conhecido", de modo a alcançarnovas interpretações da realidade.

Todo conhecimento dado tende aesclerosar-se no hábito, nos clichês, no precon-

CAPÍTULO 3

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ceito, na ideologia, na rigidez das "escolas". Esseconhecimento precisa ser revitalizado pela cons-trução de novas teorias (no caso da filosofia e daciência) e pelo despertar de novas sensibilidades(no caso da arte).

Pelo esforço resultante do questiona-mento, a razão elabora o trabalho de concei-tuação, que tende a se tornar cada vez maiscomplexo, geral e abstrato. A ação do homem,inicialmente "colada" ao mundo, é lentamen-te elucidada pela razão, que permite "viver empensamento" a situação que ele pretende com-preender e transformar.

Com isso não estamos dizendo que o pen-sar humano possa ficar separado do agir (já vi-mos como essa relação é dialética), mas que opróprio pensamento torna-se objeto do pensa-mento: instala-se a fase de auto-reflexão e críti-ca do conhecimento anteriormente recebido.

Os diversos modos de conhecer, apenasindicados neste item, serão analisados em ou-tros capítulos deste livro: o mito, o senso co-mum, a ciência, a arte e a filosofia.

2. Formas de conhecer

Intuição

Se perguntarmos "de que modo o sujei-to que conhece pode apreender o real?", a res-posta imediata que nos vem à mente é que ohomem conhece pela razão, pelo discurso.

Mas nós apreendemos o real tambémpela intuição, que é uma forma de conheci-mento imediato, isto é, feito sem intermediá-rios, um pensamento presente ao espírito.Como a própria palavra indica (tueri em latimsignifica "ver"), intuição é uma visão súbita.Enquanto o raciocínio é discursivo e se faz pormeio da palavra, a intuição é inefável,inexprimível: como poderíamos explicar emque consiste a sensação do vermelho?

A intuição é importante por ser o pontode partida do conhecimento, a possibilidadeda invenção, da descoberta, dos grandes "sal-tos" do saber humano. Partindo de uma divi-são muito simplificada, a intuição pode ser devários tipos:

• intuição sensível — é o conhecimentoimediato que nos é dado pelos órgãos dos sen-tidos: sentimos que faz calor; vemos que ablusa é vermelha; ouvimos o som do violino.

• intuição inventiva — é a do sábio, doartista, do cientista, quando repentinamentedescobrem uma nova hipótese, um tema ori-ginal. Também na vida diária, enfrentamos si-tuações que exigem soluções criativas, verda-deiras invenções súbitas.

• intuição intelectual — é a que se es-força por captar diretamente a essência do ob-jeto. Por exemplo, a descoberta de Descartesdo cogito (eu pensante) enquanto primeiraverdade indubitável.

Conhecimento discursivo

Para compreender o mundo, para "or-ganizar o caos", a razão supera as informa-ções concretas e imediatas que recebe, or-ganizando-as em conceitos ou idéias geraisque, devidamente articulados, podem levarà demonstração e a conclusões que se con-sideram verdadeiras. Diferentemente da in-tuição, a razão é por excelência a faculdadede julgar.

Chamamos conhecimento discursivo aoconhecimento mediato, isto é, aquele que sedá por meio de conceitos. É o pensamento queopera por etapas, por um encadeamento deidéias, juízos e raciocínios que levam a deter-minada conclusão.

Para tanto, a razão precisa realizar abs-trações. Abstrair significa "isolar", "separarde". Fazemos uma abstração quando isola-mos, separamos um elemento de uma repre-sentação, elemento este que não é dado sepa-radamente na realidade (representação signi-fica a imagem, ou a idéia da "coisa" enquantopresente no espírito).

Quando vemos um cinzeiro, temos ini-cialmente a imagem dele, uma representaçãomental de natureza sensível e de certa formaconcreta e particular, porque se refere àquelecinzeiro especificamente (por exemplo, deforma hexagonal e de cristal transparente).

Quando abstraímos, isolamos essas ca-racterísticas por serem secundárias, e consi-deramos apenas o "ser cinzeiro". Resulta daío conceito ou idéia de cinzeiro, que é a repre-sentação intelectual de um objeto e, portanto,imaterial e geral. Ou seja, a idéia de cinzeironão se refere àquele cinzeiro particular, mas aqualquer objeto que sirva para recolher cin-zas. Da mesma forma, podemos abstrair docinzeiro a forma ou a cor, que de fato não exis-tem fora da coisa real.

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O matemático reduz as coisas que têmpeso, dureza, cor, para só considerar a quanti-dade. Por exemplo, quando dizemos 2, consi-deramos apenas o número, deixando de ladose são duas pessoas ou duas frutas.

A lei científica também é abstrata.Quando concluímos que o calor dilata os cor-pos, fazemos abstração das características quedistinguem cada corpo para considerar apenasos aspectos comuns àqueles corpos, ou seja, o"corpo em geral" enquanto submetido à açãodo calor.

Ora, quanto mais tornamos abstrato umconceito, mais nos distanciamos da realida-de concreta. Esse artifício da razão é impor-tante enquanto possibilidade de trans-cendência, para a superação do "aqui e ago-ra" e construção de hipóteses transformado-ras do real.

No entanto, toda vez que a razão se dis-tancia demais do vivido, a teoria se petrificae o conhecimento é empobrecido. Na filoso-fia contemporânea, como veremos no Capí-tulo 10 (Teoria do conhecimento), a críticaàs formas esclerosadas do racionalismo exa-cerbado faz retomar o valor da intuição empensadores como Bergson, Dilthey, Husserl.

Da mesma forma, permanecer no níveldo vivido e da intuição impede o distanciamen-to fecundo da razão que interpreta e critica.

O verdadeiro conhecimento se faz, por-tanto, pela ligação contínua entre intuição erazão, entre o vivido e o teorizado, entre oconcreto e o abstrato.

3. Teoria do conhecimento

A teoria do conhecimento é uma disci-plina filosófica que investiga quais são os pro-blemas decorrentes da relação entre sujeito eobjeto do conhecimento, bem como as condi-ções do conhecimento verdadeiro.

Embora os filósofos da Antiguidade eda Idade Média tratassem de questões refe-rentes ao conhecimento, não se pode dizerque a teoria do conhecimento existisse en-quanto disciplina independente, pois essasquestões se achavam vinculadas aos textosde metafísica. Surge como disciplina autôno-ma apenas na Idade Moderna, quando os fi-lósofos se ocupam de forma sistemática comas questões sobre a origem, essência e cer-teza do conhecimento humano, a partir de

Descartes, Locke, Hume, e culminando coma grande crítica da razão levada a efeitopor Kant.

O esquema a seguir indica os principaisproblemas do conhecimento:

• quanto ao critério da verdade: o quepermite reconhecer o verdadeiro? (Exemplo:a evidência, a utilidade prática.)

• quanto à possibilidade do conhecimen-to: pode o sujeito apreender o objeto? (Exem-plo: dogmatismo, ceticismo.)

• quanto ao âmbito do conhecimento:abrange a totalidade do real, ou se restringeao sujeito que conhece? (Exemplo: realismo,idealismo.)

• quanto à origem do conhecimento:qual é a fonte do conhecimento? (Exemplo:racionalismo, empirismo.)

A verdade

Todo conhecimento coloca o problemada verdade. Pois quando conhecemos, semprenos perguntamos se o enunciado correspondeou não à realidade.

A moça de turban-te, de Vermeer

Van Meegeren

Van Meegeren foi um pintor que falsificou obrasde Vermeer, como A moça de turbante. O mu-seu de Washington, mesmo depois de descober-ta a fraude, comprou do governo holandês amaioria dos Van Meegeren, tal era a qualidadedo seu trabalho: "Os falsos Vermeer eram ver-dadeiros Van Meegeren".

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Comecemos distinguindo verdade erealidade. Na linguagem cotidiana, freqüen-temente os dois conceitos são confundidos. Senos referimos a um colar, a um quadro, a umdente, só podemos afirmar que são reais e nãoverdadeiros ou falsos. Se dizemos que o colarou o dente são falsos, devemos reconhecerque o "falso" colar é uma verdadeira bijuteriae o dente um verdadeiro dente postiço.

Isso porque a falsidade ou veracidadenão estão na coisa mesma, mas no juízo, eportanto no valor da nossa afirmação. Há ver-dade ou não dependendo de como a coisa apa-rece para o sujeito que conhece. Por isso di-zemos que algo é verdadeiro quando é o queparece ser.

Assim, ao beber o líquido escuro que meparecia café, descubro que o "falso" café éuma verdadeira cevada. A verdade ou falsida-de existe apenas no juízo "este líquido é café",no qual se estabelece o vínculo entre sujeito eobjeto, típico do processo do conhecimento.

Resta portanto saber o que é a verdadeenquanto juízo a respeito da realidade. Paraos escolásticos, filósofos medievais, "averdade é a adequação do nosso pensamentoàs coisas". O juízo seria verdadeiro se arepresentação fosse cópia fiel do objetorepresentado. Essa definição sofreu poste-riormente inúmeras críticas, sobretudoquando, a partir da Idade Moderna, rom-peu-se a crença de que a realidade do mundoaí está para ser conhecida na sua transpa-rência. Afinal, a questão é mais complexa:como julgar a verdade da representaçãodo real pelo pensamento? Ou seja, comosaber se a definição mesma de verdade éverdadeira? Além disso, a filosofia modernavai questionar a possibilidade mesma deconhecimento do real.

Isso nos remete para a discussão arespeito do critério da verdade. Qual o sinalque permite reconhecer a verdade e distingui-la do erro? Não pretendemos analisar passo apasso as discordâncias dos autores a respeitodo assunto, devido à complexidade e ànecessidade de aprofundamento da questão.Algumas referências serão feitas nos capítulosque se seguem; por enquanto, bastam-nosalgumas pistas.

Para Descartes, o critério da verdade é aevidência. Evidente é toda idéia clara edistinta, que se impõe imediatamente e por si

só ao espírito. Trata-se de uma evidênciaresultante da intuição intelectual.

Para Nietzsche é verdadeiro tudo o quecontribui para fomentar a vida da espéciee falso tudo o que é obstáculo ao seudesenvolvimento.

Para o pragmatismo (William James,Dewey, Peirce), a prática é o critério daverdade. Nesse caso, a verdade de umaproposição se estabelece a partir de seusefeitos, dos resultados práticos.

Nos dois últimos casos (Nietzsche epragmatismo), o critério da verdade deixa deser um valor racional e adquire um valor deexistência, que pode ser sintetizado na frasede Saint-Éxupery: "A verdade para o homemé o que faz dele um homem".

Há ainda os lógicos que buscam o crité-rio da verdade na coerência interna do argu-mento. Verdadeiro seria então o raciocínioque não encerra contradições e é coerente comum sistema de princípios estabelecidos. Essaé a verdade típica da matemática. Afirmar quepor um ponto fora de uma reta só passa umaparalela a essa reta pode ser verdadeiro se ad-mitirmos os postulados de Euclides, mas fal-so se adotarmos os princípios da geometrianão-euclidiana.

A verdade pode ainda ser entendidacomo resultado do consenso, enquanto con-junto de crenças aceitas pelos indivíduos emum determinado tempo e lugar e que os ajudaa compreender o real e agir sobre ele.

É difícil e complexa a discussão a res-peito dos critérios da verdade, mesmo porquesão diferentes as posturas que temos diante doreal quando nos dispomos a compreendê-lo.Por exemplo, alguém poderá dizer — bem nalinha dos positivistas — que só a ciência nosdá o conhecimento verdadeiro, uma vez queos critérios de verificabilidade (pelo menosdas ciências da natureza, como a física) noslevam a conclusões seguras, objetivas, aceitaspela comunidade dos cientistas e que, aindapor cima, com o desenvolvimento da tecnolo-gia, resultam em eficácia no agir.

Por outro lado, não há como deixar dereconhecer que a ciência, sendo um conheci-mento abstrato, seleciona o que lhe interessaconhecer e reduz as infinitas possibilidadesdo real, excluindo o sujeito com suas emo-ções e sentimentos. Nesse sentido, por querecusar um outro tipo de verdade, aquela

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intuída pelo sentimento? E não se poderiafalar na verdade que resulta da experiênciaartística, já que também a arte é uma formade conhecimento?

Entre os dois extremos do conhecimen-to, das ciências da natureza e do conhecimentopela arte, convém lembrar as dificuldades nabusca da verdade das ciências humanas (verCapítulo 16 — As ciências humanas) e dasnovas exigências para se estabelecer o estatu-to epistemológico do conhecimento do ho-mem pelo homem.

A possibilidade do conhecimento

Uma das discussões em torno do proble-ma do conhecimento diz respeito à possibili-dade ou não de o espírito humano atingir acerteza. Distinguiremos inicialmente duastendências principais: o ceticismo e odogmatismo.

Ceticismo

"Nada existe. Mesmo se existisse algu-ma coisa, não poderíamos conhecê-la; conce-dido que algo existe e que o podemos conhe-cer, não o podemos comunicar aos outros."Essas três proposições, atribuídas a Górgias(séc. IV a.C), um dos representantes dasofistica, exemplificam a postura conhecidacomo ceticismo.

Naquele mesmo século, outro grego cha-mado Pirro, acompanhando Alexandre Magnoem suas expedições de conquista, conheceumuitos povos com valores e crenças diferentes.Como geralmente fazem os céticos, deve terconfrontado a diversidade das convicções queanimam os homens, bem como as diferentesfilosofias tão contraditórias, abstendo-se no fi-nal de aderir a qualquer certeza.

Pelo menos semelhante no gosto pelasviagens, o filósofo renascentista Montaigneretoma os temas do ceticismo. Contrapõe-seàs certezas da escolástica decadente e à into-lerância de um período de lutas religiosas,analisando nos Ensaios a influência de fato-res pessoais, sociais e culturais na formaçãodas opiniões.

Skeptikós, em grego, significa "que ob-serva", "que considera". O cético tanto obser-va e tanto considera que conclui, nos casos

mais radicais, pela impossibilidade do conhe-cimento; e nas tendências moderadas, pelasuspensão provisória de qualquer juízo.

Portanto, há gradações no ceticismo. Oscéticos moderados admitem uma forma rela-tiva de conhecimento (relativismo), reconhe-cendo os limites para a apreensão da verdade.Para outros moderados, mesmo que seja im-possível encontrar a certeza, não se deve aban-donar a busca. Mas para o ceticismo radical,como o pirronismo, se a certeza é impossível,é melhor renunciar ao conhecimento, o quetraz, como conseqüência prática, a indiferen-ça absoluta em relação a tudo.

O ceticismo radical se contradiz ao seafirmar, pois concluir que "toda certeza é im-possível e a verdade é inacessível" não deixade ser uma certeza, e tem valor de verdade.

Dogmatismo

Dogmatikós, em grego, significa "que sefunda em princípios" ou "relativo a uma dou-trina". Dogmatismo é a doutrina segundo aqual o homem pode atingir a certeza. Filoso-ficamente é a atitude que consiste em admitirque a razão humana tem a possibilidade deconhecer a realidade.

Do ponto de vista religioso, chamamosdogma a uma verdade fundamental e indiscu-tível da doutrina. Na religião cristã, por exem-plo, há o dogma da Santíssima Trindade, se-gundo o qual as três pessoas (Pai, Filho e Es-pírito Santo) não são três deuses, mas apenasum. Deus é uno e trino. Não importa se a ra-zão não consegue entender, já que é um prin-cípio aceito pela fé e o seu fundamento é arevelação divina.

Quando transpomos a idéia de dogmapara o campo não-religioso, ela passa a desig-nar as verdades não-questionadas e inquestio-náveis. Só que, nesse caso, não se estandomais no domínio da fé religiosa, o dogmatis-mo torna-se prejudicial, já que o homem, deposse de uma verdade, fixa-se nela e abdicade continuar a busca.

O mundo muda, os acontecimentos sesucedem e o homem dogmático permanecepetrificado nos conhecimentos dados de umavez por todas. Disse Nietzsche que "as con-vicções são prisões". Refratário ao diálogo, ohomem dogmático teme o novo e não raro setorna intransigente e prepotente. Quando

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resolve agir, o fanatismo é inevitável, e comele, a justificação da violência.

Também chamamos dogmáticos os se-guidores de "escolas" e tendências quando serecusam a discutir suas verdades, permane-cendo refratários às mudanças.

Quando o dogmatismo atinge a política,assume um caráter ideológico que nega opluralismo e abre caminho para a imposiçãoda doutrina oficial do Estado e do partido úni-co, com todas as infelizes decorrências, comocensura e repressão. Em nome do dogma daraça ariana, Hitler cometeu o genocídio dosjudeus e ciganos nos campos de concentração.

Além dos significados comuns do con-ceito de dogmatismo, é preciso ressaltar ou-tro, denunciado por Kant na Crítica da razãopura. Como se propôs a fazer a avaliação dasreais condições dos limites da razão para co-nhecer, Kant chama de dogmáticos todos osfilósofos anteriores, inclusive Descartes, pornão terem colocado a questão da crítica doconhecer como discussão primeira. Ou seja,aqueles filósofos "não acordaram do sonodogmático", no sentido de ainda terem umaconfiança não-questionada no poder da razãoem conhecer.

O âmbito do conhecimento

Os filósofos gregos tinham uma concep-ção realista do conhecimento, pois para elesnão era problemática a existência do mundo.O mundo é considerado inteligível, isto é,tudo no mundo é compreensível pelo pensa-mento. O conhecimento se faz pela formaçãode conceitos, que são verdadeiros enquantoadequados à realidade existente.

Na Idade Moderna, a partir de Descar-tes, o realismo metafísico dos gregos é colo-cado em questão. Porque a questão metafísicaé antecipada pela questão epistemológica"como descobrir a verdade?". Ao desenvolvero método para evitar o erro e chegar à verdadeindubitável, Descartes encontra o cogito. Apergunta "quem existe?", responde: "eu emeus pensamentos". E é desse ponto de parti-da que pensa poder recuperar a existência deDeus e do mundo.

Com isso, o idealismo se configuracomo o caminho para a procura da verdadeque acaba por restringir o conhecimento aoâmbito do sujeito que conhece.

A origem das idéias

Como vimos, a teoria do conhecimentoassume na Idade Moderna uma importânciafundamental e primeira. Uma das questõesque surge é quanto à fonte das idéias: qual é aorigem do pensamento? Duas correntes prin-cipais se desenvolvem então: o racionalismoe o empirismo.

O racionalismo tem seu maior expoenteem Descartes, segundo o qual a razão tem pre-domínio absoluto como fundamento de todoconhecimento possível.

Mas o inglês Locke, embora de forma-ção cartesiana, critica as idéias inatas e elabo-ra o empirismo, teoria do conhecimento se-gundo a qual as idéias derivam direta ou indi-retamente da experiência sensível.

No século XVIII Kant tentará superar como criticismo essas duas posições antagônicas.Restringimo-nos aqui apenas a citar essas tendên-cias porque terão maior espaço no Capítulo 10.

Exercícios

1. Explique o processo do conhecimentousando os seguintes conceitos: sujeito, objeto, pen-samento e verdade.

2. Leia a citação de Deleuze e Guattari e rela-cione com o problema do conhecimento:

"O pintor não pinta sobre uma tela virgem,nem o escritor escreve sobre uma página branca,mas a página ou a tela estão já de tal maneira co-bertas de clichês preexistentes, preestabelecidos,que é preciso de início apagar, limpar, laminar,

mesmo estraçalhar para fazer passar uma correntede ar, saída do caos, que nos traga a visão."

3. Identifique as frases seguintes, indicandose o conhecimento em questão resulta da razão ouda intuição (nesse caso, quando possível, indiquede que tipo):

a) Isto é vermelho, b) É um conhecimento queprogride por idéias gerais e abstratas, c) Exige ouso de linguagem, d) É comunicável, e) Gosto des-te gato. f) Exige demonstração, g) Este lápis é me-

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nor do que aquele, h) É inexprimível. i) Assim quemergulhou na água, Arquimedes descobriu subita-mente o princípio do empuxo. j) É o conhecimentoque se relaciona imediatamente com os objetos.

4. Leia a citação a seguir e, a partir dela, dis-tinga verdade e realidade:

"Van Meegeren é um dos mais ilustres falsá-rios de toda a história da arte. Vários quadros dessepintor foram comprados pelos museus holandesese colocados entre autênticos Vermeer e Pieter deHooch. Toda uma comissão formada por especia-listas altamente competentes concluíra pela auten-ticidade dessas obras. O escândalo teve um finalestranho: o Museu de Washington comprou do go-verno holandês a quase totalidade dos VanMeegeren. Os falsos Vermeer eram verdadeirosVan Meegeren." (Huisman e Vergez)

5. Faça uma pesquisa para distinguir os dife-rentes estados de espírito em relação à verdade: ig-norância; erro; falsidade; opinião; dúvida; proba-bilidade; certeza; crença.

6. Faça uma dissertação sobre o tema: "A ver-dade é filha do tempo".

7. "O filósofo é crítico, embora não seja céti-co. Não desespera da verdade, mas recusa todas ascertezas, considerando-as provisórias e sujeitas aserem relativizadas por novos argumentos."(Rouanet)

Interprete a citação acima respondendo:

a) O que é um filósofo cético?b) Quando seria dogmático?c) Qual é a atitude do filósofo que recusa o

ceticismo e o dogmatismo?

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LINGUAGEM,CONHECIMENTO,

PENSAMENTO

A função do nome se limita sempre a ressaltar um aspecto particular de uma coisa, e é precisamentedesta restrição e desta limitação que depende seu valor. Não é função do nome referir-se exaustivamente a umasituação concreta, mas apenas destacar e mencionar certo aspecto. O isolamento deste aspecto não é um atonegativo, mas positivo, porque no ato de denominação escolhemos, no meio da multiplicidade e difusão dosnossos dados sensoriais, certos centros fixos de percepção que não são os mesmos do pensamento lógico oucientífico.

(E. Cassirer)

Apesar de haver muitos modos de co-nhecer o mundo, através do mito, da arte, daciência, cada um deles com sua linguagem es-pecífica, é através da linguagem verbal quemelhor se manifesta o pensamento abstratoque faz uso de idéias e conceitos gerais. Porisso, vamos começar nossa discussão exata-mente caracterizando a linguagem verbal.

1. A linguagem como atividadehumana

Considerando o homem um ser que falae a palavra a senha de entrada no mundo hu-mano1, vamos examinar mais profundamenteo que vem a ser a linguagem especificamentehumana.

A linguagem é um sistema simbólico. Ohomem é o único animal capaz de criar sím-bolos, isto é, signos arbitrários em relação aoobjeto que representam e, por isso mesmo,convencionais, ou seja, dependentes de acei-tação social. Tomemos, por exemplo, a pala-vra casa. Não há nada no som nem na formaescrita que nos remeta ao objeto por ela repre-sentado (cada casa que, concretamente, existeem nossas ruas). Designar esse objeto pelapalavra casa, então, é um ato arbitrário. A par-tir do momento em que não há relação algu-ma entre o signo casa e o objeto por ele repre-sentado, necessitamos de uma convenção,aceita pela sociedade, de que aquele signo re-presenta aquele objeto. E só a partir dessaaceitação que poderemos nos comunicar, sa-bendo que, em todas as vezes que usarmos a

(Charles M. Schulz, And a Woodstock in a Birch Tree.)

1 G. Gusdorf, A fala, p. 7-8.

CAPÍTULO 4

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palavra casa, nosso interlocutor entenderá oque queremos dizer. A linguagem, portanto, éum sistema de representações aceitas por umgrupo social, que possibilita a comunicaçãoentre os integrantes desse mesmo grupo.

Entretanto, na medida em que esse laçoentre representação e objeto representado éarbitrário, ele é, necessariamente, uma cons-trução da razão, isto é, uma invenção do su-jeito para poder se aproximar da realidade. Alinguagem, portanto, é produto da razão e sópode existir onde há racionalidade.

A linguagem é, assim, um dos principaisinstrumentos na formação do mundo cultural,pois é ela que nos permite transcender a nossaexperiência. No momento em que damos nomea qualquer objeto da natureza, nós o indivi-duamos, o diferenciamos do resto que o cerca;ele passa a existir para a nossa consciência. Comesse simples ato de nomear, distanciamo-nos dainteligência concreta animal, limitada ao aqui eagora, e entramos no mundo do simbólico. Onome é símbolo dos objetos que existem nomundo natural e das entidades abstratas que sótêm existência no nosso pensamento (por exem-plo, ações, estados ou qualidades como tristeza,beleza, liberdade).

O nome tem a capacidade de tornar pre-sente para a nossa consciência o objeto queestá longe de nós.

O nome, ou a palavra, retém na nossamemória, enquanto idéia, aquilo que já nãoestá ao alcance dos nossos sentidos: o cheirodo mar, o perfume do jasmim numa noite deverão, o toque da mão da pessoa amada; o somda voz do pai; o rosto de um amigo querido.O simples pronunciar de uma palavrarepresenta, isto é, torna presente à nossa cons-ciência o objeto a que ela se refere. Não preci-samos mais da existência física das coisas:criamos, através da linguagem, um mundo es-tável de idéias que nos permite lembrar o quejá foi e projetar o que será. Assim é instauradaa temporalidade no existir humano. Pela lin-guagem, o homem deixa de reagir somente aopresente, ao imediato; passa a poder pensar opassado e o futuro e, com isso, a construir oseu projeto de vida.

Por transcender a situação concreta, ofluir contínuo da vida, o mundo criado pelalinguagem se apresenta mais estável e sofre

mudanças mais lentas do que o mundo natu-ral. Pelas palavras, podemos transmitir o co-nhecimento acumulado por uma pessoa ousociedade. Podemos passar adiante esta cons-trução da razão que se chama cultura.

2. Estruturação da linguagem

Toda linguagem é um sistema de signos.O signo é uma coisa que está em lugar de ou-tra, sob algum aspecto2. Por exemplo, o gestode levantar o braço e abanar a mão pode estarno lugar de um cumprimento ou de um adeus;ele é signo dessas duas coisas. Os númerossubstituem as quantidades reais de objetos.Elefante está escrito aqui no lugar do animal.

Tipos de signo

Ora, se o signo está no lugar do objetoque ele representa, essa representação podeassumir aspectos variados, dependendo dotipo de relação que o signo mantém com oobjeto representado.

Se a relação é de semelhança, temos umsigno do tipo ícone. Exemplos: um desenhoque tenha semelhança com o objeto represen-tado; uma fotografia; uma palavra onomato-paica (cocorocó, bem-te-vi etc).

Se a relação é de causa e efeito, uma re-lação que afeta a existência do objeto ou é porela afetada, temos um signo do tipo índice.Exemplos: as nuvens são signos de chuva (sãocausa da chuva); o chão molhado também podeser signo de chuva (é efeito da chuva); a fuma-ça ou o cheiro de queimado são signos de fogo;os sinais matemáticos +, -, x e -=- são signosdas operações que devem ser efetuadas; a febreé signo de doença. Todos esses signos indicam,apontam para o objeto representado.

Se a relação é arbitrária, regida sim-plesmente por convenção, temos o símbolo,que já foi discutido no início deste capítulo.Além das palavras, podemos citar outrosexemplos de símbolos: a cor preta, nas cultu-ras ocidentais, é símbolo de luto, pesar, en-quanto o branco o é na China e no Japão; obranco é também símbolo de pureza; o uso daaliança no dedo anular da mão esquerda sim-boliza a condição de casado. Esses signos são

2 Ch. S. Peirce, Semiótica, p. 46.

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O desenho, nesse caso, é o segundosigno que explica o primeiro, pela seme-lhança com o objeto representado. Um si-nônimo também explica um signo. Conti-nuando a usar o exemplo "casa", podería-mos explicá-lo através da palavra lar. Estesegundo signo (lar) explica o primeiro emsentido bastante específico de "minha casa"ou "lugar onde moro e considero meu refú-gio". Essa explicação é diferente da ofereci-da pelo desenho, que se refere mais à arqui-tetura que à relação afetiva que mantemoscom o lugar onde moramos.

Elementos da linguagem

Precisamente por ser um sistema de sig-nos, toda linguagem possui um repertório, ouseja, uma relação dos signos que vão compô-la. Por exemplo, um dicionário da língua por-tuguesa relaciona signos que pertencem a essalíngua. A linguagem musical tonai, para com-por seu repertório, seleciona, dentre todos ossons possíveis, alguns, denominados dó, ré,mi, fá, sol, lá, si, acrescidos do sustenido oudo bemol (que são meios-tons).

Além do repertório, também é precisoque se estabeleçam as regras de combinaçãodesses signos. Quais podemos usar juntos,quais não podemos? Continuando com osexemplos semânticos, não podemos combinarsignos que tenham sentidos opostos: subir/descer, nascer/morrer etc. Não podemos dizer

"Ele subiu descendo as escadas", mas pode-mos dizer "Ele subiu correndo as escadas".

Como último passo, a linguagem deve es-tabelecer as regras de uso dos signos. Em queocasiões devemos empregar Vossa Senhoria?Quando e como usar a cor preta como luto?

Só quando conhecemos o repertório designos, as regras de combinação e as regras deuso desses signos é que podemos dizer quedominamos uma linguagem.

3. Tipos de linguagem

Apesar de, até este ponto, termos faladomais da linguagem verbal (línguas, como sãoconhecidas), há vários tipos de linguagemcriados pelo homem, que vão das linguagensmatemáticas, linguagens de computador, pas-sam pelas línguas diversas, pelas linguagensartísticas (arquitetônica, musical, pictórica,escultórica, teatral, cinematográfica etc.) echegam às linguagens gestuais, da moda, es-paciais etc.

Será que todas essas linguagens se estru-turam da mesma forma? Será que o repertóriode signos e as regras de combinação e de usodesses signos são similares?

Logo à primeira vista, fica claro que al-gumas dessas linguagens têm estrutura maisflexível que outras.

Tomando a moda como exemplo de lin-guagem flexível, percebemos que, através dostempos e com muito maior rapidez do que aspalavras e os sons de uma língua, é alterado oseu repertório de signos. Há signos que caemem desuso, como, por exemplo, o corpinho(anterior ao sutiã), e há outros que são intro-duzidos a cada nova estação, como o biquínifio dental, surgido no verão de 86. Quanto àsregras de combinação, elas também são variá-veis. Hoje é moda combinar calças compridase vestidos ou túnicas retas, ou, ainda, blusasdiferentes, umas sobre as outras. Isso era inad-missível há algum tempo. Em relação ao uso,podemos dizer o mesmo: hoje, o jeans tementrada franca em festas e até em casamentos,que já exigiram roupas bastante formais.

Essa flexibilidade característica da lin-guagem da moda decorre do fato de que elanão se estabelece, como as línguas faladas,por meio de um processo de cristalização so-cial. Ao contrário, ela é ditada por um peque-no grupo de costureiros, desenhistas e edito-res de moda que, por estarmos numa socieda-

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aceitos pela sociedade como representaçãodos objetos luto, pureza e casamento e só semantêm por convenção, hábito ou tradição.

Podemos ver, assim, que só o homem écapaz de estabelecer signos arbitrários, regi-dos por convenções sociais. Por isso é que di-zemos que o mundo humano é simbólico.

Os outros animais são capazes de enten-der ícones e índices. O cachorro, por exem-plo, utiliza o signo indiciai cheiro. Ele é capazde reconhecer o cheiro do dono numa roupa,num lugar. E o cheiro indica a presença doobjeto (o dono) que ele procura. Ele reconhe-ce, ainda, o tom de voz, as ações que indicampasseio, castigo ou a hora de comer.

Assim, o signo relaciona-se com o objetode forma a dar origem em nossa mente a um se-gundo signo que explica o primeiro. Exem-plificando: para explicar o signo casa a umacriança, podemos fazer o desenho

de capitalista, incentivam mudanças que pro-movam maior consumo.

No outro pólo, podemos usar comoexemplo as linguagens de computador, quesão altamente estruturadas e, portanto, bastan-te inflexíveis.

Cada uma dessas linguagens, sejaAssembler, Basic, Fortran ou Cobol, tem umnúmero muito limitado de signos e de regrasde combinação, e o computador só responderádentro dos limites da sua linguagem. Assim,por exemplo, se ao digitar uma instrução comocopy ("copie") errarmos na ortografia e escre-vermos copi, o computador imediatamente pa-rará, pois seu repertório não inclui esse signo.

As linguagens artísticas constituem ummeio-termo. Se, por um lado, respeitam aespecificidade de cada campo artístico, por ou-tro tendem a explorar esse campo e as possibi-lidades de cada linguagem até seu limite máxi-mo. E é exatamente a essas explorações quedevemos o desenvolvimento e a criação de no-vos estilos e novas técnicas. Por exemplo, naexposição A cor como linguagem (MASP,1975), na qual estavam representadas váriastendências da pintura contemporânea que utili-zam a cor, e não o desenho, como linguagemespecífica da pintura, surpreendemo-nos ao de-parar com uma tela totalmente branca. À pri-meira vista, parecia uma tela em branco, antesde ser pintada. Prestando mais atenção, perce-bemos que ela havia sido pintada de branco.Desconcertados, nos perguntamos o que aqui-lo poderia significar dentro daquela exposição.O que significa o branco em termos de cor?Significa a impressão produzida nos órgãos vi-suais pelos raios da luz não-decomposta. Obranco é anterior às outras cores e contém apossibilidade de todas elas. A tela branca, por-tanto, dentro da proposta da cor como lingua-gem, significava, representava exatamente essapossibilidade de todas as cores. No caso, o ar-tista levou ao limite extremo a experimentaçãoda cor como linguagem.

4. Linguagem, pensamento ecultura

Assim como existem diversos tipos delinguagem, existem diversos tipos de pensa-

mento. Há o pensamento concreto, que se for-ma a partir da percepção, ou seja, da repre-sentação de objetos reais, e é imediato, sensí-vel e intuitivo; e o pensamento abstrato, queestabelece relações (não-perceptíveis), quecria os conceitos e as noções gerais e abstra-tas, é mediato (precisa da mediação da lingua-gem) e racional.

Por exemplo, quando percebemos algu-mas laranjas sobre a fruteira, percebemo-lasnum espaço dado, numa determinada disposi-ção, cor e odor. Essa percepção, portanto, éconcreta, sensível (as laranjas estão ali), ime-diata (dispensa raciocínio) e individual (é da-quelas laranjas).

Já quando o matemático soma 4 + 4, eleestá lidando com uma noção geral de quanti-dade. Não encontramos o número 4 na natu-reza. Encontramos uma certa quantidade delaranjas, abacates, meninos etc. que represen-tamos abstratamente pelos números, que sãoconstrução da nossa razão (ver Capítulo 10 —Teoria do conhecimento).

Para cada tipo de pensamento há umtipo de linguagem adequado. Vejamos.

Para o pensamento abstrato e concei-tuai, que se afasta do sensível, do individual,a língua se apresenta como condição neces-sária, por ser um sistema de signos simbóli-cos que, como já dissemos, nos permitetranscender o dado vivido e construir ummundo de idéias.

Ora, cada língua possui uma estrutura-ção própria em nível de repertório e de regrasde combinação e de uso. Isso quer dizer quecada língua organiza a realidade de modo di-ferente de outra, pois estabelece repertório eregras diferentes.

Exemplo clássico é a língua esquimó,que tem seis nomes diferentes para designarvários estados da neve. Em português, temosapenas a palavra neve. Outras alternativas nãosão previstas na língua portuguesa. O impor-tante, entretanto, não é o fato de uma línguater maior número de palavras para "recortar"3

a realidade, mas saber que a existência dessaspalavras leva à percepção da realidade demodo diferente. O esquimó percebe os dife-rentes estados da neve, e nós percebemos so-mente se há neve ou não.

3 A linguagem elege determinadas partes da realidade para nomear. Nesse sentido, ela "recorta" a realidade.

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Assim, podemos dizer que a estrutura-ção da língua influencia a percepção da reali-dade e o nível de abstração e generalização dopensamento4.

Por outro lado, outros tipos de lingua-gem, em especial as linguagens artísticas, sãomais adequados ao pensamento concreto,como veremos na Unidade VI — Estética,quando tratarmos da arte como forma de pen-samento e conhecimento. O pintor, por exem-plo, está mais ligado ao mundo visual das co-res e formas do que ao mundo abstrato dosconceitos. Podemos adiantar que, na medidaem que as linguagens artísticas são mais fle-xíveis que as línguas, elas necessariamente seestruturam e se reestruturam em função deprojetos específicos. Quando a pintura tinhapor função retratar ou imitar a realidade, vi-mos surgir a linguagem do figurativismo rea-lista, que utiliza recursos variados, como a

perspectiva, para criar a ilusão de profundida-de. Quando a máquina fotográfica foi inven-tada e passou a dar conta dessa retratação darealidade de forma mais eficiente e rápida, apintura precisou encontrar outra função e,conseqüentemente, outra linguagem.

Além do pensamento, a linguagem tam-bém mantém estreita relação com a cultura.Se, por um lado, as várias linguagens fixam epassam adiante os produtos do pensamento dohomem sob a forma de ciência, técnicas e ar-tes, elas também sofrem a influência das mo-dificações culturais. Nas línguas há modifica-ções de repertório e semânticas a partir dasnovas descobertas e do desenvolvimento datécnica. Nas artes, as reestruturações da lin-guagem respondem a mudanças de valores, deanseios e de buscas no seio da cultura de cadasociedade.

Exercícios

1. Levante as idéias principais do texto base.

2. Como se caracterizam as linguagens doponto de vista da estrutura? Dê exemplos seus.

3. Qual a relação entre pensamento e linguagem?

4. Qual a relação entre linguagem e cultura?

5. Explique a seguinte frase de Gusdorf: "Alinguagem fornece a senha de entrada no mundohumano".

6. Discuta a seguinte idéia: "A linguagem nãocria o mundo; objetivamente o mundo já lá está. Avirtude da linguagem, todavia, é a de constituir, apartir de sensações incoerentes, um universo à me-dida da humanidade". (Gusdorf)

7. A partir da leitura do texto base e do textocomplementar I, explique a afirmação de EdwardLopes: "... Vê-se, por aí, que nenhuma língua podeexpressar, com inteira justeza, senão a sua própriacultura, e que ela falha, lamentavelmente, quandopretende traduzir a língua (e a cultura nela implíci-ta) de uma outra sociedade".

Depois de ler o texto complementar II, "Nas-cimento de uma linguagem ", atenda ao solicitadonas questões 8 e 9:

8. Pense nos filmes a que você assiste, mes-mo os seriados de televisão, e tente descobrir querecursos o cinema usa para contar uma história.

9. Um documentário conta uma história?Quais as diferenças de linguagem que apresenta?

Sugestões para pesquisa e seminário

a) Faça uma pesquisa sobre a linguagem dastelenovelas brasileiras. Como elas contam uma his-tória? Quais os recursos de linguagem que usam?

b) Compare a linguagem de dois veículos decomunicação (jornais, revistas, tevê, rádio etc.) emostre como recortam a realidade de modos diver-sos, inclusive em função da linguagem própria decada um. Complete essa discussão relacionando-acom o conceito de ideologia.

4 A. Schaff, Linguagem e conhecimento, p. 252.

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Textos complementares

IAs línguas naturais e a cultura

Se, em face do resto da cultura, "uma língua é o seu resultado ou súmula; o meio para ela operar;a condição para ela subsistir" (Mattoso Câmara, 1969a. 22), cada língua natural é um microcosmo domacrocosmo que é o total da cultura dessa sociedade. Nos termos de Benjamim L. Whorf, cada língua"recorta a realidade" de um modo particular. A "tese de Whorf", como é conhecida, contraria a impres-são ingênua de que as línguas seriam meras variações de expressões que remeteriam a significadosuniversalmente válidos e estáveis (Peterfalvi, 1970. 98). Assim, as línguas naturais não são um decal-que nem uma rotulação da realidade; elas delimitam aspectos de experiências vividas por cada povo, eestas experiências, como as línguas, não coincidem, necessariamente, de uma região para outra.

O indivíduo que guia um automóvel é chamado, em francês, de chauffeur, em espanhol deconductor, em inglês de driver, em português de motorista; isto significa que os franceses associamtal indivíduo com a sua atividade de aquecer o motor para pôr a máquina em movimento; os espa-nhóis e ingleses o associam com o ato de dirigir o carro, enquanto que nós, falantes do português, oassociamos diretamente com o motor do veículo. Trata-se de uma mesma atividade, mas a análiseque cada língua pratica nessa realidade resulta na apreensão de um aspecto particular de uma sériede operações, e esse aspecto focalizado difere de uma para outra comunidade de falantes.

(Edward Lopes, Fundamentos da lingüística contemporânea, p. 21.)

IIO nascimento de uma linguagem

Esses caçadores de imagens colocavam suas câmaras fixas num determinado lugar e "registra-vam" o que estava na frente. Também quando teve início a ficção, a câmara ficava fixa e registravaa cena. Acabada a cena, seguia-se outra. O filme era uma sucessão de "quadros", entrecortados porletreiros que apresentavam diálogos e davam outras informações que a tosca linguagem cinemato-gráfica não conseguia fornecer. A relação entre a tela e o espectador era a mesma que no teatro. Acâmara filmava uma cena como se ela estivesse ocupando uma poltrona na platéia de um teatro. Aospoucos, a linguagem cinematográfica foi-se construindo e é provavelmente aos cineastas america-nos que se deve a maior contribuição para a formação desta linguagem cujas bases foram lançadasaté mais ou menos 1915. Uma linguagem, evidentemente, não se desenvolve em abstrato, mas emfunção de um projeto. O projeto, mesmo que implícito, era contar estórias. O cinema tornava-secomo que o herdeiro do folhetim do século XIX, que abastecia amplas camadas de leitores, e estava-se preparando para se tornar o grande contador de estórias da primeira metade do século XX.A linguagem desenvolveu-se, portanto, para tornar o cinema apto a contar estórias; outras opçõesteriam sido possíveis, que o cinema desenvolvesse uma linguagem científica ou ensaística, mas foi alinguagem da ficção que predominou.

Os passos fundamentais para a elaboração dessa linguagem foram a criação de estruturas nar-rativas e a relação com o espaço. Inicialmente o cinema só conseguia dizer: acontece isto (primeiroquadro), e depois: acontece aquilo (segundo quadro), e assim por diante. Um salto qualitativo é dadoquando o cinema deixa de relatar cenas que se sucedem no tempo e consegue dizer "enquanto isso".Por exemplo, uma perseguição: vêem-se alternadamente o perseguidor e o perseguido; sabemos que,enquanto vemos o perseguido, o perseguidor que não vemos continua a correr, e vice-versa. Óbvio,para hoje. Na época, a elaboração de uma estrutura narrativa como esta era uma conquista nadaóbvia. Num dos primeiros filmes de Méliès, vemos uma estrada, uma casa, um carro; o carro sedesgoverna e atravessa a parede da casa. No quadro seguinte, vemos uma sala de jantar, uma famíliaalmoçando tranqüilamente; de repente, o carro irrompe na sala pela parede. É o mesmo acidente quejá tínhamos visto de fora no quadro anterior algum tempo antes. Como se o filme tivesse recuado notempo. Hoje, organizar-se-ia a narração colocando o exterior: a estrada, a casa, o carro andando; ointerior: a família almoçando; voltar-se-ia ao exterior; o início do acidente, o carro entra na parede;ao interior: fim do acidente, o carro acaba de entrar na sala. De forma a ter um acidente que ocorranum momento único, visto de fora e de dentro. Mas foi necessário criar esta linguagem aos poucos.

(Jean-Claude Bernardet, O que é cinema, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 32-34.)

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(Glauco, Abobrinhas da Brasilônia, São Paulo, Circo Editorial, 1985.)

CAPÍTULO 5IDEOLOGIA

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PRIMEIRA PARTE — O que é ideologia?

1. Senso comum e bom senso

Chamamos senso comum ao conheci-mento adquirido por tradição, herdado dos an-tepassados e ao qual acrescentamos os resul-tados da experiência vivida na coletividade aque pertencemos. Trata-se de um conjunto deidéias que nos permite interpretar a realidade,bem como de um corpo de valores que nosajuda a avaliar, julgar e portanto agir.

Como examinaremos no Capítulo 11 (Oconhecimento científico), o senso comum nãoé refletido e se encontra misturado a crenças epreconceitos. É um conhecimento ingênuo(não-crítico), fragmentário (porque difuso, as-sistemático e muitas vezes sujeito a incoerên-cias) e conservador (resiste às mudanças).

Com isso não queremos desmerecer aforma de pensar do homem comum, mas ape-nas enfatizar que o primeiro estádio de conhe-cimento precisa ser superado em direção auma abordagem crítica e coerente, caracterís-ticas estas que não precisam ser necessaria-mente atributos de formas mais requintadas deconhecer, tais como a ciência ou a filosofia.Em outras palavras, o senso comum precisaser transformado em bom senso, este entendi-do como a elaboração coerente do saber ecomo explicitação das intenções conscientesdos indivíduos livres. Segundo o filósofoGramsci, o bom senso é "o núcleo sadio dosenso comum".

Qualquer pessoa, não sendo vítima dedoutrinação e dominação, e se for estimuladana capacidade de compreender e criticar, tor-na-se capaz de juízos sábios porque vitais, istoé, orientados para sua humanização.

Geralmente os obstáculos à passagemdo senso comum ao bom senso resultam daexclusão do indivíduo das decisões importan-tes na comunidade em que vive. Em socieda-des não-democráticas as informações não cir-culam igualmente em todas as camadas so-ciais e nem todos têm igual possibilidade deconsumir e produzir cultura. No Brasil, porexemplo, um terço das crianças em idade es-colar estão excluídas da educação, isso semfalar da pirâmide educacional segundo a qualos que têm acesso à escola abandonam o estu-do no decorrer do processo, sendo mínima a

porcentagem dos que atingem os níveis supe-riores de escolarização.

Não é só isso. Mesmo aqueles que fre-qüentam escolas submetem-se à perversa di-visão em que, para alguns, é reservada a for-mação humanística e científica, enquanto ou-tros recebem apenas preparação técnica, man-tendo-se a dicotomia trabalho intelectual/tra-balho manual. Com isso é garantida a domi-nação daqueles que são obrigados a se ocuparapenas com o fazer (ver Capítulo 2 — Traba-lho e alienação).

A superação de tal estado de coisas de-corre não só da democratização do acesso àescola e da negação da escola dualista (for-mação acadêmica versus formação técnica)como também depende da conquista de espa-ços possíveis de atuação nos sindicatos e nasorganizações representativas dos mais diver-sos tipos.

No entanto, não são apenas os trabalha-dores manuais que não têm conseguido pas-sar do senso comum para o bom senso. Fun-cionários de empresas, empresários, especia-listas de qualquer área, inclusive cientistas,podem estar restritos a formas fragmentáriasdo senso comum quando se acham presos apreconceitos, a concepções rígidas, quandosucumbem à ação massificante dos meios decomunicação de massa.

Outras vezes, renunciamos ao exercíciodo bom senso quando nos submetemos ao po-der dos tecnocratas, seduzidos pelo "saber doespecialista". Basta observar a timidez de de-cisão dos pais que, ao educarem os filhos, de-legam poderes a psicólogos, pedagogos, pe-diatras. Não pretendemos, ao dizer isso, des-valorizar a contribuição tão importante da ci-ência, muito ao contrário! Apenas ressaltamosque o homem leigo não precisa permanecerpassivo diante do saber do técnico, demitin-do-se das ações que ele próprio poderia exer-cer. Ele tem o direito de informar-se ativa-mente a respeito do tratamento a que se achasubmetido e dos seus efeitos. Em última aná-lise, convém desmistificar a tendência decultuar as pessoas "estudadas" em detrimentodo homem "sem letras" ou simplesmente não-especialista.

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Qualquer homem, se não foi ferido emsua liberdade e dignidade, e se teve ocasiãode desenvolver a habilidade crítica, será ca-paz de autoconsciência, de elaborar critica-mente o próprio pensamento e de analisar ade-quadamente a situação em que vive. É nesseestádio que o bom senso se aproxima da filo-sofia, da filosofia de vida, como a entendemosno Capítulo 8 (O que é filosofia?).

Podemos perceber que não é automática apassagem do senso comum ao bom senso, e umdos obstáculos ao processo se encontra na difu-são da ideologia, entendida em sentido restrito,que abordaremos no item 3 deste capítulo.

2. Ideologia: sentido amplo

Há vários sentidos para a palavra ideolo-gia. Em sentido amplo, é o conjunto de idéias,concepções ou opiniões sobre algum ponto su-jeito a discussão. Quando perguntamos qual é aideologia de determinado pensador, estamos nosreferindo à doutrina, ao corpo sistemático deidéias e ao seu posicionamento interpretativodiante de certos fatos. É nesse sentido que fala-mos em ideologia liberal ou ideologia marxista.

Ainda podemos nos referir à ideologiaenquanto teoria, no sentido de organizaçãosistemática dos conhecimentos destinados aorientar a ação efetiva. Existe portanto a ideo-logia de uma escola, que orienta a prática pe-dagógica; a ideologia religiosa, que dá regrasde conduta aos fiéis; a ideologia de um parti-do político, que estabelece determinada con-cepção de poder e fornece diretrizes de ação aseus filiados. Já ouvimos a expressão "atesta-do ideológico", que é a declaração exigida so-bre a filiação partidária de alguém. No Brasil,durante o recrudescimento do poder autoritá-rio, órgãos como o Deops (Departamento Es-tadual de Ordem Política e Social) exigiam emcertas circunstâncias que as pessoas apresen-tassem atestados desse tipo, a fim de contro-lar a adesão às ideologias marxistas, conside-radas perigosas à segurança nacional.

3. Ideologia: sentido restrito

O conceito de ideologia tem outros sen-tidos mais específicos, elaborados por autores

como Destutt de Tracy, Comte, Durkheim,Weber, Manheim.

Mas é sobretudo com Marx que aexplicitação do conceito enriqueceu o debateem torno do assunto e de sua aplicação. Paraele, diante da tentativa humana de explicar arealidade e dar regras de ação, é preciso con-siderar também as formas de conhecimentoilusório que levam ao mascaramento dos con-flitos sociais. Segundo a concepção marxista,a ideologia adquire um sentido negativo,como instrumento de dominação.

Isso significa que a ideologia tem in-fluência marcante nos jogos do poder e na manu-tenção dos privilégios que plasmam a maneirade pensar e de agir dos indivíduos na sociedade.A ideologia seria de tal forma insidiosa que atéaqueles em nome de quem ela é exercida nãolhe perceberiam o caráter ilusório.

A concepção de Gramsci

Vale considerar um reparo feito pelomarxista italiano Gramsci (1891-1937), paraquem é preciso distinguir entre ideologias his-toricamente orgânicas e ideologias arbitrárias.As primeiras são historicamente necessáriasporque "organizam as massas humanas, for-mam o terreno sobre o qual os homens se mo-vimentam, adquirem consciência de sua posi-ção, lutam etc". Segundo Gramsci, pode-sedar ao conceito de ideologia "o significadomais alto de uma concepção de mundo que semanifesta implicitamente na arte, no direito,na atividade econômica, em todas as manifes-tações de vida individuais e coletivas"1 e quetem por função conservar a unidade de todo obloco social.

Portanto, Gramsci considera que em umprimeiro momento, enquanto concepção demundo, a ideologia tem a função positiva deatuar como cimento da estrutura social. Quan-do incorporada ao que chamamos senso co-mum, ela ajudará a estabelecer o consenso, oque em última análise confere hegemonia auma determinada classe, que passará a ser do-minante.

Evitando a concepção mecanicista,Gramsci não considera que os dominados per-maneçam submissos indefinidamente, pois nosenso comum poderão ser trabalhados ele-

1 A. Gramsci, Concepção dialética da história, p. 16.

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mentos de bom senso e de instinto de classeque aos poucos formarão por sua vez a ideo-logia dos dominados. Daí a necessidade da for-mação de intelectuais surgidos da própria clas-se subalterna e capazes de organizar coerente-mente a concepção de mundo dos dominados.

Conceituação de ideologia

Vejamos a definição dada pela profes-sora Marilena Chaui: "a ideologia é um con-junto lógico, sistemático e coerente de repre-sentações (idéias e valores) e de normas ouregras (de conduta) que indicam e prescrevemaos membros da sociedade o que devem pen-sar e como devem pensar, o que devem valo-rizar e como devem valorizar, o que devemsentir e como devem sentir, o que devem fa-zer e como devem fazer. Ela é, portanto, umcorpo explicativo (representações) e prático(normas, regras, preceitos) de caráterprescritivo, normativo, regulador, cuja funçãoé dar aos membros de uma sociedade divididaem classes uma explicação racional para asdiferenças sociais, políticas e culturais, semjamais atribuir tais diferenças à divisão da so-ciedade em classes, a partir das divisões naesfera da produção. Pelo contrário, a funçãoda ideologia é a de apagar as diferenças, comoas de classes, e de fornecer aos membros dasociedade o sentimento da identidade social,encontrando certos referenciais identificado-res de todos e para todos, como, por exemplo,a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, aNação, ou o Estado".2

Observamos então que a ideologia éapresentada como tendo fundamentalmente asseguintes características:

• constitui um corpo sistemático de re-presentações que nos "ensinam" a pensar e denormas que nos "ensinam" a agir;

• tem como função assegurar determina-da relação dos homens entre si e com suascondições de existência, adaptando os indiví-duos às tarefas prefixadas pela sociedade;

• para tanto, as diferenças de classe e osconflitos sociais são camuflados, ora com adescrição da "sociedade una e harmônica", oracom a justificação das diferenças existentes;

• com isso é assegurada a coesão dos ho-mens e a aceitação sem críticas das tarefas

mais penosas e pouco recompensadoras, emnome da "vontade de Deus" ou do "devermoral" ou simplesmente como decorrente da"ordem natural das coisas";

• em última instância, tem a função demanter a dominação de uma classe sobre outra.

É interessante observar que a ideologianão é concebida como uma mentira que os in-divíduos da classe dominante inventam parasubjugar a classe dominada. Também os quese beneficiam dos privilégios sofrem a influên-cia da ideologia, o que lhes permite exercercomo natural sua dominação, aceitando comouniversais os valores específicos de sua classe.

Portanto, a ideologia se caracteriza pelanaturalização, na medida em que são consi-deradas naturais as situações que na verdadesão produtos da ação humana e que portantosão históricos e não naturais: por exemplo,dizer que a divisão da sociedade em ricos epobres faz parte da natureza; ou que é naturalque uns mandem e outros obedeçam.

Outra característica da ideologia é auniversalização, pela qual os valores da clas-se dominante são estendidos à classe domina-da. Ao receber um prêmio do patrão, o "ope-rário-padrão" avaliza os valores que o man-têm subordinado e que certamente seriam des-cartados por aqueles que já adquiriram cons-ciência de classe. É assim que a empregadadoméstica "boazinha" não discute salário enão implica se trabalha além do horário. Tam-bém os missionários que acompanhavam oscolonizadores às terras conquistadas certa-mente não percebiam o caráter ideológico dasua ação ao querer implantar uma religião euma moral estranhas às do povo dominado.

A universalidade das idéias e dos valo-res é resultado de uma abstração, ou seja, asrepresentações ideológicas não se referem aoconcreto, mas ao aparecer social. Por exem-plo, quando nos referimos à "sociedade una eharmônica", lidamos com uma abstração, por-que, ao analisarmos concretamente os homensnas suas relações sociais, descobrimos a divi-são de classe e os interesses divergentes.

Portanto, a universalização e a abstraçãosupõem uma lacuna ou o ocultamente de al-guma coisa que não pode ser explicitada sobpena de desmascaramento da ideologia. Porisso a ideologia é ilusória, não no sentido de

" M. Chaui, O que é ideologia, p. 113.

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ser "falsa" ou "errada", mas enquanto umaaparência que oculta a maneira pela qual arealidade social foi produzida. Isto é, sob oaparecer da ideologia existe a realidade con-creta que precisa ser descoberta pela análiseda gênese do processo.

Vejamos outros exemplos:Quando dizemos que "o trabalho digni-

fica o homem", estamos diante de uma afir-mação difícil de ser contestada: como vimosno Capítulo 1 (A cultura), o homem se distin-gue do animal pelo trabalho, com o qualhumaniza a natureza e a si mesmo. No entan-to, torna-se um conceito ideológico quando setrata de uma abstração, ou seja, toda vez queconsiderarmos apenas a idéia de trabalho, in-dependentemente da análise da situação con-creta e particular da realidade histórico-socialem que os operários realizam seu trabalho.Nesse caso, o que descobrimos é exatamenteo contrário: o embrutecimento e a reificação("coisificação") do homem, e não a valoriza-ção da sua dignidade.

Ao afirmarmos que "o salário paga o tra-balho do operário", estamos diante de uma la-cuna, pois, analisando a gênese do trabalhoassalariado, descobrimos a mais-valia e, por-tanto, o artifício do qual deriva a exploraçãodo trabalhador, que produz a sua alienação eoculta a diferença de condição de vida daspessoas na comunidade.

A afirmação "a educação é um direito detodos" é verdadeira e até um dever, já que háobrigatoriedade legal de se completar o cursoprimário. Mas essa afirmação se torna abstratae lacunar, ao apresentar como universal umvalor que beneficia apenas uma classe.

Isso é confirmado pelas estatísticas quemostram a evasão e o baixo índice de freqüên-cia escolar por parte das classes desfavoreci-

das. Mesmo que sejam dadas "explicações",em função das dificuldades de adaptação, domercado de trabalho e até do desinteresse oupreguiça dos alunos, o que se oculta é que nasociedade de classes há uma contradição en-tre os que produzem a riqueza material e cul-tural com seu trabalho e os que usufruem es-sas riquezas, excluindo delas os produtores.Assim, a educação é um dos bens a serem usu-fruídos pelos componentes da classe domi-nante. Portanto, a educação aparece como umdireito de todos, mas, analisando a gênese daprodução e usufruto dos bens, descobre-se quede fato a educação está restrita a uma classe.

Além disso, a ideologia mostra umarealidade invertida, ou seja, o que seria a ori-gem da realidade é posto como produto e vice-versa; o que é efeito passa a ser consideradocausa, o que é determinado é tido comodeterminante. Por exemplo, a ideologia bur-guesa afirma que existe desigualdade socialporque existem diferenças individuais (a de-sigualdade natural seria a causa da desigual-dade social). Ora, a sociedade é na verdaderesultado da práxis, e as desigualdades sociaisestabelecidas pela divisão social do trabalho epelas relações de produção é que são causasdas desigualdades individuais.

Com isso não desconsideramos as dife-renças que de fato existem entre os indiví-duos, como diversos níveis de interesse, apti-dão, inteligência. Mas, grosso modo, na ideo-logia a atividade a que cada um se submeteaparece como decorrente da competência enão como resultado da divisão de classes.

Assim, se o filho de um operário nãomelhora o padrão de vida, isto é explicadocomo resultado da sua incompetência, falta deforça de vontade ou disciplina de trabalho,quando na realidade ele joga um "jogo de car-

(Ciça, O Pato, Rio de Janeiro, Codecri, 1978, CoI. Humor, v. 1.)

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tas marcadas", e suas chances de melhorar nãodependem dele, mas da classe que detém osmeios de produção.

Outra inversão própria da ideologia é amaneira pela qual são estabelecidas as relaçõesentre teoria e prática, colocando a teoria comosuperior à prática, porque a antecede e "ilumina".As idéias tornam-se autônomas e são considera-das causa da ação humana (e não o contrário).

A divisão hierárquica entre o pensar e oagir se encontra também na dicotomia da so-ciedade, em que um segmento se dedica aotrabalho intelectual e outro, ao trabalho ma-nual. Sob esse esquema, uma classe "sabepensar", enquanto a outra "não sabe pensar" esó executa. Portanto, uma decide, porquesabe, e a outra apenas obedece.

4. O discurso não-ideológico

A ação e o pensamento humanos nuncase acham totalmente determinados pela ideo-logia. Sempre haverá espaços de crítica e fen-das que possibilitem a elaboração do discursocontra-ideológico.

Não é simples, no entanto, o trabalho dedesvelamento do real, pois a ideologia penetraem setores insuspeitáveis: na educação familiare escolar, nos meios de comunicação de massa,nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas in-dústrias, impedindo de todas as formas a flexi-bilidade entre o pensar e o agir, determinando arepetição de fórmulas prontas e acabadas. Poroutro lado, é exatamente nesses mesmos espa-ços em que é veiculada a ideologia que se iniciao processo de conscientização.

O que distingue o discurso ideológicodo não-ideológico, que podemos chamar sim-plesmente de teoria?

Se o discurso ideológico é abstrato elacunar, faz uma análise invertida da realida-de e separa o pensar e o agir, o discurso não-ideológico é aquele que visa o preenchimentodas lacunas pela procura da gênese do proces-so. Isto não significa que se deva contrapor aodiscurso lacunar um discurso "pleno", massim a elaboração da crítica, do contradiscursoque revele a contradição interna do discursoideológico e que o faça explodir.

É esse justamente o papel da teoria, queestá encarregada de desvendar os processosreais e históricos dos quais se origina a domi-nação de uma classe sobre outra, enquanto aideologia visa exatamente o contrário, ou seja,a dissimulação dessa diferença ou a justifica-ção dela.

Além disso, a teoria estabelece uma re-lação dialética com a prática, ou seja, umarelação de reciprocidade e simultaneidade, enão hierárquica, como no discurso ideológi-co. Explicando melhor: a práxis é justamen-te a relação indissolúvel teoria-prática, demodo que não há agir humano que não tenhasido antecedido por um projeto, da mesmaforma que a teoria não é algo que se produzaindependentemente da prática, pois seu fun-damento é a própria prática. Nós conhece-mos as coisas na medida em que as produzi-mos, daí toda teoria se tornar lacunar (e por-tanto ideológica), sem o "vaivém" entre ofato e o pensado.

Ora, o saber que resulta do trabalho é umsaber instituinte e, nesse sentido, é "vivo", mó-vel, com toda a força decorrente do processode se fazer. Ao contrário, o saber ideológico éo saber instituído, esclerosado, morto.

Por isso, é importante o papel da filoso-fia como crítica da ideologia, para romper asestruturas petrificadas que justificam as for-mas de dominação.

Ainda neste capítulo, examinaremos aideologia subjacente aos textos didáticos de 1°grau, às histórias em quadrinhos e à propagan-da. Por questão de espaço, não trataremos dasimportantes reflexões de Michel Foucault, fi-lósofo francês contemporâneo, cujos estudosdesvendam o caráter ideológico do sistemacarcerário e dos hospícios. Na História daloucura, Foucault critica a moderna concep-ção de loucura, analisando como ela foi"construída" a partir do século XVII. São tam-bém importantes os trabalhos teóricos e práti-cos de psiquiatras como o italiano Basaglia eos ingleses Laing e Cooper, com as propostasda antipsiquiatria.3

Tais discussões controvertidas têm sidosujeitas a um debate fermentado que, supo-mos, deverá pôr em questão concepções tra-dicionais a respeito desses assuntos.

3 Mais informações poderão ser encontradas na pequena introdução feita por J. Frayse Pereira, O que é loucura, SãoPaulo, Brasiliense (Col. Primeiros Passos).

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Exercícios

1. Releia a definição de ideologia segundoMarilena Chaui e responda, em poucas linhas: Oque é? Para que serve? Por que surge?

2. Em que sentido a teoria se distingue daideologia? Como a teoria se relaciona com a prática?

3. Explique por que o conteúdo das frases aseguir é ideológico. Aplique os conceitos adequa-dos (lacuna, inversão, aparecer social, universali-zação, abstração). Justifique sua resposta.

a) O Estado é uma instituição que está a ser-viço de todos.

b) Isto é legal, portanto justo e legítimo.c) A sociedade burguesa é formada por três

tipos diferentes de proprietários: o capitalista (pro-prietário do capital); o dono da terra (proprietárioda renda da terra); e o trabalhador (proprietário dosalário). Se todos são proprietários, embora de coi-sas diferentes, então todos os homens dessa socie-dade são iguais e possuem direitos iguais.

4. Analise o aspecto ideológico da seguinteafirmação: "As diferenças sociais existem devido adiferenças de natureza, talento e esforço. Portanto,pode-se observar que geralmente as pessoas sãopobres por serem incompetentes, preguiçosas oupouco esforçadas".

5. Os provérbios têm um valor positivo en-quanto expressam a sabedoria popular. Mas, de-pendendo da situação em que são aplicados, adqui-rem contornos ideológicos. Justifique isso comen-tando os seguintes:

"Em boca fechada não entra mosca.""Feliz é quem só quer o que pode e só faz o

que quer.""A quem nada deseja nada falta.""De grão em grão a galinha enche o papo.""Cada um por si, Deus por todos.""Cada macaco no seu galho."

6. Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta marxis-ta, faz no poema a seguir uma denúncia da aliena-ção e da ideologia. Justifique:

"Nós vos pedimos com insistência:Nunca digam — Isso é natural!Diante dos acontecimentos de cada dia.Numa época em que reina a confusão,Em que corre o sangue,Em que o arbitrário tem força de lei,Em que a humanidade se desumaniza...Não digam nunca: Isso é natural!A fim de que nada passe por ser imutável."

SEGUNDA PARTE — A ideologia na escola

1. As teorias reprodutivistas

Desde o final do século passado e naprimeira metade do século XX, os pedagogosinfluenciados pelas teorias da chamada esco-la nova defenderam a idéia otimista de que aeducação teria uma função democratizadora,ou seja, a escola seria um fator de mobilida-de social.

Ao contrário das expectativas, porém,foram constatadas altas taxas de repetência eevasão escolar, sobretudo nas camadas maispobres da sociedade. Embora os índices fos-sem mais perversos nos países em desenvol-vimento, como é o caso do Brasil, essadistorção acontecia também em outras regiõesdo mundo.

Tendo em vista tais constatações, na dé-cada de 70 desenvolveu-se a tendência críti-co-reprodutivista, representada por diversosteóricos franceses que, embora fizessem inter-

pretações diferentes, chegavam a conclusõessemelhantes entre si, ao admitirem que a es-cola não é equalizadora, mas reprodutora dasdiferenças sociais.

Segundo Althusser, o Estado tem umaparelho repressivo (exército, polícia, tribu-nais, prisões etc.) que assegura a dominaçãopela violência, mas também se utiliza de ou-tras instituições pertencentes à sociedade ci-vil (como a família, a escola, a igreja, osmeios de comunicação, os sindicatos, os par-tidos etc.) a fim de estabelecer o consensopela ideologia, e que por isso são chamadosaparelhos ideológicos de Estado.

Bourdieu e Passeron desenvolvem oconceito de violência simbólica, consideran-do que a escola não exerce necessariamente aviolência física, mas sim a violência medianteforças simbólicas, ou seja, pela doutrinação

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que força as pessoas a pensarem e a agirem dedeterminada forma, sem perceberem que le-gitimam com isso a ordem vigente.

Baudelot e Establet denunciam a impos-sibilidade de existir uma "escola única" nasociedade dividida em classes. Por isso exis-tem de fato duas redes de escola — uma se-cundária superior, outra primária profissional— que se destinam respectivamente aos filhosda elite e aos dos proletários. A separação éfeita de tal forma que desde o começo os fi-lhos dos proletários estão destinados a nãoatingir os níveis superiores de escolarização.

Além disso, o próprio funcionamento daescola repete a estrutura hierarquizada, repro-duzindo muitas vezes as relações autoritáriasexistentes fora dela. E, mais ainda, acentuan-do a dicotomia entre teoria e práxis, a escolanão só desvaloriza o trabalho manual, privile-giando o trabalho intelectual, como tambémtorna a própria teoria estéril, já que distancia-da da prática, verbalizada, freqüentementesimples erudição inútil.

Portanto, para esses teóricos a escola nãodemocratiza, mas, ao contrário, reproduz a di-visão social e mantém os privilégios de classe.Veremos adiante que mais tarde outros se con-trapuseram a essa visão pessimista demais.

2. Os textos didáticos

Os problemas descritos são complexose mereceriam análise mais pormenorizada,mas não nos propomos desenvolver aqui es-sas questões. O que nos interessa, no momen-to, é analisar como o texto didático veiculacertos valores que visam adequar o indivíduoà sociedade, integrando-o na ordem estabele-cida. Embora o caráter ideológico tambémexista na literatura infanto-juvenil e em livrosde 2° grau, sobretudo nos de moral e cívica,história e geografia, vamos nos deter na análi-se de textos didáticos de 1° grau.

Analisando os fragmentos transcritosnos textos complementares, podemos notarque a realidade mostrada à criança é estereoti-pada, idealizada e, portanto, deformadora.

A concepção de trabalho iguala em planoimaginário todos os tipos de profissão e oculta ofato de as pessoas serem submetidas a trabalhosárduos, alienados. Esses textos mostram a so-ciedade como una e harmônica, cada pessoacumprindo o seu papel como se fosse um desti-

no a que não se pode fugir e ao qual se deveconformar (alegremente, de preferência...). Aimpressão que se tem é que a riqueza e a pobre-za fazem parte da natureza das coisas, e não sãoresultado da ação dos homens. Resta aos pobresa paciência e aos ricos a generosidade.

Também a família é apresentada semconflitos, com papéis bem marcados: o paitem a função de provedor; a mãe é a "rainhado lar"; a criança é atenciosa e obediente e,caso não seja, isso é mostrado como um des-vio que precisa ser corrigido; a empregada,geralmente negra, é feliz por ser "quase" al-guém da família. Simula um mundo sem pre-conceito em que as raças se irmanam...

A pátria merece páginas de ufanismo,retratando um país ilusório, de beleza naturalexuberante, riquezas escondidas, possibilida-des incríveis. A miséria, a fome, as doenças, oanalfabetismo, o racismo, nada disso transpa-rece, sendo de fato ocultado.

Outros tópicos ficam por sua conta inves-tigar: o que é dito sobre a escola, sobre o traba-lho no campo, sobre o índio, sobre a moral...

O que podemos pensar a respeito dessaescamoteação da realidade feita pelo livro di-dático? Estabelece-se uma contradição entreo discurso que ele profere e a realidade: ca-mufla a desigualdade até quando a reconhece(o pedreiro é pobre, mas é importante para agrandeza da nação); mascara a divisão e nãodesvela a injustiça social; dá uma visão estáti-ca e imobilista da família, da escola e do mun-do, acentua estereótipos. Em outras palavras,impede a tomada de consciência dos conflitose contradições da sociedade, criando, ao con-trário, predisposição ao conformismo e à pas-sividade.

Esses textos didáticos têm, portanto,uma função ideológica.

Talvez alguns argumentem que não valea pena mostrar erros e misérias para as crian-ças, para não ofender sua infância ingênua.Tal observação é perigosa e sob certos aspec-tos hipócrita, pois sabemos que as criançastêm intuição para perceber as contradições deseus pais e professores, e escondê-las seriainstituir na educação o jogo perverso da dissi-mulação. Além disso, os bons autores, ao ladoda transmissão dos valores humanos conside-rados importantes para a sua formação, sabe-rão mostrar-lhes, com sutileza, os riscos e pe-rigos dos desvios para onde se envereda mui-tas vezes a humanidade.

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3. Onde está a saída?

Pela análise de textos didáticos conclui-ríamos que a escola tem função reprodutora,enquanto peça da engrenagem do sistema po-lítico vigente e, portanto, passível da ação daideologia.

No entanto, tal colocação é redutora de-mais e não dialética. É preciso partir do fatobem observado pelos teóricos crítico-repro-dutivistas, de que a práxis educativa não éneutra, mas se acha vinculada a uma socieda-de, às relações de produção, ao sistema políti-co. No entanto, ao mesmo tempo, não se justi-

fica permanecer inativo enquanto não houver aesperada transformação da sociedade.

Para o filósofo e educador francêsGeorges Snyders, que faz a crítica aos repro-dutivistas, se o operário não consegue de ime-diato ter a consciência lúcida da realidade so-cial, também não deve ser considerado jogue-te passivo de mistificação. Sempre haverá naescola a possibilidade de professores e alunosinventarem práticas que se tornem críticas dainculcação ideológica.

A escola é um espaço possível de luta,de denúncia da domesticação e seletividade ede procura de soluções, ainda que precárias eparciais.

Exercícios

1. Qual foi a grande ilusão da escola nova?

2. Qual foi a importância das teorias crítico-reprodutivistas? Qual o seu limite?

3. Analise cada um dos fragmentos dos textosdidáticos de 1° grau que transcrevemos neste capí-tulo e interprete a ideologia subjacente a eles.

4. Leia com atenção os dois textos a seguir,retirados de histórias infantis, e explique por queeles são diferentes do ponto de vista ideológico:

a) O livro O peixinho arteiro conta a históriade um peixinho que, desobedecendo à mãe e à pro-fessora, é pescado e se salva porque o pescador tro-peça deixando os peixes caírem do cesto para aágua de novo.

"— Eu, convidar você para fugir?! — oLambari riu, apesar de sentir muitas dores na suaboquinha. Nunca mais! Chega a lição que aprende-mos. Se prestássemos atenção às aulas de Dona Pi-ranha, saberíamos que nadar perto de cachoeira éperigoso, por causa da correnteza, das pedras...

— E saberíamos também — completou oPeixinho — o que é anzol e não teríamos sido fis-gados. Agora, vou para casa. Se você prometer serbom peixinho, continuarei sendo seu amigo. Docontrário, não.

— Pode ficar descansado. Nunca mais sereiarteiro. Agora, vou também pedir perdão aos meuspais e amanhã cedo, se você concordar, iremos fa-lar com Dona Piranha, contando tudo o que nosaconteceu.

— Boa idéia — fez o Peixinho todo animado.Então, até amanhã na escola.

— Até amanhã — disse o Lambari, nadandopara sua casa.

E o Peixinho nunca mais foi arteiro. Ao con-trário, passou a ouvir e a seguir os conselhos deseus pais e, juntamente com o Lambari, foi exem-plar no Colégio." (Oranice Franco)

b) "Era uma vez um menino maluquinho. / Eletinha o olho maior do que a barriga / tinha fogo norabo / tinha vento nos pés / umas pernas enormes(que davam para abraçar o mundo) / e macaquinhosno sótão (embora nem soubesse o que significavamacaquinho no sótão). / Ele era um menino impos-sível! / Ele era muito sabido / ele sabia de tudo / aúnica coisa que ele não sabia / era como ficar quie-to / seu canto / seu riso / seu som / nunca estavamonde ele estava. / Se quebrava um vaso aqui / logojá estava lá (...)

E aí, o tempo passou. / E, como todo mundo, /o menino maluquinho cresceu. / Cresceu / e virouum cara legal! / Aliás, / virou o cara mais legal / domundo! / Mas, um cara legal, mesmo! / E foi aí que/ todo mundo descobriu / que ele / não tinha sido /um / menino / maluquinho / ele tinha sido era ummenino feliz!" (Ziraldo, O menino maluquinho)

5. Leia o texto complementar de Destutt deTracy e faça o que se pede:

a) Analise o texto usando os conceitos apren-didos no item O que é ideologia?. Identifique asdiversas dicotomias, a lacuna, a inversão.

b) Releia o poema de Brecht (na relação deexercícios do item anterior) e indique a diferençafundamental entre o poema e o texto de Destutt deTracy.

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Textos complementares

ITextos didáticos de lº grau

"Mãe (...) É acolhedora, tranqüila, segura, presa firmemente ao solo. Mãe é repouso e sossego.Quando a gente está cansada, ou triste, ou desiludida, ou desanimada, ela nos reconforta."

* * *"— Lúcia trabalha comigo há vinte anos. Faz parte da família (...). Lúcia sabe que vovó Lica e

Beto gostam dela. Por isso, Lúcia é uma preta feliz."* * *

"Este Brasil que eu amoBrasil enfeitado de verde-amarelo, / no campo, no mato, no rio, / no mar e lá na montanha. /

Brasil namorado chamando outras raças / para amar e criar a raça mais linda de todo este mundo."* * *

"Ordem e ProgressoO brinco na orelha / As frutas na fruteira / No braço, a pulseira / O prato na prateleira / O grilo

na grama / O travesseiro na cama / Cada coisa em seu lugar / É preciso colocar."* * *

"Era uma vez um marceneiro que trabalhava desde manhã até à noite. Aplainava a madeira ecantava."

* * *"O operário mostra suas mãos cheias de calos: durante toda a vida tocaram a terra, os fogos, os

metais. Estão vazias de riquezas, estão negras, cansadas, pesadas. Diz o senhor: Que beleza! Assimsão as mãos dos santos."

* * *"Piero vai visitar o avô na fundição... [O avô diz para o netinho:] — Eu também, Piero, entrei por

curiosidade na fundição quando era menino. E me pareceu tudo tão bonito... que aqui fiquei. É beloamar o trabalho que a gente faz. Estou velho e ao bom Deus só peço uma coisa: quero ficar aqui, nafundição, até o último dia dos meus dias. E vovô levantou os olhos para o céu, em direção às estrelas."

* * *"História de duas camponesas que voltam para casa com a cesta cheia de ervas. Uma canta

feliz e a outra, de cara amarrada, pergunta-lhe por que está tão contente, apesar do duro serviço. Elaresponde que colocou na cesta uma planta que a ajuda a não sentir o cansaço: (...) Pois bem, a plantamilagrosa que deveríamos sempre ter conosco, para sentir menos cansaço, para suportar as penas,para trabalhar calmamente é... é... a paciência!"

* * *"A poupança é aquela coisa, caro amigo, que, colocando o dinheiro no cofrezinho, quando ele

está cheio, você está uma, duas, três vezes rico, rico, rico como um rei!"* * *

"O camponês sempre espera, e a esperança é a parte melhor e mais verdadeira da alegria humana."

"Debaixo de sol ou chuva / o papai vai trabalhar / para dar todo conforto / ao nosso querido lar.Papai trabalha para sustentar a casa e mamãe trata do lar, do marido e dos filhos."

* * *"Na cozinha, a mulher do seu Messias estava fritando bolinhos para a gente comer com café.

Outras mulheres já estavam depenando frangos e galinhas. A Lúcia ficou com a vovó e a Dona Elzapara ajudar na cozinha."

(Extraídos de Maria de Lourdes Nosella, Ai belas mentiras, e Umberto Eco, Mentiras queparecem verdades.)

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II[Dois sistemas de instrução]

Em toda sociedade civilizada existem necessariamente duas classes de pessoas: a que tira suasubsistência da força de seus braços e a que vive da renda de suas propriedades ou do produto defunções onde o trabalho do espírito prepondera sobre o trabalho manual. A primeira é a classe ope-rária; a segunda é aquela que eu chamaria a classe erudita.

Os homens da classe operária têm desde cedo necessidade do trabalho de seus filhos. Estascrianças precisam adquirir desde cedo o conhecimento e sobretudo o hábito e a tradição do trabalhopenoso a que se destinam. Não podem, portanto, perder tempo nas escolas. (...)

Os filhos da classe erudita, ao contrário, podem dedicar-se a estudar durante muito tempo; têmmuita coisa a aprender para alcançar o que se espera deles no futuro. Necessitam de um certo tipo deconhecimentos que só se pode apreender quando o espírito amadurece e atinge determinado grau dedesenvolvimento. (...)

Esses são fatos que não dependem de qualquer vontade humana; decorrem necessariamente daprópria natureza dos homens e da sociedade: ninguém está em condições de poder mudá-los. Portan-to, trata-se de dados invariáveis dos quais devemos partir.

Concluamos, então, que em todo Estado bem administrado e no qual se dá a devida atenção àeducação dos cidadãos, deve haver dois sistemas completos de instrução que não têm nada em co-mum entre si.

(Destutt de Tracy, 1802)

TERCEIRA PARTE — A ideologia nas histórias em quadrinhos

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(Pato Donald de Ouro, n. 1, edição especial de Mickey, n. 328, fev. 1980, São Paulo, Abril, p. 7.)

(Disney Especial, n. 6, Os aventureiros, edição especial de Pato Donald, n. 1556, ago. 1981, São Paulo,Abril, p. 173.)

(Disney Especial, n. 59, Os vizinhos encrenqueiros, edição especial de Pato Donald, n. 1558, set. 1981, SãoPaulo, Abril, p. 190.)

(Super-Homem, n. 12, 1985, A destruição de Metrópolis, São Paulo, Abril, p. 37.)

(Pato Donald de Ouro, n. 1, edição especial de Mickey, n. 328, fev.1980, São Paulo, Abril, p. 75.)

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1. Introdução

Os quadrinhos são um fenômeno ca-racterístico da cultura de massa e têm suaprincipal expressão no século XX, quandocomeçaram a aparecer nas publicações diá-rias dos jornais.

Escolhemos desenvolver a análise dahistória em quadrinhos a partir da natureza dasua relação com a realidade social. Ressalva-mos que se trata de apenas uma das aborda-gens possíveis, pois os quadrinhos são umaexpressão complexa da produção contempo-rânea. Além da função de entretenimento elazer, têm também a função mítica e fabula-dora característica das obras de ficção e aindapreenchem funções estéticas, pois se trata deuma nova linguagem artística.

A abordagem que vamos fazer é a queparte da reflexão acerca da ambigüidade detoda produção cultural: ao mesmo tempo quepode servir à consciência, serve à alienação,tanto pode levar ao conhecimento como à es-camoteação da realidade; tanto é criativacomo também paralisadora.

Portanto, sem querer tomar partido nadiscussão (classicamente proposta porUmberto Eco entre "apocalípticos" e "integra-dos")4, não estamos interessados em discutirse a cultura de massa aliena ou não. Vamospartir do pressuposto de que os quadrinhos sãocapazes tanto de alienar como de conscienti-zar. Comecemos pelo pior.

2. A decodificação ideológicados quadrinhos

No início da década de 70 (na mesma dé-cada em que os teóricos da educação desenvol-vem a tese da escola reprodutora do sistema),dois chilenos, Ariel Dorfman e ArmandMattelart, defenderam a tese de que a leituradas histórias em quadrinhos não era tão inocen-te assim como se pensava. Fizeram impiedosacrítica aos quadrinhos, da qual não escaparam

desde os super-heróis até os aparentemente ino-fensivos personagens de Disney.

Esses autores denunciam a ideologiasubjacente aos quadrinhos, na medida em queconfirmam os valores da classe dominante, es-camoteiam os conflitos, transmitem uma visãodeformada do trabalho e levam à passividadepolítica. Vejamos algumas dessas críticas.

Em grande parte da produção de histó-rias em quadrinhos, a atividade das persona-gens se desenrola à parte do mundo do traba-lho, ou seja, há predominância dos casos deaventura, de atividades desenvolvidas duran-te o ócio, e em situações que são a negação docotidiano, do dia-a-dia de cada pessoa. Aliás,parece que algumas personagens não traba-lham nunca, e não sabemos muito claramentede onde vem o seu sustento: às vezes são mui-to ricas (e essa riqueza se acha desvinculadada ação que a produziu) ou, às vezes, vivemde expedientes, como Donald, que consegueinexplicavelmente manter um padrão médiode vida que lhe permite usufruir os benefíciosda sociedade de consumo.

Geralmente, a classe proletária não é re-presentada por nenhuma personagem, da mes-ma forma que a vida no campo é enfatizadasobretudo no seu aspecto de lazer, e não no daprodução.

Segundo Dorfman e Mattelart, "no mun-do de Disney, dos pólos do processo capita-lista produção — consumo só está presente osegundo. (...) Um exemplo: as profissões. Agente pertence sempre a estratos do setorterciário, isto é, dos que vendem seus servi-ços. Cabeleireiros, agências imobiliárias e deturismo, secretárias, vendedoras e vendedoresde todo o tipo, (...) empregados de armazém,padeiro, guarda-noturno, garçons, ou do setorde entretenimento, distribuidores povoam omundo de objetos e objetos, jamais produzi-dos, sempre comprados. O ato que para tantoas personagens estão repetindo a todo o mo-mento é o da compra"5.

A sociedade é representada como una,estática e harmônica, sem antagonismo declasses, e a "ordem natural" do mundo é que-

4 Em seu livro famoso, Apocalípticos e integrados, Umberto Eco discute as duas tendências dos intelectuais diante dosfenômenos de produção de massa: os "apocalípticos", defensores da cultura erudita, denunciam a cultura de massa comoforma de alienação e massificação; os "integrados", ao contrário, a vêem como fenômeno contemporâneo a ser consideradona sua novidade, não podendo ser avaliada com padrões usados para outro tipo de produção intelectual.

5 A. Dorfman e A. Mattelart, Para ler o Pato Donald, p. 79.

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brada apenas pelos vilões, que, encarnando omal, atentam geralmente contra o patrimônio(bancos, jóias e caixas-fortes). A defesa da le-galidade dada e não-questionada é feita pelos"bons", com a morte dos "maus" ou com aintegração desses à norma estabelecida. Re-sulta daí um maniqueísmo6 simplista, que re-duz todo conflito à luta entre o bem e o mal,sem considerar quaisquer nuanças de uma so-ciedade em que as pessoas e os grupos pos-sam ter opiniões e interesses divergentes.

Além disso, ao lidar com categorias abs-tratas de bem e mal, o conflito é reduzido aonível individual, psicológico, como se tudofosse resultante de problemas morais, e nãopolíticos e sociais. Em outras palavras, a ên-fase no aspecto moral da ação neutraliza oconflito social, ocultando que o homem vivenuma sociedade de classes: quando é"restabelecida a ordem", ninguém questionaesta "ordem", que na verdade nada tem de na-tural, já que construída pelo homem, nem este"bem", que representa os interesses de deter-minada classe.

Quanto à figura do super-herói dos qua-drinhos, é possível ver outras decorrências dasobservações anteriores: o super-herói está aserviço da ordem estabelecida, instaura umarelação paternalista de dependência e de pre-dominância dos valores individuais sobre oscoletivos, pois os problemas que afligem acomunidade só são resolvidos pelo socorrourgente do herói, frente à impotência dos ho-mens comuns.

Isso reforça o mito da ação individual,"dos grandes homens", e oculta que o sujeitoda história é o conjunto de todos. E, aindamais, facilita a aceitação da sociedadehierarquizada e autoritária, justificando posi-ções verticais de domínio, onde não há lugarpara relações interpessoais igualitárias, hori-zontais e democráticas.

É interessante notar que a fragmentaçãodo coletivo em "átomos" independentes seencontra representada na própria figura dosuper-herói, cuja personalidade "esquizofrêni-ca" é dividida entre o eu heróico e o eu coti-diano: Super-Homem e Clark Kent, Zorro eDon Diego, Thor e Don Blake, Batman e

Bruce Wayne. A duplicidade favorece a iden-tificação do leitor com o herói: o homem co-mum é o tímido e apagado jornalista ClarkKent, que ama secretamente sua colegaMiriam Lane e nem sequer ousa declarar-se.Segundo Mircea Eliade, o mito do Super-Ho-mem satisfaz às nostalgias secretas do homemmoderno que, sabendo-se decaído e limitado,sonha revelar-se um dia uma "personagemexcepcional", um "herói".

Mesmo no plano heróico, nem todas assoluções são dadas pela inteligência, mas háocorrência freqüente do acaso, da sorte, que fa-vorece sempre os que estão do lado do bem. Odestino, na medida em que tece a trama, limitaas possibilidades de decisão do ser humano, oque mais uma vez "naturaliza" a sua ação, reti-rando dela aquilo que a caracteriza como es-sencialmente humana, ou seja, a capacidade dohomem de transformar o mundo intencional-mente, num projeto que antecipa a ação.

Na luta contra o mal, praticamente ne-nhum papel de importância é dado ao negro,relegado à função de auxiliar, simples servotratado de forma paternalista, como, porexemplo, o submisso Lotar e Mandrake. Namaior parte, porém, o racismo se manifestamesmo pela ausência de herói negro.

Quanto à mulher, é sempre cortejada,mas frágil, dependente, medrosa. Trata-se deuma visão de feminilidade que fixa o estereó-tipo do comportamento dócil da mulher, ex-cluindo-a do processo histórico. Até quando édotada de poderes especiais, como a Bat-Girl,por exemplo, acaba sucumbindo ao poder doinimigo e precisa ser salva na hora h pelo he-rói masculino.

A superioridade de uns sobre outros seestende até na justificação do poder imperia-lista das sociedades desenvolvidas sobre ospovos considerados "inferiores" dos paísessubdesenvolvidos. Aliás, esses povos são vis-tos como pobres, feios, escuros e tolos, comtodas as qualidades que justificam a tutela dosricos, belos, brancos e inteligentes...

O que foi observado para as histórias emquadrinhos pode ser estendido para a produçãoliterária dos chamados romances B (de puroentretenimento) e para os programas de tevê.

6 No sentido original, maniqueísmo se refere a uma antiga religião persa que admitia a existência de dois princípiosabsolutos, o Bem e o Mal. Em sentido genérico, maniqueísmo consiste na interpretação simplista da realidade como sendoconstituída por tendências antagônicas e bem-definidas, uma representando o bem, outra o mal.

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Vale ressaltar que o impacto produzidopor essa crítica gerou efeitos os mais diver-sos. Nas novas histórias, alguns super-heróispassaram a manifestar crises de angústia e in-decisão, as personagens assexuadas foramerotizadas (até o Fantasma se casou!) e bus-cou-se em alguns casos atenuar o maniqueís-mo. Tudo isso, afinal, torna mais complexo edifícil detectar os elementos ideológicosquando eles ainda existem.

3. Os quadrinhos alternativos

Para não sermos injustos com a imensavariedade de produção de quadrinhos, é pre-ciso considerar aqueles que não são ideológi-cos, na medida em que, mesmo sem perder adimensão de divertimento e prazer, conduzemà visão crítica da sociedade e de nós mesmos.

Nos países em "vias de desenvolvimen-to", há uma dificuldade muito grande de im-

plantação dos quadrinhos nacionais, devidoà força de difusão das multinacionais dosquadrinhos. Impossibilitados de competircom as empresas, distribuidoras cuja infra-estrutura barateia o produto, nossosquadrinheiros não têm chance de publicar ostrabalhos com a periodicidade necessária aoseu desenvolvimento e para chamar a aten-ção do público.

Apesar das dificuldades, surgem artistascujas preocupações predominantes são a re-cuperação da nossa realidade vivida, comaproveitamento de temas e situações a partirdo imaginário nacional. Além disso, esse tra-balho se efetiva não apenas como reproduçãodo "pensar brasileiro", mas também comoquestionamento dele. Veja exemplos da pro-dução de alguns desses artistas: Henfil,Glauco e Ciça (neste capítulo), FernandoGonzales e Angeli (no Capítulo 29 — A ado-lescência), e também o que nos diz o brasilei-ro Moacy Cirne no texto complementar.

(Henfil, in O Pasquim, Rio de Janeiro, abr. 1972, n. 145, p. 3.)

Exercícios

1. Explicite as principais características dosquadrinhos ideológicos:

a) Como é tratado o mundo do trabalho?b) Quando são maniqueístas?

c) O que significa colocar o conflito no planomoral, e quais as decorrências disso?

d) Mostre como, a partir da situação anterior,acabam predominando relações verticais de domínio.

e) O que significa a "naturalização" da ação?

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2. Como são tratados a mulher e o negro nosquadrinhos ideológicos?

3. Qual é o papel reservado aos quadrinhosalternativos?

4. Comente criticamente os quadrinhos queilustram o início do item 3 deste capítulo, usandoos conceitos aprendidos.

5. Monte você mesmo uma história, "colan-do" personagens de quadrinhos e preenchendo osbalões com diálogos retirados dos textos de 1° grautranscritos neste capítulo.

Texto complementar

O quadrinheiro e a responsabilidade social do artista

O autor de quadrinhos — seja ele criador de argumentos e personagens, seja ele desenhista —tem um papel decisivo a desempenhar, como os demais artistas: sua prática estética dá-se em função deuma prática social determinada. Sua arte, mesmo quando aparentemente ingênua, jamais será inocente.

Ao se valer dos mecanismos da cultura de massa, o quadrinheiro, a rigor, compromete-se polí-tica e socialmente com o tempo histórico que marca a sua existência enquanto ser concreto no inte-rior das classes sociais, assim como se compromete ao recusar esses mesmos mecanismos. De umaforma (dentro da cultura de massa) ou de outra (à sua margem), o artista de quadrinhos só tem umcompromisso: com a realidade. Este compromisso, decerto, não se esgota em um realismo estreito,de cunho idealista.

O compromisso (estético) com a realidade (social), nos bons autores, filtra-se através do ima-ginário, da fantasia, da pesquisa, da poesia. O desenho, nestes autores, passa a ser o sonho gráficopensado/trabalhado para a narrativa visual dos quadrinhos. Mas, mesmo como sonho e fantasia, oquadrinho existe econômica, ideológica e politicamente. Não se pode ignorar, assim, a invasão im-perialista representada pelos comics americanos a partir dos anos 30, sufocando-nos em termos cul-turais (enquanto consumidores) e econômicos (enquanto produtores).

Toda arte é política — mesmo quando seu agenciador fala de uma suposta manifestação artísticapara ser curtida apenas ao nível do prazer estético, pura e simples orgia formal diante de sensaçõesgráficas, pietóricas, sonoras, narrativas etc. (Brecht: "Pois a arte, sendo 'apolítica', não quer dizeroutra coisa senão estar aliada ao grupo dominante", Teatro dialético, p. 207). Sem dúvida, a orgia ea magia formais resultantes de uma arte instigadora são necessárias, desde que representem um avan-ço concreto em direção aos anseios básicos da humanidade.

De igual modo, como não poderia deixar de ser, todo quadrinho é político: à direita (Super-Homem, Batman, Tio Patinhas, Homem de Ferro e muitos outros) ou à esquerda (o atual quadrinhocubano, por exemplo). Toda a produção quadrinizante contém, em maior ou menor grau, direta ouindiretamente, conotações políticas ora liberais (Ferdinando, Pogo, Mafalda), ora conservadoras(Fantasma, Mandrake, Bronco Piler), ora revolucionárias: algumas obras do novo quadrinho euro-peu, do novo quadrinho latino-americano etc.

(...) No Brasil, levando em consideração a nossa especificidade política depois do golpe militarde abril de 1964, com o seu desdobramento em dezembro de 1968, só podemos destacar a importân-cia daqueles que se têm dedicado à visão crítica da realidade: é o caso de um Chico Caruso, de umGuidacci, de um Luiz Gê, de um Claudius, de um Edgar Vasques, de um Nani, de um Henfil, de umLuís Fernando Veríssimo, de um Paulo Caruso — de muitos outros. Mas há também aqueles quefazem um trabalho sistemático para sindicatos e centros culturais de trabalhadores, sobretudo emBelo Horizonte e na capital paulista.

(Moacy Cirne, Uma introdução política aos quadrinhos, p. 23, 24 e 104.)

6. Escolha trechos de histórias de super-he-róis que ilustrem o que estudamos no item 3 destecapítulo.

7. Selecione quadrinhos de autores nacionaisque tenham posição não-ideológica.

8. Leia o texto complementar seguinte e ex-plique:

a) Em que sentido "nenhuma arte é neutra"?b) Por que "toda arte é política"?

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QUARTA PARTE — Propaganda e ideologia

Eu, etiqueta

Em minha calça está grudado um nomeque não é meu de batismo ou de cartório,um nome... estranho.Meu blusão traz lembrete de bebidaque jamais pus na boca, nesta vida.Em minha camiseta, a marca de cigarroque não fumo, até hoje não fumei.Minhas meias falam de produtoque nunca experimenteimas são comunicados a meus pés.Meu tênis é proclama coloridode alguma coisa não provadapor este provador de longa idade.Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,minha gravata e cinto e escova e pente,meu copo, minha xícara,minha toalha de banho e sabonete,meu isso, meu aquilo,desde a cabeça ao bico dos sapatos,são mensagens,letras falantes,gritos visuais,ordens de uso, abuso, reincidência,costume, hábito, premência,indispensabilidade,e fazem de mim homem-anúncio itinerante,escravo da matéria anunciada.Estou, estou na moda.E doce estar na moda, ainda que a modaseja negar minha identidade,trocá-la por mil, açambarcandotodas as marcas registradas,todos os logotipos do mercado.Com que inocência demito-me de sereu que antes era e me sabiatão diverso de outros, tão mim-mesmo,ser pensante, sentinte e solidário

com outros seres diversos e conscientesde sua humana, invencível condição.Agora sou anúncio,ora vulgar ora bizarro,em língua nacional ou em qualquer língua(qualquer, principalmente).E nisto me comprazo, tiro glóriade minha anulação.Não sou — vê lá — anúncio contratado.Eu é que mimosamente pagopara anunciar, para venderem bares festas praias pérgulas piscinas,e bem à vista exibo esta etiquetaglobal no corpo que desistede ser veste e sandália de uma essênciatão viva, independente,que moda ou suborno algum a compromete.Onde terei jogado forameu gosto e capacidade de escolher,minhas idiossincrasias tão pessoais,tão minhas que no rosto se espelhavam,e cada gesto, cada olhar,cada vinco da rouparesumia uma estética?Hoje sou costurado, sou tecido,sou gravado de forma universal,saio da estamparia, não de casa,da vitrine me tiram, recolocam,objeto pulsante mas objetoque se oferece como signo de outrosobjetos estáticos, tarifados.Por me ostentar assim, tão orgulhosode ser não eu, mas artigo industrial,peço que meu nome retifiquem.Já não me convém o título de homem,meu nome novo é coisa.Eu sou a coisa, coisamente.

Carlos Drummond de Andrade, O corpo. Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 85-87.)

A propaganda, seja ela comercial ouideológica, está sempre ligada aos objetivoseconômicos e aos interesses da classe domi-nante. Essa ligação, no entanto, é ocultada poruma inversão: a propaganda sempre mostraque quem sai ganhando com o consumo de talou qual produto ou idéia não é o dono da em-presa, nem os representantes do sistema, mas,sim, o consumidor. Assim, a propaganda émais um veículo da ideologia dominante.

1. Propaganda comercial

Propaganda comercial é a que tem porobjetivo vender um produto, um serviço ouuma marca ao consumidor.

A partir de estudos sobre a sociedadenorte-americana nos anos 50, descobriu-seque os consumidores raramente eram levadosa comprar alguma coisa movidos por apelosestritamente racionais. Esses estudos levaram

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à pesquisa das motivações inconscientes e ir-racionais que mobilizam o consumidor.

Entre os fatores irracionais, vamos encon-trar necessidades e aspirações que dependem daimagem que cada um tem de si e da imagem quequer manter perante os outros. A publicidade vaiagir no sentido de apresentar os produtos comomeios eficazes para a satisfação dessas necessi-dades e aspirações. Basta comprar o cigarro demarca tal, o relógio x, o jeans y, e as meias wpara conseguir sucesso profissional, segurança,charme, inteligência e o que mais se desejar.Assim, a publicidade mascara a realidade e nãonos deixa tomar contato com os meios concre-tos e possíveis de suprir nossas necessidades. Elatransforma o objeto no fetiche que satisfaz.

O que a publicidade vende, portanto, émuito mais do que o produto: é a promessa desatisfação de uma necessidade ou aspiraçãoque extrapola, em muito, as possibilidades doproduto.

Recorrendo ao exemplo de um anúncio demáquina de lavar louça, veremos bem o que ocor-re. O anúncio, veiculado em revistas femininas"classe A", apresenta duas mulheres loiras decostas, com acentuado decote. Uma tem a pelebem branca e a outra, a pele bronzeada e marcasde maiô. A chamada, em letras grandes, diz:"Você já sabe qual das duas tem uma lava-louçasx". Ora, o máximo que o produto anunciado podenos prometer é louça bem-lavada. A promessa,implícita na imagem, de tempo de lazer, local paratomar sol, aparência (segundo a moda) bronzea-da e saudável de "férias", ultrapassa em muito oque o produto concretamente oferece.

Os apelos, portanto, são sempre emo-cionais. Mesmo quando se revestem de razõeslógicas, o fundamento da propaganda é des-pertar emoções de prazer, alegria, felicidadeou de frustração, privação e sofrimento, emo-ções que dependem da posse de determinadosprodutos para serem usufruídas ou afastadas.

Assim, a propaganda acaba exercendofunção modelizante: modela o comportamen-to por meio da veiculação de valores que es-tão centrados no ter cada vez mais coisas.

2. Propaganda ideológica

A propaganda ideológica, isto é, a quevende idéias e não produtos, é feita de modo

muito mais sutil e, por isso, é muito mais pe-rigosa. Raramente é identificada como pro-paganda. "As mensagens apresentam uma ver-são da realidade a partir da qual se propõe anecessidade de manter a sociedade nas condi-ções em que se encontra ou transformá-la emsua estrutura econômica, regime político ou sis-tema cultural."7 As informações aparecemcomo se a realidade fosse assim mesmo e hou-vesse absoluta neutralidade na sua apresenta-ção. Isso se dá tanto em obras de ficção comoem noticiários, entrevistas e documentários. Oque na maioria das vezes não percebemos é quehá sempre uma seleção prévia de aspectos darealidade que vão ser apresentados e uma in-terpretação dessa realidade a partir de um pon-to de vista que serve a determinados interesses.As informações, assim, são fragmentadas, reti-radas do seu contexto histórico e social.

Vejamos, por exemplo, como foi apre-sentada a greve dos professores de 1979. Mos-traram-se escolas fechadas, passeatas de pro-fessores, crianças soltas na rua, sem aula,mães sem saber com quem deixar os filhospara irem trabalhar. Foram apresentados todosos aspectos negativos, para a população, dagreve dos professores. Omitiram-se do noti-ciário, entretanto, dados fundamentais que oslevaram à greve: o cálculo do salário sobre240 horas-aula mensais, sem considerar o tra-balho, não-remunerado, de preparação de aulae correção de exercícios e provas; o desgastehumano e afetivo de se lidar com quarenta oucinqüenta crianças e jovens durante oito ho-ras por dia; a política de desvalorização daeducação, que recebe verbas cada vez meno-res; as condições de vida de um professor que,mesmo dando oito horas-aula por dia, recebeum salário ainda indigno; a questão das fériasde três meses que, ocupadas, em parte, comprovas finais, conselhos de classe, preenchi-mento de diários, reuniões de planejamento etrabalhos burocráticos, acabam reduzidas atrinta dias. Tudo isso foi omitido, mostrando-se somente o prejuízo imediato das criançassem aula e divulgando-se a figura do profes-sor como "mercenário da educação", que senega a cumprir a "missão" de educar as crian-ças para um Brasil melhor.

A propaganda ideológica elabora asidéias de forma a adaptá-las às condições de

7 N. J. Garcia, O que é propaganda ideológica, p. 10-11.

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entendimento de seus receptores, criando aimpressão de que atendem a seus interesses.As técnicas usadas são a universalização dosinteresses de um pequeno grupo; a transferên-cia dos benefícios diretamente para os recep-tores; a ocultação dos efeitos da exploração; apolítica de Poliana (lembrar os mais desgra-çados e dar graças a Deus pelo pouco quetem); e achar o bode expiatório em fatoresexternos, incontroláveis, como crises interna-cionais, FMI, corrupção de grupos estrangei-ros, fatos e pessoas do passado etc.

Assim, esse tipo de propaganda difundeapenas o essencial do conteúdo de uma ideo-logia, selecionando algumas idéias fundamen-tais e transformando-as em poucas fórmulasresumidas e simples, isto é, em palavras deordem e slogan. A palavra de ordem resume oobjetivo a ser atingido. Exemplo: "O povo,unido, jamais será vencido". O slogan contémum apelo aos sentimentos de amor, ódio, in-dignação ou entusiasmo. Exemplo: "ForaRede Globo, o povo não é bobo", ouvido nocomício do Anhangabaú, em abril de 1984, nacampanha pelas diretas, e em 1992, peloimpeachment do presidente Fernando Collorde Melo.

Para que o controle ideológico sobre apopulação seja mantido, é necessário criar al-guns mecanismos que impeçam o indivíduode observar com olhos críticos o meio em quevive (o que o levaria à consciência de suasreais condições de vida) e de ter informaçõesdiferentes das veiculadas pela ideologia domi-nante. Essa é a função da censura oficial, daspatrulhas ideológicas, da violência, da pres-são psicológica, da cooptação e da lavagemcerebral.8

Nos meios de comunicação de massa,não é necessária muita pressão externa, umavez que pertencem a grupos da classe domi-nante que propõe a ideologia. A título deexemplo, podemos citar os capítulos finais dequalquer novela de televisão, quando as per-sonagens principais acabam se casando. Arealização profissional e a realização pessoal

na relação com outras pessoas não importam.O principal é achar o príncipe encantado e ca-sar-se para que tudo esteja resolvido.

Assim, é preciso que estejamos sempreatentos. É evidente que não vamos negar to-das as informações que nos chegam, seja so-bre produtos e serviços, seja sobre o mundoem geral. O importante é mantermos uma pos-tura crítica, questionadora, comparando sem-pre as informações entre si, observando o queocorre à nossa volta, para podermos ter umavisão mais global dos fatos e, principalmente,o conhecimento da origem das idéias veicula-das pelos meios de comunicação de massa paradescobrirmos a quem realmente elas servem.

3. Conseqüências sociais dapropaganda

Na medida em que a propaganda comer-cial é veiculada pelos meios de comunicaçãode massa, atingindo indistintamente váriossegmentos da população, ricos e pobres, quaisas conseqüências desse constante apelo paracomprar?

Tomando como exemplo o Brasil, ondesó se pode considerar sociedade de consumopequenas partes do centro-sul do país, dada amá distribuição de rendas, como fica o restoda população que recebe o estímulo da propa-ganda e não pode satisfazer nem suas necessi-dades, menos ainda suas aspirações?

Em primeiro lugar, há um dado daFebem (Fundação Estadual para o Bem-Estardo Menor) de que, nas vésperas do dia dasmães, dos namorados, dos pais e do Natal,época em que a propaganda é mais intensa,acontece o maior número de furtos praticadospor menores. Na impossibilidade de comprar,eles respondem aos estímulos da propagandado único jeito possível. E são presos.

Em segundo lugar, a população menoscarente se atira ao trabalho (que dignifica!) naesperança de economizar o suficiente para pa-gar a prestação do que é apresentado como

8 Patrulha ideológica: expressão usada no Brasil, a partir de 1978, para designar a ação de grupos que criticam artistas,intelectuais e outras pessoas populares por não defenderem as idéias desses mesmos grupos.

Cooptação: processo pelo qual um indivíduo ou pequeno grupo recebe concessões e privilégios para deixar de defen-der os interesses da classe social a que pertence e passar a defender aquele que lhe fez as concessões.

Lavagem cerebral: processo pelo qual indivíduos ou pequenos grupos, depois de levados a lugares afastados, de ondenão podem sair durante certo tempo, são bombardeados com novas idéias. O indivíduo, fora do seu ambiente normal e com osenso crítico diminuído pela pressão psicológica, acaba aderindo às idéias que lhe são propostas.

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indispensável à vida. E a ordem social émantida, com todos trabalhando para, um dia,chegarem lá.

Além da atitude de consumo, a propa-ganda comercial também veicula, como a pro-paganda ideológica, modelos de apresentaçãopessoal, de relacionamentos e de comporta-mentos, além de modelos de roupa, maquia-gem, decoração. Inconscientemente, e pelarepetição, vamos assimilando o que deve ser

comido no café da manhã, como lavar a rou-pa, o que beber, em que tipo de bar e em qualcompanhia, a que programas assistir, sem in-dagar se são adequados aos nossos gostos epreferências, ao tipo de vida que levamos, aotipo de salário que recebemos, enfim às con-dições concretas da nossa vida. E sem essareflexão sobre as nossas condições reais devida, viveremos alienados e sem nenhumacondição de transformação do real.

Exercícios

1. Levante as idéias principais do texto base.

2. Leia o texto que se segue e mostre por queele é um veículo de propaganda ideológica:

"Férias ameaçadas — A supergreve nas es-colas altera o calendário. Terminada a safra degreves que durante boa parte do primeiro semestrebloqueou setores vitais da economia, continuamem curso paralisações de larga envergadura no se-tor de ensino de 1° e 2° graus. Elas ameaçam avan-çar sobre o segundo semestre e comprometer deforma irremediável o calendário de férias de cente-nas de milhares de famílias. Em Belém, a greve dosprofessores da rede oficial do Estado completou 38dias no último final de semana. No Ceará, 900.000alunos estão sem aulas há quarenta dias porque40.000 professores, também da rede oficial, perma-necem de braços cruzados. No Rio Grande do Sul,a maioria das 4.000 escolas estaduais está fechadahá mais de quarenta dias.

Em Porto Alegre, perto de 400 professoresmantêm um acampamento diante do Palácio Piratini,para pressionar o governador Jair Soares a atendersuas reivindicações. Soares alega que o Estado nãotem dinheiro para satisfazer as exigências dos pro-fessores, que pleiteiam um piso de 2,5 salários míni-mos para os que estão no início da carreira, conces-são de 13° salário, semestralidade e a destinação de25% do orçamento do Estado à educação. O resulta-do é um impasse que tem provocado incidentes nadapedagógicos: vaiado quando saía de uma reuniãocom o governador, na quinta-feira passada, o secre-tário da Fazenda, Hipólito Campos, perdeu a calmae reagiu com um gesto obsceno. 'Não vamos aceitarprovocações desse tipo', responde o presidente doCentro dos Professores do Rio Grande do Sul, PauloEgon Wiederkehr.

Enquanto brigam professores e governo, asmaiores vítimas da querela ficam em casa, sem tero que fazer. Além das aulas, os estudantes deverãoperder muitos dias de férias. Se a greve terminasseneste momento, eles já teriam perdido as férias dejulho e suas aulas iriam até o dia 20 de janeiro, deacordo com os cálculos da Secretaria de Educação.

Também se envolvem no problema as faculdades,que precisarão adiar seus vestibulares, tradicional-mente realizados na primeira quinzena de janeiro.E já começam a queixar-se os gaúchos que vivemda exploração do turismo no litoral. Caso a grevenão termine logo, as praias ficarão quase vazias noperíodo mais gordo do verão, pois perto de um mi-lhão de estudantes gaúchos estará às voltas com oslivros." (Revista Veja, 26.6.1985)

3. Faça um levantamento das propagandas decigarro veiculadas no momento e observe o tipo deapelo usado.

4. Releia o poema de Carlos Drummond deAndrade e mostre:

a) o efeito da propaganda na nossa vida.b) a crítica que o poema faz.c) as frases que são identificadoras de aliena-

ção. Por exemplo: "demito-me de ser". Procure nãoescrever mais do que a expressão realmente signi-ficativa.

d) as expressões que se referem à não-aliena-ção. Por exemplo: "eu que antes era e me sabia".

e) "em língua nacional ou qualquer língua/(qualquer, principalmente)." Com ironia, o autor serefere ao uso abusivo de que outra língua? Trata-sede que tipo de alienação?

f) no poema, o autor denuncia a existência deuma inversão, no que se refere à importância dohomem e da mercadoria. Explique isso com suaspalavras, usando os conceitos de fetichismo ereificação.

5. Reúna um grupo e faça uma redação mos-trando como seria o dia de dona Maria e sua famí-lia se usassem o maior número de produtos anun-ciados, com suas respectivas "chamadas". Exem-plo: Maria, então, passou Vitacreme a seu maridodizendo: — Amor, "passe mais vida no seu café damanhã". Ao que ele respondeu, acariciando-lhe amão: — Querida, use Nescafé Requinte "toda vezque você queira tomar um café mais suave".

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A CONSCIÊNCIAMÍTICA

Antes da discussão dos conceitos, suge-rimos fazer uma pesquisa sobre mitos, a fimde recolher elementos para melhor exemplifi-cação do capítulo:

1. Mito da criação do mundo segundoHesíodo

2. Urano, Cronos e Zeus3. Deméter e Perséfone4. Prometeu e Pandora5. Dionísio e Apoio6. Narciso7. Ritos de iniciação de povos primitivos8. Lendas de índios brasileiros

1. Introdução

Entre os inúmeros relatos de índios ha-bitantes das terras brasileiras, encontramos oda origem do dia e da noite: ao transportaremum coco, ouviram sair de dentro dele ruídosestranhos e não resistiram à tentação de abri-lo, apesar de recomendações contrárias. Dei-xaram escapulir então a escuridão da noite.Por piedade divina, a claridade lhes foi devol-vida pela Aurora, mas com a determinação deque nunca mais haveria só claridade, comoantes, mas alternância do dia e da noite.

Semelhantemente, os gregos dos temposhoméricos relatam a lenda de Pandora, que,enviada aos homens, abre por curiosidade acaixa de onde saem todos os males. Pandoraconsegue fechá-la a tempo de reter a esperan-ça, única forma de o homem não sucumbir àsdores e aos sofrimentos da vida.

Observando os dois relatos, percebemossemelhanças: ambos falam de curiosidade, de-sobediência e castigo (a escuridão ou os males).

A leitura apressada, na busca do sentidodo mito, pode nos levar a pensar que se trataapenas de uma maneira fantasiosa de explicar

a realidade ainda não justificada pela razão(no exemplo, a explicação da origem do dia eda noite e a da origem dos males). Essa com-preensão do mito não esconde o preconceitocomum de identificá-lo com as lendas ou fá-bulas, e portanto como uma forma menor deexplicação do mundo, prestes a ser superadapor explicações mais racionais.

No entanto, a noção de mito é complexae mais rica do que essa posição redutora. Mes-mo porque o mito não é exclusividade de po-vos primitivos, nem de civilizações nascentes,mas existe em todos os tempos e culturascomo componente indissociável da maneirahumana de compreender a realidade.

Só para antecipar a discussão, vejamosalguns exemplos de diferentes tipos de mitosmodernos.

Quando alguém diz que o socialismo éum mito, pode estar dizendo que se trata dealgo inatingível, de uma mentira, de uma ilu-são que não leva a lugar nenhum. Mas, opon-do-se ao sentido negativo de mito, outros ve-rão positivamente o mito do socialismo comoutopia, o lugar do "ainda-não", cuja forçamobiliza as pessoas a construírem o que umdia poderá "vir-a-ser".

Em tempos difíceis, Hitler fez viver omito da raça ariana, por ele considerada a raçapura, desencadeando movimentos apaixona-dos de perseguição e genocídio.

Os contos de fada, as histórias em qua-drinhos, sem dúvida nenhuma trabalham como imaginário e mitos universais como o doherói e o da luta entre o bem e o mal.

Examinando as manifestações coletivasno cotidiano da vida urbana, descobrimoscomponentes míticos no carnaval, no futebol,ambos como manifestações delirantes do ima-ginário nacional e da expansão de forças in-conscientes.

CAPÍTULO 6

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Da mesma forma, os psicanalistas apro-veitam a riqueza do mito e descobrem nelemodelos que se acham nas raízes do desejohumano: a pedra angular da psicanálise se en-contra na interpretação feita por Freud do mitode Édipo1.

Podemos ainda nos referir a um artistafamoso como um mito: James Dean como omito da "juventude transviada" ou, então,Marilyn Monroe ou Madonna como mitosexual.

A lista possível das conotações diversasque o mito assume não termina aqui. Apenasquisemos mostrar como um conceito tão am-plo e rico não se esgota numa só linha de in-terpretação.

O mito não é resultado de delírio, nemuma simples mentira. O mito ainda faz parteda nossa vida cotidiana, como uma das for-mas indispensáveis do existir humano.

2. O mito entre os primitivos

Comecemos pelos povos primitivos, en-tre os quais o mito é estrutura dominante.

Foi importante a contribuição dos antro-pólogos que, a partir do início do século, desen-volveram muitos contatos diretos com tribos dasilhas do Pacífico, da África e do interior do Bra-sil. Esses "trabalhos de campo", como são cha-mados, mostram que o mito vivo é muito maisexpressivo e rico do que supomos quando ape-nas ouvimos o relato frio das lendas desligadasdo ambiente que as fez surgir.

Enquanto processo vivo de compreen-são da realidade, o mito surge como verdade.Quando pensamos em verdade, é comum nosreferirmos às explicações racionais em que acoerência lógica é garantida pelo rigor da ar-gumentação e da exigência de provas. Masnão é essa a verdade do mito, que é verdadeintuída, isto é, percebida de maneira espontâ-nea, sem exigência de comprovações. O crité-rio de adesão do mito é a crença, e não a evi-dência racional.

O mito é portanto uma intuição compreen-siva da realidade, é uma forma espontânea deo homem situar-se no mundo. E as raízes

São Raimundo Nonato, no Piauí, tornou-se gran-de centro arqueológico com a descoberta de re-gistros rupestres que datam de até 12 mil anosantes da chegada dos colonizadores. Nas repre-sentações figurativas reconhecem-se gestos queestariam ligados ao sistema simbólico da etniacomo cerimoniais, ritos e mitos. Na ilustração,três registros encontrados em locais diferentes.(Anne-Marie e Niède Guidon. Registros rupes-tres e caracterização das etnias pré-históricas. InVIDAL, Lux, org. Grafismo indígena. São Paulo,Nobel/Fapesp/Edusp, 1992.)

do mito não se acham nas explicações exclu-sivamente racionais, mas na realidade vivida,portanto pré-reflexiva, das emoções e daafetividade.

Ao entrar em contato com o mundo, ohomem não é apenas uma "cabeça que pensa"diante de um "mundo como tal". Entre os doisexiste a fantasia, a imaginação. Portanto, an-tes de interpretar o mundo, o homem o desejaou o teme. Nesse sentido, volta-se para ele oudele se oculta.

1 Sófocles, dramaturgo grego do século V a.C, relata esse mito na tragédia Édipo rei. Em vão Édipo tenta fugir aodestino vaticinado pelo oráculo: matar o pai e desposar a própria mãe. Ao retomar o mito grego, Freud refere-se ao "complexode Édipo", que representa o desejo inconsciente de toda criança.

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Por isso, o primeiro "falar sobre o mun-do" está preso ao desejo humano de dominá-lo, afugentando a insegurança, os temores e aangústia diante do desconhecido e da morte.

Funções do mito

Embora tenhamos nos referido ao mitoenquanto forma de compreensão, a sua fun-ção não é, primordialmente, explicar a reali-dade, mas acomodar e tranqüilizar o homemem um mundo assustador.

Os primeiros modelos de construção doreal são de natureza sobrenatural, isto é, ohomem recorre aos deuses para apaziguarsua aflição. É um discurso de tal força, quese estende por todas as dependências da rea-lidade vivida, e não apenas no campo sagra-do (ou seja, da relação entre o homem e odivino), mas existe em toda a atividadehumana.

Como indicam os exemplos a seguir, omito se manifesta:

• na preocupação com a origem divinada técnica: veja o mito de Prometeu, queroubou o fogo dos deuses para dá-lo aoshomens;

• na natureza divina dos instrumentos:ainda em nossos dias subsiste entre os povosprimitivos o culto a certos utensílios, como aenxada ou o anzol, a lança ou a espada;

• na origem da agricultura: o mito indí-gena de Mani, de cujo túmulo nasce a man-dioca, alimento básico; ou o mito grego dePerséfone, levada por Hades para seu castelotenebroso, simbolizando o trigo enterradocomo semente e renascendo como planta;

• na origem dos males: o mito de Pan-dora, como já vimos;

• na fertilidade das mulheres: os arunta,povo australiano, acham que os espíritos dosmortos esperam a hora de renascer e penetramno ventre das mulheres quando elas passampor certos locais;

• no caráter mágico das danças e dese-nhos: quando o homem de Cro-Magnon faziaafrescos nas paredes das cavernas, represen-tando a captura de renas, não pretendia pro-priamente enfeitar a caverna nem mostrar suashabilidades pictóricas, mas desejava agir ma-gicamente, garantindo de antemão o sucessoda caçada futura.

Isso significa que no mundo primitivotudo é sagrado e nada é natural.

Para Mircea Eliade, filósofo romeno es-tudioso do mito e das religiões, uma das fun-ções do mito é fixar os modelos exemplaresde todos os ritos e de todas as atividades hu-manas significativas.

Dessa forma, o homem imita os gestosexemplares dos deuses, repetindo nos ritos asações deles. Quando o missionário e etnólogoStrehlow perguntava aos arunta por que cele-bravam determinadas cerimônias, obtinha in-variavelmente a mesma resposta: "Porque osancestrais assim o prescreveram". Essa é tam-bém a justificativa invocada pelos teólogos eritualistas hindus: "Devemos fazer o que osdeuses fizeram no princípio"; "Assim fizeramos deuses, assim fazem os homens".

Nos rituais, os arunta não se limitam arepresentar ou imitar a vida, os feitos e asaventuras dos ancestrais: tudo se passa comose estes aparecessem nas cerimônias. Nessesentido, o tempo sagrado é reversível, ou seja,toda festa religiosa não é uma simples come-moração, mas torna-se a ocasião em que o sa-grado acontece novamente e representa areatualização do evento sagrado que teve lu-gar no passado mítico, "no começo".

Na sua ação, o homem primitivo imitaos deuses nos ritos que atualizam os mitos pri-mordiais, pois, caso contrário, estão conven-cidos de que a semente não brotará da terra, amulher não será fecundada, a árvore não daráfrutos, o dia não sucederá à noite.

A forma sobrenatural de descrever arealidade é coerente com a maneira mágicapela qual o homem age sobre o mundo, como,por exemplo, com os inúmeros ritos de passa-gem do nascimento, do casamento, da morte,da infância para a idade adulta. Sem os ritos, écomo se os fatos naturais descritos não pudes-sem se concretizar de fato.

Segundo Mircea Eliade, "quando acabade nascer, a criança só dispõe de uma existên-cia física, não é ainda reconhecida pela famí-lia nem recebida pela comunidade. São os ri-tos que se efetuam imediatamente após o par-to que conferem ao recém-nascido o estatutode 'vivo' propriamente dito; é somente graçasa estes ritos que ele fica integrado na comuni-dade dos vivos. (...) No que diz respeito àmorte, os ritos são tanto mais complexosquanto se trata não-somente de um 'fenômenonatural' (a vida — ou a alma — abandonando

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o corpo), mas também de uma mudança de re-gime ao mesmo tempo ontológico e social: odefunto deve afrontar certas provas que inte-ressam ao seu próprio destino post-mortem,mas deve também ser reconhecido pela comu-nidade dos mortos e aceito entre eles"2.

O homem primitivo ea consciência de si

Como todo o real é interpretado por meiodo mito, e sendo a consciência mítica umaconsciência comunitária, o homem primitivodesempenha papéis que o distanciam da per-cepção de si como sujeito propriamente dito.Não é ele que comanda sua ação, já que suaexperiência não se separa da experiência dacomunidade, mas se faz por meio dela.

Isso não quer dizer que não haja nenhumprincípio de individuação, mas que o equilí-brio individual é feito de maneira diferente,mediante a preponderância do coletivo sobreo individual. Como diz Gusdorf, "a primeiraconsciência pessoal está, portanto, presa namassa comunitária e nela submergida. Masesta consciência dependente e relativa não éuma ausência de consciência; é uma cons-ciência em situação, extrínseca e não intrínse-ca, a individualidade aparecendo então comoum nó no tecido complexo das relações so-ciais. E o eu se afirma pelos outros, isto é, elenão é pessoa, mas personagem"3.

A decorrência do coletivismo é o dog-matismo: a consciência mítica é ingênua (nosentido de não crítica), desprovida de proble-matização e supõe a aceitação tácita dos mi-tos e das prescrições dos rituais. A adesão aomito é feita pela fé, pela crença.

Da visão dogmática decorre a moraldogmatizante, pois, na comunidade que vivesob a preponderância do mito, vimos que adimensão pessoal se acha submetida ao cole-tivo, determinando a adaptação sem crítica doindivíduo às normas da tradição.

No universo cuja consciência é coletiva,a transgressão da norma ultrapassa quem aviolou. Por isso o tabu, proibição sempre en-volta em clima de temor e sobrenaturalidade,ao ser transgredido, estigmatiza a família, os

amigos e, às vezes, toda a tribo. Daí os "ritosde purificação" e os rituais do "bode expiató-rio", nos quais o pecado é transferido para umanimal. É bom lembrar que, segundo o relatoda tragédia, o crime de Édipo traz toda sortede pragas para Tebas, e o sábio Tirésias vati-cina que a cidade só se livraria quando fosseencontrado o assassino de Laio.

3. Mito e religião

"No desenvolvimento da cultura huma-na, não podemos fixar um ponto onde terminao mito e a religião começa. Em todo curso desua história, a religião permanece indissolu-velmente ligada a elementos míticos e repas-sada deles."4

Podemos distinguir três fases na forma-ção dos conceitos de deuses.

A primeira fase é caracterizada pelamultiplicidade de deuses momentâneos, assimchamados porque não perduram além do mo-mento. São simplesmente excitações instantâ-neas, fugidias, às quais é atribuído o valor dedivindade, e cuja fonte é a emoção subjetiva,marcada ainda pelo medo. Esses deuses nãorepresentam nem forças da natureza nem as-pectos especiais da vida humana. Às vezes, tra-ta-se de um conteúdo mental, como a Alegria,a Decisão, a Inteligência; outras, de um objetoou de qualquer realidade percebida como ten-do sido repentinamente enviada do Céu.

Na segunda fase, há a descoberta dosentimento da individualidade do divino, doselementos pessoais do sagrado. O surgimentodessa nova etapa se dá à medida que a açãoexercida pelo homem sobre o mundo se tornamais complexa, fazendo surgir a divisão do tra-balho. Assim, toda atividade humana particu-lar ganha o seu deus funcional, que vigia cadaetapa do trabalho dos homens. A regulação daatividade encontra sua medida na própria pe-riodicidade dos ciclos naturais (as estações doano, o plantio, a colheita etc). E cada ato, pormais especializado que seja, adquire um signi-ficado religioso: o homem recorre a divinda-des que devem protegê-lo a cada momento.Entre os gregos, por exemplo, Deméter preside

M. Eliade, O sagrado e o profano, p. 143-144.3 G. Gusdorf, Mito e metafísica, p. 102.4 E. Cassirer, Antropologia filosófica, p. 143.

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o ritmo das estações e das colheitas; Afrodite,o amor, e assim por diante.

Ao mesmo tempo, o caráter existencialdo mito conduz à prática de rituais mágicos,e a fé na magia constitui o despertar da con-fiança do homem em si mesmo. Ele não sesente mais à mercê das forças naturais e so-brenaturais e desempenha o seu papel, con-victo de que o que acontece no mundo natu-ral depende, em parte, dos atos humanos.Como exemplo, podemos citar os ritos má-gicos da fertilidade, sem os quais se acredi-tava que nem a terra frutificaria nem a mu-lher conceberia. Convém lembrar aqui que amagia tanto pode ser usada para o bem comopara o mal, uma vez que não se encontra li-gada a princípios éticos.

A terceira fase caracteriza-se pelo apa-recimento do deus pessoal. Ele é fruto do pro-cesso histórico que inclui o desenvolvimentolingüístico e aparece quando o nome do deusfuncional, derivado do círculo de atividadeespecial que lhe deu origem, perde a ligaçãocom essa atividade e torna-se um nome pró-prio, constituindo um novo ser que continua ase desenvolver segundo suas próprias leis.

O deus pessoal caracteriza-se por sercapaz de sofrer e agir como os homens. Eleatua de maneiras diversas e seus múltiplosnomes expressam diferentes aspectos de suanatureza, seu poder e sua eficiência. Comoexemplo, a deusa grega Atenas, filha de Zeus,surge inicialmente como deusa guerreira, queprotege os exércitos. Aos poucos, à medidaque a guerra se torna um trabalho, ela passa aproteger o trabalho em geral e, mais tarde, otrabalho intelectual especificamente e as ar-tes. Ao mesmo tempo, é deusa da sabedoria, aprotetora da cidade de Atenas.

Como desenvolvimento da terceira fase,surgem as religiões monoteístas, decorrentesde forças morais e que se concentram no pro-blema do bem e do mal. A natureza passa aser abordada pelo lado racional, e não maispelo emocional, como acontecia nas fases an-teriores. O divino deixa também de ser conce-bido pelos poderes mágicos e passa a serenfocado pelo poder de justiça. "O sentido éti-co substituiu e suplantou o sentido mágico, avida inteira do homem se converte numa lutaconstante pelo amor da justiça."5

É pelo exercício do livre-arbítrio, agora,que o homem entra em contato com o sagra-do. Ao dar a sua livre adesão ao bem, torna-seum aliado da divindade, praticando o deverreligioso.

4. O mito hoje

A consciência do homem pré-histórico,que existe antes do advento da escrita, perma-nece ingênua e dogmática. No Capítulo 7 (Domito à razão), veremos a passagem para o pen-samento reflexivo com a conseqüente quebrada unidade do mito. A nova forma de compre-ensão do mundo dessacraliza o pensamento ea ação (isto é, retira dele o caráter de sobrena-turalidade), fazendo surgir a filosofia, a ciên-cia, a técnica, a religião.

Perguntamos então: o desenvolvimentodo pensamento reflexivo deveria decretar amorte da consciência mítica?

Quando Augusto Comte, filósofo fran-cês do século XIX e fundador do positivis-mo, explica a evolução da humanidade coma teoria dos três estados, define a maturidadedo espírito humano pelo abandono de todasas formas míticas e religiosas. Com isso pri-vilegia o fato positivo, ou seja, o fato objeti-vo, que pode ser medido e controlado pelaexperimentação.

Essa posição opõe radicalmente o mitoà razão, ao mesmo tempo que inferioriza omito como tentativa fracassada de explicaçãoda realidade. Ao criticar o mito, o positivismose mostra reducionista, empobrecendo as pos-sibilidades de abordagens do mundo abertasao homem. A ciência é necessária, mas não éa única interpretação válida do real, nem é su-ficiente. Quando exaltada, faz nascer o mitodo cientificismo: a crença na ciência comoúnica forma de saber possível é geradora deoutros mitos também prejudiciais, como o doprogresso, cujo fruto mais amargo é a tec-nocracia, e os da objetividade e neutralidadecientíficas (ver Capítulo 11 — O conheci-mento científico).

Contrariando o positivismo, precisamosrecuperar o mito, hoje, em sua importânciacomo forma fundamental de todo viver huma-no. Ele é a primeira leitura do mundo, e o ad-

5 E. Cassirer, Antropologia filosófica, p. 162.

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vento de outras abordagens do real não retirado homem aquilo que constitui a raiz da suainteligibilidade. O mito é o ponto de partidapara a compreensão do ser.

Em outras palavras, tudo o que pensa-mos e queremos se situa inicialmente no hori-zonte da imaginação, nos pressupostosmíticos, cujo sentido existencial serve de basepara todo trabalho posterior da razão.

A função fabuladora persiste não sónos contos populares, no folclore, como tam-bém na vida diária do homem ao proferir cer-tas palavras ricas de ressonâncias míticas:casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade,morte, cuja definição objetiva não esgota ossignificados subjacentes que ultrapassam oslimites da própria subjetividade. Essas pala-vras nos remetem a valores arquetípicos, istoé, valores que são modelos universais, exis-tentes na natureza inconsciente e primitivade todos nós.

O mesmo sucede com personalidadesque os meios de comunicação se incumbemde transformar em imagens exemplares, comoartistas, políticos, esportistas, e que, no ima-ginário das pessoas, representam todos os ti-pos de anseios: sucesso, poder, liderança, se-xualidade etc.

Nas histórias em quadrinhos, o mani-queísmo retoma o arquétipo da luta entre obem e o mal, e a dupla personalidade dosuper-herói atinge em cheio o desejo do ho-mem moderno de superar a própria impotên-cia, tornando-se um ser excepcional.

O comportamento do homem também épermeado de "rituais", mesmo que seculari-zados: as comemorações de nascimentos, ca-samentos, aniversários, os festejos de ano-novo, as festas de formatura, de debutantes,trote de calouros, lembram verdadeiros ritosde passagem.

Até as mais racionais adesões a partidospolíticos e a correntes de pensamento supõemesse pano de fundo, não-justificado e injusti-ficável, em que o homem se move em direçãoa um valor que o apaixona e que só posterior-mente busca explicitar pela razão.

Mito e razão se complementam mu-tuamente.

No entanto, o mito, recuperado no coti-diano do homem contemporâneo, não se apre-senta com a abrangência que se fazia sentir nohomem primitivo. O nascimento da reflexãopermite a rejeição dos mitos prejudiciais aohomem. O exercício da crítica racional faz adiferenciação deles, legitimando alguns e ne-gando outros que levam à desumanização.

Para Gusdorf, "o mito propõe todos osvalores, puros e impuros. Não é da sua atri-buição autorizar tudo o que sugere. Nossaépoca conheceu o horror do desencadeamentodos mitos do poder e da raça, quando seu fas-cínio se exercia sem controle. A sabedoria éum equilíbrio. O mito propõe, mas cabe àconsciência dispor. E foi talvez porque umracionalismo estreito demais fazia profissãode desprezar os mitos, que estes, deixados semcontrole, tornaram-se loucos"6.

Exercícios

1. Qual é a diferença entre mito e lenda?

2. Explique e dê exemplos: O mito para o pri-mitivo abrange a totalidade do real.

3. Faça um paralelo entre: mito/ciência; rito/técnica.

4. Como é a consciência de si do homem pri-mitivo?

5. Quais são as fases na evolução da religião?

6. Qual a função da razão diante do mito?

7. Enfoque alguma personalidade conhecidae marcante do cenário artístico ou político e anali-se como o mito é um componente expressivo.

8. A partir dos conceitos de mito e rito, anali-se os fenômenos futebol e carnaval.

9. "Os contos de fadas, à diferença de qual-quer outra forma de literatura, dirigem a criançapara a descoberta de sua identidade e comunica-ção, e também sugerem as experiências que sãonecessárias para desenvolver ainda mais o seu ca-ráter. Os contos de fadas declaram que uma vidacompensadora e boa está ao alcance da pessoa, ape-

6 G. Gusdorf, Mito e metafísica, p. 308.

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sar da adversidade — mas apenas se ela não se in-timidar com as lutas do destino, sem as quais nun-ca se adquire verdadeira identidade. Essas estóriasprometem à criança que, se ela ousar se engajarnessa busca atemorizante, os poderes benevolentesvirão em sua ajuda, e ela o conseguirá. As estóriastambém advertem que os muito temerosos e demente medíocre, que não se arriscam a se encon-trar, devem se estabelecer numa existência monó-tona — se um destino ainda pior não recair sobreeles." (Bruno Bettelheim)

a) Explique em que sentido, a partir das su-gestões do texto, podemos relacionar o conto defada e o mito.

b) Aplique as análises do texto a algum contode fada (por exemplo, João e Maria ou Chapeuzi-nho Vermelho).

10. Leia o texto complementar de PierreClastres e responda:

a) O que é rito de passagem?b) Compare com alguns ritos modernos

dessacralizados.

11. Leia o texto complementar de RolandBarthes e o interprete levando em conta os concei-tos aprendidos no Capítulo 5 (Ideologia): Por queo mito da cabana feliz é ideológico?

Textos complementares

Iniciação

Não causará surpresa descobrir uma analogia estrutural entre os ritos ligados ao nascimento eaqueles que sancionam a passagem dos meninos e meninas para a idade adulta. Esta passagem éimediatamente legível em dois níveis. Antes de tudo, ela marca o reconhecimento social da maturi-dade biológica dos indivíduos que não podem mais ser considerados como crianças. Traduz emseguida a aceitação pelo grupo da entrada em seu seio de novos adultos, do pertencimento pleno einteiro dos jovens à sociedade. Ora, a ruptura com o mundo da criança é percebida pelo pensamentoindígena e exprimida no rito como uma morte e um renascimento. Tornar-se adulto é morrer para ainfância e nascer para a vida social, pois desde então rapazes e moças podem deixar sua sexualidadeexpandir-se livremente. Compreende-se assim que os ritos de passagem tenham lugar, como os ritosde nascimento, em uma atmosfera dramatizada ao extremo. A comunidade dos adultos dramatiza arecusa em reconhecer seus recém-iguais, sua resistência em aceitá-los como tais, finge ver nelesconcorrentes, inimigos. Mas ela quer igualmente, por meio da prática ritual, mostrar aos jovens que,se eles sentem o orgulho de aceder à idade adulta, isto se dá ao preço de uma perda irremediável, aperda do mundo despreocupado e feliz da infância. É devido a isto que, em numerosas sociedadessul-americanas, os ritos de passagem comportam uma série de provas físicas muito penosas e umadimensão de crueldade e de dor que torna esta passagem um acontecimento inesquecível: tatuagens,escarificações, flagelações, picadas de vespas ou de formigas etc, que os jovens iniciados devemsuportar em meio ao mais profundo silêncio. Eles desmaiam, mas sem gemer. E nesta pseudomorte,nesta morte provisória (o desmaio deliberadamente provocado por aqueles que conduzem o ritual),surge claramente a identidade de estrutura que o pensamento indígena estabelece entre nascimento epassagem. Este é um renascimento, uma repetição do primeiro nascimento, que deve, conseqüente-mente, ser precedido por uma morte simbólica.

(Pierre Clastres, Arqueologia da violência, p. 80.)

IIConjugais

Os casamentos abundam na nossa melhor imprensa ilustrada: grandes casamentos (o filho domarechal Juin e a filha de um inspetor de Finanças, a filha do duque de Castries e o barão Vitrolles),casamentos de amor (Miss Europa 53 e o seu amigo de infância), casamentos (futuros) de vedetes

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I

(Marlon Brando e Josiane Mariani, Raf Vallone e Michèle Morgan). Naturalmente, estes casamen-tos não são todos enfocados na mesma fase, visto que a sua virtude mitológica não é a mesma.

(...) A união de Sylviane Carpentier, Miss Europa 53, e de seu amigo de infância, o eletricistaMichel Warenbourg, permite desenvolver uma imagem diferente, a da cabana feliz. Graças ao seutítulo, Sylviane podia ter seguido a carreira brilhante de uma estrela: viajar, fazer cinema, ganharmuito dinheiro; sensata e modesta, renunciou à "glória efêmera" e, fiel ao seu passado, casou com oeletricista de Palaiseau. Os jovens esposos são-nos desta vez apresentados na fase pós-nupcial de suaunião, estabelecendo os hábitos da sua felicidade e instalando-se no anonimato de um modesto con-forto: mobiliando apartamento de dois quartos e cozinha, tomando o café da manhã, indo ao cinema,fazendo a feira etc.

Aqui, a operação consiste evidentemente em pôr ao serviço do modelo pequeno-burguês toda aglória natural do casal: que esta felicidade, mesquinha por definição, possa no entanto ser escolhida,eis um fato que lisonjeia os milhões de franceses que compartilham essa felicidade por condição. Apequena burguesia pode orgulhar-se da adesão de Sylviane Carpentier, assim como a Igreja, antiga-mente, ganhava força e prestígio com o ingresso de algum aristocrata em suas ordens: o casamentode Miss Europa, o seu enternecedor ingresso, depois de tantas glórias, no pequeno apartamento dePalaiseau, equivale ao Sr. de Rance escolhendo a ordem da Trapa ou Louise de Ia Vallière a doCarmo: grande glória para a Trapa, o Carmo e Palaiseau.

O amor-mais-forte-que-a-glória reverte assim em favor da moral do status quo social: não ésensato sair-se da sua condição, reentrar nela é glorioso. Como recompensa, a própria condição podedesenvolver as suas vantagens, que são essencialmente as da fuga. Neste universo, a felicidade con-siste em jogar o jogo de uma espécie de reclusão doméstica: questionários "psicológicos", truques,trabalhos manuais, aparelhagem eletrodoméstica, estabelecimento de horários, todo este paraíso uti-litário da Elle ou do Express glorifica a reclusão no lar, a introversão do casal no conforto doméstico,tudo o que possa distraí-lo, infantilizá-lo, inocentá-lo e, sobretudo, tudo o que o isenta de uma res-ponsabilidade social mais lata. "Dois corações, uma cabana." No entanto, o mundo também existe.Mas o amor espiritualiza a cabana, e a cabana disfarça o barraco: assim se exorciza a miséria pelasua imagem ideal, a pobreza.

(Roland Barthes, Mitologias, p. 36.)

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Advento da Polis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiadoestreitos para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais ementais próprias da cidade grega.

(Jean-Pierre Vernant)

1. Introdução

Todos nós sabemos que os primeirosfilósofos da humanidade foram gregos.Isso significa que embora tenhamos refe-rências de grandes homens na China(Confúcio, Lao Tsé), na índia (Buda), naPérsia (Zaratustra), suas teorias ainda es-tão por demais vinculadas à religião para

que se possa falar propriamente em refle-xão filosófica.

O que veremos neste capítulo é o pro-cesso pelo qual se tornou possível a passagemda consciência mítica para a consciência fi-losófica na civilização grega, constituída pordiversas regiões politicamente autônomas.

CAPÍTULO 7

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Periodização da história da Grécia Antiga

• Civilização micênica — desenvolve-se desde o início do segundo milênio a.C. e tem esse nomepela importância da cidade de Micenas, de onde, no século XII a.C, partem Agamemnon, Aquiles eUlisses para sitiar e conquistar Tróia.

• Tempos homéricos (séculos XII a VIII a.C.) — são assim chamados porque nesse período teriavivido Homero (século IX ou VIII). Na fase de transição de um mundo essencialmente rural, o enriqueci-mento dos senhores faz surgir a aristocracia proprietária de terras e o desenvolvimento do sistemaescravista.

• Período arcaico (séculos VIII a VI a.C.) — grandes alterações sociais e políticas com o adven-to das cidades-estados (pólis) e desenvolvimento do comércio e conseqüente movimento de colonizaçãogrega.

• Período clássico (séculos V e IV a.C.) — apogeu da civilização grega. Na política, expressão dademocracia ateniense; explosão das artes, literatura e filosofia. Época em que viveram os sofistas,Sócrates, Platão e Aristóteles.

• Período helenístico (séculos III e II a.C.) — decadência política da Grécia, com o domíniomacedônico e conquista pelos romanos. Culturalmente se dá a influência das civilizações orientais.

DO MITO À RAZÃO:O NASCIMENTO

DA FILOSOFIA NAGRÉCIA ANTIGA

2. A concepção mítica

As epopéias

Os mitos gregos eram recolhidos pelatradição e transmitidos oralmente pelos aedose rapsodos, cantores ambulantes que davamforma poética aos relatos populares e os reci-tavam de cor em praça pública. Era difícil co-nhecer os autores de tais trabalhos deformalização, porque num mundo em que pre-domina a consciência mítica não existe apreocupação com a autoria da obra, já que oanonimato é a conseqüência do coletivismo,fase em que ainda não se destaca a individua-lidade. Além disso, não havia a escrita parafixar obra e autor.

Por esse motivo há controvérsia a res-peito da época em que teria vivido Homero,um desses poetas, e até se ele realmente teriaexistido (séc. IX a.C.?). É costume atribuir-lhe a autoria de dois poemas épicos (epo-péias): Ilíada, que trata da guerra de Tróia(Tróia em grego é ílion), e Odisséia, que rela-ta o retorno de Ulisses a ítaca, após a guerrade Tróia (Odisseus é o nome grego de Ulisses).Por vários motivos, inclusive pelo estilo dife-rente dos dois poemas, alguns intérpretesacham que são obras de diversos autores.

De qualquer forma, as epopéias tiveramfunção didática importante na vida dos gre-gos porque descrevem o período da civiliza-ção micênica e transmitem os valores da cul-tura por meio das histórias dos deuses e ante-passados, expressando uma determinada con-cepção de vida. Por isso desde cedo as crian-ças decoravam passagens dos poemas deHomero.

As ações heróicas relatadas nas epopéiasmostram a constante intervenção dos deuses,ora para auxiliar um protegido seu, ora paraperseguir um inimigo. O homem homéricoé presa do Destino (Moira), que é fixo, imutá-vel, e não pode ser alterado. Até distúrbiospsíquicos como o desvario momentâneo deAgamemnon são atribuídos à ação divina.É nesse sentido a fala de Heitor: "Ninguémme lançará ao Hades1 contra as ordens dodestino! Garanto-te que nunca homem

algum, bom ou mau, escapou ao seu destino,desde que nasceu!"

O herói vive, portanto, na dependênciados deuses e do destino, faltando a ele a nossanoção de vontade pessoal, de livre-arbítrio.Mas isto não o diminui diante dos homens co-muns. Ao contrário, ter sido escolhido pelosdeuses é sinal de valor e em nada tal ajudadesmerece a sua virtude.

A virtude do herói se manifesta pela co-ragem e pela força, sobretudo no campo debatalha, mas também na assembléia, no dis-curso, pelo poder de persuasão. O preceptorde Aquiles diz: "Para isso me enviou, a fim deeu te ensinar tudo isto, a saber fazer discursose praticar nobres feitos".2 Nessa perspectiva,a noção de virtude não deve ser confundidacom o conceito moral de virtude como o co-nhecemos posteriormente, mas como excelên-cia, superioridade, alvo supremo do herói.Trata-se da virtude do guerreiro belo e bom.

A Teogonia

Hesíodo, outro poeta que teria vividopor volta do final do século VIII e princípiosdo VII a.C, produz uma obra com caracterís-ticas que apontam para a época que se vai ini-ciar a seguir, com particularidades que tendema superar a poesia impessoal e coletiva dasepopéias.

Mas mesmo assim, sua obra Teogonia(teo: deus; gonia: origem) reflete ainda apreocupação com a crença nos mitos. NelaHesíodo relata as origens do mundo e dos deu-ses, e as forças que surgem não são a pura na-tureza, mas sim as próprias divindades: Gaiaé a Terra, Urano é o Céu, Cronos é o Tempo,surgindo ora por segregação, ora pela inter-venção de Eros, princípio que aproxima osopostos.

3. A concepção filosófica

E no período arcaico que surgem os pri-meiros filósofos gregos, por volta de fins doséculo VII a.C. e durante o século VI a.C.

Alguns autores costumam chamar de"milagre grego" a passagem do pensamento

1 Hades: deus do Mundo Subterrâneo (em Roma: Plutão). Também se refere ao Mundo dos Mortos (Infernos).2 Esta citação e as referidas no exercício 3 são da Ilíada e Odisséia, apud Maria Helena Rocha Pereira, Estudos de

história da cultura clássica, p. 90, 98, 101 e 102.

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mítico para o pensamento crítico racional efilosófico. Atenuando a ênfase dada a essa"mutação", no entanto, alguns estudiososmais recentes pretendem superar essa visãosimplista e a-histórica, realçando o fato de queo surgimento da racionalidade crítica foi o re-sultado de um processo muito lento, prepara-do pelo passado mítico, cujas característicasnão desaparecem "como por encanto" na novaabordagem filosófica do mundo. Ou seja, osurgimento da filosofia na Grécia não é o re-sultado de um salto, um "milagre" realizadopor um povo privilegiado, mas a culminaçãode um processo que se fez através dos tempose tem sua dívida com o passado mítico.

Algumas novidades surgidas no períodoarcaico ajudaram a transformar a visão que ohomem mítico tinha do mundo e de si mesmo.São elas a invenção da escrita, o surgimentoda moeda, a lei escrita, o nascimento da polis(cidade-estado), todas elas tornando-se condi-ção para o surgimento do filósofo. Vejamoscomo isso se deu.

A escrita

Geralmente a consciência mítica predo-mina nas culturas de tradição oral, onde aindanão há escrita. É interessante observar quemythos significa "palavra", "o que se diz". Apalavra antes da escrita, ligada a um suportevivo que a pronuncia, repete e fixa o eventopor meio da memória pessoal. Aliás, etimolo-gicamente, epopéia significa "o que se expri-me pela palavra" e lenda é "o que se conta".

É bem verdade que, de início, a primei-ra escrita é mágica e reservada aos privilegia-dos, aos sacerdotes e aos reis. Entre os egíp-cios, por exemplo, hieróglifos significa lite-ralmente "sinais divinos".

Na Grécia, a escrita surge por influên-cia dos fenícios e já no século VIII a.C. seacha suficientemente desligada de preocupa-ções esotéricas e religiosas. Enquanto os ri-tuais religiosos são cheios de fórmulas má-gicas, termos fixos e inquestionados, os es-critos deixam de ser reservados apenas aosque detêm o poder e passam a ser divulgadosem praça pública, sujeitos à discussão e à crí-tica. Apenas um parêntese esclarecedor: issonão significa que a escrita tenha se tornadoacessível a todos. Muito ao contrário, perma-nece ainda grande o número de analfabetos.O que está em questão, no entanto, é a

dessacralização da escrita, ou seja, seu desli-gamento da religião.

A escrita gera uma nova idade mentalporque exige de quem escreve uma postura di-ferente daquela de quem apenas fala. Como aescrita fixa a palavra, e conseqüentemente omundo, para além de quem a proferiu, necessi-ta de mais rigor e clareza, o que estimula o es-pírito crítico. Além disso, a retomada posteriordo que foi escrito e o exame pelos outros —não só de contemporâneos mas de outras gera-ções — abrem os horizontes do pensamento,propiciando o distanciamento do vivido, o con-fronto das idéias, a ampliação da crítica.

Portanto, a escrita aparece como possi-bilidade maior de abstração, uma reflexão dapalavra que tenderá a modificar a própria es-trutura do pensamento.

A moeda

Por volta dos séculos VIII a VI a.C. hou-ve o desenvolvimento do comércio marítimodecorrente da expansão do mundo grego me-diante a colonização da Magna Grécia (atualsul da Itália) e Jônia (atual Turquia). O enri-quecimento dos comerciantes promoveu pro-fundas transformações decorrentes da substi-tuição dos valores aristocráticos pelos valoresda nova classe em ascensão.

Na época da predominância da aristo-cracia rural, cuja riqueza se baseava em terrase rebanhos, a economia era pré-monetária eos objetos usados para troca vinham carrega-dos de simbologia afetiva e sagrada, decorren-te da posição social ocupada por homens con-siderados superiores e do caráter sobrenaturalque impregnava as relações sociais.

A fim de facilitar os negócios, a moeda,que tinha sido inventada na Lídia, aparece naGrécia por volta do século VII a.C. A moedatorna-se necessária porque, com o comércio,os produtos que antes eram feitos sobretudocom valor de uso passam a ter valor de troca,isto é, transformam-se em mercadoria. Daí aexigência de algo que funcionasse como va-lor equivalente universal das mercadorias.

A invenção da moeda desempenha pa-pel revolucionário, pois está vinculada ao nas-cimento do pensamento racional. Isso porquepassa a ser emitida e garantida pela Cidade,revertendo benefícios para a própria comuni-dade. Além desse efeito político de democra-tização, a moeda sobrepõe aos símbolos sa-

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grados e afetivos o caráter racional de suaconcepção: muito mais do que um metal precio-so que se troca por qualquer mercadoria, a moe-da é um artifício racional, uma convenção hu-mana, uma noção abstrata de valor que estabele-ce a medida comum entre valores diferentes.

A lei escrita

Drácon (séc. VII a.C), Sólon e Clístenes(séc. VI a.C.) são os primeiros legisladoresque marcam uma nova era: a justiça, até entãodependente da arbitrariedade dos reis ou dainterpretação da vontade divina, é codificadanuma legislação escrita. Regra comum a to-dos, norma racional, sujeita à discussão e mo-dificação, a lei escrita passa a encarnar umadimensão propriamente humana.

As reformas provocadas pela legislaçãode Clístenes fundam a pólis sobre uma basenova: a antiga organização tribal é abolida eestabelecem-se novas relações, não mais ba-seadas na consangüinidade, mas determinadaspor nova organização administrativa. Taismodificações expressam o ideal igualitárioque prepara a democracia nascente, pois a uni-ficação do corpo social abole a hierarquia fun-dada no poder aristocrático das famílias.

O cidadão da polis

Jean-Pierre Vernant, helenista e pensa-dor francês, vê no nascimento da pólis (porvolta dos séculos VIII e VII a.C.) um aconte-cimento decisivo que "marca um começo,uma verdadeira invenção", que provocougrandes alterações na vida social e nas rela-ções entre os homens.

A originalidade da cidade grega é queela está centralizada na ágora (praça pública),espaço onde se debatem os problemas de inte-resse comum. Separam-se na pólis o domíniopúblico e o privado: isto significa que ao idealde valor de sangue, restrito a grupos privile-giados em função do nascimento ou fortuna,se sobrepõe a justa distribuição dos direitosdos cidadãos enquanto representantes dos in-teresses da cidade. Está sendo elaborado onovo ideal de justiça, pelo qual todo cidadãotem direito ao poder. A nova noção de justiçaassume caráter político, e não apenas moral,

ou seja, ela não diz respeito apenas ao indiví-duo e aos interesses da tradição familiar, masse refere a sua atuação na comunidade.

A pólis se faz pela autonomia da pala-vra, não mais a palavra mágica dos mitos, pa-lavra dada pelos deuses e, portanto, comum atodos, mas a palavra humana do conflito, dadiscussão, da argumentação. O saber deixa deser sagrado e passa a ser objeto de discussão.

A expressão da individualidade pormeio do debate faz nascer a política, libertan-do o homem dos exclusivos desígnios divinos,e permitindo a ele tecer seu destino na praçapública. A instauração da ordem humana dáorigem ao cidadão da pólis, figura inexistenteno mundo coletivista da comunidade tribal.

Portanto, o cidadão da pólis participados destinos da cidade por meio do uso da pa-lavra em praça pública. Mas para que isso fos-se possível, desenvolveu-se uma nova con-cepção a respeito das relações entre os ho-mens, não mais assentadas nas suas diferen-ças, na hierarquia típica das relações de sub-missão e domínio. Ou seja, "os que compõema cidade, por mais diferentes que sejam porsua origem, sua classe, sua função, aparecemde uma certa maneira 'semelhantes' uns aosoutros". De início a igualdade existe apenasentre os guerreiros, mas "essa imagem domundo humano encontrará no século VI suaexpressão rigorosa num conceito, o deisonomia: igual participação de todos os cida-dãos no exercício do poder"3.

O apogeu da democracia ateniense se dáno século V a.C, já no período clássico, quan-do Péricles era estratego. É bem verdade queAtenas possuía meio milhão de habitantes,dos quais 300 mil eram escravos e 50 milmetecos (estrangeiros); excluídas mulheres ecrianças, restavam apenas 10% consideradoscidadãos propriamente ditos, capacitados paradecidir por todos.

Por isso, quando falamos em democra-cia ateniense, é bom lembrar que a maior par-te da população se achava excluída do proces-so político. Aliás, quanto mais se desenvolviaa idéia de cidadão ideal, com a consolidaçãoda democracia, mais a escravidão surgia comocontraponto indispensável, na medida em queao escravo eram reservadas as tarefas consi-deradas "menores" dos trabalhos manuais e da

J.-P. Vernant, As origens do pensamento grego, p. 42.

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luta pela sobrevivência. Mas não resta dúvidade que, na fase aristocrática anterior, haviaainda outros tipos de privilégios. O queenfatizamos no processo é a mutação do idealpolítico e o surgimento de uma concepçãonova de poder.

O ideal teórico da nova classe dos co-merciantes será elaborado pelos sofistas, filó-sofos do século V a.C. (ver Capítulo 19 — Opensamento político grego).

O nascimento do filósofo

A grande aventura intelectual dos gregosnão começa propriamente na Grécia continen-tal, mas nas colônias: na Jônia (metade sul dacosta ocidental da Ásia Menor) e na MagnaGrécia (sul da península itálica e Sicília).

Os primeiros filósofos viveram por vol-ta do século VI a.C. e, mais tarde, foram clas-sificados como pré-socráticos (a divisão dafilosofia grega se centraliza na figura deSócrates) e agrupados em diversas escolas.Por exemplo, escola jônica (Tales, Anaximan-dro, Anaxímenes, Heráclito, Empédocles), es-

cola itálica (Pitágoras), escola eleática(Xenófanes, Parmênides, Zenão); escolaatomista (Leucipo e Demócrito).

Os escritos dos filósofos pré-socráticosdesapareceram com o tempo, e só nos restamalguns fragmentos ou referências feitas por fi-lósofos posteriores. Sabemos que geralmente,escreviam em prosa, abandonando a formapoética característica das epopéias, dos rela-tos míticos.

É interessante notar que, enquantoHesíodo, ao relatar o princípio do mundo{cosmogonia) e dos deuses (teogonia), refere-se a sua gênese ou origem, as preocupações dosprimeiros pensadores levam à elaboração deuma cosmologia, pois procuram a racio-nalidade do universo. Isso significa que, ao per-guntarem como seria possível emergir do Caosum "cosmos" — ou seja, como da confusãoinicial surgiu o mundo ordenado —, os pré-so-cráticos procuram o princípio (a arché) de to-das as coisas, entendido este não como o queantecede no tempo, mas enquanto fundamentodo ser. Buscar a arché é explicar qual é o ele-mento constitutivo de todas as coisas.

A filosofia surgiu no século VI a.C. nas colônias gregas da Magna Grécia e da Jônia. Só no século seguintedesloca-se para Atenas, centro da fermentação cultural do período clássico.

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As respostas dos filósofos à questão dofundamento das coisas são as mais variadas.Cada um descobre a arché, a unidade quepode explicar a multiplicidade: para Tales é aágua; para Anaxímenes é o ar; para Demócritoé o átomo; para Empédocles, os famosos qua-tro elementos, terra, água, ar e fogo, teoriaaceita até o século XVIII, quando foi criticadapor Lavoisier.

4. Mito e filosofia: continuidadee ruptura

Já podemos observar a diferença entre opensamento mítico e a filosofia nascente: osfilósofos divergem entre si e a filosofia se dis-tingue da tradição dogmática dos mitos ofere-cendo uma pluralidade de explicações possí-veis. Assim justificamos a perspectivacomumente aceita da ruptura entre mythos elogos (razão).

No entanto, estudiosos como Cornfordse preocuparam em encontrar os elementosque, apesar das diferenças, mostrassem comoo pensamento filosófico nascente ainda tinhavinculações com o mito. Segundo Vernant,Cornford observou que a física jônica é a ex-pressão do pensamento filosófico racional eabstrato, pois recorre a argumentos e não aexplicações sobrenaturais. No entanto, se aatitude do filósofo o distingue do homemmítico, o conteúdo da filosofia permanece se-melhante ao do mito, e dele o aproxima.

Por exemplo, Hesíodo relata naTeogonia como Gaia (Terra) gera sozinha, porsegregação, o Céu e o Mar; depois, a uniãoda Terra com o Céu, presidida por Eros (prin-cípio de coesão do Universo), resulta na gera-ção dos deuses. Ora, examinando os textosdos filósofos jônicos, Cornford descobriu ne-les a mesma estrutura de pensamento existen-

te no relato mítico: os jônios afirmam que, deum estado inicial de indistinção, separam-separes opostos (quente e frio, seco e úmido)que vão gerar os seres naturais (o céu de fogo,o ar frio, a terra seca, o mar úmido). Para osfilósofos, a ordem do mundo deriva de forçasopostas que se equilibram reciprocamente, e aunião dos opostos explica os fenômenosmeteóricos, as estações do ano, o nascimentoe a morte de tudo que vive.4

Portanto, na passagem do mito à razão,há continuidade no uso comum de certas es-truturas de explicação. Na concepção deCornford não existe "uma imaculada concep-ção da razão", pois o aparecimento da filoso-fia é um fato histórico enraizado no passado.

Embora existam esses aspectos de con-tinuidade, a filosofia surge como algo muitodiferente, pois resulta de uma ruptura quantoà atitude diante do saber recebido. Enquantoo mito é uma narrativa cujo conteúdo não sequestiona, a filosofia problematiza e, portan-to, convida à discussão. Enquanto no mito ainteligibilidade é dada, na filosofia ela é pro-curada. A filosofia rejeita o sobrenatural, ainterferência de agentes divinos na explicaçãodos fenômenos.

Ainda mais: a filosofia busca a coerên-cia interna, a definição rigorosa dos concei-tos, o debate e a discussão, organiza-se emdoutrina e surge, portanto, como pensamentoabstrato.

Na nova abordagem do real caracteriza-da pelo pensamento filosófico, podemos ain-da notar a vinculação entre filosofia e ciência.O próprio teor das preocupações dos primei-ros filósofos é de natureza cosmológica, demaneira que, na Grécia Antiga, o filósofo étambém o homem do saber científico. Só noséculo XVII as ciências encontram seu pró-prio método e separam-se da filosofia, for-mando as chamadas ciências particulares (verCapítulo 14 — A ciência na Idade Moderna).

J.-P. Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, p. 297.

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Exercícios

1. Levante as principais idéias do capítulo.

2. Qual é a importância das epopéias no pe-ríodo homérico?

3. Explique qual é o sentido das citações aseguir, tendo em vista a concepção de homemtransmitida pelas epopéias.

a) Diz a deusa Atenas a Ulisses: "Eu sou umadivindade que te guardo sem cessar, em todos ostrabalhos".

b) Agamemnon, depois de um desvario mo-mentâneo, diz: "Não sou eu o culpado, mas Zeus, oDestino e a Erínia, que caminha na sombra".(Erínias eram deusas da vingança, também chama-das Fúrias.)

4. Segundo o historiador da filosofia Burnet,"se [o grego] inventou a filosofia, deve-o às suasqualidades de inteligência excepcionais: o espíritode observação aliado ao poder do raciocínio". Talconcepção, típica da crença no "milagre grego",mereceu a crítica de filósofos como Vernant.

a) Explique qual é o significado dessa crítica.b) Especifique melhor a crítica, referindo-se

à importância do advento da escrita, moeda etc.c) Explique: "A filosofia é filha da Cidade".

5. Contraponha a noção de virtude para o he-rói mítico e para o cidadão da pólis.

6. Qual é a importância da agora para o de-senvolvimento da democracia?

7. "Em todas as literaturas, a prosa é poste-rior ao verso, como a reflexão o é à imaginação. Aliteratura grega não faz exceção à regra, antes aacentua, pois o desnível cronológico entre ambasdeve importar uns três séculos." (M. Helena RochaPereira)

a) Quais são as obras em prosa? E as em verso?b) Em que épocas elas aparecem?c) Explique o que a autora quer dizer com a

oposição imaginação-reflexão.

8. Leia o texto complementar I e identifiqueos elementos que denotam continuidade em rela-ção ao pensamento mítico.

9. Platão viveu no século V a.C, mas aindasentia próxima a influência da tradição de Homero.Leia o texto complementar II e justifique por quePlatão teme a poesia.

Pesquisa

Dividir a classe em quatro grupos, que deve-rão pesquisar a respeito das seguintes escolas defilosofia: escola jônica; escola itálica; escolaeleática; escola atomista.

Textos complementares

IPré-socráticos

Como a maior parte das obras dos pré-socráticos desapareceram, Herman Diels e WaltherKranz selecionaram os fragmentos que sobraram, reconhecendo os autênticos, assim como fizeramlevantamento de uma ampla doxografia, ou seja, transcreveram as referências de diversos autores arespeito daqueles filósofos. Os trechos a seguir referem-se a alguns desses fragmentos, bem como acomentários de doxógrafos.

Anaximandro

Anaximandro não explica a gênese pela mudança do elemento primordial, mas pela separaçãodos contrários em conseqüência do movimento eterno. (Simplício)

Contrários são quente e frio, seco e úmido, e os outros. (Simplício)Anaximandro afirma que, por ocasião da gênese deste cosmos, a força criadora do princípio

eterno separou-se do calor e do frio, formando-se uma esfera deste fogo ao redor do ar que envolve aTerra, assim como a casca em torno da árvore. Quando esta se rompeu, dividindo-se em diversoscírculos, formaram-se o Sol, a Lua e as estrelas. (Pseudo Plutarco)

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Anaxímenes

Outros dizem que a alma é ar, como Anaxímenes e alguns estóicos. (Filópono)As estrelas surgiram da Terra, ao destacar-se desta a umidade ascendente; com a rarefação da

umidade, surgiu o fogo; e do fogo, que se elevava, constituíram-se as estrelas. (Hipólito)

Heráclito

(Heráclito afirma a unidade de todas as coisas: do separado e do não separado, do gerado e donão gerado, do mortal e do imortal, da palavra (logos) e do eterno, do pai e do filho, de Deus e dajustiça.) É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos), reconheçam quetodas as coisas são um.

Eles não compreendem como, separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças con-trárias, como o arco e a lira.

A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; deuns, escravos, de outros, homens livres.

Parmênides

Os (anéis) mais estreitos estão cheios de fogo sem mistura; os (seguintes) estão cheios da noite,mas entre ambos está projetada a parte de fogo; no centro destes (anéis) está a divindade que tudogoverna; pois em tudo ela é o princípio do cruel nascimento e da união, enviando o feminino a unir-se com o masculino, como, ao contrário, o masculino com o feminino.

Em primeiro lugar criou (a divindade do nascimento ou do amor), entre todos os deuses, a Eros (...).

Empédocles

Ainda outra coisa te direi. Não há nascimento para nenhuma das coisas mortais, como não háfim na morte funesta, mas somente composição e dissociação dos elementos compostos: nascimentonão é mais do que um nome usado pelos homens.

Esta (luta das duas forças) é manifesta na massa dos membros humanos: às vezes, unem-sepelo amor todos os membros que atingiram a corporeidade, na culminância da vida florescente;outras, divididos pela cruel força da discórdia, erram separados nas margens da vida. Assim tambémcom as árvores e peixes das águas, com os animais selvagens das montanhas e os pássarosmergulhões levados por suas asas.

(Apud G. Bornheim, Os filósofos pré-socráticos, p. 26, 29, 39, 57, 69 e 70.)

IIOs poetas

Trata-se de um trecho do Livro X de A República; no diálogo, as falas na primeira pessoa sãode Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão.

— E no entanto não acusamos ainda a poesia do mais grave de seus malefícios. Que ela seja,com efeito, capaz de corromper até as pessoas honestas, afora um pequeno número, eis o que semdúvida é realmente temível.

— Seguramente, se ela surte tal efeito.— Ouve, e considera o caso dos melhores dentre nós. Quando ouvimos Homero ou qualquer

outro poeta trágico imitar um herói na dor, o qual, em meio de seus lamentos, se estende em longatirada, ou canta, ou se golpeia no peito, sentimos, como sabes, prazer, abandonamo-nos paraacompanhá-lo com nossa simpatia e, em nosso entusiasmo, louvamos como bom poeta aquele que,no mais alto grau possível, provocou em nós tais disposições.

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— Sei disso; como poderia ignorá-lo.— Mas, quando um infortúnio doméstico nos fere, já reparaste sem dúvida que temos como

ponto de honra manter a atitude contrária, isto é, permanecer calmos e corajosos, porque assim ageum homem e porque a conduta que há pouco aplaudimos só convém às mulheres.

— Assim pois, Glauco, quando te deparares com panegiristas de Homero, afirmando que estepoeta efetuou a educação da Grécia e que, para administrar os negócios humanos ou ensinar o seumanejo, é justo tomá-lo em mão, estudá-lo e viver regulando por ele toda a existência, deves porcerto saudá-los e acolhê-los amigavelmente, como homens que são tão virtuosos quanto possível, econceder-lhes que Homero é o príncipe da poesia e o primeiro dos poetas trágicos, mas saber outros-sim que, em matéria de poesia, não se deve admitir na cidade senão os hinos em honra dos deuses eos elogios à gente de bem. Se, ao invés, admitires a Musa voluptuosa, o prazer e a dor serão os reisde tua cidade, em lugar da lei e deste princípio que, por comum acordo, sempre foi considerado omelhor, a razão.

(Platão, A República, p. 224 e ss.)

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O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o, naturalmente.E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser um enig-ma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com assuas definições.

(Husserl)

A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.

(Merleau-Ponty)

1. Introdução

Lembremos a figura de Sócrates. Viveuem Atenas no século V a.C. Dizem que eraum homem feio, mas, quando falava, era donode estranho fascínio. Procurado pelos jovens,passava horas discutindo na praça pública. In-terpelava os transeuntes, di-zendo-se ignorante, e faziaperguntas aos que julgavamentender determinado assunto.Colocava o interlocutor em talsituação que não havia saídasenão reconhecer a própria ig-norância. Com isso Sócratesconseguiu rancorosos inimi-gos. Mas também alguns dis-cípulos.

O interessante é que nasegunda parte do seu méto-do1, que se seguia à destrui-ção da ilusão do conhecimen-to, nem sempre se chegava defato a uma conclusão efetiva.Sabemos disso não pelo pró-prio Sócrates, que nunca es-creveu, mas por seus discípu-los, sobretudo Platão e Xeno-

fonte (ver o texto complementar II deste ca-pítulo: "Ciência e missão de Sócrates").

Afinal, acusado de corromper a mocida-de e desconhecer os deuses da Cidade,Sócrates foi condenado à morte. A história de

Morte de Sócrates, de Louis David. Sócrates foi condenado à morte,acusado de corromper a mocidade e de desconhecer os deuses da Ci-dade. Enquanto aguardava a execução da sentença, discutia com seusdiscípulos a respeito da imortalidade da alma.

Ver referências ao método de Sócrates na Primeira Parte do Capítulo 10 — Teoria do conhecimento.

CAPÍTILO8OQUEÉ

FILOSOFIA?

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sua condenação, defesa e morte é contada nobelo diálogo de Platão, Apologia de Sócrates.Na prisão, o mestre discutia com os discípu-los questões sobre a imortalidade da alma, re-latadas no Fédon, também de Platão.

A partir do que foi dito, podemos fazeralgumas observações:

• Sócrates não está em seu "gabinete"contemplando "o próprio umbigo", e sim napraça pública.

• A relação estabelecida com as pessoasnão é puramente intelectual nem alheia àsemoções.

• Seu conhecimento não é livresco, masvivo e em processo de se fazer; o conteúdo é aexperiência cotidiana.

• Guia-se pelo princípio de que nadasabe e, desta perplexidade primeira, inicia ainterrogação e o questionamento do que éfamiliar.

• Ao criticar o saber dogmático, nãoquer com isso dizer que ele próprio é detentorde um saber. Desperta as consciências ador-mecidas, mas não se considera um "farol" queilumina; o caminho novo deve ser construídopela discussão, que é intersubjetiva, e pelabusca criativa das soluções.

• Portanto, Sócrates é "subversivo" por-que "desnorteia", perturba a "ordem" do co-nhecer e do fazer e, portanto, deve morrer.

Se fizermos um paralelo entre Sócratese a própria filosofia, chegaremos à conclusãode que o lugar da filosofia é na praça pública,daí a sua vocação política. Por ser alteradorada ordem, perturba, incomoda e é sempre "ex-pulsa da cidade", mesmo quando as pessoas seriem do filósofo ou o consideram "inútil". Porvia das dúvidas, o amordaçam, cortam o "mal"pela raiz e até retiram a filosofia dos cursossecundários... Mas há outras formas de "ma-tar" a filosofia: quando a tornamos pensamen-to dogmático e discurso do poder, ou, ainda,quando cinicamente reabilitamos Sócratesmorto, já que então se tornou inofensivo.

2. A atitude filosófica

Entre os antigos gregos predominavainicialmente a consciência mítica, cujamaior expressão se encontra nos poemas deHomero e Hesíodo, conforme já vimos no ca-pítulo anterior.

Quando se dá a passagem da consciên-cia mítica para a racional, aparecem os pri-meiros sábios, sophos, como se diz em grego.Um deles, chamado Pitágoras (séc. VI a.C),que também era matemático, usou pela pri-meira vez a palavra filosofia (philos-sophia),que significa "amor à sabedoria". É bom ob-servar que a própria etimologia mostra que afilosofia não é puro logos, pura razão: ela é aprocura amorosa da verdade.

O trabalho filosófico é essencialmenteteórico. Mas isso não significa que a filosofiaesteja à margem do mundo, nem que ela cons-titua um corpo de doutrina ou um saber aca-bado, com determinado conteúdo, ou que sejaum conjunto de conhecimentos estabelecidosde uma vez por todas.

Para Platão, a primeira virtude do filó-sofo é admirar-se. A admiração é a condiçãode onde deriva a capacidade de problematizar,o que marca a filosofia não como posse daverdade, mas como sua busca. Para Kant, fi-lósofo alemão do século XVIII, "não há filo-sofia que se possa aprender; só se pode apren-der a filosofar". Isto significa que a filosofia ésobretudo uma atitude, um pensar permanen-te. É um conhecimento instituinte, no sentidode que questiona o saber instituído.

Portanto, a teoria do filósofo não consti-tui um saber abstrato. O próprio tecido do seupensar é a trama dos acontecimentos, é o coti-diano. Por isso a filosofia se encontra no seiomesmo da história. No entanto, está mergulha-da no mundo e fora dele: eis o paradoxo en-frentado pelo filósofo. Isso significa que o filó-sofo inicia a caminhada a partir dos problemasda existência, mas precisa se afastar deles paramelhor compreendê-los, retornando depois afim de dar subsídios para as mudanças.

3. A filosofia e a ciência

No seu começo, a ciência estava ligadaà filosofia, sendo o filósofo o sábio que refle-tia sobre todos os setores da indagação huma-na. Nesse sentido, os filósofos Tales ePitágoras eram também geômetras, e Aristó-teles escreveu sobre física e astronomia.

Na ordem do saber estipulada porPlatão, o homem começa a conhecer pela for-ma imperfeita da opinião (doxa), depois passaao grau mais avançado da ciência (episteme),para só então ser capaz de atingir o nível maisalto do saber filosófico.

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A partir do século XVII, a revoluçãometodológica iniciada por Galileu promove aautonomia da ciência e o seu desligamento dafilosofia. Pouco a pouco, desse período até oséculo XX, aparecem as chamadas ciênciasparticulares — física, astronomia, química,biologia, psicologia, sociologia etc. —, deli-mitando um campo específico de pesquisa.

Na verdade, o que estava ocorrendo erao nascimento da ciência, como a entendemosmodernamente. Com a fragmentação do sa-ber, cada ciência se ocupa de um objeto espe-cífico: à física cabe investigar o movimentodos corpos; à biologia, a natureza dos seresvivos; à química, as transformações substan-ciais, e assim por diante. Além da delimitaçãodo objeto da ciência, se acrescenta o aperfei-çoamento do método científico, fundado so-bretudo na experimentação e matematização(ver Capítulos 14 e 15).

O confronto dos resultados e a suaverificabilidade permitem uniformidade deconclusões e, portanto, certa objetividade. Asafirmações da ciência são chamadas juízos derealidade, já que de uma forma ou de outrapretendem mostrar como os fenômenos ocor-rem, quais as suas relações e, conseqüente-mente, como prevê-los.

A primeira questão que nos assalta éimaginar o que resta à filosofia, se, ao longodo tempo, foi "esvaziada" do seu conteúdopelo aparecimento das ciências particulares,tornadas independentes. Ainda mais que, noséculo XX, até as questões referentes ao ho-mem passam a reivindicar o estatuto decientificidade, representado pela procura dométodo das ciências humanas.

Ora, a filosofia continua tratando damesma realidade apropriada pelas ciências.Apenas que as ciências se especializam e ob-servam "recortes" do real, enquanto a filoso-fia jamais renuncia a considerar o seu objetodo ponto de vista da totalidade. A visão dafilosofia é de conjunto, ou seja, o problematratado nunca é examinado de modo parcial,mas sempre sob a perspectiva de conjunto, re-lacionando cada aspecto com os outros docontexto em que está inserido.

Se a ciência tende cada vez mais para aespecialização, a filosofia, no sentido inver-so, quer superar a fragmentação do real, paraque o homem seja resgatado na sua integrida-de e não sucumba à alienação do saber parce-lado. Por isso a filosofia tem uma função de

interdisciplinaridade, estabelecendo o elo en-tre as diversas formas do saber e do agir.

O trabalho da filosofia sob esse aspectoé importante e, sem negar o papel do especia-lista nem o valor da técnica que deriva dessesaber, é preciso reconhecer que o saber espe-cializado, sem a devida visão de conjunto,leva à exaltação do "discurso competente"(ver Capítulos 5 e 11) e às conseqüentes for-mas de dominação.

A filosofia ainda se distingue da ciênciapelo modo como aborda seu objeto: em todosos setores do conhecimento e da ação, a filo-sofia está presente como reflexão crítica a res-peito dos fundamentos desse conhecimento edesse agir. Então, por exemplo, se a física oua química se denominam ciências e usam de-terminado método, não é da alçada do própriofísico ou do químico saber o que é ciência, oque distingue esse conhecimento de outros, oque é método, qual a sua validade, e assim pordiante. Eles até podem dedicar-se a esses as-suntos, mas, quando o fazem, passam a se co-locar questões filosóficas. O mesmo acontececom o psicólogo ao usar, por exemplo, o con-ceito de homem livre. Indagar sobre o que é aliberdade é fazer filosofia.

Mudando o enfoque: e se a questão foro comércio, ou a fábrica? A partir da análisedas relações sociais resultantes da divisão dotrabalho, podemos questionar sobre o concei-to subjacente de homem que se encontra nasrelações estabelecidas socialmente.

Portanto, a filosofia não faz juízos derealidade, como a ciência, mas juízos de va-lor. O filósofo parte da experiência vivida dohomem trabalhando na linha de montagem,repetindo sempre o mesmo gesto, e vai alémdessa constatação. Não vê apenas como é, mascomo deveria ser. Julga o valor da ação, saiem busca do significado dela. Filosofar é darsentido à experiência.

4. O processo do filosofar

A filosofia de vida

Como seria o caminhar do filósofo? Namedida em que somos seres racionais e sensí-veis, estamos sempre dando sentido às coisas.Ao "filosofar" espontâneo do homem comum,costumamos chamar filosofia de vida.

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No Capítulo 5 (Ideologia), quando nosreferimos à passagem do senso comum para obom senso, identificamos esse último à filo-sofia de vida. Enquanto o senso comum éfragmentário, incoerente, preso a preconcei-tos e dogmático, o bom senso supõe a capaci-dade de organização que dá certa autonomiaao homem que analisa sua experiência de vidacotidiana.

Como veremos adiante, enquanto o ho-mem comum faz sua filosofia de vida, o filó-sofo propriamente dito é um especialista.Mas o especialista filósofo é diferente dosoutros especialistas (como o físico ou o ma-temático). Por exemplo, quando observamoso estudioso de trigonometria, podemos bempensar que grande parte dos homens não pre-cisa se ocupar com esse assunto. No entanto,o mesmo não acontece com o objeto de estu-do do filósofo, cujo interesse se estende aqualquer homem.

Segundo Gramsci, "não se pode pensarem nenhum homem que não seja também fi-lósofo, que não pense, precisamente porquepensar é próprio do homem como tal". Issosignifica que as questões filosóficas fazemparte do cotidiano de todos nós. Se o filósofoda educação investiga os fundamentos da pe-dagogia, o homem comum também se preo-cupa em escolher critérios — não importa quesejam pouco rigorosos — a fim de decidir so-bre as medidas a serem tomadas na educaçãode seus filhos.

Estamos diante de diferentes filosofiasde vida quando preferimos morar em casa enão em apartamento, quando deixamos o em-prego bem pago por outro não tão bem remu-nerado, porém mais atraente, ou quando esco-lhemos o colégio onde estudar. Há valores queentram em jogo aí. Se escolho um "colégiofraco para passar de ano e ter tempo para pas-sear", ou se, ao contrário, prefiro um "colégioforte para me preparar para o vestibular", ou,ainda dentro dessa última opção, "um bomcolégio para ter um contato melhor com omundo da cultura e abrir as possibilidades deautoconhecimento", é preciso reconhecer queexistem critérios bem diferentes fundamen-tando tais decisões.

É por isso que consideramos tão impor-tante a introdução do estudo de filosofia nasescolas de 2º grau. Não propriamente para pre-parar futuros prováveis filósofos especialistas,mas a fim de dar alguns subsídios para o apri-moramento da reflexão filosófica inerente aqualquer ser humano. Nesse sentido, o ensinoda filosofia deveria se estender a todos os cur-sos e não só às classes de ciências humanas.

A filosofia propriamente dita

A filosofia propriamente dita tem con-dições de surgir no momento em que o pensaré posto em causa, tornando-se objeto de refle-xão. Mas não qualquer reflexão. Como vimos,o homem comum, no cotidiano da vida, é le-vado a momentos de parada, a fim de retomaro significado de seus atos e pensamentos, enessa hora é solicitado a refletir. Entretanto,ainda não é filosofia rigorosa o que ele faz.

Examinemos a palavra reflexão: quan-do vemos nossa imagem refletida no espelho,há um "desdobramento", pois estamos aqui eestamos lá; no reflexo da luz, ela vai até o es-pelho e retorna; reflectere, em latim, significa"fazer retroceder", "voltar atrás". Portanto, re-fletir é retomar o próprio pensamento, pensaro já pensado, voltar para si mesmo e colocarem questão o que já se conhece.

É ainda Gramsci quem diz: "o filósofoprofissional ou técnico não só 'pensa' commaior rigor lógico, com maior coerência, commaior espírito de sistema do que os outros ho-mens, mas conhece toda a história do pensa-mento, sabe explicar o desenvolvimento queo pensamento teve até ele e é capaz de reto-mar os problemas a partir do ponto em que seencontram, depois de terem sofrido as maisvariadas tentativas de solução."2

Segundo o professor Dermeval Saviani,a reflexão filosófica é radical, rigorosa e deconjunto.3 Interpretaremos esses tópicos:

• Radical: a palavra latina radix, radieissignifica "raiz", e no sentido figurado, "fun-damento, base". Portanto, a filosofia é radicalnão no sentido corriqueiro de ser inflexível(nesse caso seria a antifilosofia!), mas en-

A. Gramsci, Obras escolhidas, p. 44.3 Dermeval Saviani, Educação brasileira: estrutura e sistema, p.

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quanto busca explicitar os conceitos funda-mentais usados em todos os campos do pen-sar e do agir. Por exemplo, a filosofia dasciências examina os pressupostos do sabercientífico, do mesmo modo que, diante da de-cisão de um vereador em aprovar determina-do projeto, a filosofia política investiga as"raízes" (os princípios políticos) que orientamsua ação.

• Rigorosa: enquanto a "filosofia devida" não leva as conclusões até as últimasconseqüências, e nem sempre é capaz de exa-minar os fundamentos delas, o filósofo devedispor de um método claramente explicitadoa fim de proceder com rigor, garantindo acoerência e o exercício da crítica. Mesmo por-que o filósofo não faz afirmações apenas, pre-cisa justificá-las com argumentos. Para tantousa de linguagem rigorosa, que evita as am-bigüidades das expressões cotidianas e lhepermite discutir com outros filósofos a partirde conceitos claramente definidos. É por issoque o filósofo sempre "inventa conceitos", oucria expressões novas (quanto fizeram isto osgregos!) ou altera e especifica o sentido de pa-lavras usuais.

• De conjunto: enquanto as ciências sãoparticulares, porque abordam "recortes" darealidade e se distinguem de outras formas deconhecimento, e a ação humana se expressanas mais variadas formas (técnica, magia,arte, política etc), a filosofia é globalizante,porque examina os problemas sob a perspec-tiva de conjunto, relacionando os diversos as-pectos entre si. Nesse sentido, além de consi-derarmos que o objeto da filosofia é tudo (por-que nada escapa a seu interesse), completa-mos que a filosofia visa ao todo, à totalidade.Daí a função de interdisciplinaridade da filo-sofia, estabelecendo o elo entre as diversasformas de saber e agir humanos.

A maneira pela qual se faz rigorosamen-te a reflexão filosófica varia conforme aorientação do filósofo e as tendências históri-cas decorrentes da situação vivida pelos ho-mens em sua ação sobre o mundo.

5. Qual é a "utilidade" dafilosofia?

Para responder à questão, precisamossaber primeiro o que entendemos por utilida-

de. Eis o primeiro impasse. Vivemos nummundo em que a visão das pessoas estámarcada pela busca dos resultados imediatosdo conhecimento. Então, é considerada im-portante a pesquisa do biólogo na busca dacura do câncer; ou o estudo de matemática no2º grau porque "entra no vestibular"; e cons-tantemente o estudante se pergunta: "Para quevou estudar isto, se não usarei na minha pro-fissão?"

Seguindo essa linha de pensamento, afilosofia seria realmente "inútil": não servepara nenhuma alteração imediata de ordempragmática. Neste ponto, ela é semelhante àarte. Se perguntarmos qual é a finalidade deuma obra de arte, veremos que ela tem um fimem si mesma e, nesse sentido, é "inútil".

Entretanto, não ter utilidade imediatanão significa ser desnecessário. A filosofia énecessária.

Onde está a necessidade da filosofia?Está no fato de que, por meio da refle-

xão (aquele desdobrar-se, lembra-se?), a filo-sofia permite ao homem ter mais de uma di-mensão, além da que é dada pelo agir imedia-to no qual o "homem prático" se encontramergulhado.

É a filosofia que dá o distanciamentopara a avaliação dos fundamentos dos atos hu-manos e dos fins a que eles se destinam; reúneo pensamento fragmentado da ciência e o re-constrói na sua unidade; retoma a ação pulve-rizada no tempo e procura compreendê-la.

Portanto, a filosofia é a possibilidade datranscendência humana, ou seja, a capacida-de que só o homem tem de superar a situaçãodada e não-escolhida. Pela transcendência, ohomem surge como ser de projeto, capaz deliberdade e de construir o seu destino.

O distanciamento é justamente o queprovoca a aproximação maior do homemcom a vida. Whitehead, lógico e matemáticobritânico contemporâneo, disse que "a fun-ção da razão é promover a arte da vida". Afilosofia recupera o processo perdido noimobilismo das coisas feitas (mortas porquejá ultrapassadas). A filosofia impede a es-tagnação.

Por isso, o filosofar sempre se confrontacom o poder, e sua investigação não ficaalheia à ética e à política. E o que afirma ohistoriador da filosofia François Châtelet:"Desde que há Estado — da cidade grega às

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burocracias contemporâneas —, a idéia deverdade sempre se voltou, finalmente, para olado dos poderes (ou foi recuperada por eles,como testemunha, por exemplo, a evolução dopensamento francês do século XVIII ao sécu-lo XIX). Por conseguinte, a contribuição es-pecífica da filosofia que se coloca ao serviçoda liberdade, de todas as liberdades, é a de mi-nar, pelas análises que ela opera e pelas açõesque desencadeia, as instituições repressivas esimplificadoras: quer se trate da ciência, do en-sino, da tradução, da pesquisa, da medicina, dafamília, da polícia, do fato carcerário, dos sis-temas burocráticos, o que importa é fazer apa-recer a máscara, deslocá-la, arrancá-la... "4

A filosofia é, portanto, a crítica da ideo-logia, enquanto forma ilusória de conhecimen-to que visa a manutenção de privilégios (verCapítulo 5 — Ideologia). Atentando para aetimologia do vocábulo grego correspondenteà verdade (a-létheia, a-letheúein, "desnudar"),vemos que a verdade é pôr a nu aquilo que es-tava escondido, e aí reside a vocação do filóso-fo: o desvelamento do que está encoberto pelocostume, pelo convencional, pelo poder.

Finalmente, a filosofia exige coragem.Filosofar não é um exercício puramente inte-lectual. Descobrir a verdade é ter a coragemde enfrentar as formas estagnadas do poderque tentam manter o status quo, é aceitar odesafio da mudança. Saber para transformar.

Lembremos que Sócrates foi aquele queenfrentou com coragem o desafio máximo damorte.

6. Filosofia: nem dogmatismo,nem ceticismo

Vimos, no Capítulo 3 (O que é conheci-mento), que o ceticismo é uma posição filosó-fica que conclui pela impossibilidade do co-nhecimento, quer na forma moderada de sus-pensão provisória do juízo, quer na radical re-cusa em formular qualquer conclusão.

No outro extremo, existe o dogmatismo,segundo o qual o filósofo se considera deposse de certezas e de verdades absolutas eindubitáveis.

Enquanto o dogmático se apega à certezade uma doutrina, o cético conclui pela impossi-bilidade de toda certeza e, nesse sentido, consi-dera inútil a busca que não leva a lugar nenhum.

Comparando as duas posições antagôni-cas, podemos perceber que elas têm em co-mum a visão imobilista do mundo: o dogmá-tico atinge uma certeza e nela permanece; ocético anseia pela certeza e decide que ela éinalcançável.

Mas a filosofia é movimento, pois omundo é movimento. A certeza e sua negaçãosão apenas dois momentos (a tese e a antítese)que serão superados pela síntese, a qual, porsua vez, será nova tese, e assim por diante. Afilosofia é a procura da verdade, não a suaposse, como disse Jaspers, filósofo alemãocontemporâneo, concluindo que "fazer filoso-fia é estar a caminho; as perguntas em filoso-fia são mais essenciais que as respostas e cadaresposta transforma-se numa nova pergunta".

Exercícios

1. Qual é a relação inicial da ciência com a fi-losofia e quando se dá a separação delas? Quais sãoas principais diferenças entre ciência e filosofia?

2. O que é filosofia de vida? Como ela se dis-tingue da filosofia do especialista?

3. O que caracteriza a reflexão filosófica pro-priamente dita?

4. O que significa dizer que a filosofia é "inú-til" mas necessária?

5. Qual é a relação da filosofia com o poder?

6. "Pois é impossível negar que a filosofiacoxeia. Habita a história e a vida, mas quereria ins-talar-se no seu centro, naquele ponto em que sãoadvento, sentido nascente. Sente-se mal no já feito.Sendo expressão, só se realiza renunciando a coin-cidir com aquilo que exprime e afastando-se delepara lhe captar o sentido. E a utopia de uma posse àdistância." (Merleau-Ponty)

Explique o que Merleau-Ponty quer dizercom: "só se realiza renunciando a coincidir comaquilo que exprime".

F. Châtelet, História da filosofia; Idéias, doutrinas, v. 8, p. 309.

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7. Comente: "Toda filosofia comporta a se-creta ambição de pôr termo à filosofia, sem dúvidasob o impulso de um instinto de morte. Na realida-de, porém, a história atesta a regeneração constan-te da reflexão, para além de todas as tentativas de aliquidar". (Gusdorf)

8. Leia o texto complementar I, de Jaspers, eresponda:

a) Por que a filosofia é perigosa?b) Em que sentido a antifilosofia é uma

filosofia?c) Explique por que a filosofia não é um pen-

samento dogmático.

9. Comente: "No mundo atual, o esplendor denossos poderes humanos faz com que se ressalte,numa visão trágica, a ambigüidade de nossos dese-jos. Somente a filosofia levanta o problema dos va-lores". (Huisman e Vergez)

10. Leia o texto complementar II, de Platão, eresponda:

a) O que significa a máxima de Sócrates, "sósei que nada sei"? Em que sentido ela se refere aSócrates e à própria filosofia?

b) Em que medida a posição de Sócrates não seconfunde com o ceticismo?

Textos complementares

IA filosofia no mundo

Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universida-des. Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a filosofia é polida-mente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nadatem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas — existirá realmen-te? Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.

A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreen-do; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, issoequivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar noplano geral para mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividadeprática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter "opiniões" e contentar-se com elas.

A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia.Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espíri-to, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosofi-camente.

E surgem os detratores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e total-mente diverso. Ela é desprezada como produto final e mendaz de uma teologia falida. A insensatezdas proposições dos filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como instrumento servil depoderes políticos e outros.

Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e fun-cionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligênciade rebanho. E preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofiaseja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidadesse ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.

Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessacondição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estarmaterial como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidadetécnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiraçãoa um nome literário — tudo isto proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque nãose dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filoso-fia, embora pervertida, que, se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.

O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. Afilosofia é, portanto, perturbadora da paz.

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E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do ser-verda-deiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdadeúnica. Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento incessante, que penetra noinfinito.

No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo,porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade reve-lar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transpa-rente a si mesmo.

Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que elefaz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, do destinocomum da humanidade.

Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em contínua pugna consigo mesma.

(Karl Jaspers, Introdução ao pensamento filosófico, p. 138.)

IICiência e missão de Sócrates

Ora, certa vez, indo a Delfos*, [Querofonte] arriscou esta consulta ao oráculo — repito, senho-res; não vos amotineis — ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia** quenão havia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já morreu.

Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quandosoube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: "Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôsna resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então,significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isto lhe é impossí-vel". Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, deci-di-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábios, porquan-to, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: "Eis aqui um mais sábio queeu, quando tu disseste que eu o era!" Submeti a exame essa pessoa — é escusado dizer o seu nome;era um dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tivecom ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios,mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüênciafoi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes.

Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: "Mais sábio do que esse homem eu sou, é bemprovável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquan-to eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamenteem não supor que saiba o que não sei". Daí fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sábiose tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros.

Depois disso, não parei, embora sentisse, com mágoa e apreensões, que me ia tornando odiado;não obstante, parecia-me imperioso dar a máxima importância ao serviço do deus. Cumpria-me,portanto, para averiguar o sentido do oráculo, ir ter com todos os que passavam por senhores dealgum saber. (...)

Além disso, os moços que espontaneamente me acompanham — e são os que dispõem de maistempo, os das famílias mais ricas — sentem prazer em ouvir o exame dos homens; eles própriosimitam-me muitas vezes; nessas ocasiões, metem-se a interrogar os outros; suponho que descobremuma multidão de pessoas que supõem saber alguma coisa, mas pouco sabem, quiçá nada. Em conse-qüência, os que eles examinam se exasperam contra mim e não contra si mesmos e propalam queexiste um tal Sócrates, um grande miserável, que corrompe a mocidade.

(Platão, Defesa de Sócrates, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 14.)

Em Delfos, havia um templo onde Apoio dava oráculos, predizendo o futuro.Assim se chamava a sacerdotisa do templo de Delfos, que formulava os oráculos (N.T.).

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INSTRUMENTOSDO

CONHECIMENTO

PRIMEIRA PARTE — Lógica formal

Os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões,e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam comoloucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et coetera, m) que aca-bam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.

(Jorge Luis Borges, apud Foucault1)

1. Introdução

Passado o riso ou o espanto, podemosperceber que a classificação em epígrafe nosincomoda porque não podemos pensá-la.Diante da mistura de assuntos, tentamos "pôrordem na casa", restabelecendo um critérioúnico. Queremos aproximar e distinguir osanimais pelas suas semelhanças e diferenças,buscando a coerência de princípio. Isso signi-fica que, ao compreender a realidade, procu-ramos formas corretas para pensá-la.

Vimos que a filosofia, no correr dos sé-culos, sempre se preocupou com o conheci-mento, formulando a esse respeito váriasquestões: qual a origem do conhecimento?qual a sua essência? quais os tipos de conhe-cimento? qual o critério da verdade? é possí-vel o conhecimento?

Neste capítulo veremos como a lógicatrata do assunto referente ao conhecimento.Etimologicamente lógica vem do grego logos,que significa "palavra", "expressão", "pensa-mento", "conceito", "discurso", "razão". Ve-

jamos como a lógica se ocupa com a razão e opensamento. A ela não interessa nenhuma dasperguntas formuladas acima, mas apenas in-vestigar a validade dos argumentos e dar asregras do pensamento correto. A lógica é, por-tanto, uma disciplina propedêutica, é o vestí-bulo da filosofia, ou seja, a ante-sala, o instru-mento que vai permitir o caminhar rigorosodo filósofo ou do cientista.

2. Inferência e argumento

Chamamos Inferência ao processo peloqual chegamos a uma conclusão. Trata-se deum processo explicável pela psicologia, com oauxílio da qual constatamos que o conhecimen-to é constituído por elementos racionais, em-bora existam também os fatores emocionais eintuitivos. Divagação, associação de idéias,imaginação são recursos válidos para o pensa-mento, cujos resultados podem ser desde cren-ças e opiniões até sentenças científicas.

1 Michel Foucault, filósofo francês contemporâneo, refere-se a um texto do escritor argentino Jorge Luis Borges ondeeste transcreve a classificação acima, "encontrada numa certa enciclopédia chinesa"...

CAPÍTULO 9

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Ora, nenhum desses aspectos específi-cos da inferência interessam à lógica, mas simo argumento que corresponde à inferência. Ouseja, após o processo de descoberta, qualquerque tenha sido o caminho percorrido, cabe aológico examinar a forma da inferência, aconcatenação existente entre os diversosenunciados, a fim de verificar se é justificávelchegar a determinada conclusão. Em outraspalavras, a lógica examina se a estrutura dasinferências é correta ou não.

O argumento possui uma estrutura de ri-gor constituída por proposições.

A proposição é a representação lógicado juízo. Juízo é o ato pelo qual a inteligênciaafirma ou nega a identidade representativa dedois conceitos.

Na proposição "O homem é livre", hádois conceitos (homem e livre) em que um éafirmado de outro. Na proposição "O homemnão é mineral", o conceito mineral é negadodo conceito homem. Na lógica os conceitossão chamados de termos. Portanto, nos exem-plos citados, os termos são homem, livre emineral.

A argumentação é a representação lógi-ca do raciocínio. É um tipo de operaçãodiscursiva do pensamento, consistente em en-cadear logicamente juízos e deles tirar umaconclusão. Essa operação é discursiva porquevai de uma idéia ou de um juízo a outro pas-sando por um ou vários intermediários e exi-ge o uso de palavras. Portanto, é um conheci-mento mediato, isto é, procede por mediação,por meio de alguma coisa. Por exemplo:

Toda baleia é mamífero.Ora, nenhum mamífero é peixe.Logo, a baleia não é peixe.

No exemplo, há três proposições em quea última, a conclusão, deriva logicamente dasduas anteriores, chamadas premissas (etimo-logicamente, "que foram colocadas antes").

Nem sempre (na verdade quase nunca...)a argumentação se formaliza claramente comono exemplo citado. Quando expomos nossasidéias, seja oralmente ou por escrito, às vezescomeçamos pela conclusão, além do mais,com freqüência, omitimos premissas, deixan-do-as subentendidas. Costumamos tambémconcatenar argumentos de modo que a con-clusão de um pode ser a premissa de outro.Por isso, um dos trabalhos do lógico é montar

o raciocínio redescobrindo sua estrutura e ava-liando a validade da conclusão.

Por exemplo, quando dizemos: "Claroque baú tem acento!", estamos enunciando aconclusão de um raciocínio subentendido quepode ser montado assim: "Toda palavraoxítona terminada em i ou u tônicos é acen-tuada quando precedida de vogai. Ora, na pa-lavra baú o u tônico é precedido de vogai, por-tanto deve ser acentuado".

3. Tipos de argumentação

Tradicionalmente dividimos os argu-mentos em dois tipos, os dedutivos e osindutivos, sendo que a analogia constitui ape-nas uma forma de indução.

Dedução

A dedução é o argumento cuja conclu-são é inferida necessariamente de duas pre-missas.

A matemática usa predominantementeprocessos dedutivos de raciocínio. A proposi-ção matemática é demonstrada quando a de-duzimos de proposições já admitidas comoverdadeiras, quando fazemos ver que a con-clusão decorre necessariamente das proposi-ções colocadas anteriormente. Mas a deduçãomatemática não se confunde com a deduçãológica, pois a matemática manipula símboloscapazes de se transformarem uns nos outros,ou de se substituírem, revelando relações sem-pre imprevistas, o que torna a dedução mate-mática mais fecunda.

O mesmo não acontece com a deduçãológica, chamada por Aristóteles de silogismo,que significa "ligação": é a ligação de dois ter-mos por meio de um terceiro. Por exemplo,quando dizemos "se x = y, e y = z, entãox = z", há um termo médio (y), que estabelecea ligação entre x e z, de modo que a conclusãose torna necessária, ou seja, tem de ser esta enão outra. Além disso, o enunciado da con-clusão não excede o conteúdo das premissas,isto é, não se diz mais na conclusão do que jáfoi dito.

Assim, quando dizemos: "Todos os ho-mens são mortais / Sócrates é homem / LogoSócrates é mortal.", a conclusão é necessáriaporque deriva das premissas.

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Podemos ainda dizer que o silogismo éum raciocínio que parte de uma proposiçãogeral e conclui outra proposição geral (quetambém pode ser particular).

Uma proposição é geral quando o sujei-to da proposição é tomado na sua totalidade.Por exemplo: "Toda baleia é mamífero". Épreciso prestar atenção, pois às vezes usamosapenas o artigo definido (o, a) para indicar atotalidade: "O homem é livre". Observe tam-bém que não importa se nos referimos a umaparte de outra totalidade; se na proposição to-mamos todos os elementos que a constituem,trata-se de uma proposição geral. Na proposi-ção "Os paulistas são sul-americanos", nãoimporta que os paulistas sejam uma parte dosbrasileiros, mas que nesse caso estamos nosreferindo à totalidade dos paulistas.

Uma proposição é particular quando osujeito da proposição é tomado em apenasuma parte indeterminada: "Alguns homenssão injustos"; "Certas pessoas são curiosas".Uma proposição particular pode ser singularquando o sujeito se refere a um indivíduo:"Esta flor é bonita"; "São Paulo é uma belacidade"; "Mário é estudante".

Nos exemplos a seguir, a primeira de-dução tem conclusão geral; e no segundocaso, a conclusão é particular:

Todo brasileiro é sul-americano.Todo paulista é brasileiro.Todo paulista é sul-americano.

Todo brasileiro é sul-americano,Algum brasileiro é índio.Algum índio é sul-americano.

É verdade que a dedução é um modelode rigor. Mas também é estéril, na medida em

que não nos ensina nada de novo, e apenasorganiza o conhecimento já adquirido. Portan-to, ela não inova, o que não significa que adedução não tenha valor algum. Condillac, fi-lósofo francês do século XVIII, compara a ló-gica aos parapeitos das pontes: "impedem-nosde cair, mas não nos fazem ir adiante". Issosignifica que a conclusão diz exatamente oque as premissas já disseram. Paul Valéry,poeta e ensaísta francês do século XX, comen-ta humoristicamente que "não é a cicuta2, é osilogismo que mata Sócrates"...

Indução

Indução é uma argumentação na qual, apartir de dados singulares suficientementeenumerados, inferimos uma verdade univer-sal. Enquanto na dedução a conclusão derivade verdades universais já conhecidas, partin-do portanto do plano do inteligível, a indução,ao contrário, chega a uma conclusão a partirda experiência sensível, dos dados particula-res. Exemplos:

Esta porção de água ferve a cem graus,e esta outra, e esta outra...; logo, a água fervea cem graus.

O cobre é condutor de eletricidade, e oouro, e o ferro, e o zinco, e a prata também...;logo, o metal (isto é, todo metal) é condutorde eletricidade.

Diferentemente do argumento dedutivo,o conteúdo da conclusão da indução excede odas premissas. Ou seja, enquanto a conclusãoda dedução está contida nas premissas, e reti-ra daí sua validade, a conclusão da induçãotem apenas probabilidade de ser correta. Por-tanto, segundo Wesley Salmon, "podemosafirmar que as premissas de um argumentoindutivo correto sustentam ou atribuem certaverossimilhança à sua conclusão".

Apesar da aparente fragilidade daindução, que não possui o rigor do raciocíniodedutivo, trata-se de uma forma muito fecun-da de pensar, sendo responsável pela funda-mentação de grande parte dos nossos conhe-cimentos na vida diária e de grande valia nasciências experimentais. Além disso, todas asprevisões que fazemos para o futuro têm base

2Cicuta: veneno que Sócrates foi obrigado a ingerir após ter sido condenado à morte.

Vejamos esse raciocínio representadono esquema:

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na indução, ou seja, no raciocínio que, basea-do em alguns casos da experiência presente,nos faz inferir que o mesmo poderá ocorrermais tarde.

Cabe ao lógico examinar as condiçõesfavoráveis para considerar se a indução é cor-reta, isto é, se pertence a um tipo de argumen-to em que a maioria das premissas são verda-deiras e têm condições de aumentar a proba-bilidade de acerto.

Há vários tipos de indução, e aqui va-mos examinar alguns.

Existe indução completa quando hácondições de serem examinados cada um doselementos de um conjunto:

A vista, o tato, o ouvido, o gosto, o olfa-to (que chamamos órgãos dos sentidos) têmum órgão corpóreo.

Portanto, todo sentido tem um órgãocorpóreo.

No entanto, o caso mais comum é o daindução incompleta, ou indução por enume-ração, em que são observados alguns elemen-tos, do quais se conclui a totalidade. A gene-ralização indutiva é precária quando se fazapressadamente e sem critérios. É preciso exa-minar se a amostragem é significativa e seexiste um número suficiente de casos que per-mitam a passagem do particular para o geral.

Ao fazer a prévia eleitoral, um institutode pesquisa consulta amostras significativasdos diversos segmentos sociais, segundometodologia científica. Ao considerar quedentre os eleitores da amostra 25% votará nocandidato X, e 10% no Y, conclui-se que a to-talidade dos eleitores votará segundo a mes-ma proporção.

Outro tipo comum de raciocínioindutivo é o chamado argumento de autori-dade. Na vida diária fazemos inúmerasinduções baseadas nas afirmações de pessoasque respeitamos. Se vamos ao médico e aten-demos às prescrições feitas, é porque partimosdo pressuposto de que aquele profissional jádeve ter realizado esses procedimentos inú-meras vezes com sucesso e que portanto nonosso caso também acertará o diagnóstico.Quando consultamos um livro sobre determi-nado assunto, escolhemos um autor digno deconfiança que em outras circunstâncias já semanifestou satisfatoriamente sobre a questão.

É evidente que o argumento de autori-dade pode levar a enganos, não só àqueles re-

ferentes à própria natureza da indução, mastambém a outros que serão examinados noitem 4 (Falácias), neste capítulo.

Analogia

Embora a analogia seja um caso deindução, vamos analisá-la separadamente porter certas características específicas.

Analogia (ou raciocínio por semelhan-ça) é uma indução parcial ou imperfeita, naqual passamos de um ou de alguns fatos sin-gulares não a uma conclusão universal, mas auma outra enunciação singular ou particular,inferida em virtude da comparação entre ob-jetos que, embora diferentes, apresentam pon-tos de semelhança:

Paulo sarou de suas dores de cabeçacom este remédio.

Logo, João há de sarar de suas dores decabeça com este mesmo remédio.

É claro que o raciocínio por semelhançafornece apenas uma probabilidade, não umacerteza. Mas desempenha papel importante nadescoberta ou na invenção (ver Capítulo 38 —Arte como forma de conhecimento).

Grande parte de nossas conclusões diá-rias baseia-se na analogia. Se lermos um bomlivro de Graciliano Ramos, provavelmentecompraremos outro do mesmo autor, na supo-sição de que deverá ser bom também. Se for-mos bem atendidos numa loja, voltaremos dapróxima vez, na expectativa de tratamento se-melhante. Da mesma forma, se formos malatendidos, evitaremos retornar.

Quando as explicações de um determi-nado fato nos parecem complexas, costuma-mos recorrer a comparações, que na verdadesão analogias: "Quem não está habituado aler, sofre como nadador iniciante, engole águae perde o fôlego". Do mesmo modo, o textoliterário é enriquecido pela metáfora, que éuma forma de estabelecer semelhança: "Amoré fogo que arde sem se ver" (Camões).

Também a ciência se vale das analogias.O médico britânico Alexander Fleming esta-va cultivando colônias de bactérias e obser-vou que elas morriam em torno de uma man-cha de bolor que tinha sido formada ca-sualmente. Investigando o novo fato, reconhe-ceu os fungos do gênero Penicillium. Por ana-logia, supôs que, se o bolor destruía as bacté-rias na cultura in vitro, poderia ser usado

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como medicamento para curar doenças emorganismos ou seres mais complexos.

As analogias podem ser fracas ou for-tes, dependendo da relevância das semelhan-ças estabelecidas entre objetos diferentes.Embora os homens sejam muito diferentesdos ratos, nas experiências biológicas podemser feitas comparações de natureza fisiológicaque tornam a analogia adequada e fecunda.Assim, se o biólogo constatar determinadosefeitos de uma droga ministrada em ratos, épossível sustentar que os efeitos provocadosnos homens sejam semelhantes.

4. Falácias

A falácia é um tipo de raciocínio incor-reto, embora tenha a aparência de correção. Éconhecida também como sofisma ouparalogismo, e alguns estudiosos fazem a dis-tinção entre eles, dando ao sofisma o sentidopejorativo decorrente da intenção de enganaro interlocutor, enquanto no paralogismo nãohaveria essa intenção.

As falácias podem ser formais, quandocontrariam as regras do raciocínio correto, enão-formais, quando, segundo o professornorte-americano Irving Copi, os erros decor-rem de "inadvertência ou falta de atenção aonosso tema, ou então porque somos iludidospor alguma ambigüidade na linguagem usadapara formular nosso argumento".

São inúmeros os tipos de falácia e porisso vamos nos restringir a alguns poucos.

Falácias não-formais

Comecemos pelas falácias não-formais,bastante comuns na vida diária.

Muitas falácias decorrem do fato de al-gumas premissas serem irrelevantes para aaceitação da conclusão, mas são usadas com afunção psicológica de convencer, mobilizan-do emoções como medo, entusiasmo, hostili-dade ou reverência.

Por exemplo, já havíamos nos referidoao argumento de autoridade como um tipo deindução aceitável, desde que a autoridade fos-se um especialista, tornando-se irrelevante se,por exemplo, recorrermos à autoridade docientista Einstein para justificar posições reli-giosas ou ao jogador Pelé para avaliar políti-ca. Trata-se de recurso desviante, em que é

usado o prestígio da autoridade para outro se-tor que não é da competência do especialista.Isso é muito comum na propaganda, quandoartistas famosos "vendem" desde sabonetesaté idéias (quando apóiam, por exemplo, umcandidato às eleições).

Há ainda o argumento de autoridade "àsavessas", no sentido de ser pejorativo e ofen-sivo, conhecido como argumento contra ohomem. Ele ocorre quando consideramos er-rada uma conclusão porque parte de alguémpor nós depreciado. Ao refutar a verdade, ata-camos o homem que fez a afirmação: descon-siderar a filosofia de Francis Bacon porque eleperdeu seu cargo de Chanceler da Inglaterradepois de serem constatados atos de desones-tidade; ou ainda desmerecer o valor musicalde Wagner a partir de sua adesão aos movi-mentos anti-semitas.

A falácia de acidente consiste em consi-derar essencial algo que não passa de acidentecomo, por exemplo, concluir que a medicinaé inútil devido ao erro de um médico. Ou, soboutro aspecto, aplicar o que é válido como re-gra geral em circunstâncias particulares e"acidentais" em que a regra se torna inaplicá-vel. É o caso de pessoas excessivamente mo-ralistas e legalistas, desejosas de aplicar cega-mente as normas e as leis, independentementeda análise cuidadosa das circunstâncias espe-cíficas dos acontecimentos.

A falácia de ignorância da questão con-siste em se afastar da questão, desviando a dis-cussão para outro lado. Um advogado habili-doso, que não tem como negar o crime do réu,enfatiza que ele é bom filho, bom marido, tra-balhador etc; um vereador acusado de ter gas-to sem a autorização da Câmara põe em relevoa importância e urgência dos gastos; ou, ainda,o deputado que defende o governo acusado decorrupção em comissão de inquérito não se de-tém para avaliar os fatos devidamente compro-vados, mas discute questões formais do relató-rio da comissão ou enfatiza o pretensorevanchismo dos deputados oposicionistas.

Há também falácias como a petição deprincípio, ou círculo vicioso, que consiste emsupor já conhecido o que é objeto da questão.Por exemplo: "Por que o ópio faz dormir?Porque tem uma virtude dormitiva" ou "Talação é injusta porque é condenável; e é con-denável porque é injusta". Nessas citações éfácil perceber o erro, mas nem sempre se des-cobre à primeira vista que a afirmação da con-

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clusão está presente entre as premissas, comono exemplo relatado por Copi: "Permitir a to-dos os homens uma liberdade ilimitada de ex-pressão deve ser sempre, de um modo geral,vantajoso para o Estado; pois é altamente pro-pício aos interesses da comunidade que cadaindivíduo desfrute de liberdade, perfeitamenteilimitada, para expressar os seus sentimentos".

Outras vezes, as falácias não-formaisdecorrem de ambigüidades e falta de clareza,quando conceitos ou frases não são suficien-temente esclarecidos ou são empregados comsentidos diferentes nas diversas etapas da ar-gumentação. Trata-se de equívoco usarmos apalavra fim em dois sentidos diferentes comose fosse o mesmo: "O fim de uma coisa é asua perfeição; a morte é o fim da vida; logo amorte é a perfeição da vida".

Falácias formais

Além das falácias não-formais, há as fa-lácias formais, quando o argumento não aten-de às regras do pensamento correto e válido.Como no presente capítulo não vamos nos es-tender na exposição dessas regras, daremosapenas alguns exemplos.

Entre as regras da conversão de propo-sições nas chamadas inferências imediatas, sóse pode converter simplesmente uma proposi-ção universal quando se trata de uma defini-ção. Caso contrário, trata-se de falácia: "Todosos mamíferos são vertebrados, logo, todos osvertebrados são mamíferos". O certo seria:"...logo, alguns vertebrados são mamíferos".

Agora examinemos os seguintes argu-mentos:

a) Todos os homens são loiros.Ora, eu sou homem.Logo, eu sou loiro.

b) Todos os homens são vertebrados.Ora, eu sou vertebrado.Logo, eu sou homem.

A primeira vista ficamos tentados emdizer que o argumento a é falso e b é verda-deiro. Mas não é assim tão simples. Embora atenha a primeira premissa materialmente fal-sa (ou seja, o conteúdo dela não correspondeà realidade), trata-se de um raciocínio/orma/-mente correto. Segundo as regras da lógica,colocadas tais premissas, a conclusão se põenecessariamente.

Por outro lado, o raciocínio b, que ten-demos a considerar verdadeiro, é formalmen-te inválido. Não importa se a conclusãocorresponde à realidade, mas sim que não setrata de uma construção logicamente válida.Segundo uma das regras do silogismo, o ter-mo médio deve ser, pelo menos uma vez,total. O termo médio (que no caso é "verte-brado") é aquele que aparece nas duas premis-sas e permite estabelecer a ligação entre osoutros dois termos. Essa regra não é atendidano raciocínio b, pois os homens são algunsdentre os vertebrados, e eu sou um dos verte-brados. Para tornar mais clara esta evidência,vamos substituir o sujeito "eu" por "meu gato":

Todos os homens são vertebrados.Meu gato é vertebrado.Logo, meu gato é homem.

Os exemplos a e b são falácias, sendo oprimeiro uma falácia quanto à matéria, embo-ra se trate de argumento formalmente correto,enquanto o segundo é uma falácia quanto àforma, pois desatende uma regra do argumen-to válido.

5. Histórico da lógica

A lógica aristotélica (ou lógicaclássica)

A Grécia clássica aparece historicamen-te como o berço da filosofia. Por volta do sé-culo VI a.C, os primeiros filósofos pré-socráticos redigem em prosa um discurso quese opõe à atitude mítica predominante nospoemas de Homero e Hesíodo.

O novo modo de pensar é decompostona sua estrutura por Aristóteles (séc. IV a.C.)na obra Analíticos. Como o próprio nome diz,trata-se de uma análise do pensamento nassuas partes integrantes. Essa e outras obrassobre o assunto foram denominadas mais tar-de, em conjunto, Órganon, que significa "ins-trumento" (de fato, instrumento para se pro-ceder corretamente no pensar). O próprioAristóteles não usou a palavra lógica, que sóapareceu mais tarde.

Embora alguns filósofos anteriores aAristóteles, tais como o pré-socráticoParmênides, os sofistas, Sócrates e Platão, te-nham estabelecido algumas leis do pensamen-to, nenhum o fez com tal amplitude e rigor.

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Por essa razão a lógica aristotélica permane-ceu através dos séculos até os nossos dias.

Segundo Aristóteles, a lógica se subdi-vide em:

• lógica formal (ou menor), que estabe-lece a forma correta das operações do pensa-mento. Se as regras forem aplicadas adequa-damente, o raciocínio é considerado válidoou correto.

• lógica material (ou maior), parte da ló-gica que trata da aplicação das operações dopensamento segundo a matéria ou naturezados objetos a conhecer. Enquanto a lógica for-mal se preocupa com a estrutura do pensa-mento, a lógica material investiga a adequa-ção do raciocínio à realidade. É também cha-mada metodologia, e como tal procura o mé-todo próprio de cada ciência.

Uma das mais duradouras contribui-ções da lógica aristotélica está no estabeleci-mento dos primeiros princípios, percebidospor intuição, e que são anteriores a qualquerraciocínio, servindo de base a todos os argu-mentos. Esses princípios, que se relacionamentre si, também dependem da concepçãometafísica aristotélica (ver o Capítulo 10 —A teoria do conhecimento na Antigüidade).São eles o princípio de identidade, o princí-pio de não-contradição e o princípio do ter-ceiro excluído.

É assim que Aristóteles formula na Me-tafísica o princípio de não-contradição: "Éimpossível que o mesmo (o mesmo determi-nante) convenha e não convenha ao mesmoente ao mesmo tempo e sob o mesmo aspec-to". Isto significa que duas proposições con-traditórias não podem ser verdadeiras e quenão é possível afirmar e negar simultanea-mente a mesma coisa.

Serão contra os princípios de identida-de, não-contradição e terceiro excluído que seposicionarão os defensores da lógica dialéticano século XIX (como veremos adiante).

Na Idade Média, no século XIII, foramintroduzidas as célebres fórmulas mnemôni-cas, que facilitam a retenção pela memória:por meio de palavras latinas era possível iden-

tificar as combinações possíveis das premis-sas e da conclusão que redundavam emsilogismo válido, a fim de distingui-lo dos so-fismas. Também foram organizadas as oitoregras do silogismo.

A lógica pós-aristotélica

Até o século XIX, a lógica aristotélicanão sofreu mudança essencial, apesar de tersofrido as mais diversas críticas.

Hostil a Aristóteles, a filosofia na IdadeModerna procura caminhos diferentes daque-les trilhados pelo Estagirita3. É assim que Des-cartes, tendo estudado com os jesuítas de LaFlèche, repudia os procedimentos silogísticosda escolástica medieval e procura um novométodo para a filosofia que possibilite a in-venção e a descoberta e não se restrinja à de-monstração do já sabido. Também a físicamoderna exigia um instrumento diferente dalógica formal. Daí a importância da geome-tria analítica de Descartes e do cálculoinfinitesimal de Leibniz.

Francis Bacon (1561-1626), filósofo in-glês, escreve o Novum Organum e, como su-gere o título da obra, pretende se opor aoÓrganon, à lógica de Aristóteles. Bacon re-flete o novo espírito da Idade Moderna, queprestigia a técnica, a experiência, a observa-ção dos fatos e repudia a vocação medievalpara os debates puramente formais e as esté-reis demonstrações silogísticas. A estas con-trapõe outras formas de indução, que não asimples enumeração, por considerá-las maisfecundas.

A parte mais original de sua obra é a queindica as possíveis ocasiões de erro devido aospreconceitos, a que Bacon chama de idola(ver Terceira Parte do Capítulo 10 — A teo-ria do conhecimento). O pensamento deBacon dá origem ao empirismo, corrente quese opõe ao racionalismo cartesiano e que cul-mina, no século XIX, com o positivismo.

As preocupações com o método dasciências serão retomadas por Stuart Mill noséculo XIX, quando formula os cinco"cânones" clássicos da inferência indutiva4.

Estagirita: refere-se a Aristóteles, que nasceu na cidade de Estagira, na Macedônia.4 Os cinco cânones são: método de concordância, método de diferença, método conjunto de concordância e de diferen-

ça, método dos resíduos e método de variação concomitante.

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Segundo Copi, "os métodos de Mill paten-teiam-se como instrumentos para testar hipó-teses. Os seus enunciados descrevem o méto-do da experiência controlada, que é uma armaabsolutamente indispensável no arsenal daciência moderna".

A lógica matemática ou simbólica

A lógica matemática ou simbólica tevecomo precursor Frege, no final do século pas-sado, e foi desenvolvida no século XX porWhitehead e Bertrand Russell.

A lógica matemática visa superar as di-ficuldades e ambigüidades de qualquer língua,devido à natureza vaga e equívoca das pala-vras usadas e do estilo metafórico e, portanto,confuso que poderia atrapalhar o rigor lógicodo raciocínio. Para evitar essas dificuldades,criou-se uma linguagem simbólica artificial.

Por exemplo: usamos as letras p, q, r, p1,,q1 r1, etc. para indicar as variáveis propo-sicionais; para designar os conectivos, usamosos sinais:

Exercícios

Estes exercícios foram extraídos da bibliogra-fia indicada no final do livro (ver principalmenteOthon Garcia, Irving Copi e Wesley Salmon).

I. Exercícios de identificação de argumentos

Leia com atenção os seguintes raciocínios eidentifique se são indução, dedução ou analogia.Justifique a resposta usando os conceitos aprendi-dos. Como sugestão, comece verificando qual é aconclusão, a fim de evitar erros na montagem daestrutura do argumento. Inicialmente, resolvere-mos seis exercícios como modelo.

1. Como todo professor, você deveria saberum pouco de psicologia.

R.: Trata-se de uma dedução:

Todo professor deve saber um pouco de psi-cologia.

Você é professor.Portanto, você deveria saber um pouco de psi-

cologia.

O raciocínio parte de uma proposição geral ea conclusão é particular.

2. O macaco foi curado da tuberculose comtal soro; logo, o homem há de curar-se da tubercu-lose com o mesmo soro.

R.: Trata-se de uma analogia, pois a seme-lhança entre o macaco e o homem permite que seuse o mesmo soro.

3. Se você observar a pontuação adotada emrelação às orações subordinadas adverbiais ante-postas à principal e concluir que elas vêm sempreseguidas de vírgula, seu raciocínio foi indutivo oudedutivo?

R.: Foi indutivo, pois observamos várias ora-ções subordinadas (particular) antepostas à princi-pal e concluímos que sempre vinham seguidas devírgula (geral).

4. Depois de ter feito várias experiências comfígado de macaco, Claude Bernard concluiu que ofígado tem uma função glicogênica.

R.: Trata-se de uma indução, pois ClaudeBernard fez diversas experiências particulares comalguns fígados e concluiu uma lei, que é geral, vá-lida para todos os fígados.

5 Jesus Eugênio de Paula Assis, Lógica, apud M. Chaui, Primeira filosofia, p. 168.

"não"

"ou"

"e"

"implica" ou "se..., então..."

"equivalente a" ou "se e somente se"

"logo", "portanto"

Consideremos como exemplo osilogismo5:

O país está em guerra ou a situação ex-terna é calma.

O país não está em guerra.Logo, a situação externa é calma.

Podemos simbolizar esse argumento daseguinte maneira:

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5. Na prova de física, o problema se refere aum caso específico, tendo sido fornecidos os dadosem questão; lembramos então da lei, aplicando-aaos dados fornecidos a fim de resolver o problema.

R.: Raciocínio dedutivo, pois a partir da lei,que é geral, a aplicamos num caso, que é particular.

6. O orvalho da noite deve ter a mesma causaque o "suor" que aparece sobre uma garrafa deágua gelada.

R.: É uma analogia, pois descobrimos umasemelhança entre o fenômeno do orvalho e o "suor"na garrafa.

Agora faça sozinho os seguintes exercícios,conforme os modelos dados:

1. Sempre que fico muitas horas sem comer,sinto dor de estômago.

2. Toda combustão é sempre acompanhada dedesprendimento de calor.

3. Claude Bernard sabia que os vegetais fazemreserva de glicose sob a forma de amido insolúvel;interrogou-se então se os animais também não acu-mulariam glicose sob uma forma particular.

4. O caiçara disse que não vai pescar porqueas nuvens estão baixas e escuras, a água com azulembaçado e o horizonte um pouco prateado; e istosignifica que vai chover.

5. Sei que a aula vai começar porque tocouo sinal.

11. Como estudante do curso secundário, vocêdeveria saber redigir melhor.

12. Os morcegos não são aves porque são ani-mais vivíparos.

13. Ele nasceu na África, por isso pensei queele deveria ser naturalmente negro.

14. Este remédio curou o resfriado de João;logo, pela mesma razão, há de curar o resfriadode José.

15. André Maurois conta humoristicamente ahistória de um estudante de Oxford que se sentiamal após beber várias doses de uísque e soda. Se-guindo conselho médico, abandona o uísque e pas-sa a ingerir brandy e soda; como não cessavam seusmales, passa para o gim e soda. Sempre doente,conclui: "Definitivamente, a soda me faz um malincrível".

II. Exercícios sobre falácias

Identifique o tipo de falácia dos seguintesargumentos:

1. Reveja a questão n° 15 do exercício ante-rior e explique por que se trata de uma falácia.

2. Todos os homens são racionais. Ora, asmulheres não são homens, portanto as mulheresnão são racionais.

6. Diversos metais, tendo sido aquecidos, sedilataram, o que nos fez concluir que o calor dilataos corpos.

7. Você está lendo um livro e observa quemuitas palavras oxítonas terminadas em i ou u tô-nicos ora vêm acentuadas, ora não. Confrontando-as, verifica que o i e o a dessas palavras oxítonassó levam acento quando precedidos por uma vo-gai. Qual é o raciocínio que leva a essa conclusão?

8. Agora você está diante da palavra urubu:põe-lhe acento ou não? Quando se decidir, quemétodo seguiu?

9. O planeta Marte se parece com a Terra pelaforma, movimento de revolução e de rotação e ain-da pela presença de atmosfera. Pode-se concluirque provavelmente Marte deve ser habitado, comoa Terra.

10. Depois de ter experimentado que em muitosrios a água é doce e em muitos mares é salgada, con-cluo que a água do rio é doce e a do mar salgada.

3. Os cozinheiros vêm preparando comida hágerações e gerações, de modo que nosso cozinhei-ro deve ser um autêntico especialista.

4. Meu cliente é o único amparo de seus ve-lhos pais. Se for para a prisão, eles ficarão à mín-gua. Portanto, senhores membros do júri, o únicoveredito justo é o de "inocente"!

5. O velho Juca jura que viu um disco voadorpousar na sua fazenda. Mas ele mal sabe ler e es-crever, e não sabe nada sobre o que os cientistastêm escrito sobre o assunto. Portanto, seu relato nãotem possibilidade de ser verdadeiro.

6. Um bom médico salva a maioria dos seuspacientes porque tem uma sólida formação médi-ca, pois um homem com uma sólida formação mé-dica é um médico que cura a maioria dos seuspacientes.

7. Todos os cães são mamíferos, todos osgatos são mamíferos, portanto todos os gatos sãocães.

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SEGUNDA PARTE — Lógica dialética

O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está.

(Brecht)

1. Introdução

Etimologicamente, dialética vem dogrego dia, que expressa a idéia de "dualidade","troca", e lektikós, "apto à palavra", "capaz defalar". É a mesma raiz de logos (palavra, ra-zão) e, portanto, se assemelha ao conceito dediálogo. No diálogo há mais de uma opinião,há dualidade de razões.

A palavra dialética tomou vários senti-dos ao longo da história, mas neste capítulotrataremos da dialética como aparece no sé-culo XIX, no pensamento alemão, inicialmen-te na obra de Hegel e depois na de Karl Marxe Friedrich Engels.

Para ampliar as informações, convémreportar-se à Unidade IV e consultar o Capí-tulo 24 (A crítica ao Estado burguês): asteorias socialistas (item 2, sobre marxismo).Como a dialética é também um método e umafilosofia, é preciso relacioná-la com as noçõesde idealismo e materialismo e, em seguida, es-tabelecer diferenças entre materialismomecanicista e materialismo dialético.

Vimos no item 5 deste capítulo que alógica aristotélica baseia-se nos princípios deidentidade e de não-contradição, fundamen-tais para a concepção metafísica do mundo,típica da filosofia antiga.

Enquanto a metafísica utiliza noçõesabstratas e absolutas, explicando a realidadeestática a partir de suas essências imutáveis, alógica dialética parte do princípio de contra-dição, segundo o qual a realidade é essencial-mente processo, mudança, devir.

O que teria determinado a passagem daconcepção de um mundo estático — que po-dia ser explicado apenas pelo movimento lo-cal, e cujo modelo por excelência é o reló-gio — para uma nova concepção dinâmica?

A partir do século XVIII, três grandesdescobertas científicas contribuíram para isso:

• a descoberta da célula — todos os ór-gãos animais e vegetais, sendo constituídospor células, têm uma unidade estrutural quese torna cada vez mais complexa.

• a descoberta da lei da conservação etransformação da energia (calor, eletricidade,magnetismo, energia química etc.) — a ener-gia não pode ser criada nem destruída, massim convertida e transformada de uma formaem outra. Por exemplo: a energia mecânica étransformada em calor pelo choque e atrito; ocalor das caldeiras é transformado em energiamecânica.

• a evolução das espécies — a teoria deDarwin a respeito da origem das espécies ve-getais e animais, segundo a qual os seres vivosaparecem como conseqüência do desenvolvi-mento e transformação através dos tempos.

Essas descobertas mostram que o mun-do é transformação. Tudo muda, a própria his-tória muda. Os homens estão constantementeinventando novos instrumentos de trabalho,mudam a ordem social, mudam a si mesmos.O velho é sempre substituído pelo novo, ecada coisa, ao nascer, já tem em si o germe dasua destruição. Portanto, não há "coisas aca-badas", mas um complexo de processos ondetudo só é estável na aparência.

2. Características da dialética

Para Engels, "a dialética é a ciência dasleis gerais do movimento, tanto do mundo ex-terno quanto do pensamento humano".

A dialética é a estrutura contraditória doreal, que no seu movimento constitutivo pas-sa por três fases: a tese, a antítese e a síntese.Ou seja, o movimento da realidade se explicapelo antagonismo entre o momento da tese eo da antítese, cuja contradição deve ser supe-rada pela síntese.

Eis os três momentos:

• identidade: tese;• contradição ou negação: antítese;• positividade ou negação da negação:

síntese.

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Para melhor entender o processo, veja-mos o que Hegel diz a respeito do verbo ale-mão aufheben. Essa palavra quer dizer, emprimeiro lugar, "suprimir", "negar", mas tam-bém a entendemos no sentido de "conservar".Aos dois sentidos, acrescenta-se um terceiro,o de "elevar a um nível superior".

Esclarecendo com exemplos: quandocomeço a esculpir uma estátua, estou diantede uma matéria-prima, a madeira, que depoisé negada, isto é, destruída na sua forma natu-ral, mas ao mesmo tempo conservada, pois amadeira continua existindo como matéria, sóque modificada, elevada a um objeto qualita-tivamente diferente, uma forma criada. Por-tanto, o trabalho nega a natureza, mas não adestrói, antes a recria.

Da mesma forma, se enterramos o grãode trigo, ele morre (dá-se a negação do trigo);desaparece como grão para que a planta surjacomo espiga; produzido o grão, a planta mor-re. Esse processo não é sempre idêntico, poispodem ocorrer alterações nas plantas, resul-tantes do aparecimento de qualidades novas(evolução das espécies).

Segundo a concepção dialética, a passa-gem do ser ao não-ser não é aniquilamento,destruição ou morte pura e simples, mas mo-vimento para outra realidade. A contradiçãofaz com que o ser suprimido se transforme.

Além da contraditoriedade dinâmica doreal, outra categoria fundamental para enten-der a dialética é a de totalidade, pela qual otodo predomina sobre as partes que o consti-tuem. Isto significa que as coisas estão emconstante relação recíproca, e nenhum fenô-meno da natureza ou do pensamento pode sercompreendido isoladamente fora dos fenôme-nos que o rodeiam. Os fatos não são átomos,mas pertencem a um todo dialético e como talfazem parte de uma estrutura.

3. A dialética marxista

Hegel foi o primeiro a contrapor a lógicadialética à lógica tradicional. Para ele, compre-ender a natureza é representá-la como um pro-cesso. Mas, sendo idealista, explica a realidadecomo constituída pela marcha do pensamento.O Ser é a Idéia que se exterioriza, manifestan-do-se nas obras que produz, e que se interioriza,

voltando para si e reconhecendo sua produção.O movimento de exteriorização e interioriza-ção da idéia se faz por contradições sempre su-peradas nas sínteses que, por sua vez, se desdo-bram em contradições (novas teses e antíteses).A dialética encaminha Hegel para uma novaconcepção de história.

Karl Marx e Friedrich Engels partem dosignificado da dialética hegeliana, mas pro-movem uma inversão, pois são materialistas,ao contrário de Hegel, que é idealista. Segun-do Marx, no caso de Hegel, "a dialética apóia-se sobre a cabeça; basta repô-la sobre os seuspés para lhe dar uma fisionomia racional".Isso significa que, para Hegel, é o pensamen-to que cria a realidade, sendo esta a manifes-tação exterior da Idéia. Para Marx, o dado pri-meiro é o mundo material, e a contradição sur-ge entre homens reais, em condições históri-cas e sociais reais.

Assim, o mundo material é dialético, istoé, está em constante movimento, e historicamen-te as mudanças ocorrem em função das contra-dições surgidas a partir dos antagonismos dasclasses no processo da produção social.

No Capítulo 24, no item sobre marxis-mo, veremos o exemplo histórico das trans-formações dos modos de produção (escravis-ta, feudal, capitalista) desenvolvendo-se atra-vés de contradições (tese versus antítese) sem-pre superadas (síntese). Para Marx a his-tória passou a ser compreendida tendo pormotor a luta das classes antagônicas (se-nhor versus escravo; senhor versus servo;burguês versus proletário). Ou seja, da con-tradição entre senhor e servo derivou a síntesedo capitalismo, que por sua vez gerou a con-tradição entre capitalista e operário, cuja sín-tese, segundo Marx, deveria ser o socialismo.

As três leis da dialética

• Lei da passagem da quantidade à qua-lidade — o processo de transformação dascoisas se faz por "saltos". Mudanças mínimasde quantidade vão se acrescentando e provo-cam, em determinado momento, uma mudan-ça qualitativa: o ser passa a ser outro. O exem-plo clássico é o da água esquentando; ao al-cançar 100°C, deixa o estado líquido e passapara o gasoso. Lênin define o salto como oponto de passagem decisivo da velha qualida-

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de para a nova, como o ponto crítico do de-senvolvimento. Esta lei é ilustrada pelo exem-plo do calor das caldeiras transformado emmovimento mecânico e vice-versa. A quími-ca é, por excelência, a ciência das mudanças:por exemplo, para formar uma molécula, sese unirem três átomos em vez de dois, temoso ozônio e não o oxigênio. Na biologia, se-gundo a teoria evolucionista de Darwin, alte-rações acumuladas levam à formação de umanova espécie. Na história das sociedades hu-manas, as ações dos indivíduos vão se soman-do até o ponto de ruptura em que a velha or-dem é substituída por uma nova ordem. Daí adiferença entre evolução e revolução: a pri-meira é quantitativa; a segunda, qualitativa.

• Lei da interpenetração dos contrá-rios — a dialética considera a contradiçãoinerente à realidade das coisas. E justamentea contradição é a força motriz que provoca omovimento e a transformação. A contradiçãoé o atrito, a luta que surge entre os contrários.Mas os dois pólos contrários são tambéminseparáveis, e a isso chamamos unidade doscontrários, pois, mesmo em oposição, estãoem relação recíproca. Por estarem em luta, háa geração do novo. Por exemplo, o ovo já temem germe a sua negação; nele coexistem duasforças: que ele permaneça ovo e que ele ve-nha a ser pinto.

• Lei da negação da negação — dainteração das forças contraditórias, em queuma nega a outra, deriva um terceiro momen-to: a negação da negação, ou seja, a síntese,que é o surgimento do novo. Tese, antítese,síntese, eis a tríade que explica o movimentodo mundo e do pensamento.

Os riscos da dialética

O costume de não pensar dialeticamentepode levar à dogmatização das leis dadialética, privilegiando um saber teórico queé a negação da dialética. Se a relação teoria e

práxis é uma relação dialética, a teoria nãopode se constituir separadamente da práticaque lhe dá o conteúdo para pensar, nem vice-versa. Nesse erro incorreu Stálin, político so-viético que petrificou a teoria, usando-a parajustificar todo tipo de ação arbitrária, inclusi-ve o emudecimento de intelectuais de pensa-mento divergente, como Trótski e Bukhárin.

4. Lógica formal e lógicadialética

A lógica dialética não faz desaparecer alógica formal. Esta continua existindo no âm-bito restrito das correlações imediatas que par-tem da observação direta dos fatos ou quandoatingimos as leis pelo método experimental.Então, explicamos o mundo pela causalidadelinear, característica do mundo mecânico típi-co da ciência clássica.

A lógica formal se torna insuficientequando é preciso passar para um grau supe-rior de generalidade, onde existem as catego-rias de totalidade e de relações recíprocas.Com o progresso da física, o.pensamentocientífico se volta para os fenômenos relacio-nados com a estrutura íntima da matéria, osquais não mais são explicados pelas relaçõesclássicas da causalidade formal. O mesmoocorre com os fenômenos das outras ciências,que introduzem a idéia de processo. É aí exa-tamente que a lógica formal se torna insufi-ciente, devendo ser substituída.

Entretanto, em outro aspecto, a lógicaformal continua sendo válida: enquanto a pro-dução da idéia é dialética, sua expressão ésempre formal. "O que é pensado dialetica-mente tem de ser dito formalmente, pois seacha subordinado às categorias da linguagem,que são formadas por força de sua constitui-ção social, de sua função como instrumentocriado pelo homem para a comunicação comos semelhantes."6

6 A. Vieira Pinto. Ciência e existência, p. 185.

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Exercícios

1. Contradição e totalidade são duas catego-rias importantes para compreender a dialética. Ex-plique o significado delas. Relacione-as com as trêsleis da dialética.

2. Qual é a principal diferença entre adialética hegeliana e a marxista?

3. Que transformações nas ciências provoca-ram um pensar diferente da lógica formal?

4. Quais são os riscos da dialética?

5. A existência da lógica dialética exclui o re-curso à lógica tradicional? Justifique sua resposta.

Textos complementares

I(...) o caráter revolucionário da filosofia hegeliana (a qual nos devemos limitar aqui como sendo a

conclusão de todo o movimento desde Kant) consiste precisamente em que põe fim de uma vez parasempre ao caráter definitivo de todos os resultados do pensamento e da atividade humana. Para Hegel, averdade que era preciso reconhecer na filosofia não era já uma coleção de princípios dogmáticos bem-acabados que, uma vez descobertos, apenas nos resta aprender de cor; a verdade residia doravante nopróprio processo do conhecimento, no longo desenvolvimento histórico da ciência que sobe dos grausinferiores a graus cada vez mais elevados do saber, sem nunca chegar, pela descoberta de uma pretensaverdade absoluta, ao ponto em que não pode avançar mais e em que nada mais lhe resta a fazer senãopermanecer de braços cruzados a contemplar de boca aberta a verdade absoluta a que se chegou. E istotanto no domínio do conhecimento filosófico como no de todos os outros saberes e da atividade prática.

Tal como o conhecimento, também a história não pode encontrar um acabamento definitivo numestado ideal perfeito da humanidade; uma sociedade perfeita, um "Estado" perfeito são coisas que sópodem existir na imaginação; bem pelo contrário, todas as situações que se sucederam na história nãopassam de etapas transitórias no desenvolvimento sem fim da sociedade humana que vai do inferior aosuperior. Cada etapa é necessária, e por conseqüência legítima para a época e as condições às quais devea sua origem; mas torna-se caduca e injustificada na presença de condições superiores novas que se de-senvolvem pouco a pouco no seu próprio seio; precisa de dar lugar a uma etapa superior que entre por suavez no ciclo da decadência e da morte.

(F. Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, in Marx-Engels, Antologiafilosófica, Lisboa, Editorial Estampa, 1971, p. 100-101.)

IINa realidade, não se pode fixar de uma vez por todas um sistema fechado de leis dialéticas à maneira

das formas lógicas de Aristóteles ou de Santo Tomás, das categorias de Kant ou da lógica de Hegel. Ométodo e os princípios do marxismo exigem que se estudem as leis da dialética, não como as formas imutá-veis de uma razão absoluta, mas como um balanço, para cada grande período histórico, das vitórias daracionalidade. A dialética não é nem uma razão constituinte transcendente à história que ela informa, nemuma razão constituída, esclerosada e coagulada numa etapa de seu desenvolvimento, nem uma simples hipó-tese de trabalho que se abandona do mesmo modo como foi escolhida, simplesmente por sua comodidade,mas sim o produto de uma epigênese* histórica: cada etapa de seu desenvolvimento consolida o adquirido nomomento mesmo em que é superado. É o arcabouço de uma história que se está fazendo.

(R. Garaudy, Perspectivas do homem, 3. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 297.)

' Epigênese: teoria da transformação dos seres por gerações graduais.

6. Leia o texto complementar I, de Engels, eresponda:

a) O que muda para Hegel quanto à concep-ção de verdade?

b) Qual a relação desse texto com a frase:"Tudo que existe merece perecer"?

7. Leia o texto complementar II, de Garaudy,e justifique as seguintes afirmações:

a) As leis dialéticas não constituem um siste-ma fechado.

b) A dialética não transcende a história.

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PRIMEIRA PARTE — Teoria do conhecimento na Antiguidade

Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas. (...) Não se pode entrar duas vezes nomesmo rio.

(Heráclito)

Necessário é dizer e pensar que só o ser é; pois o ser é, e o nada, ao contrário, nada é: afirmação quebem deves considerar. Desta via de investigação, eu te afasto; mas também daquela outra, na qual vagueiamos mortais que nada sabem, cabeças duplas. Pois é a ausência de meios que move, em seu peito, o seu espíritoerrante. Deixam-se levar, surdos e cegos, mentes obtusas, massa indecisa, para a qual o ser e o não ser éconsiderado o mesmo e não o mesmo, e para a qual em tudo há uma via contraditória.

(Parmênides)

1. Introdução

Os assuntos aqui tratados são aborda-dos em outros capítulos sob aspectos dife-rentes.1

Vimos no Capítulo 7 que, na Grécia, apassagem do mundo tribal à pólis (a cidade-estado grega) determina a mudança da manei-ra de pensar, que antes era predominantemen-te mítica e depois, com o aparecimento dascidades, faz surgir a racionalidade crítica típi-ca do pensar filosófico.

O advento da pólis grega é concomitantea outras transformações também marcantes,como o aparecimento da escrita, da moeda(em decorrência da expansão do comércio),dos legisladores (que elaboram nova concep-ção de poder nas leis escritas). Essas transfor-mações culminam com a figura do cidadão edo filósofo, em um mundo antes marcado pelodesígnio divino.

Começa então a grande aventura filosó-fica dos gregos, cuja influência se faz sentiraté nossos dias. Costuma-se dividir a filosofiagrega em três grandes períodos:

• período pré-socrático (séculos VII eVI a.C.) — abrange os filósofos das colôniasgregas (Jônia e Magna Grécia) que iniciaramo processo de desligamento entre a filosofia eo pensamento mítico.

• período socrático ou clássico (séculos Ve IV a.C.) — o centro cultural passa a ser Ate-nas; desse período fazem parte o próprioSócrates e seu discípulo Platão, que posterior-mente foi mestre de Aristóteles. O pensamentoorganizado e sistemático de Platão e Aristótelesinfluenciará durante séculos a cultura ocidental.Os sofistas são desse período e foram duramen-te criticados por seus contemporâneos.

• período pós-socrático (séculos III e IIa.C.) — caracteriza-se pela expansão mace-dônica sobre os territórios gregos e formaçãodo império de Alexandre Magno, que se es-tendeu por regiões da Ásia e parte do norte daÁfrica. Após a morte de Alexandre, inicia-sea época helenística, marcada pela influênciaoriental; as correntes filosóficas mais conhe-cidas são o estoicismo e o epicurismo, princi-pais expressões do período pós-socrático.

1 Ver também o Capítulo 7 — Do mito à razão; os Capítulos 12 — A ciência grega e 13 — A ciência medieval; 19O pensamento político grego e 20 — O pensamento político medieval.

TEORIA DOCONHECIMENTO

CAPÍTULO 10

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2. Filosofia pré-socrática

Relembrando ainda o Capítulo 7, a filo-sofia pré-socrática se caracteriza pela preocu-pação com a natureza do mundo exterior.

O nascimento da filosofia na Grécia émarcado pela passagem da cosmogonia paraa cosmologia. A cosmogonia, típica do pen-samento mítico, é descritiva e explica comodo caos surge o cosmos, a partir da geraçãodos deuses, identificados às forças da nature-za. Na cosmologia, as explicações rompemcom a religiosidade: a arché (princípio) nãose encontra mais na ordem do tempo mítico,mas significa princípio teórico, enquanto fun-damento de todas as coisas. Daí a diversidadede escolas filosóficas, dando origem a funda-mentações conceituais (e portanto abstratas)muito diferentes entre si.

Vamos destacar apenas dois, dentre ospré-socráticos: Heráclito e Parmênides.Relembramos também que o tempo destruiugrande parte da obra dos primeiros filósofos,deles nos restando apenas fragmentos e os co-mentários sobre seus textos feitos pelos filó-sofos do período clássico.

Heráclito: tudo flui

Heráclito (544-484 a.C.) nasceu emÉfeso, na Jônia (atual Turquia). Tal como seuscontemporâneos pré-socráticos, busca com-preender a multiplicidade do real. Mas, aocontrário deles, não rejeita as contradições equer apreender a realidade na sua mudança,no seu devir. Todas as coisas mudam sem ces-sar, e o que temos diante de nós em dado mo-mento é diferente do que foi há pouco e doque será depois: "Nunca nos banhamos duasvezes no mesmo rio", pois na segunda vez nãosomos os mesmos, e também o rio mudou.

Portanto não há ser estático, e o dinamis-mo pode bem ser representado pela metáforado fogo, forma visível da instabilidade, símbo-lo da eterna agitação do devir, "o fogo eterno evivo, que ora se acende e ora se apaga".

Para Heráclito o ser é o múltiplo. Nãono sentido apenas de que existe a multiplici-dade das coisas, mas de que o ser é múltiplopor estar constituído de oposições internas. Oque mantém o fluxo do movimento não é osimples aparecer de novos seres, mas a lutados contrários, pois "a guerra é pai de todos,rei de todos". E é da luta que nasce a harmo-nia, como síntese dos contrários.

Pode-se dizer que Heráclito teve a intui-ção da lógica dialética, a ser elaborada porHegel e depois Marx, no século XIX.

Parmênides: o ser é imóvel

Parmênides (c.540-c.470 a.C.) viveu emEléia, cidade do sul da Magna Grécia (atualItália) e é o principal expoente da chamadaescola eleática. Elaborou importantíssimateoria filosófica na medida em que influen-ciou de forma decisiva o pensamento ociden-tal. Ocupou-se longamente em criticar a filo-sofia heraclitiana: ao "tudo flui" (panta rei)de Heráclito, contrapôs a imobilidade do ser.

Para Parmênides é absurdo e impensá-vel considerar que uma coisa pode ser e nãoser ao mesmo tempo. A contradição opõe oprincípio segundo o qual "o ser é" e o "não-ser não é". Mais tarde, os lógicos chamarão aisto princípio de identidade, base de todaconstrução metafísica posterior.

Por raciocínios que não cabe examinarneste pequeno espaço, Parmênides conclui, apartir do princípio estabelecido, que o ser éúnico, imutável, infinito e imóvel. Não há,entretanto, como negar a existência do movi-mento no mundo que percebemos, onde ascoisas nascem e morrem, mudam de lugar ese expõem em infinita multiplicidade. ParaParmênides, o movimento existe apenas nomundo sensível, e a percepção levada a efeitopelos sentidos é ilusória. Só o mundo inteligí-vel é verdadeiro, pois está submetido ao prin-cípio que hoje chamamos de identidade e denão-contradição.

Uma das conseqüências dessa teoria é aidentidade entre o ser e o pensar. Ou seja, ascoisas que existem fora de mim são idênticasao meu pensamento, e o que eu não conseguirpensar não pode ser na realidade.

3. Os sofistas

O século de Péricles (V a.C.) constitui operíodo áureo da cultura grega, quando a de-mocrática Atenas desenvolve intensa vidacultural e artística. Os pensadores do períodoclássico, embora ainda discutam questões refe-rentes à natureza, desenvolvem o enfoque an-tropológico, abrangendo a moral e a política.

Os sofistas vivem nessa época, e algunsdeles são interlocutores de Sócrates. Os maisfamosos sofistas foram: Protágoras, de Abdera

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(485-411 a.C); Górgias, de Leôncio, na Sicília(485-380 a.C); Híppias, de Élis; e aindaTrasímaco, Pródico, Hipódamos, entre outros.Tal como ocorreu com os pré-socráticos, dossofistas só nos restam fragmentos de suasobras, além das referências — muitas vezestendenciosas — feitas por filósofos posteriores.

A palavra sofista, etimologicamente, vemde sophos, que significa "sábio", ou melhor,"professor de sabedoria". Posteriormente adqui-riu o sentido pejorativo de "homem que empre-ga sofismas", ou seja, alguém que usa de racio-cínio capcioso, de má-fé, com intenção de enga-nar. Sóphisma significa "sutileza de sofista".

Os sofistas sempre foram mal interpre-tados devido às críticas que sobre eles fize-ram Sócrates e Platão. A imagem de certa for-ma caricatural da sofistica tem sido reelabo-rada no sentido de procurar resgatar a verda-deira importância do seu pensamento. Desdeque os sofistas foram reabilitados por Hegelno século XIX, o período por eles iniciadopassou a ser denominado Aufklarung grega(imitando a expressão alemã que designa oIluminismo europeu do século XVIII).

São muitos os motivos que levaram àvisão deturpada dos sofistas que a tradição nosoferece. Em primeiro lugar, há enorme diver-sidade teórica entre os pensadores reunidossob a designação de sofista. Talvez o que pos-sa identificá-los é o fato de serem considera-dos sábios e pedagogos. Vindos de todas aspartes do mundo grego, desenvolvem um en-sino itinerante pelos locais em que passam,mas não se fixam em lugar algum. Deve-se aisso o gosto pela crítica, o exercício do pensarresultante da circulação de idéias diferentes.

Segundo Jaeger, historiador da filosofia,os sofistas exercem influência muito forte,vinculando-se à tradição educativa dos poetasHomero e Hesíodo. Os sofistas deram impor-tante contribuição para a sistematização doensino. Formaram um currículo de estudos:gramática (da qual foram os iniciadores), re-tórica e dialética; por influência dos pitagóri-cos, desenvolveram a aritmética, a geometria,a astronomia e a música. Essa divisão será re-tomada no ensino medieval, constituindo otrivium (referente aos três primeiros) e oquadrivium (referente aos quatro últimos).

Para escândalo de seus contemporâneos,costumavam cobrar pelas aulas e por esse mo-tivo Sócrates os acusava de prostituição. Cabeaqui um reparo: na Grécia Antiga, apenas osnobres se ocupavam com o trabalho intelectual,pois gozavam do ócio, ou seja, da disponibili-dade de tempo decorrente do fato de que o tra-balho manual, de subsistência, era ocupação deescravos. Ora, os sofistas, geralmente homenssaídos da classe média, faziam das aulas seuofício, já que não eram suficientemente ricospara filosofarem descompromissadamente. Sealguns sofistas de menor valor podiam ser cha-mados de mercenários do saber, isso na verda-de era acidental. (Será que essas observaçõespodem nos servir ainda hoje?)2

Como veremos na Unidade IV (Política),os sofistas elaboram o ideal teórico da demo-cracia, valorizada pelos comerciantes em as-censão, cujos interesses se contrapõem aos daaristocracia rural. A exigência que os sofistasvêm satisfazer é de ordem essencialmente prá-tica, voltada para a vida: iniciam os jovens naarte da retórica, instrumento indispensável naassembléia democrática, e os deslumbramcom o brilhantismo da participação no debatepúblico.

Se foram acusados pelos seus detratoresde pronunciarem discursos vazios, essa famase deve à excessiva atenção dada por algunsdeles ao aspecto formal da exposição e da de-fesa das idéias, pois se achavam preocupa-dos com a persuasão, instrumento por exce-lência do cidadão na cidade democrática. Osmelhores deles, no entanto, buscaram aper-feiçoar os instrumentos da razão, ou seja, acoerência e o rigor da argumentação, porquenão basta dizer o que se considera verdadei-ro, é preciso demonstrá-lo pelo raciocínio.Pode-se dizer que aí se encontra o embriãoda lógica, mais tarde desenvolvida por Aris-tóteles.

Quando Protágoras, um dos mais impor-tantes sofistas, diz que "o homem é a medidade todas as coisas", esse fragmento deve serentendido não como expressão do relativismodo conhecimento, mas enquanto exaltação dacapacidade de construir a verdade: o logos nãomais é divino, mas decorre do exercício técni-co da razão humana.

2 Até hoje os professores são mal-remunerados. Tanto porque as pessoas se recusam a pagá-los de forma semelhanteao que é feito aos outros profissionais liberais, tanto porque os próprios professores sofrem da "síndrome de Sócrates"!

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4. Sócrates

Sócrates (c.470-399 a.C.) nada deixouescrito, e teve suas idéias divulgadas por doisde seus principais discípulos, Xenofonte ePlatão. Evidentemente, devido ao brilho de-les, é de se supor que nem sempre fossemrealmente fiéis ao pensamento do mestre. Nosdiálogos que Platão escreveu, Sócrates figurasempre como o principal interlocutor.

Mesmo tendo sido incluído muitas vezesentre os sofistas, Sócrates recusava tal classifi-cação, e opunha-se a eles de forma crítica.

Como vimos no Capítulo 8 (O que é fi-losofia), Sócrates se indispôs com os podero-sos do seu tempo, sendo acusado de não crernos deuses da cidade e corromper a mocida-de. Por isso foi condenado e morto.

Costumava conversar com todos, fos-sem velhos ou moços, nobres ou escravos,preocupado com o método do conhecimento.Sócrates parte do pressuposto "só sei que nadasei", que consiste justamente na sabedoria dereconhecer a própria ignorância, ponto de par-tida para a procura do saber.

Por isso seu método começa pela parteconsiderada "destrutiva", chamada ironia (emgrego, "perguntar"). Nas discussões afirmainicialmente nada saber, diante do oponenteque se diz conhecedor de determinado assun-to. Com hábeis perguntas, desmonta as certe-zas até o outro reconhecer a ignorância. Parteentão para a segunda etapa do método, amaiêutica (em grego, "parto"). Dá esse nomeem homenagem a sua mãe, que era parteira,acrescentando que, se ela fazia parto de cor-pos, ele "dava à luz" idéias novas.

Sócrates, por meio de perguntas, destróio saber constituído para reconstruí-lo na pro-cura da definição do conceito. Esse processoaparece bem ilustrado nos diálogos relatadospor Platão, e é bom lembrar que, no final, nemsempre Sócrates tem a resposta: ele tambémse põe em busca do conceito e às vezes as dis-cussões não chegam a conclusões definitivas.

As questões que Sócrates privilegia são asreferentes à moral, daí perguntar em que consis-te a coragem, a covardia, a piedade, a justiça eassim por diante. Diante de diversas manifesta-ções de coragem, quer saber o que é a "coragemem si", o universal que a representa. Ora, en-

quanto a filosofia ainda é nascente, precisa in-ventar palavras novas, ou usar as antigas dando-lhes sentido diferente. Por isso Sócrates utiliza otermo logos, que na linguagem comum signifi-cava "palavra", "conversa", e que no sentido fi-losófico passa a significar "a razão que se dá dealgo", ou mais propriamente, conceito.

Assim explica Garcia Morente: "O queos geômetras dizem de uma figura, do círcu-lo, por exemplo, para defini-lo, é o logos docírculo, é a razão dada do círculo. Do mesmomodo, o que Sócrates pede com afã aos cida-dãos de Atenas é que lhes dêem o logos dajustiça, o logos da coragem. (...) Pois que éeste logos senão o que hoje denominamos'conceito'? Quando Sócrates pede o logos,quando pede que indiquem qual é o logos dajustiça, que é a justiça, o que pede é o concei-to da justiça, a definição da justiça".3

5. Platão

Platão (428-347 a.C.) viveu em Ate-nas, onde fundou uma escola denominadaAcademia.

Para melhor sintetizar as idéias dePlatão, recorremos ao livro VII de A Repúbli-ca, onde seu pensamento é ilustrado pelo fa-moso "mito da caverna". Platão imagina umacaverna onde estão acorrentados os homensdesde a infância, de tal forma que, não poden-do se voltar para a entrada, apenas enxergamo fundo da caverna. Aí são projetadas as som-bras das coisas que passam às suas costas,onde há uma fogueira. Se um desses homensconseguisse se soltar das correntes para con-templar à luz do dia os verdadeiros objetos,quando regressasse, relatando o que viu aosseus antigos companheiros, esses o tomariampor louco, não acreditando em suas palavras.

A análise do mito pode ser feita pelo me-nos sob dois pontos de vista: o epistemológico(relativo ao conhecimento) e o político (relati-vo ao poder).

Segundo a dimensão epistemológica, omito da caverna é uma alegoria a respeito dasduas principais formas de conhecimento: nateoria das idéias, Platão distingue o mundosensível, dos fenômenos, e o mundo inteligí-vel, das idéias.

' M. Garcia Morente. Fundamentos de filosofia; lições preliminares, p. 83.

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O mundo sensível, acessível aos senti-dos, é o mundo da multiplicidade, do movi-mento, e é ilusório, pura sombra do verdadei-ro mundo. Assim, mesmo se percebemos inú-meras abelhas dos mais variados tipos, a idéiade abelha deve ser una, imutável, a verdadei-ra realidade. Com isto Platão se aproxima doinstrumental teórico de Parmênides e, alian-do-o aos ensinamentos de Sócrates, elaborauma teoria original.

Do seu mestre aproveita a noção novade logos, e continuando o processo de com-preensão do real, cria a palavra idéia (eidos),para referir-se à intuição intelectual, distintada intuição sensível.

Portanto, acima do ilusório mundo sensí-vel, há o mundo das idéias gerais, das essênciasimutáveis que o homem atinge pela contempla-ção e pela depuração dos enganos dos sentidos.

Sendo as idéias a única verdade, o mun-do dos fenômenos só existe na medida em queparticipa do mundo das idéias, do qual é ape-nas sombra ou cópia. Por exemplo, um cavalosó é cavalo enquanto participa da idéia de "ca-valo em si". Trata-se da teoria da participação,mais tarde duramente criticada por Aristóteles.

Para Platão há uma dialética que fará aalma elevar-se das coisas múltiplas e mutáveisàs idéias unas e imutáveis. As idéias gerais sãohierarquizadas, e no topo delas está a idéia doBem, a mais alta em perfeição e a mais geralde todas: os seres e as coisas não existem se-não enquanto participam do Bem. E o Bemsupremo é também a Suprema Beleza. É oDeus de Platão.

Se lembrarmos o que foi dito a respeitodos pré-socráticos, podemos verificar quePlatão tenta superar a oposição instalada pelopensamento de Heráclito, que afirmava amutabilidade essencial do ser, e a posição deParmênides, para o qual o ser é imóvel. Platãoresolve o problema: o mundo das idéias se re-fere ao ser parmenídeo, e o mundo dos fenô-menos ao devir heraclitiano.

Mas como é possível aos homens ultra-passarem o mundo das aparências ilusórias?Platão supõe que os homens já teriam vividocomo puro espírito quando contemplaram omundo das idéias. Mas tudo esquecem quan-do se degradam ao se tomarem prisioneirosdo corpo, que é considerado o "túmulo daalma". Pela teoria da reminiscência, Platãoexplica como os sentidos se constituem ape-

nas na ocasião para despertar nas almas aslembranças adormecidas. Em outras palavras,conhecer é lembrar. No diálogo Menon,Platão descreve como um escravo, ao exami-nar figuras sensíveis que lhe são oferecidas, éinduzido a "lembrar-se" das idéias e descobreuma verdade geométrica.

Voltando ao mito da caverna: o filósofo(aquele que se libertou das correntes), ao con-templar a verdadeira realidade e ter passadoda opinião (doxa) à ciência (episteme), deveretornar ao meio dos homens para orientá-los.

Eis assim a segunda dimensão do mito,a política, surgida da pergunta: como influen-ciar os homens que não vêem? Cabe ao sábioensinar e governar. Trata-se da necessidade daação política, da transformação dos homens eda sociedade, desde que essa ação seja dirigidapelo modelo ideal contemplado. Voltaremosa esse assunto no Capítulo 19 (O pensamentopolítico grego).

Idealismo ou realismo das idéias?

Alguns teóricos tendem a interpretar opensamento de Parmênides e de Platão comorepresentantes do idealismo. Como veremosadiante, o idealismo é uma expressão do pensa-mento moderno, no momento em que a teoriado conhecimento se torna reflexão autônoma.

Segundo Garcia Morente, o eleatismo nãoé idealismo, mas realismo. Quando Parmênidesidentifica ser e pensar, não se pode concluir queele reduz o ser das coisas ao pensamento, poisem nenhum momento é negada a existência au-tônoma das coisas reais. Aliás, toda filosofia an-tiga é "ingênua" no sentido de aceitar o pressu-posto de que "as coisas são reais".

O que se deve levar em conta é que na-quele momento a filosofia está no seu berço eParmênides leva até as últimas conseqüênciaso poder recém-descoberto da razão de procu-rar entender o mistério do mundo.

Como vimos, Platão rejeita como enga-nosa a multiplicidade do mundo e privilegiaas idéias como essências existentes das coisasdo mundo sensível. Ou seja, a cada "sombra"do mundo dos fenômenos corresponderia umaessência imutável no mundo das idéias. Platãoconfere às idéias uma existência real; portan-to, trata-se menos de uma teoria idealista emais propriamente de um realismo dasidéias. Ou ainda, segundo outros, de um idea-lismo objetivo.

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6. Aristóteles

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu emEstagira, na Calcídica (região dependente daMacedônia). Seu pai era médico de Filipe, reida Macedônia. Mais tarde, Alexandre, filho deFilipe, foi discípulo de Aristóteles até o mo-mento em que precisou assumir precocemen-te o poder e continuar a expansão do império.

Freqüentou a Academia de Platão e a fi-delidade ao mestre foi entremeada por críti-cas que mais tarde justificaria dizendo: "Souamigo de Platão, mas mais amigo da verda-de". Sua extensa obra forma um dos grandessistemas filosóficos cuja importância se en-contra tanto na abrangência dos assuntosabordados como na interligação rigorosa en-tre as partes constitutivas.

Em 340 a.C. funda em Atenas o Liceu,assim chamado por ser vizinho do templo deApoio Lício.

Uma nova concepção do devir

Aristóteles retoma a problemática doconhecimento e se preocupa em definir aciência como conhecimento verdadeiro,conhecimento pelas causas, capaz de superaros enganos da opinião e de compreender a na-tureza do devir. Mas ao analisar a oposiçãoentre o mundo sensível e o inteligível segundoa tradição de Heráclito, Parmênides e Platão,Aristóteles recusa as soluções apresentadas ecritica pormenorizadamente o mundo "sepa-rado" das idéias platônicas.

A teoria aristotélica se baseia em três dis-tinções fundamentais, que passamos a descreversimplificadamente: substância-essência-aciden-te; ato-potência; forma-matéria, que por suavez desembocam na teoria das quatro causas.

Aristóteles "traz as idéias do céu à terra":rejeita o mundo das idéias de Platão, fundindoo mundo sensível e o inteligível no conceito dasubstância, enquanto "aquilo que é em si mes-mo", ou enquanto suporte dos atributos.

Ora, quando dizemos algo de uma subs-tância, podemos nos referir a atributos que lheconvêm de tal forma que, se lhe faltassem, asubstância não seria o que é. Designamos es-ses atributos de essência propriamente dita, echamamos de acidente o atributo que a subs-tância pode ter ou não, sem deixar de ser oque é. Então, a substância individual "estehomem" tem como características essenciais

A Escola de Atenas, de Rafael. Nessa clássica re-presentação, Platão parece apontar para o mun-do das idéias, enquanto dele discorda o discípuloAristóteles, que "traz as idéias do céu à terra".

os atributos pelos quais este homem é homem(Aristóteles diria, a essência do homem é aracionalidade) e outros, acidentais (como sergordo, velho ou belo), atributos esses que nãomudam o ser do homem em si.

No entanto, o problema das transforma-ções dos seres ainda não se resolve com osconceitos de essência e acidente, e por issoAristóteles recorre às noções de forma e ma-téria. Matéria é o princípio indeterminado deque o mundo físico é composto, é "aquilo deque é feito algo", o que não coincide exata-mente com o que nós entendemos por maté-ria, na física, por se caracterizar pela indeter-minação. Forma é "aquilo que faz com queuma coisa seja o que é".

Todo ser é constituído de matéria e for-ma, princípios indissociáveis. Enquanto a for-ma é o princípio inteligível, a essência comumaos indivíduos da mesma espécie, pela qualtodos são o que são, a matéria é pura passivi-dade, contendo a forma em potência. Numaestátua, por exemplo, a matéria (que nessecaso é a matéria segunda, pois já tem algumadeterminação) é o mármore; a forma é a idéiaque o escultor realiza na estátua.

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É através da noção de matéria e formaque se explica o devir. Todo ser tende a tornaratual a forma que tem em si como potência.Assim, a semente, quando enterrada, tende ase desenvolver e se transformar no carvalhoque era em potência.

Percebe-se aí o recurso aos dois outrosconceitos, de ato e potência, que explicam comodois seres diferentes podem entrar em relação,agindo um sobre o outro. O conceito de potên-cia não deve ser confundido com força, mas simcom a ausência de perfeição em um ser capazde vir a possuí-la. Pois uma potência é a capaci-dade de tornar-se alguma coisa e, para tal, é pre-ciso que sofra a ação de outro ser já em ato. Asemente que contém o carvalho em potência foigerada por um carvalho em ato.

O movimento é, pois, a passagem dapotência para o ato. O movimento é "o ato deum ser em potência enquanto tal", é a potên-cia se atualizando. Tais considerações levamà distinção dos diversos tipos de movimento eàs causas do movimento ou teoria das quatrocausas: as mudanças derivam da causa mate-rial, da causa formal, da causa eficiente e dacausa final. Retomaremos esse assunto noCapítulo 12 (A ciência grega).

Mesmo ainda considerando o postuladoparmenídeo de que o ser é idêntico ao pensar,Aristóteles pôde superar Parmênides e Platãoao usar os conceitos acima expostos, pelosquais se compreende a imutabilidade e a mu-dança, o acidental e o essencial, o individual eo universal. Se conhecer é lidar com concei-tos universais, é também aplicar esses concei-tos a cada coisa individual. Com isso, nem épreciso justificar a imobilidade do ser, nemcriar o mundo das essências imutáveis.

Deus, Ato Puro

Toda a estrutura teórica da filosofiaaristotélica desemboca na teologia. A descri-ção das relações entre as coisas leva ao reco-nhecimento da existência de um ser superior enecessário, ou seja, Deus. Isso porque, se ascoisas são contingentes, já que não têm em simesmas a razão de sua existência, é precisoconcluir que são produzidas por causas a elasexteriores. Assim, todo ser contingente foiproduzido por outro ser, que também é con-tingente e assim por diante. Para não ir ao in-finito na seqüência de causas, é preciso admi-tir uma primeira causa, por sua vez incausada,

um ser necessário (e não contingente). EssePrimeiro Motor (imóvel, por não ser movidopor nenhum outro) é também um puro ato(sem nenhuma potência). Chamamos Deus aoPrimeiro Motor Imóvel, Ato Puro, Ser Neces-sário, Causa Primeira de todo existente.

7. A metafísica

Vimos como a filosofia grega, desde omomento em que se destaca do pensamentomítico, elabora conceitos para instrumentali-zar a razão no esforço de compreensão do real.

Entre as diversas e importantes contri-buições do pensamento grego, destaca-se ocaminho percorrido por Parmênides, Platão eAristóteles na busca dos conceitos que expli-cassem o ser em geral e que hoje reconhece-mos como sendo o assunto tratado pela parteda filosofia denominada metafísica.

Há uma curiosidade em torno da origemdo nome metafísica. Embora sempre façamosreferência à metafísica de Aristóteles, ele pró-prio usava a denominação filosofia primeira.O termo metafísica surgiu no século I a.C,quando Andronico de Rodes, ao classificar asobras de Aristóteles, colocou a Filosofia pri-meira depois das obras de Física: Meta Físi-ca, ou seja, "depois da Física".

De qualquer forma, nada impediu queesse "depois", puramente espacial, fosse con-siderado "além", no sentido de tratar de as-suntos que transcendem a física, que estãoalém dela porque ultrapassam as questõespostas a partir do conhecimento do mundosensível. Portanto, no sentido pelo qual o co-nhecemos hoje, o termo só começou a ser apli-cado a partir do século V da nossa era.

A filosofia primeira não é primeira naordem no conhecer, já que partimos do conhe-cimento sensível, mas a que busca as causasmais universais (e portanto as mais distantesdos sentidos) e que são as mais fundamentaisna ordem real. Trata-se da parte nuclear da fi-losofia, onde se estuda "o ser enquanto ser",isto é, o ser independentemente de suas deter-minações particulares.

É a metafísica que fornece a todas asoutras ciências o fundamento comum, o obje-to ao qual todas se referem e os princípios dosquais dependem. Ou seja, todas a ciências sereferem continuamente ao ser e a diversosconceitos ligados diretamente a ele, tais como

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identidade, oposição, diferença, gênero, espé-cie, todo, parte, perfeição, unidade, necessi-dade, possibilidade, realidade etc. Mas nenhu-ma ciência examina tais conceitos. É nesse

sentido que consideramos que o objeto dametafísica consiste em examinar o ser e suaspropriedades.

Exercícios

1. Qual é a principal preocupação dos filóso-fos pré-socráticos?

2. Faça um paralelo entre Heráclito e Parmê-nides, por meio de um esquema comparativo desuas idéias.

3. Relacione as duas epígrafes que iniciameste capítulo, explicando a crítica feita por Parmê-nides a Heráclito.

4. Qual foi a principal contribuição de Parmê-nides ao pensamento ocidental?

5. Qual foi a importância dos sofistas para aeducação e a política?

6. "Só sei que nada sei": em que medida nãose trata de simples conclusão psicológica, mas deuma atitude filosófica?

7. Qual é a importância do conceito, não sóno pensamento de Sócrates, mas para a filosofianascente?

8. Em que medida a teoria das idéias dePlatão pretende superar o pensamento de Heráclitoe Parmênides?

9. Analise a seguinte citação de Platão: "E,quanto à procura da sabedoria, que dizes? O corponão é um impedimento?... E, por isso, a alma racio-cina perfeitamente quando nenhuma destas sensa-ções a ofusca, sem a vista nem o ouvido, nem o pra-zer nem a dor; mas permanecendo só, separada docorpo, desdenhosa de ter que achar-se em contatocom ele, dirige-se com todo seu poder para o que é".

10. O que significa dizer que Aristóteles trou-xe "as idéias do céu à terra"?

11. Considerando a substância mesa: cite umatributo essencial, um acidental; qual é a matéria,qual a forma'!

12. Explique: para Aristóteles o movimento éa passagem da potência para o ato.

13. Explique por que o pensamento de Aristó-teles desemboca numa teoria de Deus.

14. Qual é a importância da metafísica no pen-samento grego?

15. Com base no texto complementar, de Platão:

a) Interprete o "mito da caverna" do ponto devista epistemológico.

b) Qual é o significado da metáfora do sol?

Texto complementar

O mito da cavernaTrata-se de um trecho do Livro VII de A República: no diálogo, as falas na primeira pessoa

são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão.

— Agora — continuei — representa da seguinte forma o estado de nossa natureza relativa-mente à instrução e à ignorância. Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna,que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde ainfância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhuresexceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo acesosobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado;imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que osexibidores de fantoches erigem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas.

— Vejo isso — disse ele.— Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de todo gênero,

que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de homens e animais de pedra, de madeira e de todaespécie de matéria; naturalmente, entre estes portadores, uns falam e outros se calam.

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— Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos das cadeias e curadosda ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que o forcem a levantar-se imediatamente, avolver o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e oofuscamento o impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco. O que achas, pois,que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então eram vãos fantasmas, masque presentemente, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira maisjusta? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas passantes, o obrigar, à força de perguntas, adizer o que é isso? Não crês que ficará embaraçado e que as sombras que viu há pouco lhe parecerãomais verdadeiras do que os objetos que ora lhe são mostrados?

— Muito mais verdadeiras — reconheceu ele.— E se o forçam a fitar a própria luz, não ficarão os seus olhos feridos? Não tirará dela a vista,

para retornar às coisas que pode olhar, e não crerá que estas são realmente mais distintas do que asoutras que lhe são mostradas?

— Seguramente.— E se — prossegui — o arrancam à força de sua caverna, o compelem a escalar a rude e

escarpada encosta e não o soltam antes de arrastá-lo até a luz do sol, não sofrerá ele vivamente e nãose queixará destas violências? E quando houver chegado à luz, poderá, com os olhos completamentedeslumbrados pelo fulgor, distinguir uma só das coisas que agora chamamos verdadeiras?

— Não poderá — respondeu —; ao menos desde logo.— Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior. Primeiro distinguirá mais

facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas, aseguir os próprios objetos. Após isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da lua, contemplarmais facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante o dia o sol e sua luz.

— Sem dúvida.— Por fim, imagino, há de ser o sol, não suas vãs imagens refletidas nas águas ou em qualquer

outro local, mas o próprio sol em seu verdadeiro lugar, que ele poderá ver e contemplar tal como é.— Necessariamente.— Depois disso, há de concluir, a respeito do sol, que é este que faz as estações e os anos, que

governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é causa de tudo quanto ele via, com os seuscompanheiros, na caverna.

— Evidentemente, chegará a esta conclusão.

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— Eis — exclamou — um estranho quadro e estranhos prisioneiros!— Eles se nos assemelham — repliquei — mas, primeiro, pensas que em tal situação jamais

hajam visto algo de si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre aparede da caverna que está à sua frente?

— E como poderiam? — observou — se são forçados a quedar-se a vida toda com a cabeça imóvel?— E com os objetos que desfilam, não acontece o mesmo?— Incontestavelmente.— Se, portanto, conseguissem conversar entre si não julgas que tomariam por objetos reais as

sombras que avistassem?— Necessariamente.

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— Imagina ainda que este homem torne a descer a caverna e vá sentar-se em seu antigo lugar:não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol?

— Seguramente sim — disse ele.— E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em competição, com os cativos que

não abandonaram as correntes, no momento em que ainda está com a vista confusa e antes que seusolhos se tenham reacostumado (e o hábito à obscuridade exigirá ainda bastante tempo), não provoca-rá riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido para cima, voltou com a vista arruinada, desorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar soltá-los e conduzi-los aoalto, e conseguissem eles pegá-lo e matá-lo, não o matarão?

— Sem dúvida alguma — respondeu.

— Agora, meu caro Glauco — continuei — cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem aoque dissemos mais acima, comparar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz dofogo que a ilumina ao poder do sol. No que se refere à subida à região superior e à contemplação deseus objetos, se a considerares como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não te enganarás sobreo meu pensamento, posto que também desejas conhecê-lo. Deus sabe se ele é verdadeiro. Quanto amim, tal é minha opinião: no mundo inteligível, a idéia do bem é percebida por último e a custo, masnão se pode percebê-la sem concluir que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas ascoisas; que ela engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz; que, no mundo inteligível,ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que é preciso vê-la para conduzir-secom sabedoria na vida particular e na vida pública.

— Partilho de tua opinião — replicou — na medida em que posso.

(Platão, A República, v. II, p. 105 a 109.)

SEGUNDA PARTE — Teoria do conhecimento na Idade Média

Aquilo que a verdade descobrir não pode contrariar aos livros sagrados, quer do Antigo quer do NovoTestamento.

(Santo Agostinho)

1. A patrística

No período de decadência do ImpérioRomano, quando o cristianismo se expande,surge a partir do século II a filosofia dos Pa-dres da Igreja, conhecida também comopatrística. No esforço de converter os pagãos,combater as heresias e justificar a fé, desen-volvem a apologética, elaborando textos dedefesa do cristianismo. Começa aí uma longaaliança entre fé e razão que se estende por todaa Idade Média e em que a razão é consideradaauxiliar da fé e a ela subordinada. Daí a ex-pressão agostiniana "Credo ut intelligam",que significa "Creio para que possa entender".

Os Padres recorrem inicialmente à filo-sofia platônica e realizam uma grande síntesecom a doutrina cristã, mediante adaptaçõesconsideradas necessárias.

O principal nome da patrística é SantoAgostinho (354-430), bispo de Hipona, cida-de do norte da África. Agostinho retoma adicotomia platônica referente ao mundo sen-sível e ao mundo das idéias e substitui esseúltimo pelas idéias divinas. Segundo a teoriada iluminação, o homem recebe de Deus oconhecimento das verdades eternas: tal comoo sol, Deus ilumina a razão e torna possível opensar correto.

Santo Agostinho viveu no final da Anti-guidade; logo depois Roma cai nas mãos dos

bárbaros, tendo início o longo período da Ida-de Média. Na primeira metade, conhecidacomo Alta Idade Média, continua sendo enor-me a influência dos Padres da Igreja, e váriospensadores de saber enciclopédico retomam acultura antiga, continuando o trabalho de ade-quação às verdades teológicas.

2. A escolástica

A escolástica é a filosofia cristã que sedesenvolve desde o século IX, tem o seu apo-geu no século XIII e começo do século XIV,quando entra em decadência.

Continua a aliança entre razão e fé,aquela sempre considerada a "serva da teolo-gia". Com freqüência as disputas terminamcom o apelo ao princípio da autoridade, queconsiste na recomendação de humildade parase consultar os intérpretes autorizados pelaIgreja.

No entanto, a partir do século XI, com orenascimento urbano, começam a surgirameaças de ruptura da unidade da Igreja, e asheresias anunciam o novo tempo de contesta-ção e debates em que a razão busca sua auto-nomia. Inúmeras universidades aparecem portoda a Europa e são indicativas do gosto pelo

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racional, tornando-se focos por excelência defermentação intelectual.

Durante muito tempo predomina na Ida-de Média a influência da filosofia de Platão,considerada mais adaptável aos ideais cris-tãos. O pensamento de Aristóteles era vistocom desconfiança, ainda mais pelo fato de osárabes terem feito interpretações tidas comoperigosas para a fé.

A partir do século XIII, Santo Tomásutiliza as traduções feitas diretamente do gre-go e faz a síntese mais fecunda da escolástica,e que será conhecida como filosofia aristoté-lico-tomista. Daí para frente a influência deAristóteles se fará sentir de maneira forte, so-bretudo pela ação dos padres dominicanos emais tarde dos jesuítas, que desde o Renasci-mento, e por vários séculos, mostraram-seempenhados na formação dos jovens.

Se por um momento a recuperação doaristotelismo constitui um recurso fecundopara Santo Tomás, já no período final daescolástica torna-se um entrave para o desen-volvimento da ciência. Basta lembrar a críticade Descartes e a luta de Galileu contra o saberpetrificado da escolástica decadente.

A questão dos universais

Aristóteles não será conhecido na IdadeMédia a não ser a partir do século XIII, quan-do suas obras são traduzidas para o latim.

No entanto, no século VI, Boécio traduzi-ra a lógica aristotélica, tecendo um comentário arespeito da questão da existência real ou não dosuniversais. O universal é o conceito, a idéia, aessência comum a todas as coisas (por exemplo,o conceito de homem). Em outras palavras, per-guntava-se se os gêneros e espécies tinham exis-tência separada dos objetos sensíveis: as espécies(como o cão) e os gêneros (como os animais)

teriam existência real? Ou seja, seriam realida-des, idéias ou apenas palavras? Essa questão éretomada nos séculos XI e XII, alimentando lon-ga polêmica, cujas soluções principais são: orealismo, o conceptualismo e o nominalismo.

Os realistas, como Santo Anselmo e Gui-lherme de Champeaux, consideram que o uni-versal tem realidade objetiva (são res, ou seja,"coisa"). É evidente a influência platônica domundo das idéias. No século XIII, Santo To-más de Aquino, já conhecendo Aristóteles, épartidário do realismo moderado, segundo oqual os universais só existem formalmente noespírito, mas têm fundamento nas coisas.

Para os nominalistas, como Roscelino,o universal é apenas um conteúdo da nossamente, expresso em um nome. Ou seja, os uni-versais são apenas palavras, sem nenhumarealidade específica correspondente. Essa ten-dência reaparece no século XIV com Guilher-me de Ockam, franciscano que representa areação à filosofia de Santo Tomás.

Pedro Abelardo, grande mestre da polê-mica, opta pela posição conceptualista, inter-mediária entre as duas anteriores. Para ele osuniversais são conceitos, entidades mentais.

Podemos analisar o significado dessasoposições a partir das contradições que esta-belecem fissuras na compreensão mística domundo medieval. Sob esse aspecto, os realis-tas são os partidários da tradição, e como talvalorizam o universal, a autoridade, a verda-de eterna, representada pela fé. Por outro lado,os nominalistas consideram que o individualé mais real, indicando o deslocamento do cri-tério da verdade da fé e da autoridade para arazão humana. Naquele momento histórico,essa última posição representa a emergênciado racionalismo burguês em oposição às for-ças feudais que deseja superar.

Exercícios

1. Qual é a importância da apologética, e emque medida essa preocupação representará aespecificidade do pensamento medieval?

2. Como se deu a influência de Platão e Aris-tóteles no período medieval?

3. Em que consiste a questão dos universais?Em que eles retomam questões abordadas pelos gre-gos? Que significado podem ter, considerando asmudanças que ocorrem naquele período medieval?

4. Leia o texto complementar, de Santo To-más, e responda:

a) A razão humana pode contrariar as verda-des da fé?

b) As verdades da fé podem ser contrárias aosprincípios da razão?

c) Qual é a hierarquia que se estabelece entrefé e razão?

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Texto complementar

As verdades da razão natural não contradizem as verdades da fé cristã

Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por issoos princípios inatos naturalmente à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrenatural.

É um fato que esses princípios naturalmente inatos à razão humana são absolutamente verda-deiros; são tão verdadeiros, que chega a ser impossível pensar que possam ser falsos. Tampouco épermitido considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus confirmou de maneira tão evidente.Já que só o falso constitui o contrário do verdadeiro, como se conclui claramente da definição dosdois conceitos, é impossível que a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão humanaconhece em virtude das suas forças naturais.

(...) Deus não pode infundir no homem opiniões ou uma fé que vão contra os dados do conhe-cimento adquirido pela razão natural.

É isto que faz o apóstolo São Paulo escrever, na Epístola aos Romanos: "A palavra está bemperto de ti, em teu coração e em teus lábios, ouve: a palavra da fé, que nós pregamos" (Romanos,capítulo 10, versículo 8). Todavia, já que a palavra de Deus ultrapassa o entendimento, alguns acre-ditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode ocorrer.

Também a autoridade de Santo Agostinho o confirma. No segundo livro da obra Sobre o Gêne-se comentado ao pé da letra, o Santo afirma o seguinte: "Aquilo que a verdade descobrir não podecontrariar aos livros sagrados, quer do Antigo quer do Novo Testamento".

Do exposto se infere o seguinte: quaisquer que sejam os argumentos que se aleguem contra a fécristã, não procedem retamente dos primeiros princípios inatos à natureza e conhecidos por si mes-mos. Por conseguinte, não possuem valor demonstrativo, não passando de razões de probabilidadeou sofismáticas. E não é difícil refutá-los.

(Santo Tomás de Aquino, Súmula contra os gentios, Os pensadores, São Paulo, Abril Cultu-ral, 1973, p. 70.)

TERCEIRA PARTE — Teoria do conhecimento na IdadeModerna e Contemporânea

1. Racionalismo e empirismo

Primeiramente, considero haver em nós cer-tas noções primitivas, as quais são como originais,sob cujo padrão formamos todos os nossos outrosconhecimentos.

(Descartes)

De onde apreende todos os materiais da ra-zão e do conhecimento? A isso respondo, numapalavra, da experiência.

(Locke)

... penso não haver mais dúvida que não háprincípios práticos com os quais todos os homensconcordam e, portanto, nenhum é inato.

(Locke)

O século XVII representa, na históriado homem, a culminação de um processo emque se subverteu a imagem que ele tinha desi próprio e do mundo. A emergência da novaclasse dos burgueses determina a produçãode uma nova realidade cultural, a ciência fí-sica, que se exprime matematicamente. A ati-vidade filosófica, a partir daí, reinicia umnovo trajeto: ela se desdobra como uma re-flexão cujo pano de fundo é a existência des-sa ciência.

A revolução científica determinou a que-bra do modelo de inteligibilidade apresentadopelo aristotelismo, o que provocou, nos novos

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pensadores, o receio de enganar-se novamente(ver Capítulo 13 — A ciência medieval).

A procura da maneira de evitar o errofaz surgir a principal característica do pensa-mento moderno: a questão do método.

Essa preocupação centraliza as refle-xões não apenas no conhecimento do ser (me-tafísica), mas sobretudo no problema do co-nhecimento (teoria do conhecimento ou epis-temologia).

Podemos dizer que até então a filosofiatem uma atitude realista, no sentido de nãocolocar em questão a existência do objeto, arealidade do mundo. A Idade Moderna inver-te o pólo de atenção, centralizando no sujeitoa questão do conhecimento.

Como já vimos, se o pensamento que osujeito tem do objeto concorda com o objeto,dá-se o conhecimento. Mas qual é o critériopara se ter certeza de que o pensamento con-corda com o objeto? Isto é, "um dos proble-mas que a teoria do conhecimento terá quepropor e solucionar é aquele de saber quaissão os critérios, as maneiras, os métodos deque se pode valer o homem para ver se umconhecimento é ou não verdadeiro"4.

As soluções apresentadas a essas ques-tões vão originar duas correntes, o racionalis-mo e o empirismo, como veremos a seguir.

O racionalismo cartesiano

René Descartes (1596-1650), cujo nomelatino era Cartesius (daí seu pensamento ser co-nhecido como "cartesiano"), é considerado o"pai da filosofia moderna". Dentre suas obras,o Discurso do método e Meditações metafísi-cas expressam a tendência de preocupação como problema do conhecimento a que já nos refe-rimos. O ponto de partida é a busca de uma ver-dade primeira que não possa ser posta em dú-vida. Por isso, converte a dúvida em método.Começa duvidando de tudo, das afirmações dosenso comum, dos argumentos da autoridade,do testemunho dos sentidos, das informaçõesda consciência, das verdades deduzidas peloraciocínio, da realidade do mundo exterior e darealidade de seu próprio corpo.

O cogito

Descartes só interrompe essa cadeia dedúvidas diante do seu próprio ser que duvida. Seduvido, penso; se penso, existo: "Cogito, ergosum", "Penso, logo existo". Eis aí o fundamen-to, o ponto de partida para a construção de todoo seu pensamento. Mas este "eu" cartesiano épuro pensamento, uma res cogitans (um serpensante), pois, no caminho da dúvida, a reali-dade do corpo (res extensa, coisa externa, mate-rial) foi colocada em questão.

Não pretendemos fazer compreender atrajetória de Descartes, pois todo resumo éabstrato e mutilador. Mas o relato que se se-gue deve ser acompanhado pelo leitor com aestrita preocupação de observar como o autorconstrói o racionalismo, priorizando o sujei-to, não o objeto.

A partir dessa intuição5 primeira (a exis-tência do ser que pensa), que é indubitável,Descartes distingue os diversos tipos deidéias, percebendo que algumas são duvido-sas e confusas e outras são claras e distintas.

As idéias claras e distintas são idéiasgerais que não derivam do particular, mas jáse encontram no espírito, como instrumentosde fundamentação para a apreensão de outrasverdades. São as idéias inatas, que não estãosujeitas a erro pois vêm da razão, independen-tes das idéias que "vêm de fora", formadaspela ação dos sentidos, e das outras que nósformamos pela imaginação. São inatas, não nosentido de o homem já nascer com elas, mascomo resultantes exclusivas da capacidade depensar. São idéias verdadeiras. Nessa classeestão a idéia da substância infinita de Deus e aidéia da substância finita, com seus dois gran-des grupos — a res cogitans e a res extensa.

Embora o conceito de idéias claras e dis-tintas resolva alguns problemas com relação àverdade de parte do nosso conhecimento, nãodá nenhuma garantia de que o objeto pensadocorresponda a uma realidade fora do pensa-mento. Como sair do próprio pensamento erecuperar o mundo?

4 M. Garcia Morente, Fundamentos de filosofia; lições preliminares, p. 146.5 "Por intuição entendo não o testemunho mutável dos sentidos ou o juízo falaz (enganoso) de uma imaginação que

compõe mal o seu objeto, mas a concepção de um espírito puro e atento, tão fácil e distinta, que nenhuma dúvida resta sobreo que compreendemos." (Descartes)

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Deus

Para isso, Descartes lança mão, entreoutras provas, da famosa prova ontológica daexistência de Deus. O pensamento deste obje-to — Deus — é a idéia de um ser perfeito; seum ser é perfeito, deve ter a perfeição da exis-tência, senão lhe faltaria algo para ser perfei-to. Portanto, ele existe.

Conseqüências do cogito

Cristina cercada de sábios (detalhe), deDumesnil. O filósofo francês Descartes viajoupor vários países europeus, tendo morado mui-to tempo na Holanda. Convidado para a corte darainha Cristina, não suportou o inverno da Sué-cia, onde morreu em 1650.

O mundo

Se Deus existe e é infinitamente perfei-to, não me engana. A existência de Deus égarantia de que os objetos pensados por idéiasclaras e distintas são reais. Portanto, o mundotem realidade. E dentre as coisas do mundo, omeu próprio corpo existe. O que caracteriza anatureza do mundo é a matéria e o movimen-to (res extensa), em oposição à natureza espi-ritual do pensamento (res cogitam).

Podemos perceber, nesse rápido relato,uma tendência forte e absoluta de valorizaçãoda razão, do entendimento, do intelecto.

Estabelece-se o caráter originário do co-gito como autoevidência do sujeito pensantee princípio de todas as evidências.

Acentua-se o caráter absoluto e univer-sal da razão que, partindo do cogito, só comsuas próprias forças pode chegar a descobrirtodas as verdades possíveis. Daí a importânciade um método de pensamento que garanta queas imagens mentais, ou representações da ra-zão, correspondam aos objetos a que se refe-rem e que são exteriores a essa mesma razão.

A partir do século XVII, passa-se a bus-car o ideal matemático, isto é, ser uma mathe-sis universalis (matemática universal). Issonão significa aplicar a matemática no conhe-cimento do mundo, mas usar o seu tipo de co-nhecimento, que é completo, inteiramente do-minado pela inteligência e baseado na ordeme na medida, permitindo estabelecer cadeiasde razões.

Outra conseqüência é o dualismo psico-físico (ou dicotomia corpo-consciência), se-gundo o qual o homem é um ser duplo, com-posto de uma substância pensante e uma subs-tância extensa. A conciliação das duas subs-tâncias dificulta a reflexão de Descartes e geraantagonismos que serão objeto de debates nosdois séculos subseqüentes. Isso porque o cor-po é uma realidade física e fisiológica e, comotal, possui massa, extensão no espaço e movi-mento, bem como desenvolve atividades dealimentação, digestão etc, estando, portanto,sujeito às leis deterministas da natureza. Poroutro lado, os fenômenos mentais não têm ex-tensão no espaço nem localização. As princi-pais atividades da mente são recordar, racio-cinar, conhecer e querer; portanto, não se sub-metem às leis físicas, mas são o lugar da li-berdade.

Estabelecem-se, então, dois domíniosdiferentes: o corpo, objeto de estudo da ciên-cia, e a mente, pbjeto apenas da reflexão filo-sófica. Essa distinção, como veremos, marca-rá as dificuldades do, início das chamadasciências humanas (ver Capítulo 16 — Asciências humanas).

O empirismo inglês

A palavra empirismo vem do gregoempeiria, que significa "experiência". Oempirismo, ao contrário do racionalismo,

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enfatiza o papel da experiência sensível noprocesso do conhecimento.

Francis Bacon

Francis Bacon (1561-1626), seguindo atradição empirista inglesa que remonta aRoger Bacon (séc. XIII), realça a significaçãohistórica da ciência e do papel que ela poderiadesempenhar na vida da humanidade. Seulema "saber é poder" mostra como ele procu-ra, bem no espírito da nova ciência, não umsaber contemplativo e desinteressado, que nãotenha um fim em si, mas um saber instrumen-tal, que possibilite a dominação da natureza.Começa o ideal prometéico6 da ciência.

Daí o interesse pelo método da ciência.Na obra Novum Organum {Novo órgão, nosentido de instrumento de pensamento),Bacon critica a lógica aristotélica, opondo aoideal dedutivista a eficiência da indução comométodo de descoberta.

Inicia pela denúncia dos preconceitos enoções falsas que dificultam a apreensão darealidade, aos quais chama de ídolos7.

Os ídolos da tribo "estão fundados na pró-pria natureza humana, na própria tribo ou espé-cie humana. (...) Todas as percepções, tanto dossentidos como da mente, guardam analogia coma natureza humana e não com o universo". Issosignifica que muitos dos nossos enganos deri-vam da tendência ao antropomorfismo.

Os ídolos da caverna "são os dos homensenquanto indivíduos. Pois, cada um — além dasaberrações próprias da natureza em geral — temuma caverna ou uma cova que intercepta e cor-rompe a luz da natureza; seja devido à naturezaprópria singular de cada um; seja devido à edu-cação ou conversação com os outros".

Os ídolos do foro são os provenientes,de certa forma, das relações estabelecidas en-tre os homens devido ao comércio. "Com efei-to, os homens se associam graças ao discurso,e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E aspalavras, impostas de maneira imprópria einepta, bloqueiam espantosamente o intelec-to. (...) E os homens são, assim, arrastados ainúmeras e inúteis controvérsias e fantasias."

Os ídolos do teatro são os "ídolos queimigraram para o espírito dos homens pormeio das diversas doutrinas filosóficas e tam-bém pelas regras viciosas da demonstração.(...) Ademais, não pensamos apenas nos siste-mas filosóficos, na sua universalidade, mastambém nos numerosos princípios e axiomasdas ciências que entraram em vigor, mercê datradição, da credulidade e da negligência".

Francis Bacon desenvolve um estudopermenorizado da indução a partir do caráterestéril do silogismo e insiste na necessidadeda experiência e da investigação segundo mé-todos precisos.

Suas falhas estão em não ter construídoum sistema completo, e seus exemplos deindução são menos exatos que o métodoindutivo-dedutivo de Galileu. Além disso, afísica de Bacon permanece nas qualidades cor-porais, não recorrendo à matemática, méritoque coube também, e sobretudo, a Galileu.

John Locke

John Locke (1632-1704) tornou-se co-nhecido pela contribuição como teórico do li-beralismo, como veremos no Capítulo 22 (Opensamento liberal). Sua reflexão a respeitoda teoria do conhecimento parte da leitura daobra de Descartes e consiste em saber "qual éa essência, qual a origem, qual o alcance doconhecimento humano".

Entretanto, na obra Ensaio sobre o en-tendimento humano, Locke deixa o caminho"lógico" percorrido por Descartes e escolhe o"psicológico". O professor Garcia Morenteexplica: "A origem de uma idéia, como a idéiade esfera, pode ser considerada psicologica-mente ou logicamente. Psicologicamente es-tudaremos as sensações, as percepções quepuderam produzir naturalmente, biologica-mente, em nós, a noção de esfera; por exem-plo, ter visto objetos dessa forma, naturais ouartificiais. Mas outro sentido da palavra ori-gem é considerar a esfera como originada pelomovimento de meia circunferência girando aoredor do diâmetro"8.

6 Prometéico: relativo a Prometeu, figura da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens.Simboliza o advento da técnica.

7 As citações que se seguem são de Francis Bacon, Novum Organum, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural,1973, p. 27-29.

8 M. Garcia Morente, Fundamentos de filosofia; lições preliminares, p. 177.

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Locke, escolhendo o caminho da psico-logia, distingue duas fontes possíveis paranossas idéias: a sensação e a reflexão. A sen-sação é o resultado da modificação feita namente através dos sentidos. A reflexão é a per-cepção que a alma tem daquilo que nela ocor-re. Portanto, a reflexão se reduz apenas à ex-periência interna do resultado da experiênciaexterna produzida pela sensação.

O que ocasiona a produção de uma idéiasimples na mente é a "qualidade" do objeto.Há qualidades primárias, como a solidez, aextensão, a configuração, o movimento, o re-pouso e o número, e qualidades secundárias(cor, som, odor, sabor etc), que provocam nosujeito determinadas percepções sensíveis.Enquanto as primárias são objetivas, poisrealmente existem nas coisas, as secundáriasvariam de sujeito para sujeito e, como tais, sãorelativas e subjetivas.

O sujeito, através da análise, ata e desa-ta as idéias simples, produzindo as idéiascomplexas. Estas, já que são formadas pelointelecto, não têm validade objetiva. São no-mes de que nos servimos para denominar eordenar as coisas. Daí o seu valor prático, enão, cognitivo. Se estabelecermos uma com-paração com o processo cartesiano de conhe-cimento, podemos dizer que, enquanto Des-cartes enfatiza o papel do sujeito, Lockeenfatiza o papel do objeto.

Locke critica as idéias inatas de Descar-tes, afirmando que a alma é como uma tabularasa (uma tábua onde não há inscrições),como uma cera onde não houvesse qualquerimpressão, e o conhecimento só começa apósa experiência sensível. Se houvesse idéias ina-tas, as crianças já as teriam; além disso, a idéiade Deus não se encontra em toda parte, poishá povos sem nenhuma representação de Deusou, pelo menos, sem a representação de umser perfeito.

David Hume

David Hume (1711-1776), filósofo es-cocês, leva mais adiante o empirismo deFrancis Bacon e Locke. Partindo do princí-pio de que só os fenômenos são observáveise de que o mecanismo íntimo do real não é

passível de experiência, afirma que as rela-ções são exteriores aos seus termos, ou seja,se não são observáveis, não podem pertenceraos objetos. As relações são simples modosque o homem tem de passar de um objeto aoutro, de um termo a outro, de uma idéia par-ticular a outra. São apenas passagens externasque nos permitem associar os termos a partirdos princípios de causalidade, semelhança econtigüidade.

Assim, Hume nega a validade univer-sal do princípio de causalidade e da noção denecessidade a ele associada. Para Hume, oque observamos é a sucessão de fatos ou aseqüência de eventos, e não o nexo causaientre esses mesmos fatos ou eventos. O quenos faz ultrapassar o dado e afirmar mais doque pode ser alcançado pela experiência é ohábito criado através da observação de casossemelhantes. A partir deles, imaginamos queo fato atual se comportará de forma análoga.

A única base para as idéias ditas gerais,portanto, é a crença, que, do ponto de vista doentendimento, faz uma extensão ilegítima doconceito.

Conclusão

Vimos que, no século XVII, a partir dosproblemas gnosiológicos (relativos ao co-nhecimento), surgem duas correntes opostas:o racionalismo e o empirismo. Exagerando,poderíamos dizer que o racionalismo é o sis-tema que consiste em limitar o homem aoâmbito da própria razão, e o empirismo é oque o limita ao âmbito da experiência sensí-vel. Isso não quer dizer que o racionalismoexclua a experiência sensível, mas esta é ape-nas a ocasião do conhecimento e está sujeitaa enganos. A verdadeira ciência se perfaz noespírito. Para o empirismo, ao contrário, aexperiência é fundamental, e o trabalho pos-terior da razão está a ela subordinado. Comoconseqüência, os racionalistas confiam nacapacidade do homem de atingir verdadesuniversais, eternas, enquanto os empiristasterminam por questionar o caráter absolutoda verdade, já que o conhecimento parte deuma realidade infieri (isto é, em transforma-ção constante), sendo tudo relativo ao espa-ço, ao tempo, ao humano.

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Exercícios

1. Levante as características do racionalismocartesiano.

2. Levante as características do empirismo.

3. Para Locke, de onde vêm as idéias simples?E as complexas?

4. Qual o papel da crença para Hume?

5. Leia os textos complementares I a IV eaponte os elementos que os enquadrem ou no ra-cionalismo ou no empirismo.

6. Leia o texto 1 de Descartes, e enumere asetapas de seu método, explicando-as.

7. A partir da leitura do texto 2 de Descartes,explique por que ele elege a dúvida como método ecomo chega à intuição da primeira idéia indubitável.

8. A partir da leitura dos textos de Locke, ex-plique como se dá o conhecimento.

9. Com base no Capítulo 4 (Conhecimento,linguagem, pensamento), discuta o que são os "ído-los do foro".

Textos complementares

I

Francis Bacon

1Nosso método, contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no

estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte doscasos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a novae certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis.

2

A melhor demonstração é, de longe, a experiência, desde que se atenha rigorosamente ao expe-rimento.

(Francis Bacon, Novum Organum, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 11 e 44.)

II

Descartes

1Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da filosofia, a lógica, e, entre as

matemáticas, a análise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contri-buir com algo para o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à lógica, os seussilogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas quejá se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem julgamento, daquelas que se ignoram,do que para aprendê-las. E embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verda-deiros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos, ou supér-fluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco demármore que nem sequer está esboçado. Depois, com respeito à análise dos antigos e à álgebra dosmodernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhumuso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras, que não pode exercitar oentendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certasregras e certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugarde uma ciência que o cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que,

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compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a multidão de leisfornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendoembora muito poucas, são estritamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitosde que se compõe a lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firmee constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los.

O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesseevidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nadaincluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eunão tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelasquantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.

O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples emais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos maiscompostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eutivesse a certeza de nada omitir.

2

Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas etão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possajulgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido afalar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opi-niões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima;mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessárioagir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imagi-nar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosseinteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor quenão havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que seequivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de geometria, e cometem aíparalogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todasas razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmospensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem quehaja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que atéentão haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos.Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumprianecessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso,logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos nãoseriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio dafilosofia que procurava.

(Descartes, Discurso do método, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 41 e 54.)

3

Primeiramente, considero haver em nós certas noções primitivas, as quais são como originais,sob cujo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos. E não há senão muito poucasdessas noções; pois, após as mais gerais, do ser, do número, da duração etc, que convém a tudoquanto possamos conceber, possuímos, em relação ao corpo em particular, apenas a noção da exten-são, da qual decorrem as da figura e do movimento; e, quanto à alma somente, temos apenas a dopensamento, em que se acham compreendidas as percepções do entendimento e as inclinações davontade; enfim, quanto à alma e ao corpo em conjunto, temos apenas a de sua união, da qual dependea noção da força de que dispõe a alma para mover o corpo, e o corpo para atuar sobre a alma,causando seus sentimentos e suas paixões.

(Descartes, Carta a Elisabeth, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 309.)

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IIILocke

Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos que a mente é, como dissemos,um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida?De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nelacom uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimen-to? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, edela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis ex-ternos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refleti-das, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessasduas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos.

(15) Os passos pelos quais a mente alcança várias verdades. Os sentidos inicialmente tratamcom idéias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamentecom algumas delas, depositando-as na memória e designando-as por nomes. Mais tarde, a mente,prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais.Por este meio, a mente vai se enriquecendo com idéias e linguagem, materiais com que exercita suafaculdade discursiva. E o uso da razão torna-se diariamente mais visível, ampliando-se em virtudedo emprego desses materiais. Embora a posse de idéias gerais, o uso de palavras gerais e a razãogeralmente cresçam juntos, não vejo como isto possa de algum modo prová-las inatas. Concordoque o conhecimento de algumas verdades aparece bem cedo na mente, mas de modo tal que mostraque não são inatas. Pois, se observarmos, descobriremos que isto continua também com as idéiasnão-inatas, mas adquiridas, sendo aquelas primeiras impressas por coisas externas, com as quais ascrianças se deparam bem cedo, ocasionando as mais freqüentes impressões em seus sentidos. Nasidéias assim apreendidas, a mente descobre que algumas concordam e outras diferem, provavelmentetão logo tenha uso da memória, tão logo seja capaz de reter e receber idéias distintas. Mas, quer istoseja ou não existente naquele instante, uma coisa é certa: existe muito antes do uso de palavras, ouchega antes do que ordinariamente denominamos "o uso da razão". Pois uma criança sabe como certo,antes de poder falar, a diferença entre as idéias de doce e amargo (isto é, que o doce não é amargo),como sabe depois (quando começa a falar) que a amargura e a doçura não são a mesma coisa.

(Locke, Ensaio acerca do entendimento humano, Col. Os pensadores, p. 165 e 154.)

IVHume

35. Suponha-se que uma pessoa, embora dotada das mais vigorosas faculdades de razão ereflexão, seja trazida repentinamente a este mundo. É certo que tal pessoa observaria de imediatouma sucessão contínua de objetos e um fato sucedendo-se a outro; não seria porém capaz de desco-brir nada mais. A princípio, não haveria raciocínio que a conduzisse à idéia de causa e efeito, já queos poderes particulares graças aos quais se realizam todas as operações naturais não se manifestamaos sentidos; nem é razoável concluir, simplesmente porque um acontecimento em determinadocaso precede um outro, que o primeiro é a causa e o segundo é o efeito. A conjunção dos dois podeser arbitrária e casual. Talvez não haja razão para inferir a existência de um do aparecimento dooutro. Numa palavra: sem mais experiências, tal pessoa não poderia fazer uso de conjetura ou deraciocínio a respeito de qualquer questão de fato ou ter certeza de qualquer coisa além do que esti-vesse imediatamente presente à sua memória e aos seus sentidos.

Suponha-se, agora, que esse homem adquiriu mais experiência e viveu no mundo o temposuficiente para ter observado uma conjunção constante entre objetos ou acontecimentos familiares:qual é o resultado dessa experiência? Ele infere imediatamente a existência de um objeto do apareci-

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mento do outro. E, sem embargo, nem toda a sua experiência lhe deu qualquer idéia ou conhecimen-to do poder secreto pelo qual um objeto produz o outro; e tampouco é levado a fazer essa inferênciapor qualquer processo de raciocínio. No entanto, é levado a fazê-la; e, ainda que esteja convencidode que o seu raciocínio nada tem que ver com essa operação, persiste na mesma linha de pensamen-to. Há algum outro princípio que o determina a tirar essa conclusão.

36. Esse princípio é o costume ou hábito. Com efeito, sempre que a repetição de algum ato ouoperação particular produz uma propensão de renovar o mesmo ato ou operação sem que sejamosimpelidos por qualquer raciocínio ou processo do entendimento, dizemos que essa propensão é umefeito do hábito. Ao empregar esta palavra, não pretendemos dar a razão primária de uma tal propen-são. Limitamo-nos a apontar um princípio da natureza humana, que é universalmente admitido ebem conhecido pelos seus efeitos. Talvez não seja possível levar mais avante as nossas indagaçõesou pretender indicar a causa dessa causa; talvez devamos contentar-nos com ela como o princípiobásico deduzido de todas as nossas conclusões da experiência. Demo-nos por satisfeitos em ter che-gado até aí e não nos queixemos da estreiteza de nossas faculdades, que não nos podem levar maislonge. E é certo que aqui avançamos uma proposição muito inteligível, pelo menos, se não verdadei-ra, ao afirmar que após a conjunção constante de dois objetos — por exemplo, calor e chama, peso esolidez — somos levados tão somente pelo costume a esperar, após um deles, o aparecimento dooutro. Esta hipótese parece ser, mesmo, a única que resolve a dificuldade: por que tiramos de milexemplos uma inferência que não podemos tirar de um só exemplo, a todos os respeitos igual aosoutros? A razão é incapaz de variar desse modo. As conclusões que tira da consideração de umcírculo são as mesmas que tiraria da observação de todos os círculos do universo. Mas ninguém, aover um único corpo mover-se depois de ser impelido por outro, poderia inferir que todos os corpos semoverão sob um impulso semelhante. Todas as inferências derivadas da experiência, por conseguin-te, são efeitos do costume e não do raciocínio.

O hábito é, pois, o grande guia da vida humana. E aquele princípio único que faz com quenossa experiência nos seja útil e nos leve a esperar, no futuro, uma seqüência de acontecimentossemelhante às que se verificaram no passado. Sem a ação do hábito, ignoraríamos completamentetoda questão de fato além do que está imediatamente presente à memória ou aos sentidos. Jamaissaberíamos como adequar os meios aos fins ou como utilizar os nossos poderes naturais na produçãode um efeito qualquer. Seria o fim imediato de toda ação, assim como da maior parte da especulação.

(David Hume, Investigação sobre o entendimento humano, Col. Os pensadores, São Paulo,Abril Cultural, 1973, p. 145-146.)

2. Criticismo kantiano

O mais nobre assunto de estudo para o ho-mem é o homem.

(Lessing)

A Ilustração

O século XVIII é conhecido comoIluminismo, Século das Luzes, Ilustração ouAufklãrung. Como as próprias designaçõessugerem, trata-se do otimismo no poder da ra-zão de reorganizar o mundo humano.

Vimos que, já no Renascimento, se de-senrola a luta contra o princípio da autoridadee a busca dos próprios poderes humanos, pe-

los quais o homem tecerá ele próprio a tramado seu destino.

O racionalismo e o empirismo do sécu-lo XVII (Descartes, Locke e Hume) dão osubstrato filosófico dessa reflexão: Descartesjustifica o poder da razão de perceber o mun-do através de idéias claras e distintas; Lockevaloriza os sentidos e a experiência na elabo-ração do conhecimento; Hume levanta o pro-blema da exterioridade das relações frente aostermos.

"Filha emancipada do cartesianismo, afilosofia do Iluminismo deve a Descartes — ea Malebranche — o gosto do raciocínio, a

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busca da evidência intelectual, e sobretudo aaudácia de exercer livremente seu juízo e delevar a toda parte o espírito da dúvida metódi-ca. 'Sou, logo penso'9 seria de algum modo ocogito do filósofo do Iluminismo, bem próxi-mo do cogito cartesiano."10

Outra influência importante foi o adven-to da ciência galileana no século XVII, cujométodo experimental fecundou outros camposde pesquisa, fazendo nascer novas ciências.Como essa ciência é aliada da técnica, faz sur-gir o modelo de um novo homem, o homemconstrutor, o artífice do futuro, que não maisse contenta em contemplar a harmonia da na-tureza, mas quer conhecê-la para dominá-la.

E é uma natureza dessacralizada, isto é,desvinculada da religião, que reaparece emtodos os campos de discussão do homem noséculo XVIII.

Tornando-se livre de qualquer tutela, sa-bendo-se capaz de procurar soluções para seusproblemas com base em princípios racionais, ohomem estende o uso da razão a todos os do-mínios: político, econômico, moral e religioso(ver Capítulo 22 — O que é liberalismo).

A exaltação do poder do homem decor-re, segundo Desné, do fato de que "a seguran-ça do filósofo é a segurança do burguês quedeve à sua inteligência, ao seu espírito de ini-ciativa e de previdência, o lugar que tem nasociedade (...) A emancipação do homem, naqual Kant vê o traço distintivo do Iluminis-mo, é a emancipação de uma classe, a burgue-sia, que atinge sua maioridade"".

Nesse momento se dá o fortalecimentodo sistema capitalista como modo de produ-ção predominante, o que se exemplifica pelaRevolução Industrial, marcada pelo apareci-mento da máquina a vapor em meados do sé-culo XVIII, e que introduz o processo de me-canização das indústrias.

De fato, o século XVIII é o século dasrevoluções burguesas: ainda no final do ante-rior, em 1688, a Revolução Gloriosa na Ingla-terra destrona os Stuart absolutistas e, em1789, os Bourbon são depostos com a Revo-lução Francesa. Ecos desses acontecimentoschegam ao Novo Mundo, em movimentos deemancipação como a Independência dos Es-

tados Unidos (1776), a Inconfidência Mineira(1789) e a Conjuração Baiana (1798).

Na Inglaterra, os representantes da Ilus-tração são sobretudo Newton e Reid, herdei-ros de Locke e Hume.

Na França, surgem Montesquieu,Voltaire, Rousseau. O poder de penetração daIlustração na França se deve, sobretudo, aocaráter vulgarizador da produção de seus filó-sofos, empenhados em "levar as luzes" a to-dos os homens. Importante nesse processo é apublicação da Enciclopédia, obra imensacujos verbetes são confiados a diversos auto-res: Voltaire, D'Alembert, Diderot, Helvetius.

Na Alemanha, o movimento é conheci-do como Aufklãrung. É importante acentuar aespecificidade desse "país", já que não pode-mos falar em autonomia nacional, pois a Ale-manha não passa, naquele momento, de umagregado de Estados que têm em comum ape-nas a língua. (A unificação alemã só ocorreráno século XIX.) A economia feudal ainda pre-dominante mantém o povo miserável e impe-de a ascensão da burguesia rica e esclarecida.Além disso, a Alemanha se acha extenuadapela Guerra dos Trinta Anos. Só na segundametade do século XVIII começam a aparecersinais da emancipação intelectual, sobretudona produção literária (Lessing, Herder, Goethe,Schiller) e musical (os descendentes de Bach— Carl Philipp e Johann C. —, Haendel,Haydn, Mozart, Schubert, Beethoven).

Na filosofia alemã, as expressões maio-res são: Wolff, Lessing e Baumgarten. Mas foiKant o filósofo por excelência desse período,criando uma obra sistemática cuja influênciamarcará a filosofia posterior.

O criticismo kantiano

Imínanuel Kant (1724-1804) nasceu naAlemanha. Interessado desde o início pelaciência newtoniana, já constituída plenamenteno seu tempo, e preocupado com a confusãoconceituai a respeito do debate sobre a nature-za do nosso conhecimento, Kant questiona, nasua obra Crítica da razão pura, se é possíveluma "razão pura" independente da experiência.Daí seu método ser conhecido como criticismo.

Observe que o autor da citação inverte a máxima de Descartes "Penso, logo existo".10 Desné, apud F. Châtelet, História da filosofia; idéias; doutrinas, v. 4, p. 75.11 Desné, apud F. Châtelet, História da filosofia; idéias, doutrinas, v. 4, p. 74.

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Diante da questão "Qual é o verdadeirovalor dos nossos conhecimentos e o que é co-nhecimento?", Kant coloca a razão num tri-bunal para julgar o que pode ser conhecidolegitimamente e que tipo de conhecimentonão tem fundamento. Com isso pretende su-perar a dicotomia racionalismo-empirismo.

Condena os empiristas (tudo que conhe-cemos vem dos sentidos) e, da mesma forma,não concorda com os racionalistas (é erradojulgar que tudo quanto pensamos vem de nós):o conhecimento deve constar de juízos univer-sais, da mesma maneira que deriva da expe-riência sensível.

Para superar essa contradição, Kant ex-plica que o conhecimento é constituído dematéria & forma. A matéria dos nossos conhe-cimentos são as próprias coisas, e a forma so-mos nós mesmos.

Exemplificando: para conhecer as coi-sas, precisamos ter delas uma experiência sen-sível; mas essa experiência não será nada senão for organizada por formas da nossa sensi-bilidade, as quais são a priori, ou seja, ante-riores a qualquer experiência (e condição daprópria experiência...). Assim, para conheceras coisas, temos de organizá-las a partir daforma a priori do tempo e do espaço. ParaKant, o tempo e o espaço não existem comorealidade externa, são antes formas que o su-jeito põe nas coisas.

Outro exemplo: quando observamos anatureza e afirmamos que uma coisa "é isto",ou "tal coisa é causa de outra", ou "isto exis-te", temos, de um lado, coisas que percebe-mos pelos sentidos, mas, de outro, algo esca-pa aos sentidos, isto é, as categorias de subs-tância, de causalidade, de existência (entreoutras). Essas categorias não são dadas pelaexperiência, mas são postas pelo próprio su-jeito cognoscente.

Portanto, "o nosso conhecimento expe-rimental é um composto do que recebemospor impressões e do que a nossa própria fa-culdade de conhecer de si mesma tira por oca-sião de tais impressões".

Kant também conclui que não é possí-vel conhecer as coisas tais como são em si, ouseja, o noumenon (a coisa-em-si) é inacessí-vel ao conhecimento. Apenas podemos co-nhecer os fenômenos; esta palavra, etimologi-camente, significa "o que aparece". A inova-ção de Kant consiste em afirmar que a reali-dade não é um dado exterior ao qual o intelec-

to deve se conformar, mas, ao contrário, omundo dos fenômenos só existe na medida emque "aparece" para nós e, portanto, de certaforma participamos da sua construção.

Prosseguindo a análise da possibilidadedo conhecimento, Kant se depara com dificul-dades insolúveis ao questionar sobre as reali-dades da metafísica, tais como a existência deDeus, a imortalidade da alma, a liberdade, ainfinitude do universo. Se você seguiu nossoraciocínio, lembrará que todo conhecimento,para Kant, é constituído pela forma a priorido espírito e pela matéria fornecida pela ex-periência sensível. Ora, os seres da metafísicanão podem preencher essa segunda exigência:não temos experiência sensível de Deus, porexemplo. Portanto, o conhecimento metafísi-co é impossível, e devemos nos abster de afir-mar ou negar qualquer coisa a respeito dessasrealidades. Trata-se de um agnosticismo (eti-mologicamente, a, "não", e gnosis, "conheci-mento"). Somos agnósticos quando conside-ramos a razão incapaz de afirmar ou negar aexistência de Deus. O agnosticismo não seconfunde com o ateísmo, pelo qual afirmamosa inexistência de Deus.

Entretanto, em outra obra, Crítica darazão prática, Kant tenta recuperar as reali-dades da metafísica que destruíra no processoanterior. Não pretendemos aqui acompanharseu raciocínio, mas apenas apontar as conclu-sões: pela análise da moralidade, Kant deduza liberdade humana, a imortalidade da alma ea existência de Deus.

O pensamento kantiano é conhecido comoidealismo transcendental. A expressão trans-cendental em Kant significa aquilo que é ante-rior a toda experiência: "Chamo transcendentaltodo conhecimento que trata, não tanto dos ob-jetos, como, de modo geral, de nossos conceitosa priori dos objetos". Mesmo fazendo a críticado racionalismo e do empirismo, Kant segue umprocesso que redunda em idealismo, pois, aindaque reconheça a experiência como fornecedorada matéria do conhecimento, é o nosso espírito,graças às estruturas a priori, que constrói a or-dem do universo.

Tal como Copérnico dissera que não é oSol que gira em torno da Terra, mas é esta quegira em torno daquele, também Kant afirmaque o conhecimento não é o reflexo do objetoexterior: é o próprio espírito que constrói o ob-jeto do seu saber. Nesse sentido, dizemos queKant realizou uma revolução copernicana.

1 1 3

Exercícios

1. O que são as formas a priori do conheci-mento?

2. Como Kant supera a dicotomia entre racio-nalismo e empirismo?

3. Por que, para Kant, a coisa em si é inaces-sível ao conhecimento?

4. Por que podemos dizer que o conhecimen-to é também uma construção do sujeito?

As questões 5 a 8 referem-se ao texto comple-mentar de Kant, "O que é a ilustração".

5. A partir do que leu sobre a Ilustração notexto base, explique o lema: "Tenha coragem deusar seu próprio entendimento".

6. Quem são os guardiões, hoje, que impedema humanidade de pensar por si?

7. Por que a passagem à maioridade é consi-derada difícil e perigosa?

8. Como a filosofia, como disciplina nas es-colas, pode ajudar nesse processo de saída da me-noridade intelectual?

Sugestão para dissertação

Atualmente, os meios de comunicação demassa ajudam o brasileiro a sair da menoridade in-telectual?

Sugestão para seminário

Faça um levantamento sobre o papel da cen-sura no Brasil no período da ditadura militar, de 64a 84. Comente seu papel a partir do lema "ousarsaber".

Texto complementar

O que é a ilustração

A ilustração [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprioresponsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de umoutro. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside não na falta deentendimento, mas na falta de resolução e coragem para usá-lo sem a condução de um outro. Sapereaude! "Tenha coragem de usar seu próprio entendimento!" — esse é o lema da ilustração.

Preguiça e covardia são as razões pelas quais uma tão grande parcela da humanidade permane-ce na menoridade mesmo depois que a natureza a liberou da condução externa (naturalitermaiorennes); e essas são também as razões pelas quais é tão fácil para outros manterem-se comoseus guardiões. É cômodo ser menor. Se tenho um livro que substitui meu entendimento, um diretorespiritual que tem uma consciência por mim, um médico que decide sobre a minha dieta e assim pordiante, não preciso me esforçar. Não preciso pensar, se puder pagar: outros prontamente assumirãopor mim o trabalho penoso.

Que a passagem à maioridade seja tida como muito difícil e perigosa pela maior parte da hu-manidade (e por todo o belo sexo) deve-se a que os guardiões de bom grado se encarregam da suatutela. Inicialmente os guardiões domesticam o seu gado, e certificam-se de que essas criaturas plá-cidas não ousarão dar um único passo sem seus cabrestos; em seguida, os guardiões lhes mostram operigo que as ameaça caso elas tentem marchar sozinhas. Na verdade, esse perigo não é tão grande.Após algumas quedas, as pessoas aprendem a andar sozinhas. Mas cair uma vez as intimida ecomumente as amedronta para as tentativas ulteriores.

É muito difícil para um indivíduo isolado libertar-se da sua menoridade quando ela tornou-sequase a sua natureza (...).

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Mas que o público se esclareça a si mesmo é muito perfeitamente possível; se lhe for assegura-da a liberdade, é quase certo que isso ocorra... Sempre haverá alguns pensadores independentes,mesmo entre os guardiões das grandes massas, que, depois de terem-se libertado da menoridade,disseminarão o espírito de reconhecimento racional tanto de sua própria dignidade quanto da voca-ção de todo homem para pensar por si mesmo. Mas note-se que o público, que de início foi reduzidoà tutela por seus guardiões, obriga-os a permanecer sob jugo, quando é estimulado a se rebelar porguardiões que, eles próprios, são incapazes de qualquer ilustração. Isso mostra quão nocivo é semearpreconceitos; mais tarde, voltam-se contra seus autores ou predecessores. Sendo assim, apenas len-tamente o público pode alcançar a ilustração. Talvez a destruição de um despotismo pessoal ou daopressão gananciosa ou tirânica possa ser realizada pela revolução, mas nunca uma verdadeira refor-ma nas maneiras de pensar. [Enquanto essa reforma não ocorre], novos preconceitos servirão, tãobem quanto os antigos, para atrelar as grandes massas não-pensantes.

Entretanto, nada além da liberdade é necessário à ilustração; na verdade, o que se requer é amais inofensiva de todas as coisas às quais esse termo pode ser aplicado, ou seja, a liberdade de fazeruso público da própria razão a respeito de tudo (...).

A pedra de toque para o estabelecimento do que devem ser as leis de um povo está em saber seo próprio povo poderia ter-se imposto as leis em questão (...).

O que o povo não pode decretar para si próprio muito menos pode ser decretado por um mo-narca, pois a autoridade legislativa deste último baseia-se em que ele une a vontade pública geral nasua própria. A ele incumbe zelar para que todas as melhorias, verdadeiras ou presumidas, sejamcompatíveis com a ordem civil; fazendo isso, ele pode deixar aos súditos que busquem eles próprioso que lhes parece necessário à salvação de suas almas.

(I. Kant, "O que é a ilustração". In Régis C. Andrade, Kant, a liberdade, o indivíduo e a repú-blica, in F. Weffort (org.), Os clássicos da política, v. 2, p. 83-85.)

3. A filosofia pós-kantiana (séc. XIX)

Todos os bons espíritos repetem, desdeBacon, que somente são reais os conhecimentosque repousam sobre fatos observados.

Ciência, logo previsão, logo ação.

(Comte)

A crítica feita por Kant à metafísica naCrítica da razão pura provocou o apareci-mento de duas linhas divergentes entre os fi-lósofos posteriores. De um lado, os materia-listas (Feuerbach) e os positivistas (Comte),sendo que estes reduzem o trabalho da filoso-fia à mera síntese dos resultados das diversasciências particulares, não cabendo ao filósofoteorizar sobre "idéias sem conteúdo". De ou-tro, os idealistas (Fichte, Schelling e Hegel),que levam às últimas conseqüências a capaci-dade que Kant atribuía à razão de impor for-mas a priori ao conteúdo dado pela experiên-

cia. Portanto, para os idealistas, a filosofia é oestudo dos processos pelos quais a realidadederiva dos princípios constitutivos do espíri-to: o mundo é o produto de um movimento dopensamento.

O positivismo

A Revolução Industrial no séculoXVIII, expressão do poder da burguesia emexpansão, demonstrou a eficácia do novo sa-ber inaugurado pela ciência moderna no sécu-lo anterior. Ciência e técnica tornam-se alia-das, provocando modificações no ambientehumano jamais suspeitadas. De fato, basta lem-brar que, antes do advento da máquina a vapor,usava-se a energia natural (força humana, daságuas, dos ventos, dos animais) e, por mais quehouvesse diferenças de técnicas adotadas pelos

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diversos povos através dos tempos, nunca hou-ve alterações tão cruciais como as que decorre-ram da Revolução Industrial.

A exaltação diante desse novo saber enovo poder leva à concepção do cientificismo,segundo o qual a ciência é considerada o úni-co conhecimento possível e o método dasciências da natureza o único válido, devendo,portanto, ser estendido a todos os campos daindagação e atividade humanas (ver Capítulo11 — O que é ciência). Nesse clima, desen-volve-se no século XIX o pensamentopositivista, que tem Auguste Comte (1798-1857) como principal representante.

Comte e a lei dos três estados

Para um rápido esboço do pensamentode Comte, vamos utilizar suas próprias pala-vras, como constam da primeira lição do Cur-so de filosofia positiva.

"Estudando, assim, o desenvolvimentototal da inteligência humana em suas diversasesferas de atividade, desde seu primeiro vôomais simples até nossos dias, creio ter desco-berto uma grande lei fundamental, a que sesujeita por uma necessidade invariável, e queme parece poder ser solidamente estabeleci-da, quer na base de provas racionais for-necidas pelo conhecimento de nossa organi-zação, quer na base de verificações históricasresultantes do exame atento do passado. Essalei consiste em que cada uma de nossas con-cepções principais, cada ramo de nossos co-nhecimentos, passa sucessivamente por trêsestados históricos diferentes: (...)

"No estado teológico, o espírito huma-no, dirigindo essencialmente suas investiga-ções para a natureza íntima dos seres, as cau-sas primeiras e finais de todos os efeitos que otocam, numa palavra, para os conhecimentosabsolutos, apresenta os fenômenos como pro-duzidos pela ação direta e contínua de agentessobrenaturais mais ou menos numerosos, cujaintervenção arbitrária explica todas as anoma-lias aparentes do universo.

"No estado metafísico, que no fundonada mais é do que simples modificação geraldo primeiro, os agentes sobrenaturais são

substituídos por forças abstratas, verdadeirasentidades (abstrações personificadas) ineren-tes aos diversos seres do mundo, e concebidascomo capazes de engendrar por elas própriastodos os fenômenos observados, cuja explica-ção consiste, então, em determinar para cadaum uma entidade correspondente.

"Enfim, no estado positivo, o espíritohumano, reconhecendo a impossibilidade deobter noções absolutas, renuncia a procurar aorigem e o destino do universo, a conhecer ascausas íntimas dos fenômenos, para preocu-par-se unicamente em descobrir, graças ao usobem combinado do raciocínio e da observa-ção, suas leis efetivas, a saber, suas relaçõesinvariáveis de sucessão e de similitude. A ex-plicação dos fatos, reduzida então a seus ter-mos reais, se resume de agora em diante naligação estabelecida entre os diversos fenôme-nos particulares e alguns fatos gerais, cujonúmero o progresso da ciência tende cada vezmais a diminuir.

"(...) Essa revolução geral do espíritohumano pode ser facilmente constatada hoje,duma maneira sensível embora indireta, con-siderando o desenvolvimento da inteligênciaindividual. (...) Ora, cada um de nós, contem-plando sua própria história, não se lembra deque foi sucessivamente, no que concerne àsnoções mais importantes, teólogo em sua in-fância, metafísico em sua juventude e físicoem sua virilidade?"12

Desse texto podemos constatar que, paraComte, o estado positivo corresponde à matu-ridade do espírito humano. O termo positivodesigna o real em oposição ao quimérico, acerteza em oposição à indecisão: o preciso emoposição ao vago. É o que se opõe a formasteológicas ou metafísicas de explicaçãodo mundo.

Assim, enquanto o primitivo poderiaexplicar, por exemplo, a queda dos corpospela ação dos deuses, o metafísico Aristótelesa explicaria pela essência dos corpos pesados,cuja natureza os faz tender para baixo, ondeseria o seu "lugar natural". Galileu, espíritopositivo, não indagaria o porquê, não procu-raria as causas primeiras e últimas, mas secontentaria em descrever como o fenômenoocorre.

2 Auguste Comte, Curso de filosofia positiva, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 9-11.

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Segundo Comte, "todos os bons espíri-tos repetem, desde Bacon, que somente sãoreais os conhecimentos que repousam sobrefatos observados".

O positivismo retoma, portanto, a linhadesenvolvida pelo empirismo do século XVII.Segue a esteira daqueles que aproveitaram acrítica feita por Kant à metafísica, no séculoXVIII. Leva às últimas conseqüências o papelreservado à razão de descobrir as relaçõesconstantes e necessárias entre os fenômenos,ou seja, as leis invariáveis que os regem. De-riva daí o determinismo, pelo qual o reino daciência é o reino da necessidade. Aqui o con-ceito de necessidade significa o que tem deser e não pode deixar de ser; nesse sentido,necessário opõe-se a contingente. No mundoda necessidade, não há lugar para a liberdade.

Expulsos os mitos, a religião, as crençasem geral e a metafísica, que papel é reservadoà filosofia? Cabe a ela a mera sistematizaçãodas ciências, a generalização dos mais impor-tantes resultados da física, da química, da his-tória natural. Segundo Garcia Morente, o po-sitivismo é o suicídio da filosofia...

A classificação das ciências e asociologia

Comte fez uma classificação das ciên-cias: matemática, astronomia, física, química,biologia e sociologia. O critério da classifica-ção vai da mais simples e abstrata, que é amatemática, até a mais complexa e concreta,que é a sociologia. E essa ordem não é apenaslógica, mas cronológica, pois foi nessa se-qüência que elas apareceram no tempo.

A sociologia foi considerada ciência porComte, que se diz seu fundador. Define-acomo uma física social, mas na verdade tomaos modelos da biologia e explica a sociedadecomo um organismo coletivo.

O indivíduo encontra-se submetido àconsciência coletiva; por isso tem pouca pos-sibilidade de intervenção nos fatos sociais. Aordem da sociedade é permanente, à imagemda invariável ordem natural.

A sociologia de Comte gira em torno denúcleos constantes, como a propriedade, a fa-

mília, o trabalho, a pátria, a religião. Exclui apreocupação com uma teoria do Estado e coma economia política.

A filosofia de Comte pode ser conside-rada como uma reação conservadora à Revo-lução Francesa (1789). Colocando-se no ca-minho contra-revolucionário, quer participarda reconstrução, instituindo a ordem de ma-neira soberana. E é essa idéia de ordem quedomina seu trabalho de sistematização da fi-losofia, levando-o à necessidade de classifi-car as ciências e todo o conhecimento em qua-dros fechados, estanques. (Observe que apalavra ordem significa ao mesmo tempo "ar-ranjo" e "mando".) É ele mesmo que afirma:"Nenhum grande progresso pode efetivamen-te se realizar se não tende finalmente para aevidente consolidação da ordem".

Segundo Verdenal, "a idéia de ordemestá ligada à idéia de hierarquia como sistemade subordinação rígida da parte ao todo, doinferior ao superior, do processo ao resultado,e isso dá a chave da famosa palavra de ordem:pelo progresso para a ordem".13

A história não é mais pensada como umvir-a-ser, mas como uma seqüência congeladade estados definitivos, e a evolução nada maisé do que a realização, no tempo, daquilo que jáexistia em forma embrionária e que se desen-volve até alcançar o seu ponto final. O seu con-ceito de ciência é o de um saber acabado, quese mostra sob a forma de resultados e receitas.

Tendo colocado a ciência positiva como oápice da vida e do conhecimento humanos,Comte prossegue estabelecendo uma série depostulados aos quais a ciência deve se conformar.O principal deles é que a ciência deve assegurara marcha normal e regular da sociedade indus-trial. Ora, ao fazer isso, Comte troca a teoria fi-losófica do conhecimento por uma ideologia.

Essa rígida construção teórica culminacom a concepção da religião positiva. É elaque, integrando a sociedade dos vivos na co-munidade dos mortos, na trindade formadapelo Grande Ser, pelo Grande Feitiço e peloGrande Meio, fornecerá o enquadramento so-cial que colocará os indivíduos ao abrigo dasconvulsões históricas.

Não deixa de ser estranho constatar acriação de uma religião positivista, se consi-

13 Verdenal, apud F. Châtelet, História da filosofia; idéias, doutrinas, v. 4, p. 205.

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derarmos que o contexto comtiano privilegiao positivo como última fase de uma evoluçãoiniciada pelo estado teológico, considerado omais arcaico e infantil da humanidade. Nessesentido, o professor Verdenal se pergunta: "Oexame da religião positiva põe-nos, mais uma

vez, diante das ambigüidades comtianas: tra-ta-se de uma racionalização do sagrado ou deuma sacralização do racional?"14.

A propósito de uma visão crítica do po-sitivismo, consulte o Capítulo 16 (As ciênciashumanas).

Exercícios

1. Mostre a ligação entre a filosofia empiristae o positivismo.

2. Caracterize cada um dos três estados: oteológico, o metafísico e o positivo.

3. Por que Comte identifica os estados teoló-gico, metafísico e positivo à infância, juventude eidade madura?

4. Por que Garcia Morente afirma que o "po-sitivismo é a morte da filosofia"?

5. Analise e justifique o dístico "Ordem eProgresso" da bandeira brasileira.

Proposta de seminário

Com base no Capítulo 5 (Ideologia), expliquepor que Comte troca a teoria filosófica do conheci-mento por uma ideologia.

4. O idealismo hegeliano

O homem tem de viver em dois mundos quese contradizem (...). O espírito afirma o seu direitoe a sua dignidade perante a anarquia e a brutali-dade da natureza à qual devolve a miséria e a vio-lência que ela o faz experimentar. Mas esta divi-são da vida e da consciência cria para a culturamoderna e para a sua compreensão a exigência deresolver uma tal contradição.

(Hegel)

Hegel, tomando como ponto de partidaa noção kantiana de que a consciência (ou su-jeito) interfere ativamente na construção darealidade, propõe o que se chama de filosofiado devir, ou seja, do ser como processo, comomovimento, como vir-a-ser. Desse ponto devista, o ser está em constante transformação,donde surge a necessidade de fundar umanova lógica que não parta do princípio deidentidade (estático), mas do princípio de con-tradição para dar conta da dinâmica do real.(Ver Segunda Parte do Capítulo 9 — Instru-mentos do conhecimento.)

A dialética ensina que todas as coisas eidéias morrem: essa força destruidora é tam-bém a força motriz do processo histórico. A

idéia central é a de que a morte é criadora, égeradora. Todo o ser contém em si mesmo ogerme da sua ruína e, portanto, da sua supera-ção. O movimento da dialética se faz em trêsetapas: tese, antítese e síntese (ou seja: afir-mação, negação e negação da negação).

A verdade, nesse caso, deixa de ser umfato para ser um resultado do desenvolvimen-to do Espírito. Vejamos como isso se opera.

O conhecimento estabelecido a partir deuma realidade dada, imediata, simples aparên-cia, é chamado por Hegel de conhecimentoabstrato, ao qual opõe o conhecimento do serreal, concreto, que consiste em descrever omodo como uma realidade é produzida. Conhe-cer a gênese, o processo de constituição pelasmediações contraditórias, é conhecer o real.

Hegel, ao explicar o movimento geradorda realidade, desenvolve uma dialética idealis-ta: no sistema hegeliano, a racionalidade não émais um modelo a se aplicar, "mas é o própriotecido do real e do pensamento". O mundo é amanifestação da Idéia, "o real é racional e o ra-cional é real". "A história universal nada maisé do que a manifestação da Razão."

14 Verdenal, apud F. Châtelet, História da filosofia; idéias, doutrinas, v. 5, p. 229.

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Como ponto de partida do devir, Hegelcoloca não a natureza — a matéria —, mas aIdéia pura (tese). Esta, para se desenvolver, criaum objeto oposto a si, a Natureza (antítese),que é a Idéia alienada, o mundo privado deconsciência. Da luta desses dois princípiosantitéticos nasce uma síntese, o Espírito, a umtempo pensamento e matéria, isto é, a Idéia quetoma consciência de si através da Natureza.

Por esse movimento a Razão passa portodos os graus, desde o da natureza inorgâni-ca, da natureza viva, da vida humana indivi-dual até a vida social.

Os dois últimos graus (do homem indi-vidual e social) são a manifestação, num pri-meiro momento, do Espírito subjetivo do ho-mem, ainda encerrado na sua subjetividade(enquanto emoção, desejo, imaginação). AoEspírito subjetivo se opõe a antítese do Espí-rito objetivo, ou seja, o espírito exterior dohomem enquanto expressão da vontade cole-

tiva por meio da moral, do direito, da política:o Espírito objetivo se realiza naquilo que sechama mundo da cultura. Essa relaçãoantitética é superada pelo Espírito absoluto,síntese final em que o Espírito, terminando oseu trabalho, compreende-o como realizaçãosua. A mais alta manifestação do Espírito ab-soluto é a filosofia, saber de todos os saberes,quando o Espírito atinge a absoluta autocons-ciência. Por isso, Hegel a chama de "pássarode Minerva que chega ao anoitecer", ou seja,a crítica filosófica se faz ao final do trabalhorealizado.

Assim, Hegel propõe um novo conceitode história: o presente é retomado como re-sultado de um longo e dramático processo; ahistória não é uma simples acumulação e jus-taposição de fatos acontecidos no tempo, masé um verdadeiro engendramento, um proces-so cujo motor interno é a contradição.

Exercícios

1. Em que consiste o conhecimento do serreal para Hegel?

2. Por que o pensamento hegeliano é idealista?

3. Explique a afirmação de Hegel: "o real éracional e o racional é real", fazendo relação com oIluminismo e o racionalismo.

4. Que novo conceito de história deriva dasidéias de Hegel?

5. Explique, a partir dos conceitos desenvol-vidos no texto, o que Hegel quer dizer na epígrafedo item 4.

5. O materialismo marxista

Não é a consciência dos homens que deter-mina o seu ser; é o seu ser social que, inversamen-te, determina a sua consciência.

(Marx)

Para Karl Marx (1818-1883) e FriedrichEngels (1820-1895) a teoria hegeliana do de-senvolvimento geral do espírito humano nãoconseguia explicar a vida social, que se apre-sentava, de um lado, como avanço técnico,como aumento do poder do homem sobre anatureza, como enriquecimento e como pro-

gresso; mas, de outro, e contraditoriamente,trazia a escravização crescente da classe ope-rária, cada vez mais empobrecida.

Dando seqüência às críticas feitas porFeuerbach ao idealismo hegeliano, Marx eEngels realizam a inversão desse mesmo idea-lismo, assentando as bases do materialismodialético: "a dialética de Hegel foi colocada coma cabeça para cima ou, dizendo melhor, ela, quese tinha apoiado exclusivamente sobre sua ca-beça, foi de novo reposta sobre seus pés"15.

15 F. Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, in Marx-Engels, Antologia filosófica, Lisboa,Editorial Estampa, 1971, p. 136.

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Materialismo dialético ematerialismo histórico

A teoria marxista compõe-se de umateoria científica, o materialismo histórico, ede uma filosofia, o materialismo dialético.

Para o materialismo, o mundo materialé anterior ao espírito e este deriva daquele.Trata-se de uma visão oposta ao idealismo,que considera o mundo material como aencarnação da "idéia absoluta" da "consciên-cia". Para os materialistas, a história da filo-sofia tem uma longa tradição idealista que estápressuposta até nas teorias em que o idealis-mo não transparece de imediato, como a teo-ria do Primeiro Motor Imóvel, com a qualAristóteles explica o movimento do mundo.

Dentro da visão materialista, o movi-mento é a propriedade fundamental da maté-ria e existe independentemente da consciên-cia. A matéria é um dado primário e é a fonteda consciência. A consciência é um dado se-cundário, derivado, pois é reflexo da matéria.

No entanto, é preciso distinguir o mate-rialismo marxista, que é dialético, do mate-rialismo anterior a ele, conhecido como mate-rialismo mecanicista ou "vulgar". Este se fun-da numa causalidade linear que simplificagrosseiramente a ação da matéria sobre o es-pírito, não permitindo ao homem nenhumapossibilidade de liberdade. O pensamento éreduzido a uma secreção do cérebro, e a açãohumana é determinada pelas condições mate-riais das quais não pode fugir.

Enquanto o materialismo mecanicistaparte da constatação de um mundo compostode coisas e, em última análise, de partículasmateriais que se combinam de forma inerte,o materialismo dialético parte da considera-ção de que os fenômenos materiais são pro-cessos. Tal mudança de enfoque se tornoupossível porque no século XIX as ciênciasdescobrem novas formas de movimento alémdo movimento mecânico de simples mudan-ça de lugar ou deslocamento: a descoberta datransformação da energia, a descoberta dacélula viva e a descoberta da evolução dasespécies. Essas novas formas indicam a pos-sibilidade da mudança qualitativa. O mundonão é uma realidade estática, não é um reló-gio, um mecanismo regulado pelo "divinorelojoeiro", mas é uma realidade dinâmica, éum complexo de processos. Por isso, a abor-

dagem da realidade só pode ser feita de ma-neira dialética, que considera as coisas na suadependência recíproca, e não-linear.

No contexto dialético, também o espíri-to não é conseqüência passiva da ação da ma-téria, podendo reagir sobre aquilo que o de-termina. Isso significa que a consciência dohomem, mesmo sendo determinada pela ma-téria e estando historicamente situada, não épura passividade: o conhecimento do determi-nismo liberta o homem por meio da ação des-te sobre o mundo, possibilitando inclusive aação revolucionária (ver Capítulo 30 — A li-berdade).

O materialismo histórico não é mais doque a aplicação dos princípios do materialismodialético ao campo da história. E, como o pró-prio nome indica, é a explicação da história porfatores materiais (econômicos, técnicos).

O senso comum pretende explicar a his-tória pela ação dos "grandes homens", dasgrandes idéias ou, às vezes, até pela interven-ção divina. Marx inverte esse processo: no lu-gar das idéias, estão os fatos materiais; no lu-gar dos heróis, a luta de classes. Não nega,com isso, que o homem tenha idéias, mas asexplica pela estrutura material da sociedade:a idéia é algo secundário, não no sentido demenos importante, mas no de algo derivadodas condições materiais.

As idéias que aparecem tanto no direitocomo na literatura, na filosofia, nas artes e namoral estão diretamente ligadas ao modo deprodução econômico. Por exemplo, a valori-zação da fidelidade na moral na sociedade daIdade Média pode ser explicada pela relaçãode produção que liga o suserano ao vassalo.Sem a fidelidade, essa relação de produção es-taria arruinada. Na sociedade contemporânea,baseada no modo de produção capitalista, coma emergência da industrialização em grandeescala, surge o consumismo como valor, ouseja, o precisar ter muitas coisas para se sentirhumano e aceito pela sociedade.

Portanto, para estudar a sociedade nãose deve, segundo Marx, partir do que os ho-mens dizem, imaginam ou pensam, mas daforma como produzem os bens materiais ne-cessários a sua vida. E analisando o contatoque os homens estabelecem com a naturezapara transformá-la por meio do trabalho e asrelações entre si que se descobre como elesproduzem sua vida e suas idéias.

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6. Quadros comparativos: idealismo/materialismo e materialismomecanicista/materialismo dialético

Os quadros que seguem devem ser compreendidos como uma proposta didática decontraposição de alguns pontos fundamentais de posições filosóficas diferentes. No entanto, comoem todo quadro, é preciso levar em conta que a simplificação às vezes é inadequada e demasiadoredutora.

121

1.

2.

3.

4.

5.

Idealismo

O espírito é eterno, infinito, primeiro; a ma-téria deriva dele.

Os fenômenos do universo são devidos à in-tervenção de quaisquer espíritos ou forçasimateriais.

0 movimento, o dinamismo, a atividade, opoder criador são unicamente da competên-cia do espírito.

0 conhecimento não atinge "a coisa em si"; amatéria é impenetrável pelo conhecimento.

A vida espiritual da sociedade determina avida material

Materialismo

1. A matéria é eterna, infinita, primeira; o espí-rito deriva dela.

2. Os fenômenos do universo são os diversosaspectos da matéria em movimento.

3. 0 movimento é a propriedade fundamentalda matéria. O mundo é eterno.

4. O mundo é cognoscível.

5. As idéias sociais são o reflexo do desenvol-vimento material objetivo da história.

Materialismo mecanicista

1. Época: século XVIII — Diderot, D'Holbach,Helvetius.

2. Materialismo dito vulgar: estático; a-histórico.

3. O mundo é um conjunto de coisas acabadas.

4. Antecedentes históricos: a ciência do séculoXVIII não conhecia senão as leis da simplesmudança de lugar; as outras formas do mo-vimento não tinham revelado suas leis; ex-plicava-se a vida, o pensamento, pelas leisda mecânica.

5. Determinismo: o homem é produto passivoda matéria; o pensamento é reduzido à se-creção do cérebro; o homem é reduzido àsnecessidades orgânicas elementares (comer,beber etc).

Materialismo dialético

1. Época: século XIX — Marx e Engels.

2. Materialismo histórico: dinâmico.

3. O mundo é um complexo de processos.

4. As mudanças da ciência: o calor, a eletrici-dade, o magnetismo, os processos químicos,a vida, provam que a matéria é capaz, alémde movimentos mecânicos, de transforma-ções qualitativas.

5. A consciência, no homem, tem duplo papel:ela é determinada, mas também reage, deter-minando; não é pura passividade. A cons-ciência que se tem do determinismo liberta ohomem através da ação deste sobre o mun-do. As idéias são forças ativas.

Exercícios

1. Levante as idéias principais do texto.

2. Em que sentido o pensamento marxista ématerialista?

3. Por que o marxismo não é um materialis-mo mecanicista?

4. Qual a crítica que o materialismo históricofaz ao conceito tradicional de história?

5. Leia a Primeira e Quinta partes do Capítu-lo 5 (Ideologia), e explique como o consumismo setransforma em valor na nossa sociedade.

QUARTA PARTE — O século XX e a crise da razão

Se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a libertação do homem da crençasupersticiosa em forças do mal, demônios e fadas, e no destino cego — em suma, a emancipação do medo —então a denúncia daquilo que atualmente se chama de razão é o maior serviço que a razão pode prestar.

(Horkheimer)

1. Antecedentes: Kierkegaard e Nietzsche

A crítica ao racionalismo, em especial asua forma idealista e ao primado da razão, co-meça a se delinear já no século XIX, nas obrasde filósofos como Sõren Kierkegaard (1813-1885) e Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Kierkegaard recusa todo o projeto da fi-losofia moderna. Anti-hegeliano feroz, paraele o saber não é um bem absoluto e, por isso,não procura a verdade, mas um centro parasua própria vida. Torna-se o pensador da sub-jetividade. "... só a subjetividade é verdade; oseu elemento é a interioridade. Não se expri-me em termos de certeza, ela é a incerteza ob-jetiva, mantida na apropriação da interioridademais apaixonada, que é a verdade, a maiorverdade para um existente."16

O pensamento petrifica a vida, aprisio-na-a. Em nome da verdade subjetiva deve-serecusar tanto o pensamento quanto a lingua-gem que, enquanto sistemas, são fechados,passados, petrificados. Como, então, dar vozao indivíduo, ao mundo subjetivo?

Nietzsche, por sua vez, opera mais umdeslocamento do problema do conhecimento,alterando também o papel da filosofia. Paraele, o conhecimento não passa de uma inter-pretação, de uma atribuição de sentidos, semjamais ser uma explicação da realidade. Ora,o conferir sentidos é, também, o conferir va-

lores, ou seja, os sentidos são atribuídos a par-tir de uma determinada escala de valores quese quer promover.

A tarefa da filosofia é a de interpretar a"escrita de camadas sobrepostas das expres-sões e gestos humanos." O trabalho interpre-tativo volta-se, em primeiro lugar, para o exa-me do conjunto do texto metafísico, a fim dedesmascarar o modo pelo qual a linguagempassou do nomear as coisas concretas para osistematizar verdades eternas. O homem ima-ginou que, através da linguagem, podia pos-suir o conhecimento do mundo. Por essa ra-zão, "o discurso metafísico apresenta-se comodiscurso do absoluto, do incondicionado, dapresença sem temporalidade; utiliza, sem asdeclarar, metáforas que converteu em concei-tos e em categorias".17

Nietzsche propõe, como método dedecifração, a genealogia, que consiste emcolocar em relevo os diferentes processosde instituição de um texto, mostrando as la-cunas, os espaços em branco mais signifi-cativos, o que não foi dito ou foi recalcadoe que permitiu erigir determinados concei-tos em verdades absolutas e eternas. Aoapreender o caráter histórico dos conceitos,bem como dos códigos, esclarecendo suarelação com outros, a genealogia mostra o

16 Citado em Bannour, W. in F. Chàtelet, História da filosofia; idéias, doutrinas, vol. 5, p. 250.17 J. M. Rey in F. Chàtelet, História da filosofia; idéias, doutrinas, vol. 6, p. 138.

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que eles excluíram para poder chegar à"intemporalidade" da tradição, da autorida-de ou da lei. Ao expor a inexistência de sig-nificados estáveis, isoláveis, expõe tambéma ausência de qualquer fundamento rigoro-so da verdade metafísica.

Nietzsche mostra, ainda, as origens ex-tra-racionais da razão. Para ele, o conheci-mento é resultado de uma luta, de um com-promisso entre instintos. O conhecimentoaproxima-se do objeto, mas não se identificaa ele, conserva-o à distância, diferenciando-se dele e podendo até destruí-lo. Em A gaiaciência afirma que o conhecimento é um jogoentre três paixões: o rir, o deplorar e o detes-tar, que se encontram em estado de guerra. Oconhecimento, então, é tão-somente a estabi-lização momentânea desse estado, não haven-do adequação ao objeto, só domínio.

Nietzsche destrói, dessa forma, a noçãode que há uma identidade entre sujeito e obje-to, uma semelhança através da racionalidade.O real deixa de ser racional.

2. A fenomenologia

A fenomenologia surgiu no final do sé-culo XIX, com Franz Brentano, cujas princi-pais idéias foram desenvolvidas por EdmundHusserl (1859-1958). Outros representantesforam: Heidegger, Max Scheler, Hartmann,Binswanger, De Waelhens, Ricoeur, Merleau-Ponty, Jaspers, Sartre.

Seu postulado básico é a noção deintencionalidade, pela qual é tentada a supe-ração das tendências racionalistas e empiristassurgidas no século XVII. A fenomenologiapretende realizar a superação da dicotomia ra-zão-experiência no processo de conhecimen-to, afirmando que toda consciência é inten-cional. Isso significa que, contrariamente aoque afirmam os racionalistas, não há puraconsciência, separada do mundo, mas todaconsciência tende para o mundo; toda cons-ciência é consciência de alguma coisa. Mastambém, contrariamente aos empiristas, os fe-nomenólogos afirmam que não há objeto emsi, já que o objeto só existe para um sujeitoque lhe dá significado.

Com o conceito de intencionalidade, afenomenologia se contrapõe à filosofia posi-tivista do século XIX, presa demais à visãoobjetiva do mundo. À crença na possibilidade

de um conhecimento científico cada vez maisneutro, mais despojado de subjetividade, maisdistante do homem, a fenomenologia contra-põe a retomada da "humanização" da ciência,estabelecendo uma nova relação entre sujeitoe objeto, homem e mundo, considerados pó-los inseparáveis.

Se examinarmos o próprio conceito defenômeno, que em grego significa "o que apa-rece", podemos compreender melhor que afenomenologia aborda os objetos do conheci-mento tais como aparecem, isto é, como seapresentam à consciência. Isso significa quedeve ser desconsiderada toda indagação a res-peito de uma realidade em-si, separada da re-lação com o sujeito que a conhece. Não há umpuro ser "escondido" atrás das aparências oudo fenômeno: a consciência desvela progres-sivamente o objeto por meio de seguidos per-fis, de perspectivas as mais variadas. A cons-ciência é doadora de sentido, fonte de signifi-cado para o mundo. Conhecer é um processoque não acaba nunca, é uma exploração exaus-tiva do mundo. No entanto, é bom lembrar quea consciência que o homem tem do mundo émais ampla que o mero conhecimento intelec-tual, pois a consciência é fonte de intenciona-lidades não só cognitivas, mas afetivas e prá-ticas. O olhar do homem sobre o mundo é oato pelo qual o homem experiência o mundo,percebendo, imaginando, julgando, amando,temendo etc.

A fenomenologia, como Nietzsche, cri-tica a filosofia tradicional por desenvolveruma metafísica cuja noção de ser é vazia eabstrata, voltada para a explicação. Ao con-trário, a fenomenologia tem como preocupa-ção central a descrição da realidade, colocan-do como ponto de partida de sua reflexão opróprio homem, num esforço de encontrar oque realmente é dado na experiência, e des-crevendo "o que se passa" efetivamente doponto de vista daquele que vive uma determi-nada situação concreta. Nesse sentido, afenomenologia é uma filosofia da vivência.

Heidegger (1889-1976) faz também acrítica do pensamento analítico que procedepor decomposição, enumeração e categoriza-ção dos objetos, fragmentando-os. Para recu-perar a integridade e a compreensão do Ser,propõe uma relação poética, extra-racional,até mesmo irracional.

Assim, tijolo a tijolo, vai se demolindoo conceito clássico de racionalidade.

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3. A Escola de Frankfurt

Os representantes da Escola de Frankfurt,fundada em 1923 sob o nome de Instituto paraa Pesquisa Social, Theodor Adorno, MarxHorkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benja-min localizam a origem do irracional, represen-tado por todas as formas de totalitarismo, noexercício de um determinado modo de racio-nalidade, a saber, a razão instrumental. Trata-se do exercício da racionalidade científica, tí-pica do positivismo, que visa a dominação danatureza para fins lucrativos, colocando a ciên-cia e a técnica a serviço do capital.

O germe do desenvolvimento dessafaceta da razão já se encontra em Descartes, evai sendo aperfeiçoado em seu caminho atéchegar a Marx, que adere, à sua maneira, aoIluminismo, acreditando na força da razãopara combater o obscurantismo no conheci-mento da natureza, na moral e na política.

Os frankfurtianos, tendo lido Nietzsche,Freud, Heidegger, sabem que não podem ade-rir à razão inocentemente. Sabem que a razãonão ilumina, não revela a natureza que seemancipa do mito através da ciência. Afas-tam-se do cientificismo materialista, da cren-ça na ciência e na técnica como condições daemancipação social, pois sabem que o pro-gresso se paga com o desaparecimento do su-jeito autônomo, engolido pelo totalitarismouniformizante da indústria cultural ou da so-ciedade unidimensional.

Criticam a razão de dominação, contro-le da natureza exterior e interior, esta repre-sentada pelas paixões, pois sabem que aquiloa que se renuncia continua a ser desejado. Naspalavras de Olgária Matos:

"A racionalidade que separa sujeito deobjeto, corpo e alma, eu e mundo, natureza ecultura, acaba por transformar as paixões, asemoções, os sentidos, a imaginação e a me-mória em inimigos do pensamento. Cabe aosujeito, destituído de seus aspectos empíricose individuais, ser o mestre e conhecedor danatureza; ele passa a dar ordens à natureza,que deve aceitar sua anexação ao sujeito e fa-lar sua linguagem — linguagem das matemá-ticas e dos números. Só assim a natureza po-derá ser conhecida, isto é, controlada, domi-

nada, o que não significa ser compreendidaem suas dissonâncias em relação ao sujeito enos acasos que ela torna manifestos. Os aca-sos da natureza são incontornáveis porqueconstituem um obstáculo resistente ao exercí-cio triunfante da razão controladora.

A ciência domina a natureza 'abolindo'matematicamente os acasos através do cálcu-lo estatístico, mas não controla a 'incoerênciada vida'."18

Por isso, o indivíduo autônomo, cons-ciente de seus fins, deve ser recuperado. Suaemancipação só será possível, no nível indivi-dual, ao se resolver o conflito entre a autono-mia da razão e as forças obscuras e incons-cientes que invadem essa mesma razão.

4. A razão

A herança iluminista

Contra esse movimento irracionalistaque critica o uso da razão como arma do po-der e agente da repressão, em vez de ser ins-trumento da liberdade humana, devemos re-cuperar o impulso crítico nascido com a Ilus-tração, que acenou ao homem com a possibi-lidade de construir racionalmente seu destino,livre da tirania e das superstições. SegundoRouanet: "seu ideal de ciência era o de umsaber posto a serviço do homem, e não o deum saber cego, seguindo uma lógica desvin-culada de fins humanos. Sua moral era livre evisava uma liberdade concreta, valorizando,como nenhum outro período, a vida das pai-xões e pregando uma ordem em que o cida-dão não fosse oprimido pela religião, e a mu-lher não fosse oprimida pelo homem. Suadoutrina dos direitos humanos era abstrata,mas por isso mesmo universal, transcendendoos limites do tempo e do espaço, suscetível deapropriações sempre novas, e gerando conti-nuamente novos objetivos políticos".19

Devemos, neste ponto, diferenciar aIlustração, enquanto idéias que floresceram noséculo XVIII (defesa da ciência e da raciona-lidade crítica contra a fé, a superstição e odogma religioso; defesa das liberdades indi-viduais e dos direitos do cidadão contra o

18 Olgária Matos, Escola de Frankfurt; luzes e sombras do Iluminismo.19 S. P. Rouanet, As razões do Iluminismo, p. 27.

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autoritarismo e o abuso do poder), e cujo prin-cipal representante foi Kant, do Iluminismo,considerado como tendência intelectual não-limitada a nenhuma época, que combate omito e o poder a partir da razão. O Iluminis-mo, assim entendido, apresenta-se como pro-cesso que coloca a razão sempre a serviço dacrítica do presente, de suas estruturas e reali-zações históricas.

Assim, a tarefa iniciada por Kant, de su-peração da incapacidade humana de se servirdo seu próprio entendimento e ousar servir-seda própria razão, não poderá jamais ser com-pletada. É tarefa que precisa ser refeita a cadamomento, a partir das duas condições neces-sárias: o exercício da razão crítica e da críti-ca racional.

Hoje, entretanto, os conceitos de razãoe de crítica devem ser reexaminados.

Quando falamos em razão, não maisacreditamos ingenuamente que, só pelo fatode sermos homens, sejamos automaticamenteracionais. Devemos, a partir dos estudos deFreud e Marx, admitir que a razão pode tam-bém ser deturpadora e pervertida, ou seja, ad-mitir que tanto os impulsos do inconscientecomo a ideologia (ou falsa consciência) sãoresponsáveis por distorções que colocam a ra-zão a serviço da mentira e do poder.

Exemplificando, quando a racionalidadeassume as vestes de razão de Estado ou de ra-zão econômica (como no caso do Brasil),estamos lidando com uma visão parcial e ins-trumental da razão que tenta adequar meios afins. É razão que observa e normaliza, razãoque calcula, classifica e domina, em função

de interesses de classes e não dos interessesda sociedade como um todo. E, se o poder queoprime fala em nome da racionalidade, paracombatê-la parece necessário contestar a pró-pria razão.

Esse tipo de racionalidade, criticadopela Escola de Frankfurt, deve ser contestado,mas não através do irracionalismo e, sim, pelaatividade crítica da razão mais completa emais rica, que dialoga e se exerce na intersub-jetividade.20

O novo Iluminismo

O exercício da razão plena é a tarefa donovo Iluminismo, que deve mostrar aos defen-sores do irracionalismo que a crítica não-ra-cional leva ao conformismo, uma vez que,sem o trabalho conceituai, não há como sairda facticidade, ou seja, do vivido.

Assim, a nova razão crítica precisa:

• fazer a crítica dos limites internos e ex-ternos da razão, consciente de sua vulnerabi-lidade ao irracional;

• estabelecer os princípios éticos quefundamentam sua função normativa;

• vincular essa construção a raízes so-ciais contemporâneas, submetendo-a à provade realidade. Esse solo social aparece no pro-cesso comunicativo, dentro do qual os sujei-tos propõem e criticam argumentos, criticamas motivações subjacentes e desenvolvem ascapacidades humanas de saber, de busca daverdade, da justiça e da autonomia.

Exercícios

1. Trace o desenvolvimento da crítica ao ra-cionalismo de Kierkegaard à Escola de Frankfurt.

2. O que é o novo Iluminismo?

3. O que é a racionalidade crítica?

4. O que é a crítica racional?

5. Por que ambas são necessárias?

6. Como pode ser entendida a atividade ra-cional hoje?

7. Procure exemplos de irracionalismo noscomportamentos da sociedade contemporânea.Como pode ser combatido?

A esse respeito, ver o conceito de razão comunicativa de Habermas, no Capítulo 28 — Concepções éticas.

125

Galileu, o criador do novo método científico, defronta-se com o podernuma situação emblemática que marca as relações tensas entre ciência e política: ora porque

os poderosos querem fazer calar a ciência, ora porque desejam usá-la para atingir seusobjetivos de dominação.

Galileudiante da Inquisição de Cristiano Banti. 1857,

A CIÊNCIA

UNIDADE III

O CONHECIMENTOCIENTÍFICO

PRIMEIRA PARTE — O que é ciência?

Lewis Carroll era professor de matemática na Universidade de Oxford quando escreveu o seguinte emAlice no país das maravilhas:

"— Gato Cheshire... quer fazer o favor de me dizer qual é o caminho que eu devo tomar?— Isso depende muito do lugar para onde você quer ir — disse o Gato.— Não me interessa muito para onde... — disse Alice.— Não tem importância então o caminho que você tomar — disse o Gato.— ... contanto que eu chegue a algum lugar — acrescentou Alice como uma explicação.— Ah, disso pode ter certeza — disse o Gato — desde que caminhe bastante ".

A resposta do Gato tem sido freqüentemente citada para exprimir a opinião de que os cientistas nãosabem para onde o conhecimento está levando a humanidade e, além disso, não se importam muito. Diz-se quea ciência não pode oferecer objetivos sociais porque os seus valores são intelectuais e não éticos. Uma vez queos objetivos sociais tenham sido escolhidos por meio de critérios não científicos, a ciência pode determinar amelhor maneira de prosseguir. Mas é provável que a ciência possa contribuir para formular valores e, assim,estabelecer objetivos, tornando o homem mais consciente das conseqüências de seus atos. A necessidade deconhecimento das conseqüências, no ato de tomar decisões, está implícita na observação do Gato de que Alicechegaria certamente a algum lugar se caminhasse o bastante. Desde que esse algum lugar poderia revelar-sebem indesejável, é melhor fazer escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir.

(René Dubos, O despertar da razão, São Paulo, Melhoramentos/Edusp, 1972, p. 165.)

O texto de René Dubos, professor de biomedicina ambiental, reflete a preocupação que o cien-tista deve ter com os fins a que se destina a ciência. Vamos, portanto, começar esta Unidade com areflexão que deve estar presente sempre quando abordarmos tal problemática: a ciência não é umsaber neutro, desinteressado, à margem do questionamento social e político acerca dos fins de suaspesquisas.

1. Introdução

Vimos, no Capítulo 3, o que é conheci-mento e quais as diversas formas de compre-ensão do mundo, entre as quais o conhecimen-to espontâneo ou senso comum e o conheci-mento científico.

O senso comum é o conhecimento detodos nós, homens comuns, não-especialistas.Se a ciência precisou se posicionar muitas ve-zes contra as "evidências" do senso comum,não há como desprezar essa forma de conhe-cimento tão universal. Ou seja, mesmo o

cientista mais rigoroso, quando está fora docampo de sua especialidade, é também umhomem comum e usa o conhecimento espon-tâneo no cotidiano de sua vida.

2. O senso comum

Chamamos de conhecimento espontâneoou senso comum o saber resultante das expe-riências levadas a efeito pelo homem ao enfren-

CAPÍTULO 11

127

tar os problemas da existência. Nesse processoele não se encontra solitário, pois tem o con-curso dos contemporâneos, com os quais trocainformações. Além disso, cada geração recebedas anteriores a herança fecunda que não só éassimilada como também transformada.

O volume enorme de saberes herdados econstruídos nem sempre são tematizados, ouseja, não se apresentam de forma sistemáticanem têm caráter de conhecimento refletido.Dependendo da cultura, são encontradas, commaior ou menor intensidade, proposições racio-nais ao lado de crenças e mitos de toda espécie.

O senso comum, enquanto conhecimentoespontâneo ou vulgar, é ametódico e assistemá-tico e nasce diante da tentativa do homem de re-solver os problemas da vida diária. O homem docampo sabe plantar e colher segundo normasque aprendeu com seus pais, usando técnicasherdadas de seu grupo social e que se transfor-mam lentamente em função dos acontecimentoscasuais com os quais se depara.

É um tipo de conhecimento empírico,porque se baseia na experiência cotidiana ecomum das pessoas, distinguindo-se por issoda experiência científica, que exige planeja-mento rigoroso. É também um conhecimentoingênuo: ingenuidade aqui deve ser entendidacomo atitude não-crítica, típica do saber quenão se coloca como problema e não se ques-tiona enquanto saber.

Quando uma pessoa faz um bolo, seguea receita e incorpora uma série de informaçõespara o melhor sucesso do seu trabalho. Sabeque, ao bater as claras em neve, elas cresceme se tornam esbranquiçadas; que não convémabrir o forno quando o bolo começa a assar,senão ele murcha; que a medida adequada defermento faz o bolo crescer. Se estiver fazen-do pudim em banho-maria, sabe que uma fa-tia de limão na água evita o escurecimento davasilha, o que facilitará seu trabalho posteriorde limpeza. Essa pessoa sabe tudo isso, masnão conhece as causas, não consegue explicarpor que e como ocorrem esses fenômenos.

Muitas vezes o conhecimento espontâneoé presa das aparências. Por exemplo, pareceque o Sol gira em torno da Terra, que permane-ce parada no centro do universo. Vemos que oSol se move, nascendo a leste e se pondo a oes-te... Copérnico e Galileu tiveram contra a teoriaheliocêntrica a "evidência" do senso comum.

Em comparação com a ciência, o conhe-cimento espontâneo é fragmentário, pois não

estabelece conexões onde estas poderiam serverificadas. Por exemplo: não é possível aohomem comum perceber qualquer relação en-tre o orvalho da noite e o "suor" que aparecena garrafa que foi retirada da geladeira; nementre a combustão e a respiração (esta é umaforma de combustão discreta, ou seja, a quei-ma dos alimentos no processo digestivo paraobter energia é também uma combustão). Tal-vez o exemplo mais interessante seja o deIsaac Newton que, se dermos crédito à velhahistória, sem dúvida apócrifa, teria descober-to a lei da gravitação universal ao associar aqueda de uma maçã à "queda" da Lua (verexercício nº 3).

É ainda um conhecimento particular,restrito a pequena amostra da realidade, a par-tir da qual são feitas generalizações muitasvezes apressadas e imprecisas. O homem co-mum seleciona os dados observados sem ne-nhum critério de rigor, de forma ametódica efortuita. Em outras palavras, conclui para to-dos os objetos o que vale para um ou para umgrupo de objetos observados.

O senso comum é freqüentemente umconhecimento subjetivo, o que ocorre, porexemplo, quando avaliamos a temperatura doambiente com a nossa pele, já que só o termô-metro dá objetividade a essa avaliação. Aindamais: o senso comum depende de juízos pes-soais a respeito das coisas, com envolvimentodas emoções e dos valores de quem observa.É difícil para a mãe avaliar objetivamente aconduta do filho. Do mesmo modo, se temosantipatia por alguém, é preciso certo esforçopara reconhecer, por exemplo, o seu valor pro-fissional. Também, ao observar o comporta-mento de povos com costumes diferentes dosnossos, tendemos a julgá-los a partir de nos-sos valores, considerando-os estranhos, igno-rantes, engraçados ou até desprezíveis.

Se considerarmos ainda a força da ideo-logia (ver Capítulo 5), entendida como formade imposição de idéias e condutas visando amanutenção da dominação de uns sobre ou-tros, concluímos que o conhecimento comumé presa fácil do saber ilusório. Mesmo porquea ideologia permeia as mais diversas instân-cias das relações humanas: a família, a escola,a empresa, os meios de comunicação de mas-sa e assim por diante.

Pelo que vimos até aqui, parece que osenso comum é uma visão de mundo precária,distorcida e até perversa. Em decorrência, po-

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deríamos pensar que só superamos a pobrezamental recorrendo a formas mais sofisticadasdo saber, tais como a filosofia e a ciência.

No entanto, pensar assim é pressuporque o homem comum deve ser tutelado poroutros que lhe digam qual a melhor forma depensar e quais as melhores ações a serem rea-lizadas, o que é contrário a tudo que se pensasobre o valor da autonomia humana.

Para evitar mal-entendidos, distingui-mos os conceitos de senso comum e bom sen-so. Enquanto o senso comum é o conhecimen-to espontâneo tal como foi descrito, no seucaráter acrítico, difuso, fragmentário, dogmá-tico, é possível transformá-lo em bom sensoao torná-lo organicamente estruturado, coeren-te e crítico. Para o filósofo italiano Gramsci, obom senso é o núcleo sadio do senso comum.Tratamos desse assunto na Primeira Parte doCapítulo 5.

3. O conhecimento científico

O conhecimento científico é uma con-quista recente da humanidade: tem apenas tre-zentos anos e surgiu no século XVII com a re-volução galileana. Isso não significa que antesdaquela data não houvesse saber rigoroso, pois,como vimos no Capítulo 7 (Do mito à razão),desde o século VI a.C, na Grécia Antiga, oshomens aspiravam a um conhecimento que sedistinguisse do mito e do saber comum. Taissábios (sophos, como eram chamados) ocupa-vam-se com a filosofia e a ciência.

No século V a.C, Sócrates buscava adefinição dos conceitos, por meio da qual pre-tendia atingir a essência das coisas. Platãomostrava o caminho que a educação do sábiodevia percorrer para ir da opinião (doxa) àciência (episteme).

No pensamento grego, ciência e filoso-fia achavam-se ainda vinculadas e só vierama se separar na Idade Moderna, buscando cadauma delas seu próprio caminho, ou seja, seumétodo.1 A ciência moderna nasce ao deter-minar um objeto específico de investigação eao criar um método pelo qual se fará o contro-le desse conhecimento.

A utilização de métodos rigorosos per-mite que a ciência atinja um tipo de conheci-

mento sistemático, preciso e objetivo segun-do o qual são descobertas relações universaise necessárias entre os fenômenos, o que per-mite prever acontecimentos e também agirsobre a natureza de forma mais segura.

Cada ciência se torna então uma ciênciaparticular, no sentido de ter um campo deli-mitado de pesquisa e um método próprio. Asciências são particulares na medida em quecada uma privilegia setores distintos da reali-dade: a física trata do movimento dos corpos;a química, da sua transformação; a biologia,do ser vivo etc.

Por outro lado as ciências são tambémgerais, no sentido de que as conclusões nãovalem apenas para os casos observados, e simpara todos os que a eles se assemelham. Aoafirmarmos que "o peso de qualquer objetodepende do campo de gravitação" ou que "acor de um objeto depende da luz que ele refle-te" ou ainda que "a água é uma substânciacomposta de hidrogênio e oxigênio", fazemosafirmações que são válidas para todos os cor-pos, todos os objetos coloridos ou qualquerporção de água, e não apenas para aqueles queforam objeto da experiência.

A preocupação do cientista está portan-to na descoberta das regularidades existentesem determinados fatos. Por isso, a ciência égeral, isto é, as observações feitas para algunsfenômenos são generalizadas e expressas peloenunciado de uma lei.

Enquanto o saber comum observa umfato a partir do conjunto dos dados sensíveisque formam a nossa percepção imediata, pes-soal e efêmera do mundo, o fato científico éum fato abstrato, isolado do conjunto em quese encontra normalmente inserido e elevado aum grau de generalidade: quando nos referi-mos à "dilatação" ou ao "aquecimento" comofatos científicos, estamos muito distantes dosdados sensíveis de um certo corpo em um de-terminado momento. Além disso, estabelece-mos entre tais fatos uma relação de variaçãodo tipo "função" (na qual o volume é, em dadomomento, função da temperatura). Isso supõea capacidade de racionalização dos dados re-colhidos, que nunca aparecem como dadosbrutos, mas sempre passíveis de interpretação.

O mundo construído pela ciência aspiraà objetividade: as conclusões podem ser

1 Consultar Capítulo 14 — A ciência na Idade Moderna e Capítulo 15 — O método científico.

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verificadas por qualquer outro membro com-petente da comunidade científica, pois a ra-cionalidade desse conhecimento procura des-pojar-se do emotivo, tornando-se impessoal namedida do possível. A esse respeito diz o filó-sofo francês Merleau-Ponty: "A ciência expli-ca o mundo, mas se recusa a habitá-lo". Emoutras palavras, por mais que a ciência amplieo conhecimento que temos do mundo, de certoponto de vista ela reduz esse conhecimento,pois o cientista remove toda experiência indi-vidual que caracterizaria o "estar-no-mundo".

Para ser precisa e objetiva, a ciência dis-põe de uma linguagem rigorosa cujos conceitossão definidos de modo a evitar ambigüidades. Alinguagem se torna cada vez mais precisa, namedida em que utiliza a matemática para trans-formar qualidades em quantidades. A matema-tização da ciência se inicia com Galileu. Ao es-tabelecer a lei da queda dos corpos, por exem-plo, Galileu mediu o espaço percorrido e o tem-po que um corpo leva para descer o plano incli-nado, e ao final das observações registrou a leinuma formulação matemática.

Por meio desse exemplo, constatamosque a ciência do século XVII utiliza a mate-mática e o recurso da observação e da experi-mentação. Nesse processo, o uso de instru-mentos torna a ciência mais rigorosa, precisae objetiva. Os instrumentos de medida (balan-ça, termômetro, dinamômetro etc.) permitemao cientista ultrapassar a percepção imediatae subjetiva da realidade e fazer uma verifica-ção objetiva dos fenômenos.

Antecipando uma discussão ainda a serdesenvolvida, é preciso retirar do conceito deciência a falsa idéia de que ela é a única expli-cação da realidade e se trata de um conheci-mento "certo" e "infalível". Há muito de cons-trução nos modelos científicos e, às vezes, atéteorias contraditórias, como, por exemplo, ateoria corpuscular e a ondulatória, ambas utili-zadas para explicar o fenômeno luminoso.Além disso, a ciência está em constante evolu-ção, e suas verdades são sempre provisórias. Ofilósofo e escritor inglês Samuel Butler refere-se a isso jocosamente, usando a forma de man-chete de jornal: "Um terrível acontecimento:uma teoria soberba, covardemente assassinadapor um desagradável pequeno fato"...

Mas se é verdade que a física e as de-mais ciências da natureza se tornam rigorosaspor serem altamente "matematizáveis" e usa-rem o método experimental, no extremo

O rigor da ciência deriva do fato de as hipótesespoderem ser comprovadas. Na figura, o filósofo ecientista Pascal sobe ao topo de uma montanhapara verificar se a alteração da coluna de mercú-rio era realmente resultado da pressão atmosféri-ca, comparando com idêntica observação efetua-da em local mais próximo do nível do mar.

oposto se encontram as ciências humanas,cujo componente qualitativo não pode ser re-duzido à quantidade, assim como resiste a cer-tas formas de experimentação. Constatamosque, enquanto a psicanálise é avessa a qual-quer forma de experimentação ou matemati-zação, outras teorias psicológicas recorremnão só às experiências em laboratório comose utilizam da matemática em estatísticas (verCapítulo 16 — As ciências humanas).

4. Ciência e poder

Como veremos no Capítulo 14 (A ciên-cia na Idade Moderna), as ciências da nature-za encontram no novo método a possibilidadede uma abordagem mais eficaz da realidade,no sentido de maior previsibilidade dos fenô-menos e, conseqüentemente, maior poder paraa transformação da natureza.

Isso se tornou viável devido à aliança daciência com a técnica. Como decorrência,ocorreu o desenvolvimento da tecnologia, queé a técnica enriquecida pelo saber científico,que tem alterado o habitai humano timidamen-

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te a partir do século XVIII, com a RevoluçãoIndustrial, e com grande rapidez no século XX.Reciprocamente, a tecnologia também provo-cou avanços incríveis no conhecimento cientí-fico. Basta lembrar o que significa a precisãorelativa da balança mecânica em comparaçãocom o rigor da balança eletrônica!

No entanto, o poder da ciência e da tec-nologia é ambíguo, porque pode estar a servi-ço do homem ou contra ele. Daí a necessidadede o trabalho do cientista e do técnico seracompanhado por reflexões de caráter morale político, a fim de que sejam questionados osfins a que se destinam os meios utilizados pelohomem: se servem ao crescimento espiritual

ou se o degradam, se servem à liberdade ou àsformas de dominação.

Por isso é impossível admitir a existênciado trabalho científico neutro, que procura o"saber pelo saber". A ciência se encontra irre-mediavelmente imbricada na moral e na políti-ca e o cientista tem uma responsabilidade socialda qual não pode abdicar (ver a Segunda Partedeste Capítulo — A filosofia e as ciências).

É assim que podemos retomar a epígrafedo capítulo, e o comentário feito pelo profes-sor René Dubos: "desde que esse algum lugar[onde a ciência chega] poderia revelar-se bemindesejável, é melhor fazer escolhas cons-cientes do lugar para onde se quer ir".

Exercícios

1. Faça um quadro comparando as caracterís-ticas do conhecimento espontâneo e do conheci-mento científico.

2. O que Gramsci quer dizer com "o bom sen-so é o núcleo sadio do senso comum"?

3. Leia o trecho a seguir e explique o signifi-cado da citação de Valéry, relacionando-a com ascaracterísticas do conhecimento espontâneo e doconhecimento científico.

Segundo a lenda, Newton teria descoberto alei da gravitação universal ao associar a queda deuma maçã à "queda" da Lua. Ou seja, estabeleceua relação entre a queda dos corpos (relação Terra-maçã) e o movimento da Lua (relação Terra-Lua),percebendo tratar-se do mesmo fenômeno. Expli-cando de outra forma: um corpo, orbitando em tor-no da Terra, está ao mesmo tempo caindo e se des-locando horizontalmente. Disse a esse respeito opoeta e ensaísta Paul Valéry: "Seria preciso o gê-nio de Newton para ver que a Lua cai, embora todagente saiba que ela não cai".

4. A partir da citação de Kneller, analise oconhecimento espontâneo e o científico do pontode vista da objetividade.

"A ciência (...) procura remover tudo o quefor único no cientista, individualmente considera-do: recordações, emoções e sentimentos estéticosdespertados pelas disposições de átomos, as corese os hábitos de pássaros, ou a imensidão da Via-Láctea (...) A ciência elimina a maior parte da apa-rência sensual e estética da natureza. Poentes e cas-catas são descritos em termos de freqüências deraios luminosos, coeficientes de refração e forçasgravitacionais ou hidrodinâmicas. Evidentemente,essa descrição, por mais elucidativa que seja, não é

uma explicação completa daquilo que realmenteexperienciamos." (Kneller)

5. A descrição da objetividade da ciência, re-ferida na citação de Kneller, pode adquirir outroscontornos na frase de Hilton Japiassu, transcrita aseguir. Comente a diferença:

"...em matéria de ciência, não há objetividadeabsoluta. Também o cientista jamais pode dizer-seneutro, a não ser por ingenuidade ou por uma con-cepção mítica do que seja a ciência. (...)

Não se pode ignorar que a ciência é ao mes-mo tempo um poder material e espiritual. Não éessa procura desinteressada de uma verdade abso-luta, racional e universal, independente do tempo edo espaço, que se distinguiria dos outros modos deconhecimento pela objetividade de seus teoremas,pela universalidade de suas leis e pela racionalida-de de seus resultados experimentais, cuidadosa-mente estabelecidos e verificados, e, portanto, efi-cazes. A produção científica se faz numa socieda-de determinada que condiciona seus objetivos, seusagentes e seu modo de funcionamento. É profun-damente marcada pela cultura em que se insere.Carrega em si os traços da sociedade que a engen-dra, reflete suas contradições, tanto em sua organi-zação interna quanto em suas aplicações." (HiltonJapiassu)

6. Estabeleça relações entre ciência e técnica,explicando o significado da frase de Bachelard:"Uma ciência tem a idade dos seus instrumentosde medida". Dê exemplos que você encontre por si

7. Faça uma dissertação sobre o seguintetema: "Os movimentos ecológicos e a necessidadede salvar o planeta".

131

SEGUNDA PARTE — A filosofia e as ciências

Ciência sem consciência não é senão a ruína da alma.

(Rabelais)

O sono da razão produz monstros.

(inscrição em uma pintura de Goya)

1. Os mitos da ciência

O Iluminismo, no século XVIII, exaltoua capacidade humana de conhecer o mundopor meio da ciência, considerada expressão derigor, objetividade e previsibilidade. Pelaciência o homem podia espantar o medo cau-sado pela ignorância e superstição, guardan-do a esperança de um mundo onde as luzes darazão permitiriam a melhor qualidade de vidapossível e a emancipação dos preconceitos, daviolência e do arbítrio.

No entanto, segundo observam os filó-sofos da Escola de Frankfurt, há sombras naspromessas iluministas. E, se não podemos(e não desejamos) desprezar a ciência e a ra-zão, é preciso com urgência indicar quais sãoos seus riscos e desvios.

Já no século XIX, o positivismo valori-zava exageradamente o conhecimento cientí-fico, excluindo outras formas de abordagemdo real tais como o mito, a religião e mesmo afilosofia, consideradas expressões inferiores esuperadas da experiência humana. Mas essaexclusão é arbitrária e mutiladora, e significana verdade um reducionismo:

, • reduz o objeto próprio das ciências ànatureza observável, ao fato positivo;

• reduz a filosofia aos resultados dasciências;

• reduz as ciências humanas às ciênciasda natureza.

Portanto, a preocupação positivista detudo reduzir ao racional redunda no seu opos-to, ou seja, na criação de mitos. O positivismocria o mito do cientificismo, segundo o qual oúnico conhecimento perfeito é o científico.Dessa distorção decorrem inúmeras outras.

Embutido no ideal cientificista, existe omito do progresso. Segundo essa concepção,o progresso é inicialmente algo embrionário,cabendo à ação humana transformadora tra-zer à luz as possibilidades latentes. E se as

ciências e as técnicas aumentam o controle dohomem sobre a natureza e a sociedade, pareceválido pensar que a ação cada vez mais eficazleve o desenvolvimento aparentemente na di-reção de um mundo cada vez melhor. Ou seja,o progresso é explicado como um fenômenolinear, cuja tendência automática é o aperfei-çoamento humano.

Por isso o ideal do progresso justificariatodas as ações do homem realizadas em seunome. Mas infelizmente já conhecemos as con-seqüências: na busca do progresso, as constru-ções urbanas tornaram a vida humana cada vezmais solitária; as fábricas poluem o ar; a espe-culação imobiliária destrói o verde; a moderni-zação da agricultura torna mais miserável avida dos bóias-frias; a opulência não expulsa amiséria, mas convive com ela lado a lado.

Seria o caso de se pensar que o desequi-líbrio ecológico, a injusta distribuição de ren-da, a má qualidade de vida afetiva e sentimen-tal são de fato indicativos de regressão huma-na, o que nos leva a rever a noção de progres-so. É Walter Benjamin quem diz que se fossedada a palavra à natureza, ela certamente selastimaria...

Outra decorrência do cientificismo e daexaltação do progresso é o mito da tecnocra-cia. É o próprio Comte quem diz: "Ciência,logo previsão, logo ação". O positivismo ga-rante a justificação do poder da técnica e, maisque isso, do poder dos tecnocratas. Passamosa viver em um mundo onde a palavra definiti-va é sempre dada aos técnicos e aos adminis-tradores competentes.

O saber derivado da ciência passa a serconsiderado o único a ter autoridade: portan-to, o poder pertence a quem possui o saber.Cria-se assim o mito do especialista, segundoo qual apenas certas pessoas têm competênciaem determinados setores específicos. A con-clusão é que, se há um discurso competente,

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em contraposição, há incompetentes (que so-mos nós...), cujo não-saber supõe a aceitaçãopassiva do discurso do saber. Caberia à teoriao papel de comando sobre a prática dos ho-mens: a teoria manda porque possui as idéias,e a prática obedece porque é ignorante... Comessa relação hierárquica, perde-se a dialéticaentre teoria e práxis.

Portanto, são essas as sombras da heran-ça iluminista. A ciência e a tecnologia, mes-mo que sejam expressões da racionalidade,produzem contraditoriamente efeitos irracio-nais, perversos, já que a razão é posta a servi-ço da destruição da natureza, da alienação hu-mana e da dominação.

2. Qual é o papel da filosofia?

Na Antiguidade, a filosofia era o coroa-mento do saber. Para Platão, por exemplo, aciência nada mais era do que a preparaçãopara ela. Com a revolução científica a ciênciase tornou autônoma, fragmentando-se em inú-meras ciências particulares. Como vimos, acivilização ocidental se desenvolveu vertigi-nosamente sob o signo do saber objetivo etecnocrático, organizando-se em torno dosprincípios da ciência e do progresso. Ora, avisão utilitarista daí decorrente não abre espa-ço para a filosofia, que, aparentemente, "nãoserve para nada".

Mas a desprezada filosofia encontra-se,na verdade, nos pressupostos da ciência, jáque a própria ciência não é capaz de investi-gar seus fundamentos. Cabe portanto à filoso-fia discutir a respeito dos conceitos que sãousados, da validade dos métodos, do valor dasconclusões, bem como da concepção de ho-mem subjacente a cada ciência.

Outra função da filosofia consiste emestabelecer a interdisciplinaridade dos diver-sos campos do saber formados a partir da frag-

mentação resultante do aparecimento dasciências particulares, dando origem a especia-listas que investigam rigorosamente apenasparte do todo. A veia satírica de Pitigrilli bemnos mostrou o que isto significa: "O especia-lista é aquele que sabe tanto de uma parte, atésaber tudo de nada...". Cabe portanto à filoso-fia recolocar o problema da unidade do saber,tornado "esquizofrênico" pela ciência moder-na, na medida em que foi compartimentaliza-do. O resultado dessa fragmentação é que ohomem se torna o grande ausente da ciência.

Enquanto a ciência e a técnica utilizama razão instrumental, mais preocupada com osmeios, é preciso investigar outro tipo de ra-zões em outras esferas, a das vivências subje-tivas, a fim de recuperar o desejo e a sensibili-dade oprimidos no processo de "desencanta-mento do mundo" levado a efeito pelas leisnaturais e impessoais da ciência.

Por isso, a reflexão empreendida pela filo-sofia não pode ser desinteressada, neutra, nemuma ocupação separada do que ocorre no mun-do. Ela tem compromisso com a investigação apropósito dos fins e das prioridades a que aciência se propõe, bem como com a análise dascondições em que se realizam as pesquisas e dasconseqüências das técnicas utilizadas.

A análise crítica denuncia a escamotea-ção do homem, ou seja, verifica como certasteorias ou práticas, embora aparentementehumanizadoras e progressistas (como as resul-tantes do ideal positivista), podem se tornarna verdade formas de alienação humana.

No desempenho desse papel, o filósofonão aparece com respostas prontas e um saberacabado, nem como aquele que deve nortearos rumos da ciência. No mundo de certezaspropostas pelo ideal do conhecimento objeti-vo, o filósofo é aquele que, segundo Merleau-Ponty, acredita na sua própria desordem inte-rior e por isso acredita na busca segundo aqual sempre haverá coisas para se ver e dizer.

Exercícios

1. O que é o mito do cientificismo? E por quese trata de um reducionismol

2. Explique por que a tecnocracia é condiçãode alienação.

3. Leia a citação a seguir e estabeleça a rela-ção com a visão cientificista do mundo: "Não équalquer um que pode dizer a qualquer outro qual-quer coisa em qualquer lugar e em qualquer cir-cunstância. O discurso competente confunde-se,

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pois, com a linguagem institucionalmente permiti-da ou autorizada, isto é, com um discurso no qualos interlocutores já foram previamente reconheci-dos como tendo o direito de falar e ouvir, no qualos lugares e as circunstâncias já foram predetermi-nadas para que seja permitido falar e ouvir e, en-fim, no qual o conteúdo e a forma já foram autori-zados segundo os cânones da esfera de sua própriacompetência". (Marilena Chaui)

4. Quais são os papéis do filósofo diante daciência?

5. O que significa dizer que a herançailuminista nos trouxe "luzes" e "sombras"?

6. Leia o texto complementar seguinte e res-ponda às questões:

a) Identifique e explique os argumentos que oautor utiliza para questionar a equivalência entreciência e progresso.

b) Que relação o autor estabelece entre ciên-cia e moral? Sob esse aspecto, qual é a função dafilosofia?

Texto complementar

O mito da neutralidade científica

Atualmente, a atividade científica defronta-se com sérios desafios internos e externos. De umponto de vista coletivo, os descontentamentos sociais ligados à introdução de inúmeras inovaçõestecnológicas (da poluição industrial aos horrores das guerras químicas e eletrônicas), estão levando aum questionamento da equivalência entre ciência e progresso, entre tecnologia e bem-estar social. (...)

O que podemos perguntar, desde já, é se não seria temerário entregar o homem às decisõesconstitutivas do saber científico. Poderia ele ser "dirigido" pela "ética do saber objetivo"? Poderiaser "orientado" por esse tipo de racionalidade? Não se trata de um "homem" ideal. Estamos falandodesse homem real e concreto que somos nós; desse homem cujo patrimônio genético começa a sermanipulado; cujas bases biológicas são condicionadas por tratamentos químicos; cujas imagens epulsões estão sendo entregues aos sortilégios das técnicas publicitárias e aos estratagemas dos con-dicionamentos de massa; cujas escolhas coletivas e o querer comum cada vez mais se transferempara as decisões de tecnocratas onipotentes; cujo psiquismo consciente e inconsciente, individual ecoletivo, torna-se cada vez mais "controlado" pela ciência, pelo cálculo, pela positividade e pelaracionalidade do saber científico; desse homem, enfim, que já começa a tomar consciência de que,doravante, pesa sobre ele a ameaça constante de um Apocalipse nuclear, cuja realidade catastróficanão constitui ainda objeto de reflexão.

(...) Talvez o problema seja mais bem elucidado se concebermos uma passagem do "sabersobre o homem" a um "saber-querer do homem", este, sim, capaz de dirigir sua ação. Porque não éna ciência, mas numa antropologia reflexiva, que iremos encontrar o discurso do homem sobre elemesmo. Só esse discurso pode revelar, como originária e constitutiva do homem, essa dialética do"saber" e do "querer", do fato e do valor, do ser e do dever-ser. Ela é esse lugar onde aquilo que foiconquistado à maneira do "fato", faz valer seus direitos em revestir-se da modalidade do "valor" edo "sentido". Com esse "saber-querer", a biologia, a psicologia, a sociologia etc, não somente po-dem, mas devem cooperar, sob o controle do pensamento livre, para a definição de uma ética daciência. Por isso, não podemos admitir que o conhecimento objetivo possa constituir a única finali-dade, o único valor. Porque, não sendo capaz de fundar uma ética, torna-se incapaz de constituir ovalor supremo do homem. Os valores não podem surgir de um saber sobre o homem, mas de umquerer do homem, ser inacabado e sempre aberto às possibilidades futuras.

(H. Japiassu, O mito da neutralidade científica, p. 9 e segs.)

134

A CIÊNCIAGREGA

M. P-M. Schuhl observou na ideologia dessa sociedade de escravos as características que talvez, tenhambloqueado antecipadamente o pensamento em direção à técnica: à ordem de valores constituídos pela contem-plação, pela vida liberal e ociosa, pelo domínio do natural, a cultura grega opõe, como sendo negativas, ascategorias depreciadas do prático, do utilitário, do trabalho servil e do artificial.

(Jean-Pierre Vernant)

1. Introdução

Por volta dos séculos VII e VI a.C. sur-giu a filosofia na Grécia, mais propriamentenas colônias gregas da Jônia e Magna Grécia.Essa filosofia, conhecida como pré-socrática,representou um esforço de racionalização e dedesvinculamento do pensamento mítico. Ca-racteriza-se ainda pelo prevalecimento dequestões cosmológicas, por especular a res-peito da origem e da natureza do mundo físi-co, procurando a arché, ou seja, o princípiode todas as coisas.

Se, porém, o pensamento racional sedesliga do mito, filosofia e ciência permane-cem ainda vinculadas. Aliás, não haverá se-paração entre elas antes do século XVII. Paraos gregos, há um saber que envolve tanto oconhecimento dos seres particulares (ciência)como o conhecimento do ser enquanto ser(metafísica). Isso significa que falta à ciênciagrega um método próprio que a distinga da fi-losofia.

2. Matemática e mecânica

No Egito, os funcionários do faraó sa-biam fazer a redivisão das terras após o reflu-xo das cheias do Nilo. Além dos agrimenso-res egípcios, também hindus e chineses deuma época mais recuada já conheciam, por

exemplo, as propriedades do triângulo retân-gulo, mas apenas em alguns casos particula-res e, assim mesmo, na aplicação prática. Foio grego Pitágoras de Samos (séc. VI a.C.)quem demonstrou teoricamente o teorema queleva seu nome e generaliza esta relação válidapara todo triângulo retângulo: "O quadrado dahipotenusa é igual à soma dos quadrados doscatetos".

Pitágoras considerava o número a archéde todas as coisas, princípio de onde deriva aharmonia da natureza, feita à imagem da har-monia do número. Esse tipo de reflexão per-mite separar a geometria das preocupaçõespuramente empíricas, tornando-a uma ciênciaracional.

Outras contribuições teóricas foramfeitas na mesma época por Tales de Mileto(séc. VI a.C), matemático e filósofo. Tam-bém é inestimável a contribuição deEuclides (séc. III a .C), matemático deAlexandria, que na obra Elementos sistema-tiza o conhecimento teórico, dando-lhe osfundamentos, ao estabelecer os princípiosda geometria, os conceitos primitivos e ospostulados. Os conceitos primitivos são oponto, a reta e o plano, e não se definem,enquanto os postulados (por exemplo: "porum ponto fora de uma reta só passa uma pa-ralela a essa reta"), devem ser aceitos semdemonstração. Tais princípios constituem o

CAPÍTULO 12

135

ponto de partida sobre o qual se constrói oedifício teórico de qualquer demonstração.

Além da matemática, outra ciência quese desenvolveu entre os gregos foi a mecâni-ca, cujas bases foram dadas por Arquimedes,no século III a.C. O nome de Arquimedes, umpouco envolto em lendas, faz lembrar aconte-cimentos interessantes.

Quando Siracusa, sua cidade natal, en-contrava-se assediada pelos romanos, para aju-dar a defendê-la, Arquimedes construiu enge-nhos mecânicos (catapultas) que lançavam pe-dras surpreendendo os exércitos inimigos, e in-cendiou navios que sitiavam a cidade, por meiode um sistema de lentes de grande alcance.

Outro exemplo conhecido das ativida-des de Arquimedes é o referente à coroa dorei. Em certa ocasião, foi chamado para veri-ficar a suspeita de que o ourives teria inescru-pulosamente substituído parte do ouro porprata. Não podendo derreter a coroa,Arquimedes não sabia como resolver o pro-blema, até que um dia, ao entrar na banheira eobservar o deslocamento da água, teve a fa-mosa "intuição súbita" de um dos mais fecun-dos princípios da hidrostática, segundo o qual"o peso da água deslocada por um corpo nelaimerso é igual à força de empuxo que o líqui-do aplica no corpo".

Por meio dessa grande atividade técnica,que lhe permitiu descobrir princípios funda-mentais da mecânica, Arquimedes passou donível puramente técnico ou prático para o nívelteórico e científico. Além da lei do empuxo,redigiu um tratado de estática, formulou a leide equilíbrio das alavancas e fez estudos sobreo centro de gravidade dos corpos.

Galileu viu em Arquimedes o únicocientista verdadeiro da Grécia, pois já revela-va alguns aspectos fundamentais da experi-mentação moderna: medidas sistemáticas, de-terminação da influência de cada fator queatua no fenômeno e enunciação do resultadosob a forma de lei geral.

Essas novidades, no entanto, não nos de-vem iludir quanto à concepção de ciência naGrécia. Arquimedes é exceção na produçãocientífica grega, mais voltada para a especu-lação racional e desvinculada da técnica. Opróprio Arquimedes, fazendo jus à mentalida-de formalista, preferia mesmo a geometria e ocálculo, construindo aparelhos mais para sedivertir e não como preocupação central desuas atividades.

3. O saber contemplativo

Como explicar a preocupação com o sa-ber contemplativo e a conseqüente desvalori-zação da prática e da técnica que predominamna concepção grega de ciência, como já pon-tuamos na epígrafe deste capítulo?

Não podemos compreender a produçãocultural de um povo sem antes examinar comoos indivíduos se relacionam ao produzir a suaprópria existência. Pela história, sabemos quena Grécia antiga vigorava o sistema escravis-ta, havendo em conseqüência a desvaloriza-ção do trabalho manual, da técnica, do fazerpropriamente dito. Em contraposição, era va-lorizada a atividade intelectual, enquanto puracontemplação, geralmente dissociada da prá-tica. A essa atividade, considerada superior,dedicavam-se aqueles que não precisavam sepreocupar com o dia-a-dia e podiam entregar-se ao ócio, alçando o espírito em altos vôos.

4. Platão

Vimos na Primeira Parte do Capítulo10 (Teoria do conhecimento) que, na tradiçãode Parmênides e Platão, a filosofia grega esta-belece a hierarquia entre razão e sentidos, in-dicando que a razão atinge com dificuldade overdadeiro conhecimento por causa da defor-mação que os sentidos inevitavelmente pro-vocam. Por isso, cabe à razão depurar os en-ganos que os sentidos nos levam a cometer,para que o espírito possa atingir a verdadeiracontemplação das idéias.

Para Platão, se o homem permanecessedominado pelos sentidos, só poderia ter umconhecimento imperfeito, restrito ao mundodos fenômenos, das coisas que são meras apa-rências e que estão em constante fluxo. A esseconhecimento Platão chama de doxa (opi-nião). O verdadeiro conhecimento, a episteme(ciência), é, ao contrário, aquele pelo qual arazão ultrapassa o mundo sensível e atinge omundo das idéias, lugar das essências imutá-veis de todas as coisas, dos verdadeiros mo-delos (arquétipos). Esse é o único mundo ver-dadeiro, e o mundo sensível só existe enquan-to participa do mundo das idéias, do qual éapenas sombra ou cópia. Um cavalo, porexemplo, só é cavalo na medida em que parti-cipa da idéia de "cavalo em si".

136

A cosmologia platônica 5. A ciência aristotélica

A teoria cosmológica se encontra sobre-tudo no diálogo Timeu. A partir dos funda-mentos da teoria das idéias, é possível perce-ber que Platão contrapõe o mundo físico aomundo das idéias, atribuindo àquele o domí-nio da mudança e da aparência.

Como explicar a gênese das coisas domundo?

Geralmente os gregos consideram a ma-téria eterna, não-criada. Também Platão atri-bui a um Demiurgo, enquanto princípio queorganiza a matéria preexistente, a função depôr ordem no Caos inicial. Em algumas pas-sagens, pode-se interpretar que esse princípiodivino é também identificado à idéia do Beme, como tal, é o fim último para onde tendemtodas as coisas, na busca da perfeição.

Caberá ao sábio, ao filósofo, empreen-der a caminhada desde o mundo obscuro dassombras da realidade sensível até a proximi-dade da luz representada pela idéia do Bem.Ou seja, elevar o conhecimento de simplesopinião (que é o conhecimento do vir-a-ser)a ciência (que é o conhecimento do ser ver-dadeiro).

Para que esse processo do conhecimen-to seja possível, é necessário o estudo da ma-temática. Aliás, no pórtico da Academia dePlatão existia um dístico com os seguintes di-zeres: "Não entre aqui quem não souber geo-metria". Isso porque a matemática descreve asrealidades não-sensíveis e é capaz de sedissociar dos sentidos e da prática; na geome-tria, a figura sobre a qual raciocinamosindepende da figura sensível que representa.

Além disso, os gregos têm uma tradiçãode aplicação desinteressada da matemática naastronomia e na música. Desde Pitágoras eramestudadas as relações proporcionais entre osdiferentes comprimentos da corda, bem comoas alterações de tensão ou espessura que mu-dam os sons emitidos pela lira.

Portanto a matemática e a geometria sãoconsideradas como prelúdio da ciência que éa dialética, graças à qual o filósofo poderáchegar ao conhecimento das essências.

Ao contrapor o mundo sensível (lugardo devir) ao mundo das idéias (lugar da imo-bilidade), podemos compreender a visão gre-ga de um mundo voltado para o espírito, ra-cional, estático e que rejeita a realidade damudança, do movimento.

Aristóteles, discípulo de Platão, foi sufi-cientemente crítico para ir além do mestre. Re-cusando o idealismo do mundo das idéias, ad-mite que só o homem concreto existe. Quantoao movimento, parte da constatação da suaexistência, explicando-lhe a origem e a nature-za. Vejamos que tipo de ciência surge daí.

Pressupostos metafísicos

Por trás das afirmações da ciênciaaristotélica há uma série de noções metafísi-cas, quanto à natureza dos corpos e do movi-mento, que já foram abordadas na PrimeiraParte do Capítulo 10 e aqui retomamos sinte-ticamente.

Para Aristóteles, o movimento é expli-cado pelas noções de matéria-forma e ato-po-tência. Enquanto toda substância é constituí-da pela forma, princípio inteligível pelo qualtodo ser é o que é, a matéria é indiferenciada,é pura passividade, possuindo a forma em po-tência. Para passar da potência para o ato, épreciso que um ser já em ato atualize o ser empotência. Assim, a semente, quando enterra-da, tende a se desenvolver e a se transformarno carvalho que era em potência.

O movimento é, pois, a passagem dapotência para o ato. O movimento é "o ato deum ser em potência enquanto tal", é a potên-cia se atualizando.

Aristóteles não se refere apenas ao con-ceito de movimento local. Movimento tam-bém pode ser compreendido como movimen-to qualitativo, pelo qual o corpo tem uma qua-lidade alterada, por exemplo, quando o anal-fabeto aprende a ler. Ou, ainda, como movi-mento quantitativo da planta que cresce, poishá alteração de tamanho. Há também a mu-dança substancial, pela qual um ser começa aexistir (geração) ou deixa de existir (destrui-ção das essências).

Ainda mais: se Aristóteles considera queo movimento é a passagem da potência para oato, é preciso examinar os tipos de causa queocasionam o devir. Para explicar esse proces-so, lembremos o exemplo do artesão esculpin-do uma estátua, atividade em que podemosdistinguir quatro causas: a causa material é omármore; a causa eficiente é o escultor; a cau-sa formal é a forma que a estátua adquire; e a

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causa final é o motivo ou a razão pela qual amatéria passa a ter determinada forma, ou,dito de outra maneira, é a finalidade para aqual a estátua foi feita.

Ou seja: a causa material é aquilo de queuma coisa é feita; a eficiente é aquilo com quea coisa é feita; a formal é aquilo que a coisavai ser; a final é aquilo para o qual a coisa éfeita. Convém lembrar que nem sempre é fá-cil distinguir (mesmo para Aristóteles) as di-ferenças entre a causa formal e a final.

A física aristotélica

A física geral é a ciência que trata do serem movimento. Já explicitamos os pressupos-tos metafísicos da teoria do devir e das quatrocausas, elaborados com a finalidade de supe-rar as ilusões dos sentidos.

Para Aristóteles, os corpos são classifi-cados a partir da teoria dos quatro elementos,elaborada pelo pré-socrático Empédocles, se-gundo a qual os elementos constitutivos detodos os seres são: terra, água, ar e fogo. Essateoria foi aceita até o século XVIII, quandoLavoisier demonstrou que não se tratava deelementos, mas de substâncias compostas.

No universo aristotélico, todos os cor-pos estão dispostos de modo bem determina-do, possuindo um lugar natural conforme suaessência. Segundo a teoria da queda dos cor-pos, o peso e a leveza são qualidades dos cor-pos e determinam formas diferentes do movi-mento. Então, a terra e a água, por serem cor-pos pesados, têm o lugar natural embaixo; oar e o fogo, sendo leves, têm o lugar naturalem cima.

Conseqüentemente, o movimento natu-ral é aquele em que as coisas retornam ao seulugar natural, na ordem estática do cosmos.Uma vez no seu lugar natural, o ser estará rea-lizado e permanecerá em repouso.

Para os gregos, portanto, não há neces-sidade de explicar o repouso, pois a próprianatureza do corpo o explica. O que precisa sercompreendido é o movimento: a ordem natu-ral pode ser alterada por um movimento vio-lento causado pela aplicação de uma força ex-terior. Enquanto o movimento natural é o dapedra que cai, do fogo que sobe, o movimentoviolento é o da pedra lançada para cima, daflecha arremessada pelo arco. Esse movimen-to necessita, durante toda sua duração, de ummotor unido ao móvel, de modo que, suprimi-

do o motor, cessará o movimento. Isso é fácilde explicar no caso do cavalo que puxa umacarroça, mas o exemplo do arremesso de umprojétil requer de Aristóteles alguns artifícios:ao lançar a pedra, a mão comunica o seu pró-prio poder ao ar próximo a ela, provocandoum turbilhão que mantém a pedra em movi-mento; esse poder comunica-se por contigüi-dade e, porque a intensidade diminui a cadatransmissão, o movimento acaba cessando, epelo movimento natural o corpo retorna aolugar natural.

Mais adiante veremos como a físicaqualitativa de Aristóteles, baseada na análiseda essência dos corpos pesados e leves, seráalterada pelas inovações introduzidas porGalileu, no século XVII.

A astronomia aristotélica

A preocupação com o movimento dosastros é muito antiga. Povos como osbabilônios já tinham conhecimento de astro-nomia há dois ou três mil anos antes de Cris-to, e com freqüência esses conhecimentosmisturavam-se a analogias com o destino doshomens, comandado pela junção dos astros.

São os gregos que, pela primeira vez, ten-tam explicar racionalmente o movimento dosastros, procurando entender a natureza do cos-mos (palavra que, em grego, significa "ordem","beleza", e se opõe a caos, "desordem").

Persiste, no entanto, certa mística nes-sas explicações, decorrente do privilégio dadoa algumas formas e noções tais como perfei-ção, eternidade, repouso e o círculo como for-ma perfeita. Daí o movimento uniforme serconsiderado o movimento perfeito, sempreidêntico a si mesmo, e por isso mesmo imutá-vel e eterno. O movimento circular não teminício nem fim; volta sobre si mesmo e conti-nua sempre; é movimento sem mudança.Acrescente-se a isso a concepção do universofinito, limitado pela esfera do Céu, fora doqual não há lugar, nem vácuo, nem tempo...

O geocentrismo

O modelo astronômico de Aristótelesbaseia-se na cosmologia de Eudoxo (400-347a.C), um dos discípulos de Platão. Esse mo-delo é geocêntrico (pois tem a Terra no cen-tro) e é conhecido como "modelo das esferashomocêntricas", em que os sete corpos ceies-

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tes (Lua, Sol e cinco planetas) se acham cra-vados na sua própria esfera. Ao todo existem55 esferas, para que as intermediárias possamfornecer ligações mecânicas necessárias paraa reprodução do movimento. Mas de ondevem o movimento inicial? Só pode ser deDeus, o Primeiro Motor Imóvel, que determi-na o movimento da última esfera, a esfera dasestrelas fixas, transmitido por atrito às esferascontíguas. Esse movimento vai até a Lua, úl-tima esfera interna. No centro acha-se a Ter-ra, também esférica, mas imóvel.

Todos os modelos propostos pelos gre-gos eram geocêntricos, e a única exceção é ade Aristarco de Samos (310-230 a.C), que pro-pôs um revolucionário modelo heliocêntrico(hélios: "Sol"), nunca aceito e até considera-do subversivo.

A hierarquização do cosmos

Outra característica importante nacosmologia aristotélica se encontra na hierar-quização pela qual a natureza do Céu é consi-derada superior à natureza da Terra. O univer-so está dividido em:

• mundo supralunar, constituído pelosCéus, que incluem, na ordem: Lua, Mercúrio,Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e, final-mente, a esfera das estrelas fixas. São corposconstituídos por uma substância desconheci-da por nós, o éter (não confundir com a subs-tância química), que é cristalino, inalterável,imperecível, transparente e imponderável. Oéter é também conhecido como quinta-essên-cia, em contraposição aos quatro elementos.Por esse motivo os corpos celestes sãoincorruptíveis, perfeitos, não-sujeitos a trans-formações. O movimento das esferas é circu-lar, considerado o movimento perfeito.

• mundo sublunar, correspondente à re-gião da Terra, que, embora imóvel ela mesma,é o local dos corpos em constante mudança,portanto perecíveis, corruptíveis, sujeitos amovimentos imperfeitos: aí não mais aconteceo movimento circular das esferas, mas o movi-mento retilíneo para baixo e para cima. Os ele-mentos constitutivos são os já referidos quatroelementos (terra, água, ar e fogo).

As idéias de Aristóteles referentes aouniverso serão retomadas pelo matemático egeômetra Cláudio Ptolomeu, no século II daera cristã, na obra conhecida como Almagesto,

cuja influência se exerce durante a Idade Mé-dia até ser contestada por Copérnico e Galileu.

Algumas considerações sobreAristóteles

Essa hierarquia do cosmos proposta porAristóteles, em que o mundo é dividido emsupralunar e sublunar, estabelece a distinçãode natureza entre a astronomia e a físicaaristotélicas. Apenas no Renascimento essadicotomia será desfeita, quando Galileu e de-pois Kepler e Newton "igualam Céu e Terra",isto é, explicam a física e a astronomia pelasmesmas leis.

A partir da cosmologia, percebemos queos gregos associam a perfeição ao equilíbrio,ao repouso, e que a descrição do cosmos é ade um mundo estático.

Mesmo no mundo das mutações, a ciên-cia aspira ao ideal de imobilidade, procuran-do, por trás das aparências mutáveis das coi-sas, as essências imutáveis: pois é em funçãoda substância, da essência, que em determina-das condições tal corpo se comporta de talmaneira. Por isso a física aristotélica é quali-tativa, porque construída sobre os princípiosque definem as coisas, a partir dos quais sãodeduzidas as conseqüências. Trata-se da va-lorização do método dedutivo, cujo modelo derigor se encontra na matemática. Apesar dis-so, os gregos não matematizaram a física, obraque coube a Galileu.

Da mesma forma, Aristóteles não recor-re à experiência, embora utilize a observação.Aliás, justiça seja feita à sua inestimável con-tribuição aos estudos de biologia. Sendo filhode médico, herdou o gosto pelo assunto e che-gou a classificar cerca de 540 espécies de ani-mais, estabelecendo relações entre eles, alémde ter feito dissecações para estudar suas es-truturas anatômicas.

O fato de não recorrer à experiênciapode ser entendido pela resistência dos gre-gos em utilizarem as técnicas manuais emcampos que consideravam restritos ao sabercontemplativo. Por isso, diante da queda doscorpos, Aristóteles pergunta "por quê?" e não"como?". Se fizesse essa última pergunta, pro-cederia à descrição do fenômeno, processoeste que só foi iniciado pelos modernos. Mas,perguntando "por quê?", envereda pela pro-cura das causas, desembocando inevitavel-mente na discussão metafísica da essência dos

139

corpos. Por isso, a ciência aristotélica é filo-sófica, centrada na argumentação baseada nosprincípios.

Além disso, esse procedimento valorizaa perspectiva finalista que torna a ciência gre-ga tipicamente teleológica (telos: "fim"). Se-gundo Aristóteles, todo corpo tende a realizara perfeição que tem em potência, a atingir aforma que lhe é própria e o fim a que se desti-na. "A natureza é o que tende para um fim,em movimento contínuo, em virtude de umprincípio imanente." Como vimos, o corpopesado tende para baixo, que é seu lugar natu-ral; a semente tende a se transformar em árvo-re; as raízes adentram no solo para nutrir a

planta etc. A concepção teleológica serácriticada na ciência moderna, no século XVII.

Outro aspecto importante da metafísicaaristotélica é que, ao explicar o movimentocomo passagem da potência para o ato, Aris-tóteles faz a física desembocar numa teologia:de causa em causa, é preciso parar numa pri-meira causa (incausada), num primeiro motor(imóvel), evidentemente de natureza divina, eque daria movimento a todas as coisas. Aris-tóteles chama esse Deus de Ato Puro (pois nãotem potência alguma) e de Primeiro MotorImóvel (ver texto complementar do Capítulo13 — A ciência medieval).

Exercícios

1. Qual é a relação entre filosofia e ciência naAntiguidade?

2. Por que consideramos que os gregos foramos primeiros matemáticos, e não os egípcios?

3. Por que Arquimedes é considerado umaexceção entre os cientistas gregos?

4. Que relação pode ser estabelecida entre omodo de produção grego (que é escravista) e o tipode pensamento científico por eles produzido?

5. A partir da teoria das idéias, quais as de-corrências para a cosmologia de Platão?

6. Quais são os pressupostos metafísicos daciência aristotélica?

7. Em que sentido a física aristotélica é filo-sófica e teleológica?

8. Para Aristóteles a física e a astronomiaconstituem ciências absolutamente diversas. Expli-que isso a partir da hierarquia do mundo sublunar esupralunar.

9. Leia o fragmento 1 do texto complementare explique:

a) Como Aristóteles valoriza o sabercontemplativo?

b) A partir das hierarquias referidas no pará-grafo 12, qual é a relação entre fazer e pensar?

10. Leia o fragmento 2 e responda:

a) Qual é a referência que Aristóteles faz aospré-socráticos?

b) Qual é o avanço que Aristóteles julga ter emrelação a eles?

Texto complementar

Metafísica

1

(10) É portanto verossímil que quem primeiro encontrou uma arte qualquer, fora das sensações co-muns, excitasse a admiração dos homens, não somente em razão da utilidade da sua descoberta, maspor ser sábio e superior aos outros. E com o multiplicar-se das artes, umas em vista das necessidades,outras da satisfação, sempre continuamos a considerar os inventores destas últimas como mais sábi-os que os das outras, porque as suas ciências não se subordinam ao útil. (11) De modo que, consti-

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tuídas todas as [ciências] deste gênero, outras se descobriram que não visam nem ao prazer nem ànecessidade, e primeiramente naquelas regiões onde [os homens] viviam no ócio. É assim que, emvárias partes do Egito, se organizaram pela primeira vez as artes matemáticas, porque aí se consentiuque a casta sacerdotal vivesse no ócio. (12) Já assinalamos na Ética a diferença que existe entre aarte, a ciência e as outras disciplinas do mesmo gênero. O motivo que nos leva agora a discorrer éeste: que a chamada filosofia é por todos concebida como tendo por objeto as causas primeiras e osprincípios; de maneira que, como acima se notou, o empírico parece ser mais sábio que o ente queunicamente possui uma sensação qualquer, o homem de arte mais do que os empíricos, o mestre-de-obras mais do que o operário, e as ciências teoréticas mais que as práticas. Que a filosofia seja aciência de certas causas e de certos princípios é evidente.

2

É pois manifesto que a ciência a adquirir é a das causas primeiras (pois dizemos que conhece-mos cada coisa somente quando julgamos conhecer a sua primeira causa); ora, causa diz-se emquatro sentidos: no primeiro, entendemos por causa a substância e a qüididade (o "porquê" reconduz-se pois à noção última, e o primeiro "porquê" é causa e princípio); a segunda [causa] é a matéria e osujeito; a terceira é a de onde [vem] o início do movimento; a quarta [causa], que se opõe à preceden-te, é o "fim para que" e o bem (porque este é, com efeito, o fim de toda a geração e movimento). Jáestudamos suficientemente estes princípios na Física; todavia queremos aqui associar-nos aos que,antes de nós, se aplicaram ao estudo dos seres e filosofaram sobre a verdade. (2) É, com efeito,evidente que eles também falam em certos princípios e em certas causas; tal exame será portanto útilao nosso estudo, porque ou descobriremos uma outra espécie de causas, ou daremos mais crédito àsque acabamos de enumerar. A maior parte dos primeiros filósofos considerou como princípios detodas as coisas unicamente os que são da natureza da matéria. E aquilo de que todos os seres sãoconstituídos, e de que primeiro se geram, e em que por fim se dissolvem, enquanto a substânciasubsiste, mudando-se unicamente as suas determinações, tal é, para eles, o elemento e o princípiodos seres.

(Aristóteles, Metafísica, Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 212-213 e 216.)

141

A imperatriz Teodora e seu séquito,em um dos mosaicos da igreja deS. Vital, em Ravena.

O retiro de S. Joaquim entreos pastores, de Ciotto.

Observe as reproduções. O mosaicobizantino data do século VI, início da IdadeMédia; a pintura de Giotto é do começo doséculo XIV. Representam dois momentos his-tóricos diferentes.

Nos mosaicos bizantinos o imperador ésempre a figura central, geralmente maior queas demais do seu séquito. A rigidez e a imobili-

dade da representação não decorrem de inabili-dade do artista, mas da forma pela qual se ex-pressa determinado conteúdo, marcado pela rí-gida hierarquia das classes, decorrente da orga-nização social teocrática (poder divino dos reis).

Por outro lado, Giotto, primeiro mestredo novo humanismo emergente (pré-renas-centista), quebra a rigidez da representação,

142

CAPÍTULO 13A CIÊNCIAMEDIEVAL

introduzindo o movimento na expressão desituações em que o drama humano se mostrade maneira mais significativa. A cena situa-seem paisagem terrena, o fundo é trabalhadocom árvores, pedras, animais; as figuras têm"movimento" e há o início de superação dabidimensionalidade, até então característicada pintura medieval.

1. A filosofia medieval

Com a queda do Império Romano (séc. V),a religião surge lentamente como elementoagregador dos inúmeros reinos bárbaros forma-dos após sucessivas invasões; seus chefes sãopouco a pouco convertidos ao cristianismo, e aIgreja se transforma em soberana absoluta davida espiritual do mundo ocidental.

A cultura greco-romana quase desapa-rece nos períodos mais turbulentos da implan-tação do modo feudal de produção, mas per-manece latente, guardada nos mosteiros. Sãoos monges os únicos letrados em um mundoonde nem os servos nem os nobres sabem ler.

No entanto, não devemos considerartodo o período medieval (sécs. V a XV, por-tanto mil anos) como sendo de obscuridade.Em vários momentos, há expressões diversasde produção cultural às vezes tão heterogêneaque se torna difícil reduzir o período àquiloque se poderia chamar pensamento medieval.Uma constante se faz notar no pano de fundodesse pensamento: a tentativa de conciliar arazão e a fé. A temática religiosa predominana preocupação apologética, isto é, na defesada fé cristã e no trabalho de conversão dos não-cristãos. A máxima predominante é "Crer paracompreender, e compreender para crer". A fi-losofia, embora se distinguindo da teologia, éinstrumento desta, é serva da teologia.

Apesar do risco de simplificação, dividi-mos a Idade Média em duas tendências funda-mentais: a filosofia patrística e a escolástica.

A filosofia patrística

A filosofia patrística inicia-se ainda no pe-ríodo decadente do Império Romano, no séculoIII. Essa filosofia auxilia a exposição racional dadoutrina religiosa e se acha contida nos trabalhosdos chamados Padres da Igreja, cujas principaispreocupações são as relações entre fé e ciência,a natureza de Deus e da alma e a vida moral.

A retomada da filosofia platônica, ba-seada na predileção pelo supra-sensível, con-tribui para a fundamentação da necessidade deuma ética rigorosa, da abdicação do mundo,do controle racional das paixões.

Alguns dos representantes da patrística fo-ram Clemente de Alexandria, Orígenes eTertuliano. Mas a principal figura é Santo Agos-tinho (354-430), bispo de Hipona. Seguindo a tra-dição platônica, que via sempre o Perfeito por trásde todo imperfeito e a Verdade absoluta por trásde todas as verdades particulares, também SantoAgostinho pensa numa iluminação pela qual averdade é infundida no espírito humano por Deus.

A escolástica

A escolástica é a especulação filosófi-co-teológica que se desenvolve do século IXaté o Renascimento. Tem esse nome por tersido dominante nas escolas que começaram asurgir durante o Renascimento carolíngio.

Carlos Magno (séc. VIII), preocupadoem incrementar a cultura, funda as escolasmonacais e catedrais (junto aos mosteiros eigrejas), contratando diversos sábios, como oinglês Alcuíno. O ensino aí desenvolvido ba-seia-se sobretudo no trivium (gramática, retó-rica e dialética) e no quadrivium (aritmética,música, geometria e astronomia).

A partir do século XI surgem as univer-sidades (de Paris, Bologna, Oxford etc), que,espalhadas por toda a Europa, tornam-se lo-cais de fecunda reflexão filosófica.

Já no século XII, aparecem traduções deobras de Arquimedes, Hero de Alexandria,Euclides, Aristóteles e Ptolomeu. Muitas ve-zes o pensamento desses autores chegava de-formado à Europa, pois era traduzido do gre-go para o sírio, do sírio para o árabe, do árabepara o hebraico e do hebraico para o latimmedieval. Por isso, a Igreja condenou de iní-cio o pensamento aristotélico, que na tradu-ção árabe adquirira contornos panteístas.

Consultando a tradução feita diretamentedo grego, Santo Tomás de Aquino recuperou opensamento original de Aristóteles. Mais queisso, fez as devidas adaptações à visão cristã eescreveu uma obra monumental, a Suma teoló-gica, onde, uma vez mais, as questões de fé sãoabordadas pela "luz da razão" e a filosofia é oinstrumento que auxilia o trabalho da teologia.É com um Aristóteles cristianizado que surgeentão a filosofia aristotélico-tomista.

143

2. A ciência medieval

Pelo que podemos ver, a tradição grega,retomada na Idade Média, valoriza o conheci-mento teórico em detrimento das atividadespráticas. Isso continua sendo possível porqueo modo de produção feudal, assentado no tra-balho do servo da gleba, também despreza aatividade manual, ao mesmo tempo que valo-riza o nobre guerreiro, para o qual o ócio de-corre de seus privilégios.

Nesse panorama, a ciência continua vol-tada para a discussão racional e desligada datécnica e da pesquisa empírica. Os instrumen-tos de trabalho são rudimentares: para conhe-cer os corpos, só se têm os olhos; para avaliaro frio e o quente, só se tem a pele.

Sabemos que geralmente as leis cientí-ficas necessitam de uma medida de tempo.Ora, até o século XVI os relógios eram ra-ros, e o próprio Galileu, já no século XVII,usou uma clepsidra (relógio de água) paramedir o tempo que um corpo leva para des-cer no plano inclinado. Isso sem falar nasunidades de medida: Mersenne, outro filóso-fo do século XVII, curiosamente, juntou odesenho do pé do rei a um de seus livros so-bre o assunto: esse desenho serviu como me-dida nas suas experiências.

Se a ciência medieval não é experimen-tal, tampouco se utiliza da matemática, o queocorrerá apenas na Idade Moderna. Por isso, aciência permanece qualitativa, como na Anti-guidade, mesmo porque os recursos disponí-veis da matemática ainda são incipientes parase proceder à matematização. Por exemplo,alguns representantes da Escola de Oxfordtentaram definir o conceito de velocidade, oque não foi possível devido à inexistência docálculo infinitesimal.

Aliás, as dificuldades existem inclusiveno nível mais simples, por exemplo, o da nota-ção dos números. Embora conhecidos desde oséculo X, o uso dos algarismos arábicos não seacha generalizado até o Renascimento, demodo que continuava sendo costume o recursoaos algarismos romanos. Isso dificultava os cál-culos, o que pode ser observado, por exemplo,na divisão de MDCXXXII por IV, impossívelde ser resolvida sem o auxílio do ábaco, umaprancheta provida de bolas que existe até hoje.

Qual o lugar da ciência no mundomedieval?

Pelo que pudemos observar até aqui, hárelutância ou impossibilidade em incorporaras tentativas de experimentação e matemati-zação das ciências da natureza. A preocupa-ção com a vida depois da morte faz prevale-cer o interesse pelas discussões religiosas.Mesmo quando se pede ajuda à razãofilosofante, é ainda a revelação que surgecomo critério último de verdade na produçãodo conhecimento.

A retomada do pensamento aristotélicotraz de novo a física qualitativa e a astrono-mia geocêntrica. As explicações de Aristóte-les são completadas com o modelo de Ptolo-meu (séc. II), cuja obra famosa, Almagesto,torna-se a última palavra em astronomia atéCopérnico, no século XVI.

"Essa visão do universo em duas re-giões, uma inferior, outra superior, uma sujei-ta à mudança, outra não, iria tornar-se outradoutrina básica da filosofia e cosmologiamedievais. Oferecia uma segurança serena,cósmica, a um mundo amedrontado, afirman-do a sua essencial estabilidade e permanên-cia, mas sem ir ao ponto de pretender que to-das as mudanças fossem meras ilusões, semnegar a realidade do crescimento e dodeclínio, da geração e da destruição."1

O modelo da astronomia medievalreproduz o desejo de permanência de uma or-dem estabelecida e hierarquizada. A hierar-quia existe na superioridade dos Céus sobre aTerra, em cujo centro se encontra o Inferno; etambém na própria estrutura da Igreja, constí-tuida pelo papa, cardeais, bispos etc. Da mes-ma forma, reproduz a divisão da sociedade emreis, suseranos, vassalos e servos.

3. Exceções à tradição medieval

Apesar da predominância das questõesreligiosas que afastam os filósofos das discus-sões referentes à natureza, são muitas as ex-ceções a indicar pontos de ruptura que prepa-ram de certa forma a crise do modelo científi-co da tradição grega. Esse processo pode serentendido a partir do aparecimento das cida-

A. Koestler, Os sonâmbulos, p. 32.

144

des e da expansão do comércio: a economiacapitalista emergente necessitará de um outrosaber, mais prático e menos contemplativo.

É importante o papel desempenhado pe-los franciscanos2, o trabalho dos alquimistas ea mentalidade árabe.

Roger Bacon

Roger Bacon (séc. XIII), padre franciscanoque pertencia à Escola de Oxford, foi perseguidoem várias ocasiões devido às idéias pouco enqua-dradas no mundo escolástico. Além de procuraraplicar o método matemático à ciência da nature-za, fez diversas tentativas para torná-la experi-mental, sobretudo no campo da óptica. Apesar deargumentar que "ver com seus próprios olhos"não é incompatível com a fé, não conseguiudemover os medievais da desconfiança geradapor qualquer tipo de experimentação.

A alquimia

A alquimia foi uma atividade prática emvoga no século XIII e teve importância muitogrande na descoberta de novas substânciasquímicas, como o processo para a extração demercúrio, as fórmulas para preparar vidro eesmalte, bem como o desenvolvimento de no-ções sobre ácidos e seus derivados.

O saber oficial desdenhava essa ativida-de, por demais vinculada às práticas manuais.Além disso, as técnicas descobertas eram comfreqüência guardadas em segredo, e os docu-mentos, de difícil leitura, criavam uma série desuperstições e uma aura mística que prejudica-vam a avaliação objetiva das reais descobertasda química nascente. A Igreja denunciava ocaráter herético de tais práticas, finalmenteproibidas por bula papal em 1317. A Inquisiçãocontrolava os infratores com freqüentes perse-guições, muitas vezes com a condenação à fo-gueira sob acusação de bruxaria.

Não se pode negar a importância da alqui-mia no desenvolvimento das técnicas de labora-tório, mas suas explicações teóricas eramantropomórficas, no sentido de que as substân-cias inorgânicas eram vistas como seres vivos,compostos de corpo e alma. Como se acreditavaque as características e propriedades de umasubstância eram determinadas por seu espírito,

havia a crença na transmutação, ou transferên-cia do espírito de um metal nobre para a matériade metais comuns. Surge, então, a ilusão da pro-cura da "pedra filosofal" — com a qual qualquersubstância poderia ser transformada em ouro —ou ainda a busca do "elixir da longa vida".

Os árabes

Outra exceção na tradição científica me-dieval é a contribuição dos árabes que, no seumovimento expansionista, conhecem a cultu-ra grega e iniciam sua divulgação por meio detraduções e da criação de centros de estudos.Pensadores fecundos como Al Kindi, Alfarabi,Avicena e Averrois transmitem os conheci-mentos dos antigos no campo das ciências emgeral. São os introdutores, no Ocidente, dosalgarismos arábicos e os criadores da álgebra.Na alquimia, pela sistematização dos fatosobservados durante gerações e em trabalhosefetuados em laboratório, aceleram a passa-gem do ocultismo para o estudo racional. Naastronomia, aperfeiçoam os métodostrigonométricos para o cálculo das órbitas dosplanetas, chegando a introduzir o conceito deseno. Na medicina, transmitem as obras deHipócrates e Galeno, além de organizarem umtrabalho original de sistematização.

4. A decadência da escolástica

Do século XIV em diante, a escolásticasofre um processo de autoritarismo de nefas-tas influências no pensamento filosófico ecientífico. Posturas dogmáticas, contrárias àreflexão, obstruem as pesquisas e a livre in-vestigação. O princípio da autoridade, ou seja,a aceitação cega das afirmações contidas nostextos bíblicos e nos livros dos grandes pensa-dores, sobretudo Aristóteles, impede qualquerinovação. É a obscura fase do magister dixit,que significa "o mestre disse"...

O rigor do controle da Igreja se faz sen-tir nos julgamentos feitos pelo Santo Ofício(Inquisição), órgão que examinava o caráterherético ou não das doutrinas. Conforme ocaso, as obras eram colocadas no Index, listadas obras proibidas. Se a leitura fosse permi-tida, a obra recebia a chancela Nihil obstat

Ler a esse respeito o interessante romance de Umberto Eco, O nome da rosa, centrado nas contradições do período.

145

(nada obsta), podendo ser divulgada. Quandoconsideravam o caso muito grave, o próprioautor era julgado.

Foi trágico o desfecho do processo con-tra Giordano Bruno (séc. XVI), acusado depanteísmo e queimado vivo por ter defendidocom exaltação poética a doutrina da infinitude

do universo e por concebê-lo não como umsistema rígido de seres, articulados em umaordem dada desde a eternidade, mas como umconjunto que se transforma continuamente.Foi talvez a lembrança ainda recente desseacontecimento que tenha levado Galileu aabjurar, temendo o mesmo destino de Bruno.

Exercícios

1. Por que a Idade Média, tal como a Anti-guidade grega, desvaloriza a preocupação com atécnica?

2. Quais são as exceções que se contrapõemao pensamento contemplativo medieval?

3. Quais são as principais características dafísica e da astronomia medievais?

4. Explique o significado do texto a seguir:

"Digo a meus ouvintes: eis o que diz Aristóte-les; eis o que afirma Platão; Galeno opina assim, eHipócrates tem este outro parecer. Os que me ou-vem são forçados a reconhecer que minhas asser-ções são dignas de crédito, visto não procederem

de mim, mas das mais insignes autoridades na ma-téria, que falam por mim... Se se trata, porém, deidéias brotadas de minha cabeça e que não se en-contram nas minhas compilações, eu as abandonologo, como suspeitas de erro, ou as deixo de lado,até que caduquem e desapareçam antes de ver a luzdo dia." (Declaração de um professor da Universi-dade de Pisa, no séc. XVI, segundo Laloup.)

5. Leia o texto complementar de Santo Tomáse responda:

a) Quais os conceitos da metafísica aristotéli-ca que se encontram no texto?

b) Como, a partir desse texto, podemos afir-mar que permanece a vinculação entre filosofia eciência na Idade Média?

Texto complementar

Deus é imóvel5. Daqui se infere ser necessário que o Deus que põe em movimento todas as coisas é imóvel. Com

efeito, por ser a primeira causa motora, se Ele mesmo fosse movido, sê-lo-ia ou por si mesmo ou poroutro. Ora, Deus não pode ser posto em movimento por outra causa motora, pois neste caso haveria umaoutra causa anterior a Ele, com o que já não seria Ele a primeira causa motora. Se fosse movido por simesmo, teoricamente isto poderia ocorrer de duas maneiras; ou sendo Deus, sob o mesmo aspecto, causae efeito ao mesmo tempo, ou sendo Ele, sob um aspecto, causa de si mesmo, e, sob outro, efeito.

Ora, a primeira hipótese não pode ocorrer, pois tudo o que é movido está em potência, ao passo queo que move está em ato (na qualidade de causa motora). Se Deus fosse sob um e mesmo aspecto causa eefeito ao mesmo tempo, seria necessariamente potência e ato sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, oque é impossível.

Tampouco pode-se verificar a segunda hipótese acima apontada. Pois, se Deus fosse sob um aspec-to causa motora, e sob outro efeito movido, já não seria a primeira causa em virtude de si mesmo. Ora, oque é por si mesmo, é anterior ao que não o é. Logo, é necessário que a primeira causa motora sejatotalmente imóvel.

6. A mesma argumentação pode ser feita a partir das causas motoras e dos defeitos existentes nouniverso criado. Com efeito, parece que todo o movimento procede de uma causa imóvel, a qual não émovida segundo o mesmo tipo de movimento. Assim, observamos que os processos de alteração, degeração e de corrupção verificados no reino criado inferior se reduzem ao corpo celeste (o Sol) como àsua primeira causa motora, a qual por sua vez não é movida por nenhuma outra situada dentro da mesmaesfera, uma vez que não pode ser gerada, nem corrompida, nem alterada. Conclui-se, portanto, necessa-riamente que Aquele que constitui o princípio primário de todo movimento é totalmente imóvel.

(Santo Tomás de Aquino, Compêndio de teologia, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cul-tural, 1973, p. 78.)

146

O silêncio desses espaços infinitos me apavora.

"O silêncio desses espaçosinfinitos me apavora "

os pensamentos estraçalhados dePascal

são a crise de uma consciênciaexcepcional

no limiar de uma nova erao místico Pascalcontempla o céu estreladonuma vã espera de vozeso céu calou-seestamos sós no infinitodeus nos abandonou"daquela estrela à outraa noite se encarceraem turbinosa vazia desmesuradaquela solidão de estrela

(Pascal)

O silêncio de Pascal

àquela solidão de estrela "(leopardi via haroldo de campos)1

nenhum ufo2

no close contact of the third kind3

a solidão "cósmica " de Pascalé o pendant do vazio

de sua classe socialcuja hegemonia está para terminar

os germes da revolução francesaque vai derrubar a nobrezae colocar a burguesia no poderjá estão no arPascal ouve nos céuso tremendo silênciode uma classe que já dissetudo que tinha que dizerpela boca da história.

(Paulo Leminski, in Folha de S. Paulo, 27 jul. 1985, Folha Ilustrada.)

1. Introdução

O poeta Paulo Leminski (1944-1989) serefere, entre outras coisas, à revolução cientí-fica do século XVII, quando se deu a substi-

tuição da teoria geocêntrica, aceita durantemais de vinte séculos. A nova teoriaheliocêntrica não retirou apenas a Terra do

"leopardi via haroldo de campos": citação de versos do poeta italiano Leopardi através de uma recriação do poetaconcretista brasileiro Haroldo de Campos.

2 UFO: "unknown flying object", ou seja, OVNI, "objeto voador não-identificado".3 "no close contact of the third kind": nenhum contato imediato de terceiro grau.

147

CAPÍTULO 14A CÉNCIA NA

IDADE MODERNAA revoluçãocientífica doséculo XVII

centro do universo, mas também esfacelouuma construção estética que ordenava os es-paços e hierarquizava o "mundo superior dosCéus" e o "mundo inferior e corruptível daTerra". Galileu geometrizou o universo, igua-lando todos os espaços. Ao descobrir a Via-Láctea, contrapôs, a um mundo fechado efinito, a idéia da infinitude do céu. Por issofaz sentido a frase de Pascal: "O silêncio des-ses espaços infinitos me apavora"...

A questão, no entanto, não é apenascientífica. Se fosse, Galileu não teria sidoobrigado a abjurar sua teoria nem teria sidorecolhido a prisão domiciliar. Há algo maisque se quebra, além da ordem cósmica, e cujascausas são anteriores a esse período.

No Capítulo 12 (A ciência grega), vimosque o modo de produção escravista determinauma concepção de ciência puramentecontemplativa e desligada das preocupaçõescom a técnica. Isso se explica pela desvalori-zação do trabalho manual, ofício de escravos.Também na Idade Média a situação não émuito diferente, pois as classes antagônicassão constituídas pelos senhores e servos dagleba: nobres guerreiros e servos laboriosos.

Ora, a situação se altera com o adventoda nova classe comerciante emergente, a bur-guesia, saída dos burgos formados nos arra-baldes das cidades por antigos servos que,com seu trabalho, compravam a liberdade e ade suas cidades, desobrigando-se da obediên-cia aos senhores feudais.

Então, o valor do novo homem que sur-ge se encontra não mais na família ou linha-gem, mas no prestígio resultante do seu esfor-ço e capacidade de trabalho. O modo de pro-dução que começa a vigorar é o capitalista, ecom ele se dá a superação dos valores medie-vais. A classe ociosa, opõe-se o valor do tra-balho; à riqueza baseada em terras, opõe-se ovalor da moeda, dos metais preciosos, da pro-dução manufatureira em crescimento, da pro-cura de outras terras e mercados.

O renascimento científico deve ser com-preendido, portanto, como a expressão danova ordem burguesa. Os inventos e desco-bertas são inseparáveis da ciência, já que, parao desenvolvimento da indústria, a burguesianecessitava de uma ciência que investigasseas forças da natureza para, dominando-as, usá-las em seu benefício. A ciência não é mais aserva da teologia, deixa de ser um sabercontemplativo, formal e finalista, para que,

indissoluvelmente ligada à técnica, possa ser-vir à nova classe.

Reconhecido o terreno onde germinamas novas idéias, podemos compreender me-lhor o impacto que elas causaram, já que são aexpressão do esfacelamento do mundo feudal.

2. Características do pensamentomoderno

Racionalismo

Desde o Renascimento, a religião, su-porte do saber, vinha sofrendo diversos aba-los com o questionamento da autoridade pa-pal, o advento do protestantismo e a conse-qüente destruição da unidade religiosa. Aocritério da fé e da revelação, o homem moder-no opõe o poder exclusivo da razão de dis-cernir, distinguir e comparar. Ao dogmatismo,opõe a possibilidade da dúvida. Desenvolven-do a mentalidade crítica, questiona a autori-dade da Igreja e o saber aristotélico. Assumeuma atitude polêmica perante a tradição. Só arazão é capaz de conhecer.

Antropocentrismo

Enquanto o pensamento medieval é pre-dominantemente teocêntrico (centrado na figurade Deus), o homem moderno coloca a si própriono centro dos interesses e decisões. A laicizaçãodo saber, da moral, da política é estimulada pelacapacidade de livre exame. Da mesma formaque em ciência se aprende a ver com os própriosolhos, até na religião os adeptos da Reforma de-fendem o acesso direto ao texto bíblico, cada umtendo o direito de interpretá-lo.

Além disso, o homem moderno desco-bre sua subjetividade. Enquanto o pensamen-to antigo e medieval parte da realidadeinquestionada do objeto e da capacidade dohomem de conhecer, surge na Idade Modernaa preocupação com a "consciência da cons-ciência". O problema central é o problema dosujeito que conhece, não mais do objeto co-nhecido. Antes se perguntava: "Existe algu-ma coisa?", "Isto que existe, o que é?". Agorao problema não é saber se as coisas são, masse nós podemos eventualmente conhecer qual-quer coisa. Das questões epistemológicas, isto

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é, relativas ao conhecimento, deriva a ênfaseque marcará a filosofia daí por diante.

Saber ativo

Em oposição ao saber contemplativodos antigos, surge uma nova postura diante domundo. O conhecimento não parte apenas denoções e princípios, mas da própria realidadeobservada e submetida a experimentações. Damesma forma, o saber deve retornar ao mun-do para transformá-lo. Dá-se a aliança daciência com a técnica.

Além da participação de Galileu, Keplere Newton, outros cientistas se mostram fecun-dos: William Gilbert estuda os fenômenos elé-tricos e descobre as propriedades do ímã;Mariotte estuda a elasticidade do gás; VonGuericke inventa a máquina pneumática e amáquina elétrica; Pascal e Torricelli criam obarômetro e revelam a existência da pressãoatmosférica; Huygens desenvolve a teoriaondulatória da luz.

Na matemática, surge a geometria ana-lítica com Fermat e Descartes; o cálculo dife-rencial com Newton e Leibniz; o cálculo dasprobabilidades com Pascal; o cálculo infinite-simal com Leibniz e Bernoulli.

A anatomia, desde o século XVI, tivera acontribuição de Vesálio, que, desafiando aproibição religiosa de dissecação de cadáveres,consegue desenvolver um estudo mais objeti-vo da anatomia humana. Servet e Harvey ex-plicam a circulação sanguínea, Hooke descre-ve a estrutura celular das plantas.

Nunca antes na história da humanidadeo saber fora tão fecundo nem desenvolverasemelhante capacidade de transformação darealidade pela técnica.

3. A física na Idade Moderna

"A filosofia encontra-se escrita nestegrande livro que continuamente se abre peran-te nossos olhos (isto é, o universo), que não sepode compreender antes de entender a língua

Galileu Galilei.

e conhecer os caracteres com os quais está es-crito. Ele está escrito em língua matemática,os caracteres são triângulos, circunferências eoutras figuras geométricas, sem cujos meios éimpossível entender humanamente as pala-vras: sem eles nós vagamos perdidos dentrode um obscuro labirinto."4

Galileu Galilei (1564-1642), italianoque lecionou nas universidades de Pisa e dePádua, foi responsável pela superação doaristotelismo e pelo advento da modernaconcepção de ciência. Escreveu O ensaia-dor, Diálogo sobre os dois máximos siste-mas do mundo, Discurso sobre duas novasciências.

Sua vida foi marcada pela perseguiçãopolítica e religiosa, por defender a substitui-ção do modelo ptolomaico do mundo (geo-centrismo) pelo modelo copemicano (helio-centrismo). Condenado pela Inquisição, foiobrigado a abjurar publicamente suasidéias, sendo confinado em prisão domiciliara partir de 1633.5

4 Galileu, O ensaiador, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 119.5 Em novembro de 1992 o Vaticano anunciou a reabilitação oficial de Galileu. Dentre os seis cientistas indicados pelo papa João

Paulo II para formar a comissão de estudos da Pontifícia Academia de Ciências encontrava-se o brasileiro Carlos Chagas Filho.

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Além da astronomia, a contribuição deGalileu foi importante também na física.Compreendendo as falhas da física antiga,Galileu empreendeu uma mudança radical nocampo da óptica geométrica (lentes, reflexãoe refração da luz), termologia (foi o inventordo termômetro), hidrostática, óptica física(teoria sobre a natureza da luz) e principal-mente no campo da dinâmica, da qual lançouos fundamentos.

Toda essa produção foi possível devido avários fatores, alguns já mencionados no capí-tulo anterior. Galileu tinha uma oficina complano inclinado, termômetro, luneta, relógio deágua. Embora engenhocas um tanto primitivas,eram suficientes para mostrar o valor dado àobservação, pela qual se torna possível aban-donar a ciência especulativa e caminhar em di-reção à construção de uma ciência ativa.

Em oposição ao discurso formal, Galileusolicita o testemunho dos sentidos e o auxílioda técnica. Valoriza a experiência e se preo-cupa com a descrição dos fenômenos. En-quanto a física antiga procura o "porquê" dofenômeno e o explica pelas qualidades ineren-tes aos corpos, Galileu se interessa pelo"como", o que supõe a descrição quantitativado fenômeno.

Tal descrição torna-se possível porqueGalileu faz distinção entre qualidades secun-dárias (cor, odor, sabor) e qualidades primá-rias (forma, figura, número e movimento). Asqualidades secundárias são subjetivas, en-quanto as primárias são objetivas e passíveisde tratamento matemático, o que permitiu aGalileu assimilar o espaço físico ao espaçogeométrico de Euclides.

Quanto ao movimento, Galileu desfez adiferença aristotélica entre movimento quali-tativo e movimento quantitativo, pois todamudança torna-se quantitativa. Com isso, es-tabelece um corte entre as duas leituras domundo, pois, onde Aristóteles via qualidades(corpos pesados ou leves), Galileu descobrerelações e funções. Quando estuda Arquime-des e vê que as leis do equilíbrio dos corposflutuantes são verdadeiras, destrói a teoria da"gravidade" e "leveza" dos corpos. "Subir" e"descer" não atestam mais a ordem imutáveldo mundo, a essência escondida das coisas.Por exemplo, onde está a "gravidade" da ma-deira quando mergulhada na água? Torna-se"leve", a ponto de só poder mover-se para bai-

xo se for forçada. Ao explicar "como" os cor-pos caem (e não "por que" caem), Galileu des-cobre a relação entre o tempo que um corpoleva para percorrer o plano inclinado e o es-paço percorrido. Repetidas experiências con-firmam as relações constantes e necessárias,donde decorre a lei da queda dos corpos,traduzida numa forma geométrica.

No entanto, não podemos concluir estardiante de uma ciência puramente experimen-tal e empírica. O procedimento de Galileu nãoé sempre indutivo, não é sempre que ele partedos fatos para as leis. Muitas vezes realiza"experiências mentais", pelas quais imaginasituações impossíveis de verificar experimen-talmente e tira conclusões desses raciocínios.O que dá validade científica aos processos in-telectuais é que os resultados devem ser sub-metidos à comprovação. Uma grande desco-berta alcançada com esse método foi o princí-pio da inércia, segundo o qual qualquer obje-to não submetido à ação de uma força perma-nece indefinidamente em repouso ou em mo-vimento uniforme. Ora, isso não acontece defato, pois não é levado em conta o atrito, maspode ser pensado como se ocorresse.

Galileu é um dos expoentes que marcamo surgimento dos novos tempos: a ciência nas-cente não é resultado de simples evolução,mas surge de uma ruptura, da adoção de umanova linguagem, sendo, portanto, o fruto deuma revolução científica. Embora na citaçãodo início deste item Galileu se refira à "filo-sofia" (esse saber universal), já começa aí oprocesso de separação da ciência. Método, emgrego, significa "caminho". E esse caminho,Galileu o encontra na união da experimenta-ção com a matemática.

4. A astronomia: o heliocentrismo

Já vimos que o geocentrismo se encon-tra nas obras de Aristóteles, posteriormentecompletadas por Ptolomeu (séc. II). Essa con-cepção perdura durante toda a Antiguidade eIdade Média: o universo medieval era geocên-trico, finito, esférico, hierarquizado.

O geocentrismo é de certa forma confir-mado pelo senso comum: percebemos que aTerra é imóvel e que o Sol gira à sua volta.Isto é confirmado no próprio texto bíblico: emuma passagem das Escrituras, Deus fez parar

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o Sol para que o povo eleito continuasse a lutaenquanto ainda houvesse luz, o que sugere oSol em movimento e a Terra fixa.

O universo aristotélico.

O modelo copernicano.

O modelo copernicano subverte a ordemhierarquizada do cosmos aristotélico, mas con-serva ainda alguns conceitos antigos, como asórbitas circulares e o céu das estrelas fixas, oqual completa um universo finito.

Foi no século XVI que o monge NicolauCopérnico (1473-1543) publicou a obra ondepropunha a teoria heliocêntrica. Apresentadatimidamente como simples hipótese, talvezpor temor à Inquisição, a teoria teve pouca re-percussão e foi praticamente ignorada até oinício do século XVII, quando ressurgiu comouma bomba com Galileu e Kepler.

O telescópio, invenção talvez dos holan-deses, proporcionou a Galileu descobertas va-liosas: para além das estrelas fixas, haveriaainda infindáveis mundos; a superfície da Luaera rugosa e irregular; o Sol tinha manchas, eJúpiter tinha quatro luas! Mas como isso erapossível? Vimos que para os aristotélicos ouniverso era finito, a Lua e o Sol eram com-postos de uma substância incorruptível e per-feita, e Júpiter, engastado em uma esfera decristal, não podia ter luas que a perfurassem...

Os fenômenos da física e da astronomia,antes explicados a partir das diferenças de na-tureza dos corpos perfeitos e imperfeitos, tor-nam-se homogêneos já que não há mais comoreconhecer a incorruptibilidade do mundosupralunar: desfaz portanto a diferença entreTerra e Céus. Além disso, à consciência me-dieval de um "mundo fechado", é contrapostaa concepção moderna do "universo infinito".Vimos que a noção de infinitude era um atri-buto divino e Giordano Bruno já pagara de-masiadamente caro por essa ousadia.

O forte impacto dessas novidades desen-cadeou inúmeras polêmicas até que, pressio-nado pelas autoridades eclesiásticas, Galileuse viu obrigado a abjurar. Que idéias tão terrí-veis são essas, que tanto ameaçam a ordemestabelecida e que merecem ser sufocadas?

5. As transformações produzidaspelas novas ciências

Secularização da consciência

Na nova ciência não há lugar para expli-cações que recorram à causalidade divina,como ocorria na antiga astronomia, em que seadmitia que o movimento das esferas celestesera impulsionado pelo Primeiro Motor Imó-vel, ou seja, por Deus.

A ciência é secularizada, laicizada, oque significa justamente abandonar a dimen-são religiosa que permeia todo saber medie-val. Galileu separa razão e fé, buscando a ver-dade científica independentemente das verda-des reveladas.

Descentralização do cosmos

O sistema geocêntrico era um todo cen-tralizado, finito, ordenado. No novo modelo,a Terra é retirada do centro do universo. Coma descoberta de outros mundos, nem o Sol é ocentro. Dá-se, portanto, uma subversão da or-dem e, conseqüentemente, uma ansiedade nohomem, que descobre o seu mundo transfor-mado em "poeira cósmica", a Terra comosimples planeta, um grão de areia perdido naimensidade do espaço infinito. Mais: o siste-ma solar é apenas um dos muitos sistemas quecompõem o Céu. O que passa a ser questiona-

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do não é apenas o lugar do mundo, mas o lu-gar do homem no mundo.

Geometrização do espaço

Para os antigos, sempre houve uma mís-tica do lugar. Havia lugares privilegiados:Hades (Inferno); Olimpo (lugar dos deuses);o espaço sagrado do templo; o espaço públicoda agora (praça pública); o gineceu (lugar damulher). Da mesma forma, havia na físicaaristotélica a teoria do lugar natural e, na as-tronomia, a divisão entre mundo sublunar emundo supralunar, constituídos de diferentesnaturezas e hierarquicamente situados (um in-ferior e outro superior).

Para a nova astronomia, o espaço édesmistificado, dessacralizado, isto é, deixade ser sagrado. Segundo Koyré, à descentrali-zação do cosmos segue a geometrização doespaço, o que significa que o espaço hetero-gêneo dos lugares naturais se torna homogê-neo, é despojado das qualidades e passa a serquantitativo, mensurável (isto é, pode ser me-

dido). Podemos dizer, portanto, que há uma"democratização" do espaço, pois todos osespaços passam a ser equivalentes, iguais, ne-nhum sendo superior ao outro.

Não havendo mais diferença entre aqualidade dos espaços celestes e a dos terres-tres, é possível admitir que as leis da física sãotambém da mesma natureza que as leis da as-tronomia.

Mecanicismo

A ciência moderna compara a naturezae o próprio homem a uma máquina, um con-junto de mecanismos cujas leis precisam serdescobertas. As explicações são baseadas emum esquema mecânico cujo modelo preferidoé o relógio.

Ficam excluídas da ciência todas as con-siderações a respeito do valor, da perfeição,do sentido e do fim. Isto é, as causas formais efinais, tão caras à filosofia antiga, não servempara explicar: apenas as causas eficientes sãoutilizadas nas explicações científicas.

Exercícios

1. Relacione o surgimento da ciência moder-na com a emergência da burguesia.

2. Considerando as três características atribuí-das ao pensamento moderno (racionalismo, antro-pocentrismo e saber ativo), explique como, na Ida-de Moderna, elas valem para a ciência e tambémpara outros setores como, por exemplo, a religião,as artes ou a política.

3. Faça um esquema comparativo da física deAristóteles com a física de Galileu.

4. Faça um esquema comparativo da astrono-mia de Ptolomeu e a de Galileu.

5. Enquanto Galileu pergunta como a pedracai, Aristóteles perguntava por que ela cai. Qual éa diferença?

6. O que significa dizer que Galileu abando-nou o mito do cosmos hierarquizado? O que signi-

fica "democratização" do espaço físico? E geome-trização do espaço?

7. "Interrogado por Napoleão sobre o papelreservado a Deus em seu sistema do mundo,Laplace, que cem anos depois de Newton haviaconferido à Nova Cosmologia sua perfeição defi-nitiva, respondeu: — Senhor, eu não tenho neces-sidade dessa hipótese. Mas não era o Sistema deLaplace, era o mundo ali descrito que não tinhamais necessidade da hipótese de Deus." (Koyré)

Qual é a característica da ciência nova quecorresponde à frase de Laplace?

Os textos dos exercícios 8 a 11 foram extraí-dos da peça A vida de Galileu, de Bertolt Brecht.Leia-os e responda às perguntas.

8. "(...) o tempo antigo passou, e agora é umtempo novo. Logo a humanidade terá uma idéiaclara de sua casa, do corpo celeste que ela habita.

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O que está nos livros antigos não lhe basta mais.Pois onde a fé teve mil anos de assento, sentou-seagora a dúvida. Todo mundo diz: é, está nos li-vros —, mas agora nós queremos ver com nossosolhos." (fala de Galileu)

a) Quais são os "livros antigos" referidos notexto?

b) Qual é a relação entre fé e dúvida na novamentalidade?

c) Explique o sentido de "nós queremos vercom nossos olhos".

9. Galileu tenta convencer um filósofo a verpelo telescópio os satélites de Júpiter, cuja consta-tação contraria o sistema ptolomaico. O filósoforesponde: "Senhor Galileu, antes de aplicarmos oseu famoso telescópio, gostaríamos de ter o prazerde uma disputa. Assunto: é possível que tais planetasexistam?".

a) A que escola deveria pertencer esse filósofo,considerando o teor da questão por ele formulada?

b) Em que medida a proposta do filósofo secontrapõe à de Galileu?

c) Qual é o significado amplo do telescópiono contexto da ciência nascente?

10. "Terra e Céu, para eles, não existem mais.A Terra, porque é uma estrela no Céu, e o Céu, por-que é composto de terras. Não há mais diferença en-tre o alto e o baixo, entre o eterno e o perecível. Quenós perecemos, sabemos bem. Mas o que eles dizemé que também o Céu perece." (fala do Monge)

a) Qual é o significado de "alto e baixo, eter-no e perecível"?

b) Em que medida a nova astronomia "demo-cratiza" o espaço?

11. "Eu sustento que a única finalidade daciência está em aliviar a canseira da existência hu-mana. E se os cientistas, intimidados pela prepo-tência dos poderosos, acham que basta amontoarsaber, por amor do saber, a ciência pode ser trans-formada em aleijão, e as suas novas máquinas serãonovas aflições, nada mais." (fala de Galileu)

Analise a dimensão política da ciência a partirda fala de Galileu.

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À natureza não se vence, senão quando se lhe obedece.

Os descobrimentos até agora feitos de tal modo são que quase só se apóiam nas noções vulgares. Paraque se penetre nos estratos mais profundos e distantes da natureza, é necessário que tanto as noções quanto osaxiomas sejam abstraídos das coisas por um método mais adequado e seguro, e que o trabalho do intelecto setorne melhor e mais correto.

(Francis Bacon)

1. Introdução

Etimologicamente, método vem demeta, "ao longo de", e hodós, "via, caminho".É a ordem que se segue na investigação daverdade, no estudo feito por uma ciência, oupara alcançar um fim determinado.

Sempre que nos propomos a fazer algu-ma coisa, como, por exemplo, uma viagem, oato mesmo de viajar é precedido de inúmerasantecipações mentais pelas quais nos organiza-mos, a fim de que o acontecimento tenha o su-cesso esperado. Quando fazemos com freqüên-cia a mesma coisa, desenvolvemos artifíciosnovos e formas que facilitam nosso trabalho.

Essas antecipações mentais são formasde racionalização do agir, de modo a melhoradequar os meios e os fins, impedindo que se-jamos guiados apenas pelo acaso. Porém, nemsempre esses processos são muito claramentepercebidos, pois na vida cotidiana não para-mos para pensar a respeito deles. Vamos "pe-gando o jeito" e melhorando nossa habilida-de, e só nos preocupamos em mudar quandoos processos usados até então começam a semostrar inadequados.

2. O método na Idade Moderna

Embora o método tenha sido sempreobjeto de discussão na filosofia, nunca o foicom a intensidade e a prioridade concedidas

pelos filósofos do século XVII. Até então afilosofia se preocupara com o problema doser, mas na Idade Moderna se volta para asquestões do conhecer. Daí surgem os temasprivilegiados de epistemologia, ou seja, a dis-cussão a respeito da crítica da ciência e doconhecimento.

Nessa "virada" temática, dá-se tambémoutra inversão: enquanto o filósofo antigo nãoquestiona a realidade do mundo, Descartes, se-guindo rigorosamente o caminho, o método porele estabelecido, começa duvidando de tudo,até reconhecer como indubitável o ser do pen-samento. É na descoberta da subjetividade queresidem as variações do novo tema. O filósofopassa a se preocupar com o sujeito cognoscen-te (o sujeito que conhece) mais do que com oobjeto conhecido (ver a Terceira Parte do Ca-pítulo IO — Teoria do conhecimento).

E tão importante a questão do métodono século XVII que Descartes a coloca comoponto de partida do seu filosofar. A dúvidametódica é um artifício com que demole todoo edifício construído e pretende recomeçartudo de novo. O método adquire um sentidode invenção e descoberta, e não mais uma pos-sibilidade de demonstração organizada do quejá é sabido.

Outros filósofos, além de Descartes,também se dedicam ao problema do método,tais como Bacon, Locke, Hume, Spinoza.

O MÉTODOCIENTÍFICO

CAPÍTULO 15

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O método filosófico passa por uma transfor-mação e até hoje não cessa de desencadear asmais diversas polêmicas. O próprio Galileu,também no século XVII, teoriza sobre o méto-do científico, que significou uma verdadeirarevolução: é justamente naquele momento quea ciência rompe com a filosofia e sai em buscado seu próprio caminho.

3. A classificação das ciências

A experimentação e a matematização dafísica serviram de modelo às ciências que fo-ram se tornando autônomas, o que despertoua necessidade de classificação das ciências.Vários filósofos se propuseram à tarefa, maso resultado foi uma enorme variação, o que secompreende pelo fato de as ciências estaremem contínua transformação e se situarem àsvezes em limites não muito bem definidos.Embora ajudem a sistematizar e organizar, asclassificações são sempre provisórias e insu-ficientes.

Francis Bacon, no século XVII, classifi-cou as ciências com base em três faculdadesmentais: memória (história), razão (filosofiae ciência) e imaginação (poesia).

No século XIX, tornou-se famosa a clas-sificação de Comte, que adotou o critério dacrescente complexidade das ciências, partin-do das mais abstratas para as mais concretas:matemática, mecânica, física, química, biolo-gia e sociologia.

Wundt (final do séc. XIX, começo doXX) dividiu as ciências em formais (matemá-tica) e reais (ciências da natureza e ciênciasdo espírito).

De maneira geral, sem preocupaçõescom as divisões clássicas, costumamos consi-derar: as ciências formais (matemática e lógi-ca), as ciências da natureza (física, química,biologia, geologia, geografia física etc.) e asciências humanas (psicologia, sociologia,economia, história, geografia humana, lin-güística etc).

4. O método experimental

É difícil a abordagem do tema do méto-do experimental, pois precisamos dizer o queé esse método e, ao mesmo tempo, mostrarque "não é bem assim"... Ou seja, por questão

de generalização ou didática, explicamos asetapas do método científico, mas no processomesmo de execução temos de reconhecer quenunca ocorre tal como é descrito.

Comecemos pelo exemplo do procedi-mento levado a efeito por Claude Bernard, mé-dico e fisiólogo francês conhecido não só porsuas experiências em biologia, mas tambémpelas reflexões sobre o método experimental.

Claude Bernard percebeu que coelhostrazidos do mercado têm a urina clara e ácida,característica dos animais carnívoros {obser-vação). Como ele sabia que os coelhos têm aurina turva e alcalina, por serem herbívoros,supôs que aqueles coelhos não se alimenta-vam há muito tempo e se transformaram pelaabstinência em verdadeiros carnívoros, viven-do do seu próprio sangue (hipótese). Fez va-riar o regime alimentar dos coelhos, dando aalguns alimentação herbívora e a outros, car-nívora; repetiu a experiência com um cavalo(controle experimental). No final, enunciouque "em jejum todos os animais se alimentamde carne" (generalização).

Vamos explicar, agora, cada uma dasetapas do método experimental.

Observação

A todo momento estamos observando;mas a observação comum é com freqüênciafortuita, feita ao acaso, dirigida por propósi-tos aleatórios. Ao contrário, a observaçãocientífica é rigorosa, precisa, metódica e, por-tanto, orientada para a explicação dos fatos.

Há situações em que apenas nossos sen-tidos são suficientes para a observação cientí-fica, mas às vezes torna-se necessário o usode instrumentos (microscópio, telescópio, sis-mógrafo, balança, termômetro) que empres-tam maior rigor à observação, como tambéma tornam mais objetiva, porque quantificam oque está sendo observado. E mais rigorosa aindicação da temperatura no termômetro doque a percebida pela nossa pele.

Aqui já temos de considerar a primeiradificuldade. A observação científica não é asimples observação de fatos. Que fatos?Quando observamos, já organizamos as inú-meras informações caoticamente recebidas eprivilegiamos alguns aspectos. Por exemplo,duas pessoas diferentes observando a mesmapaisagem selecionam aspectos diferentes, poiso olhar não é uma câmara fotográfica que tudo

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registra, mas há uma intenção que dirige nos-so olhar, o que significa que o olhar tende paraalguma coisa.

Quando se trata do olhar de um cientis-ta, este se acha impregnado por pressupostosque lhe permitem ver o que o leigo não perce-be. Se olhamos uma lâmina ao microscópio,quando muito percebemos cores e formas.Precisamos estar de posse de uma teoria para"aprender a ver".

Em outras palavras, ao fazer a coleta dedados, o cientista seleciona os mais relevan-tes para o encaminhamento da solução do pro-blema. O critério para a seleção dos fatos ob-viamente já orienta a observação.

Há um vício decorrente da posiçãoempirista, baseado na crença de que a ciênciaparte do sensível, da observação dos fatos.Ora, pelo que consideramos anteriormente, osfatos não são o dado primeiro. Como dizemos franceses, les faits sont fait (os fatos sãofeitos), os fatos são o resultado da nossa ob-servação interpretativa.

Além disso, não é sempre que os dadosaí estão, bastando que os identifiquemos. Porexemplo, em 1643, ao limpar os poços deágua de Florença, verificou-se que a água nãosubia a mais de 18 braças, ou seja, 10,33 m.Torricelli, chamado para elucidar o problema,explicou-o pela existência da pressão atmos-férica. Esse fato, isto é, a pressão, não "salta-va à vista" das pessoas que observavam per-plexas o fenômeno. Ele quase teve de "ser in-ventado" pelo gênio de Torricelli...

Hipótese

Hipótese vem de hypó, "debaixo de","sob", e thésis, "proposição". Hipótese é o queestá sob a tese, o que está posto por baixo, oque está suposto. A hipótese é a explicaçãoprovisória dos fenômenos observados. É a in-terpretação antecipada que deverá ser ou nãoconfirmada. Diante da interrogação sugeridapelos fatos, a hipótese propõe uma solução.Portanto, o papel da hipótese é reorganizar osfatos de acordo com uma ordem e tentarexplicá-los provisoriamente.

E qual é a fonte da hipótese? A formula-ção da hipótese não resulta de procedimentosmecânicos, mas é a expressão de uma lógicada invenção. Nesta etapa do método científi-co, o cientista pode ser comparado ao artista

inspirado que descobre uma nova forma deexpressão. Muitas vezes a descoberta se fazpor insight ("iluminação súbita"), cujo exem-plo clássico é o de Arquimedes que, ao desco-brir a lei do empuxo, teria gritado "Eureca"(em grego, "descobri"). Nesse sentido, a hi-pótese pode ser entendida como um processoheurístico (de descoberta).

Mas com isso não se deve mistificar aformulação da hipótese apresentando-a comoalgo misterioso, pois, mesmo em casos em quehouve nitidamente a intuição adivinhadora, elafoi precedida e preparada por longa elaboraçãoracional, da qual a descoberta foi apenas o mo-mento culminante. É o próprio Newton quemdiz: "Se minhas pesquisas produziram algunsresultados úteis, eles não são devidos senão aotrabalho, a um pensamento paciente... Eu tinhao objeto de minha pesquisa constantementediante de mim e esperava que os primeiros cla-rões começassem a aparecer, lentamente, pou-co a pouco, até que eles se transformavam emuma claridade plena e total".

Há vários tipos de raciocínio usadospelo cientista ao formular a hipótese:

• a indução — na experiência da quedados corpos, Galileu supõe que todos os cor-pos caem ao mesmo tempo, independente-mente do peso: trata-se da generalização decasos diferentes e particulares.

• o raciocínio hipotético-dedutivo —quando é formulada uma hipótese e verifica-se as conseqüências que são tiradas dela; porexemplo, uma das conseqüências da hipóteseda teoria da relatividade de Einstein era o des-vio da luz por um campo gravitacional; issopôde ser verificado em 1905, por ocasião deum eclipse.

• a analogia — quando são estabeleci-das relações de semelhança entre fenômenos;por exemplo, o modelo atômico de Bohr é fei-to em analogia ao modelo do sistema solar.

A hipótese, para ser científica, deve serpassível de verificação.

O astrônomo Le Verrier, observando opercurso de Urano, percebeu uma anomaliaque só poderia ser explicada se houvesse a hi-pótese da existência de um outro planeta ain-da desconhecido. Com base nas leis deNewton, Le Verrier calculou não só a massacomo a distância do suposto planeta, o quepermitiu a outro astrônomo, chamado Gall,descobrir a existência de Netuno.

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No caso da astronomia, basta realizarnova observação orientada pela hipótese. Masem outras ciências a verificação é um poucomais complexa e deve ser feita por meio deexperimentação.

Experimentação

Enquanto a observação é o estudo dosfenômenos tais como se apresentam natural-mente, a experimentação é o estudo dos fenô-menos em condições que foram determinadaspelo experimentador. Trata-se de observaçãoprovocada para fim de controle da hipótese.Segundo Cuvier, zoólogo do século XIX, en-quanto "o observador escuta a natureza, oexperimentador a interroga e a força a se des-vendar".

Já nos referimos à experimentação feitapor Claude Bernard com os coelhos. Outroexemplo clássico de controle experimental foio desenvolvido por Pasteur ao testar a hipóte-se da imunização de um animal vacinado combactérias enfraquecidas de carbúnculo. Sepa-rou sessenta ovelhas da seguinte maneira: emdez não aplicou nenhum tratamento; vacinou25 inoculando após alguns dias uma culturacontaminada pelo bacilo do carbúnculo; nãovacinou as 25 restantes, em que também ino-culara a cultura contaminada. Depois de al-gum tempo, Pasteur verificou que as 25 ove-lhas não vacinadas morreram, as 25 vacina-das sobreviveram e, comparando-as com asdez que não tinham sido submetidas a trata-mento, verificou que aquelas não sofreram al-teração de saúde.

A importância da experimentação é queela proporciona condições privilegiadas deobservação: podem-se repetir os fenômenos;variar as condições de experiência; tornarmais lentos os fenômenos muito rápidos(o plano inclinado de Galileu para estudar aqueda dos corpos); simplificar os fenômenos(manter constante a pressão dos gases paraestudar a variação de volume).

Nem sempre a experimentação é sim-ples ou viável. E impossível observar a evolu-ção darwiniana, que se processa durante mui-tas gerações; mesmo assim é uma hipótese

valiosa, na medida em que unifica e torna in-teligível um grande número de dados.

No entanto, quando a experimentaçãonão confirma a hipótese, o trabalho do cien-tista deve ser recomeçado, na busca de outrahipótese.

Generalização

Aristóteles já dizia que não existe ciên-cia senão do geral. As análises dos fenôme-nos nos levam à formulação de leis, que sãoenunciados que descrevem regularidades ounormas.

Se na fase da experimentação analisa-mos as variações dos fenômenos, na generali-zação estabelecemos relações constantes, oque nos permite enunciar, por exemplo: sem-pre que a temperatura de um gás aumentar,mantida a mesma pressão, o seu volume au-mentará.

Podemos dizer que foi descoberta a re-lação constante e necessária entre os fenôme-nos; necessária porque, se aumentarmos atemperatura do gás o seu volume aumentará,e não poderá deixar de aumentar. Não se tratade uma contingência (algo que pode ou nãoocorrer), mas de um determinismo. SegundoCuvillier, "o determinismo é um princípio daciência experimental segundo o qual existemrelações necessárias (leis) entre os fenômenos,de tal sorte que todo fenômeno é rigorosamen-te condicionado pelos que o precedem ouacompanham".1

As leis podem ser de dois tipos: as ge-neralizações empíricas e as leis teóricas.

Generalizações empíricas

As generalizações empíricas (ou leisparticulares) são inferidas da observação dealguns casos particulares. Por exemplo, "o ca-lor dilata os corpos", "os mamíferos produ-zem a sua própria vitamina E", "o fígado temfunção glicogênica" ou, ainda, a lei da quedados corpos, a lei dos gases etc.

Mas nem sempre é possível atingir umaregularidade rigorosa. Daí existirem leis esta-tísticas baseadas em probabilidades.

1 A.-J. Cuvillier, Pequeno vocabulário da língua filosófica.

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Leis teóricas

As leis teóricas ou teorias propriamenteditas são leis mais gerais e abrangentes quereúnem as diversas leis particulares sob umaperspectiva mais ampla. A primeira grandeteoria de que se tem notícia na moderna ciên-cia é a da gravitação universal de Newton, queengloba as leis planetárias de Kepler e a lei daqueda dos corpos de Galileu. A importânciada teoria já se nota nesse exemplo, poisNewton reúne leis referentes a domínios dis-tintos numa só explicação. Daí o caráter coor-denador da teoria.

Além disso, a teoria da gravitação uni-versal permite calcular a massa do Sol e dosplanetas, explicar as marés etc, o que mostrao seu poder heurístico (de descoberta). Por-tanto, a teoria não só coordena o saber adqui-rido, articulando leis isoladas, mas é fecunda,possibilitando novas investigações.

Outro exemplo é o da teoria cinética dosgases: "A finalidade dessa teoria é explicar ocomportamento dos gases sob várias condi-ções. Antes de a teoria ser formulada, váriasgeneralizações sobre o comportamento dosgases já tinham sido propostas e confirmadas.Viu-se então que essas generalizações pode-riam ser logicamente relacionadas e que as re-gularidades nelas expressas eram passíveis deexplicação, caso se admitisse que um gás érealmente um aglomerado de partículas mi-núsculas e colidentes, deslocando-se a altasvelocidades em linhas retas. Com base nestespressupostos, somados às leis do movimentode Newton, foram deduzidas certas generali-zações conhecidas acerca do comportamentodos gases, incluindo as leis de Boyle e deCharles, que descrevem como os gases rea-gem a várias temperaturas e pressões. Mas oscientistas fizeram também diversas deduçõessobre algumas propriedades até então insus-peitadas dos gases, como viscosidade, difusãoe condução de calor. Portanto, como todas asboas teorias, a teoria cinética não só organi-zou e explicou um certo número de leis co-nhecidas mas também produziu novas gene-ralizações testáveis".2

Consideremos ainda um outro exemplo:o da teoria da luz. Newton admite a emissãocorpuscular da luz, enquanto Fresnel, no sécu-

lo XIX, desenvolve a teoria ondulatória. Qualteoria é a verdadeira? Com esta pergunta, colo-camos mal o problema. A teoria corpuscularexplica fenômenos como a refração e a refle-xão da luz, enquanto a teoria ondulatória expli-ca fenômenos de interferência de ondas.

Outro exemplo: a teoria da relatividadede Einstein teria superado a teoria newtonianada gravitação universal? Ora, Einstein não sóparte de pressupostos diferentes daqueles uti-lizados por Newton, como também chega aconclusões diferentes. Isso não significa quea teoria newtoniana tenha se tornado ultrapas-sada, mas sim que é preciso reconhecer os li-mites dela, já que a sua aplicação se acha res-trita a determinado setor da realidade. Ou seja,quando se trata do microcosmo (interior doátomo) ou do macrocosmo (universo), a teo-ria newtoniana se mostra insuficiente, haven-do necessidade de se recorrer à teoria da rela-tividade.

5. O conceito de modelo

O que observamos no sucessivo alternarde teorias que se completam ou se desmen-tem, ou que são ultrapassadas, é que a ciêncianão é um conhecimento "certo", "infalível",nem as teorias são o "reflexo" do real.

Na controvérsia entre os filósofos daciência, a teoria científica aparece como cons-trução da razão, como hipótese de trabalho,como função pragmática que torna possível aprevisão e a ação, como descrição de relaçõesentre elementos sem referência ao conteúdodos fenômenos. Interessa-nos aqui mostrarque a discussão dos fundamentos da ciência éatual e que esta se faz por meio de um longoprocesso que não é linear, mas cheio de con-tradições.

O conceito de modelo também não é cla-ramente estabelecido. Modelo pode ser umamaquete, um esboço, ou até uma teoria. Àsvezes faz-se distinção entre modelo e teoria,mostrando como a teoria pode ter diversosmodelos ou pode "modelar-se" de várias ma-neiras. Assim, tanto podemos considerar omodelo mecânico de Newton, como o modelode Ptolomeu, o modelo da seleção natural deDarwin ou o modelo atômico.

2 G. F. Kneller, A ciência como atividade humana, p. 136.

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Um modelo apresentado inicialmentecomo algo hipotético — o coração é uma bom-ba, diz o anatomista Harvey — pode ajudar acompreender o funcionamento do coração.

Mas, afinal, o que é modelo? Segundo oprofessor norte-americano Kneller, o conceitode modelo é um dos mais sobrecarregados detoda a ciência. E apresenta uma classificação:

"Um modelo representacional é umarepresentação física tridimensional de algo,como um modelo de museu do sistema solar,um modelo de engenharia de uma represa oude um avião, ou um modelo de bolas colori-das da estrutura de uma molécula. Uma va-riante é o modelo análogo, o qual representaum objeto sem produzir as suas propriedades,como no caso de um circuito elétrico usadocomo modelo de um sistema acústico.

"Um modelo teórico é um conjunto depressupostos sobre um objeto ou um sistema.(Um sistema, ao contrário de uma partícula, éum objeto com partes componentes.) Sãoexemplos o modelo de bola de bilhar (partícu-la esférica) de um gás (proposto originalmen-te pelo físico escocês John James Waterston,um exímio jogador de bilhar!), o modelocorpuscular da luz (segundo o qual a luz con-siste em partículas em movimento) e o mode-lo helicoidal da molécula de DNA de Watson-Crick. Um modelo teórico pode expressar-sena forma de equações matemáticas, mas deveser distinguido de quaisquer diagramas, dese-nhos ou construções físicas usadas para ilustrá-lo. Assim, o modelo teórico de Watson-Crick édistinto dos modelos representacionais que osdois cientistas construíram no decurso da reali-zação do primeiro. Um modelo teórico atribuiao objeto ou sistema que descreve uma estrutu-ra ou mecanismo interno que é responsável porcertas propriedades desse objeto ou sistema.Por exemplo, o modelo corpuscular da luz atri-bui uma estrutura particulada à luz a fim de ex-plicar propriedades tais como a reflexão e a re-fração da luz."3

6. As ciências após o século XVII

A descoberta do método científico noséculo XVII aumentou a confiança do homemna possibilidade de a ciência conhecer os se-

gredos da natureza. A confiança baseia-se naprofunda crença na ordem e racionalidade domundo.

O método científico se aperfeiçoa, seuniversaliza e serve de modelo e inspiração atodas as outras ciências particulares que vãose destacando do corpo da "filosofia natural".É interessante notar que a ligação inicial entrefilosofia e ciência persistiu por muito tempona nomenclatura dos cientistas. Não raro seencontravam livros com o título "filosofia na-tural" para se referir à física. Até hoje há re-miniscências na classificação das "Faculdadesde Filosofia", onde se estuda não só a própriafilosofia, mas também matemática, física,química etc. Além disso, a graduação doaluno que faz tese de doutoramento em qual-quer área é conhecida como PhD, ou seja,Philosophiae Doctor.

Vejamos o desenrolar de algumas dasciências particulares.

A síntese newtoniana

Os resultados obtidos por Galileu na fí-sica e na astronomia, bem como as leis dasórbitas celestes de Kepler e os dados acumu-lados por Tycho-Brahe possibilitaram aNewton (1642-1727) a elaboração do primei-ro exemplo de teoria científica encontrado naciência moderna: a teoria da gravitação uni-versal. As leis formuladas anteriormente refe-riam-se apenas a aspectos particulares dos fe-nômenos considerados. O sistema newtonianocobre a totalidade de um certo setor da reali-dade e, portanto, realiza a maior síntese cien-tífica sobre a natureza do mundo físico.

Segundo o professor Maurício Rocha eSilva, "em determinado momento de suaselucubrações juvenis, Newton teve subita-mente a idéia de uma força de atração de to-dos os corpos no universo, e o seu gênio foicapaz de deduzir dessa simples possibilidadeas leis da gravitação universal, segundo asquais a força de atração é proporcional àsmassas e inversamente proporcional ao qua-drado das distâncias. Com essa formulaçãobásica e os postulados da inércia, pôde deri-var um novo sistema do universo que encer-rou, para o mundo científico, a antiga contro-vérsia de saber se o sistema de Copérnico era

' G. F. Kneller, A ciência como atividade humana, p. 139.

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melhor ou mais verdadeiro do que o de Ptolo-meu, se Aristóteles tinha mais razão do queGalileu ou se a condenação deste último foijusta ou injusta. As leis do universo podiamser deduzidas de um punhado de axiomas oupostulados de maneira análoga à geometria deEuclides ou à estática de Arquimedes".4

A química

Vimos no Capítulo 13 (A ciência medie-val) que os alquimistas reuniram uma quanti-dade muito grande de observações sobre a na-tureza química dos corpos. Mas a alquimianão se transformou propriamente em ciência.Usava-se uma linguagem obscura, cheia demetáforas e alegorias, compreensível apenaspara os "iniciados" e adeptos.

No século XVII, Boyle deu o primeiroexemplo do ideal moderno de química, basea-do na nova concepção da natureza e das leisnaturais. Mas foi apenas no século XVIII quea química se tornou ciência no sentido moder-no da palavra.

Lavoisier, experimentador rigoroso, to-mou "emprestada" a metodologia da física,

tornando a química uma ciência de medidasprecisas. Serviu-se do termômetro e do barô-metro, aperfeiçoou vários tipos de balança deprecisão, e foi a constância dos pesos que lhepossibilitou a intuição genial: "Na naturezanada se cria, nada se perde, tudo se transfor-ma" (princípio da conservação da massa).Pela análise das substâncias, descobriu tam-bém que era falsa a teoria clássica dos quatroelementos. Com Laplace estudou o calor e in-ventou o calorímetro. Deu o golpe de mortena teoria do flogístico, fluido imaginado pe-los químicos para explicar o fenômeno dacombustão, revelando de maneira científica eracional as propriedades do oxigênio nesseprocesso.

Outros como Dalton, Gay-Lussac eBerzelius completaram o trabalho iniciado porLavoisier.

A biologia

As ciências biológicas e a medicina de-senvolveram-se no século XIX. O feito maisnotável da biologia foi o estabelecimento e acomprovação da teoria da evolução orgâni-

O recurso ao método experimental e às medidas rigorosas transforma a química numa ciência. Lavoisier,em seu laboratório, realiza uma experiência sobre respiração.

4 M. Rocha e Silva, A evolução do pensamento científico, p. 98.

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ca. O primeiro a desenvolver uma hipótesesistemática foi Lamarck, cuja teoria foi supe-rada por Darwin com uma hipótese mais cien-tífica, publicada em 1839 na famosa obra Aorigem das espécies, na qual considera a va-riação e a seleção natural os fatores principaisna origem de novas espécies. A teoria deDarwin refere-se não só aos animais, mastambém ao homem. Na sua obra seguinte, ten-ta mostrar que a raça humana descende origi-nalmente de algum ancestral simiesco há mui-to extinto, provavelmente antepassado tam-bém dos antropóides existentes.

A hipótese darwiniana foi elaborada emelhorada por diversos biólogos que o su-cederam, como De Vries, que concebe aevolução como sendo processada por saltosrepentinos (mutações). As descobertas de DeVries basearam-se nas leis da hereditarieda-de descobertas anteriormente por Mendel(genética).

Em 1865, num memorável ataque à teo-ria da geração espontânea, Pasteur lançou asbases da ciência da bacteriologia, cujas con-seqüências foram fecundas para o progressoda medicina, devido à descoberta de que asmoléstias são produzidas por germes.

Foi Claude Bernard que, na metade doséculo XIX, fez da fisiologia uma ciência po-sitiva, tendo por modelo o método experimen-tal da física e da química.

Em resumo, a moderna biologia quiscalcar seus princípios e métodos naqueles quederam resultado nas ciências da matéria iner-te. Assim é que o uso da linguagem matemáti-ca e sobretudo a compreensão do determinis-mo físico-químico foram importantes para odesenvolvimento das ciências biológicas.

As ciências humanas

No século XIX o desenvolvimento dasciências da natureza atinge a discussão dosfatos humanos, com a exigência de que tam-bém as ciências humanas se tornassem autô-nomas, desligadas do pensamento filosófico.

Veremos no Capítulo 16 (As ciênciashumanas) como a procura do estatuto episte-mológico das ciências humanas não se fazsem dificuldade. Ora porque lhes é negado ocaráter de cientificidade, isto é, não são con-sideradas ciências (é nisto que consiste ochamado veto positivista); ora porque só sãoconsiderados científicos os métodos calcados

nas ciências da natureza (tendência natura-lista); ora porque elas procuram o própriométodo, distinto de tudo o que já tinha sidovisto até então, tendo em vista a especifici-dade do seu objeto (tendência humanista).

A primeira ciência humana a se desen-volver foi a economia, que até o século XVIItinha sido, com a teoria mercantilista, umasimples constatação da existência de certasrelações de troca entre indivíduos e países.

No século XVIII, Adam Smith (1723-1790) foi o primeiro a explicar o funciona-mento de um sistema econômico em termosmatemáticos, embora com muitos conceitosainda obscuros. Outro teórico da economiafoi David Ricardo (1772-1823). Malthus(1766-1834) introduziu a dinâmica do cres-cimento da população na análise econômica.Defendendo a lei de que "a população cresceem progressão geométrica, enquanto a pro-dução de alimentos cresce em progressãoaritmética", Malthus mostrou que o equilí-brio econômico não é atingido facilmentecomo queria o otimismo do sistema de mer-cados, mas exigia restrições violentas da po-pulação, das quais se encarregava a próprianatureza humana, por meio de guerras, pes-tes etc. Com Karl Marx (1818-1883) a eco-nomia se torna rigorosa pela precisão intro-duzida em seus conceitos e por considerara explicação científica do conjunto dos fatoshumanos e não apenas dos fenômenos eco-nômicos.

Outra ciência humana que surgiu noséculo XIX foi a sociologia, iniciada porAugusto Comte (1798-1857), que designa,por essa palavra, uma ciência positiva: aciência dos fatos sociais, isto é, das institui-ções, dos costumes, das crenças coletivas.Durkheim (1858-1917) quis fazer da socio-logia uma disciplina objetiva, colocandocomo regra fundamental do método socioló-gico a consideração dos fatos sociais comocoisas. Devido às dificuldades da experimen-tação, utiliza-se amplamente do método es-tatístico. Max Weber (1864-1920), mesmosem eliminar o estudo das causas e o rigor nacoleta dos dados e no tratamento dos fatos,enfatiza a necessidade de se usar o métododa "compreensão", em oposição ao critérioda "explicação", típico das ciências da natu-reza. Também na sociologia foi importante acontribuição de Marx, com a análise domodo de produção.

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Outras ciências humanas como a etno-logia, a geografia, a história também coloca-ram em questão o seu método. Quanto à psi-cologia, faremos uma abordagem mais amplano Capítulo 16.

7. A crise da ciência no final doséculo XIX

Até o século XIX o desenvolvimento daciência tinha sido tão grande que o homemestava convencido da excelência do métodocientífico para conhecer a realidade. Filoso-fias como o positivismo de Comte e o evolu-cionismo de Spencer traduziam o otimismogeneralizado que exaltava a capacidade detransformação humana em direção a um mun-do melhor. A educação, antes baseada exclu-sivamente na cultura humanística, é reformu-lada visando a inclusão dos estudos científi-cos no currículo escolar, a fim de atender ademanda de técnicos e cientistas decorrentedo avanço da tecnologia.

No entanto, ainda no século XIX e noinício do século XX, algumas descobertas gol-pearam rudemente as concepções clássicas,originando o que se pode chamar de crise daciência moderna. São elas as geometrias não-euclidianas e a física não-newtoniana. Veja-mos de que se trata.

As geometrias não-euclidianas

Os postulados da geometria plana queconhecemos foram estabelecidos por Euclidesno século III a.C. Dentre os postuladoseuclidianos, o quinto enuncia que "por umponto do plano pode-se traçar uma e só umaparalela a uma reta do plano". Ora, em 1826 omatemático russo Lobatchevski construiu ummodelo de geometria que partia de outroenunciado segundo o qual "por um ponto doplano pode-se traçar duas paralelas a uma retado plano". Em 1854, o matemático alemãoRiemann usou um modelo em que "por umponto do plano não se pode traçar nenhumaparalela a uma reta do plano".

Os novos modelos não anulavam a geo-metria euclidiana, mas faziam desmoronar ocritério de evidência em que os postuladoseuclidianos pareciam repousar. Como conse-

qüência, seria preciso repensar a "verdade" namatemática, que dependia do sistema de axio-mas inicialmente colocados e a partir do qualpoderiam ser construídas geometrias igual-mente coerentes e rigorosas.

Esses esquemas operacionais diferentespodem se revelar de grande fecundidade: ateoria da relatividade generalizada de Einsteinnão se explica pela geometria euclidiana, masse traduz muito bem na proposta de Riemann.É fácil imaginar o impacto das novas desco-bertas para o homem, cujo universo de per-cepção imediata é euclidiano...

A física não-newtoniana

Como dissemos, até o século XIX, empleno cientificismo, o homem estava ciente dasua capacidade de conhecer o mundo pelaciência, cujas teorias pareciam adequar-seperfeitamente à realidade percebida pelos sen-tidos. A física newtoniana era considerada aimagem absolutamente verdadeira do mundo,tendo como pressupostos o mecanicismo e odeterminismo. Se pudéssemos conhecer asposições e os impulsos das partículas mate-riais num dado momento, poderíamos, segundoa hipótese de Laplace, deduzir pelo cálculotoda evolução posterior do mundo.

Na década de 1920, no entanto, desco-bertas de De Broglie no campo da físicaquântica, considerando o elétron um sistemaondulatório, permitiram a Heisenberg a for-mulação do princípio da incerteza. Segundoesse princípio, é impossível determinar simul-taneamente e com igual precisão a localiza-ção e a velocidade de um elétron.

O aparecimento desse "irracionalismo"na ciência foi um duro golpe na exaltaçãopositivista do século XIX.

8. As novas orientações naepistemologia contemporânea

Não só esses fatos desencadearam umacrise na ciência. Outros pensadores já tinhamposto em dúvida os métodos das ciências danatureza: Duhem (1861-1916), Poincaré(1853-1912), Mach (1838-1916).

Poincaré, afirmando que "as teorias nãosão nem verdadeiras, nem falsas, mas úteis",

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quer mostrar que a crença na infalibilidade daciência é uma ilusão.

O que ocorre no início do século é umanecessidade de reavaliação do conceito deciência, dos critérios de certeza, da relação en-tre ciência e realidade, da validade dos mode-los científicos.

O Círculo de Viena

Surgido com a intenção de investigar atéque ponto as teorias, através da análise da suaestrutura lógica, têm probabilidade de ser ver-dadeiras, e formado em 1928 por Carnap,Schlick, Hahn e Neurath, o Círculo de Vienasofreu influência de Wittgenstein e da lógicamatemática de Russell e Whitehead. Esses au-tores representam a tendência neopositivista,ou do empirismo lógico.

Nas suas teorias a experiência e a lin-guagem se completam: a experiência é trans-crita em forma de proposições, que são verda-deiras enquanto exprimíveis. E as proposições"têm sentido" enquanto mensuráveis (tudo oque não é mensurável não tem sentido).

Refletindo a influência positivista, oslógicos do Círculo de Viena têm a convicçãode que a lógica, a matemática e as ciênciasempíricas esgotam o domínio do conheci-mento possível. O princípio de verificabilida-de, identificando significado e condições em-píricas de verdade, excluiu a filosofia do do-mínio do conhecimento do real.

A reação de Popper

Karl R. Popper (1902-1994) sofreu ini-cialmente a influência de Carnap e do Círculode Viena, mas teceu diversas críticas a eles.Para Popper, o cientista deve estar mais preo-cupado não com a explicação e justificação dasua teoria, mas com o levantamento de pos-síveis teorias que a refutem. Ou seja, o quegarante a verdade do discurso científico é acondição de refutabilida.de. Quando a teoriaresiste à refutação, ela é corroborada, ou seja,confirmada. Somente a corroboração nos dizqual de nossas teorias descreve o mundo real.Por isso Popper critica a psicanálise e o mar-xismo, cujos universos teóricos se restringem

às explicações de seus idealizadores e não dãocondições de refutabilidade.

A posição de Kuhn

Thomas Kuhn (1922) se contrapôs à teo-ria de Popper, negando que o desenvolvimentoda ciência tenha sido levado a efeito pelo idealda refutação. Ao contrário, a ciência progridepela tradição intelectual representada peloparadigma, que é a visão de mundo expressanuma teoria. Nas fases chamadas "normais" daciência, o paradigma (por exemplo, o newto-niano) serve para auxiliar os cientistas na reso-lução dos seus problemas, e o progresso se fazpor acumulação de descobertas.

Mas há situações privilegiadas, de cri-ses, quando o paradigma já não resolve umasérie de anomalias acumuladas. Revoluçõesdesse tipo foram operadas por Copérnico,Newton, Darwin, Einstein e Heisenberg.

Feyerabend: contra o método

Se Popper afirmou que a ciência é ra-cional, na medida em que critica as suas teo-rias (ideal de refutabilidade), e Kuhn argumen-tou que uma teoria, como paradigma, deve namaior parte do tempo ser desenvolvida emvez de criticada, outros, como Lakatos eFeyerabend, tentam harmonizar esses pontosde vista.

Feyerabend (1924) cedo abandonou oempirismo, classificando-se como anarquistaepistemológico. Critica as posições positivis-tas ao considerar que as metodologias norma-tivas não são instrumentos de descoberta edefende o pluralismo metodológico. A famo-sa afirmação de que "o único princípio quenão inibe o progresso é: tudo vale" aparecenum livro cujo título sugestivo indica sua po-sição: Contra o método.

Feyerabend quer dizer que não existenorma de pesquisa que não tenha sido violada,e é mesmo preciso que o cientista faça aquiloque lhe agrada mais. E que deve tornar persua-siva a teoria por recursos retóricos através dapropaganda, a fim de melhor convencer a co-munidade científica. Ele acha que foi exata-mente isto que Galileu fez para convencer a to-dos acerca da hipótese do movimento relativo.

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Exercícios

1. Qual é a importância do método (filosóficoe científico) no século XVII?

2. "Na física, com efeito, não se pode deixarà porta do laboratório a teoria que se quer testar,pois sem ela nem mesmo é possível regular um ins-trumento ou interpretar uma leitura; ao espírito dofísico que experimenta, dois aparelhos estão cons-tantemente presentes: um é o aparelho concreto, emvidro e metal, por ele manipulado; outro é o apare-lho esquemático e abstrato que a teoria coloca emlugar do aparelho concreto, e sobre o qual o físicoraciocina; essas duas idéias estão indissoluvelmen-te ligadas em sua inteligência; cada uma necessa-riamente chama a outra." (Duhem)

A partir da citação, explique por que na ciên-cia não há "fato bruto".

3. O que é uma hipótese científica? Qual é oseu papel? Quais são suas fontes?

4. Relacione o trabalho do cientista quandocria uma hipótese ao trabalho do artista.

5. "Os eruditos são eunucos do saber."(Nietzsche) Relacione essa frase com a natureza dahipótese científica.

6. Quais são as vantagens da experimentação?

7. Qual foi a primeira grande teoria? Quaissão as funções da teoria?

8. Comente a afirmação de Nietzsche: "Con-tra o positivismo, que perante os fenômenos diz:

'Há apenas fatos', eu digo: 'Ao contrário, fato é oque não há; há apenas interpretações'".

9. Distinga as diversas etapas do método ex-perimental no exemplo: Claude Bernard descobriuque o sangue de todos os animais contém açúcar,mesmo que não o tenham ingerido (o que contra-riava uma idéia comum na época, de que o açúcarexistente nos animais provém exclusivamente dosalimentos). Claude Bernard supôs que deveria ha-ver um órgão capaz de armazená-lo sob uma formaparticular e restituí-lo quando necessário (esta hi-pótese foi sugerida por analogia com o mundo ve-getal: uma planta transforma a glicose em amido,que é armazenado). Foi dosando a taxa de glicoseao longo de todo o percurso do sangue, partindo dointestino, que Claude Bernard descobriu o órgãoregulador, cuja existência supusera: o fígado. Masdurante a dosagem de açúcar em fígados de ani-mais, certa vez, demorando-se para fazer a segun-da dosagem, verificou maior quantidade de açúcare concluiu que "o tecido do fígado vai se enrique-cendo com açúcar continuamente, durante certotempo após a morte". Reiniciou as experiênciascom fígado lavado e pôde demonstrar que o fígadoreserva a glicose sob a forma de glicogênio. (Adap-tado de Huisman e Vergez)

10. Leia o texto complementar, de Popper, eatenda o solicitado:

a) Indique no texto a passagem que identifica oconceito popperiano de refutabilidade. E explique.

b) Por que não se pode dizer que a ciência éum conhecimento certo e definitivo?

Texto complementar

[O conhecimento científico]

A ciência não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem um sistema queavança constantemente em direção a um estado final. Nossa ciência não é conhecimento {episteme):ela nunca pode pretender haver atingido a verdade, ou mesmo um substituto para ela, tal como aprobabilidade.

Entretanto, a ciência tem mais que um simples valor de sobrevivência biológica. Ela não éapenas um instrumento útil. Embora não possa atingir a verdade nem a probabilidade, o esforço peloconhecimento e a procura da verdade ainda são os motivos mais fortes da descoberta científica.

Não sabemos: podemos apenas conjecturar. E nossas conjecturas são guiadas pela fé não-científica, metafísica (embora explicável biologicamente), nas leis ou regularidades que podemosdesvendar—descobrir. (...)

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Todavia, testes sistemáticos controlam cuidadosa e seriamente essas nossas conjecturasou "antecipações" maravilhosamente imaginativas e audazes. Uma vez propostas, não susten-tamos dogmaticamente nenhuma de nossas "antecipações". Nosso método de pesquisa não con-siste em defendê-las para provar que estávamos certos. Pelo contrário, tentamos contestá-las. Em-pregando todas as armas de nosso arsenal lógico, matemático e técnico, tentamos provar que nossasantecipações eram falsas — com o fim de propor, em seu lugar, novas antecipações injustificadase injustificáveis, novos "preconceitos precipitados e prematuros", como Bacon pejorativamenteas chamou. (...)

Mesmo o teste cuidadoso e sério de nossas idéias pela experiência inspira-se, por sua vez, emidéias: a experimentação é uma ação planejada na qual a teoria guia todos os passos. Não topamoscom nossas experiências, nem deixamos que elas nos inundem como um rio. Pelo contrário, temosde ser ativos: devemos fazer nossas experiências. Somos sempre nós que formulamos as questõespropostas à natureza; somos nós que repetidas vezes tentamos colocar essas questões para entãoobter um nítido "sim" ou "não" (pois a natureza não dá uma resposta, a menos que seja pressionadaa fazê-lo). E, finalmente, somos nós também que damos uma resposta; somos nós próprios que, apóssevero escrutínio, decidimos sobre a resposta à questão que colocamos à natureza — após tentativasinsistentes e sérias de obter dela um inequívoco "não". (...)

O velho ideal científico da episteme — do conhecimento absolutamente certo, demonstrável —mostrou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica torna inevitável que todo enunciadocientífico permaneça provisório para sempre. Ele, com efeito, pode ser corroborado, mas toda cor-roboração é relativa a outros enunciados que, novamente, são provisórios.

(Karl R. Popper, A lógica da pesquisa científica, in Marilena Chaui (org.), Primeira filosofia,p. 213-215.)

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CAPÍTULO 16AS CIÊNCIAS

HUMANAS

Com Copérnico, o homem deixou de estar no centro do universo. Com Darwin, o homem deixou de ser ocentro do reino animal. Com Marx, o homem deixou de ser o centro da história (que, aliás, não possui umcentro). Com Freud, o homem deixou de ser o centro de si mesmo.

(Eduardo Prado Coelho1)

1. Introdução

A partir do século XVII dá-se o desen-volvimento das ciências da natureza (física,química, biologia), com a aplicação do méto-do experimental. Estabelecido o ideal decientificidade, ou seja, aceitos os princípios daexperimentação e da matematização comofundamentais para o método científico, comoficam as aspirações das ciências humanas dese constituírem como tal?

Ora, quando estudamos Descartes noCapítulo 10 (Teoria do conhecimento na Ida-de Moderna), vimos que o seu pensamento de-semboca no dualismo psicofísico. Se você selembra bem, para Descartes o homem é cons-tituído por duas substâncias: uma de naturezaespiritual, a substância pensante (a rescogitam), e outra de natureza material, a subs-tância extensa (a res extensa). Só esta últimapode ser objeto das ciências da natureza, quemecanicamente explicam o funcionamento da"máquina" do corpo. Mas a substância pen-sante, lugar da liberdade, só poderia ser obje-to da reflexão filosófica.

Vimos também que a corrente empirista,representada por Locke e derivada do pensa-

mento de Descartes, opunha-se ao racionalis-mo cartesiano, preocupando-se também comos processos mentais e corporais. Ao especu-larem a respeito da natureza dos mecanismose processos fisiológicos que constituem a basede fenômenos como a percepção e a recorda-ção, os empiristas estabelecem os anteceden-tes das pesquisas que serão feitas pela medici-na do século XIX sobre o fundamento bioló-gico dos fenômenos mentais.

A influência empirista serve de funda-mento à tendência naturalista que tem porobjetivo adequar o método das ciências danatureza às ciências humanas. A esta se con-trapõe a tendência humanista, que, preocupa-da com a especificidade dos fenômenos hu-manos, busca um método diferente daquelesusados até então.

Mesmo que as ciências humanas tenhamcomeçado a surgir no final do século XIX, atéhoje enfrentam problemas na tentativa de es-tabelecer o método adequado à compreensãodo comportamento humano.

Além disso, as ciências humanas encon-tram-se também diante de um novo conceito

1 Esta citação aparece no prefácio de Estruturaüsmo; antologia de textos teóricos, Lisboa, Portugália Ed., p. XXXVIII.Refere-se a urna análise feita por Freud e retornada por Foucault e Althusser.

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de homem, ferido em seu narcisismo. Aepígrafe do capítulo refere-se ao tema clássi-co das "feridas narcísicas" levantado pela pri-meira vez por Freud e objeto de reflexão dofilósofo francês Michel Foucault. Se lembrar-mos que o Iluminismo exalta a razão humanacomo capaz de entender e dominar a nature-za, compreende-se o profundo mal-estar ex-presso naquela afirmação inicial.

O que se discute aí não é apenas o méto-do das ciências humanas, mas o próprio con-ceito de ciência, que será questionado no nos-so século. Vejamos os antecedentes dessesproblemas, desde o século XVII.

2. Dificuldades metodológicasdas ciências humanas

Enquanto todas as outras ciências têmcomo objeto algo que se encontra fora do su-jeito cognoscente, as ciências humanas têmcomo objeto o próprio ser que conhece. Daíser possível imaginar as dificuldades da eco-nomia, da sociologia, da psicologia, da geo-grafia humana, da história para estudar comobjetividade aquilo que diz respeito ao pró-prio homem tão diretamente.

Vejamos quais são as dificuldades en-frentadas pelas ciências humanas.

A complexidade inerente aos fenômenoshumanos, sejam psíquicos, sociais ou econô-micos, resiste às tentativas de simplificação.Em física, por exemplo, ao estudar as condi-ções de pressão, volume e temperatura, é pos-sível simplificar o fenômeno tornando cons-tante um desses fatores. O comportamentohumano, entretanto, resulta de múltiplasinfluências como hereditariedade, meio,impulsos, desejos, memória, bem como daação da consciência e da vontade, o que otorna um fenômeno extremamente comple-xo. Já pensou o que significa avaliar a decisãode votos dos cidadãos numa eleição presiden-cial? Ou procurar explicar o fenômeno do lin-chamento ou da vaia? Ou examinar as causasque determinam a escolha da profissão?

Outra dificuldade da metodologia dasciências humanas encontra-se na experimen-tação. Isso não significa que ela seja impossí-vel, mas é difíeil identificar e controlar os di-

versos aspectos que influenciam os atos hu-manos. Além disso, a natureza artificial dosexperimentos controlados em laboratório po-dem falsear os resultados. A motivação dossujeitos também é variável, e as instruções doexperimentador podem ser interpretadas demaneiras diferentes. Da mesma forma, a re-petição do fenômeno altera os efeitos, poisnunca uma repetição se fará sem modifica-ções, já que, para o homem, enquanto serconsciente e afetivo, a situação sempre serávivida de maneiras diferentes.

Certos experimentos oferecem restri-ções de caráter moral, já que não se pode sub-meter o ser humano, indiscriminadamente, aexperiências que arrisquem sua integridade fí-sica, psíquica ou moral. Por exemplo: as rea-ções de pânico num grupo de pessoas presasnuma sala em chamas ou as relações entre asuperpopulação num condomínio e a variaçãodo índice de violência só podem ser objeto deapreciação eventual, quando ocorrerem aciden-tes desse tipo. Jamais poderiam ser provocados.

Também é preciso saber o que será ob-servado: se o comportamento externo do indi-víduo ou grupo, ou apenas o relato do que sen-tiram. Essa técnica, chamada introspecção(olhar para dentro), pode ser falseada pelo in-divíduo voluntariamente, quando mente, ouinvoluntariamente, por motivos que precisa-riam ser detectados. Por isso, mesmo que a in-trospecção seja usada, há quem a considereuma abordagem inadequada.

Outra questão refere-se à matematiza-ção. Se a passagem da física aristotélica paraa física clássica de Galileu se deu pela trans-formação das qualidades em quantidades,pode-se concluir que a ciência será tão rigoro-sa quanto mais for matematizável. Ora, esseideal é problemático com relação às ciênciashumanas, cujos fenômenos são essencialmen-te qualitativos. Por isso, quando é possívelaplicar a matemática, são utilizadas técnicasestatísticas e os resultados são sempre aproxi-mativos e sujeitos a interpretação.

Resta ainda a dificuldade decorrente dasubjetividade. As ciências da natureza aspi-ram à objetividade, que consiste na descentra-ção do eu no processo de conhecer, na capaci-dade de lançar hipóteses verificáveis por to-dos, mediante instrumentos de controle; e nadescentração das emoções e da própria subje-

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tividade do cientista. Mas, se o sujeito queconhece é da mesma natureza do objeto co-nhecido, parece ser difícil a superação da sub-jetividade. Imagine como analisar o medo,sendo o próprio analista uma pessoa sujeita aomedo; ou interpretar a história, estando situa-do numa dada perspectiva histórica; ou anali-sar a família, fazendo parte de uma; ou sereconomista, vivendo num sistema econômicoe de um sistema econômico...

Por fim, se a ciência supõe o determi-nismo — ou seja, o pressuposto de que na na-tureza tudo que existe tem uma causa —,como fica a questão da liberdade humanaiPor haver regularidades na natureza, é possí-vel estabelecer leis e por meio delas prever aincidência de um determinado fenômeno. Mascomo isso seria possível, se admitíssemos aliberdade do homem? E caso ele esteja real-mente submetido a determinismos, seria damesma forma e intensidade que para os seresinertes? (ver Capítulo 30 — A liberdade).

Tais dificuldades foram levantadas nãocom a intenção de mostrar que as ciências hu-manas são inviáveis, pois elas aí estão, procu-rando o seu espaço. Quisemos apenas acen-tuar as diferenças de natureza e os problemasque têm encontrado até o momento. Veremosque a maneira de enfrentá-los tem determina-do o tipo de metodologia que as caracteriza.Ou seja, o método utilizado depende, de certaforma, dos pressupostos filosóficos que emba-sam a visão de mundo do cientista.

fortes a primeira tendência metodológica. Naimpossibilidade de abordarmos as diversasciências humanas, escolhemos a psicologiacomo exemplo, a fim de melhor compreender-mos as tendências naturalista e humanista.

A psicologia experimental

Comte sempre fez restrições à psicolo-gia pois, segundo suas palavras, "não pode-mos estar à janela e ver-nos passar pela rua.No teatro, não podemos ser, ao mesmo tem-po, ator no palco e espectador na sala". Issosignifica um veto positivista à psicologia, re-cusando a introspecção (considerada contem-plação ilusória do espírito por si mesmo), bemcomo todas as formas que levam em conta aconsciência humana como dado relevante aser examinado pela ciência.

Esse veto pesou sobre a psicologia des-de a metade do século XIX, o que nos faz per-guntar como, apesar disso, ela conseguiu seconstituir em ciência.

Ora, o que ocorreu foi que os primeirospsicólogos, seguindo a tendência naturalista,aplicaram o método das ciências da naturezaàs ciências humanas e, abandonando as preo-cupações de caráter filosófico, como a inda-gação a respeito da origem, destino ou nature-za da alma ou do conhecimento, se voltarampara os aspectos do comportamento que po-diam ser verificados experimentalmente.

3. Tendência naturalista:o positivismo

O positivismo estabeleceu critérios rígidospara a ciência, exigindo que ela se fundasse naobservação dos fatos. A mesma exigência é es-tabelecida para a sociologia e, evidentemente,para qualquer outra ciência humana. Comte, re-presentante do positivismo (ver Terceira Partedo Capítulo 10), é considerado o fundador dasociologia como ciência, definindo-a como "fí-sica social". O sociólogo Émile Durkheim par-tia do pressuposto metodológico de que os fatossociais deviam ser observados como coisas.

A preocupação em tornar o sujeito dasciências humanas um objeto semelhante aodas ciências da natureza marcou com cores

A psicofísica na Alemanha

A psicologia como ciência apareceu naAlemanha, no século XIX, relacionada comos problemas de psicofísica.

Os principais representantes dessa ten-dência são Ernst Heinrich Weber, GustavTheodor Fechner, Hermann von Helmholtz eWilhelm Wundt, todos inicialmente médicosvoltados para o exame de questões relativas àpercepção, e que estabeleceram critérios parageneralizar e quantificar a relação entre asmudanças do estímulo e os efeitos sensoriaiscorrespondentes.

Wilhelm Wundt (1852-1920) funda em1879, em Leipzig, o primeiro laboratório depsicologia, onde desenvolve os processos decontrole experimental. No livro Elementos de

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psicologia fisiológica desenvolve o conceitode método, no qual a psicologia imita clara-mente a fisiologia. Por isso Wundt nunca seaventurou a estudar os processos mais eleva-dos do pensamento, por considerá-los inaces-síveis ao controle experimental. Volta-se parao estudo da percepção sensorial, principal-mente a visão, estabelecendo as relações en-tre os fenômenos psíquicos e o seu substratoorgânico, sobretudo cerebral.

A escola russa: Pavlov

O médico Ivan Pavlov (1849-1936)preocupou-se inicialmente com o funciona-mento dos fenômenos da digestão e salivação.As experiências com cães levaram-no à expli-cação da aprendizagem pelo reflexo condicio-nado. Observe o esquema:

ESTÍMULO RESPOSTA

reflexo simples — não-condicionado"aprumar"as orelhas

Segundo o esquema, observamos que osestímulos não-condicionados — no caso, oalimento e o som — produzem respectiva-mente um reflexo simples imediato, não-aprendido. Ou seja, diante do alimento, sali-vamos automaticamente; ao ouvir a cam-painha, o cachorro fica com as orelhas em pé.

Se associarmos os dois eventos, isto é,se a apresentação do alimento sempre foracompanhada pelo som da campainha, haveráum momento em que apenas o som provocarásalivação, sem a presença do alimento. Issosignifica que o som, antes um estímulo neutropara a salivação, passa a ser um estímulo efi-caz: criou-se um reflexo condicionado, houveaprendizagem.

O estímulo alimento é chamadoreforçador positivo, pois é ele que torna a rea-ção mais freqüente, garantindo a manutençãoda resposta. Se o reforçador não é mais apre-sentado, a tendência é a extinção da resposta,isto é, desfaz-se o reflexo condicionado, e ocão não mais saliva ao som da campainha.

Da mesma forma, é possível usar o re-forço negativo. Por exemplo, ao ensinar umurso a dançar, estabelece-se a seguinte asso-ciação: quando se coloca o animal sobre umachapa quente, o reflexo simples consiste emsaltar seguidamente a fim de evitar o descon-forto; se associarmos ao evento o som de umamúsica, ao retirarmos a chapa, só o som damúsica é suficiente para fazê-lo "dançar".

As experiências de Pavlov foram impor-tantes para o desenvolvimento da psicologiacomportamentalista norte-americana, comoveremos a seguir.

A psicologia comportamentalistanorte-americana

Na mesma linha experimental da psico-logia alemã, desenvolve-se a psicologia nor-te-americana, cujos principais representantessão William James, Woodsworth, Thorndike,Dewey, Catell, Titchener.

Interessa-nos aqui a principal correntede psicologia, cuja influência se faz sentir ain-da hoje: a psicologia comportamentalista, oubehaviorismo (de behaviour, "conduta").

O primeiro representante foi Watson(1878-1938), que aplicou amplamente as ex-periências de Pavlov sobre o reflexo condi-cionado. A utilização de animais tornou-se fe-cunda porque o animal, por ter vida mais cur-ta, permite estudar o mesmo processo em ge-rações sucessivas. Além disso, é possível le-sar órgãos a fim de conhecer suas funções. Éclaro que, depois, as conclusões são extrapo-ladas para a psicologia humana.

Com isso o behaviorismo pretende atin-gir aquele ideal positivista pelo qual a psicolo-gia, para se tornar ciência, precisaria seguir oexemplo das ciências naturais, tornando-se ma-terialista, mecanicista, determinista e objetiva.

São abandonadas todas as discussões arespeito da consciência, conceito filosóficoconsiderado impróprio para uso científico. Opróprio Wundt é criticado por ter sucumbidoa essas tendências filosóficas. A introspec-ção é rejeitada, e o único objeto digno de es-tudo é o comportamento, em toda a sua exte-rioridade. Os comportamentalistas costu-mam se referir à consciência como sendouma "caixa negra", inacessível ao conheci-mento científico.

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som

Segundo o dicionário do professorPiéron, "fora de seu significado moral, a cons-ciência, como observa Hamilton, não é susce-tível de ser definida, uma vez que designa oaspecto subjetivo e incomunicável da ativida-de psíquica, de que não se pode conhecer, forado indivíduo, senão as manifestações do com-portamento".2

O comportamentalismo nega a existên-cia dos instintos, da inteligência inata e dosdons inatos de qualquer espécie, consideradosdecorrentes da aprendizagem e da influênciado meio ambiente. Daí a importância da edu-cação infantil, momento em que se desenvol-vem os reflexos condicionados.

"Dêem-me doze crianças sadias, de boaconstituição, e a liberdade de poder criá-las àminha maneira. Tenho a certeza de que, se es-colher uma delas ao acaso, e puder educá-la,convenientemente, poderei transformá-la emqualquer tipo de especialista que eu queira —médico, advogado, artista, grande comercian-te, e até mesmo em mendigo e ladrão —, in-dependente de seus talentos, propensões, ten-dências, aptidões, vocações e da raça de seusascendentes."3

Após Watson, o behaviorismo teve novoimpulso com Skinner (1904-1990) que, a par-tir de experiências com ratos e pombos, esta-beleceu as leis de um tipo de condicionamen-to mais complexo do que o clássico oupavloviano. Trata-se do condicionamento ins-trumental (operante ou skinneriano).

Esse tipo de aprendizagem é feito nasfamosas "caixas de Skinner", onde se colocaum animal faminto: depois de, casualmente,esbarrar diversas vezes na alavanca, ele perce-be que recebe alimento sempre que a aperta. Oapertar a alavanca é a resposta, dada antes doestímulo, que é o alimento. Skinner criou inú-meras variantes dessas caixas, inclusive aque-las em que o animal age visando evitar umapunição, como, por exemplo, saltar antes de seracionado o choque elétrico, quando "avisado"por um sinal luminoso ou um som.

As descobertas de Skinner são ampla-mente utilizadas nos Estados Unidos em di-versos campos da atividade humana. Por

exemplo, nas escolas, com a aplicação da ins-trução programada, pela qual o texto apresen-tado ao aluno tem uma série de espaços embranco para serem preenchidos em nível cres-cente de dificuldade. Partindo do princípio deque o reforço deve ser dado a cada passo doprocesso e imediatamente após o ato, a cadamomento o aluno pode conferir o erro ou acer-to da sua resposta. O processo foi sofisticadona "máquina de ensinar", que tem a pretensãode substituir o professor em várias etapas daaprendizagem.

As técnicas skinnerianas são usadas naeducação familiar, a fim de criar bons hábi-tos, como a aprendizagem do controle da mic-ção, ou para corrigir comportamentos, comoreeducar a criança bagunceira ou manhosa.

Também aparecem nas empresas, como intuito de estimular maior produção pormeio de pontos acumulados que serão trans-formados em benefícios para os consideradosmelhores.

No tratamento psicológico de certos "ví-cios", surge a reflexologia, que pretende des-condicionar os maus hábitos. Por exemplo,usando reforços negativos, procura fazer comque um alcoólatra tenha horror à bebida. É in-teressante lembrar o filme Laranja mecânica,onde Stanley Kubrick critica o behaviorismo,ao mostrar o descondicionamento de um indi-víduo violento.

4. Tendência humanista

A crítica ao positivismo:a fenomenologia

A fenomenologia é a filosofia e o mé-todo que têm como precursor Franz Brentano(final do séc. XIX). Mas foi Edmund Husserl(1859-1938) quem formulou as principais li-nhas dessa nova abordagem do real, abrindoo caminho para filósofos como Heidegger,Jaspers, Sartre, Merleau-Ponty (ver QuartaParte do Capítulo 10 — Teoria do conhe-cimento).

Henri Piéron, Dicionário de psicologia, Porto Alegre, Globo, 1975, p. 89.3 Watson, apud E. Heidbreder, Psicologias do século XX, p. 218.

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O esforço filosófico de Husserl seorienta para a discussão da situação geradapelo positivismo: a crise da filosofia, a crisedas ciências e a crise das ciências humanas.Tornava-se urgente repensar os fundamentose a racionalidade dessas disciplinas e mostrarque tanto a filosofia como as ciências huma-nas são viáveis. A proposta é o recomeço ra-dical na ordem do saber.

Retomando a clássica questão da rela-ção sujeito-objeto, colocada desde a teoria doconhecimento cartesiana, vimos que o racio-nalismo enfatiza o papel atuante do sujeitoque conhece, e o empirismo privilegia a de-terminação do objeto conhecido. O resultadodessa dicotomia, em ambos os casos, é a per-manência do dualismo psicofísico, da separa-ção corpo-espírito e homem-mundo.

A fenomenologia propõe a superação dadicotomia, afirmando que toda consciência éintencional, o que significa que não há puraconsciência, separada do mundo, mas todaconsciência tende para o mundo. Da mesmaforma, não há objeto em si, independente daconsciência que o percebe. Portanto, o objetoé um fenômeno, ou seja, etimologicamente,"algo que aparece" para uma consciência. Se-gundo Husserl, "a palavra intencionalidadenão significa outra coisa senão esta particula-ridade fundamental da consciência de ser aconsciência de alguma coisa".

Portanto, a primeira oposição que a fe-nomenologia faz ao positivismo é que não háfatos com a objetividade pretendida, pois nãopercebemos o mundo como um dado bruto,desprovido de significados; o mundo que per-cebo é um mundo para mim. Daí a importân-cia dada ao sentido, à rede de significaçõesque envolvem os objetos percebidos: a cons-ciência "vive" imediatamente como doadorade sentido.

Exemplificando: segundo a terapia re-flexológica behaviorista, a reeducação de umacriança manhosa consiste em descondicionara resposta manha e substituí-la por outro com-portamento socialmente adequado. Ao contrá-rio, na análise fenomenológica, a manha nãoé, ela significa, e é pela emoção que a criançase exprime na totalidade do seu ser. Ela dizcoisas com o choro, e esse choro precisa serinterpretado. Da mesma forma, a resposta quea criança dá a certos estímulos externos supõetambém que os próprios estímulos nunca sãoidênticos para todas as pessoas, mas exercem

influência na medida em que são percebidosde maneira singular pela consciência que osatinge.

A relação mecânica E — R, estabeleci-da pelo comportamentalismo, a fenomenolo-gia contrapõe a oposição existente entre o si-nal e o símbolo. Enquanto o sinal faz parte domundo físico do ser, o símbolo é parte domundo humano do sentido. Para ampliar as in-formações sobre a fenomenologia, leia os tex-tos complementares de Merleau-Ponty sobreo corpo e a sexualidade.

A Gestalt e a fenomenologia

A Gestalt (ou psicologia da forma) é umexemplo da aplicação da fenomenologia napsicologia. Teve como precursor Ehrenfels,que já em 1890 discutia sobre as qualidadesda forma. Mas a teoria foi desenvolvida defato no começo do século XX por Kõhler eKoffka, que sofreram influência da fenome-nologia e, nesse sentido, opõem-se às psico-logias de tendência positivista.

A psicologia derivada da tendênciaempirista tentava reduzir a percepção a umaanálise rigorosa, até encontrar o "átomo" psí-quico fundamental. O mundo percebido pelacriança, por exemplo, seria inicialmente umagrande confusão de sensações, cujos fragmen-tos se organizariam trabalhosamente pelo pro-cesso de associação, pela qual resultam porfim as percepções e depois as idéias.

Ora, os gestaltistas afirmam que não háexcitação sensorial isolada, mas complexosem que o parcial é função do conjunto. Issosignifica que o objeto não é percebido em suaspartes, para depois ser organizado mentalmen-te, mas se apresenta primeiro na totalidade (nasua forma, na sua configuração), e só depois oindivíduo atentará para os detalhes.

O conjunto é mais que a soma das par-tes, e cada elemento depende da estrutura aque pertence. Quando ouvimos uma melodia,não percebemos inicialmente as notas de queela se compõe: por isso podemos ouvi-la comtodas as notas diferentes quando transpostapara outro tom e reconhecê-la assim mesmo.No entanto, se uma nota é alterada, altera-se otodo. Na transposição para outro tom, a estru-tura da melodia permaneceu a mesma, e noúltimo caso houve alteração estrutural.

No dia-a-dia encontramos inúmerosexemplos da tendência à configuração: sem-

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pre vemos formas nas nuvens (rosto, cachor-ro, dragão...); as constelações representam acruz, o escorpião; reconhecemos um rosto fa-miliar, mas longe dele muitas vezes não noslembramos bem dos detalhes. Já pensaramcomo é difícil descrever alguém para um re-trato falado? Isso porque percebemos o rostono seu conjunto, e não nos detalhes.

A tendência que o sujeito tem para or-ganizar aquilo que é percebido significa a im-possibilidade de existir o fato bruto, pois oobjeto é elaborado e nunca aparece na percep-ção tal como existe em si. O sujeito estruturaorganicamente o que está apenas justapostoou leva à perfeição formas apenas esboçadas.

Tudo o que dissemos para a percepçãovale para explicar o comportamento dos ani-mais e das pessoas: há que partir da admissãode um campo total onde o organismo e o meioentram como dois pólos correlativos queconstituem o verdadeiro ambiente da ação.Um espaço se estrutura de forma diferente seo percorro como faminto, como fugitivo oucomo artista...

Köhler fez diversas experiências comchimpanzés (já nos referimos a elas no Capítu-lo 1). Numa jaula, o chimpanzé devia alcançaruma banana inacessível. O problema é resolvi-do quando o animal consegue arrastar um cai-xote e nele subir para pegar a fruta, ou quandousa um bambu para derrubá-la. Kõhler explicaque, para resolver o problema, o chimpanzédeve perceber como um todo o campo onde sesitua, ou seja, ele só tem o insight (intuição,"iluminação súbita") quando estabelece a rela-ção fruta-caixote ou fruta-bambu. Dá-se entãoo "fechamento", ou seja, a predominância deuma determinada forma sobre outras.

Nas figuras ambíguas, dependendo da funçãoque damos a uma linha, alteramos a relação fi-gura e fundo. No desenho vemos ora uma taça,ora dois perfis.

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Com a descoberta do inconsciente, SigmundFreud inaugura um novo campo de conhecimen-to: a psicanálise.

A psicanálise surgiu com SigmundFreud (1856-1939), médico austríaco, e suaprincipal novidade encontra-se na hipótese doinconsciente e na compreensão da naturezasexual da conduta. Apesar de também ter so-frido influência das idéias positivistas e

Observe como é impossível não perceber ospontinhos senão a partir dos elementos jáaglutinados, ou seja, os pontos formam quatrocolunas.

A psicanálise

O termo psicanálise possui três senti-dos: é um método interpretativo (herme-nêutica), uma forma de tratamento psicológico(psicoterapia) e uma teoria, ou seja, um co-nhecimento que o método produz.

mecanicistas do século XIX, a teoria deFreud é duramente criticada pelas psicolo-gias de linha naturalista, pois não usa a ex-periência no sentido tradicional do métodocientífico, além de trabalhar com uma rea-lidade hipotética, considerada inverificávelnos moldes tradicionais: o inconsciente.

No entanto, a hipótese do inconsciente tor-nou-se fecunda, já que permitiu compreenderuma série de acontecimentos da vida psíquica.

Para a psicanálise, todos os nossos atostêm uma realidade exterior representada nanossa conduta e significados ocultos que po-dem ser interpretados. Usando de uma metá-fora, poderíamos dizer que a vida conscienteé apenas a ponta de um iceberg, cuja monta-nha submersa simboliza o inconsciente.

A energia que preside os atos humanosé de natureza pulsional, e Freud põe em rele-vo a energia de natureza sexual chamada libi-do. Mas a sexualidade não deve ser identifi-cada à genitalidade (ou aos atos que se refe-rem explicitamente à atividade sexual propria-mente dita), pois tem significado muito maisamplo, sendo toda e qualquer forma de grati-ficação ou busca do prazer. O reservatório dasforças pulsionais chama-se id.

No entanto, para viver em comunidade,o homem precisa controlar e regular os dese-jos, adiando a satisfação de alguns e excluin-do definitivamente outros... Com isso se for-ma a consciência moral ou superego.

Cabe ao ego maduro estabelecer o equi-líbrio entre as forças antagônicas, a saber, o id,regido pelo "princípio do prazer", e o superego,adequando-as ao "princípio da realidade".Quando o conflito é muito grande e o ego nãosuporta a consciência do desejo, este é rejeita-do, o que determina o processo chamado re-pressão. No entanto, o que foi reprimido nãopermanece no inconsciente, pois, sendo ener-gia, precisa ser expandido. Reaparece então soba forma de sintomas, ou representantes do re-primido, enquanto substituições para a gratifi-cação instintiva não atingida.

Os sintomas devem ser decifrados na sualinguagem simbólica, já que o simbolismo é omodo de representação indireta e figurada deuma idéia, conflito ou desejo inconscientes.

Há várias formas para a sondagem doinconsciente, mas, para Freud, o caminho pri-vilegiado é o fornecido pelos sonhos. Quandonos recordamos do enredo de um sonho,estamos diante do seu conteúdo manifesto,que às vezes nos parece incoerente e absurdo.Mas o sonho tem um conteúdo latente, quepode ser descoberto pela decifração do seusimbolismo. Para isso, Freud propõe a técnicada associação livre, pela qual o próprio indi-víduo, seguindo o fluxo espontâneo dasidéias, sai em busca do sentido oculto.

O psicanalista, ao auxiliar alguém nabusca do que foi silenciado, exerce um papelcatalisador, isto é, o de instrumento facilitadordo processo desencadeado pelo próprio sujei-to. Durante o tratamento ocorre o processo datransferência, quando o paciente dirige ao psi-canalista afetos antigos de amor e hostilidadenão percebidos como tais, o que permite a vi-vência de novas experiências, fecundas para aelucidação do que foi ocultado.

Este rápido esboço foi feito com a in-tenção de abordar o aspecto da proposta psi-canalítica que permite um enfoque fenomeno-lógico. Embora o próprio Freud não estivessevinculado à fenomenologia, é possível estabe-lecer uma aproximação entre esta e a psicaná-lise. Estamos distantes da técnica comporta-mentalista, que supõe a observação objetiva eimpessoal do comportamento do sujeito, tor-nado objeto de investigação. A psicanálise,ao contrário, não só restabelece a relaçãovivencial entre o psicanalista e o paciente,como considera o passado não uma "coisa"objetiva, mas uma realidade que adquire no-vas nuances no "novo olhar" do presente so-bre o passado.

Segundo Merleau-Ponty, "o tratamentopsicanalítico não cura provocando uma toma-da de consciência do passado, mas primeira-mente unindo o sujeito a seu médico por no-vas relações de existência. Não se trata de darà interpretação psicanalítica uma aprovaçãocientífica e descobrir um sentido nocional dopassado; trata-se de revivê-lo, significandoisto ou aquilo, e o doente só o consegue ven-do seu passado na perspectiva de sua coexis-tência com o médico".4

4 M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, p. 457.

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5. Quadro comparativo:

Tendência naturalista Tendência humanista

Quanto à maneira de perceber o lato psíquico

• uma coisa (realidade objetiva)• fatos descritos em sua aparência sensório-

motora• ênfase na natureza orgânica dos fenômenos

psíquicos

• uma consciência (doadora de sentido)• valorização do vivido, dos conteúdos anímicos

e espirituais• o homem é um ser-no-mundo

"

• associacionismo• atomismo (sensação, percepção, idéia)

• noção de estrutura (percepção do todo)• totalidade (não é a soma dos elementos)

Quanto a explicação do comportamento

• mecanicismo (o comportamento se explicapela relação causa - efeito)

• todo comportamento existe num contexto quedeve ser interpretado

Quanto ao modo de inteligibilidade

• explicação legal (por leis) e quantitativa(matematizável)

• aceitação só do que pode ser verificado expe-rimentalmente

• limitação do método das ciências da natureza

• "compreensão" por tipo qualitativo ou mode-los ideais

• aceitação de pressupostos não-verificáveis ex-perimentalmente (por exemplo, a hipótese doinconsciente)

• procura do método próprio das ciências dohomem

Quanto â terapia

• técnicas reflexológicas que alteram os sintomas • o "sintoma" é um "símbolo" (é preciso procu-rar o que ele significa)

Exercícios

1. Faça um esquema sobre as dificuldadesmetodológicas das ciências humanas.

Os textos dos exercícios 2 a 4 são de Comte.Leia-os e responda às questões.

2. "Não podemos estar à janela e ver-nos pas-sar pela rua. No teatro, não podemos ser, ao mes-mo tempo, ator no palco e espectador na sala." Ex-plique a afirmação.

3. "Enfim, no estado positivo, o espírito huma-no, reconhecendo a impossibilidade de obter noçõesabsolutas, renuncia a procurar a origem e o destinodo universo, a conhecer as causas íntimas dos fenô-menos, para preocupar-se unicamente em descobrir,graças ao uso bem combinado do raciocínio e da ob-servação, suas leis efetivas, a saber, suas relaçõesinvariáveis de sucessão e de similitude."

a) Como se chama a corrente filosófica a quepertence Comte?

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b) O que significa estado positivo?c) O que o autor critica quando diz "renuncia

a procurar..."?d) O que ele propõe para substituir essa re-

núncia?

4. "O espírito humano pode observar direta-mente todos os fenômenos, exceto os seus próprios.Pois quem faria a observação? (...) Ainda que cadaum tivesse a ocasião de fazer sobre si tais observa-ções, estas, evidentemente, nunca poderiam tergrande importância científica. Constitui o melhormeio de conhecer as paixões sempre observá-las defora. Porquanto todo estado de paixão muito pro-nunciado, a saber, precisamente aquele que serámais essencial examinar, necessariamente é incom-patível com o estado de observação."

a) A que ciência Comte se refere?b) Por que não concede a ela o estatuto de

ciência?

5. "Do ponto de vista histórico, se retomar-mos o quadro das diferentes correntes internacio-nais da psicologia contemporânea, observaremosque a psicologia alemã, com Wundt e Fechner, nas-ceu do encontro da filosofia com a psicofisiologia;que a psicologia inglesa, com Galton, resulta es-sencialmente da convergência do evolucionismodarwiniano com a psicologia diferencial; que a psi-cologia americana, submetida à influência dodarwinismo, também é tributária, antes de tudo, doexperimentalismo da psicologia fisiológica deWundt; que a psicologia soviética deriva direta-mente das pesquisas pavlovianas de neurofisiologiaanimal." (Châtelet)

Nessas diferentes tendências há algo em co-mum. Explique o que é e por que a psicologia nas-cente escolheu trilhar esse caminho. (Explique apartir do veto positivista à psicologia.)

6. Leia a citação de Watson, na página 170, eexplique o significado dela.

7. Em que medida a fenomenologia se con-trapõe às teorias comportamentalistas?

As questões 8 a 11 referem-se ao texto com-plementar I, de Skinner.

8. Monte um esquema do processo de condi-cionamento semelhante ao reproduzido na página169, mas usando os termos do exemplo dado nosegundo parágrafo do texto complementar (ou seja,a "cura" do bêbado).

9. Com referência ao esquema solicitado naquestão anterior, qual é o reforço negativo?

10. O próprio Skinner afirma que "ser bêbado"é um sintoma. Como a psicologia de tendênciametodológica humanista criticaria a proposta detratamento?

11. Da mesma forma que os reflexos sãocondicionados, é possível extingui-los. Dê umexemplo.

Merleau-Ponty, enquanto representante dacorrente fenomenológica, critica o dualismo psico-físico da tradição cartesiana. A partir dos textoscomplementares II— "O corpo" e III— "A se-xualidade", responda às questões 12 e 13.

12. Quais são as afirmações tradicionais a res-peito do corpo, consciência e sexualidade?

13. Quais são as críticas de Merleau-Ponty àsconcepções referidas na questão anterior?

Textos complementares

IO âmbito dos reflexos condicionados

O uso dos reflexos condicionados no controle prático do comportamento dá uma boa medidade seu campo de ação. Os reflexos relativos à economia interna do organismo raramente são deimportância prática para outras pessoas, mas pode haver ocasiões em que estejamos interessados emfazer alguém ruborizar-se, ou rir, ou chorar, e então recorremos a estímulos condicionados ouincondicionados.

(...) Também usamos o processo para dispor o controle do comportamento em ocasiões futu-ras. Na educação patriótica e religiosa, por exemplo, as respostas emocionais a bandeiras, insígnias,símbolos e rituais estão condicionadas de modo que esses estímulos sejam eficazes em ocasiõesfuturas. Uma das "curas" comumente propostas para o fumar ou beber excessivo consiste em adi-cionar substâncias que induzam a náuseas, indisposições e outras conseqüências da bebida e do

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fumo. Quando mais tarde a bebida e o fumo forem vistos ou provados, respostas semelhantes sãoeliciadas como resultado do condicionamento. Estas respostas podem competir com o comporta-mento de beber e fumar, como que lhes "tirando toda a graça". Um condicionamento desta espécieconsiste no tratamento de um sintoma, e não da causa, mas isto ajuda o paciente a parar de beber oufumar por outras razões.

Treinar um soldado é em parte condicionar respostas emocionais. Se retratos do inimigo, suabandeira etc, forem associados a histórias ou fotografias de atrocidades, uma reação agressiva seme-lhante provavelmente ocorrerá quando o inimigo for encontrado. As razões favoráveis são obtidas emgeral da mesma maneira. Respostas a alimentos apetecíveis são facilmente transferidas para outrosobjetos. Assim como "detestamos" a bebida ou o fumo que nos deixam doentes, também "gostamos"dos estímulos que acompanham alimentos agradáveis. O vendedor bem-sucedido é aquele que pagabebidas ao seu cliente ou convida-o para jantar. O vendedor não está apenas interessado nas reaçõesgástricas, mas sim na predisposição favorável do cliente a seu respeito e com relação ao seu produto;esta predisposição, como veremos mais tarde, também decorre da associação de estímulos. (...) Nemtodos os reforços que estabelecem predisposições desta espécie são gastronômicos. Como os publicitá-rios bem o sabem, as respostas e as atitudes eliciadas por lindas garotas, bebês e cenas agradáveispodem ser transferidas para marcas, produtos, estampas de produtos, e assim por diante.

Algumas vezes estamos interessados em induzir a uma resposta emocional que vá contra outraou que equilibre o seu efeito. O dentista, por exemplo, encontra-se frente a um problema prático queconsiste em ter que recorrer a estímulos dolorosos. Estes estão relacionados a estímulos fornecidos pelasala de espera, à cadeira de dentista, aos instrumentos, ao som do motor, que finalmente eliciam umavariedade de reações emocionais. Algumas destas classificamos, grosso modo, de ansiedade. Um boni-to livro de estampas na sala de espera pode eliciar respostas incompatíveis com a ansiedade. (...)

Outro problema prático comum é o de eliminar respostas condicionadas. Por exemplo, pode-mos querer reduzir as reações de medo eliciadas por pessoas, animais, incursões aéreas, ou combatesmilitares. Seguindo os métodos do experimento com reflexo condicionado, apresentamos um estí-mulo condicionado e omitimos o estímulo reforçador responsável pelo seu efeito. Um passo decisi-vo no tratamento da gagueira, por exemplo, é a extinção de reações de ansiedade ou embaraço gera-das por pessoas irresponsáveis que riram do gago ou foram impacientes com ele. (...) A terapiaconsiste apenas no encorajamento da conversação de modo que o estímulo assim automaticamentegerado possa ocorrer sem ser reforçado.

Se o estímulo condicionado elicia respostas muito fortes, pode ser necessário apresentá-lo emdoses gradativas. Se a uma criança que foi assustada por um cão se der um cãozinho, a semelhançaentre o animalzinho e o cão assustador não é tão grande a ponto de eliciar uma resposta de medocondicionada muito forte. Qualquer resposta pouco intensa que possa surgir se extingue. Como ocãozinho cresce, assemelhando-se gradativamente ao animal que ocasionou o medo, a extinção vaise processando por etapas. Às vezes se usa uma técnica semelhante na redução de reações emocio-nais excessivas a bombardeios aéreos, combates, e condições traumáticas semelhantes. A extinçãocomeça com estímulos que eram a princípio apenas um pouco perturbadores — ruídos vagos, sire-nas fracas, ou sons distantes de bombas explodindo. Apresentam-se os estímulos visuais em filmes,sem os sons que os acompanham no combate real. A medida que a extinção ocorre, a semelhançacom estímulos verdadeiros aumenta. Eventualmente, se o tratamento for bem sucedido, nenhuma ouquase nenhuma resposta será eliciada pelos estímulos reais.

(B. Skinner, Ciência e comportamento humano, São Paulo, Martins Fontes, 1985, p. 65-67.)

IIO corpo

Estamos habituados, pela tradição cartesiana, a nos desprendermos do objeto: a atitude reflexi-va purifica simultaneamente a noção comum do corpo e a da alma, definindo o corpo como umasoma de partes sem interior e a alma como um ser presente inteiramente em si mesmo sem distância.Estas definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: a transparência de um

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objeto sem ondulações, transparência de um sujeito que só é o que pensa ser. O objeto é objeto deum lado a outro e a consciência, consciência de um lado a outro. Há dois sentidos, e somente dois, dapalavra existir: existe-se como coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo própriopelo contrário nos revela um modo de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um feixe deprocessos na terceira pessoa — "visão", "motricidade", "sexualidade" — percebo que essas "fun-ções" não podem estar unidas entre si e ao mundo exterior por relações de causalidade, elas sãotodas confusamente retomadas e implicadas num drama único. O corpo não é pois um objeto. Pelamesma razão a consciência que tenho não é um pensamento, quer dizer que não posso decompô-lo erecompô-lo para formar dele uma idéia clara. Sua unidade é sempre implícita e confusa. Ele é sem-pre outra coisa além do que é, sempre sexualidade ao mesmo tempo que liberdade, enraizado nanatureza no momento mesmo em que se transforma pela cultura, nunca fechado sobre si mesmo, enunca ultrapassado. Se se trata do corpo de outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio deconhecer o corpo humano senão vivendo-o, quer dizer retomar por minha conta o drama que o atra-vessa e me confundir com ele.

(M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, p. 208.)

IIIA sexualidade

Mesmo com a sexualidade, que entretanto passou por muito tempo por um tipo de funçãocorporal, trata-se, não de um automatismo periférico, mas de uma intencionalidade que segue omovimento geral da existência. (...)

A sexualidade não é um ciclo autônomo. Ela está ligada interiormente a todo ser cognoscente eatuante, e esses três setores do comportamento manifestam uma única estrutura típica, estão numarelação de expressão recíproca. Reencontramo-nos aqui com as aquisições mais duráveis da psica-nálise. Quaisquer que pudessem ter sido as declarações de princípio de Freud, as pesquisas psicana-líticas chegam de fato não a explicar o homem pela infra-estrutura sexual, mas a reencontrar nasexualidade as relações e as atitudes que antigamente passavam por relações e atitudes de consciên-cia; e a significação da psicanálise não se encontra tanto em repetir a psicologia biológica, mas emdescobrir, nas funções que se acreditara como "puramente corporais", um movimento dialético ereintegrar a sexualidade no ser humano. Um discípulo dissidente de Freud (W. Steckel) mostra, porexemplo, que a frigidez quase nunca está ligada a condições anatômicas ou fisiológicas, mas que elatraduz, a maior parte das vezes, a recusa ao orgasmo, à condição feminina ou à condição de sersexuado, e este, por sua vez, a recusa ao parceiro sexual e ao destino que ele representa. Mesmo emFreud seria errado crermos que a psicanálise excluiu a descrição dos motivos psicológicos que seopõe ao método fenomenológico: ao contrário, ele contribuiu (sem o saber) para o seu desenvolvi-mento ao afirmar, segundo palavras de Freud, que todo ato humano "tem um sentido", e ao procurar,de todos os modos, compreender o acontecimento ao invés de ligá-lo a condições mecânicas. EmFreud mesmo, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito dos processos cujocentro são os órgãos genitais, a libido não é um instinto, isto é, uma atividade orientada para finsdeterminados, ela é o poder geral que tem o sujeito psicofísico de aderir a diferentes meios, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta. Ela é o que faz com que o homemtenha uma história. Se a história sexual de um homem dá a chave de sua vida, é porque na sexualida-de do homem se projeta sua maneira de ser com relação ao mundo, isto é, com relação ao tempo eaos outros homens. (...) A vida genital está imbricada na vida total do sujeito.

(M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, p. 168.)

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São Paulo, 1992: manifestação popular pró-impeachment do presidente Collor,no Vale do Anhangabaú. O movimento pró-impeachment reuniu os mais

diversos segmentos da sociedade civil na luta pela ética na política. As diversas manifestaçõespopulares que lotaram ruas e praças de inúmeras cidades brasileiras foram expressão da

consciência de que a democracia supõe o exercício da cidadania, pela qual os homensabandonam os maus hábitos da passividade para se tornarem mais participantes e

conscientes da "coisa pública".

UNIDADE IVA POLÍTICA

INTRODUÇÃOÀ POLÍTICA

E eu não tenho pátria: tenho mátria.Eu quero frátria.

(Caetano Veloso)

1. Introdução

Na conversa diária, usamos a palavrapolítica de diversas formas que não se refe-rem necessariamente a seu sentido fundamen-tal. Assim, sugerimos a alguém que seja "maispolítico" na sua maneira de agir, ou nos refe-rimos à "política" da empresa, da escola, daIgreja, enquanto formas de exercício e dispu-ta do poder interno. Podemos falar ainda docaráter político de um livro de literatura, ouda arte em geral.

Mais próximo do sentido de política quenos interessa nesta Unidade, sempre nos referi-mos à política quando tratamos de ciência, demoral e, especificamente, de trabalho, lazer,quadrinhos, corpo, amor etc. Embora não seconfunda com o objeto próprio de cada um des-ses assuntos, a política permeia todos eles.

Há também o sentido pejorativo da políti-ca, dado pelas pessoas desencantadas diante dacorrupção e da violência, associando-a à "politi-cagem", falsa política em que predominam osinteresses particulares sobre os coletivos.

Mas afinal, de que trata a política?A política é a arte de governar, de gerir

o destino da cidade. Etimologicamente políti-ca vem de pólis ("cidade", em grego).

Explicar em que consiste a política éoutro problema, pois, se acompanharmos omovimento da história, veremos que essa de-finição varia e toma nuances as mais diferen-tes. O mesmo ocorre quando lembramos queo político é aquele que atua na vida pública eé investido do poder de imprimir determinadorumo à sociedade.

Múltiplos são os caminhos, se quisermosestabelecer a relação entre política e poder; en-tre poder, força e violência; entre autoridade,coerção e persuasão; entre Estado e governoetc. Por isso é complicado tratar de política "emgeral". É preciso delimitar as áreas de discus-são e situar as respostas historicamente.

Assim, é possível entender a políticacomo luta pelo poder, conquista, manutençãoe expansão do poder.

Ou refletir sobre as instituições políticaspor meio das quais se exerce o poder.

E também indagar sobre a origem, natu-reza e significação do poder. Nessa últimaquestão surgem problemas como: Qual é o fun-damento do poder? Qual é a sua legitimidade?É necessário que alguns mandem e outros obe-deçam? O que torna viável o poder de um so-bre o outro? Qual é o critério de autoridade?

Abordaremos algumas dessas questõesnos capítulos seguintes, à medida que tratar-mos dos problemas que preocuparam os filó-sofos no correr da história. Sugerimos consul-tar também o Capítulo 7 (Do mito à razão),onde nos referimos ao surgimento da noçãode cidadão na Grécia Antiga.

2. O poder

Discutir política é referir-se ao poder.Embora haja inúmeras definições e in-

terpretações a respeito do conceito de poder,vamos considerá-lo aqui, genericamente, como

CAPITULO 17

179

sendo a capacidade ou possibilidade de agir,de produzir efeitos desejados sobre indivíduosou grupos humanos. Portanto, o poder supõedois pólos: o de quem exerce o poder e o da-quele sobre o qual o poder é exercido. Portan-to, o poder é uma relação, ou um conjunto derelações pelas quais indivíduos ou grupos in-terferem na atividade de outros indivíduos ougrupos.

Poder e força

Para que alguém exerça o poder, é pre-ciso que tenha força, entendida como instru-mento para o exercício do poder. Quando fa-lamos em força, é comum pensar-se imediata-mente em força física, coerção, violência. Naverdade, este é apenas um dos tipos de força.

Diz Gérard Lebrun: "Se, numa demo-cracia, um partido tem peso político, é porquetem força para mobilizar um certo número deeleitores. Se um sindicato tem peso político, éporque tem força para deflagrar uma greve.Assim, força não significa necessariamente aposse de meios violentos de coerção, mas demeios que me permitam influir no comporta-mento de outra pessoa. A força não é sempre(ou melhor, é rarissimamente) um revólverapontado para alguém; pode ser o charme deum ser amado, quando me extorque algumadecisão (uma relação amorosa é, antes de maisnada, uma relação de forças; cf. as Ligaçõesperigosas, de Laclos). Em suma, a força é acanalização da potência, é a sua determi-nação".1

Estado e poder

Entre tantas formas de força e poder, asque nos interessam aqui referem-se à políticae, em especial, ao poder do Estado que, desdeos tempos modernos, se configura como a ins-tância por excelência do exercício do poderpolítico.

Na Idade Média certas atribuições po-diam ser exercidas pelos nobres em seus res-pectivos territórios, onde muitas vezes erammais poderosos do que o próprio rei. Alémdisso, era difícil, por exemplo, determinarqual a última instância de uma decisão, daí osrecursos serem dirigidos sem ordem hierár-

quica tanto a reis e parlamentos como a pa-pas, concílios ou imperadores.

A partir da Idade Moderna, com a for-mação das monarquias nacionais, o Estado sefortalece e passa a significar a posse de umterritório em que o comando sobre seus habi-tantes é feito a partir da centralização cada vezmaior do poder. Apenas o Estado se torna aptopara fazer e aplicar as leis, recolher impostos,ter um exército. A monopolização dos servi-ços essenciais para garantia da ordem internae externa exige o desenvolvimento do aparatoadministrativo fundado em uma burocraciacontroladora.

Por isso, segundo Max Weber, o Estadomoderno pode ser reconhecido por dois ele-mentos constitutivos: a presença do aparatoadministrativo para prestação de serviços pú-blicos e o monopólio legítimo da força.

O poder legítimo

Embora a força física seja uma condi-ção necessária e exclusiva do Estado para ofuncionamento da ordem na sociedade, não écondição suficiente para a manutenção do po-der. Em outras palavras, o poder do Estadoque apenas se sustenta na força não pode du-rar. Para tanto, ele precisa ser legítimo, ouseja, ter o consentimento daqueles que obede-cem. (Vimos que o poder é uma relação!)

Ao longo da história humana foram ado-tados os mais diversos princípios de legitimi-dade do poder:

• nos Estados teocráticos, o poder con-siderado legítimo vem da vontade de Deus;

• ou da força da tradição, quando o po-der é transmitido de geração em geração,como nas monarquias hereditárias;

• nos governos aristocráticos apenas osmelhores podem ter funções de mando; é bomlembrar que os considerados melhores variamconforme o tipo de aristocracia: os mais ricos,ou os mais fortes, ou os de linhagem nobre,ou, até, a elite do saber;

• na democracia, vem do consenso, davontade do povo.

A discussão a respeito da legitimidadedo poder é importante na medida em que estáligada à questão de que a obediência é devida

1 G. Lebrun, O que é poder, p. 11-12.

180

apenas ao comando do poder legítimo, segun-do o qual a obediência é voluntária, e portantolivre. Caso contrário, surge o direito à resis-tência, que leva à turbulência social.

Restaria ainda examinar as condiçõesque permitem estabelecer os limites do poder,abordaremos esta questão no próximo item(democracia), quando nos referirmos às rela-ções entre o poder e o direito.

3. Uma reflexão sobre ademocracia

A palavra democracia vem do grego de-mos ("povo") e kratia, de krátos ("governo","poder", "autoridade"). Os atenienses são o pri-meiro povo a elaborar teoricamente o ideal de-mocrático, dando ao cidadão a capacidade dedecidir os destinos da pólis (cidade-estado gre-ga). Habituado ao discurso, o povo grego en-contra na ágora (praça pública) o espaço socialpara o debate e o exercício da persuasão.

Entretanto, o ideal de democracia direta(que não se faz por intermédio de represen-tantes, mas pelo exercício do poder não-alie-nado) não se cumpriu de fato em Atenas. Ve-remos, no Capítulo 19, quantos eram excluí-dos do direito à cidadania e como poucos de-tinham efetivamente o poder. Nunca foi pos-sível evitar que, em nome da democracia, con-ceito abstrato, valores que na verdade perten-cem a apenas uma classe fossem considera-dos universais.

O ideal democrático reaparece na histó-ria, com roupas diferentes, ora no liberalismo,ora exaltado na utopia rousseauísta, ora nosideais socialistas e anarquistas.

Se, como vimos, a política significa "o quese refere ao poder", resta-nos perguntar: onde éo lugar do poder na democracia ? Comecemosexaminando onde a democracia não está.

A personalização do poder

Nos governos não-democráticos, a pes-soa investida de poder dele se apossa por todasua vida como se fosse seu proprietário. Emvirtude de privilégios, o faraó do Egito, océsar romano, o rei cristão medieval se apro-priam do poder identificando-o com o seu pró-prio corpo. E a pessoa do príncipe que se tor-na o intermediário entre os homens e Deus,ou o intérprete humano da Suprema Razão.

Identificado com determinada pessoa ougrupo, o poder personalizado não é legitima-do pelo consentimento da maioria e dependedo prestígio e da força dos que o possuem.Trata-se da usurpação do poder, que perde oseu lugar público quando é incorporado na fi-gura do príncipe.

Que tipo de unidade decorre desse po-der? Como não se funda na expressão damaioria, ele precisa estar sempre vigiando econtrolando o surgimento de divergências quepoderão abalá-lo. Busca então a uniformiza-ção das crenças, das opiniões, dos costumes,evitando o pensamento divergente e destruin-do a oposição.

O risco do totalitarismo surge quando opoder é incorporado ao partido único, repre-sentado por um homem todo-poderoso. O fi-lósofo político contemporâneo Claude Lefortdiz que o escritor soviético dissidente Solje-nitsin costumava se referir a Stálin como sen-do o Egocrata, que significa "o poder perso-nalizado" (etimologicamente, "poder do eu").O Egocrata é o ser todo-poderoso que apaga adistinção entre a esfera do Estado e a da so-ciedade civil, e onde o partido, onipresente,se incumbe de difundir a ideologia dominanteem todos os setores de atividades, a todos uni-ficando, o que permite a reprodução das rela-ções sociais conforme o modelo geral.

É interessante notar que mesmo nos re-gimes democráticos às vezes aparecem figu-ras fascinadas pelo poder que estimulam for-mas de "culto da personalidade" que os façamse manter sempre em evidência, seja por me-didas extravagantes que dêem o que falar, sejapor abuso do poder, sobrepondo o Executivoaos outros poderes, seja confundindo as esfe-ras do público e do privado. Daí a necessida-de da vigilância das instituições para impedira degeneração do poder em arbítrio.

A institucionalização do poder

Na Idade Moderna acontece uma pro-funda mudança na maneira de pensar medie-val, que era predominantemente religiosa.Ocorre a secularização da consciência, ouseja, o recurso da razão prevalece sobre asexplicações religiosas. Essa transformação severifica nas artes, nas ciências, na política.

A tese de que todo poder emana deDeus, se contrapõe a teoria da origem socialdo pacto feito sob o consentimento dos ho-

181

mens. A legitimação do poder se encontra nopróprio homem que o institui. (Ver as teoriascontratualistas, no Capítulo 22.)

Com a influência da nova classe burgue-sa no panorama político, passa-se a defendera separação entre o público e o privado. En-quanto na Idade Média o poder político per-tencia ao senhor feudal, dono de terras, e eratransmitido aos filhos como herança junta-mente com seus bens, com as revoluções bur-guesas as esferas do público e do privado sedissociam e o poder não é mais herdado, masconquistado pelo voto.

A República, de Honoré Daumier, 1848. Daumierfoi um pintor, gravador e escultor francês que secaracterizou pelo realismo e ironia de seus tra-balhos, sendo conhecidas as caricaturas que fezde políticos do seu tempo. A tela A República foiapresentada no concurso planejado (e não-reali-zado) pelo governo provisório republicano quedesejava celebrar a queda de Louis-Philippe.

Isto é possível pela institucionalizaçãodo poder, que se dá quando aquele que o de-tém não mais se acha identificado com ele,sendo apenas o depositário da soberania po-pular. O poder se torna um poder de direito, esua legitimidade repousa não no uso da vio-lência, nem no privilégio, mas no mandatopopular. Não havendo privilégios, todos são

iguais e têm os mesmos direitos e deveres. Osúdito transforma-se em cidadão, já que parti-cipa ativamente da comunidade cívica.

O fortalecimento do Estado moderno ha-via resultado no absolutismo real, e a institucio-nalização do poder instaurada pelo liberalismoburguês se fez pela procura de formas de limita-ção do poder soberano. Daí a importância doParlamento enquanto instância separada do Exe-cutivo, uma das grandes conquistas da Revolu-ção Gloriosa na Inglaterra do século XVII. Noséculo seguinte, Montesquieu desenvolverá ateoria da autonomia dos três poderes (legislativo,executivo e judiciário), consciente de que "paraque não se possa abusar do poder é preciso queo poder freie o poder".

Sob o impacto do Século das Luzes, ex-pande-se a defesa do constitucionalismo, en-tendido como a teoria e a prática dos limitesdo poder exercido pelo direito e pelas leis.Conhecemos bem as Declarações dos direi-tos do homem e do cidadão em documentoscélebres que resultaram da Independência dosEstados Unidos e da Revolução Francesa.

Não é por acaso que no século XVIII ojurista italiano César Beccaria condena as penascruéis e a tortura, abrindo novas sendas para adiscussão a respeito dos direitos humanos.

Portanto, o poder torna-se legítimo por-que emana do povo e se faz em conformidadecom a lei.

Retomando a pergunta "onde é o lugar dopoder na democracia?", podemos agora respon-der, como o faz Claude Lefort, que é o lugarvazio, ou seja, é o poder com o qual ninguémpode se identificar e que será exercido transito-riamente por quem for escolhido para tal.

No entanto, como veremos nos capítu-los subseqüentes, o liberalismo burguês semostrou deficiente na aplicação do ideal de-mocrático, pois desde o início fez prevalecero elitismo ao privilegiar os segmentos da so-ciedade que possuem propriedades e excluirdo acesso ao poder a grande maioria.

O exercício democrático

Segundo Marilena Chaui2, as determi-nações constitutivas do conceito de demo-cracia são as idéias de conflito, abertura erotatividade.

' Cultura e democracia, p. 156.

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• Conflito — se a democracia supõe opensamento divergente, isto é, os múltiplosdiscursos, ela tem de admitir uma heteroge-neidade essencial. Então, o conflito é inevitá-vel. A palavra conflito sempre teve sentidopejorativo, como algo que devesse ser evitadoa qualquer custo. Ao contrário, divergir é ine-rente a uma sociedade pluralista. Se os confli-tos existem, evitá-los é permitir que persistam,degenerem em mera oposição ou sejam camu-flados. O que a sociedade democrática devefazer com o conflito é trabalhá-lo, de modoque, a partir da discussão, do confronto, sejaencontrada a possibilidade de superá-lo. É as-sim que a verdadeira história se faz, nessaaventura em que o homem se lança em buscado possível, a partir dos imprevistos.

• Abertura — significa que na democra-cia a informação deve circular livremente e acultura não é privilégio de poucos. A circula-ção não se reduz ao mero consumo de infor-mação e cultura, mas significa produção decultura, que se enriquece nesse processo.

• Rotatividade — significa tornar o poderna democracia realmente o lugar vazio por ex-celência, sem privilégio de um grupo ou clas-se. É permitir que todos os setores da socieda-de possam ser legitimamente representados.

Por isso é importante que na sociedadehaja mecanismos que permitam a ampla ex-tensão da educação, ainda restrita a setoresprivilegiados. Que se ampliem os espaços pú-blicos de consumo e produção de cultura. Queo pluralismo dos partidos e sua eficáciaindependam do poder econômico e que os ad-versários políticos não sejam considerados"inimigos", mas opositores.

A fragilidade da democracia

Se fosse possível preencher os requisi-tos indispensáveis à constituição da verdadei-ra democracia, poderíamos atingir uma socie-dade em que a relação entre as pessoas se de-fine pela amizade, que é a recusa do servir.

No entanto, trata-se de tarefa difícil, de-vido à incompletude essencial da democracia.Não há modelos a seguir, pois a noção de mo-delo supõe uma imposição antecipada do que éconsiderado certo (por quem?). Ao contrário, ademocracia se autoproduz no seu percurso, e aárdua tarefa em que todos se empenham estásujeita aos riscos de enganos e desvios.

Aceitar a diversidade de opiniões, o de-safio do conflito e a grandeza da tolerância éexercício de maturidade, e sempre permaneceem muitos a tentação da homogeneização dospensamentos e ações.

Por isso, a democracia é frágil e não hácomo evitar o que faz parte da sua próprianatureza. Pois se ela permite a expressão dospensamentos divergentes, entre eles surgirãoos que combatem a democracia, identifican-do-a à anarquia ou desejando simplesmenteimpor seu ponto de vista. O principal risco éa emergência do totalitarismo, representadopor grupos que sucumbem à sedução do ab-soluto e desejam restabelecer a "ordem" e ahierarquia.

A condição do fortalecimento da demo-cracia encontra-se na politização das pessoas,que devem deixar o hábito (ou vício?) da ci-dadania passiva, do individualismo, para setornarem mais participantes e conscientes dacoisa pública.

Exercícios

1. Faça o fichamento do capítulo.

2. O conceito pejorativo de política identifi-cado a "politicagem" muitas vezes se deve à não-separação entre o público e o privado. Explique.

3. "À violência é sempre dado destruir o po-der; do cano de uma arma desponta o domínio maiseficaz, que resulta na mais perfeita e imediata obe-diência. O que jamais poderá florescer da violênciaé o poder." (Hannah Arendt)

Desta citação conclui-se que o homem violen-to não tem poder de fato. Que características pode-mos atribuir ao poder que não encontramos na vio-lência?

4. "A política não é ciência. É ação que se in-venta. Os transformadores sabem que navegamsem mapa, campeando justiça e a emancipação doshomens." (Marilena Chaui)

Explique esta frase, mostrando de que manei-ra ela só é verdadeira do ponto de vista de uma con-cepção democrática de poder.

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5. Analisando as três características da demo-cracia, faça uma crítica da democracia no Brasil.

6. Tendo em vista o texto complementar I, dePascal, atenda ao solicitado a seguir:

a) Distinga os conceitos de justiça e de força.b) Que tipo de força exige o poder democráti-

co? E o poder tirânico?c) Explique o sentido da conclusão da frase

de Pascal.

7. Leia o texto complementar II. SegundoHannah Arendt, força, autoridade e persuasão são

incompatíveis. Explique por que, indicando as di-ferenças entre elas.

8. Leia o texto complementar III e responda:a) Originalmente, o que significa despotismo?b) A partir desse sentido, por que o governo

despótico é uma perversão da política?c) Nepotismo (de nepote, sobrinho) significa

o favorecimento de parentes em funções públicas.Relacione esta prática (tão comum na política bra-sileira!) com o significado de despotismo.

9. Faça uma dissertação com o seguinte tema:"A política diz respeito a todos ou não?"

Textos complementares

I

298. Justiça, força — É justo que o que é justo seja seguido. É necessário que o que é maisforte seja seguido.

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força serácontestada, porque há sempre maus; a força sem a justiça será acusada. E preciso, pois, reunir ajustiça e a força; e, dessa forma, fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo.

A justiça é sujeita a disputas: a força é muito reconhecível, e sem disputa. Assim, não se pôdedar a força à justiça, porque a força contradisse a justiça, dizendo que esta era injusta, e que ela é queera justa; e assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é fortefosse justo.

299. (...) Sem dúvida, a igualdade dos bens é justa mas, não se podendo fazer que seja forçosoobedecer a justiça, fez-se que seja justo obedecer à força; não se podendo fortificar a justiça, justificou-se a força a fim de que o justo e o forte existissem juntos, e que a paz existisse, que é o soberano bem."

300. "Quando o forte armado possui seu bem, aquilo que possui não corre risco"*.

(Blaise Pascal, Pensamentos. Col. Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 117.)

II

Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com algumaforma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coer-ção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. A autoridade, por outro lado, éincompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argu-mentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igua-litária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve serdefinida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como àpersuasão através de argumentos. (...) A autoridade implica uma obediência na qual os homens re-têm sua liberdade...

(Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 129.)

São Lucas 11,21. (N. do Ed.)

184

III

O déspota — em grego, despotês — é uma figura da sociedade e da política gregas; é o chefeda família (...), entendendo-se por família e casa três relações fundamentais: a do senhor e o escravo,a do marido e a mulher, e a do pai e os filhos. O déspota é o senhor absoluto de suas propriedadesmóveis e imóveis, das pessoas que dele dependem para sobreviver (escravos, mulher, filhos, paren-tes e clientes) e dos animais que emprega para manutenção de suas propriedades. A principal carac-terística do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regrasque definem a vida familiar, isto é, o espaço privado. Seu poder, escreve Aristóteles, é arbitrário,pois decorre exclusivamente de sua vontade, de seu prazer e de suas necessidades. Os primeiros reis,lembra Aristóteles, porque eram simples chefes de clãs e tribos ou de conjuntos de famílias, eramdéspotas, assim como são déspotas os governantes bárbaros do Oriente, mas onde houver cidade epolítica, onde houver politéia, não pode haver despotéia, não se pode manter o princípio do poderdespótico, que pertence ao espaço privado e à vida privada.

(Marilena Chaui, Público, privado, despotismo, in Adauto Novaes (org.), Ética, p. 357.)

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A SOCIEDADETRIBAL

Todos os regimes de opressão justificam-se pelo aviltamento dos oprimidos. Eu vi, na Argélia, muitoscolonos acalmarem sua consciência pelo desprezo que sentiam em relação aos árabes esmagados pela misé-ria: mais eles eram miseráveis, mais pareciam desprezíveis, de tal forma que não havia jamais lugar para oremorso. E é verdadeiro que algumas tribos do Sul estavam tão dizimadas pela fome e pelas doenças que nãose podia mais sentir diante delas revolta nem esperança, desejando-se antes a morte desses infelizes, reduzidosa uma animalidade tão elementar que até mesmo o instinto maternal tinha sido abolido.

(Simone de Beauvoir)

1. A perspectiva dos "civilizados'

O problema que sempre existiu ao seestudarem os povos tribais foi o risco doexotismo e da comparação depreciativa. Se,por um lado, as pessoas se encantam e se sur-preendem com os estranhos rituais e convic-ções míticas das tribos, por outro, não relutamem considerá-las inferiores, atrasadas. Todaanálise, inclusive a científica, sempre foi feitaa partir das nossas categorias. Dessa forma,costuma-se definir a tribo como sendo a so-ciedade que "não tem escrita", "não tem Esta-do", "não tem comércio", "não tem história";para Lévy-Brühl, filósofo francês estudioso deantropologia, o primitivo teria uma "mentali-dade pré-lógica"1.

Segundo o etnólogo Pierre Clastres, seexplicamos as sociedades tribais pelo quelhes falta, tendo como ponto de referência anossa sociedade, deixamos de ter uma me-lhor compreensão da sua realidade, o que, emmuitos casos, tem justificado a atitude pa-ternalista e missionária de "levar o progres-so, a cultura e a verdadeira fé" ao povo "atra-

sado". A abordagem mais adequada seria ade considerar esses povos diferentes, e nãoinferiores.

A tendência de considerar esses gruposcomo inferiores vem da tradição da coloniza-ção e a justifica.

Quando a Europa iniciou a expansão ul-tramarina nos séculos XV e XVI, procuravasuperar a crise econômica feudal. A preocu-pação predominante era a obtenção de metaispreciosos e a busca de novos caminhos paraas índias. Daí a denominação índios dada aosnativos americanos, que se supunha pertence-rem às terras do Oriente.

Ao encontrarem as terras americanas, osconquistadores, aventureiros de toda espécie,não tinham intenção de se estabelecer nas ter-ras e trabalhá-las, mas apenas extrair as rique-zas aí existentes. Como tivessem um maiorpoder do ponto de vista tecnológico, domina-ram os nativos, muitas vezes com extremacrueldade, e os submeteram aos interesseseconômicos europeus.

Mentalidade pré-lógica: segundo Lévy-Brühl, o pensamento primitivo não seria baseado nos princípios da lógicaformal, nem estaria submetido à lei da contradição, pois admite a identidade de seres contrários em virtude de uma "participa-ção". O primitivo imagina que uma coisa pode ser ela e ser outra ao mesmo tempo (por exemplo, o totem pode ser a tribo), ouque uma coisa pode atuar sobre outra por meio da magia (agindo sobre um boneco, o primitivo visa abater o inimigo). Amoderna antropologia não mais aceita as conclusões de Lévy-Brühl.

CAPÍTULO 18

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Junto com os colonizadores vieram osmissionários que cristianizaram a América.Pela catequização, os ameríndios abandona-ram sua forma de viver, seus valores e até suareligião.

Família Tupinambá, de Jean de Léry, 1557. Noprocesso de dizimação da população indígenano território brasileiro, os tupinambás foram to-talmente extintos.

Não foram, porém, vítimas apenas daviolência física, da doutrinação e do choquecultural, mas também de doenças como varío-la, sarampo, febre tifóide, e da debilitação lentano trabalho forçado. A dizimação das popula-ções indígenas é comparável a um verdadeirogenocídio: por exemplo, no México central,os 25 milhões de nativos em 1519 não passa-vam de um milhão em 16052.

Até hoje persistem no Brasil os proble-mas resultantes de abusos dos direitos dos in-

dígenas ao seu espaço e cultura. Interesseseconômicos como abertura de estradas, explo-ração das matas ou garimpo geralmente têmconseguido se fazer prevalecer.

O mesmo aconteceu no século XIX coma colonização da África, em decorrência, maisuma vez, das necessidades econômicas do ca-pitalismo em expansão. As contradições queresultaram da imposição da cultura européia(língua, religião, costumes) persistem aindahoje, mesmo depois do processo de descolo-nização. Por exemplo, na África do Sul, tris-temente famosa pelo rigor do apartheid, a mi-noria branca mantém a discriminação dos ne-gros, o que tem gerado violentos conflitos.

2. O poder nas sociedadestribais

Costuma-se chamar sociedades tribaisaquelas em que a cultura se baseia nos mitosdos seus ancestrais, transmitidos pela tradiçãooral. Nelas, a terra pertence a todos, e a divisãodo trabalho é feita por sexo e idade. Não háclasses sociais, e o sentido comunitário é maisforte que a percepção da própria individualida-de (ver Capítulo 6 — A consciência mítica).

No relato do sistema de vida desses po-vos, sempre encontramos referência a um che-fe guerreiro ou a um feiticeiro xamã, o líderespiritual. Que tipo de poder emana deles?Ora, essas sociedades são homogêneas eindivisas, pois o poder não é separado da so-ciedade. Nelas não se pode distinguir a esferapolítica da esfera social. Desse modo, o chefenão possui poder algum e não há uns que man-dam e outros que obedecem. As oposiçõesexistem apenas com as tribos com as quais seguerreia. O chefe assume a vontade que a so-ciedade tem de aparecer como una e autôno-ma em relação às outras comunidades, e falaem nome dela.

Para tanto, o chefe deve ter qualidadestais como habilidade para falar, talento diplo-mático para estabelecer alianças, coragem edisposição guerreira para garantir a paz oupromover a guerra. O tempo todo o chefe estápreocupado em ser o porta-voz do desejo dacomunidade como um todo, e sua decisão nãodeve ser imposta.

2 Segundo L. Koshiba e Denise Frayse Pereira, História da América, São Paulo, Atual, 1979, p. 21.

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Isso não significa que o chefe seja co-mum, e sim que tem prestígio, sendo por issomerecedor de confiança e ouvido geralmentecom mais consideração do que os demais.

Diz Pierre Clastres: "Resulta daí quenão somente o chefe não formula ordens (sabede antemão que ninguém as obedecerá), masque não pode (isto é, não detém o poder) arbi-trar quando, por exemplo, apresenta-se o con-flito entre dois indivíduos ou duas famílias.Ele não tentará regrar o litígio em nome deuma lei ausente da qual ele seria o órgão, mastentará apaziguá-lo apelando para o bom sen-so, para os bons sentimentos das partes opos-tas, reportando-se sem cessar à tradição dobom convívio legada pelos ancestrais, há mui-to tempo. Da boca do chefe escapam não aspalavras que sancionariam a relação de man-do-obediência, mas o discurso da própria so-ciedade sobre ela mesma, através do qual elase proclama comunidade indivisa e desejosade perseverar neste ser indiviso"3.

Portanto, o chefe deve ser bom orador, afim de melhor cumprir sua função moderadorade "fazedor de paz". Por isso, um bom chefeem época de paz às vezes é substituído por ou-tro em tempo de guerra, único momento de ex-ceção em que é permitido o poder coercitivo.

Retomando o problema colocado no iní-cio do capítulo, poderíamos correr o risco dedizer que a separação entre chefia e poder sedeve ao caráter primitivo dessas sociedades,que seriam ainda incompletas, inacabadas; aose tornarem adultas, o "progresso" as levariaàs divisões e à necessidade de Estado.

Clastres inverte o raciocínio e consideraque não se trata de uma falha dos povostribais, mas de uma virtude que nós, "civiliza-dos", teríamos perdido. Os elementos da triboafastam ou matam o chefe cujo desejo de po-der se torna evidente demais: talvez tenhamosfalhado em algum momento, quando sucum-bimos ao desejo de poder e às formas de do-minação.

Exercícios

1. Qual o efeito da colonização para as socie-dades primitivas?

2. O que é ser chefe nas sociedades primitivas?

3. Que virtude Clastres indica como existenteentre os primitivos e que teria sido perdida por nós?

4. Releia a epígrafe do capítulo e explique oque Simone de Beauvoir quer dizer com: "Todosos regimes de opressão justificam-se pelo avilta-mento dos oprimidos".

5. Faça uma análise, do ponto de vista dos ín-dios, dos famosos westerns americanos que mos-tram a expansão para o oeste.

6. A letra da música Sampa, de CaetanoVeloso, se refere à experiência do nordestino che-gando a São Paulo. Mas você pode adaptá-la paraexplicar a relação entre o "civilizado" e o "primiti-vo". Ao responder, relacione também com o textocomplementar.

"Quando eu te encarei frente a frente e não vio meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de

mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio oque não é espelho / E a mente apavora o que aindanão é mesmo velho / Nada do que não era antesquando não somos mutantes / E foste um difícilcomeço / Afasto o que não conheço."

7. A partir do texto complementar I, responda:a) O que é etnocentrismo e etnocídio?b) Pelo estudo de história, podemos constatar

que a colonização dos povos sempre desencadeia oetnocídio, seja real ou cultural. Explique.

8. Leia o texto complementar II e o comparecom dados da história do Brasil.

Pesquisa

a) Pesquise em arquivos de jornais e revistasas questões referentes às demarcações de terras dosíndios brasileiros.

b) Consulte livros que tratem da ideologia dostextos didáticos (ver bibliografia) e analise qual é otipo de abordagem feita em sala de aula sobre osíndios.

' P. Clastres, Arqueologia da violência, p. 108.

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Textos complementares

IDiversidade cultural e etnocentrismo

O etnocentrismo denota a maneira pela qual um grupo, identificado por sua particularidadecultural, constrói uma imagem do universo que favorece a si mesmo. Compõe-se de uma valoriza-ção positiva do próprio grupo, e uma referência aos grupos exteriores marcada pela aplicação denormas do seu próprio grupo, ignorando, portanto, a possibilidade de o outro ser diferente. Sendobaseado numa preferência que não encontra uma validade racional, o etnocentrismo é encontrado,em diferentes graus, em todas as culturas humanas. Mas não é só o fato de preferir a própria culturaque constitui o que se convencionou chamar de etnocentrismo, e sim o preconceito acrítico em favordo próprio grupo e uma visão distorcida e preconceituosa em relação aos demais. O etnocentrismo éum fenômeno sutil, que se manifesta através de omissões, seleção de acontecimentos importantes,enunciado de um sistema de valores particular etc.

Em sua expansão, a partir do século XV, as sociedades européias se defrontaram com outrassociedades e perceberam que estas não eram feitas à sua imagem. A reação imediata do Ocidente foio etnocentrismo. Em seu avanço, a cultura européia não só é etnocêntrica, como também etnocidária.O etnocídio é a destruição de modos de vida e de pensamentos diferentes dos compartilhados poraqueles que conduzem à prática da destruição, que reconhecem a diferença como um mal que deveser sanado mediante a transformação do Outro em algo idêntico ao modelo imposto. Resulta disso,segundo Jaulin, que o conjunto submetido a essa cultura não é homogêneo, pois provém da extensãode si mesmo e da negação do Outro. O Outro é sempre negado pelas culturas européias, pois ouniverso no qual está integrado passa a depender dessas culturas.

(Norma Telles, A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora, in Aracy Lopesda Silva, A questão indígena na sala de aula, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 75-76.)

II[Preconceito]

Existe um preconceito tenaz (...) e não menos corrente de que o selvagem é preguiçoso. Se emnossa linguagem popular diz-se "trabalhar como um negro", na América do Sul, por outro lado, diz-se "vagabundo como um índio". Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, ame-ricanas e outras, vive em economia de subsistência e passa quase todo o tempo à procura de alimen-to, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres prolongadosfumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios doBrasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam seempetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas.Tratava-se portanto de povos que ignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suordo próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar,e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ociden-tal, desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombraprotetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar.

(Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 135.)

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Os males não cessarão para os humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue aopoder, ou antes que os chefes das cidades, por uma divina graça, se não ponham a filosofar verdadeiramente.

(Platão)

É preciso que o melhor governo seja aquele que possua uma constituição tal que todo o cidadão possaser virtuoso e viver feliz.

(Aristóteles)

1. Antecedentes

Os tempos homéricos' têm como fontehistórica sobretudo as obras Ilíada e Odisséia.Naquele período predomina o sistema gentíli-co, cuja célula básica é o génos, formado porpessoas ligadas entre si por laços religiosos oude nascimento. Geralmente a origem comum éconsiderada a partir de um ascendente divino,venerado em cultos coletivos.

Com a desintegração lenta da ordemgentílica, aumentam as diferenças sociais: adesigual divisão de terras privilegia alguns,gerando uma aristocracia baseada na riquezadecorrente da propriedade da terra. Em con-trapartida, os que perdem seus lotes passam atrabalhar para os ricos, e aos poucos se desen-volve o sistema escravista.

A alteração política decorrente é o au-mento do poder da aristocracia, com o conse-lho de nobres e a assembléia de guerreiros. Jávimos como a virtude da aristocracia écentrada na figura do "guerreiro belo e bom",cuja excelência se acha na coragem e na for-

ça. Mas não podemos dizer, ainda, que háação política propriamente dita, pois resta acrença de que agentes divinos promovem oagir humano.

A passagem do mundo rural e aristocrá-tico da Grécia homérica para a formação dasprimeiras aglomerações urbanas no períodoarcaico é concomitante a mudanças na estru-tura social, política e econômica.

A intensificação do sistema escravistaacentua a divisão do trabalho, desenvolve oartesanato e estimula o comércio, a partir danecessidade de dar vazão aos produtos exce-dentes. Os gregos lançam-se ao mar em buscade terras mais férteis e novos pontos de co-mércio, fundando colônias na Jônia (atualTurquia) e na Magna Grécia (sul da Itália).

Começa então a surgir a cidade-estado(pólis), que dá início a uma nova organizaçãopolítica, típica da Grécia Antiga. A pólis éconstituída pela acrópole, parte elevada ondese situa o templo e também de onde se defen-

1 Os assuntos tratados neste capítulo poderão ser complementados com a leitura do Capítulo 7 — Do mito à razão, daPrimeira Parte do Capítulo 10 — Teoria do conhecimento e Capítulo 12 — A ciência grega.

CAPÍTULO 19O PENSAMENTO

POLÍTICO GREGOA políticanormativa

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Maquete da ágora de Atenas tal como deve ter sido no século II a. C. O termo ágora se aplica à "assembléiado povo" e também ao local onde as pessoas se reuniam nas diversas póleis para as atividades religiosas,políticas, sociais, judiciais, comerciais e onde, em determinadas épocas, também se realizavam as assem-bléias. Geralmente era uma praça arborizada e cercada por estátuas de heróis e deuses, com diversostemplos, lojas e colunatas (stoa).

de a cidade, e pela ágora, praça central ondese estabelecem as trocas comerciais e na qualos cidadãos se reúnem para debater os assun-tos da cidade.

Parece que as primeiras póleis teriamsurgido na Jônia, e nos séculos VIII e VII a.C.encontram-se disseminadas por todo o mundogrego. Com a invenção da moeda, a economiadeixa de ser natural, baseada na troca em es-pécie, e passa a ser monetária, enriquecendoos comerciantes e proprietários de oficinas, osquais, ainda sem representação política, ten-dem a aspirar ao poder.

A luta contra a aristocracia exige a institu-cionalização da lei escrita, a fim de evitar abu-sos de poder, o que favorecerá a nova classe.

Em Atenas, depois de Drácon, o ar-conte2 Sólon, em 594 a.C, promove reformaspolíticas importantes, possibilitando a todosos cidadãos atenienses a participação na as-sembléia do povo, na qual eram eleitos todosos funcionários do Estado. Mas é no governode Clístenes, no final do século VI a.C, que oregime ateniense se democratiza, com a redu-ção do poder da nobreza territorial provocadapor uma nova distribuição das famílias em di-versas tribos.

2 Arconte: magistrado da Grécia Antiga com poder de legislar; depois de Sólon, mero executor das leis.3 Estratego: general superior.4 W. Jaeger, Paideia, p. 431.

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O apogeu da democracia se dá no sécu-lo V a.C, quando Péricles era estratego3. Ébem verdade que o historiador Tucídides atri-bui a ele uma capacidade excepcional de go-verno: "Tinha sempre as rédeas na mão: quan-do a massa queria tomar o freio, sabia comoespantá-la e atemorizá-la, e quando se depri-mia ou desesperava sabia dar-lhe alento. Des-te modo, Atenas 'só de nome era democracia',sob o seu comando; 'na realidade, era o domí-nio de um eminente', a monarquia da superiorhabilidade política"4.

Sabemos que Atenas possuía cerca demeio milhão de habitantes, dos quais trezen-tos mil eram escravos e cinqüenta mil metecos(estrangeiros); excluídas ainda as mulheres eas crianças, apenas 10% do corpo social tinhao direito de decidir por todos, e era considera-do cidadão.

Atentando para o número de escravos,percebemos que nesse período a escravidãogrega atinge o seu apogeu: em todas as ativi-dades artesanais encontramos o braço escra-vo, "libertando" o cidadão livre para as fun-ções teóricas, políticas e de lazer, considera-das mais nobres.

2. Os sofistas

Apesar de suas contradições, o ideal de-mocrático devia ser justificado. Coube aossofistas, no século V a.C, a função de elabo-rar a teorização que interessava à nova classedos comerciantes. E isso acontece no períodoclássico da história grega.

Como vimos na Primeira Parte do Capí-tulo 10, a divisão da filosofia grega está cen-tralizada em Sócrates (470-399 a.C), e é apartir dele que se costuma estabelecer os pe-ríodos pré-socrático, socrático (ou clássico) epós-socrático.

O período clássico acontece nos séculosV e IV a.C. e dele faz parte, além de Sócrates,seu discípulo Platão, que por sua vez foi omestre de Aristóteles. Os sofistas são contem-porâneos de Sócrates e foram por ele dura-mente criticados.

Vimos que os primeiros filósofos pré-socráticos preocupam-se sobretudo com a na-tureza, e as explicações cosmológicas se desen-volvem em torno da procura da arché (princí-pio) de todas as coisas. Entre os primeiros filó-sofos não há textos referentes à política.

São os sofistas que irão proceder a passa-gem para a reflexão propriamente antropológi-ca, centrando suas atenções na questão moral epolítica. Elaboram teoricamente e legitimam oideal democrático da nova classe em ascensão,a dos comerciantes enriquecidos.

A virtude (areté) de uma aristocraciaguerreira opõe-se a virtude do cidadão: a maiordas virtudes é a justiça, e todos, desde que cida-dãos da pólis, devem ter direito ao exercício dopoder. Enquanto na aristocracia predomina aareté ética, para o cidadão ela é política e maisobjetiva que a anterior, pois o critério do justoe do injusto se acha na lei escrita.

Através da paideia5, os gregos elabo-ram a nova educação capaz de satisfazer osideais do homem da pólis, e não mais do aris-tocrata, superando, assim, os privilégios daantiga educação, para a qual a areté só eraacessível aos que pertenciam a uma linhagemde origem divina.

A exigência que os sofistas vêm satisfa-zer não é apenas de ordem teórica, mas tam-

bém prática, voltada para a vida. SegundoJaeger, historiador da filosofia, exercem porisso uma influência muito forte, vinculando-se à tradição educativa dos poetas Homero eHesíodo.

Os sofistas são os mestres da nova aretépolítica, e o instrumento desse processo será aretórica, ou seja, a arte de bem falar, de utili-zar a linguagem em um discurso persuasivo.

É bem verdade que esse movimento nãose dirige ao povo em geral, mas a uma elite,àqueles bons oradores que poderiam, nas as-sembléias públicas, fazer uso da palavra livree pronunciar discursos convincentes e oportu-nos. Com o brilhantismo da participação nodebate público, deslumbram os jovens do seutempo. Desenvolvem o espírito crítico e a fa-cilidade de expressão.

Com freqüência os sofistas são acusadosde superficialidade e logomaquia, ou seja, depronunciar um discurso vazio, um palavreadooco. Talvez essa fama se deva à excessivaatenção dada por alguns deles ao aspecto for-mal da exposição e defesa das idéias, já quese achavam tão preocupados com a persuasão.Mas também é preciso lembrar que os sofistassempre foram mal-interpretados devido às crí-ticas que a eles fizeram Sócrates e Platão. Sóa partir do século XIX a imagem caricaturaldos sofistas foi atenuada.

Os mais famosos sofistas foram:Protágoras, de Abdera (485-411 a .C) ;Górgias, de Leôncio, na Sicília (485-380 a.C);Híppias, de Élis, e ainda Trasímaco, Pródico,Hipódamos e outros.

Tal como ocorreu com os pré-socráti-cos, dos sofistas só nos restam fragmentos desuas obras, além das referências — como jávimos, tendenciosas — feitas por filósofosposteriores.

3. O pensamento político dePlatão

O pensamento político de Platão (428-347 a.C) está sobretudo nas obras A Repúbli-ca e Leis. Em estilo agradável, muitas vezes

Paideia: conceito complexo que só de forma inadequada pode ser traduzido como formação da cultura, tradição eeducação gregas. Etimologicamente, origina-se de paidós, "criança". Daí "pedagogo", literalmente, "o que conduz a criança".

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poético e com recurso a alegorias, Platão es-creve em diálogos, tendo sempre o seu mestreSócrates como principal interlocutor.

Seu verdadeiro nome era Arístocles, efoi apelidado de Platão por ter ombros largos.Era ateniense de família aristocrática e sem-pre foi fascinado pela política, apesar de tersofrido pesados reveses. Na Sicília, tentou emvão convencer Dionísio, o Velho, a respeitode suas teorias políticas. Inicialmente bemrecebido, após sérias desavenças Platão aca-bou sendo vendido como escravo e só por sor-te foi reconhecido e libertado por um rico ar-mador. Nem por isso desistiu, retornando ou-tras duas vezes à Sicília, mais cauteloso, po-rém sem sucesso. A amargura dessas tentati-vas frustradas transparece nas Leis, sua últi-ma obra.

O século V a.C. foi a "época das luzes"da Grécia, mas, ao final dele, a derrota de Ate-nas na guerra contra Esparta, a condenação emorte de Sócrates, as convulsões sociais queagitaram a cidade acentuam em Platão o des-crédito na democracia. E bem verdade quenão se trata apenas disso, pois Platão é de ori-gem aristocrática, e seu posicionamento teó-rico de valorização da reflexão filosófica oleva a conceber uma "sofocracia" (etimologi-camente, "poder da sabedoria"). Segundo ele,os homens comuns são vítimas do conheci-mento imperfeito, da "opinião", e portantodevem ser dirigidos por homens que se distin-guem pelo saber.

A utopia platônica: A República

No livro VII de A República, Platão ilus-tra o seu pensamento com o famoso mito dacaverna, já analisado na Primeira Parte doCapítulo 10. Vimos que o mito pode dar mar-gem a uma interpretação epistemológica, pelaqual se explica a teoria das idéias platônica.Segundo ela, o filósofo, representado poraquele que se liberta das correntes ao contem-plar a verdadeira realidade, passa da opiniãoà ciência e deve retornar ao meio dos homenspara orientá-los.

Deriva daí a segunda interpretação domito da caverna, que resulta da dimensão po-lítica surgida da pergunta: Como influenciaros homens que não vêem? Cabe ao sábio en-sinar e dirigir. Trata-se da necessidade da açãopolítica, da transformação dos homens e da

sociedade, desde que essa ação seja dirigidapelo modelo ideal contemplado.

É nesse sentido que Platão imagina umacidade utópica, a Callipolis (Cidade Bela).Etimologicamente, utopia significa "em ne-nhum lugar" (em grego, ou-topos). Platãoimagina uma cidade que não existe, mas quedeve ser o modelo da cidade ideal.

Partindo do princípio de que as pessoassão diferentes e por isso devem ocupar luga-res e funções diversas na sociedade, Platãoimagina que o Estado, e não a família, deveriase incumbir da educação das crianças. Paraisso, propõe estabelecer-se uma forma de co-munismo em que é eliminada a propriedade ea família, a fim de evitar a cobiça e os interes-ses decorrentes dos laços afetivos, além da de-generescência das ligações inadequadas.

O Estado orientaria as formas de eu-genia para evitar casamentos entre desiguais,oferecendo melhores condições de reprodu-ção e, ao mesmo tempo, criando creches paraa educação coletiva das crianças.

A educação promovida pelo Estado de-veria, segundo Platão, ser igual para todos atéos 20 anos, quando dar-se-ia o primeiro corteidentificando as pessoas que, por possuírem"alma de bronze", têm a sensibilidade gros-seira e por isto devem se dedicar à agricultu-ra, ao artesanato e ao comércio. Estes cuida-riam da subsistência da cidade.

Os outros continuariam os estudos pormais dez anos, até o segundo corte. Aquelesque tivessem a "alma de prata" e a virtude dacoragem essencial aos guerreiros constitui-riam a guarda do Estado, os soldados que cui-dariam da defesa da cidade.

Os mais notáveis, que sobrariam dessescortes, por terem a "alma de ouro", seriam ins-truídos na arte de pensar a dois, ou seja, naarte de dialogar. Estudariam filosofia, que ele-va a alma até o conhecimento mais puro e é afonte de toda verdade.

Aos cinqüenta anos, aqueles que passas-sem com sucesso pela série de provas estariamaptos a ser admitidos no corpo supremo dosmagistrados. Caberia a eles o governo da ci-dade, o exercício do poder, pois apenas elesteriam a ciência da política. Sua função seriamanter a cidade coesa. Por serem os mais sá-bios, também seriam os mais justos, uma vezque justo é aquele que conhece a justiça. Ajustiça constitui a principal virtude, a própriacondição das outras virtudes.

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Se para Platão a política é "a arte de go-vernar os homens com o seu consentimento"e o político é precisamente aquele que conhe-ce essa difícil arte, só poderá ser chefe quemconhece a ciência política. Por isso a demo-cracia é inadequada, pois desconhece que aigualdade deve se dar apenas na repartição dosbens, mas nunca no igual direito ao poder.Para que o Estado seja bem governado, é pre-ciso que "os filósofos se tornem reis, ou queos reis se tornem filósofos".

Platão propõe um modelo aristocráticode poder. No entanto, como já vimos, não setrata de uma aristocracia da riqueza, mas dainteligência, em que o poder é confiado aosmelhores, ou seja, é uma sofocracia.

O rigor do Estado concebido por Platãoultrapassa de muito a proposta de educação.Se a virtude suprema é a obediência à lei, olegislador tem de conseguir o seu cumprimen-to pela persuasão em primeiro lugar, aguar-dando a atuação consentida dos cidadãos li-vres e racionais. Caso não o consiga, deveusar a força: a prisão, o exílio ou a morte. Damesma forma, a censura é justificável quandovisa manter a integridade do Estado (ver textocomplementar "Os poetas" no Capítulo 7 —Do mito à razão).

As formas de governo

Com a utopia, Platão critica a política doseu tempo e recusa as formas de poder dege-neradas. A aristocracia, por exemplo, pode secorromper em timocracia, quando o culto davirtude é substituído pela forma guerreira; ouem oligarquia, quando prevalece o gosto pe-las riquezas, e o censo é a medida de capaci-dade para o exercício do poder.

No livro VIII de A República, Platãoexplica como essas formas degeneradas po-dem fazer surgir a democracia. Como vimos,a democracia não corresponde aos ideais pla-tônicos porque, por definição, o povo é inca-paz de possuir a ciência política. Quando opoder pertence ao povo, é fácil prevalecer ademagogia, característica do político que ma-nipula e engana o povo (etimologicamente, "oque conduz o povo"). Platão critica a noçãode igualdade na democracia, pois para ele averdadeira igualdade é de ordem geométrica,porque se baseia no valor pessoal que é sem-pre desigual (já que uns são melhores do que

outros), não considerando todos igualmentecidadãos.

Por fim, a democracia levaria fatalmen-te à tirania, a pior forma de governo, exercidapela força por um só homem e sem ter porobjetivo o bem comum. O tirano é a antítesedo magistrado-filósofo.

Na conclusão do capítulo retomaremosa avaliação geral do pensamento político dePlatão.

4. O pensamento político deAristóteles

Aristóteles (384-322 a.C), discípulo dePlatão, logo se torna crítico do mestre e ela-bora uma filosofia original. Enquanto Platãoprivilegia a matemática, ciência abstrata porexcelência, Aristóteles, filho de médico, é in-fluenciado pelo estudo da biologia. Daí seugosto pela observação e classificação, o que oleva a recolher informações sobre 158 consti-tuições existentes.

Aristóteles critica o autoritarismo dePlatão, considerando sua utopia impraticávele inumana. Recusa a sofocracia platônica queatribui poder ilimitado a apenas uma parte docorpo social, os mais sábios, o que torna a so-ciedade muito hierarquizada. Não aceita aproposta de dissolução da família nem consi-dera que a justiça, virtude por excelência docidadão, possa vir separada da amizade. É oque veremos a seguir.

A cidade feliz

A reflexão aristotélica sobre a políticanão se separa da ética, pois a vida individualestá imbricada na vida comunitária. Se Aris-tóteles conclui que a finalidade da ação moralé a felicidade do indivíduo, também a políticatem por fim organizar a cidade feliz.

Por isso, diante da noção fria de justiçaproposta por Platão, Aristóteles considera quea justiça não pode vir separada da philia. Apalavra grega philia, embora possa ser tra-duzida por "amizade", é um conceito maisamplo quando se refere à cidade. Significaa concordância entre as pessoas que têmidéias semelhantes e interesses comuns,

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donde resulta a camaradagem, o companhei-rismo. Daí a importância da educação na for-mação ética dos indivíduos, preparando-ospara a vida em comunidade.

A amizade não se separa da justiça. Es-sas duas virtudes se relacionam e se comple-mentam, fundamentando a unidade que deveexistir na cidade. Se a cidade é a associaçãode homens iguais, a justiça é o que garante oprincípio da igualdade. Justo é o que se apo-dera de parte que lhe cabe, é o que distribui oque é devido a cada um.

Mas é preciso lembrar que Aristótelesnão se refere à igualdade simples ou aritméti-ca, mas a justiça distributiva, segundo a quala distribuição justa é a que leva em conta omérito das pessoas. Isso significa que não sepode dar o igual para desiguais, já que as pes-soas são diferentes.

A justiça está intimamente ligada ao im-pério da lei, pela qual se faz prevalecer a ra-zão sobre as paixões cegas. Retomando a tra-dição grega, a lei é para Aristóteles o princí-pio que rege a ação dos cidadãos, é a expres-são política da ordem natural.

Mesmo considerando a importância dasleis escritas, Aristóteles valoriza o direito con-suetudinário (ou seja, das leis não-escritas,trazidas pelo costume): "Com efeito, de nadaserve possuir as melhores leis, mesmo queratificadas por todo o corpo de cidadãos, seestes últimos não estiverem submetidos a há-bitos e a uma educação presentes no espíritoda Constituição".

Quem é cidadão?

O fato de se morar na mesma cidade nãotorna seus habitantes igualmente cidadãos.São excluídos os escravos, os estrangeiros, asmulheres. O que também não significa quetodo homem livre, nascido na pólis, possa par-ticipar da administração da justiça ou sermembro da assembléia governante. Para Aris-tóteles, é necessário ter qualidades que variamconforme as exigências da constituição aceitapela cidade.

De forma geral, Aristóteles concordaque o bom governante deve ter a virtude daprudência prática (phronesis), pela qual serácapaz de agir visando o bem comum. Trata-sede virtude difícil, que não se acha disponívela muitos.

Por isso exclui da cidadania a classe dosartesãos, comerciantes e trabalhadores braçaisem geral, em primeiro lugar porque a ocupa-ção não lhes permite o tempo de ócio neces-sário para participar do governo e em segun-do lugar porque, reforçando o desprezo queos antigos tinham pelo trabalho manual, Aris-tóteles pondera que esse tipo de atividadeembrutece a alma e torna o indivíduo incapazda prática de uma virtude esclarecida.

Vale lembrar ainda a polêmica justifica-tiva de Aristóteles à escravidão. Para ele, oshomens livres e concidadãos aprisionados emguerras não deveriam ser escravizados, mas omesmo não acontece com os "bárbaros", nomegenérico atribuído aos não-gregos, por seremestes considerados inferiores e, portanto, pos-suírem uma disposição natural para a escravi-dão. Por isso seria legítimo o controle que osenhor exerce sobre o escravo, e Aristóteles re-comenda apenas que o tratamento não sejacruel, devendo mesmo ser estabelecidos laçosafetivos, como nas antigas famílias dos temposhoméricos, quando os escravos pertenciam aolar. É bem verdade que no estádio de desenvol-vimento urbano do século IV a.C. a escravidãonão se restringia apenas às atividades domésti-cas, mas se estendia ao comércio e à manufatu-ra, em condições bastante adversas de trabalho.

As formas de governo

Além de descrever as diversas constitui-ções, Aristóteles estabelece uma tipologia dasformas de governo que se tornou clássica. Usao critério do número, da quantidade, para dis-tinguir a monarquia (ou governo de um só), aaristocracia (ou governo de um pequeno gru-po) e a politéia (ou governo da maioria).

Em seguida, usando o critério axiológi-co (de valor), Aristóteles considera que as trêsformas podem ser consideradas boas, quandovisam o interesse comum, e más, corrompi-das, degeneradas, quando têm como objetivoo interesse particular.

Portanto, a cada uma das três formasboas descritas correspondem respectivamentetrês formas degeneradas: a tirania se refere aogoverno de um só quando visa o interesse pró-prio; a oligarquia prevalece quando vence ointeresse dos mais ricos ou nobres; e a demo-cracia quando a maioria pobre governa emdetrimento da minoria rica.

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O quadro a seguir torna mais clara aclassificação feita segundo os dois critériosreferidos:

Classificação das formas de governo

Critériodo número

Um

Poucos

Muitos

Critério do valor

Boas

monarquia

aristocracia

politéia

Corrompidas

tirania

oligarquia

democracia

Embora considere a monarquia, a aris-tocracia ou a politéia formas corretas e ade-quadas ao exercício do poder, Aristótelesprefere a última. Talvez isso se deva à cons-tatação feita de que a tensão política semprederiva da luta entre ricos e pobres; se um re-gime conseguir conciliar esses antagonis-mos, torna-se mais propício para assegurar apaz social.

Aqui Aristóteles retoma o critério jáusado na ética, o de que a virtude sempre estáno meio-termo. Aplicando-se o critério damediania às classes que compõem a socieda-de, descobre na classe média — constituídapelos indivíduos que não são nem muito ri-cos nem muito pobres — as condições devirtude para criar uma política estável:"Onde a classe média é numerosa raramenteocorrem conspirações e revoltas entre os ci-dadãos".

5. Conclusão: o bom governo

A teoria política grega está voltada paraa busca dos parâmetros do bom governo.Platão e Aristóteles envolvem-se nas questõespolíticas do seu tempo e criticam os maus go-vernos. Se por um lado Platão tentou efetiva-mente implantar um governo justo na Sicília,por outro esboçou a idealizada Callipoliscomo modelo a ser alcançado. Aristóteles,mesmo recusando a utopia do seu mestre, as-pira também a uma cidade justa e feliz.

Isso significa que esses filósofos elabo-ram uma teoria política de natureza descriti-va, já que a reflexão parte da análise da políti-ca de fato, mas é também de natureza norma-tiva e prescritiva, porque pretende indicarquais são as boas formas de governo.

A ligação entre ética e política é eviden-te, na medida em que a questão do bom gover-no, do regime justo, da cidade boa, depende davirtude do bom governante. Veremos comoessa tendência persiste na Idade Média, até sercriticada no século XVI, a partir de Maquiavel.

Outra característica típica das teoriaspolíticas antigas é a concepção cíclica da his-tória, segundo a qual os governos se alternampassando de uma forma para outra (de desen-volvimento ou de decadência), representandoum curso fatal dos acontecimentos humanos.Assim, por exemplo, quando a monarquia de-genera em tirania, acontece a reação aristocrá-tica que, decaindo em oligarquia, gera a de-mocracia e assim por diante.

Exercícios

1. Que transformações políticas decorrem doadvento da pólis grega?

2. Quanto ao papel representado pelos sofis-tas, responda:

a) Que mudança de enfoque os sofistas pro-movem na reflexão filosófica, em relação aos pré-socráticos?

b) Qual é a noção de virtude do cidadão para ossofistas? Compare-a com a dos tempos homéricos.

c) Qual é o papel político desempenhado pe-los sofistas?

3. Leia a citação de Platão que aparece comoepígrafe deste capítulo e explique seu significado,

relacionando-a com o texto complementar do mes-mo autor, fragmentos 2 e 3.

4. Considerando o que foi dito no capítulo emais as referências do texto complementar"Péricles e a democracia ateniense" e o de Platão,analise as diferentes concepções de poder.

5. "Há na espécie humana indivíduos tão in-feriores a outros como o corpo o é em relação àalma, ou a fera ao homem; são os homens nos quaiso emprego da força física é o melhor que deles seobtém. Partindo de nossos princípios, tais indiví-duos são destinados à escravidão; porque, para eles,nada é mais fácil que obedecer." (Aristóteles)

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(Apud M. Prelot, As doutrinas políticas, v. I, p. 54.)

IIPlatão

Os trechos a seguir se referem a diálogos entre Sócrates e os irmãos de Platão, Glauco eAdimanto. Foram efetuados cortes, de maneira a transcrever apenas as falas de Sócrates.

A partir dessa citação, explique:a) Qual é a concepção de igualdade e justiça

para Aristóteles?b) Como Aristóteles justifica a escravidão?c) Qual é a concepção grega a respeito do tra-

balho intelectual e do trabalho manual?

6. Relacione ética e política ao explicar o sig-nificado da frase de Aristóteles: "Uma república só

pode ser virtuosa quando os próprios cidadãos quetomam parte no governo são virtuosos".

7. Cite e explique quais são as seis formasclássicas de governo segundo Aristóteles.

8. O que significa dizer que o pensamentopolítico clássico é normativo?

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Textos complementares

IPéricles: A democracia ateniense

Péricles (495-429 a.C.)faz a oração fúnebre aos guerreiros mortos durante o primeiro ano daGuerra do Peloponeso, e suas palavras são relatadas pelo historiador Tucídides. Convém verificara divergência entre este texto e o de Platão.

Péricles, filho de Xantipa, tinha sido escolhido para pronunciar o elogio dos primeiros guerrei-ros mortos. Quinze vezes estratego, é o homem mais eminente em Atenas e o primeiro em tudo, querpela palavra quer pela ação... Chegado o momento, aproxima-se do túmulo, colocado alto, a fim deser ouvido do mais longe possível pela multidão. (...) "A nossa constituição não inveja as leis dosnossos vizinhos." Ela é antes o protótipo das leis dos outros Estados. "Não imitamos os outros. Pelocontrário, servimos de modelo a alguns." Este governo, próprio de Atenas, "recebeu o nome dedemocracia, porque a sua direção não está na mão de um pequeno grupo, mas sim da maioria". (...)"Um temor salutar impede-nos de faltar ao cumprimento dos nossos deveres no que toca à pátria.Respeitamos sempre os magistrados e as leis." Perante elas, todos os atenienses são iguais, iguais navida privada, "iguais na solução dos diferendos entre particulares, iguais na obtenção das honras asquais são devidas aos méritos e não à classe". "Podem-se prestar alguns serviços ao Estado? Nin-guém deve ser rejeitado por ser desconhecido ou pobre... Os mesmos homens dedicam-se aos seusassuntos particulares" e aos do governo. Os que têm como profissão o trabalho manual não sãoafastados da política. (...) Isto não representa para eles somente um direito, mas um dever, visto quetodo aquele que se desinteressa do governo da cidade é malvisto. Não existe distinção permanenteentre governantes e governados. Cada um será, por seu turno, governante e governado. Vê-se nestaalternância, não sem razão, um dos traços fundamentais da democracia.

A igualdade de direito perante a lei (isonomia), corresponde a igualdade do direito à palavra naassembléia (isegoria). "Todos exprimimos livremente a nossa opinião sobre os assuntos de interessepúblico." "Não acreditamos que os discursos entravem a ação; o que nos parece prejudicial é não nosesclarecermos primeiro através do discurso sobre o que é preciso fazer." Esta afirmação é capital. Oorador ateniense confessa a sua crença nas vantagens da deliberação. Na Antigüidade, esta é neces-sariamente oral, visto que os meios de escrita são, tecnicamente, muito limitados. Por outro lado,apresentando a opinião dos atenienses sob uma forma negativa: nós não acreditamos..., Périclesresponde à concepção antagônica dos lacedemônios, para quem o silêncio e a brevidade das respos-tas, o "laconismo", são considerados como virtudes individuais e como méritos coletivos. Inversa-mente, Atenas, como diz A. Croiset, coloca-se sob "a soberania da palavra eloqüente".

1Pois bem!, a meu ver, a democracia aparece quando os pobres, tendo conquistado a vitória

sobre os ricos, chacinam uns, banem outros e partilham igualmente, com os que sobram, o governo eos cargos públicos; e freqüentemente estes cargos são sorteados. (...)

Em primeiro lugar, não é verdade que eles são livres, que a cidade transborda de liberdade e defranqueza de palavra, havendo nela licença para fazer o que se quer? (...)

Ora, é claro que toda parte onde reina tal licença cada qual organiza a vida do modo que lhe apraz. (...)Assim é possível que ele [o governo democrático] seja o mais belo de todos. Qual uma

vestimenta variegada que oferece toda variedade de cores, este governo, ao oferecer toda variedadede caracteres, poderá afigurar-se de rematada beleza. E talvez muitas pessoas, semelhantes às crian-ças e às mulheres que admiram as variegações, decidirão que é o mais belo. (...)

É como vês, um governo agradável, anárquico e variegado, que confere uma espécie de igual-dade tanto ao que é desigual como ao que é igual. (...)

Ora, não será o desejo insaciável deste bem [a liberdade] e a indiferença por tudo o mais, quemuda este governo e o compele a recorrer à tirania? (...)

Então, se os que a governam não se mostram totalmente dóceis e não lhe servem larga medidade liberdade, ela os castiga, acusando-os de criminosos e oligarcas. (...)

Ora, vês o resultado de todos esses abusos acumulados? Concebes, efetivamente, que tornam aalma dos cidadãos de tal modo assustadiça que, à menor aparência de coação, estes se indignam e serevoltam? E chegam por fim, bem sabes, a não mais se preocupar com leis escritas ou não-escritas, afim de não ter absolutamente nenhum senhor. (...)

Pois então! este governo tão belo e tão juvenil é que dá nascimento à tirania, pelo menos nomeu pensar.

(Platão, A República, v. 2, p. 162-172.)

2

Neste trecho, Sócrates se refere a uma fábula, cuja crença inspiraria maior devotamento àcidade e aos concidadãos.

Sois todos irmãos na cidade (...) mas o deus que vos formou introduziu o ouro na composiçãodaqueles dentre vós que são capazes de comandar: por isso são os mais preciosos. Misturou prata nacomposição dos auxiliares [defensores]; ferro e bronze na dos lavradores e outros artesãos.Comumente, gerais filhos semelhantes a vós mesmos; mas, como sois todos parentes, pode aconte-cer que, do ouro, nasça um rebento de prata; da prata, um rebento de ouro e que as mesmastransmutações se produzam entre os outros metais. Por isso, antes e acima de tudo, o deus ordena aosmagistrados que vigiem atentamente as crianças, que tomem muito cuidado com o metal misturadoem suas almas e, caso seus próprios filhos apresentem mistura de bronze ou de ferro, que sejamimpiedosos com eles e lhes concedam o gênero de honor devido à respectiva natureza, relegando-osà classe dos artesãos e dos lavradores; mas, se destes últimos nasce um rebento cuja alma contenhaouro ou prata, o deus quer que o honrem, elevando-o à categoria de guardião ou de auxiliar, porqueum oráculo afirma que a cidade perecerá quando for guardada pelo ferro ou pelo bronze.

(Platão, A República, v. 1, p. 192.)

3

Aqueles que se possuem por meio de compra, que sem discussão possam chamar-se escravos,não participam em absoluto da arte régia. — E de que maneira poderiam participar? — E então? Etodos os que entre livres se dedicam espontaneamente a atividades servis, como os anteriormentecitados, transportando e permutando os produtos da agricultura e das outras atividades; aqueles que,indo de cidade em cidade, nos mercados, por mar ou por terra, trocando dinheiro por outras coisas oupor dinheiro, aqueles a quem chamamos de banqueiros, comerciantes, marinheiros e revendedores,poderiam por acaso reivindicar para si algo da ciência política? (...) Mas nem mesmo os que vemosdispostos a prestar serviços a todos por salários ou por mercês, nunca os encontraremos partícipes daarte de governar... que nome lhes daremos? — Como agora acabas de dizer: servidores, mas nãogovernadores dos Estados.

(Platão, Político, apud R. Mondolfo, O pensamento antigo, v. 1, p. 237.)

198

Dois amores construíram duas cidades: o amor de si levado até ao desprezo de Deus edificou a cidadeterrestre, civitas terrena; o amor de Deus levado até ao desprezo de si próprio ergueu a cidade celeste; umarende glória a si, a outra ao Senhor; uma busca uma glória vinda dos homens; para a outra, Deus, testemunhada consciência, é a maior glória.

(Santo Agostinho)

Para um pensador da Idade Média, o Estado está para a Igreja como a filosofia para a teologia e anatureza para a graça.

(Etienne Gilson)

1. Introdução

A Idade Média abarca um período tãoextenso que é difícil caracterizá-la sem incor-rer no risco da simplificação. Afinal, são milanos (de 476 a 1455), entre a queda do Impé-rio Romano do Ocidente e a tomada deConstantinopla pelos turcos.

A Alta Idade Média, período que se su-cedeu à queda do Império, é caracterizada porum estado de desagregação da antiga ordem epela divisão do Império em diversos reinosbárbaros.

O desejo de unidade de poder, de res-tauração da antiga unidade perdida, se expres-sa na difusão do cristianismo que representa,na Idade Média, o ideal de Estado universal.Desde o final do Império Romano, quandoo cristianismo se tornara a religião oficial(ano 313), estabelece-se a ligação entre Esta-do e Igreja, pois esta legitima o poder do Es-tado, atribuindo-lhe uma origem divina.

Após a formação dos reinos bárbaros,essa relação é retomada no reino franco porClóvis e Pepino. No ano 800, Carlos Magnorestaura de certa forma a unidade do podersecular com a fundação do Império do Oci-

dente. Ao ser pomposamente sagrado impera-dor pelo papa Leão III, reforça ainda mais aaliança entre política e religião.

Tempos difíceis se sucederam à desa-gregação do Sacro Império Romano-Germâ-nico, e a partir do século XI se estabelece anova ordem feudal. Trata-se de um período deprofundo enfraquecimento do Estado, em queos países são recortados pelos territórios pos-suídos por duques, condes e barões que, comsuas milícias e autonomia na administração dajustiça, muitas vezes tinham maior poder queo próprio rei. Fortes mesmo eram as relaçõesde suserania e vassalagem, criando laços queuniam os senhores entre si em troca de favo-res e proteção.

Nesse contexto de extrema fragmenta-ção política e descentralização do poder, aIgreja exerce enorme influência, na medidaem que mantém o monopólio do saber. Desdea invasão dos bárbaros, a cultura greco-latinapermanecera por muito tempo confinada aosmosteiros, ressurgindo lentamente após o sé-culo VIII, no período conhecido comorenascimento carolíngio, ocasião em que

199

CAPÍTULO 20OPENSAMENTO

POLÍTICO MEDIEVALA vinculação da

política à religião

Carlos Magno mandou fundar inúmeras esco-las junto às igrejas e mosteiros.

Dessa forma, os intelectuais pertencemàs ordens religiosas e, conseqüentemente, asprincipais questões filosóficas referem-se àsrelações entre fé e razão, sendo que esta seencontra sempre subordinada àquela. Se a féé o conhecimento mais elevado e o critériomais adequado da verdade, a filosofia não é abusca da verdade — pois esta já foi encontra-da — mas a ela cabe apenas o trabalho de de-monstração racional dessa verdade.

De início os religiosos têm receios quan-to à produção dos gregos, por serem eles pa-gãos, mas com as devidas interpretações eadaptações segundo a fé cristã, o pensamentomedieval é fertilizado inicialmente pelo pen-samento de Platão (nas obras da patrística, so-bretudo de Santo Agostinho) e depois pelo deAristóteles (no pensamento de Santo Tomás).

das duas cidades, a "cidade de Deus" e a "ci-dade terrestre", que não devem ser entendidassimplesmente como referência ao reino deDeus que se sucede à vida terrena, mas à coe-xistência dos dois planos de existência na vidade cada um. Ou seja, todos têm uma dimen-são terrena que se refere à sua história natural,à moral, às necessidades materiais e que dizrespeito a tudo que é perecível e temporal.Outra dimensão é a celeste, que correspondeà comunidade dos cristãos, inspirada no amora Deus e que vive da fé.

Para Santo Agostinho, a relação entre asduas dimensões é de ligação e não de oposição,mas a repercussão do seu pensamento, à reve-lia do autor, desemboca na doutrina chamadaagostinismo político, que marca toda a IdadeMédia e significa o confronto entre o poder doEstado e o da Igreja, considerando a superiori-dade do poder espiritual sobre o temporal.

2. Estado e Igreja

Ao contrário das concepções da Anti-guidade, em que a função do Estado é assegu-rar a vida boa, na Idade Média predomina aconcepção negativa do Estado. Isto porque ohomem teria uma natureza sujeita ao pecado eao descontrole das paixões, o que exige vigi-lância constante, cabendo ao Estado intimidaros homens para que ajam retamente.

Daí podermos observar a estreita liga-ção entre política e moral, com a exigênciade se formar o governante justo, não-tirâni-co, que por sua vez consiga obrigar, muitasvezes pelo medo, à obediência aos princípiosda moral cristã.

Portanto, na Idade Média configuram-seduas instâncias de poder: a do Estado e a daIgreja. O Estado é de natureza secular, tempo-ral, voltado para as necessidades mundanas ecaracteriza-se pelo exercício da força física. AIgreja é de natureza espiritual, voltada para osinteresses da salvação da alma e deve encami-nhar o rebanho para a verdadeira religião pormeio da força da educação e da persuasão.

A tensão entre os dois poderes assumiudiferentes expressões no decorrer do período,criando inúmeros conflitos.

Ainda no final da Antiguidade, próximoà queda do Império Romano, viveu SantoAgostinho (354-430), bispo de Hipona. Naobra A cidade de Deus trata do discutido tema

3. A luta das duas espadas

A luta das duas espadas foi formuladateoricamente por São Bernardo de Claraval,no século XII, e representa o acirramento doconfronto entre os dois poderes, o espiritual eo temporal. Se cabe aos reis cuidar dos corpose à Igreja a salvação da alma, esta última tare-fa é superior e não se deve poupar aqueles quepraticam delitos contra a moral cristã, atri-buindo-se o direito de punição aos ofensores.Quando se trata de reis, pode caber até a de-posição, o que era possível na medida em queo papa, ao excomungar um rei, desobrigavaos fiéis do dever de fidelidade.

Aliás, isso já tinha acontecido um séculoantes, a propósito da "querela das investidu-ras", quando o papa Gregório VII passou acombater a investidura dos bispos feita pelopoder laico, uma vez que proliferava a práticade reis distribuírem igrejas conforme suas con-veniências. Ao ser enfrentado por Henrique IV,rei da Germânia, o papa o ameaçou com aexcomunhão, obrigando-o a implorar perdãopor três dias, humildemente descalço, às portasdo castelo papal de Canossa.

No século XIII, os choques entreFrederico II e o papa Inocêncio IV e, no finaldo mesmo século, entre Filipe, o Belo, daFrança, e o papa Bonifácio VIII indicam astentativas dos reis de recusarem a interferên-cia religiosa nos assuntos de política.

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No final do século XIV, o Grande Cis-ma acentua a divergência e a tentativa do Es-tado de firmar sua soberania. O teólogo inglêsWyclif defende a idéia da Igreja nacional, tra-duz a Bíblia para o inglês e recusa a intromis-são do papado. Essas divergências culminamno século XVI com a Reforma protestante.

4. A concepção tomista

Santo Tomás de Aquino (1225-1274) foio maior representante da escolástica, tendênciada filosofia medieval influenciada por Aristó-teles. O pensamento tomista se caracteriza porter realizado a grande síntese do aristotelismoe as verdades teológicas da fé cristã.

No século XIII os tempos já são outros,com o renascimento das cidades e a intensifi-cação do comércio, o debate das idéias nasuniversidades, o desafio das heresias. Tam-bém Santo Tomás muda o enfoque dos temaspolíticos e, sob a influência dos textos de Aris-tóteles, preocupa-se com questões tais como anatureza do poder e das leis e a questão clássi-ca do melhor governo.

Como Aristóteles, Santo Tomás consi-dera que o homem só encontra sua realizaçãona cidade, e o plano político é a instância pos-sível em que o governo não-tirânico podealiar ordem e justiça na busca do bem comum.O poder político, mesmo que seja de origemdivina, circunscreve-se na ordem das necessi-dades naturais do homem enquanto ser socialque necessita alcançar seus fins terrenos. Daíque o estudo da política requer o uso da razãonatural, não se circunscrevendo apenas aoâmbito da teologia.

No entanto, coerente também com suavisão religiosa do mundo, Santo Tomás con-clui que o Estado conduz o homem até umcerto ponto, quando então se exige o concur-so do poder da Igreja, sem dúvida superior, eque cuidará da dimensão sobrenatural do des-tino humano. Embora ainda mantendo a hie-rarquia entre as duas instâncias, atenua semdúvida os excessos da doutrina nascida da"luta das duas espadas".

Preocupado com a questão da tirania,considera que a paz social resulta da unidadedo Estado, sendo importante a virtude dogovernante. Ao abordar as formas de gover-no, indica suas preferências pela monarquia,desde que "temperada", em que o poder é re-

partido entre o rei e um grupo de homens es-peciais escolhidos pela maioria: "primeiro,um chefe único, escolhido por sua virtude, queesteja à frente de todos; em seguida, abaixodele, alguns chefes escolhidos por sua virtu-de; sendo a autoridade de alguns, a deles nempor isso deixa de ser a autoridade de todos,visto que podem ser escolhidos na totalidadeo povo, ou realmente o são".

5. O renascimento urbano

A partir do final do século XI, os servoslibertos, inicialmente nômades, acabam por seinstalar nos arredores das cidades (os burgos),estabelecendo entre si relações diferentes da-quelas entre senhores e servos. Compram car-tas pelas quais tornam livres as cidades e, di-ferentemente da antiga relação hierárquica,estabelecem relações entre iguais. Ao ideal docavaleiro contrapõem o ideal burguês do ci-dadão honesto e trabalhador.

A conseqüência de tais transformaçõesé o renascimento comercia] e urbano. O apa-recimento das cidades também contribui parao início do processo de laicização da socieda-de, expressa na oposição ao poder religioso.As heresias encontram terreno fértil em meioa muitas manifestações anticlericais. A partirdo século XII, a Igreja reage criando aInquisição, com tribunais que julgam os "des-vios da fé". Recorre-se à delação anônima, aojulgamento sem advogados, à tortura. As pe-nas variam da prisão perpétua à condenação àmorte, geralmente na fogueira.

Os primeiros teóricos dos novos tempose que podem ser considerados pré-renascen-tistas são Dante, Marsílio e Guilherme deOckham. Embora as novas idéias não tenhamprovocado alterações políticas imediatas, ini-cia-se uma lenta e profunda transformação.

No caso de Dante e Marsílio, suasidéias são influenciadas pela situação especialvivida pela Itália, dividida em inúmeros pe-quenos Estados independentes que até 1250estiveram sob a tutela dos imperadores ale-mães. A interferência da Igreja nos negóciospolíticos e o específico interesse dos EstadosPontifícios nos demais territórios italianos,bem como o desejo dos imperadores alemãesde recuperarem o poder sobre a península,criam a luta de facções entre guelfos (partidá-rios do papa) e gibelinos (partidários do im-

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perador). Estes últimos representam, em últi-ma instância, o ideal de secularização do po-der em oposição à ação política da Igreja.

Dante Alighieri (1265-1321), poeta ita-liano, é mais conhecido como autor da DivinaComédia, mas também escreveu A monar-quia, onde elimina o papel mediador do papa,introduzindo teses naturalistas. Segundo ele,Deus, criador da natureza, nos dotou de livreraciocínio e vontade que nos permitem a per-feita condução do Estado: "A potência inte-lectual é, em si, o guia e forma de todas ascoisas. Do contrário, o homem não pode al-cançar seus fins". Colocando a autoridadetemporal e política independente da autorida-de do papa e da Igreja, Dante considera que o

governante deve depender diretamente deDeus, o que de certa forma prenuncia a dou-trina do direito divino dos reis e o fortaleci-mento da monarquia.

Também Marsílio de Pádua (cerca de1280-1341) se refere à voluntas populi, a von-tade do povo, pela qual melhor se conhece oque deve e o que não deve ser feito. O únicomeio de regular as relações sociais está na ela-boração das leis, instrumento pelo qual se al-cança a cidadania.

O que esses pensadores prenunciam sãoas novas formas de relação de poder, inician-do a crítica às relações feudais e prenuncian-do a aliança que se dará entre a burguesia e osreis na formação das monarquias nacionais.

Exercícios

1. Qual é a importância da Igreja na forma-ção da nova ordem medieval?

2. Leia a citação de Etienne Gilson constanteda epígrafe do capítulo e explique o significadodela.

3. A partir da citação a seguir, explique umadas características da concepção medieval de Esta-do: "Com efeito, se ninguém temesse, quem pode-ria impedir alguém de cometer o mal? Por issosão eleitos príncipes e reis, para que 'com o terror'livrem seus súditos do mal, 'obrigando-os, pelasleis, a viver retamente'". (Isidoro de Sevilha)

4. Leia a citação de Santo Agostinho constan-te da epígrafe e explique o significado dela.

5. Seguem alguns itens de um documentoatribuído ao papa Gregório VII. Explique quais sãoos seus fundamentos políticos:

III. Apenas o pontífice romano pode depor ouabsolver os bispos. IX. O papa é o único homem aquem todos os príncipes beijam os pés. XII. É-lhepermitido depor os imperadores. XVIII. A sua sen-tença não deve ser reformada por ninguém e ape-nas ele pode reformar as sentenças de todos os ou-

tros. XIX. Não deve ser julgado por ninguém.XXVII. O papa pode dispensar o cumprimento dojuramento de fidelidade feito aos injustos.

6. Quais são as principais idéias políticas deSanto Tomás?

7. Quais são as novidades do pensamento deDante e Marsílio?

8. A seguir, foram transcritas duas estrofes daDivina Comédia (Canto XVI do Purgatório) deDante Alighieri. Interprete-as do ponto de vista daconcepção política do autor. (Para facilitar, infor-mamos que os "dois sóis" se referem aos dois po-deres, o temporal e o espiritual, que na Roma Anti-ga estariam separados.)

Bem haja Roma, que ao bom mundo, então,ergueu dois sóis, por revelar a estradaali da terra, e aqui da salvação.

Mas um o outro eclipsou, e uniu-se a espadaà pastoral; e, juntos, claramente,não podem bem cumprir sua jornada.

9. Faça uma dissertação sobre o tema: ACésar o que é de César e a Deus o que é de Deus.

202

A POLÍTICACOMO

CATEGORIAAUTÔNOMA

PRIMEIRA PARTE — Maquiavel

E necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mauvaler-se disso segundo a necessidade.

que se valha ou deixe de

Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente pro-curar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imaginourepúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros.

(Maquiavel)

1. Formação do Estado nacional

Durante a Idade Média, como vimos, opoder do rei era sempre confrontado com ospoderes da Igreja ou da nobreza. As monar-quias nacionais surgem com o fortalecimentodo rei, e portanto com a centralização do po-der, fenômeno este que se desenvolve desde ofinal do século XIV (Portugal) e durante o sé-culo XV (França, Espanha, Inglaterra).

Dessa forma surge o Estado moderno,que apresenta características específicas, taiscomo o monopólio de fazer e aplicar as leis,recolher impostos, cunhar moeda, ter umexército. A novidade é que tudo isso se tornaprerrogativa do governo central, o único quepassa a ter o aparato administrativo para pres-tação dos serviços públicos bem como o mo-nopólio legítimo da força.

É em função desse contexto que se tor-na possível compreender o pensamento deMaquiavel.

2. A Itália dividida

Enquanto as demais nações européiasconseguem a centralização do poder, a Alema-nha e a Itália se acham fragmentadas em inú-meros Estados sujeitos a disputas internas e ahostilidades entre cidades vizinhas. No caso daItália, a ausência de unificação a expõe à ga-nância de outros países como Espanha e Fran-ça, que reivindicam territórios e assolam a pe-nínsula com ocupações intermináveis.

E nessa Itália dividida que vive NicolauMaquiavel (1469-1527) na república de Floren-ça. Observa com apreensão a falta de estabilida-de política da Itália, dividida em principados erepúblicas onde cada um possui sua própria mi-lícia, geralmente formada por mercenárioscondottieri1. Nem mesmo os Estados Pontifíciosdeixavam de formar os seus exércitos.

Maquiavel não foi apenas um intelectualque refletiu a respeito de política, pois viveuintensamente a luta de poder no período em

1 Condottieri (condottiere no singular) são os comandantes que recebem uma condotta, isto é, um contrato para condu-zir o exército mediante pagamento.

203

CAPÍTULO 21

que Florença, tradicionalmente sob a influên-cia da família Medici, encontrava-se por umadécada governada pelo republicano Soderini.

Nessa época Maquiavel ocupa a Segun-da Chancelaria do governo, função que o obri-ga a desempenhar inúmeras missões diplomá-ticas na França, Alemanha e pelos diversosEstados italianos. Tem oportunidade de entrarem contato direto com reis, papas e nobres, etambém com o condottiere César Bórgia, queestava empenhado na ampliação dos EstadosPontifícios. Observando a maneira de Bórgiaagir, Maquiavel o considera o modelo de prín-cipe que a Itália precisava para ser unificada.

Quando Soderini é deposto e os Medicivoltam à cena política, Maquiavel cai em des-graça e recolhe-se para escrever as obras queo consagraram. Entre peças de teatro (como afamosa Mandrágora), poesia, ensaios diver-sos, destacam-se O príncipe e Comentáriossobre a primeira década de Tito Lívio.

3. Controvérsias sobreO príncipe

Escrito em 1513 e dedicado a Lourençode Mediei, O príncipe tem provocado inúme-ras interpretações e controvérsias. Uma primei-ra leitura nos dá uma visão da defesa do abso-lutismo e do mais completo imoralismo: "Énecessário a um príncipe, para se manter, queaprenda a poder ser mau e que se valha ou dei-xe de valer-se disso segundo a necessidade".

Essa primeira leitura apressada da obralevou à criação do mito do maquiavelismo, quetem atravessado os séculos. Esse mito não sórepresenta a figura do político maquiavélicomas se estende até à avaliação das atividadescorriqueiras de qualquer pessoa.

Na linguagem comum, chamamos pejo-rativamente de maquiavélica a pessoa sem es-crúpulos, traiçoeira, astuciosa que, para atin-gir seus fins, usa da mentira e da má-fé, sendocapaz de enganar tão sutilmente que pode nosfazer pensar que agimos livremente quando naverdade somos por ela manipulados. Comoexpressão dessa amoralidade, costuma-se vul-garmente atribuir a Maquiavel a famosa má-xima: "Os fins justificam os meios". Ora, essainterpretação se mostra excessivamentesimplista e deformadora do pensamento

maquiaveliano e, para superá-la, é precisoanalisar com mais atenção o impacto das ino-vações do seu pensamento político.

Contrapondo-se à análise pejorativa domaquiavelismo, Rousseau, no século XVIII,defende o florentino afirmando que O prínci-pe era na verdade uma sátira, e a intenção ver-dadeira de Maquiavel seria o desmascaramen-to das práticas despóticas, ensinando, portan-to, o povo a se defender dos tiranos. Tal hipó-tese se sustentaria a partir da leitura dos Co-mentários sobre a primeira década de TitoLívio, onde são desenvolvidas as idéias doMaquiavel republicano.

Modernamente, no entanto, rejeita-se avisão romântica de Rousseau, e a aparentecontradição entre as duas obras é interpretadacomo fruto de dois momentos diferentes daação política. Em um primeiro estádio, repre-sentado pela ação do príncipe, o poder deveser conquistado e mantido, e para tanto justi-fica-se o poder absoluto. Posteriormente,alcançada a estabilidade, é possível e desejá-vel a instalação do governo republicano.

Além disso, as idéias democráticas apa-recem veladamente também no capítulo IX deO príncipe, quando Maquiavel se refere à ne-cessidade de o governante ter o apoio do povo,sempre melhor do que o apoio dos grandes,que podem ser traiçoeiros. O que está sendotimidamente esboçado é a idéia de consenso,que terá importância fundamental nos séculosseguintes.

4. O príncipe virtuoso

Para descrever a ação do príncipe,Maquiavel usa as expressões italianas virtú efortuna. Virtú significa virtude, no sentidogrego de força, valor, qualidade de lutador eguerreiro viril. Homens de virtú são homensespeciais, capazes de realizar grandes obras eprovocar mudanças na história.

Não se trata do príncipe virtuoso no sen-tido medieval, enquanto bom e justo segundoos preceitos da moral cristã, mas sim daqueleque tem a capacidade de perceber o jogo deforças que caracteriza a política para agir comenergia a fim de conquistar e manter o poder.O príncipe de virtú não deve se valer das nor-mas preestabelecidas da moral cristã, pois issogeralmente pode significar a sua ruína.

204

Implícita nessa afirmação se acha a no-ção de fortuna, aqui entendida como ocasião,acaso. O príncipe não deve deixar escapar afortuna, isto é, a ocasião. De nada adiantariaum príncipe virtuoso, se não soubesse ser pre-cavido ou ousado, aguardando a ocasião pro-pícia, aproveitando o acaso ou a sorte das cir-cunstâncias, como observador atento do cur-so da história. No entanto, afortuna não deveexistir sem a virtú, sob pena de se transformarem mero oportunismo.

5. Ética e política

A novidade do pensamento maquiave-liano, justamente a que causou maior escân-dalo e críticas, está na reavaliação das rela-ções entre ética e política. Por um lado,Maquiavel apresenta uma moral laica, secu-lar, de base naturalista, diferente da moralcristã; por outro, estabelece a autonomia dapolítica, negando a anterioridade das questõesmorais na avaliação da ação política.

Para a moral cristã, predominante naIdade Média, há valores espirituais superioresaos políticos, além de que o bem comum dacidade deve se subordinar ao bem supremo dasalvação da alma. "A moral cristã se apóia emuma concepção do bem e do mal; do justo edo injusto, que ao mesmo tempo preexiste etranscende a autoridade do Estado, cuja orga-nização político-jurídica não deve contradizerou violar as formas éticas fundamentais, im-plícitas no direito natural. O indivíduo estásubordinado ao Estado, mas a ação deste últi-mo se acha limitada pela lei natural ou moralque constitui uma instância superior à qualtodo membro da comunidade pode recorrersempre que o poder temporal atentar contraseus direitos essenciais inalienáveis."2

A nova ética analisa as ações não maisem função de uma hierarquia de valores dada apriori, mas sim em vista das conseqüências,dos resultados da ação política. Não se trata deum amoralismo, mas de uma nova moralcentrada nos critérios da avaliação do que é útilà comunidade: o critério para definir o que émoral é o bem da comunidade, e nesse sentidoàs vezes é legítimo o recurso ao mal (o empre-

go da força coercitiva do Estado, a guerra, aprática da espionagem, o emprego da violên-cia). Estamos diante de uma moral imanente,mundana, que vive do relacionamento entre oshomens. E se há a possibilidade de os homensserem corruptos, constitui dever do príncipemanter-se no poder a qualquer custo.

Maquiavel distingue entre o bom gover-nante, que é forçado pela necessidade a usar daviolência visando o bem coletivo, e o tirano, queage por capricho ou interesse próprio.

O pensamento de Maquiavel nos leva àreflexão sobre a situação dramática e am-bivalente do homem de ação: se o indivíduoaplicar de forma inflexível o código moral querege sua vida pessoal à vida política, sem dú-vida colherá fracassos sucessivos, tornando-se um político incompetente.

Tal afirmação pode levar as pessoas aconsiderar que Maquiavel estaria defendendoo político imoral, os corruptos e os tiranos.Não se trata disso. A leitura maquiavelianasugere a superação dos escrúpulos imobilistasda moral individual, mas não rejeita a moralprópria da ação política: "Se o indivíduo, nasua existência privada, tem o direito de sacri-ficar o seu bem pessoal imediato e até sua pró-pria vida a um valor moral superior, ditadopela sua consciência, pois em tal hipótese es-tará empenhando apenas seu destino particu-lar, o mesmo não acontece com o homem deEstado, sobre o qual pesam a pressão e a res-ponsabilidade dos interesses coletivos; este,de fato, não terá o direito de tomar uma deci-são que envolva o bem-estar ou a segurançada comunidade, levando em conta tão-somen-te as exigências da moral privada; casos have-rá em que terá o dever de violá-la para defen-der as instituições que representa ou garantira própria sobrevivência da nação".3

Isso significa que a avaliação moral nãodeve ser feita antes da ação política, segundonormas gerais e abstratas, mas a partir de umasituação específica que é avaliada em funçãodo resultado dela, já que toda ação políticavisa a sobrevivência do grupo e não apenas deindivíduos isolados.

Por isso Maquiavel não pode ser consi-derado um cínico apologista da violência. Oque ele enfatiza é que os critérios da ética po-

2 L. Escorei, Introdução ao pensamento político de Maquiavel, p. 94.3 L. Escorei, Introdução ao pensamento político de Maquiavel, p. 104.

205

lítica precisam ser revistos conforme as cir-cunstâncias e sempre tendo em vista os finscoletivos.

No entanto, é bom lembrar que o pen-samento de Maquiavel tem um sentido pró-prio, na medida em que ele expressa a ten-dência fundamental da sua época, ou seja, adefesa do Estado absoluto e a valorização dapolítica secular, não atrelada à religião. Tal-vez por isso o extremo politicismo, ou seja, ahipertrofia do valor político, de cujas conse-qüências últimas talvez nem ele próprio pu-desse suspeitar.

Embora Maquiavel não tivesse usado oconceito de razão de Estado, é considerado opensador que começa a esboçar a doutrina quevigorará no século seguinte, quando o gover-nante absoluto, em circunstâncias críticas eextremamente graves, a ela recorre permitin-do-se violar normas jurídicas, morais, políti-cas e econômicas.

Cassirer, filósofo alemão contemporâ-neo, observa que a experiência pessoal deMaquiavel se baseava nas pequenas tiraniasitalianas do século XVI, que não podem sercomparadas às monarquias absolutas do sécu-lo XVII nem às nossas ditaduras modernas, oque nos faz ver hoje o maquiavelismo atravésde uma lente de aumento.

6. Maquiavel republicano

Quando estava no ostracismo político,Maquiavel se ocupa com a elaboração dosComentários sobre a primeira década de TitoLívio, interrompendo esse trabalho por algunsmeses para escrever O príncipe.

A medida que escreve os Comentários,lê trechos nas reuniões realizadas por jovensrepublicanos, a quem dedica a obra. Aí desen-volve idéias democráticas, admitindo que oconflito é inerente à atividade política e queesta se faz a partir da conciliação de interes-ses divergentes.

Defende a proposta do governo misto:"Se o príncipe, os aristocratas e o povo gover-nam em conjunto o Estado, podem com faci-lidade controlar-se mutuamente".

Considera importante que as monar-quias ou repúblicas sejam governadas pelasleis e acusa aqueles que, no uso da violência,abusaram da crueldade, ou a usaram para in-teresses menores.

7. A autonomia da política

Maquiavel subverte a abordagem tradi-cional da teoria política feita pelos gregos emedievais e é considerado o fundador daciência política, ao enveredar por novos ca-minhos "ainda não trilhados".

Pode-se dizer que a política de Maquia-vel é realista, pois procura a verdade efeti-va, ou seja, "como o homem age de fato". Asobservações das ações dos homens do seutempo e dos estudos dos antigos, sobretudoda Roma Antiga, levam-no à constatação deque os homens sempre agiram pelas vias dacorrupção e da violência. Partindo do pres-suposto da natureza humana capaz do mal edo erro, analisa a ação política sem se preo-cupar em ocultar "o que se faz e não se cos-tuma dizer".

A esse realismo alia-se a tendênciautilitarista, pela qual Maquiavel pretende de-senvolver uma teoria voltada para a ação efi-caz e imediata. A ciência política só tem sen-tido se propiciar o melhor exercício da artepolítica. Trata-se do começo da ciência políti-ca: da teoria e da técnica da política, entendi-da como disciplina autônoma.

Maquiavel torna a política autônomaporque a desvincula da ética e da religião,procurando examiná-la na sua especificida-de própria.

Em relação ao pensamento medieval,Maquiavel procede à secularização da polí-tica, rejeitando o legado ético-cristão. Alémda desvinculação da religião, a ética políti-ca se distingue da moral privada, uma vezque a ação política deve ser julgada a partirdas circunstâncias vividas, tendo em vistaos resultados alcançados na busca do bemcomum.

Com isso, Maquiavel se distancia dapolítica normativa dos gregos e medievais,pois não mais busca as normas que definem obom regime, nem explicita quais devem ser asvirtudes do bom governante. Em alguns ca-sos, como o de Platão, a preocupação em de-finir como deve ser o bom governo leva àconstrução de utopias, o que mereceu a críticade Maquiavel.

Talvez alguém inadvertidamente se per-gunte se o próprio Maquiavel não estaria àprocura do príncipe ideal, indicando as nor-mas para conquistar e não perder o poder. Noentanto, há, de fato, diferenças fundamentais

206

entre o "dever ser" da política clássica e aque-le a que se refere Maquiavel.

Na nova perspectiva, para fazer políticaé preciso compreender o sistema de forçasexistentes e calcular a alteração do equilíbrioprovocada pela interferência de sua própriaação nesse sistema.

Segundo Claude Lefort, como "em defi-nitivo, em nenhum lugar está traçada a via realda política", cabe ao homem de ação desco-brir, na paciente exploração dos possíveis, ossinais da criação histórica e assim inscreversua ação no tempo.

Exercícios

1. Em que sentido o pensamento de Maquia-vel deve ser compreendido no contexto da forma-ção das monarquias nacionais?

2. Explique o trecho a seguir, usando os con-ceitos de virtu e fortuna: "Era necessário que Ciroencontrasse os persas descontentes do império dosmedas e os medas muito efeminados e amolecidospor uma longa paz. Teseu não teria podido revelarsuas virtudes se não tivesse encontrado os ateniensesdispersos. Tais oportunidades, portanto, tornaramfelizes a esses homens; e foram as suas virtudes quelhes deram o conhecimento daquelas oportunida-des. Graças a isso, a sua pátria se honrou e se tor-nou feliz". (Maquiavel)

3. Qual é a relação moral-política na concep-ção clássica?

4. Como é analisada a ação política na novarelação moral-política proposta por Maquiavel?

5. Como explicar a aparente contradição en-tre as obras O príncipe e os Comentários?

6. Em que sentido não se pode dizer queMaquiavel era "maquiavélico"? Ao responder, ex-plique quais são as inovações do pensamento ma-quiaveliano.

7. Leia o fragmento 1 de O príncipe e expli-que a preocupação de Maquiavel com a formaçãodo Estado moderno.

8. Relacione os fragmentos 2 e 3, explicandoqual é a crítica que Maquiavel faz a Savonarola.

9. Leia os fragmentos 4 a 8 e explique comoMaquiavel subverte a relação clássica entre ética epolítica.

10. Ainda no fragmento 8, identifique as carac-terísticas inovadoras do pensamento maquiaveliano.

11. Leia os fragmentos 9 a 11, extraídos dosComentários, e explique o significado deles. Emseguida, justifique por que, comparando com o teorde O príncipe, não se trata de uma contradição dateoria política de Maquiavel.

Textos complementares

I

O príncipe

1

Os príncipes prudentes repeliram sempre tais forças [as mercenárias e as auxiliares], para va-ler-se das suas próprias, preferindo antes perder com estas a vencer com auxílio das outras, conside-rando falsa a vitória conquistada com forças alheias. (...) Se se considerar o começo da decadênciado Império Romano, achar-se-á que foi motivada somente por ter começado a ter a soldo mercená-rios godos.

207

2

Um príncipe deve, pois, não deixar nunca de se preocupar com a arte da guerra e praticá-la napaz ainda mais mesmo que na guerra, e isto pode ser conseguido por duas formas: pela ação ouapenas pelo pensamento. Quanto à ação, além de manter os soldados disciplinados e constantementeem exercício, deve estar sempre em grandes caçadas, onde deverá habituar o corpo aos incômodosnaturais da vida em campanha e aprender a natureza dos lugares, saber como surgem os montes,como afundam os vales, como jazem as planícies, e saber da natureza dos rios e dos pântanos, em-pregando nesse trabalho os melhores cuidados. (...) Agora, quanto ao exercício do pensamento, opríncipe deve ler histórias de países e considerar as ações dos grandes homens, observar como seconduziram nas guerras, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, para poder fugir destas eimitar aquelas.

3

Destarte todos os profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além doque já se disse, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadi-los de uma coisa, mas sendo difícilfirmá-los na persuasão. Convém, pois, providenciar para que, quando não acreditarem mais, se pos-sa fazê-los crer à força. Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam conseguido fazer observar pormuito tempo suas constituições se estivessem desarmados. É o que, nos tempos que correm, aconte-ceu a frei Girolamo Savonarola, o qual fracassou na sua tentativa de reforma quando o povo come-çou a não lhe dar crédito. E ele não tinha meios para manter firmes aqueles que haviam acreditado,nem para fazer com que os incrédulos acreditassem.

4

... cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: apesar disso, deve cui-dar de empregar convenientemente essa piedade. César Bórgia era considerado cruel, e, contudo,sua crueldade havia reerguido a Romanha e conseguido uni-la e conduzi-la à paz e à fé. O que, bemconsiderado, mostrará que ele foi muito mais piedoso do que o povo florentino, o qual, para evitar apecha de cruel, deixou que Pistóia fosse destruída. Não deve, portanto, importar ao príncipe a quali-ficação de cruel para manter os seus súditos unidos e com fé, porque, com raras exceções, é ele maispiedoso do que aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens, das quais podemnascer assassínios ou rapinagem. É que estas conseqüências prejudicam todo um povo, e as execu-ções que provêm do príncipe ofendem apenas um indivíduo. E, entre todos os príncipes, os novossão os que menos podem fugir à fama de cruéis, pois os Estados novos são cheios de perigo.

5

Nasce daí esta questão debatida: se será melhor ser amado que temido ou vice-versa. Respon-der-se-á que se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil reunir ao mesmo tempo as quali-dades que dão aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, quando se tenha quefalhar numa das duas.

6

... um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torneprejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir. Se os homens todos fossembons, este preceito seria mau. Mas, dado que são pérfidos e que não a observariam a teu respeito,também não és obrigado a cumpri-la para com eles.

208

7(...) Quem se torna senhor de uma cidade tradicionalmente livre e não a destrói, será destruído porela. Tais cidades têm sempre por bandeira, nas rebeliões, a liberdade e suas antigas leis, que nãoesquecem nunca, nem com o correr do tempo, nem por influência dos benefícios recebidos. (...)Assim, para conservar uma república conquistada, o caminho mais seguro é destruí-la ou habitá-lapessoalmente.

8

... como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conve-niente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muitagente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos comoverdadeiros. Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem sepreocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que omodo de se preservar; e um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arrumeentre tantos que são maus.

Assim é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valhaou deixe de valer-se disso segundo a necessidade.

(Maquiavel, O príncipe, trad. Livio Xavier, Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973,p.62-63, 65-66, 31, 75, 76, 79, 28, 69.)

II

Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio

9

Percebe-se facilmente de onde nasce o amor à liberdade dos povos; a experiência nos mostraque as cidades crescem em poder e em riqueza enquanto são livres. É maravilhoso, por exemplo,como cresceu a grandeza de Atenas durante os cem anos que se sucederam à ditadura de Pisístrato.Contudo, mais admirável ainda é a grandeza alcançada pela república romana depois que foi liberta-da dos seus reis. Compreende-se a razão disto: não é o interesse particular que faz a grandeza dosEstados, mas o interesse coletivo. E é evidente que o interesse comum só é respeitado nas repúbli-cas: tudo o que pode trazer vantagem geral é nelas conseguido sem obstáculos. Se uma certa medidaprejudica um ou outro indivíduo, são tantos os que ela favorece, que se chega sempre a fazê-laprevalecer, a despeito das resistências, devido ao pequeno número de pessoas prejudicadas.

10

Não observar uma lei é dar mau exemplo, sobretudo quando quem a desrespeita é o seu autor;é muito perigoso para os governantes repetir a cada dia novas ofensas à ordem pública.

11

... se as monarquias têm durado muitos séculos, o mesmo acontece com as repúblicas; masumas e outras precisam ser governadas pelas leis: o príncipe que se pode conceder todos os capri-chos é geralmente um insensato; e um povo que pode fazer tudo o que quer comete com freqüênciaerros imprudentes. Se se trata de um príncipe e de um povo submetido às leis, o povo demonstrarávirtudes superiores às do príncipe. Se, neste paralelo, os considerarmos igualmente livres de qual-quer restrição, ver-se-á que os erros cometidos pelo povo são menos freqüentes, menos graves emais fáceis de corrigir.

(Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, 2. ed. rev. Trad. Sérgio Bath,Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1982, p.198, 145, 182.)

209

SEGUNDA PARTE — Hobbes e o Estado absoluto

Sejamos o lobo do lobo do homem.

(Caetano Veloso)

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito,eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contratodos os homens.

(Hobbes)

E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando podefazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada umconfiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contratodos os outros.

(Hobbes)

1. Introdução

Thomas Hobbes (1588-1679), inglês defamília pobre, conviveu com a nobreza, dequem recebeu apoio e condições para estudar,e defendeu ferrenhamente o poder absoluto,ameaçado pelas novas tendências liberais.Teve contato com Descartes, Francis Bacon eGalileu. Preocupou-se, entre outras coisas,com o problema do conhecimento, tema bási-co das reflexões do século XVII, representan-do a tendência empirista. Também escreveusobre política: as obras De cive e Leviatã.

O que acontece no século XVII, épocaem que Hobbes viveu?

O absolutismo, atingindo o apogeu, en-contra-se em vias de ser ultrapassado, e enfren-ta inúmeros movimentos de oposição baseadosem idéias liberais. Se na primeira fase (Ingla-terra de Isabel e França de Luís XIV) o absolu-tismo favorece a economia mercantilista, poisas indústrias nascentes são protegidas pelo go-verno, já na segunda fase o desenvolvimentodo capitalismo comercial repudia o interven-cionismo estatal, uma vez que a burguesia as-cendente agora aspira à economia livre.

Continua a laicização do pensamento, apartir do sentimento de independência em re-lação ao papado e da crítica à teoria do direitodivino dos reis. A vida política é agitada pormovimentos revolucionários: na França,terminada a Guerra dos Trinta Anos(1618-1648), rebenta a Fronda; na Inglaterra,Cromwell, comandando a Revolução Purita-na, destrona e executa o rei Carlos I (1649).

2. Estado de natureza e contrato

A partir da tendência de secularizaçãodo pensamento político, os filósofos do sécu-lo XVII estão preocupados em justificar ra-cionalmente e legitimar o poder do Estadosem recorrer à intervenção divina ou a qual-quer explicação religiosa. Daí a preocupaçãocom a origem do Estado.

É bom lembrar que não se trata de umavisão histórica, de modo que seria ingenuida-de concluir que a "origem" do Estado se refe-re à preocupação com o seu "começo". O ter-mo deve ser entendido no sentido lógico, enão cronológico, como "princípio" do Estado,ou seja, sua raison d'être (razão de ser). O pon-to crucial não é a história, mas a validade daordem social e política, a base legal do Estado.

Como examinaremos no Capítulo 22 (Oque é liberalismo), as teorias contratualistasrepresentam a busca da legitimidade do poderque os novos pensadores políticos esperamencontrar na representatividade do poder eno consenso. Essa temática já existe emHobbes, embora a partir de outros pressu-postos e com resultados e propostas diferen-tes daquelas dos liberais.

O que há de comum entre os filósofoscontratualistas é que eles partem da análise dohomem em estado de natureza, isto é, antesde qualquer sociabilidade, quando, por hipó-tese, desfruta de todas as coisas, realiza osseus desejos e é dono de um poder ilimitado.No estado de natureza, o homem tem direito atudo: "O direito de natureza, a que os autores

210

geralmente chamam jus naturale, é a liberda-de que cada homem possui de usar seu pró-prio poder, da maneira que quiser, para a pre-servação de sua própria natureza, ou seja, desua vida; e, conseqüentemente, de fazer tudoaquilo que seu próprio julgamento e razão lheindiquem como meios adequados a esse fim".

Ora, enquanto perdurar esse estado decoisas, não haverá segurança nem paz algu-ma. A situação dos homens deixados a si pró-prios é de anarquia, geradora de insegurança,angústia e medo. Os interesses egoístas pre-dominam e o homem se torna um lobo para ooutro homem (homo homini lupus). As dispu-tas geram a guerra de todos contra todos(bellum omnium contra omnes), cuja conse-qüência é o prejuízo para a indústria, a agri-cultura, a navegação, e para a ciência e o con-forto dos homens.

Na seqüência do raciocínio, Hobbespondera que o homem reconhece a necessida-de de "renunciar a seu direito a todas as coi-sas, contentando-se, em relação aos outroshomens, com a mesma liberdade que aos ou-tros homens permite em relação a si mesmo".

A nova ordem é celebrada mediante umcontrato, um pacto, pelo qual todos abdicamde sua vontade em favor de "um homem ou deuma assembléia de homens, como representan-tes de suas pessoas". O homem, não sendo so-ciável por natureza, o será por artifício. É omedo e o desejo de paz que o levam a fundarum estado social e a autoridade política, abdi-cando dos seus direitos em favor do soberano.

3. O Estado absoluto

Qual é a natureza do poder legítimo re-sultante do consenso? Que tipo de soberaniaresulta do pacto?

Para Hobbes, o poder do soberano deveser absoluto, isto é, ilimitado. A transmissãodo poder dos indivíduos ao soberano deve sertotal, caso contrário, um pouco que seja con-servado da liberdade natural do homem, ins-taura-se de novo a guerra. E se não há limitespara a ação do governante, não é sequer pos-sível ao súdito julgar se o soberano é justo ouinjusto, tirano ou não, pois é contraditório di-zer que o governante abusa do poder: não háabuso quando o poder é ilimitado!

Vale aqui desfazer o mal-entendido co-mum pelo qual Hobbes é identificado como

defensor do absolutismo real. Na verdade, oEstado pode ser monárquico, quando consti-tuído por apenas um governante, como podeser formado por alguns ou muitos, por exem-plo, por uma assembléia. O importante é que,uma vez instituído, o Estado não pode ser con-testado: é absoluto.

Além disso, Hobbes parte da constata-ção de que as disputas entre rei e parlamentoinglês teriam levado à guerra civil, o que o fazconcluir que o poder do soberano deve serindivisível.

Cabe ao soberano julgar sobre o bem eo mal, sobre o justo e o injusto; ninguém podediscordar, pois tudo o que o soberano faz éresultado do investimento da autoridadeconsentida pelo súdito.

Frontispício da edição de 1651 de Leviatã.Leviatã é um monstro bíblico cruel e invencívelque simboliza, para Hobbes, o poder do Estadoabsoluto. No desenho, seu corpo é constituídode inúmeras cabeças e ele empunha os símbo-los dos dois poderes, o civil e o religioso.

Hobbes usa a figura bíblica do Leviatã,animal monstruoso e cruel, mas que de certaforma defende os peixes menores de seremengolidos pelos mais fortes. É essa figura querepresenta o Estado, um gigante cuja carne é a

2 1 1

mesma de todos os que a ele delegaram o cui-dado de os defender.

Em resumo, o homem abdica da liber-dade dando plenos poderes ao Estado absolu-to a fim de proteger a sua própria vida. Alémdisso, o Estado deve garantir que o que é meume pertença exclusivamente, garantindo o sis-tema da propriedade individual. Aliás, paraHobbes, a propriedade privada não existia noestado de natureza, onde todos têm direito atudo e na verdade ninguém tem direito a nada.

O poder do Estado se exerce pela força,pois só a iminência do castigo pode atemori-zar os homens. "Os pactos sem a espada[sword] não são mais que palavras [words]."

Investido de poder, o soberano não podeser destituído, punido ou morto. Tem o poderde prescrever as leis, escolher os conselhei-ros, julgar, fazer a guerra e a paz, recompen-sar e punir. Hobbes preconiza ainda a censu-ra, já que o soberano é juiz das opiniões e dou-trinas contrárias à paz.

E quando, afinal, o próprio Hobbes per-gunta se não é muito miserável a condição desúdito diante de tantas restrições, conclui quenada se compara à condição dissoluta de ho-mens sem senhor ou às misérias que acompa-nham a guerra civil.

4. Uma interpretação

Embora Hobbes defenda o Estado abso-luto, e sob esse aspecto esteja distante dos inte-resses da burguesia que aspira ao poder e lutacontra o absolutismo dos reis, é possível des-cobrir no pensamento hobbesiano alguns ele-mentos que denotam os interesses burgueses.

Por exemplo, a doutrina do direito natu-ral do homem é uma arma apropriada para serutilizada contra os direitos tradicionais daclasse dominante, ou seja, a nobreza. Da mes-ma forma, a defesa da representatividade ba-seada no consenso significa a aspiração de queo poder não seja privilégio de classe. Alémdisso, o Estado surge de um contrato, o querevela o caráter mercantil, comercial, das re-lações sociais burguesas. O contrato surge apartir de uma visão individualista do homem,pois, de acordo com essa concepção, o indiví-duo preexiste ao Estado (se não cronológica,

pelo menos logicamente), e o pacto visa ga-rantir os interesses dos indivíduos, sua con-servação e sua propriedade. Se no estado denatureza "não há propriedade, nem domínio,nem distinção entre o meu e o teu", no Estadode soberania perfeita a liberdade dos súditosestá naquelas coisas que o soberano permitiu,"como a liberdade de comprar e vender, ou deoutro modo realizar contratos mútuos; de cadaum escolher sua residência, sua alimentação,sua profissão, e instruir seus filhos conformeachar melhor, e coisas semelhantes". Portan-to, o Estado se reduz à garantia do conjuntodos interesses particulares.

Nessa linha de raciocínio, o professorMacpherson desenvolveu a teoria segundo aqual o contrato surge como decorrência daatribuição de uma qualidade possessiva aohomem que, por natureza, tem medo da mor-te, anseia pelo viver confortável e pela segu-rança e é movido pelo instinto de posse e de-sejo de acumulação.

Segundo Macpherson, a qualidade pos-sessiva do individualismo do século XVII "seencontra na sua concepção do indivíduo comosendo essencialmente o proprietário de suaprópria pessoa e de suas próprias capacidades,nada devendo à sociedade por elas. (...) A so-ciedade torna-se uma porção de indivíduos li-vres e iguais, relacionados entre si como pro-prietários de suas próprias capacidades e doque adquiriram mediante a prática dessas ca-pacidades. A sociedade consiste de relaçõesde troca entre proprietários. A sociedade polí-tica torna-se um artifício calculado para a pro-teção dessa propriedade e para a manutençãode um ordeiro relacionamento de trocas"4.

Como vemos, mesmo que Hobbes de-fenda o Estado absoluto, já são perceptíveisem seu discurso alguns dos elementos quemarcarão o pensamento burguês e liberal daíem diante: o individualismo, a garantia dapropriedade e a preservação da paz e seguran-ça indispensáveis para os negócios.

5. Pensamentos divergentes

A noção de Estado moderno começa ase configurar mais claramente no Renasci-mento, tendo sido exaltado o Estado como

C. B. Macpherson, A teoria política do individualismo possessivo, p. 15.

212

potência plena desde Maquiavel até Hobbes,passando por Jean Bodin (1530-1596) e HugoGrócio (1583-1645). No entanto, outros auto-res elaboram um contradiscurso que denunciaos perigos do poder absoluto.

No século XVI, na obra A utopia,Thomas More critica de forma metafórica opoder arbitrário do rei inglês Henrique VIII.

Na França, nesse mesmo século,Etienne de La Boétie, em Discurso da servi-dão voluntária, antecipa questões que serãocolocadas no século XX a propósito dos go-vernos totalitários. Perplexo, La Boétie se per-gunta pela razão que levaria o homem à obe-diência, à "servidão voluntária": "Gostariaapenas que me fizessem compreender como épossível que tantos homens, tantas cidades,tantas nações às vezes suportem tudo de umTirano só, que tem apenas o poderio que lhe

dão, que não tem o poder de prejudicá-los se-não enquanto aceitam suportá-lo, e que nãopoderia fazer-lhes mal algum se não preferis-sem, a contradizê-lo, suportar tudo dele".5

No século XVII, o holandês BaruchSpinoza desenvolve uma teoria política que secontrapõe à de Hobbes, por criticar o pacto:todo reconhecimento a um governo deve serprovisório e nada justifica que cada um renun-cie aos poderes individuais.

Para Spinoza, a sociedade civil que re-sulta da união de todos deve ser a que darámaior poder a todos, cujas ações reguladaspelas leis e pelas assembléias poderão levar àpaz baseada na concórdia e não na simplessupressão das hostilidades pela intimidação.À noção de súdito passivo, Spinoza opõe a docidadão com liberdade para pensar e agir.

Exercícios

1. a) O que são as teorias contratualistas?b) Qual é a importância que elas assumem

na Idade Moderna?c) Em que medida as teorias contratualistas

representam o interesse de secularização do poder?

2. Que tipo de soberania decorre do contratohobbesiano?

3. Segundo Macpherson, quais são as carac-terísticas burguesas do pensamento hobbesiano?

4. Leia o texto complementar seguinte e res-ponda:

a) A partir dos fragmentos 1 e 2, o que carac-teriza o estado de natureza para Hobbes e qual anecessidade do contrato?

b) Identifique no fragmento 3 a passagem emque o poder absoluto não precisa ser necessaria-mente monárquico.

c) A partir dos fragmentos 4 a 7, identifique ocaráter absoluto do poder do soberano.

Texto complementar

Leviatã

1

Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo detodo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outrasegurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria intenção. Numa talsituação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; conseqüentemente não há cultivo daterra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há constru-ções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força;não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há socie-dade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homemé solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.

Etienne de La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1982, p. 74.

213

2

Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distin-ção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenasenquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente seencontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que emparte reside nas paixões, e em parte em sua razão.

As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelascoisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do traba-lho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar aacordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chamam leis da natureza (...)

3

O acordo vigente entre essas criaturas [abelhas e formigas] é natural, ao passo que o dos ho-mens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que sejanecessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ouseja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefíciocomum.

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos es-trangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que,mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, éconferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suasdiversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar umhomem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reco-nhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar oulevar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assimsuas vontades à vontade do representante, e suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que consen-timento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizadapor um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homemdissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando demaneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa sechama Estado, em latim civitas. É a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termosmais reverentes) daquele Deus Mortal ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa.Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso detamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todoseles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É neleque consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos umagrande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um comoautora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conve-niente, para assegurar a paz e a defesa comum.

Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder sobera-no. Todos os restantes são súditos.

4

Aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer comoseus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto nosentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença.

5

Se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa,será o autor de seu próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer.

214

6

Dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído,segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos,e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridadede um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo. Por estainstituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüênciaaquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que elepróprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio, e não pode acusar-se a sipróprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do podersoberano podem cometer iniqüidades, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentidopróprio.

7

Mas tal como os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através disso sua própria conserva-ção, criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram cadeias artifi-ciais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam numa das pon-tas à boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano, e na outra ponta aseus próprios ouvidos. Embora esses laços por sua própria natureza sejam fracos, é no entanto possí-vel mantê-los, devido ao perigo, se não pela dificuldade de rompê-los.

É unicamente em relação a esses laços que vou agora falar da liberdade dos súditos. Dado queem nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações epalavras dos homens (o que é uma coisa impossível), segue-se necessariamente que em todas asespécies de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão de cadaum sugerir, como o mais favorável a seu interesse. Porque tomando a liberdade em seu sentidopróprio, como liberdade corpórea, isto é, como liberdade das cadeias e prisões, torna-se inteiramenteabsurdo que os homens clamem, como o fazem, por uma liberdade de que tão manifestamente des-frutam. Por outro lado, entendendo a liberdade no sentido de isenção das leis, não é menos absurdoque os homens exijam, como fazem, aquela liberdade mediante a qual todos os outros homens po-dem tornar-se senhores de suas vidas. Apesar do absurdo em que consiste, é isto que eles pedem,pois ignoram que as leis não têm poder algum para protegê-los, se não houver uma espada nas mãosde um homem, ou homens, encarregados de pôr as leis em execução. Portanto a liberdade dos súdi-tos está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu: como a liberdade decomprar e vender, ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua residência,sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme achar melhor, e coisas semelhantes.

Não devemos todavia concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder sobera-no de vida e de morte. Porque já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a umsúdito pode, sob qualquer pretexto, ser propriamente chamado injustiça ou injúria.

(Hobbes, Leviatã, Col. Os pensadores, p. 80, 81, 109, 111, 113 e 134-135.)

215

PRIMEIRA PARTE — O que é liberalismo

"Nós temos por testemunho as seguintes verdades: todos os homens são iguais: foram aquinhoados peloseu Criador com certos direitos inalienáveis e entre esses direitos se encontram o da vida, da liberdade e dabusca da felicidade.

Os governos são estabelecidos pelos homens para garantir esses direitos, e seu justo poder emana doconsentimento dos governados.

Todas as vezes que uma forma de governo torna-se destrutiva desses objetivos, o povo tem o direito demudá-lo ou de abolir, e estabelecer um novo governo, fundando-o sobre os princípios e sobre a forma que lhepareça a mais própria para garantir-lhe a segurança e a felicidade."

(Trecho da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, reflexo na Américados ideais liberais iniciados pela Revolução Gloriosa em 1688, na Inglaterra)

1. A história

No século XVII, enquanto o absolutis-mo triunfa na França, a Inglaterra sofre as re-voluções lideradas pela burguesia, que visamlimitar a autoridade dos reis. A primeira foi aRevolução Puritana, em meados do século emquestão, culminando com a execução do reiCarlos I e a ascensão de Cromwell. Mas a li-quidação do absolutismo se dá mesmo com aRevolução Gloriosa, em 1688, quando Gui-lherme III é proclamado rei, após ter aceito aDeclaração de Direitos que limitava muito suaautoridade e dava mais poderes ao parlamen-to. Ficava, portanto, o poder executivo subor-dinado ao legislativo.

As conquistas burguesas exigem do reia convocação regular do parlamento, sem oqual ele não pode fazer leis ou revogá-las, co-brar impostos ou manter um exército. Institui-se ainda o habeas corpus a fim de evitar asprisões arbitrárias; a partir de então, nenhumcidadão pode ficar preso indefinidamente semser acusado diante dos tribunais, a não ser pormeio de denúncia bem-definida.

Tais idéias subvertem as concepçõespolíticas no século XVII e XVIII. No NovoMundo, os movimentos de emancipação dascolônias são bem-sucedidos, como a Inde-pendência dos Estados Unidos (1776), en-quanto outros são violentamente reprimidos,como as Conjurações Mineira (1789) e Baiana(1798), ambas no Brasil. Na Europa, o grandeacontecimento é a Revolução Francesa(1789), que, representando a luta contra osprivilégios da nobreza e na defesa dos princí-pios de "igualdade, liberdade e fraternidade",depõe a dinastia real dos Bourbon.

2. As idéias

Afinal, que idéias novas são essas?Na linguagem comum costumamos

chamar de liberal ao homem generoso, tantono sentido de não controlar gastos, como nosentido de não-autoritário. Chamamos tam-bém de profissões liberais as atividades de

216

O PENSAMENTOLIBERAL

CAPÍTULO 22

médicos, dentistas, advogados, quando tra-balham por conta própria. Essa expressãoderiva da antiga classificação das artes libe-rais, designando as atividades de homens li-vres, distintas dos ofícios manuais própriosde escravos.

No entanto, aqui não nos interessam taissignificados da palavra liberal, mas sim aque-les que indicam o conjunto de idéias éticas,políticas e econômicas da burguesia que seopunha à visão de mundo da nobreza feudal.

Já nos referimos a algumas dessas trans-formações no capítulo anterior, quando trata-mos da formação do Estado nacional e do es-forço feito para tornar a política secular, laica,desligada dos interesses da religião. Mas seem um primeiro momento a formação das mo-narquias nacionais necessitava do Estado for-te — o que de certa forma justificou o absolu-tismo real — a burguesia reivindicou sua pró-pria autonomia quando se sentiu suficiente-mente fortalecida.

O pensamento burguês busca a separa-ção entre Estado e sociedade enquanto con-junto das atividades particulares dos indiví-duos, sobretudo as de natureza econômica. Oque se quer é separar definitivamente o públi-co do privado, reduzindo ao mínimo a inter-venção do Estado na vida de cada um. Poroutro lado, essa separação deveria reduzirtambém a interferência do privado no públi-co, já que o poder procura outra fonte de legi-timidade que não seja a tradição e as linha-gens de nobreza.

Podemos nos referir ao liberalismo éti-co, enquanto garantia dos direitos individuais,tais como liberdade de pensamento, expressãoe religião, o que supõe um estado de direitoem que sejam evitados o arbítrio, as lutas reli-

giosas, as prisões sem culpa formada, a tortu-ra, as penas cruéis.

O liberalismo político constitui-se so-bretudo contra o absolutismo real, buscandonas teorias contratualistas as formas delegitimação do poder, não mais fundado nodireito divino dos reis nem na tradição e he-rança, mas no consentimento dos cidadãos. Adecorrência dessa forma de pensar é o aper-feiçoamento das instituições do voto e da re-presentação, a autonomia dos poderes e a con-seqüente limitação do poder central. Veremosque as formas do liberalismo mudam com otempo, começando de maneira muito elitista(restrita aos homens de posse) e ampliando-sea partir de pressões externas.

O liberalismo econômico se opôs ini-cialmente à intervenção do poder do rei nosnegócios, que se dava por meio de procedi-mentos típicos da economia mercantilista taiscomo a concessão de monopólios e privilé-gios. Os primeiros a se insurgirem contra ocontrole da economia foram os fisiocratas,cujo lema era "laissez-faire, laissez-passer, lemonde va de lui-même " ("deixai fazer, deixaipassar, que o mundo anda por si mesmo").Tais idéias são desenvolvidas pelos economis-tas ingleses Adam Smith (1723-1790) e DavidRicardo (1772-1823). O que se pretendia eraa defesa da propriedade privada dos meios deprodução e a economia de mercado, baseadana livre iniciativa e competição. O Estadomínimo, ou seja, o Estado não-intervencionistaé considerado possível porque o equilíbriopode ser alcançado pela lei da oferta e da pro-cura. Veremos mais adiante, no Capítulo 26(Liberalismo e socialismo hoje), que nemsempre foi possível manter o Estado afastadodo controle da economia.

Exercícios

1. Faça um levantamento das principaisidéias do texto.

2. Em que sentido as revoluções Gloriosa e Fran-cesa podem ser chamadas de revoluções burguesas?

3. Que mudanças na política e na economia

feudais eram necessárias para implantar a nova or-dem burguesa?

4. O liberalismo tem como característica acrescente preocupação com a individualidade. Ex-plique como isto acontece nas formas do liberalis-mo ético, político e econômico.

217

SEGUNDA PARTE — Locke

Sendo os homens por natureza todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de suapropriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude daqual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste emconcordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto epaz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior prote-ção contra quem quer que não faça parte dela.

(Locke)

1. Introdução

John Locke (1632-1704), filósofo inglês,era médico e descendia de uma família de bur-gueses comerciantes. Esteve refugiado naHolanda, por ter-se envolvido com pessoasacusadas de conspirar contra o rei Carlos II.Retornou à Inglaterra no mesmo navio em queviajava Guilherme de Orange, símbolo da con-solidação da monarquia parlamentar inglesa.

Locke teve papel importante na discus-são sobre a teoria do conhecimento, tema pri-vilegiado do pensamento moderno a partir deDescartes. A respeito desse assunto escreveuEnsaio sobre o entendimento humano, ondedefende a teoria empirista. (Ver Terceira Par-te do Capítulo 10 — Teoria do conhecimen-to.) Com a obra Dois tratados sobre o gover-no civil, tornou-se o teórico da revolução li-beral inglesa, cujas idéias iriam fecundar todoo século XVIII, dando fundamento filosóficoàs revoluções ocorridas na Europa e nas Amé-ricas.

2. Estado de natureza e contrato

Assim como Hobbes e posteriormenteRousseau, Locke parte da concepção indivi-dualista, pela qual os homens isolados no es-tado de natureza se uniram mediante contra-to social para constituir a sociedade civil. Por-tanto, apenas o pacto torna legítimo o poderdo Estado.

Mas, diferentemente de Hobbes, não vêno estado de natureza uma situação de guerrae egoísmo, o que nos leva a indagar por queos homens abandonariam essa situação dele-gando o poder a outrem. Para Locke, no esta-do natural cada um é juiz em causa própria;portanto, os riscos das paixões e da parciali-dade são muito grandes e podem desestabili-zar as relações entre os homens. Por isso, vi-sando a segurança e a tranqüilidade necessá-

rias ao gozo da propriedade, as pessoas con-sentem em instituir o corpo político.

O ponto crucial do pensamento deLocke é que os direitos naturais dos homensnão desaparecem em conseqüência desseconsentimento, mas subsistem para limitar opoder do soberano, justificando, em última ins-tância, o direito à insurreição: o poder é umtrust, um depósito confiado aos governantes —trata-se de uma relação de confiança —, e, seestes não visarem o bem público, é permitidoaos governados retirá-lo e confiá-lo a outrem.

3. Sociedade civil: ainstitucionalização do poder

A concepção de sociedade civil — ousociedade política, pois em Locke estes con-ceitos ainda não estão separados — represen-ta um aspecto progressista do pensamento li-beral, enquanto destaca a origem democráti-ca, parlamentar do poder político. Ou seja, opoder está fundamentado nas instituições po-líticas, e não no arbítrio dos indivíduos.

Por exemplo, na Idade Média transmi-tia-se por herança tanto a propriedade como opoder político: o herdeiro do rei, do conde, domarquês, recebia não só os bens como tam-bém o poder sobre os homens que viviam nasterras herdadas. Locke estabelece a distinçãoentre o público e o privado, que devem ser re-gidos por leis diferentes. Assim, o poder polí-tico não deve, em tese, ser determinado pelascondições de nascimento, bem como o Estadonão deve intervir, mas sim garantir e tutelar olivre exercício da propriedade, da palavra e dainiciativa econômica.

Enquanto Hobbes destacava a soberaniado poder executivo, Locke considera olegislativo o poder supremo, ao qual deve se

218

subordinar tanto o executivo quanto o poderfederativo (encarregado das relações exterio-res). Note-se que ainda nesse momento nãohavia sido desenvolvida a teoria da autonomiados três poderes, o que ocorrerá apenas comMontesquieu.

4. O conceito de propriedade

Locke usa o conceito de propriedadenum sentido muito amplo: "tudo o que per-tence" a cada indivíduo, ou seja, sua vida, sualiberdade e seus bens.

Como já observamos em Hobbes, en-contra-se também em Locke uma característi-ca que Macpherson chama de "individualis-mo possessivo", pelo qual "a essência huma-na é ser livre da dependência das vontadesalheias, e a liberdade existe como exercício deposse". Assim, a primeira coisa que o homempossui é o seu corpo; todo homem é proprie-tário de si mesmo e de suas capacidades. Otrabalho do seu corpo é propriamente dele;portanto, o trabalho dá início ao direito de pro-priedade em sentido estrito (bens, patrimô-nio). Isso significa que, na concepção deLocke, todos são proprietários: mesmo quemnão possui bens é proprietário de sua vida, deseu corpo, de seu trabalho.

Entretanto, essa colocação ampla feitapor Locke leva a certas contradições, pois odireito à ilimitada acumulação de propriedadeproduz logicamente um desequilíbrio na so-

ciedade, criando um estado de classes queLocke dissimula — involuntariamente, é ver-dade — num discurso que se apresenta comum caráter universal.

Quando se refere a todos os cidadãos,considerando-os igualmente proprietários, odiscurso contém uma ambigüidade que não seresolve, pois ora identifica a propriedade àvida, liberdade e posses, ora a bens e fortunaespecificamente. O que se conclui é que, setodos, tendo bens ou não, são consideradosmembros da sociedade civil, apenas os quetêm fortuna podem ter plena cidadania, porduas razões: "apenas esses [os de fortuna] têmpleno interesse na preservação da proprieda-de, e apenas esses são integralmente capazesde vida racional — aquele compromisso vo-luntário para com a lei da razão — que é abase necessária para a plena participação nasociedade civil. A classe operária, não tendofortunas, está submetida à sociedade civil,mas dela não faz parte. (...) A ambigüidadecom relação a quem é membro da sociedadecivil em virtude do suposto contrato originalpermite que Locke considere todos os homenscomo sendo membros, com a finalidade deserem governados, e apenas os homens de for-tuna para a finalidade de governar"1.

Ressalta-se aí o elitismo que persiste naraiz do liberalismo, já que a igualdade defen-dida é de natureza abstrata, geral e puramenteformal; não há possibilidade de igualdadereal, quando só os proprietários têm plena ci-dadania.

Exercícios

1. Dê as características da teoria contratualistade Locke.

2. Segundo Locke, que tipo de soberania de-corre do contrato? Qual é a relação entre o executi-vo e o legislativo?

3. Qual é o sentido amplo do conceito de pro-priedade para Locke?

4. Por que se pode dizer que o liberalismo deLocke é elitista?

5. Estabeleça as diferenças e semelhanças en-tre Hobbes e Locke no que se refere aos conceitosde estado de natureza, contrato social e soberania.

6. Leia a citação de Locke escolhida comoepígrafe da Segunda Parte deste capítulo e identifi-que as características do liberalismo.

7. "Poderão afirmar que, sendo a idolatria umpecado, não pode ser tolerada. Se disserem que aidolatria é um pecado e, portanto, deve ser escru-pulosamente evitada, esta inferência é correta; masnão será correta se disserem que é um pecado e,

C. B. Macpherson, A teoria política do individualismo possessivo, p. 260.

219

Texto complementar

Segundo tratado sobre o governo

1

Se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto da suaprópria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito, por que abrirá ele mão dessa liberdade,por que abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao domínio e controle de qualquer outro poder? Aoque é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do mesmo émuito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tantoquanto ele, todo homem igual a ele, na maior parte pouco observadores da eqüidade e da justiça, afruição da propriedade que possui neste estado é muito insegura, muito arriscada. Estas circunstân-cias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos cons-tantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que estão jáunidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a quechamo de "propriedade".

O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidades, colocando-seeles sob governo, é a preservação da propriedade. Para este objetivo, muitas condições faltam noestado de natureza:

Primeiro, falta uma lei estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante consenti-mento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvér-sias entre os homens; porque, embora a lei da natureza seja evidente e inteligível para todas ascriaturas racionais, entretanto os homens, sendo desviados pelo interesse bem como ignorantes delaporque não a estudam, não são capazes de reconhecê-la como lei que os obrigue nos seus casosparticulares.

Em segundo lugar, no estado de natureza falta um juiz conhecido e indiferente com autoridadepara resolver quaisquer dissensões, de acordo com a lei estabelecida; porque, sendo cada homem,nesse estado, juiz e executor da lei da natureza, sendo os homens parciais para consigo, a paixão e avingança podem levá-los a exceder-se nos casos que os interessam, enquanto a negligência e a indi-ferença os tornam por demais descuidados nos casos de terceiros.

2

Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre a sua própria base e atuando de acordocom a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da comunidade, somente possaexistir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo mais deve ficar subordinado, contudo,sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabeainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar queage contrariamente ao encargo que lhe confiaram. Porque, sendo limitado qualquer poder concedidocomo encargo para conseguir-se certo objetivo, por esse mesmo objetivo, sempre que se despreza oucontraria manifestamente esse objetivo, a ele se perde o direito necessariamente, e o poder retorna àsmãos dos que o concederam, que poderão colocá-lo onde o julguem melhor para garantia e seguran-ça próprias.

portanto, deve ser punida pelo magistrado. Nãocabe nas funções do magistrado punir com leis ereprimir com a espada tudo o que acredita ser umpecado contra Deus." Qual é a característica do li-beralismo que se encontra nesta citação de Locke?

8. Leia o texto complementar e responda:a) Como Locke justifica o abandono do esta-

do de natureza?

b) Quais são os poderes e as limitações dolegislativo?

9. Leia o fragmento 5, de Locke, e relacionecom a história do Brasil, explicando em que medi-da os Atos Institucionais do tempo da ditadura mi-litar (década de 60-70) contrariavam os preceitosliberais.

220

3

O poder executivo, colocado em qualquer lugar menos em alguém que também tenha parte nolegislativo, é visivelmente subordinado e por ele responsável.

4

Não é necessário, tampouco conveniente, que o poder legislativo esteja sempre reunido; mas éabsolutamente necessário que o poder executivo seja permanente, visto como nem sempre há neces-sidade de elaborar novas leis, mas sempre existe a necessidade de executar as que foram feitas.Quando o legislativo entregou a execução das leis que fez a outras mãos, ainda tem o poder deretomá-la, se houver motivo, e de castigar por qualquer má administração contra as leis.

5

Neste ponto pode perguntar-se que acontecerá se o poder executivo, sendo senhor da força dacomunidade, a empregar para impedir a reunião e ação do legislativo, conforme o exigirem a consti-tuição original ou as necessidades do povo? Digo empregar a força sobre o povo sem autoridade, econtrariamente ao encargo confiado a quem assim procede, constitui estado de guerra com o povo,que tem o direito de restabelecer o poder legislativo no exercício dos seus poderes; porquanto, tendoinstituído um poder legislativo com a intenção de que exercesse o poder de elaborar leis, ou emcertas épocas fixadas ou quando delas houvesse necessidade, se qualquer força o impedir de fazer oque é necessário à sociedade, de que depende a segurança e a preservação desta, o povo tem o direitode removê-la pela força. Em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio contra a força semautoridade é opor-lhe a força. O emprego da força sem autoridade coloca sempre quem dela faz usonum estado de guerra, como agressor, e sujeita-o a ser tratado da mesma forma.

(Locke, Segundo tratado sobre o governo, Col. Os pensadores, p. 88, 99, 100 e 101.)

TERCEIRA PARTE — Montesquieu

A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.

Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.

(Montesquieu)

1. O Iluminismo

O século XVIII é marcado pelo conjun-to de idéias do movimento conhecido comoIlustração que se espalha por toda a Europa(ver na Terceira Parte do Capítulo 10). A ex-plosão das "luzes" foi preparado nos séculosanteriores com o racionalismo cartesiano, arevolução científica, o processo de laicizaçãoda política e da moral.

Segundo Kant, um dos mais notáveisrepresentantes da Aufklãrung alemã, o ho-mem iluminista atingiu a maioridade e, comodono de si mesmo, confia na sua capacidade

racional e recusa qualquer autoridade arbitrá-ria. Exalta a ciência e deposita esperança natécnica, instrumento capaz de dominar a natu-reza. Seu otimismo transparece na convicçãode que a razão é fonte de progresso material,intelectual e moral, o que leva à crença e con-fiança na perfectibilidade do homem. Em sín-tese, pela razão universal o homem teria acessoà verdade e à felicidade.

A difusão dessas idéias na França foi fa-cilitada pela ampla produção intelectual dos fi-lósofos conhecidos como enciclopedistas, tais

221

como Diderot, D'Alembert, Voltaire e outros,embora, politicamente, a França se encontras-se atrasada com relação aos avanços do libera-lismo inglês, justificado teoricamente pela dou-trina de Locke e levado a efeito pela Revolu-ção Gloriosa ainda em fins do século XVII.

O absolutismo da dinastia Bourbon per-dura na França até 1789, data da Revolução.Por isso, durante praticamente todo o séculoXVIII, os franceses visitam a Inglaterra paraadmirar suas instituições e elogiar a liberdadede consciência reinante.

2. Autonomia dos poderes

Montesquieu (1689-1755) nasceu pertode Bordéus, na França. Filho de família no-bre, o seu nome era Charles-Louis deSecondat, barão de Ia Brède e posteriormentebarão de Montesquieu.

Teve formação iluminista com os padresoratorianos, de modo que cedo se mostrou umcrítico severo e irônico da monarquia absolu-tista decadente, bem como do clero. Em Car-tas persas, obra de sua juventude, satiriza o rei,o papa e a sociedade francesa do seu tempo.

Sua obra mais importante é O espíritodas leis, onde discute a respeito das institui-ções e das leis, e busca compreender a diver-sidade das legislações existentes em diferen-tes épocas e lugares. A pertinência das obser-vações e a preocupação com o método permi-tem encontrar em seu trabalho elementos queprenunciam uma análise sociológica.

Ao procurar descobrir as relações que asleis têm com a natureza e o princípio de cadagoverno, Montesquieu desenvolve uma alen-tada teoria do governo que alimenta as idéias

fecundas do constitucionalismo, pelo qual sebusca distribuir a autoridade por meios legais,de modo a evitar o arbítrio e a violência.

Tais idéias se encaminham para a me-lhor definição da separação dos poderes, ain-da hoje uma das pedras angulares do exercí-cio do poder democrático. Refletindo sobre oabuso do poder real, Montesquieu conclui que"só o poder freia o poder", daí a necessidadede cada poder — executivo, legislativo e ju-diciário — manter-se autônomo e constituídopor pessoas diferentes.

É bem verdade que a proposta da divi-são dos poderes ainda não se encontra emMontesquieu com a força que costumou-seposteriormente atribuir-lhe. Em outras passa-gens de sua obra, Montesquieu não defendeuma separação tão rígida, pois o que ele pre-tendia de fato era realçar a relação de forças ea necessidade de equilíbrio e harmonia entreos três poderes.

Embora seu pensamento tenha sidoapropriado pelo liberalismo burguês, as con-vicções de Montesquieu se referem aos inte-resses de sua classe e portanto o aproximamdos ideais de uma aristocracia liberal. Ouseja, ele critica toda forma de despotismo, masprefere a monarquia moderada e não aprecia aidéia de o povo assumir o poder.

Aliás, com exceção de Rousseau — cujaanálise faremos a seguir —, o pensamento li-beral do século XVIII permanece censitário eportanto elitista. Mesmo para o ideal republi-cano de Kant, "o empregado doméstico, o bal-conista, o trabalhador, ou mesmo o barbeironão são membros do Estado, e assim não sequalificam para ser cidadãos". É preciso es-perar o século XIX para ver alterações nessatendência.

Exercícios

1. Em que sentido a Inglaterra do séculoXVIII tornou-se um modelo para a França?

2. Quais são as diferenças e semelhanças en-tre Locke e Montesquieu?

3. "Para que não se possa abusar do poder épreciso que, pela disposição das coisas, o poder

freie o poder." Explique o significado dessa cita-ção de Montesquieu. E discuta também a atualida-de dessa afirmação.

4. Leia os textos complementares e expliqueem que consiste a liberdade política para Montes-quieu. Relacione com o ideal de constitucio-nalismo.

222

Textos complementares

IO que é a liberdade

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política nãoconsiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistirsenão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se devedesejar.

Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é odireito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem,não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder.

II[Os três poderes]

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunidoao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmosenado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo edo executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cida-dãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz pode-ria ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, oudo povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o dejulgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.

(Montesquieu, Do espírito das leis, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973,p. 155-156 ep. 157.)

QUARTA PARTE — Rousseau e a democracia direta

O homem nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros.

Toda nossa sabedoria consiste em preconceitos servis; todos os nossos usos são apenas sujeição, coaçãoe constrangimento. O homem nasce, vive e morre na escravidão: ao nascer cosem-no numa malha; na suamorte pregam-no num caixão: enquanto tem figura humana é encadeado pelas nossas instituições.

Eu senti antes de pensar.

Observai a natureza e segui o caminho que ela vos traça. Ela exercita continuamente as crianças; endu-rece o seu temperamento com provas de toda espécie, e ensina-lhes, muito cedo, o que é uma dor e o que é umprazer.

(Rousseau)

223

1. Introdução

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), fi-lho de um relojoeiro de poucas posses, nasceuem Genebra (Suíça) e viveu a partir de 1742em Paris, onde fervilhavam as idéias liberaisque culminariam na Revolução Francesa(1789).

Desde o primeiro momento em que sefaz conhecer à intelectualidade francesa,Rousseau surpreende: ganha o prêmio ofere-cido pela Academia de Dijon ao discorrer so-bre o tema O restabelecimento das ciências edas artes terá contribuído para aprimorar os

costumes?, respondendo pela negativa. Issosignifica que não via com otimismo o desen-volvimento da técnica e do progresso, posi-ção que é no mínimo polêmica, se lembrar-mos que Rousseau vive em pleno Iluminismoe, portanto, entre homens confiantes no poderda razão humana para construir um mundomelhor (ver Terceira Parte do Capítulo 10).

Fez amizade com Diderot, filósofo dogrupo iluminista do qual participavamVoltaire, D'Alembert, D'Holbach, e que setornaram conhecidos como enciclopedistaspor terem elaborado a Enciclopédia ou Dicio-nário racional das ciências, das artes e dosofícios, que divulgava os novos ideais: tole-rância religiosa, confiança na razão livre, opo-sição à autoridade excessiva, naturalismo, en-tusiasmo pelas técnicas e pelo progresso.Rousseau é convidado a escrever os verbetessobre música — sua paixão anterior à filoso-fia —, mas sempre foi elemento destoante,pois divergia em muitos aspectos do pensa-mento iluminista, e teve, inclusive, sérios atri-tos com Voltaire.

Precursor do romantismo, Rousseau va-loriza demasiadamente o sentimento, numambiente sobremaneira racionalista. Semprefoi um apaixonado, e a forma como expõesuas idéias revela a carga emocional derivadade uma sensibilidade exacerbada. Os leitoresdeixam-se contagiar por esse espírito agitado,

e um de seus admiradores foi Robespierre, re-presentante do setor mais radical e democráti-co da Revolução Francesa e que, contradito-riamente, instaurou o Terror.

As principais idéias políticas deRousseau estão nas obras Discurso sobre aorigem e os fundamentos da desigualdade en-tre os homens e Do contrato social.

Espírito contraditório, elaborou as basesda pedagogia moderna com a obra Emílio,mas entregou seus cinco filhos a um orfanato.

2. O estado de natureza

Assim como seus antecessores Hobbese Locke, Rousseau procura resolver a questãoda legitimidade do poder fundado no contratosocial. No entanto, sua posição é, num aspec-to, inovadora, na medida em que distingue osconceitos de soberano e governo, atribuindoao povo a soberania inalienável.

No Discurso sobre a origem da desi-gualdade Rousseau cria a hipótese dos ho-mens em estado de natureza, vivendo sadios,bons e felizes enquanto cuidam de sua própriasobrevivência, até o momento em que é cria-da a propriedade e uns passam a trabalhar paraoutros, gerando escravidão e miséria.

Rousseau parece demonstrar extremanostalgia do estado feliz em que vive o bom

Disputa entre Voltaire eRousseau. A cena se re-fere à conhecida animosi-dade entre os dois. Em-bora ambos pertençamao grupo dos enciclope-distas, Rousseau destacaa importância dos senti-mentos, desconfia daciência e recusa o racio-nalismo exacerbado dospensadores da Ilustra-ção. Voltaire não lhepoupa ácidas críticas.

224

selvagem, quando é introduzida a desigualda-de entre os homens, a diferenciação entre orico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhore o escravo e a predominância da lei do maisforte. O homem que surge da desigualdade écorrompido pelo poder e esmagado pela vio-lência.

Trata-se de um falso contrato, esse quecoloca os homens sob grilhões. Há que se con-siderar a possibilidade de outro contrato ver-dadeiro e legítimo, pelo qual o povo estejareunido sob uma só vontade.

3. O contrato social

O contrato social, para ser legítimo,deve se originar do consentimento necessa-riamente unânime. Cada associado se alienatotalmente, ou seja, abdica sem reserva de to-dos os seus direitos em favor da comunidade.Mas, como todos abdicam igualmente, na ver-dade cada um nada perde, pois "este ato deassociação produz, em lugar da pessoa parti-cular de cada contratante, um corpo moral ecoletivo composto de tantos membros quantossão os votos da assembléia e que, por essemesmo ato, ganha sua unidade, seu eu co-mum, sua vida e sua vontade"2.

Em outras palavras, pelo pacto o homemabdica de sua liberdade, mas sendo ele pró-prio parte integrante e ativa do todo social, aoobedecer à lei, obedece a si mesmo e, portan-to, é livre: "A obediência à lei que se estatuiua si mesma é liberdade". Isso significa que,para Rousseau, o contrato não faz o povo per-der a soberania, pois não é criado um Estadoseparado dele mesmo. Como isto é possível?

Soberano e governo

Mesmo quando cada associado se alienatotalmente em favor da comunidade, nada per-de de fato, pois, enquanto povo incorporado,mantém a soberania. Ou seja, soberano é, paraRousseau, o corpo coletivo que expressa, atra-vés da lei, a vontade geral. A soberania dopovo, manifesta pelo legislativo, é inalienável,ou seja, não pode ser representada. A democra-cia rousseauísta considera que toda lei não-ratificada pelo povo em pessoa é nula.

Por isso, o ato pelo qual o governo é ins-tituído pelo povo não submete este àquele. Aocontrário, não há um "superior", já que os de-positários do poder não são senhores do povo,mas seus oficiais, podendo ser eleitos ou des-tituídos conforme a conveniência. Os magis-trados que constituem o governo estão su-bordinados ao poder de decisão do soberano eapenas executam as leis, devendo haver inclu-sive boa rotatividade na ocupação dos cargos.

Rousseau preconiza, portanto, a demo-cracia direta ou participativa, mantida pormeio de assembléias freqüentes de todos oscidadãos.

Enquanto soberano, o povo é ativo econsiderado cidadão. Mas há também umasoberania passiva, assumida pelo povo en-quanto súdito. Então, o mesmo homem, en-quanto faz a lei, é um cidadão e, enquanto aela obedece e se submete, é um súdito.

Além de inalienável, a soberania é tam-bém indivisível, pois não se pode tomar ospoderes separadamente.

A vontade geral

O soberano, sendo o povo incorporado,dita a vontade geral, cuja expressão é a lei. Oque vem a ser a vontade geral? É preciso an-tes fazer distinção entre pessoa pública (cida-dão ou súdito) e pessoa privada.

A pessoa privada tem uma vontade in-dividual que geralmente visa o interesseegoísta e a gestão dos bens particulares. Se so-marmos as decisões baseadas nos benefíciosindividuais, teremos a vontade de todos.

Mas cada homem particular tambémpertence a um espaço público, é parte de umcorpo coletivo com interesses comuns, ex-pressos pela vontade geral. Nem sempre o in-teresse de um coincide com o de outro, poismuitas vezes o que beneficia a pessoa privadapode ser prejudicial ao coletivo. Por isso, tam-bém não se pode confundir a vontade de to-dos com a vontade geral, pois a somatória dosinteresses privados pode ter outra naturezaque o interesse comum. Explicando melhor:"O interesse comum não é o interesse de to-dos, no sentido de uma confluência dos inte-resses particulares, mas o interesse de todos ede cada um enquanto componentes do corpo

- J.-J. Rousseau, Do contrato social, Col. Os pensadores, p. 39.

225

coletivo e exclusivamente nesta qualidade.Daí o perigo de predominar o interesse damaioria, pois se é sempre possível conseguir-se a concordância dos interesses privados deum grande número, nem por isso assim se es-tará atendendo ao interesse comum"3.

Encontra-se aí o cerne do pensamentode Rousseau, aquilo que o faz reconhecer nohomem um ser superior capaz de autonomia eliberdade, entendida esta como a superação detoda arbitrariedade, pois é a submissão a umalei que o homem ergue acima de si mesmo. Ohomem é livre na medida em que dá o livreconsentimento à lei. E consente por considerá-la válida e necessária. "Aquele que recusarobedecer à vontade geral a tanto será cons-trangido por todo um corpo, o que não signifi-ca senão que o forçarão a ser livre, pois é essaa condição que, entregando cada cidadão àpátria, o garante contra qualquer dependênciapessoal."4

4. Rousseau pedagogo

Assim como imagina um homem em es-tado de natureza — pura hipótese de um serprimitivo que nunca existiu historicamente —,Rousseau também cria, ao elaborar o esboçode uma pedagogia, a figura de Emílio, mode-lo que o ajuda a procurar aquilo que o homemé antes de ser homem. Tudo se passa nesseromance como se o homem natural fosse oideal que se submete à regra da educação.

Para não correr o risco de ser contami-nado por preconceitos, Emílio é educado porum preceptor à margem do contato perniciosoda sociedade, seguindo a ordem da próprianatureza, não a natureza do selvagem, mas averdadeira natureza que responde à vocaçãohumana.

A educação começa pelo desenvolvi-mento das sensações, dos sentimentos, pois,antes da "idade da razão" (15 anos), existeuma "razão sensitiva". É preciso não abafaros instintos, os sentidos, as emoções, os senti-mentos que são anteriores ao próprio pensa-mento elaborado. A espontaneidade é valori-zada e não há castigos, pois a experiência é a

melhor conselheira. Por isso Rousseau não dávalor ao conhecimento livresco transmitido,pois quer que a criança aprenda a pensar porsi própria.

É assim que imagina Emílio chegandopor si só às noções de bem e mal e às concep-ções morais e religiosas, já que tratar de reli-gião antes do desenvolvimento suficiente darazão é correr o risco de idolatria.

Costuma-se dizer que Rousseau provocauma "revolução copernicana" na educação: talcomo Copérnico, que ao propor a teoria helio-cêntrica inverteu o centro do sistema astronômi-co, a concepção pedagógica rousseauísta não émagistrocêntrica, pois não é o mestre que seencontra no centro do processo educativo; esselugar é reservado à criança.

Para ele, não se educa a criança nempara Deus, nem para a vida em sociedade, massim para si mesma: "Viver é o que eu desejoensinar-lhe. Quando sair das minhas mãos, elenão será magistrado, soldado ou sacerdote, eleserá, antes de tudo, um homem".

5. Rousseau revolucionário?

A concepção política de Rousseau, comotodo pensamento liberal, é tramada contra o ab-solutismo, mas ultrapassa o elitismo de Locke epropõe uma visão mais democrática de poder.Sem dúvida, empolgou políticos comoRobespierre e até leitores como o jovem Marx.

Os aspectos avançados do pensamentode Rousseau estão no fato de denunciar a vio-lência daqueles que abusam do poder conferi-do pela propriedade, bem como por ter desen-volvido uma concepção mais democrática depoder, baseada na soberania popular e noconceito-chave de vontade geral.

Com isso, Rousseau representa já no seutempo a crítica ao modelo elitista do liberalis-mo e antecipa sob alguns aspectos as propos-tas de solução para as questões sociais queirão surgir no século XIX.

Mesmo assim, Rousseau ainda é filhodo seu tempo porque, ao partir da tese contra-tualista, de certa forma mantém a perspectivaindividualista do pensamento burguês; ao de-

3 Nota de rodapé de Gomes Machado, in J.-J. Rousseau, Do contrato social, Col. Os pensadores, p. 49. O grifo nacitação é nosso.

4 J.-J. Rousseau, Do contrato social, Col. Os pensadores, p. 42.

226

nunciar a violência como resultado da nature-za humana corrompida, mantém ainda a pers-pectiva de uma análise moral (e portanto pes-soal) de um fenômeno que os teóricos socia-listas a ele posteriores perceberão como resul-tante dos antagonismos sociais.

6. Conclusão

É bom lembrar que, mesmo para o pró-prio Rousseau, o projeto da democracia diretasó seria possível em uma sociedade de reduzi-das proporções. No entanto, isso não significaque suas idéias são desprezíveis e utópicas,porque sempre é possível combinar os meca-nismos da democracia representativa com al-guns recursos da democracia direta.

A professora Maria Victoria de Mes-quita Benevides, ao defender a implanta-ção da democracia semidireta, argumentaque "a maior parte das questões envolvi-das na polêmica democracia representati-va versus democracia direta é malposta,justamente porque traz implícita a alterna-tiva radical — ou uma ou outra — e nãoconsidera a possibilidade do sistema mis-to".5 No sistema misto da democraciasemidireta, os mecanismos típicos de de-mocracia direta atuariam como corretivosdas distorções da representação políticatradicional. Tais mecanismos são os con-selhos populares, assembléias, experiên-cias de autogestão e, na esfera do legisla-tivo, o plebiscito, o referendo e o projetode iniciativa popular.

Exercícios

1. Rousseau se refere a estado de natureza epacto social. Isso também aparece em Hobbes eLocke. Mostre as semelhanças e diferenças nessestrês autores:

a) Como é para cada um o estado de nature-za? Confira também o fragmento 1 do texto com-plementar I.

b) De que pacto se trata?c) Qual é o objetivo e o que visa garantir?d) Quais são as decorrências de cada um de-

les quanto à noção de soberania?

2. O que significa, para Rousseau, dizer que asoberania é inalienável?

3. Que distinção Rousseau estabelece entregoverno e soberano?

4. Qual é a diferença entre vontade geral evontade de todos?

5. Rousseau é um dos precursores da pedago-gia moderna. Que inovações ele propõe?

6. Que características do pensamento deRousseau o aproximam dos ideais iluministas equais o distanciam deles?

7. "A política foi, inicialmente, a arte de im-pedir as pessoas de se ocuparem do que lhes dizrespeito. Posteriormente, passou a ser a arte decompelir as pessoas a decidirem sobre aquilo deque nada entendem." (Paul Valéry)

A partir da citação de Valéry, responda àsquestões a seguir:

a) Referindo-se à história da política, expliquequais são as tendências indicadas na irônica frasede Valéry.

b) Essa desencantada observação pode ser re-lacionada com a afirmação corriqueira de que "opovo não sabe votar". Critique as duas frasesusando para tanto os conceitos aprendidos comRousseau.

As questões de 8 a 10 se referem aos textoscomplementares.

8. Indique e analise as passagens que carac-terizam o contratualismo no pensamento deRousseau.

9. Identifique o trecho que se refere ao idealda democracia direta.

10. Leia o fragmento 8 e responda:a) Sobre os conceitos "força" e "vontade": qual

deles é atribuído ao legislativo e qual ao executivo?b) Se o governo não é o soberano, quem o é?

'M. V. de M. Benevides, A cidadania ativa, São Paulo, Ed. Ática, 1991, p. 44.

227

Textos complementares

I

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

1

Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costu-rar com espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se com plumas e conchas, a pintar ocorpo com várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar com pedras agudasalgumas canoas de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de música — em uma palavra: en-quanto só se dedicavam a obras que um único homem podia criar e a artes que não solicitavam oconcurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por suanatureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde oinstante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil aum só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o tra-balho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se im-pôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem ecrescerem com as colheitas.

2O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lem-

brou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantoscrimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arran-cando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos de ouviresse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertencea ninguém!"

3Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas

forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da proprie-dade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de algunsambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.

(Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,Col. Os pensadores, p. 265, 270 e 275.)

II

Do contrato social

4

O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, nãodeixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la?Creio poder resolver esta questão. (...) A ordem social é um direito sagrado que serve de base a todosos outros. Tal direito, no entanto, não se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções.

5Em geral, são necessárias as seguintes condições para autorizar o direito de primeiro ocupante

de qualquer pedaço de chão: primeiro, que esse terreno não esteja ainda habitado por ninguém;segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele setome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura, únicos sinais de propriedadeque devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos.

228

6(...) uma observação que deverá servir de base a todo o sistema social: o pacto fundamental,

em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítimaaquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que, podendo ser desi-guais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por convenção e direito.

7Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode

alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por simesmo. O poder pode transmitir-se; não, porém, a vontade.

8Quando me dirijo a um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar,

que meus pés me levem até lá. Queira um paralítico correr e não o queira um homem ágil, ambosficarão no mesmo lugar. O corpo político tem os mesmos móveis. Distinguem-se nele a força e avontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela, de poder executivo. Nada nele se faz, nem sedeve fazer, sem o seu concurso. (...) Necessita, pois, a força pública de um agente próprio que areúna e ponha em ação segundo as diretrizes da vontade geral, que sirva à comunicação entre oEstado e o soberano, que de qualquer modo determine na pessoa pública o que no homem faz a uniãoentre a alma e o corpo. Eis qual é, no Estado, a razão do governo, confundido erroneamente com osoberano, do qual não é senão o ministro.

(Rousseau, Do contrato social, Col. Os pensadores, p. 28, 44, 45, 49 e 79.)

QUINTA PARTE — O liberalismo do século XIX

Cada um é o único guardião autêntico da própria saúde, tanto física, quanto mental e espiritual.

(Stuart Mill)

1. Introdução

No século XIX, as exigências democrá-ticas não eram apenas da nova classe dos bur-gueses, mas também dos operários, cujo nú-mero crescia consideravelmente, já que a Re-volução Industrial (século XVIII) aumentaraa concentração urbana. Os operários, orga-nizados em sindicatos e influenciados poridéias socialistas, exigem melhores condiçõesde trabalho.

As novas formas de organização demassa dão a tônica do pensamento político doséculo XIX, que pretende se configurar comoliberalismo democrático. O enfoque da liber-dade baseada na propriedade — caraterísticado liberalismo elitista dos séculos anterio-res — é desviado para a exigência de igual-dade, procurando estender a liberdade a umnúmero cada vez maior de pessoas por meioda legislação e de garantias jurídicas.

As reivindicações de igualdade se ma-nifestam das mais variadas formas:

• na defesa do sufrágio universal, am-pliação das formas de representação (partidos,sindicatos), pressões para reformas eleitorais;

• na exigência de liberdade de imprensa;• na implantação da escola elementar uni-

versal, leiga, gratuita e obrigatória, cuja luta setorna bem-sucedida na Europa e nos EUA.

No entanto, não há como negar queo liberalismo nasceu não-democrático, namedida em que sempre desconfiou dogoverno popular, sustentando o votocensitário pelo qual excluía do poder osnão-proprietários.

No século XIX podemos notar claramen-te os dois sentidos do movimento que até hojedilacera o pensamento liberal: a permanênciado liberalismo conservador que defende a li-berdade, mas não a democracia (ou seja, não éum liberalismo com aspirações igualitárias); eo liberalismo radical que, além da liberdade,defende a igualdade. É este último liberalismo

229

que, nas formas mais extremas, se aproxima,no século XX, das concepções do Estado debem-estar social e do socialismo liberal.

Os principais teóricos do liberalismo noséculo XIX foram:

• nos Estados Unidos — ThomasJefferson e Thomas Paine;

• na França — Tocqueville;• na Inglaterra — Jeremy Bentham,

James Mill e seu filho John Stuart Mill.

2. O liberalismo francês

Enquanto na Inglaterra e nos EstadosUnidos as instituições políticas e sociais con-solidam pacificamente os ideais liberais, aFrança passa no século XIX por experiênciasdifíceis e contraditórias, após a esperança de"liberdade, igualdade e fraternidade" repre-sentada pela Revolução Francesa. Afinal, ojacobinismo de Robespierre declaradamenteultrademocrático havia descambado no Ter-ror; depois disso houve a ascensão e queda deNapoleão Bonaparte, coroado imperador.Mais tarde, com Napoleão III, a França entrano Segundo Império, distanciando-se cadavez mais dos ideais democráticos. Era naturalque surgissem liberais conservadores, teme-rosos da tênue separação existente entre de-mocracia e tirania.

Alexis de Tocqueville (1805-1859),aristocrata de nascimento e conhecido comoo "Montesquieu do século XIX", soube anali-sar com lucidez espantosa as contradições doseu tempo. Visitou por um ano os EstadosUnidos, onde recolheu informações para suaobra mais famosa, Democracia na América.

Tocqueville tinha plena consciência deque a implantação da democracia era inevitá-vel, mas lastimava essa tendência que, segun-do ele, levaria ao risco da "tirania da maio-ria", a um nivelamento cuja conseqüência se-ria o despotismo e ao conformismo da opi-nião. A democracia faria prevalecer a força donúmero sobre a individualidade.

Tocqueville admitia claramente o des-prezo pelas classes médias, o que constituíaum traço aristocrático da visão de mundo da-quele nobre senhor de terras. Em uma anota-

ção pessoal exprimia: "Tenho pelas institui-ções democráticas uma preferência cerebral,mas sou aristocrata por instinto, e isto signifi-ca que desprezo e temo a multidão. Amo apai-xonadamente a liberdade, a legalidade, o res-peito pelos direitos, mas não a democracia"6.

O intelectual brasileiro José GuilhermeMerchior diz o que significa para Tocquevillea palavra democracia: "Algumas vezes, eleempregou o termo em seu sentido políticonormal, de um sistema representativo funda-do num amplo sufrágio. Mas, com mais fre-qüência, o empregou como um sinônimo parasociedade igualitária, coisa com que ele nãodesignava uma sociedade de iguais, mas umasociedade em que a hierarquia já não era a re-gra do princípio aceito de estrutura social".

3. O liberalismo inglês

Jeremy Bentham (1748-1832) é o fun-dador de uma escola chamada utilitarismo.Sofrendo a influência empirista, a teoria utili-tarista pretende ser um instrumento de reno-vação social, a partir de um método rigorosa-mente científico.

Bentham substitui a teoria do direito na-tural, típica dos filósofos contratualistas doséculo anterior, pela teoria da utilidade: o ci-dadão só deve obedecer ao Estado quando aobediência contribui para a felicidade geral.Critica as formas liberais que levam ao egoís-mo. Aliás, para ele, o objetivo da moral é ocontrole do egoísmo, e a virtude é o que am-plia os prazeres e diminui as dores, donde re-sulta uma "aritmética moral": é preciso fazerum cálculo entre duas ações para saber qualdelas reúne maior número de prazeres e me-nor quantidade de dores. Da mesma forma, ogoverno deve concordar com o princípio deutilidade, e sua finalidade é alcançar a felici-dade para um número maior de pessoas.

Por isso os objetivos do governo são:prover a subsistência, produzir a abundância,favorecer a igualdade e manter a segurança.Para tanto é necessário que haja eleições pe-riódicas, sufrágio livre e universal, liberdadede contrato.

Bentham também se tornou conhecidopor ter imaginado o Panopticon (que signifi-

' Apud J. Touchard, História das idéias políticas, v. 5, p. 100.

230

ca "ver tudo"), construção com uma torre decontrole central e um prédio cheio de janelasonde seriam confinadas pessoas que precisa-riam ser vigiadas constantemente, tais comoloucos, doentes, condenados, operários ou es-tudantes. Michel Foucault, filósofo francêscontemporâneo, em sua obra Microfísica dopoder1 identifica o projeto de Bentham ao pro-cesso iniciado na Idade Moderna pelo qual éconstituída a "sociedade disciplinar", baseadano controle e vigilância na fábrica, na escola,na prisão, no hospício, no exército, e que tãobem irá caracterizar a forma de poder pelaqual a burguesia exerce sua hegemonia.

John Stuart Mill (1806-1873) segue ini-cialmente a corrente utilitarista, na qual foiiniciado por seu pai, James Mill, mas a modi-fica profundamente, já que sofreu outras in-fluências, desde o positivismo de Comte aosocialismo de Saint-Simon.

Embora amigo e admirador de Tocque-ville, Stuart Mill desenvolve o liberalismo nalinha de aspiração democrática. Preocupa-secom o destino das massas oprimidas e defen-de a co-participação na indústria bem como arepresentação proporcional na política a fimde permitir a expressão das opiniões mino-

ritárias. Foi acirrado defensor da absoluta li-berdade de expressão, do pluralismo e da di-versidade, e considerava importante o debatedas teorias conflitantes.

Com a influência de sua mulher, HarrietTaylor, feminista e socialista, participou dafundação da primeira sociedade defensora dodireito de voto para as mulheres.

4. As contradições do século XIX

Embora as teorias liberais do séculoXIX, em comparação com as anteriores, re-presentem um avanço em direção às idéias deigualdade, surgem inúmeras contradições.Nem sempre a implantação das idéias liberaisconsegue conciliar os interesses econômicosaos aspectos éticos e intelectuais que essasmesmas teorias defendem.

Nos grandes centros da Europa, apesarda difusão das idéias democráticas, permane-cem sem solução questões econômicas e so-ciais que afligem a crescente massa de operá-rios: pobreza, jornada de trabalho de quatorzea dezesseis horas, mão-de-obra mal paga demulheres e crianças.

Stuart Mill participou dafundação de uma socie-dade defensora do direi-to de voto para as mulhe-res. Tal preocupação, en-tre outras, decorria do ca-ráter reformista do libera-lismo democrático do sé-culo XIX, que procuravaincorporar muitas dasidéias levantadas pelomovimento socialista.(Caricatura publicada narevista "Punch " em 1867,na Inglaterra.)

7 M. Foucault, Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 209 e 227.

231

Da mesma forma, a expansão do capita-lismo estimula as idéias imperialistas que justi-ficam a colonização da África e da Ásia e porisso os países europeus "democráticos" nãoquerem abrir mão do controle econômico e po-lítico sobre suas colônias. O próprio Stuart Millargumentava que a idéia de governo democrá-tico se ajustava apenas aos hábitos dos povosavançados, sobretudo os brancos.

No Brasil, os movimentos liberais na-quele período se restringem à luta pela libera-lização do comércio que deseja sacudir o jugodo monopólio. Mas permanece ainda a socie-dade escravista, a tradição das elites e o anal-

fabetismo, inclusive como condição para amanutenção do tipo de economia agrária.

A contrapartida do discurso liberal seráencontrada nas teorias socialistas, representa-das inicialmente pelos chamados socialistasutópicos e, depois, pelo socialismo científicode Marx e Engels, que, em 1848, publicaramo Manifesto comunista. Do mesmo modo, asInternacionais Operárias (a primeira é de1864) e a Comuna de Paris (1871) são reflexoda busca de uma nova ordem, distinta da or-dem estabelecida, e de um discurso que con-tenha a crítica ao Estado burguês.

Exercícios

1. Qual a diferença entre o panorama históri-co que marca o pensamento de Locke e o que mar-ca o pensamento liberal do século XIX?

2. Como as diferenças históricas referidas naprimeira questão refletem nas concepções políticasde Locke e Stuart Mill?

3. Compare Stuart Mill e Tocqueville, consi-derando a distinção entre as diversas concepçõesde liberalismo.

4. As duas frases a seguir são de Stuart Mill.Analise o significado delas, indicando inclusive porque são contraditórias.

"Cada um é o único guardião autêntico da pró-pria saúde, tanto física, quanto mental e espiritual."

"O despotismo é uma forma legítima de go-verno quando se está na presença de bárbaros, des-de que o fim seja o progresso deles e os meios se-jam adequados para sua efetiva obtenção."

232

O pensamento, o conceito de direito fez-se de repente valer e o velho edifício de iniqüidade não lhe poderesistir (...). Desde que o sol está no firmamento (...) não se tinha visto o homem (...) basear-se numa idéia econstruir segundo ela a realidade (...). Trata-se portanto de um soberbo nascer do sol. Todos os seres pensantescelebraram essa época. Reinou nesse tempo uma emoção sublime, o entusiasmo do espírito fez estremecer omundo, como se só nesse momento se tivesse chegado à verdadeira reconciliação do divino com o mundo.

1. Introdução

De que fala Friedrich Hegel (1770-1831) no texto em epígrafe? Relembra a Re-volução Francesa (1789), evento notável queocorreu quando ele tinha dezenove anos. NaAlemanha, acompanhou apaixonadamente osacontecimentos que marcaram um ponto deruptura da história: a derrocada do mundo feu-dal e o fortalecimento da ordem burguesa. Éesta a contradição dialética cuja resoluçãoHegel aponta como sendo a tarefa da Razão.

Sendo alemão, Hegel continuará viven-do essa contradição, na medida em que a Ale-manha se acha, de certa forma, ainda mergu-lhada na ordem feudal, estando politicamentedividida em diversos Estados não unificados.

Diz Roger Garaudy, marxista francês:"O método que elaborou para tentar vencer asdilacerações e as contradições do seu tem-po — a dialética idealista — só pode ser com-preendido a partir da experiência viva e dodrama vivido que suscitaram nele a exigênciafilosófica"1.

2. A dialética idealista

Como vimos na Terceira Parte do Capí-tulo 10 (Teoria do conhecimento), a filosofiade Hegel é uma filosofia do devir (do movi-

(Hegel)

mento, do vir-a-ser). Para compreender arealidade em constante processo, Hegel aban-dona a lógica tradicional, aristotélica, queconsidera inadequada para a explicação domovimento. Estabelece os princípios de umanova lógica: a dialética (se necessário, ver aSegunda Parte do Capítulo 9 — Instrumentosdo conhecimento). Segundo a dialética, todasas coisas e idéias morrem. Como diz Goethe:"Tudo o que existe merece desaparecer". Masessa força destruidora é também a força mo-triz do processo histórico.

O movimento da dialética se faz em trêsetapas: tese, antítese e síntese. A antítese é anegação da tese, e a síntese é a superação dacontradição entre tese e antítese.

Da abordagem dialética resulta um novoconceito de história. O presente é retomadocomo resultado de longo e dramático proces-so; a história não é a simples acumulação ejustaposição de fatos acontecidos no tempo,mas é resultado de verdadeiro engendramento,de um processo cujo motor interno é a contra-dição dialética.

Ao explicar o movimento gerador darealidade, Hegel desenvolve a dialética idea-lista: no sistema hegeliano, a racionalidade nãoé mais um modelo a se aplicar, "mas é o pró-prio tecido do real e do pensamento". O mundo

1 R. Garaudy, O pensamento de Hegel, p. 8.

HEGEL: A TEORIADO ESTADO

CAPÍTULO 23

233

é a manifestação da Idéia, "o real é racional e oracional é real". "A história universal nadamais é do que a manifestação da Razão."

No movimento dialético, a Razão passapor diversos graus, desde a natureza inorgâni-ca até as formas mais complexas da vida so-cial. Entre estas Hegel se refere ao Espíritoobjetivo, ou seja, o espírito exterior do homemenquanto expressão da vontade coletiva pormeio da moral, do direito, da política: o Espí-rito objetivo se realiza naquilo que se chamamundo da cultura.

Para Hegel, o Estado é uma das mais al-tas sínteses do Espírito objetivo. É o que ex-plicaremos a seguir.

3. A concepção de Estado

As teorias sobre o Estado foram desen-volvidas por Hegel na obra Filosofia do direi-to, onde critica a tradição jusnaturalista típicados filósofos contratualistas. Estes, ao elabo-rarem a hipótese do homem em estado de na-tureza, desenvolveram a concepção de que asociedade é composta por indivíduos isoladosque se reúnem, motivados por um pacto, a fimde formar artificialmente o Estado e garantir aliberdade individual e a propriedade privada.

Ao contrário das teorias contratualistas,a concepção hegeliana nega a anterioridadedos indivíduos, pois é o Estado que funda-menta a sociedade. Não é o indivíduo que es-colhe o Estado, mas sim é por ele constituído.Ou seja, não existe o homem em estado denatureza, pois o homem é sempre um indiví-duo social.

O Estado sintetiza, numa realidade co-letiva, a totalidade dos interesses contraditó-rios entre os indivíduos. Assim como a famí-lia é a síntese dos interesses contraditóriosentre seus membros, e a sociedade civil a sín-tese que supera as divergências entre as diver-sas famílias, o Estado representa a unidade fi-nal, a síntese mais perfeita que supera a con-tradição existente entre o privado e o público.No movimento dialético as esferas da famíliae da sociedade civil não devem ser entendidascomo formas anteriores ou exteriores ao Esta-do, pois na verdade só existem e se desenvol-vem no Estado.

Quando Hegel usa a expressão socieda-de civil, lhe dá um sentido novo, correspon-dente à esfera intermediária entre a família e

o Estado. A sociedade civil é o lugar das ati-vidades econômicas, e portanto, onde preva-lecem os interesses privados, sempre antagô-nicos entre si. Por isso mesmo é o lugar dasdiferenças sociais e conflituosas entre ricos epobres e da rivalidade dos profissionais entresi. Para superar as contradições que põem emperigo a coletividade, é preciso reconhecer asoberania do Estado. Nele, cada um tem a cla-ra consciência de agir em busca do bem cole-tivo, sendo, assim, por excelência, a esfera dosinteresses públicos e universais.

A importância do Estado na filosofiapolítica de Hegel levou a interpretações diver-sas, inclusive a de que ele teria sido o teóricodo absolutismo prussiano, o que, em últimaanálise, justificaria o Estado totalitário do sé-culo XX. Vários filósofos se insurgiram con-tra essa simplificação deformadora do seupensamento, desde o próprio Marx até o con-temporâneo Eric Weil.

Pelo menos até o momento histórico vi-vido por Hegel, a monarquia constitucionalrepresenta para ele a melhor forma de gover-no, a que melhor corresponde ao "espírito dotempo". Com ela não se corre o risco de pôr oindivíduo em primeiro plano, já que o domí-nio do monarca não é autônomo e indepen-dente, mas regido pelas leis e pelo bem doEstado. Isso seria possível pelo fato de a mo-narquia constitucional opor-se ao despotismo,não sendo, portanto, o governo de um só e ospoderes do Estado se encontrarem divididos eexercidos por diversos órgãos.

4. A influência da filosofiahegeliana

Hegel exerceu grande influência no de-senvolvimento do pensamento político poste-rior, e seus seguidores dividiram-se em doisgrupos opostos, denominados esquerda e di-reita hegeliana. Essa cisão foi provocada poruma querela de origem religiosa incitadapor David F. Strauss, teólogo e autor de Vidade Jesus, na interpretação do pensamentode Hegel.

Os da direita são os discípulos conser-vadores e mantêm a filosofia idealista do mes-tre; na política, defendem o estado prussianoe, na religião, seguem o luteranismo.

Os da esquerda transformam a filosofiaidealista em materialista; na política, defen-

234

dem a anarquia ou um regime socialista e, nareligião, são ateus ou anticristãos. Entre estesestão Feuerbach e, posteriormente, Marx eEngels, os quais, ao realizarem a inversão doidealismo hegeliano, assentam as bases domaterialismo dialético: "A dialética de Hegelfoi colocada com a cabeça para cima ou, di-zendo melhor, ela que se tinha apoiado exclu-

sivamente sobre sua cabeça, foi de novo re-posta sobre seus pés"2.

Outra divergência se encontra na con-cepção de Marx, para quem o Estado não re-presenta a síntese que superaria os interessescontraditórios da sociedade civil, mas estariaa serviço da classe dominante.

Exercícios

1. Que novo conceito de história deriva dasidéias de Hegel?

2. Em que a concepção de Estado hegelianadifere das teorias contratualistas?

3. Qual é a importância do Estado para Hegel?

4. Que caminhos surgem a partir de Hegel?

F. Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, in Marx-Engels, Antologia filosófica, Lisboa, Edi-torial Estampa, 1971, p. 136.

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A CRÍTICA AOESTADO BURGUÊS:

AS TEORIASSOCIALISTAS

PRIMEIRA PARTE — As idéias socialistas

Todos os homens têm igual direito à satisfação das suas necessidades e ao usufruto de todos os bens danatureza, e a sociedade deve consolidar esta igualdade.

(Babeuf)

1. Introdução

No século XVI, autores como ThomasMore (Utopia) e Campanella {Cidade do Sol)imaginam uma sociedade de iguais. No sécu-lo XVII, na Inglaterra, o movimento dosniveladores (levellers) — representado por ar-tífices e pequenos proprietários pertencentessobretudo ao exército de Cromwell — reivin-dica não propriamente a igualdade econômi-ca, mas o direito a qualquer cidadão de parti-cipar da lei por intermédio de seus repre-sentantes.

Na França do século XVIII, a grandemassa do povo que assegurou o êxito da Re-volução Francesa acha-se frustrada diante dapretensão da burguesia de exercer sozinha opoder. Surge então a primeira expressão fran-cesa de uma ideologia comunista, a deGracchus Babeuf, revolucionário que preten-dia derrubar o governo do Diretório e por issofoi executado.

A igualdade é o princípio fundamentaldo babovismo, e o Manifesto dos iguais é adenúncia do fosso que separa a igualdade for-mal — exaltada nas palavras de ordem daRevolução: "Liberdade, Igualdade, Fraterni-

dade" — e a inexistente igualdade real. Le-vando às últimas conseqüências a reivindica-ção de igualdade, o babovismo coloca a ques-tão, pela primeira vez, no terreno social.

A crítica à desigualdade continuará mo-bilizando teóricos e ativistas no século XIX,período em que as condições econômicascriam uma situação social jamais vista até en-tão, decorrente da expansão da economia, dapassagem à grande indústria e ao capitalismode monopólio e do nascimento das organiza-ções do proletariado.

As alterações vinham ocorrendo desdeo século anterior, quando a Revolução Indus-trial implantou o maquinismo, acelerando oprocesso de privatização dos meios de produ-ção, o confinamento do operário nas fábricase seu conseqüente assalariamento. Configura-se então, em todos seus contornos, a novaclasse do proletariado, submetida ao sistemahierárquico fabril e ao trabalho manual sepa-rado do trabalho intelectual.

As cidades incham com a massa de tra-balhadores mal acomodados em moradias pre-cárias e recebendo baixos salários em fábricas

CAPÍTULO 24

236

insalubres. A miséria, a jornada de trabalho ex-cessiva e a exploração da mão-de-obra infantilconfiguram um estado de injustiça social gera-dor de protestos e anseios de mudança.

Já vimos que mesmo a teoria liberalprecisou mudar, adaptando suas idéias às no-vas aspirações, como nos revela o pensamen-to de Stuart Mill. Mas as convicções burgue-sas são postas à prova pelas teorias socialis-tas e comunistas matizadas nas mais diver-sas interpretações da situação vivida naquelemomento e com diferentes propostas de mu-dança, desde as reformistas até as revolu-cionárias.

As críticas ao liberalismo resultam daconstatação de que a livre concorrência nãotrouxe o equilíbrio prometido, ao contrário,instaurou uma "ordem" injusta e imoral. Alémdisso, se o liberalismo clássico enfatizara a li-berdade individual, as novas teorias exigem aigualdade, não apenas formal, mas real, e con-trapõem ao individualismo o socialismo, pa-lavra que deve ter sido inventada na décadade 30 do século XIX.

À hierarquia das fábricas os operárioscontrapõem as organizações que negam opaternalismo e desenvolvem a luta para a for-mação da consciência de classe e emancipa-ção do proletariado. Sindicatos, conselhosoperários, comissões de fábrica, comitês degreve, jornais operários agitam o ambientesocial e político e desencadeiam movimentosde reivindicação.

Em 1864 é fundada em Londres a Asso-ciação Internacional dos Trabalhadores (AIT),que estimulou a realização de congressos emdiversos países visando à luta pelos interessesda classe operária. De formação pluralista, aPrimeira Internacional teve a atuação de gen-te como Marx, Bakunin, Proudhon, Blanqui(os partidários deste último instauraram aComuna de Paris em 1871).

2. O socialismo utópico

As teorias que aparecem no século XIXsão classificadas por Marx e Engels como so-cialismo utópico. A elas irão contrapor o so-cialismo científico, sem contudo negar a im-portância precursora daqueles movimentos.

Na França destacam-se Saint-Simon(1760-1825), Fourier (1772-1837) e Proudhon

Segundo Saint-Simon, um dos socialistas utópi-cos, a nova sociedade industrial justa deveria serdirigida em conjunto pelos operários, intelec-tuais e donos do capital. (Litografia de Moynet.)

(1809-1865), cujas obras são as mais origi-nais, sem desconsiderar a importância deLouis Blanc (1811-1882) e Auguste Blanqui(1805-1881). Na Grã-Bretanha é representati-vo o trabalho de Owen (1771-1858).

Na época em que os socialistas france-ses escrevem, a França ainda não experimen-tara a grande febre de industrialização, que sóocorrerá durante o Segundo Império, na se-gunda metade do século XIX.

O socialismo britânico, porém, já teste-munhava o terrível espetáculo decorrente dorecrudescimento da Revolução Industrial aque já nos referimos. Aliás, foi lá que Marxviveu muitos anos de exílio, quando pôdeconstatar a rude condição de vida dos traba-lhadores.

Os diversos teóricos do socialismo têmidéias diferentes e propõem soluções diversas.Mas é possível observar alguns traços comunsentre eles. Por exemplo, nem sempre reconhe-cem o antagonismo entre burguesia e proleta-riado, admitindo ser possível reformar a so-ciedade mediante a boa vontade e participa-ção de todos.

É assim que Saint-Simon estabelece oplano de uma sociedade industrial dirigidapelos produtores, entendendo por produtoresnão só a classe operária, mas todos os quecriam, sejam banqueiros, empresários, sábiosou artistas. Seu objetivo é melhorar a sorte daclasse mais numerosa e mais pobre.

237

Também Fourier não destaca o antago-nismo entre as classes. Faz uma crítica argutae impiedosa ao sistema capitalista e à cobiçados comerciantes, mas seu plano de associa-ção voluntária, o falanstério — pequena uni-dade social abrangendo de 1.200 a 5.000 pes-soas vivendo em comunidade —, não pode serconfundido com uma proposta comunista.Fourier respeita a herança, considera naturalhaver pobres e ricos e tenta atrair os capitalis-tas mostrando-lhes possibilidade de lucros fa-bulosos caso investissem nos falanstérios. In-genuamente aguardava, todos os dias à mes-ma hora, a vinda do mecenas que financiariaseu projeto de reforma social.

Outros caminhos são percorridos porProudhon. Ele foi deputado atuante, criou umbanco popular para oferecer empréstimos abaixos juros, defendeu a instrução pública eparticipou ativamente da Primeira Internacio-nal. Tendo nascido de família pobre, sempredesejou permanecer próximo às suas origens.Preconizava a autonomia da classe operária naorganização de sua luta contra a exploraçãocapitalista.

Aliás, Proudhon teve plena consciênciado antagonismo entre capitalistas e proletá-rios, afirmando que a propriedade privada sig-nifica uma espoliação do trabalho. Enquantoas doutrinas de Saint-Simon e Fourier não sãopropriamente igualitárias, a de Proudhon pre-coniza a igualdade e a liberdade. "A igualda-de das condições, eis o princípio das socieda-des; a solidariedade universal, eis a sançãodessa lei." "Do ponto de vista social, liberda-de e solidariedade são termos idênticos: a li-berdade de cada um encontrar, na liberdadealheia, não um limite, mas sim um auxiliar: ohomem mais livre é aquele que tem mais rela-ção com seus semelhantes." Isso já significauma crítica ao individualismo da concepçãoburguesa de liberdade.

Proudhon é veemente nas colocaçõesextremamente polêmicas e muitas vezes cau-sadoras de escândalo. São famosas as afirma-ções: "A propriedade é um roubo" e "Deus éo mal". Ao criticar a propriedade privada,Proudhon recusa qualquer caminho queporventura favoreça o poder do Estado (tal comopropunham Louis Blanc e Auguste Blanqui, nalinha do jacobinismo de Robespierre). Epor esse mesmo motivo se indispôs com osmarxistas, por ele considerados excessiva-mente autoritários.

A desconfiança em relação ao Estado(e a qualquer outra autoridade, como a Igreja)torna Proudhon um crítico da centralização dopoder e da burocracia, sonhando com a socie-dade anárquica em que o poder político seriasubstituído por livres combinações entre ostrabalhadores. Por isso tudo, Bakunin, o fun-dador do anarquismo, o considera "o mestrede todos nós".

Com o britânico Owen aparece a idéia deque o trabalho é criador de riqueza, que não éusufruída pelo operário, mas lhe é extorquida.Tenta pôr em prática as concepções socialis-tas organizando colônias cooperativas onde apropriedade privada seria totalmente excluí-da. Apesar da grande repercussão de suasidéias, as tentativas de concretizá-las falhamcompletamente. Antes admirado e festejadoaté por governantes e príncipes, ao formularsuas teorias comunistas passa a ser atacado eexecrado.

De qualquer forma, as soluções que pre-coniza não vão além de uma tendência forte-mente filantrópica e paternalista: melhoria dealojamento e higiene, construção de escolas,aumento de salários, redução das horas detrabalho.

Crítica ao socialismo utópico

Embora reconheçam a importância dasprimeiras teorias socialistas, Marx e Engelsnão lhes poupam severas críticas. Vimos quesão eles que "batizam" os socialistas que osantecedem de utópicos. A palavra utopia,como já vimos, significa "em nenhum lugar"(u-topos) e embora possa ter uma conotaçãopositiva, de algo que "ainda não é", mas "po-derá vir a ser", a denominação dada por Marxé pejorativa, pois não vê em tais teorias ne-nhuma condição de reverter o quadro de in-justiça e exploração vigentes.

Segundo Marx e Engels, as teorias dosocialismo utópico são inócuas porque em ge-ral são paternalistas, já que à organização doproletariado contrapõem "uma organização dasociedade pré-fabricada por eles", "não per-cebendo no proletariado nenhuma iniciativahistórica, nenhum movimento político que lheseja próprio". Idealistas, não reconhecemquais seriam as condições materiais de eman-cipação, ocupando-se com "leis sociais que

238

permitam criar essas condições". Substituema atividade social "pela sua própria imagina-ção pessoal". Moralistas, pretendem reformara sociedade pela força do exemplo. Ingênuos,pensam que experiências em pequenas esca-las poderão frutificar e se expandir, alcançan-do seus fins por meios pacíficos e não revolu-cionários1.

Há verdades nessas críticas, mas é pre-ciso reconhecer também que a oposição feitapelos marxistas "entre ciência e utopia estácarregada daquela pretensão cientificistacara ao século XIX", segundo a qual só "ométodo marxista, o materialismo dialético ehistórico poderia pretender ser verdadeira-mente científico" e qualquer outro métodoseria utópico, "ou seja: ingênuo, pueril,irrealista, moralista, metafísico, até mesmo'religioso'". Em outras palavras, talposicionamento, ao reafirmar a idéia "deuma continuidade histórica entre um socia-lismo utópico precursor ultrapassado e ummarxismo científico que revela ao movimentooperário sua plena maturidade é reveladoradessa filosofia da história própria a todos osdeterminismos positivistas"2.

3. Feuerbach

Feuerbach (1804-1872) pertence à alados jovens hegelianos de esquerda. Do mestre

utiliza o conceito de alienação para aplicá-lona defesa da tese do ateísmo. SegundoFeuerbach, a "alienação religiosa" consiste noprocesso antropomórfico segundo o qual ohomem projeta no céu a sua própria imagemidealizada: não foi Deus que criou o homem;ao contrário, foi o homem que criou Deus.Mas, ao adorar esse Deus forjado por ele mes-mo, o homem religioso se despersonaliza, nãomais se pertence, se aliena.

Contrapondo-se ao idealismo de Hegel,Feuerbach contesta que a constituição domundo dependa do movimento das idéias.Defendendo a tese materialista, afirma que overdadeiro conhecimento não é possível senãocomo conhecimento das coisas materiais, sen-síveis. E todo conhecimento superior não émais que um epifenômeno da matéria, ou seja,um simples reflexo dela.

Marx e Engels aproveitam as análises deFeuerbach, mas vão além, criticando nele odesprezo pela contribuição do método dia-lético, o que o faz repetir de certa forma omaterialismo mecanicista do século XVIII.Ao compreender o homem como máquina,Feuerbach torna-se incapaz de perceber omundo como processo, como matéria em viade desenvolvimento histórico.

Segundo Marx, nas Teses sobreFeuerbach, o erro deste está em analisar o ho-mem abstratamente, desvinculado da sua rea-lidade, que consiste no conjunto das relaçõessociais.

Exercícios

1. Que movimentos precursores do socialis-mo apareceram antes do século XIX?

2. O que há de comum entre os socialistasutópicos?

3. Por que Bakunin chama Proudhon de "omestre de todos nós"?

4. Que críticas Engels e Marx fazem ao so-cialismo utópico?

5. Em que medida Feuerbach antecipa Marx?

6. Em que sentido Marx e Engels consideramo pensamento de Feuerbach incompleto?

1 Baseado em: K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, 5. ed., Rio de Janeiro, Vitória, 1963, p. 58-59.2Trechos entre aspas extraídos de F. Châtelet (org.), História das idéias políticas, p. 140-141.)

239

SEGUNDA PARTE — O marxismo

No princípio era o Verbo... É o pensamento que tudo cria e produz? Seria preciso pôr: No princípio era aForça... O espírito vem em meu auxilio! Vejo de súbito a solução e escrevo com segurança: No princípio era a Ação.

(Goethe)

Os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes maneiras: o que importa é transformá-lo.

(Marx)

1. Introdução

As revoluções burguesas do séculoXVIII se encontravam, no início do séculoXIX, ameaçadas pelas forças conservadoras dofeudalismo em decomposição, representadaspela nobreza e pelo clero, ansiosas para restau-rar o absolutismo e excluir a burguesia do po-der político. As forças revolucionárias eram re-presentadas pela burguesia e pelo crescenteproletariado, ambos descontentes com a situa-ção sócio-econômica. O embate dessas forçasse fez sentir em 1830 e 1848, nos grandes mo-vimentos liberais e nacionais que, iniciados naFrança, se estenderam pela Bélgica, Polônia,Alemanha, Itália, Portugal e Espanha.

A partir de 1848, o proletariado procuraa expressão de sua própria ideologia, opostaao pensamento liberal e inspirada de início nosocialismo utópico. Começa a ficar mais claraa cisão entre as duas classes, cuja contradiçãoserá explicitada pelas teorias que criticam oliberalismo.

A Alemanha ainda se encontra divididaem diversos Estados, e a unificação se daráapenas em 1871, sob o comando de Bismarck,primeiro-ministro da Prússia. Para tanto foramnecessárias três guerras e muitas táticas deunificação econômica.

Foi, portanto, numa Alemanha agitada echeia de problemas que surgiu o marxismo.Na verdade, essa obra é fruto não só de KarlMarx (1818-1883) mas também de seu amigoFriedrich Engels (1820-1895), que, além dacolaboração ideológica, era industrial e pôde,por diversas vezes, ajudar Marx financeira-mente nos momentos mais críticos.

Escreveram juntos Manifesto comunis-ta (1848) e A ideologia alemã. Entre outrasobras, Marx escreveu: O 18 Brumário de LuísBonaparte, Contribuição à crítica da econo-mia política, O capital. Engels escreveu: Anti-Dühring, A dialética da natureza, A origem

da família, da propriedade privada e do Esta-do, entre outras.

Marx e Engels formulam suas idéias apartir da realidade social por eles observada:de um lado, o avanço técnico, o aumento dopoder do homem sobre a natureza, o enrique-cimento e o progresso; de outro, e contradito-riamente, a escravização crescente da classeoperária, cada vez mais empobrecida. Para aelaboração da doutrina, partem da leitura doseconomistas ingleses (Adam Smith e DavidRicardo), da filosofia de Hegel (o conceito dedialética e uma nova concepção de história) edos filósofos do socialismo utópico.

2. Materialismo dialético

A teoria marxista compõe-se de umateoria científica, o materialismo histórico, ede uma filosofia, o materialismo dialético.

Para os materialistas, a história da filo-sofia tem longa tradição idealista, pressupos-ta até nas teorias em que o idealismo nãotransparece num primeiro momento, culmi-nando com o pensamento de Hegel, no séculoXIX. Para esse filósofo, é a própria razão quefaz o tecido do real, e a idéia não é uma cria-ção subjetiva do sujeito, mas a própria reali-dade objetiva, donde tudo procede.

Para o materialismo, a matéria é o dadoprimário, a fonte da consciência, e esta é umdado secundário, derivado, pois é reflexo damatéria.

No entanto, é preciso distinguir o ma-terialismo marxista, que é dialético, do mate-rialismo anterior a ele, conhecido como ma-terialismo mecanicista ou "vulgar". Enquan-to o materialismo mecanicista parte da cons-tatação de um mundo composto de coisas e,em última análise, de partículas materiais que

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se combinam de forma inerte, o materialismodialético considera que os fenômenos mate-riais são processos. Além disso, segundo omaterialismo dialético, o espírito não é conse-qüência passiva da ação da matéria, podendoreagir sobre aquilo que o determina. Ou seja,o conhecimento do determinismo liberta o ho-mem por meio da ação deste sobre o mundo,possibilitando inclusive a ação revolucionária.

3. Materialismo histórico

O materialismo histórico não é mais doque a aplicação dos princípios do materialis-mo dialético ao campo da história. E, como opróprio nome indica, é a explicação da histó-ria por fatores materiais, ou seja, econômicose técnicos.

Marx inverte o processo do senso co-mum que pretende explicar a história pelaação dos "grandes homens", ou, às vezes, atépela intervenção divina. Para o marxismo, nolugar das idéias, estão os fatos materiais; nolugar dos heróis, a luta de classes.

Em outras palavras, o que Marx ex-plicitou foi que, embora possamos tentar com-preender e definir o homem pela consciência,pela linguagem, pela religião, o que fundamen-talmente o caracteriza é a forma pela qual re-produz suas condições de existência.

Portanto, para Marx, a sociedade se es-trutura em níveis.

O primeiro nível, chamado de infra-es-trutura, constitui a base econômica (que é de-terminante, segundo a concepção materialis-ta). Engloba as relações do homem com a na-tureza, no esforço de produzir a própria exis-tência, e as relações dos homens entre si. Ouseja, as relações entre os proprietários e não-proprietários, e entre os não-proprietários e osmeios e objetos do trabalho.

O segundo nível, político-ideológico, échamado de superestrutura. É constituído:

a) pela estrutura jurídico-política repre-sentada pelo Estado e pelo direito: segundoMarx, a relação de exploração de classe nonível econômico repercute na relação de do-minação política, estando o Estado a serviçoda classe dominante.

b) pela estrutura ideológica referente àsformas da consciência social, tais como a reli-gião, as leis, a educação, a literatura, a filoso-fia, a ciência, a arte etc. Também nesse caso

ocorre a sujeição ideológica da classe domi-nada, cuja cultura e modo de vida reflete asidéias e os valores da classe dominante.

Vamos exemplificar como a infra-estru-tura determina a superestrutura, comparandovalores de dois diferentes períodos da história.

A moral medieval valoriza a coragem ea ociosidade da nobreza ocupada com a guer-ra, bem como a fidelidade, que é a base dosistema de suserania e vassalagem; do pontode vista do direito, num mundo cuja riqueza éa posse de terras, considera-se ilegal (e imo-ral) o empréstimo a juros. Já na Idade Moder-na, com o advento da burguesia, o trabalho évalorizado e, conseqüentemente, critica-se aociosidade; também ocorre a legalização dosistema bancário, o que exige a revisão das res-trições morais aos empréstimos. A religião pro-testante confirma os novos valores por meio dadoutrina da predestinação, considerando o en-riquecimento um sinal da escolha divina.

Conforme os exemplos, as manifesta-ções da superestrutura (no caso, moral e direi-to) são determinadas pelas alterações da infra-estrutura decorrentes da passagem econômicado sistema feudal para o capitalista.

Portanto, para estudar a sociedade nãose deve, segundo Marx, partir do que os ho-mens dizem, imaginam ou pensam, e sim daforma como produzem os bens materiais ne-cessários à sua vida. Analisando o contato queos homens estabelecem com a natureza paratransformá-la por meio do trabalho e as rela-ções entre si é que se descobre como eles pro-duzem sua vida e suas idéias.

No entanto, essas determinações nãopodem nos fazer esquecer do caráter dialéticode toda determinação: ao tomar conhecimen-to das contradições, o homem pode agir ativa-mente sobre aquilo que o determina.

A práxis

Ao analisar o ser social do homem,Marx desenvolve uma nova antropologia, se-gundo a qual não existe uma "natureza huma-na" idêntica em todo tempo e lugar. Para ele,o existir humano decorre do agir, pois o ho-mem se autoproduz à medida que transformaa natureza pelo trabalho. Sendo o trabalhouma ação coletiva, a condição humana depen-de da sua existência social. Por outro lado, otrabalho é um projeto humano e como tal de-pende da consciência que antecipa a ação pelo

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pensamento. Com isto se estabelece a dia-lética homem-natureza e pensar-agir.

Marx chama de práxis à ação humanade transformar a realidade. Nesse sentido, oconceito de práxis não se identifica propria-mente com a prática, mas significa a uniãodialética da teoria e da prática. Isto é, ao mes-mo tempo que a consciência é determinadapelo modo como os homens produzem a suaexistência, também a ação humana é projeta-da, refletida, consciente.

Por isso a filosofia marxista é tambémconhecida como filosofia da práxis.

A luta de classes

As relações fundamentais de toda socie-dade humana são as relações de produção,que revelam a maneira pela qual os homens, apartir das condições naturais, usam as técni-cas e se organizam por meio da divisão do tra-balho social. As relações de produção cor-respondem a um certo estádio das forças pro-dutivas, que consistem no conjunto formadopelo clima, água, solo, matérias-primas, má-quinas, mão-de-obra e instrumentos detrabalho.

Por exemplo, quando os instrumentos depedra são substituídos pelos de metal, ouquando o desenvolvimento da agricultura setorna possível pela descoberta de técnicas deirrigação, de adubagem do solo ou pelo usodo arado e de veículos de roda, estamos dian-te de alterações das forças produtivas que porsua vez provocarão mudanças nas formas pe-las quais os homens se relacionam.

Chamamos modo de produção a manei-ra pela qual as forças produtivas se organizamem determinadas relações de produção numdado momento histórico. Por exemplo, nomodo de produção capitalista, as forças pro-dutivas, representadas sobretudo pelas máqui-nas do sistema fabril, determinam as relaçõesde produção caracterizadas pelo dono do ca-pital e pelo operário assalariado.

No entanto, as forças produtivas só po-dem se desenvolver até certo ponto, pois, aoatingirem um estádio por demais avançado,entram em contradição com as antigas rela-ções de produção, que se tornam inadequadas.Surgem então as divergências e a necessidadede uma nova divisão de trabalho. A contradi-ção aparece como luta de classes. Vejamoscomo isso ocorre na história da humanidade.

Nas sociedades primitivas, os homensse unem para enfrentar os desafios da nature-za hostil e dos animais ferozes. Os meios deprodução, as áreas de caça, assim como osprodutos, são propriedades comuns, isto é,pertencem a toda a sociedade (comuna primi-tiva). A base econômica determina certa ma-neira de pensar peculiar, em que não há senti-mento de posse, uma vez que não existe pro-priedade privada.

O modo de produção patriarcal surgequando o homem inicia a domesticação deanimais, desenvolve a agricultura graças aouso dos instrumentos de metal e fabrica vasi-lhas de barro, o que possibilita fazer reservas.Quais as conseqüências das modificações dasforças produtivas? Alteram-se as relações deprodução e o modo de produção: aparece umaforma específica de propriedade (propriedadeda família, num sentido muito amplo); dife-renciam-se funções de classe (autoridade dopatriarca, do pai de família); há alteração dodireito hereditário, estabelecendo-se a filiaçãopaterna (e não mais materna).

O modo de produção escravista é decor-rência do aumento da produção além do ne-cessário à subsistência e exige o recurso a no-vas forças de trabalho, conseguidas geralmen-te entre prisioneiros de guerra, transformadosem escravos. Com isso surge propriamente apropriedade privada dos meios de produção,e a primeira forma de exploração do homempelo homem com a conseqüente contradiçãoentre senhores e escravos. Dá-se então a sepa-ração entre trabalho intelectual e trabalho ma-nual. A ociosidade passa a ser considerada aperfeição do homem livre, enquanto o traba-lho manual, considerado servil, é desprezado.

O modo de produção escravista é típicoda Antiguidade grega e romana. A luta dospovos bárbaros contra o Império Romano, nofinal da Antiguidade, não é senão a luta con-tra a escravidão a eles imposta pelos romanos.A contradição do regime escravista leva-o àruína e, para restaurar a economia, são neces-sárias novas relações de produção.

No modo de produção feudal, a baseeconômica é a propriedade dos meios de pro-dução pelo senhor feudal. O servo trabalha umtempo para si e outro para o senhor, o qual,além de se apropriar de uma parte da produ-ção daquele, ainda lhe cobra impostos pelouso comum do moinho, do lagar etc. A con-tradição dos interesses das duas classes leva a

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conflitos que farão aparecer, paulatinamente,uma nova figura: o burguês. Surgida dentre osservos que se dedicam ao artesanato e ao co-mércio, a nova figura social forma os burgose consegue aos poucos a liberdade pessoal edas cidades. A jovem burguesia está destina-da a desenvolver as formas produtivas que emdeterminado momento exigirão novas rela-ções de produção.

O modo de produção capitalista é anova síntese que surge das ruínas do sistemafeudal, ou seja, da contradição entre a tese (se-nhor feudal) e a antítese (servo). O que vimosaté agora é que o movimento dialético peloqual a história se faz tem um motor: a luta declasses. Chama-se luta de classes ao confron-to entre duas classes antagônicas quando lu-tam por seus interesses de classe. No modo deprodução capitalista, a relação antitética se fazentre o burguês, que é o detentor do capital, eo proletário, que nada possui e só vive porquevende sua força de trabalho.

Veremos agora, com mais atenção,como se processa a relação antagônica entreas duas classes.

4. A mais-valia

O sistema capitalista consiste na produ-ção de mercadorias. Mercadoria é tudo o queé produzido não tendo em vista o valor de uso(por exemplo, uma malha que fazemos paranosso próprio uso), mas tem por objetivo ovalor de troca, isto é, a venda do produto.Sendo a mercadoria um produto do trabalho,o seu valor é determinado pelo total de traba-lho socialmente necessário para produzi-la.Como a mercadoria é produzida?

Para sobreviver, o trabalhador vende aocapitalista a única mercadoria que possui, queé a capacidade de trabalhar. Qual deve ser ovalor da força de trabalho? Sendo um ser vivo,o trabalhador precisa receber o necessáriopara a subsistência e reprodução de sua capa-cidade de trabalho, ou seja, alimento, roupa,moradia, possibilidade de criar os filhos etc.O salário deve portanto corresponder ao custode sua manutenção e de sua família.

O operário se distingue dos escravos edos servos por receber um salário a partir do

contrato livremente aceito entre as partes. Noentanto, na obra O capital, Marx explica quea relação de contrato é livre só na aparência eque, na verdade, o desenvolvimento do capi-talismo supõe a exploração do trabalho dooperário. Isso porque o capitalista contrata ooperário para trabalhar durante um certo pe-ríodo de horas a fim de alcançar determinadaprodução. Mas o trabalhador, estando disponí-vel todo o tempo, na verdade produz mais doque foi calculado, ou seja, a força de trabalhopode criar um valor superior ao estipulado ini-cialmente. No entanto, a parte do trabalho ex-cedente não é paga ao operário, e serve paraaumentar cada vez mais o capital.

Marx diz que, ao comprar a força de tra-balho, o capitalista "adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar durante todo odia ou toda a semana (...) Como vendeu suaforça de trabalho ao capitalista, todo o valor,ou todo o produto por ele [pelo operário] cria-do pertence ao capitalista, que é dono de suaforça de trabalho, pro tempore. Por conseguin-te, desembolsando 3 xelins, o capitalista reali-zará o valor de 6, pois com o desembolso deum valor no qual se cristalizam seis horas detrabalho receberá em troca um valor no qualestão cristalizadas doze horas. Se repete, dia-riamente, essa operação, o capitalista desem-bolsará 3 xelins por dia e embolsará 6, cuja me-tade tornará a inverter no pagamento de novossalários, enquanto a outra metade formará amais-valia, pela qual o capitalista não pagaequivalente algum. Esse tipo de intercâmbioentre o capital e o trabalho é o que serve debase à produção capitalista, ou ao sistema dosalariado, e tem de conduzir, sem cessar, àconstante reprodução do operário como operá-rio e do capitalista como capitalista"3.

Chama-se mais-valia, portanto, ao valorque o operário cria além do valor de sua forçade trabalho, e que é apropriado pelo capitalista.

5. Alienação e ideologia

Com a descrição da mais-valia, Marxconfigura o caráter de exploração do sistemacapitalista. De imediato o operário não é ca-paz de reverter o quadro porque se encontraalienado.

K. Marx, Salário, preço e lucro, Col. Os pensadores, p. 89.

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Ao desenvolver o conceito de aliena-ção, Marx rejeita as explicações comuns queaparecem em toda a história da filosofia, oracom contornos religiosos, ora metafísicos oumorais. A elas opõe a análise das condiçõesreais do trabalho humano e descobre que aalienação tem origem na vida econômica:quando o operário vende no mercado a forçade trabalho, o produto que resulta do seu es-forço não mais lhe pertence e adquire existên-cia independente dele.

Como vimos no Capítulo 2 (Trabalho ealienação), a perda do produto significa ou-tras perdas para o operário: ele não mais pro-jeta ou concebe aquilo que vai executar (dá-sea dicotomia concepção-execução do trabalho,a separação entre o pensar e o agir); com oaceleramento da produção, provocado pelacrescente mecanização do trabalho (linha demontagem), o operário executa cada vez maisapenas uma parte do produto (trabalho parce-lado ou trabalho "em migalhas"); o ritmo dotrabalho é dado exteriormente e não obedeceao próprio ritmo natural do seu corpo.

O produto do trabalho do operário sub-trai-se portanto à sua vontade, à sua consciên-cia e ao seu controle, e o produtor não se re-conhece no que produz. O produto surgecomo um poder separado do produtor, comorealidade soberana e tirânica que o domina eameaça. A esse processo Marx chamafetichismo da mercadoria. Da mesma forma,a mercadoria não é apenas o resultado da rela-ção de produção, mas vale por si mesma,como realidade autônoma e, mais ainda, comodeterminante da vida dos homens.

Produz-se então a grande inversão emque a reificação do homem (res: "coisa") é ocontraponto do fetichismo da mercadoria.Quando a mercadoria se "anima", se"humaniza", obriga o homem a sucumbir àsforças das leis do mercado que o arrastam aoenfrentamento de crises, guerras e desempre-go. A conseqüência é a desumanização do ho-mem, sua reificação.

O que faz com que os homens não per-cebam a reificação e não reajam prontamenteà exploração é a ideologia (ver Capítulo 5 —Ideologia). À medida que o modo de produ-ção vai sendo superado, a classe dominanteprocura retardar a transformação mantendo omodo de produção caduco com suas superes-truturas, disfarçando as contradições, dissimu-lando as aparências e apresentando soluções

reformistas, impedindo, assim, que as classesoprimidas formem a sua própria consciênciade classe.

Em outras palavras, as idéias, condutase valores que permeiam a concepção de mun-do de uma determinada sociedade, e que re-presentam os interesses da classe dominante,ao serem generalizadas às classes dominadasajudam a manter a dominação.

A ideologia impede que o proletário te-nha consciência da própria submissão, porquecamufla a luta de classes quando faz a repre-sentação ilusória da sociedade mostrando-acomo una e harmônica. Mais ainda, a ideologiaesconde que o Estado, longe de representar obem comum, é expressão dos interesses daclasse dominante. E o que veremos a seguir.

6. Estado e sociedade

Marx não dedicou um trabalho específi-co sobre a análise do Estado, mas suas idéiasa esse respeito estão espalhadas por suasobras. Talvez isso se deva ao fato de ele teruma concepção negativa do Estado, diferen-temente de Hegel, para quem o Estado eraconsiderado o "deus terreno", o momento fi-nal do Espírito objetivo quando são superadasas contradições da sociedade civil.

Para Marx, o Estado não supera as con-tradições da sociedade civil, mas é o reflexodelas, e está aí para perpetuá-las. Por isso sóaparentemente visa ao bem comum, estandode fato a serviço da classe dominante. Portan-to, o Estado é um mal que deve ser extirpado.

Ao lutar contra o poder da burguesia, oproletariado deve destruir o poder estatal, o quenão será feito por meios pacíficos, mas pela re-volução. No entanto, diferentemente dos anar-quistas, Marx não considera viável a passagembrusca da sociedade dominada pelo Estado bur-guês para a sociedade sem Estado, havendo anecessidade de um período de transição.

A classe operária, organizando-se numpartido revolucionário, deve destruir o Estadoburguês e criar um novo Estado capaz de su-primir a propriedade privada dos meios deprodução. A esse novo Estado dá-se o nomede ditadura do proletariado, uma vez que, se-gundo Marx, o fortalecimento contínuo daclasse operária é indispensável enquanto aburguesia não tiver sido liquidada como clas-se no mundo inteiro.

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7. A utopia comunista

A primeira fase, de vigência da ditadurado proletariado, corresponde ao socialismo,que supõe a existência do aparelho estatal, daburocracia, do aparelho repressivo e do apa-relho jurídico. Nessa fase persiste a luta con-tra a antiga classe dominante, a fim de evitar acontra-revolução. O princípio do socialismoé: "De cada um, segundo sua capacidade, acada um, segundo seu trabalho".

A segunda fase, chamada comunismo,tem como princípio: "De cada um, segundosua capacidade, a cada um, segundo suas ne-cessidades". O comunismo se define pela su-pressão da luta de classes e, conseqüentemen-te, pelo desaparecimento do Estado. Na "anar-quia feliz" o desenvolvimento prodigioso dasforças produtivas levaria à "era da abundân-cia", à supressão da divisão do trabalho em

tarefas subordinadas (materiais) e tarefas su-periores (intelectuais), à ausência de contras-te entre cidade e campo e entre indústria eagricultura.

Se a passagem para o comunismo signi-fica o desaparecimento das classes, como ficaa afirmação que fizemos inicialmente de que,para Marx, a luta de classes é o motor dahistória?

O movimento da história continuaria,pois ela é um processo; só que a luta nãomais seria entre a classe dominante e a do-minada, mas entre a vanguarda e os elemen-tos que impedem as mudanças por comodis-mo ou incompreensão. A luta seria entre oprogresso e as forças conservadoras, entre onovo e o velho.

Veremos no Capítulo 26 (Liberalismo esocialismo hoje) a difusão das idéias marxistas esua aplicação no chamado "socialismo real".

Exercícios

1. Quais são as três fontes do pensamentomarxista?

2. Em que consiste o materialismo histórico?Qual é sua crítica ao conceito tradicional de história?

3. Quais são os modos de produção indicadosno texto? Faça um esquema usando a tríade: tese,antítese, síntese.

4. Leia a citação de Goethe constante daepígrafe e a interprete usando o conceito de práxis.

5. Leia a citação de Marx na epígrafe e expli-que qual é o novo sentido de teoria para ele.

6. "A história se faz a partir da ação dos he-róis e dos santos." Critique essa afirmação a partirdos conceitos marxistas.

7. O que é mais-valia?

8. Explique: fetichismo e reificação são osdois lados da mesma moeda chamada alienação.

9. Em que medida a ideologia é um instru-mento de dominação de classe?

10. "O Estado é uma instituição que representao interesse do bem comum." Critique essa afirma-ção usando conceitos marxistas.

11. O que significa a ditadura do proletariadoe por que ela é necessária, segundo Marx?

12. Leia o texto complementar de Marx e, aoresponder às questões, utilize também os conceitosaprendidos na leitura do capítulo:

a) "Não é a consciência dos homens que deter-mina o seu ser: é o seu ser social que, inversamen-te, determina a sua consciência." Explique em quesentido essa frase é indicativa do materialismo mar-xista.

b) Indique no texto o que Marx designa porinfra-estrutura e por superestrutura.

c) O que determina a transformação de umaorganização social?

d) O que Marx quer dizer quando afirma queos modos de produção asiático, antigo, feudal eburguês podem ser qualificados como épocas pro-gressivas?

e) Compare a posição de Marx com a dos filó-sofos anteriores (liberais), a partir da expressão:"contradição que nasce das condições de existên-cia social dos indivíduos".

f) Explique em que sentido o determinismo aque Marx se refere no inicio do texto não leva a ummaterialismo mecanicista.

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Texto complementar

Prefácio à Contribuição à crítica da economia política

Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas — assim como as for-mas de Estado — não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral doespírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, àsemelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de"sociedade civil"; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia polí-tica. (...) A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meusestudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homensestabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produ-ção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais.O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concre-ta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadasformas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimentoda vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seuser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvol-vimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações deprodução existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio dasquais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas rela-ções transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformaçãoda base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerartais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material — que se pode comprovar demaneira cientificamente rigorosa — das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas,políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os ho-mens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas conseqüências. Assim como nãose julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época detransformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciênciapelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e asrelações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas asforças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhesubstituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprioseio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resol-ver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando ascondições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer. Em umcaráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualifi-cados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produçãoburguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não nosentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existên-cia social dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedadeburguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para resolver esta contradição. Com estaorganização social termina, assim, a Pré-História da sociedade humana.

(Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, São Paulo, Martins Fontes, 1977, p. 23.)

TERCEIRA PARTE — O anarquismo

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtudeoriginal do homem.

(Oscar Wilde)

Eu aceito com entusiasmo o lema que afirma "O melhor governo é aquele que menos governa "; e gosta-ria de vê-lo posto em prática deforma sistemática. Uma vez posto em prática, ele acabaria resultando em algo

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que também acredito: "O melhor governo é aquele que não governa "; e quando os homens estiverem prepara-dos, será exatamente este o tipo de governo que irão ter.

(Henry Thoreau)

1. Introdução

Proudhon (1809-1865) e Bakunin(1814-1876), contemporâneos de Marx, comele partilham as críticas ao sistema capitalis-ta, à propriedade privada dos meios de produ-ção e à exploração da classe proletária pelaburguesia. Concordam também que as revo-luções Francesa e Americana foram mais po-líticas que sociais, pois elas teriam renovadoos padrões de autoridade, dando poder às no-vas classes, mas não modificaram basicamen-te a estrutura social e econômica da França edos Estados Unidos.

A relação de amizade e admiração deProudhon e Bakunin com Marx rompeu-se,porém, a partir de divergências que se torna-ram cada vez mais agudas. O nó do desenten-dimento encontra-se na teoria marxista da di-tadura do proletariado. Como vimos, Marxpreconizava um degrau necessário antes doadvento do comunismo, quando a força doproletariado, exercida através do partido, evi-taria a contra-revolução da classe deposta. Sódepois o poder se dissolveria rumo à socieda-de sem Estado.

Bakunin acusa Marx de otimista, nãoconsiderando ser possível evitar a rígida oli-garquia de funcionários públicos e tecnocratasque tenderiam a se perpetuar no poder.

2. Principais idéias doanarquismo

É comum as pessoas identificaremanarquismo com "caos", "bagunça". Na ver-dade, não se trata disso. Etimologicamente, apalavra é formada pelo sufixo archon, que emgrego significa "governante", e an, "sem", ouseja, "sem governante". O princípio que regeo anarquismo está na declaração de que o Es-tado é nocivo e desnecessário, pois há formasalternativas de organização voluntária.

Se a religião, o Estado e a propriedadecontribuíram em determinado momento his-tórico para o desenvolvimento do homem,passam a ser restrições a sua emancipação.

No entanto, a tese anarquista da nega-ção do Estado não deve levar as pessoas a pen-sarem que se trata de uma proposta individua-lista, pois a organização não coercitiva se fun-da na cooperação e na aceitação da comuni-dade. O homem é um ser naturalmente capazde viver em paz com seus semelhantes, masas instituições autoritárias deformam eatrofiam suas tendências cooperativas. Surge,então, um aparente paradoxo, ou seja, a reali-zação da ordem na anarquia; essa ordem naanarquia é uma ordem natural.

A sociedade estatal possui uma estruturacuja construção é artificial, pois cria uma pirâ-mide em que a ordem é imposta de cima parabaixo. A sociedade anarquista seria não umaestrutura, mas um organismo que cresce deacordo com as leis da natureza, e a ordem natu-ral se expressa pela autodisciplina e coopera-ção voluntária e não pela decisão hierárquica.

Por isso, os anarquistas repudiam até aformação de partidos, já que estes prejudicama espontaneidade de ação, tendem a se buro-cratizar e a exercer formas de poder. Tambémtemem as estruturas teóricas, porque podemtornar-se um corpo dogmático. Daí oanarquismo ser mais conhecido como movi-mento vivo e não tanto como doutrina. A au-sência de controle e de poder torna o movimen-to anarquista oscilante, sempre frágil e flexí-vel, podendo ficar inativo por muito tempo parasurgir espontaneamente quando necessário.

A crítica à existência do Estado leva àtentativa de inversão da pirâmide de poder queo Estado representa; a organização social quederiva dessa inversão rege-se pelo princípioda descentralização, procurando estabelecer aforma mais direta de relação, ou seja, a docontato "cara a cara". A responsabilidade co-meça a partir dos núcleos vitais da vida so-cial, onde também são tomadas as decisões: olocal de trabalho, os bairros. Quando isso nãoé possível por envolver outros segmentos, for-mam-se federações. O importante, porém, émanter a participação, a colaboração, a con-sulta direta entre as pessoas envolvidas.

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Os anarquistas criticam a forma tradi-cional de democracia parlamentar, pois a re-presentação contém o risco de alçar ao poderum demagogo. Quando a decisão envolveáreas mais amplas, havendo necessidade deconvocação de assembléia, a proposta é deescolha de delegados por tempo limitado esujeitos à revogação do seu mandato.

Além da crítica feita ao Estado, os anar-quistas prevêem que a supressão da proprie-dade privada dos meios de produção deve darlugar a formas de organização que estimulemas ações dos indivíduos livres no corpo co-letivo, o que poderia se tornar possível nacomuna livre e em empresas dirigidas coleti-vamente.

Da mesma forma repudiam a estruturahierárquica da Igreja e defendem o ateísmocomo condição de autonomia moral do homem,liberto dos dogmas e da noção de pecado: "Paraafirmar o homem, é preciso negar Deus".

3. Representantes e movimentos

O mais brilhante anarquista foi Bakunin,filho de ricos aristocratas russos. Tornou-serevolucionário graças à influência deProudhon. Participou das rebeliões que ocor-

Frontispício da partitura musical de A Interna-cional, hino oficial do movimento operário. AsInternacionais representaram o esforço de orga-nização do operariado em todo o mundo.

reram em Paris, Praga e Dresden em 1848-1849, tendo sido preso por vários anos e de-pois exilado na Sibéria. De volta à agitação,em 1870 tomou parte nas revoltas de Lyon eBolonha. Fez cerradas críticas a Marx, tendosido expulso da Primeira Internacional em1872. Com outros companheiros fundou a In-ternacional Saint-Imier. Sua obra é vigorosa eapaixonada, mas mal-organizada, pois dificil-mente Bakunin terminava o que começava.Era sobretudo um ativista.

Kropótkin (1842-1912), ao contrário deBakunin, defende a ação não-violenta e lutapelo respeito à vida humana, condenando apena de morte, a tortura e qualquer forma decastigo imposta ao homem pelo homem.

O romancista Leon Tolstói (1828-1910),embora se intitulasse um "pacifista cristão", ti-nha opiniões sobre o governo e a autoridadeque o aproximam dos ideais anarquistas. A pre-gação da resistência não-violenta influenciouGandhi na estratégia da desobediência civildurante a luta pela independência da índia.

Entre defensores e simpatizantes, oanarquismo conta com artistas, jornalistas eintelectuais em geral, como Oscar Wilde,George Orwell, Aldous Huxley, Picasso, AlexComford, Herbert Read, Emma Goldman,Malatesta e George Woodcock.

No final do século XIX, o movimentosindical deu ampla força ao anarquismo, geran-do o movimento chamado anarco-sindicalismo,pelo qual os sindicatos não deveriam se preo-cupar apenas em conseguir melhores salários,mas em se tornar agentes de transformação dasociedade. Segundo o espírito anarquista, ossindicatos não têm poder centralizado, mas seorganizam em pequenos grupos de fábrica, e aampliação dos contatos em nível estadual e na-cional deve sempre preservar a participação di-reta do trabalhador.

Foi na Espanha que o movimento atin-giu maior expressividade, até quando nãopôde mais resistir à ação dos exércitos do di-tador Franco. Do mesmo modo, o advento dofascismo na Itália e do nazismo na Alemanhasignificou o enfraquecimento do movimentonaqueles países.

O anarquismo ressurgiu timidamentedepois da Segunda Guerra Mundial e recru-desceu na década de 60 com o ativismo de jo-vens de vários países da Europa e da Améri-ca, culminando com o movimento estudantilde 1968 em Paris.

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O anarquismo no Brasil

Com a abolição da escravatura no finaldo século XIX, a necessidade de mão-de-obralivre favoreceu a imigração de europeus, sobre-tudo italianos, que vieram inicialmente para asfazendas de café. Data do início da RepúblicaVelha a vinda de um grupo de italianos que,autorizados pelo então imperador Pedro II, ins-talou-se no interior do Paraná fundando a Co-lônia Cecília nos moldes de uma comunidadeanarquista. Experiência efêmera e cheia de di-ficuldades, não conseguiu florescer.

No começo do século XX, com a urba-nização decorrente da industrialização, orga-

nizou-se o anarco-sindicalismo, visando aatuação mais eficaz na luta contra a opressãopatronal. Era um movimento atuante não sóna preparação das greves, mas na difusão doideal anarquista por meio de escolas e jornais.

Merece destaque a atuação de JoséOiticica (1882-1957), que, além de teóricodivulgador das idéias anarquistas, foi ativista epor isso exilado. Professor universitário e tam-bém do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, ten-tava aplicar em aula os princípios anarquistas.Homem erudito, foi autor de obra variadíssima;além dos textos políticos, escreveu poesias, con-tos, teatro e desenvolveu trabalhos lingüístico-filológicos de primeira linha.

Exercícios

1. Em que Marx e Bakunin concordam e emque discordam?

2. Por que o anarquismo não deve ser confun-dido com uma proposta individualista?

3. Segundo os anarquistas, como deve serprocessada a descentralização?

4. Explique o significado anarquista da cita-ção de Oscar Wilde constante da epígrafe.

5. Leia a segunda epígrafe (Thoreau) e expli-que como ela é adequada à concepção anarquista arespeito do Estado. Em seguida justifique a crítica

que os anarquistas fizeram ao conceito marxista deditadura do proletariado.

6. Leia o texto complementar e responda àsquestões a seguir:

a) Segundo Woodcock, em que sentido o re-lógio transformou o trabalho humano?

b) Antes dos relógios de precisão, como era otempo do trabalhador do campo?

c) Em que sentido não é possível pensar nodesenvolvimento do capitalismo industrial sem orecurso do relógio de precisão?

d) Faça uma redação referindo-se ao seu coti-diano, marcado pela "ditadura" do relógio.

Texto complementar

A ditadura do relógio

Não há nada que diferencie tanto a sociedade ocidental de nossos dias das sociedades maisantigas da Europa e do Oriente do que o conceito de tempo. Tanto para os antigos gregos e chinesesquanto para os nômades árabes ou para o peão mexicano de hoje, o tempo é representado pelos proces-sos cíclicos da natureza, pela sucessão dos dias e das noites, pela passagem das estações. Os nômades eos fazendeiros costumavam medir — e ainda hoje o fazem — seu dia do amanhecer até o crepúsculo eos anos em termos de tempo de plantar e de colher, das folhas que caem e do gelo derretendo nos lagose rios. O homem do campo trabalhava em harmonia com os elementos, como um artesão, durante tantotempo quanto julgasse necessário. O tempo era visto como um processo natural de mudança e os ho-mens não se preocupavam em medi-lo com exatidão. Por essa razão, civilizações que eram altamentedesenvolvidas sob outros aspectos dispunham de meios bastante primitivos para medir o tempo: aampulheta cheia que escorria, o relógio de sol inútil num dia sombrio, a vela ou lâmpada onde o restode óleo ou cera que permanecia sem queimar indicava as horas. (...)

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O homem ocidental civilizado, entretanto, vive num mundo que gira de acordo com os símbo-los mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. É ele que vai determinar seus movi-mentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processonatural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou umpunhado de passas de uvas. E, pelo simples fato de que, se não houvesse um meio para marcar ashoras com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria continua-do a explorar os trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida dohomem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outramáquina.

(...) A princípio, esta nova atitude em relação ao tempo, este novo ritmo imposto à vida foiordenado pelos patrões, senhores dos relógios, e os pobres o recebiam a contragosto.

E o escravo da fábrica reagia, nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que carac-terizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da era industrial do século XIX.

Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida ou do culto metodista. Mas,aos poucos, a idéia da regularidade espalhou-se, chegando aos operários. A religião e a moral doséculo XIX desempenharam seu papel, ajudando a proclamar que "perder tempo" era um pecado. Aintrodução dos relógios, fabricados em massa a partir de 1850, difundiu a preocupação com o tempoentre aqueles que antes se haviam limitado a reagir ao estímulo do despertador ou à sirene da fábrica.Na igreja e na escola, nos escritórios e nas fábricas, a pontualidade passou a ser considerada como amaior das virtudes.

E desta dependência servil ao tempo marcado nos relógios, que se espalhou insidiosamente portodas as classes sociais no século XIX, surgiu a arregimentação desmoralizante que ainda hoje ca-racteriza a rotina das fábricas.

O homem que não conseguir ajustar-se deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruínaeconômica — a menos que abandone tudo, passando a ser um dissidente para o qual o tempo deixa deser importante. Refeições feitas às pressas, a disputa de todas as manhãs e de todas as tardes por umlugar nos trens e nos ônibus, a tensão de trabalhar obedecendo horários, tudo isso contribui, pelosdistúrbios digestivos e nervosos que provoca, para arruinar a saúde e encurtar a vida dos homens.

(...) O operário transforma-se, por sua vez, num especialista em "olhar o relógio", preocupadoapenas em saber quando poderá escapar para gozar as suas escassas e monótonas formas de lazerque a sociedade industrial lhe proporciona; onde ele, para "matar o tempo", programará tantas ativi-dades mecânicas com tempo marcado, como ir ao cinema, ouvir rádio e ler jornais, quanto permitir oseu salário e o seu cansaço. Só quando se dispõe a viver em harmonia com sua fé ou com sua inteli-gência é que o homem sem dinheiro consegue deixar de ser um escravo do relógio.

(G. Woodcock, A rejeição da política, in Os grandes escritos anarquistas, p. 120 e segs.)

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O TOTALITARISMO:FASCISMO,NAZISMO E

STALINISMOEnquanto os homens exercem seus podres poderesMorrer e matar de fome, de raiva e de sedeSão tantas vezes gestos naturais.

(Caetano Veloso)

1. Fascismo e nazismo: totalitarismo de direita

O fascismo na Itália e o nazismo na Ale-manha são movimentos surgidos após a Pri-meira Guerra Mundial e têm característicassemelhantes, sobretudo enquanto manifesta-ção do ideal totalitário. Vamos descrevê-losao mesmo tempo, a partir de suas semelhan-ças, indicando as diferenças quando existirem.

Situação histórica

Do ponto de vista econômico e moral, osaldo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi desastroso para a Alemanha. O oti-mismo do período pré-guerra é substituídopelo pessimismo decorrente da crise econômi-ca, do desemprego, da proletarização da clas-se média, tudo isso aliado à humilhação sofri-da com a derrota e a assinatura de um aviltantetratado de paz. O orgulho alemão recrudesceem manifestações de francofobia1 e de exacer-bação do nacionalismo. A Itália, por sua vez,mesmo alinhada com as potências vencedoras,não está satisfeita com as vantagens prometi-das e não concretizadas; a inflação e o desem-prego geram um clima de agitação social.

A inflação e a alta do custo de vida sãoreflexos da crise econômica que se torna mais

aguda quando, em 1929, ocorre a "quebra" daBolsa de Nova Iorque, com repercussõesmundiais. A Grande Depressão ocasiona de-semprego em massa e falências, o que recru-desce os antagonismos e, conseqüentemente,as críticas ao modelo econômico do liberalis-mo, incapaz de evitar crises como essas.

Como veremos no próximo capítulo, osEstados Unidos e a Inglaterra reagem à de-pressão criando mecanismos protecionistasque caracterizam o Estado de bem-estar so-cial. Mas na Itália e Alemanha a crise favore-ce a atuação de partidos extremistas que pro-movem a ascensão do fascismo e do nazismo.

O posicionamento desses partidos con-tra o liberalismo aparece na crítica ao tipo deliberdade estimulada pelo individualismo, quegera conflitos enfraquecedores do Estado.Diante da inoperância da democracia liberalpara resolver a crise, surgem as alternativas quevisam sobretudo o fortalecimento do Estado.

As primeiras adesões ao nazismo e aofascismo sugerem uma tendência anticapita-lista que aparenta, no início, ter um caráter re-volucionário, logo desmentido. Na verdade,esses movimentos são formas de reação, sãoforças conservadoras que se manifestam na

' Francofobia: hostilidade à França e aos franceses.

CAPÍTULO 25

251

aliança com grupos cujos privilégios são man-tidos por meio de tarifas protecionistas. Emtroca, o Estado obtém o financiamento quepossibilita a "manutenção da ordem pública",incluindo a ação anticomunista destinada aextirpar o "perigo vermelho", foco de agita-ção sindical.

A aliança com setores mais conservado-res, ligados à grande indústria monopolista,aos bancos e às finanças em geral, é que podeexplicar o fato de esses partidos terem chega-do ao poder por via legal. E interessante notarque, apesar de o verdadeiro poder vir da oli-garquia e de nesses movimentos se encontra-rem adeptos de todas as camadas sociais, in-clusive proletários, é da classe média quesaem os elementos que formarão os principaisquadros. A fúria da adesão pequeno-burguesatalvez se explique pela constante ameaça deproletarização em momento de crise.

O fascismo predominou na Itália comMussolini, desde 1922, e o nazismo na Ale-manha com Hitler, desde 1933. Finda a Se-gunda Guerra, em 1945, Mussolini foi mortoe Hitler suicidou-se.

Características principais

Origem da nomenclatura

O termo fascismo, lançado porMussolini, vem do italiano fascio, que signi-fica "feixe". Na Roma Antiga, os magistradoseram precedidos por funcionários, os littori,que empunhavam machados cujos cabos com-pridos eram reforçados por muitas varas for-temente atadas em torno da haste central. Osmachados simbolizam o poder do Estado dedecapitar os inimigos da ordem pública e asvaras amarradas representam a unidade dopovo em torno de sua liderança. Fascio sãotambém organizações populares que surgemna Itália, desde o século XIX, formadas naluta em defesa dos interesses de determinadascomunidades. Em 1919, Mussolini funda osfasci di combattimento, que em seguidaproliferam por toda a Itália.

E interessante lembrar que antes de setornar líder da direita fascista, Mussolini foium jornalista cuja atividade política tinha ten-dências socialistas. Defendendo posições deesquerda, foi preso sob acusação de incita-mento à greve.

O termo nazismo surge quando Hitlerentra para o Partido Operário Alemão e mudao nome para Partido Operário Alemão Nacio-nal-Socialista (Nationalsozialistische DeutscheArbeiterpartei), cuja abreviação passa a serNazi. Hitler também cria o estandarte da cruzgamada (suástica), símbolo do movimento.

Doutrina

O nazismo e o fascismo se desenvolvemsob o primado da ação. "A nossa doutrina é ofato", afirma Mussolini em 1919, acrescentandoque o fascismo não precisa da palavra, mas dadisciplina. Só em 1929-1930 é que Mussoliniachará necessidade de uma doutrina, mesmo as-sim muito imprecisa, sem preocupação com acoerência e a exposição racional.

Também para Hitler, na famosa obraMein Kampf (Minha luta), importa mais fazera autobiografia apaixonada e um apelo à açãodo que desenvolver uma clara discussão deprincípios. Ambos querem despertar convic-ções, não debater idéias. Os princípios não sãotão importantes quanto o envolvimento no sis-tema e a adesão a ele. A preponderância doantiintelectualismo faz descambar a ação parao fanatismo e a violência, de onde deriva umavisão irracionalista do mundo, calcada na pro-messa de "doação" de uma sociedade melhor.

Nacionalismo

Ambos os movimentos se acham orien-tados pelo nacionalismo exacerbado, nascidodo desejo de tornar a nação forte, grande,auto-suficiente e com exército poderoso.

Segundo Mussolini, a nação "é um or-ganismo dotado de existência, de um fim, demeios de ação superiores em poderio e emduração aos indivíduos isolados e agrupadosque a compõem... Unidade ética, política eeconômica, realiza-se integralmente no Esta-do fascista".

O nacionalismo fascista é conservador eagressivo, justificando inclusive o imperialismo,cuja conseqüência mais grave foi a malogradatentativa de conquista da Etiópia (1935-1936).

Essa concepção nacionalista tem um ca-ráter idealista e critica a interpretação mate-rialista da história, típica do marxismo. A lutade classes é substituída pela solidariedade na-cional: só a nação unida será forte o suficientepara subsistir ao caos.

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Mussolini, na obra Opera omnia, nãooculta estar se valendo do mito da pátria:"Criamos o nosso mito. O mito é uma fé, éuma paixão. Não é preciso que seja uma reali-dade. (...) O nosso mito é a nação, o nossomito é a grandeza da nação!"

O nacionalismo alemão adquire nuancesdiferentes, como opangermanismo, quejusti-fica a pregação do "espaço vital", segundoa qual era preciso integrar à Alemanha regiõescomo a Áustria, Dantzig, Polônia e Ucrânia, natentativa de formar a Grande Alemanha.

Além disso, o nacionalismo alemão pos-sui conotação fortemente racista: o nazismoproclama a primazia do Volk, termo que sig-nifica ao mesmo tempo povo e nação, masuma nação concebida como realidade orgâni-ca, como comunidade de seres da mesma raça(mesmo solo, mesmo sangue). "Tu não ésnada, o teu Povo é tudo", afirmava Hitler.

Auxiliado por teorias pseudocientíficas,Hitler estabelece critérios para valorizar a"raça ariana", a elite nórdica, e exclui do po-der as "raças passivas", de "menor valor",propondo inclusive a eliminação da raça ju-daica, "antítese da raça ariana". Todos sabe-mos a conseqüência dessa ideologia: a perse-guição aos judeus, culminando com os cam-pos de concentração e o genocídio. Ainda naperspectiva racista, o nazismo difunde técni-cas de eugenia para o "aprimoramento da raçasuperior", proíbe a mestiçagem e propõe este-rilizações orientadas pelo princípio de que sóos indivíduos sãos devem procriar.

Totalitarismo

A crítica ao liberalismo e à concepçãoindividualista de homem, a hostilidade aosprincípios da democracia, a valorização daselites e do papel do mais forte levam àexaltação do Estado. "Tudo no Estado, nadafora do Estado, nada contra o Estado", dizMussolini. É a idéia hegeliana de Estadocomo suprema e mais perfeita realidade, aprópria encarnação do Espírito objetivo, re-presentativa da totalidade dos interesses dosindivíduos. É bem verdade que esse estatismoé mais violento em Mussolini, que considerao Estado um fim em si. Para Hitler é apenasum instrumento, pois todo prestígio deve serreservado ao Volk, conforme vimos.

Não se trata de simples autoritarismo,pois o totalitarismo o ultrapassa. O Estado

(Quino, Gente, 2. ed, Lisboa, Publ. D. Quixote, 1982.)

coincide com a totalidade da atividade huma-na, ou seja, com a vida familiar, econômica,intelectual, religiosa, de lazer, nada restandode propriamente privado e autônomo.

Em todos os setores, cuida-se de difun-dir a ideologia oficial.

Não há mais pluralismo partidário, ins-tituição básica da democracia liberal. A pri-meira das molas que instauram o poder é opartido, que deve ser único, rigidamente or-ganizado e burocratizado. É o partido que pro-move a identificação entre o poder e o povo,processando a homogeneização do campo so-cial. Na Itália, isso ocorre com o desenvolvi-mento de um sistema corporativo presididopelo próprio Mussolini, o Duce ("aquele queconduz"), o que garantia a centralização ad-ministrativa e a realização da unanimidade noEstado.

O partido forma organismos de massa:sindicatos de todos os tipos, agrupamentos deauxílio mútuo, associações culturais de traba-lhadores de diversas categorias, organizaçõesde jovens, crianças e mulheres, círculos de es-critores, artistas e cientistas. Em cada organis-mo o partido refaz a imagem da identidade so-cial comum e elimina as possibilidades de di-vergências e oposição, estimula a arregimenta-ção dos indivíduos para o partido, exalta a dis-

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ciplina e mistifica a figura do chefe. Aliás, olema fascista é "Crer, obedecer, combater".

A valorização da hierarquia, impedindoque esses organismos expressem o pluralismode opiniões, reforça a centralização administra-tiva, fortalecedora do Estado e do poderdo líder.

Paralelamente, dá-se a concentração detodos os meios militares e a formação da polí-cia política (como a Gestapo, na Alemanha),instituindo enorme aparelho repressivo dire-tamente controlado pelo ditador. Não há inde-pendência dos poderes legislativo e judiciário,subordinados ao executivo, e a direção de todaa economia se encontra também centralizada.

Outra característica importante do tota-litarismo é a concentração de todos os meiosde propaganda, a fim de veicular a ideologiaoficial dirigida ao "homem-massa", forjandoconvicções inabaláveis, o que garante fortebase de apoio popular. Geralmente é usado oapelo aos sentimentos, à imaginação, e não aointelecto. Inúmeros recursos materiais e téc-nicos empregados na manipulação da opiniãopública louvam as criações dos líderes e te-cem deles um perfil psicológico característicoda genialidade. Fotografias ampliadas e falasexaltadas completam o culto à personalidade.São feitos desfiles espetaculares, as pessoascantam músicas especialmente produzidas erecitam slogans. Na verdade, tudo muito pró-ximo a uma mitologia...

Ao lado dessa exaltação, há o controledas informações pela censura, tanto de notí-cias quanto da produção artística e cultural.

A educação é orientada no sentido da va-lorização das disciplinas de moral e cívica, vi-sando a formação do caráter, da força de von-tade, da disciplina, do amor à pátria, importan-tes para o cidadão. Dedica-se especial atençãoà educação física, tendo em vista o ideal de cor-pos perfeitamente sadios, e há maldisfarçadodesprezo pelas atividades intelectuais.

Procura-se enquadrar a juventude naideologia do regime, estimulando a obediên-cia à hierarquia, o gosto pela vida comunitá-ria e atividades militares (integração nas milí-cias jovens), a fim de forjar os gostos e osideais do futuro cidadão.

A política de natalidade premia os ca-sais de muitos filhos e estimula o retorno damulher ao lar, exaltando a função de mãe emantenedora da harmonia familiar. Costuma-se dizer que o nazismo reduziu a atividade da

A formação da Jungvolk (Juventude Alemã) fa-zia parte do processo de enquadramento dos jo-vens na ideologia nazista.

mulher a três K — Kirche (Igreja), Kilche (co-zinha) e Kinder (criança).

Embora com algumas diferenças, asdoutrinas totalitárias influenciaram movimen-tos como o de Salazar, em Portugal, o de Fran-co, na Espanha, e a Ação Integralista Brasilei-ra, fundada por Plínio Salgado.

2. Stalinismo: totalitarismo deesquerda

O termo totalitarismo se aplica inicial-mente aos chamados regimes de direita, comoo fascismo e o nazismo. Mas, segundo o his-toriador da filosofia Châtelet, a partir de 1929,o semanário Time passa a usar o termo para sereferir também ao regime soviético, caracteri-zado pelo Estado unitário, de partido único.

Veremos no Capítulo 26 (Liberalismo esocialismo hoje) que a Revolução Russa de1917 derruba o czarismo e implanta novo regi-me, inspirado no marxismo-leninismo. Segun-do Marx, como vimos, na fase transitória entre o

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capitalismo e a nova ordem deve se instalar aditadura do proletariado, na qual o Estado, em-bora concebido essencialmente como domínio ecoerção, deve desaparecer com o tempo.

Apesar da coerção do Estado, a ditadurado proletariado é considerada uma democra-cia pelos marxistas, pois todos teriam acessoao poder, já que os sovietes são compostos pordeputados escolhidos entre os diversos seg-mentos sociais, como operários, soldados ecamponeses. Além disso, a propriedade cole-tiva dos meios de produção reverteria, paratodos, os benefícios da produção, antes usu-fruídos por alguns poucos privilegiados.

No entanto, a idéia do gradual desapare-cimento do Estado não se concretiza; ao con-trário, é inevitável o seu fortalecimento logoapós a revolução, a fim de evitar a contra-re-volução. Tal situação já se verifica durante ogoverno de Lênin, e recrudesce após sua mor-te, quando Stálin sobe ao poder em 1924. Opartido único torna-se onipotente, sendo proi-bidas as oposições em seu interior. A liberda-de de imprensa e de expressão é reduzida, eos políticos dissidentes são perseguidos e di-zimados. A Tcheka, polícia política, cuida dereprimir os heterodoxos. Proliferam os cam-pos de concentração de trabalhos forçados eos hospitais psiquiátricos, onde são internadosos dissidentes, após intensas e brutais campa-nhas de expurgo.

Instaura-se o terror, justificado pela ne-cessidade de fortalecimento da ideologia ofi-cial ameaçada. O poder é cada vez mais centra-lizado e cresce o culto à personalidade de Stálin.

Com Stálin a teoria degenera em dog-matismo e se impõe independente da expe-riência vivida, negando qualquer forma depensamento divergente. A petrificação da dou-trina acrescenta-se a formulação de máximas deação. Tudo isso está longe da concepção marxistabaseada na dialética teoria e prática.

A ação totalitária ainda é possível por-que a administração do terror é científica, sus-tentada pela tecnoburocracia. Essa organiza-ção, importada do capitalismo ocidental, ba-seia-se no regime de divisão racional do traba-lho e se estrutura em uma rede de microorgani-zações, o que permite o controle da máquinado Estado.

Para melhor exercer o poder, Stálin in-terfere em todos os domínios da cultura:Jdanov, membro do partido, dá os cânones daprodução artística e critica os "desvios bur-

gueses" das letras e das artes; o biólogoLysenko rejeita a genética mendeliana, acu-sando-a de burguesa e conservadora (!) por-que, para Mendel, os caracteres veiculadosconservam-se de geração em geração;Lysenko retoma as ultrapassadas teoriaslamarckianas, segundo as quais os caracteresadquiridos poderiam se tornar hereditários.

Após a morte de Stálin e a ascensão deKruchev (1956) inicia-se o processo dedesestalinização, com a denúncia dos crimese violências, a destruição do culto à persona-lidade e a crítica ao dogmatismo.

3. O autoritarismo

Os países latino-americanos têm longatradição de governos ditatoriais. As obras li-terárias de Gabriel Garcia Márquez, ManuelScorza, J. J. Veiga registram os sucessivosgolpes de Estado que colocaram esses paísesà mercê dos caudilhos.

Os regimes chamados autoritários nãodevem ser confundidos com os totalitários,conforme foram descritos.

Ambos cerceiam as liberdades indivi-duais em nome da segurança nacional, usamformas de propaganda política, exercem acensura e têm um aparelho repressivo.

Nos regimes autoritários, contudo, nãohá uma ideologia de base que sirva "para aconstrução de uma nova sociedade" e não hámobilização popular que lhes dê suporte. Aocontrário, em vez da doutrinação política e doincentivo ao engajamento ativista (ainda quedirigido), há a despolitização que leva à apa-tia política. O clima de repressão violenta gerao medo, que desestimula a ação políticaatuante. Permanece, sempre que possível, aaparência de democracia: pode haver váriospartidos, e mesmo que a oposição efetiva de-sapareça, ela existe como oposição formal. Opartido do governo é um mero apêndice dopoder executivo.

O governo autoritário pode também uti-lizar os militares na burocracia estatal, e a eli-te econômica tem, nos postos chaves, oficiaisdas forças armadas. Os militares saem da ca-serna para se tornarem a instituição políticamais importante da nação. Foi o que aconte-ceu por ocasião do golpe militar de 1964 queimpôs durante duas décadas o regime autori-tário no Brasil.

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Exercícios

1. Estabeleça a relação entre a crise do libera-lismo e a ascensão do fascismo e do nazismo.

2. Faça um quadro comparativo entre nazismoe fascismo, indicando as semelhanças e diferenças.

3. Comente a frase de Rouanet: "O fascismose implantou através da difusão de uma ideologiavitalista reacionária, que proclamava o primadodos instintos vitais sobre a razão, e com isso inuti-lizou a razão, o único instrumento que permitiriadesmascará-lo como a negação absoluta da vida".

4. Partido, educação e propaganda: comoagem para implantar o totalitarismo?

5. Compare os regimes autoritários com os to-talitários. Identifique as semelhanças e as diferenças.

6. Durante a ditadura brasileira, instauradapelo golpe militar de 1964, a reforma educacionalde 1971 excluiu do currículo disciplinas como a fi-losofia, diminuiu a carga horária de história e geo-

grafia e introduziu Educação Moral e Cívica e Or-ganização Social e Política do Brasil no lº e no 2°grau. Explique o significado dessas alterações.

7. Leia os versos de Trilussa (texto comple-mentar I) e indique:

a) os que ridicularizam Mussolini;b) os que denunciam o poder arbitrário;c) o que exprime a resistência humana ao po-

der arbitrário.

As questões 8 e 9 se referem ao texto comple-mentar II, "Dois Minutos de Ódio".

8. Explique por que, no romance de Orwell,Goldstein poderia ser comparado com Trótski. Ex-plique também como a perseguição a Goldstein re-vela um tipo de recurso comum utilizado pelos go-vernos totalitários.

Textos complementares

I

Versos de Trilussa

Trilussa, poeta italiano cujo verdadeiro nome era Cario Alberto Salustri, viveu no tempo deMussolini e ousou escrever fábulas criticando ferinamente o regime fascista. Segundo Paulo Duarte,tradutor de sua obra, Trilussa reuniu cinqüenta poemas em Libro muto (Livro mudo), cuja ediçãologo se esgotou: "O fascismo, como sempre acontece em momentos tais, só descobriu que o Livromudo era um protesto violento, escarnecedor e mordente quando [o livro] já estava na rua". Mastambém explica que Mussolini, no seu tempo de socialismo e boêmia, foi amigo de Trilussa, o quetalvez justifique sua complacência com o poeta. Se bem que não se pode negar um certo oportunis-mo perante tão ilustre personalidade, famosa no mundo inteiro. Quando um escritor perguntou aMussolini a respeito da censura rigorosa que fazia calar toda crítica, ele teria retrucado: "Aboli-ção da liberdade? E Trilussa?...".

Números

Eu valho muito pouco, sou sincero,dizia o Um ao Zero,no entanto, quanto vales tu? Na práticaés tão vazio e inconcludentequanto na matemática.Ao passo que eu, se me coloco à frentede cinco zeros bem iguaisa ti, sabes acaso quanto fico?Cem mil, meu caro, nem um ticoa menos nem um tico a mais.Questão de números. Aliás é aquilo

9. Quais são as características descritas nessetrecho e que são indicativas das técnicas usadaspelos Estados totalitários?

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que sucede com todo ditadorque cresce em importância e em valorquanto mais são os zeros a segui-lo.

O Homem e o Lobo

Um Homem disse a um Lobo: — Se tu nãofosses tão arrogante e prepotente,ganharias a vida honestamentee terias a minha proteção.

— Prefiro a liberdade a ter patrão,o Lobo retrucou, de restose eu fosse bom e me tornasse honestome tratarias como a um cão.

A focinheira

— Sabe que sou fiel e afeiçoado,dizia o Cão ao Homem, e dispostoa tudo, mesmo a ser sacrificadocumprindo as suas ordens. Isto posto,quero falar, agora, com franqueza:a focinheira põe-me deprimido;por que não dá-la ao Gato, que é fingido,apático e traidor por natureza?

O Homem responde: — Mas a focinheiralembra sempre a existência de um patrãoque te protege e, de qualquer maneira,é quem te ampara e te garante o pão.

— Já que assim é, o dito por não dito!corrige o Cão, desculpe-me a besteira.E, desde aí, com ar convicto,passou a falar bem da focinheira...

A justiça ajustada

Júpiter disse à Ovelha: — São injustose odiosos, além disso, contra a lei,os sucessivos sustoscom que os lobos te afligem, eu bem sei!...É melhor, entretanto, que suportescom paciência os agravos: a questãoé que os lobos são fortesdemais, para não ter razão...

A Lesma

Exausta, a pobre Lesma da vangloria,ao atingir o cume do obelisco,disse, olhando da própria baba o risco:Meu rastro ficará também na História!

(Versos de Trilussa, trad. Paulo Duarte, São Paulo, MarcusPereira Publicidade, 1973, p. 349, 283, 293, 271 e 323.)

257

IIDois Minutos de Ódio

Goldstein era o renegado e traidor que um dia, muitos anos atrás (exatamente quantos ninguémse lembrava), fora uma das figuras de proa do Partido, quase no mesmo plano que o próprio GrandeIrmão, tendo depois se dedicado a atividades contra-revolucionárias, sendo por isso condenado àmorte, da qual escapara, desaparecendo misteriosamente. O programa dos Dois Minutos de Ódiovariava de dia a dia, sem que porém Goldstein deixasse de ser o personagem central cotidiano. Era otraidor original, o primeiro a conspurcar a pureza do Partido. Todos os subseqüentes crimes contra oPartido, todas as traições, atos de sabotagem, heresias, desvios, provinham diretamente dos seusensinamentos. Nalguma parte do mundo ele continuava vivo e tramando suas conspirações: talvezno além-mar, sob a proteção dos seus patrões estrangeiros; talvez até mesmo — de vez em quandocorria o boato — nalgum esconderijo na própria Oceania.

Winston sentiu contrair-se o diafragma. Nunca podia ver a face de Goldstein sem uma doloro-sa mistura de emoções. Era um rosto judaico, magro, com um grande halo de cabelo brancoesgrouviado e um pequeno cavanhaque — um rosto arguto e no entanto, de certo modo, intrinseca-mente desprezível, com um ar de tolice senil no nariz comprido e fino no qual se equilibravam osóculos. Parecia a cara duma ovelha, e a voz também recordava um balido. Goldstein lançava o cos-tumeiro ataque peçonhento às doutrinas do Partido — um ataque tão exagerado e perverso que umacriança poderia refutá-lo, e no entanto suficientemente plausível para encher o cidadão de alarme, dereceio que outras pessoas menos equilibradas o pudessem aceitar. Insultava o Grande Irmão, denun-ciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz com a Eurásia, advogava a liberdadede palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritavahistericamente que a revolução fora traída — e tudo numa linguagem rápida, polissilábica, que erauma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores do Partido (...)

Antes do Ódio se haver desenrolado por trinta segundos, metade dos presentes soltavaincontroláveis exclamações de fúria. Era demais, suportar a vista daquela cara de ovelha satisfeita edo poderio terrífico do exército eurasiano, mostrado na tela: além disso, ver ou mesmo pensar emGoldstein produzia automaticamente medo e raiva. (...)

No segundo minuto o Ódio chegou ao frenesi. Os presentes pulavam nas cadeiras e berravam aplenos pulmões, esforçando-se para abafar a voz alucinante que saía da tela. A mulherzinha do cabe-lo de areia ficara toda rosa, e abria e fechava a boca como um peixe jogado à terra. Até o rostomásculo de O'Brien estava corado. Estava sentado muito teso na sua cadeira, o peito largo se alteandoe agitando como se resistisse ao embate duma vaga. A morena atrás de Winston pusera-se a berrar"Porco! Porco! Porco!" De repente, apanhou um pesado dicionário de Novilíngua e atirou-o à tela. Olivro atingiu o nariz de Goldstein e ricocheteou; a voz continuou, inexorável. Num momento delucidez, Winston percebeu que ele também estava gritando com os outros e batendo os calcanharesviolentamente contra a travessa da cadeira. O horrível dos Dois Minutos de Ódio era que, emboraninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segun-dos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, umhorrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho,transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas.

(George Orwell, 1984, p. 16 e segs.)

258

PRIMEIRA PARTE — O liberalismo no século XX

... retornou à ordem do dia o tema de um novo "contrato social", através do qual dever-se-ia precisa-mente dar vida a uma nova força de Estado, diverso tanto do Estado capitalista ou Estado de injustiça quantodo Estado socialista ou Estado de não-liberdade.

(Bobbio)

1. Introdução

São complexos os caminhos da políticacontemporânea. No rápido esboço que deli-neamos, foi possível constatar as crises eadaptações do liberalismo no correr do tem-po, bem como as críticas a ele feitas pelas teo-rias de inspiração socialista.

Vimos também o socialismo surgircomo doutrina, e mais adiante abordaremoscomo foi sua implantação em diversas nações,até os acontecimentos conhecidos como "cri-se do socialismo real".

A presente análise tem por fim recusar asexplicações simplistas que contrapõem o fracas-so do socialismo às excelências do liberalismo,pois as contradições vividas no nosso tempo exi-gem soluções novas e criativas que sejam capa-zes de oferecer melhores condições de vida a umnúmero cada vez maior de pessoas.

Para compreendermos os dados da si-tuação, vamos retomar a história do liberalis-mo onde a tínhamos deixado (ver Capítulo22 — O pensamento liberal).

Os primeiros teóricos liberais opunham-se ao absolutismo real e aspiravam por umgoverno constitucional, pela liberdade civil ereligiosa e pela não-intervenção do Estado naeconomia. Embora tenha fortalecido as insti-

tuições que favoreciam o exercício da cidada-nia, o liberalismo clássico permaneceuelitista, na medida em que o voto censitáriopermitia a participação política apenas aoshomens de posse.

No século XVIII, na trilha aberta pelaconcepção democrática de Rousseau e na rei-vindicação de Kant da "maioridade da razãohumana", são ensaiados os passos que trans-formarão o súdito em cidadão. As lutas contraa censura, a tortura, o arbítrio e os privilégiosapontam para uma nova concepção de respei-to à individualidade.

A Independência dos Estados Unidos(1776) e a Revolução Francesa (1789) mate-rializam os ideais da burguesia ascendente,desejosa de seguir seu próprio caminho, livredos impedimentos da concepção aristocrática.

No século XIX, sob o impacto do cres-cimento e organização das massas proletárias,bem como da crítica feita pelos teóricos so-cialistas, o liberalismo foi obrigado a mudar.Stuart Mill, defensor da liberdade de expres-são e do direito de voto também para as mu-lheres, é representante da teoria do liberalis-mo que se orienta em direção à exigência demaior igualdade e democracia.

CAPÍTULO 26LIBERALISMO E

SOCIALISMOHOJE

259

2. Liberalismo social

Uma das conquistas do liberalismo clás-sico foi o ideal do Estado não-intervencionista,que deixava o mercado livre para sua auto-regulação. Tratava-se do Estado minimalista,de baixa intervenção, e do Hberismo1, ou seja,do prevalecimento do livre mercado.

As extremas desigualdades sociais levamalguns a pensar que a ênfase na economia livredeveria ser atenuada, a fim de possibilitar aigualdade de oportunidades e auxiliar o cresci-mento da individualidade. Tais são as convic-ções de pensadores como Thomas Green(1836-1882) e mais tarde Leonard Hobhouse(1864-1929) e John Hobson (1858-1940).

Acontecimentos históricos apressam areformulação dos princípios do liberalismo.Após a quebra da bolsa de Nova Iorque em1929, a década de 30 foi marcada pela depres-são econômica: falências, desemprego, infla-ção, geradores de graves tensões sociais.

A crise do modelo capitalista desenca-deia a experiência totalitária na Alemanha ena Itália. Outros países, como Inglaterra e Es-tados Unidos, buscam soluções diferentes quepudessem evitar tanto o perigo do nazismocomo a tentação do comunismo. As novasmedidas tomadas encaminham o liberalismopara a tendência que podemos chamar de li-beralismo social, em que é revisto o papel doEstado na economia.

Desde o início do século, a Inglaterra jávinha implantando medidas assistenciaiscomo seguro nacional de saúde e sistema fis-cal progressivo. Mas é nas décadas de 20 e 30que o Estado começa a intervir de formamarcante na produção e distribuição de bens,o que indica uma forte tendência em direçãoao Welfare State, ou seja, ao Estado de bem-estar social. Tanto é assim que, nos anos 40,considerava-se que qualquer cidadão teria di-reito a emprego, controle de salário, segurocontra invalidez, doença, proteção na velhice,licença maternidade, aposentadoria, o que au-mentou significativamente a rede de serviçossociais garantidos pelo Estado.

É nessa direção que se desenvolve opensamento do inglês John Maynard Keynes(1883-1946), que além de economista era

também filósofo e jurista. Seguindo a tendên-cia democrática de Stuart Mill, Keynes consi-dera necessário aliar a eficiência econômica àliberdade individual, com devida atenção àjustiça social. Mas isso provoca o revisionis-mo econômico, já que exige do Estado maiorintervenção nos negócios a fim de controlaras forças econômicas e regular as distorções,o que significa uma crítica ao laissez-faire daeconomia clássica.

Nos Estados Unidos, idéias semelhantesorientam o presidente Roosevelt na elabora-ção do plano econômico conhecido como NewDeal, que introduziu o dirigismo estatal du-rante a depressão da década de 30.

O governo concede crédito para as em-presas, intervém na agricultura e adota inúme-ros procedimentos assistenciais de atendimen-to aos trabalhadores bem como a construçãode grandes obras públicas para amenizar a altataxa de desemprego.

Embora essas medidas sofressem acusa-ção de serem semelhantes às propostas socia-listas, visavam de fato ao fortalecimento docapitalismo e pretendiam também evitar oavanço comunista.

As teorias keynesianas foram influentes des-de a década de 30 até a de 70, quando passaram aser severamente criticadas pelo neoliberalismo.

3. Liberalismo de esquerda

Na Itália fascista — e contra ela — flo-resceram teorias do liberalismo social que po-deríamos considerar como liberalismo de es-querda, ou seja, visavam desencadear movi-mentos de cunho popular (e não burguês) eresgatavam os ideais socialistas, embora osadaptando ao liberalismo. Em vez de se opo-rem simplesmente ao marxismo, buscavamextrair dele os elementos positivos, repudian-do sobretudo a concepção revolucionária deMarx: uma espécie de "terceiro caminho", su-perando a tese de que liberalismo e socialis-mo seriam inconciliáveis.

Cario Rosselli (1899-1937) escreve: "Épossível pensar que a passagem de uma paraoutra sociedade aconteça mediante um pro-cesso gradual e pacífico: mediante uma pas-

O termo Hberismo refere-se ao liberalismo econômico, enquanto tem por meta a restauração do livre-cambismo.

260

sagem que, salvando as vantagens já garanti-das de uma, as reforce progressivamente atra-vés das vantagens da outra".

Tais teorias alimentaram a fundação doefêmero Partido de ll'Azione, em 1942, ondeNorberto Bobbio (1909) inicia sua atividade ereflexão política. Torna-se professor de filo-sofia do direito, e cada vez mais a análise daestrutura jurídica o leva a discutir política,passando do estudo da legalidade para aqueleda legitimidade, exigência de uma reflexãosobre a teoria do Estado.

Político ativo, Bobbio estabeleceu polê-micas em jornais e revistas, tanto com católi-cos neotomistas e neo-idealistas como commarxistas dogmáticos. Critica a injustiça quepermanece no mundo capitalista e o estado denão-liberdade dos países em que foi implan-tado o socialismo real.

Ciente das implicações tecnoburocráticasdas modernas sociedades industrializadas, se-jam elas capitalistas ou socialistas, analisa osobstáculos à democracia. Por exemplo: a ne-cessidade crescente de os governos recorre-rem a especialistas (tecnocracia); a ampliaçãoe complexificação da máquina estatal (buro-cracia); a existência de grandes organizações(sejam empresariais ou estatais) que impedemas condições objetivas de exercício democrá-tico; a predominância da sociedade de massaque torna o homem apático, muito distante docaráter ativo exigido pela verdadeira cidada-nia. Bobbio chama a esses aspectos de para-doxos da democracia moderna. Evidentemen-te, não para concluir que a democracia é im-possível, mas que se trata de tarefa difícil.

Bobbio se ocupa com a análise dos limi-tes e obrigações do Estado, e faz o estudo his-tórico do desenvolvimento das relações entresociedade civil e Estado. Vimos que nas teo-rias contratualistas do liberalismo clássico ocontrato social constitui o Estado, cuja legiti-midade repousa portanto no consentimentodos cidadãos. Bobbio, ao lado de outros teóri-cos (como Rawls), desenvolve o neocontra-tualismo, em que, diferentemente das antigasteorias, o pacto não se apresenta limitado ape-nas à explicação da origem do Estado, mas,segundo ele, as forças sociais devem conti-nuar agindo sem cessar, num processo reno-vado e constante.

O governo democrático é portanto umapolicracia, isto é, o poder está irradiado portoda a sociedade civil, entendida esta como o

conjunto das organizações não-estatais na es-fera das relações entre indivíduos e grupos eque, nesse sentido, representam interessespluralistas, sendo o Estado o ponto de encon-tro da diversidade e do embate das forças me-diante as quais se dará o pacto social. Alémdisso, Bobbio defende a democratização davida social como um todo, estendendo os me-canismos de discussão e livre decisão para or-ganismos como trabalho, educação, lazer,vida doméstica.

4. Neoliberalismo

As teorias de intervenção estatal come-çam a dar sinais de desgaste devido às fre-qüentes dificuldades dos Estados em arcarcom as responsabilidades sociais assumidas.Aumento do déficit público, crise fiscal, in-flação e instabilidade social são consideradasjustificativas suficientes para a limitação daação assistencial do Estado.

Desde a década de 40 alguns teóricos,como o austríaco Friedrich von Hayek (1899),defendiam o retorno às medidas liberistas dolivre mercado. Antikeynesiano por excelên-cia, Hayek acusa o Estado previdenciário depaternalista e se refere à "miragem da justiçasocial". Critica a tentativa de planificaçãocentral como uma impossibilidade, já que, nasua concepção evolucionista, a complexidadee mutabilidade dos fenômenos humanos esca-pam às tentativas construtivistas de controle.

Os neoliberais retomam o ideal do Estadominimalista, cuja ação se restringe ao policia-mento, justiça e defesa nacional. O que, segun-do eles, não implica em enfraquecimento do Es-tado, mas, ao contrário, no seu fortalecimento,já que se pretende reduzir os seus encargos.

A partir da década de 80, os governos deReagan e depois Bush, nos Estados Unidos, ede Margareth Thatcher na Inglaterra são repre-sentantes da nova onda neoliberal. No Brasil atendência se confirma nos processos de priva-tização de organismos estatais e abolição dareserva de mercado. Mas contraditoriamenteesbarra em outras medidas de nítida interven-ção estatal (muitas vezes exacerbadas) como ados sucessivos planos heterodoxos de controlena economia para conter a inflação.

No final da Segunda Parte deste capítu-lo, retomaremos o assunto para as considera-ções finais.

261

Exercícios

1. Explique em que sentido a teoria do Esta-do minimalista e o liberismo são coerentes com aconcepção econômica do liberalismo.

2. Leia a citação de Bobbio transcrita a seguire explique em que sentido o liberalismo da primei-ra metade do século XX pode ser criticado a partirda concepção clássica de liberalismo:

"Os anos 20 e 30 assinalam um grande passopara a constituição do Welfare State. A PrimeiraGuerra Mundial, como mais tarde a Segunda, per-mite experimentar a maciça intervenção do Esta-do, tanto na produção (indústria bélica) como nadistribuição (gêneros alimentícios e sanitários). Agrande crise de 29, com as tensões sociais criadaspela inflação e pelo desemprego, provoca em todoo mundo ocidental um forte aumento das despesaspúblicas para a sustentação do emprego e das con-dições de vida dos trabalhadores."

3. Leia a citação de Bobbio constante da epí-grafe do capítulo e explique qual é a posição deleem relação ao liberalismo.

4. Explique em que sentido o neoliberalismoé antikeynesiano.

5. O trecho a seguir critica a ambigüidade doliberalismo no que se refere ao ideal democrático.Explique:

"O liberal (...) é um homem de quem [se deve]ter pena, porque está às voltas com um problemainsolúvel: determinar até que ponto pode serrar ogalho no qual está sentado sem correr o risco dequebrá-lo. É também, por princípio, um cidadãoinsatisfeito. Que escureça o horizonte social, quecresça o espectro do 'socialismo' — e ele se tornapartidário de um 'regime forte'. Que este se insta-le, suprima as liberdades civis e se interesse demuito perto pelo funcionamento da economia — oliberal espuma de indignação e volta a ser homemde esquerda. Ou de centro-esquerda." (GérardLebrun)

SEGUNDA PARTE — O socialismo no século XX

Na noção de crise "estão embutidas as idéias de transformação e de dificuldades, podendo-se insinuartambém, com certafacilidade, a de morte, de fim. Mas uma crise pode ser também um momento de renascimentoe é sempre, de maneira forte, um momento de confusão, no qual se entrecruzam passado e presente e se prepa-ra o futuro. Embora o marxismo não esteja morto, há algo morto no marxismo".

(Marco Aurélio Nogueira)

1. Introdução

Vimos, no Capítulo 24, como as idéiassocialistas se desenvolveram a partir dos cha-mados socialistas utópicos até a formulaçãodo socialismo científico de Marx e Engels.Esta doutrina servirá de base para as discus-sões posteriores a respeito da implantação danova ordem, oposta à ordem burguesa.

O marxismo preconiza a organização dasociedade pós-mercantil, que rejeita o capitale o mercado e suprime a propriedade privadados meios de produção. Na fase transitória desuperação do capitalismo, o socialismo deve-ria passar pela ditadura do proletariado, oca-sião em que o Estado exerce uma forçacentralizadora que diminuiria com o tempo,até sua total extinção.

Marx supunha que o processo revolu-cionário seria desencadeado nos países maisindustrializados, como a Inglaterra, onde oacirramento da luta entre as classes antagôni-cas (capitalistas e proletários) chegaria a umponto insuportável. No entanto, a revoluçãosocialista ocorreu em 1917 na Rússia, país demonarquia absoluta (czarismo) e de economiasemifeudal, cuja industrialização começaraapenas no final do século XIX.

Após a Segunda Guerra Mundial, a ex-pansão socialista determinou a formação dasdemocracias populares da Europa centro-oriental (Albânia, Bulgária, Tchecoslováquia,Hungria, Polônia, Romênia, Iugoslávia e Ale-manha Oriental).

262

Na Ásia, aderiram o Vietnã do Norte, aCoréia do Norte, a China, o Laos e o Camboja.

Na América, em 1959, Fidel Castro der-rubou o governo de Fulgêncio Batista e ins-taurou o socialismo em Cuba. A vez da Nica-rágua se deu no final da década de 70, quandoos sandinistas expulsaram Somoza.

Na África, com o processo de descolo-nização, os movimentos de libertação tiveramcaracterísticas de esquerda, aproximando-sede Cuba e da União Soviética. Foi o caso daArgélia, Guiné Bissau, Moçambique, Angolae outras.

Retomaremos mais adiante esse assun-to, para nos referirmos ao processo de des-mantelamento do mundo socialista.

2. Que fazer?

Os teóricos que irão repensar Marx eEngels no início do século XX o farão a partirda Revolução Russa de 1917. Portanto, háquestões de ordem prática e revolucionáriaque importa discutir.

Lênin (1870-1924), cujo verdadeironome era Vladimir Ilitch Ulianov, escreveu,

Lênin, teórico do marxismo, foi também um re-volucionário, líder dos bolcheviques. Tomou opoder em outubro de 1917 na Rússia e a transfor-mou na União Soviética.

entre outras obras, Que fazer? e O Estado e arevolução.

Quando os socialistas revolucionáriosderrubam o czarismo em fevereiro (março nonosso calendário) de 1917, Lênin se encontra-va exilado na Suíça. Retornando à Rússia, li-dera a facção dos bolcheviques, que toma opoder em outubro do mesmo ano. Com isso,já podemos observar que o trabalho teóricopor ele desenvolvido não se separa do ativistae revolucionário que foi. Todos os seus escri-tos têm uma finalidade prática, política.

Seu propósito é restabelecer a verdadei-ra concepção do marxismo que, segundo ele,teria sido deformada pela Segunda Interna-cional (1889-1914), ocasião em que alemãese franceses apoiaram a guerra imperialista de1914. Lênin também rompe com o teórico ale-mão Kautsky e critica o revisionismo de outromarxista alemão, Bernstein, para quem o pro-cesso que leva ao socialismo não passaria ne-cessariamente pela revolução, mas poderia sero resultado de vitórias eleitorais. Ao contrá-rio, Lênin propõe a "quebra" do Estado bur-guês pela violência, a fim de estabelecer asfunções dos sovietes e instaurar a ditadura doproletariado. Nesse aspecto critica os anar-quistas, que achavam necessário abolir o Es-tado imediatamente, sem passar pelo períodode transição.

Sob o comando de Lênin, em 1922 aRússia torna-se a União Soviética, com a su-pressão da propriedade privada dos meios deprodução, planificação econômica, reformasagrárias, nacionalização dos bancos e fábricasetc. A doutrina oficial é o marxismo-leninismo,confirmada pela Terceira Internacional.

Foram inúmeras as dificuldades enfren-tadas, considerando-se os entraves da econo-mia semifeudal russa, a hostilidade dos paísescapitalistas, bem como os movimentos inter-nos de contra-revolução.

Lênin morreu cedo, em 1924, e seu su-cessor foi Joseph Stálin (1879-1953), que di-rigiu a URSS durante quase trinta anos commão de ferro.

Nesse período o Estado é de tal modofortalecido que se transforma em Estado tota-litário (ver Capítulo 25). Contrariando aorientação de Lênin e Trótski, Stálin imprimeao socialismo um caráter predominantementenacionalista, fortalece a polícia política, aTcheka, o exército e o partido único e desen-volve o "culto à personalidade". Menos preo-

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cupado com a teoria e mais com a formulaçãode máximas de ação, com ele o marxismo tor-na-se dogmático, sem tolerância com nenhu-ma forma de crítica, o que provoca inúmerosexpurgos e perseguições, além de gerar umregime de terror.

A URSS transforma-se nos anos 40 emgrande potência mundial, desenvolvida e in-dustrializada. A planificação econômica rigi-damente centralizada dá ênfase à indústria pe-sada, ainda que nos setores de agricultura eprodução de bens de consumo tenham sidoenfrentadas dificuldades maiores.

Após a Segunda Guerra Mundial, ocrescimento do poder soviético polariza asforças mundiais no confronto Leste-Oeste, re-presentado pela "guerra fria". O isolamentodos países do Leste europeu pela "Cortina deFerro" e o antagonismo e rivalidade entre osdois blocos geram profundo maniqueísmo: aLeste caçam-se os dissidentes contra-revolu-cionários "imperialistas" e no Ocidente oanticomunismo faz escola, perseguindo os de-fensores das "ideologias alienígenas". Exem-plo disso foi o macarthismo, movimento de-sencadeado nos Estados Unidos, nos anos 50,pelo senador McCarthy.

Na década de 60, período em que os di-versos países da América do Sul, tais comoBrasil, Chile, Argentina, Uruguai, encontra-vam-se sob governos ditatoriais, as persegui-ções geralmente terminavam com a morte dosacusados. Um indicativo da tensão existentefoi a formação da guerrilha urbana pelos gru-pos revolucionários.

3. As diversas faces domarxismo

Lênin e depois Stálin elaboraram o mar-xismo-leninismo, que se tornou a ideologiaoficial do partido único na URSS e de todosos partidos europeus que aspiravam à revolu-ção. No entanto, a situação histórica dos di-versos países exigia dos intelectuais um esfor-ço de adaptação e correção da teoria marxista,de modo que nunca foi tranqüilamente aceitaa chamada "ideologia oficial".

Com o fechamento do regime na erastalinista, a perseguição aos defensores deteorias heterodoxas costumava culminar coma eliminação dos dissidentes, tal como ocor-reu com Bukhárin e Trótski.

Leon Trótski (1879-1940) foi compa-nheiro de Lênin nas lutas de outubro de 1917.Defendeu a "revolução permanente", que sig-nifica o prolongamento da luta de classes emescala nacional e internacional, o que deveriagerar inevitavelmente a guerra civil interna ea guerra revolucionária externa. Partindo doprincípio de que o mundo capitalista exerce in-fluência perniciosa sobre os países que preten-dem implantar o socialismo, Trótski pregava anecessidade da expansão da revolução mun-dial. Essa posição foi combatida por Stálin, seumais ferrenho inimigo, que defendia a tese do"socialismo num só país". Trótski, perseguido,refugia-se no México, onde foi assassinado porum stalinista em 1940.

A social-democracia

O enfrentamento das dificuldades de-correntes da depressão econômica que atingiatoda a Europa, no final do século XIX, fezcom que a Segunda Internacional, iniciada em1889, tivesse características diferentes da an-terior. Menos "internacional", favoreceu a or-ganização relativamente autônoma dos grupossocialistas dos diversos países, atendendo àspeculiaridades nacionais.

Dessa forma, na Alemanha predominou aideologia do Partido Social-Democrata Alemão,inspirador da social-democracia. Os principaisteóricos dessa tendência são Eduard Bernstein(1850-1932) e Karl Kautsky (1854-1938).

Apesar de divergirem em vários pontos,os social-democratas concordam em recusar avia revolucionária para a implantação do so-cialismo, e buscam mecanismos legais demo-crático-parlamentares que levem, numa lentaevolução orgânica, à superação do capitalis-mo. Recusam portanto a violência e não que-rem separar socialismo e democracia.

Várias medidas são tomadas para a con-quista de direitos sociais, como legislação deproteção ao trabalhador, direito de associação,criação de inúmeras cooperativas de consumoe ampla divulgação das idéias socialistas porjornais, revistas, teatro etc. O resultado dessesesforços significou conquistas reais para osoperários. Até 1914, o fortalecimento do mo-vimento sindical na Alemanha tornou possí-vel a colaboração permanente entre Estado,empresas e classe trabalhadora.

A social-democracia não se confundecom o liberalismo social (já tratado na Primei-

264

ra Parte deste capítulo), pois o Estado de bem-estar social é anti-socialista e pretende mantero capitalismo, ao passo que a social-democra-cia visa em última instância a superação docapitalismo e a implantação do socialismo.

A social-democracia sofreu inúmerascríticas. Do ponto de vista econômico, porquea elevada carga fiscal desestimula os investi-mentos e leva a economia a impasses. Do pon-to de vista social, há a alegação de que o Esta-do nem sempre consegue atender aos inúme-ros encargos assumidos nem conter o aumen-to pernicioso do aparelho burocrático. Doponto de vista ideológico, a social-democra-cia sofre acusações dos liberais, já que estescriticam o socialismo, e dos próprios socialis-tas, que a acusam de viver bem demais com ocapitalismo, sem conseguir superá-lo.

A esquerda da social-democracia

Rosa Luxemburgo (1870-1919) e KarlLiebknecht (1871-1919) representam a alamais radical da social-democracia alemã. Dis-cordam daqueles que deram seu aval à parti-cipação da Alemanha na Primeira GuerraMundial e criticam os revisionistas comoBernstein, retomando a perspectiva revolu-cionária como forma de destruição do capita-lismo. Rosa Luxemburgo defendia a tese daespontaneidade das massas e criticava o parti-do único, cuja conseqüência é o governo dita-torial de uma minoria. Alertou severamentesobre os perigos da burocracia, que poderialevar à supressão da democracia.

Ajudou na formação da Liga Esparta-quista (o nome Espártaco lembra o escravorevoltado que desafiou o governo de Roma noano 71 da nossa era) e fundou o Partido Co-munista Alemão.

Em 1919, Rosa e Liebknecht são fuzila-dos. Na década de 30, a cisão entre o PartidoComunista Alemão e a social-democracia seráuma das causas da ascensão de Hitler ao poder.

Gramsci

Antônio Gramsci (1891-1937) foi umdos mais importantes teóricos italianos, presodurante onze anos pela ditadura fascista. Mes-mo no cárcere, onde ficou até a morte, escre-veu muito, enfatizando a crítica ao dogmatis-mo do marxismo oficial, que, ao petrificar ateoria, impedia a prática revolucionária. Suas

principais obras são Concepção dialética dahistória, Os intelectuais e a organização dacultura, Literatura e vida nacional, Cadernosdo cárcere.

Gramsci preocupa-se com o economi-cismo do marxismo tradicional expresso nainterpretação rígida da relação entre infra-es-trutura e superestrutura. Sem abandonar omaterialismo histórico dialético, torna maisflexível a relação entre o econômico e o ideo-lógico-político quando analisa o papel dos in-telectuais.

Sua contribuição teórica está sobretudoem ter compreendido que o Estado capitalistanão se impõe apenas pela coerção e violênciaexplícita, mas também por consenso, por per-suasão. Ou seja, por meio das instituições dasociedade civil, como Igreja, escola, partidospolíticos, imprensa, a ideologia da classe do-minante é difundida e preservada.

Gramsci usa o conceito de hegemoniapara explicar o processo. Etimologicamente,essa palavra significa "dirigir, guiar, condu-zir". Uma classe é hegemônica quando é ca-paz de elaborar sua própria visão de mundo,ou seja, um sistema convincente de idéias pe-las quais conquista a adesão até da classe do-minada. A tarefa de elaboração cabe aos cha-mados intelectuais orgânicos.

É dessa forma que também se impede atomada de consciência da classe dominada.Não tendo sua própria consciência de classe,permanece desorganizada e passiva, e aseventuais rebeliões não modificam a situaçãode dependência. Por isso Gramsci considera anecessidade de os elementos das classes po-pulares continuarem organicamente ligados àsua classe de forma a elaborarem, coerente ecriticamente, a experiência proletária pormeio dos seus próprios intelectuais orgânicos.Só assim será possível a unificação da teoriacom a prática, ou seja, da ação revolucionáriacom a transformação intelectual.

Gramsci abriu caminho para posterioresreflexões de Nicos Poulantzas e de LouisAlthusser, este último o teórico do conceitode aparelhos ideológicos de Estado.

A teoria crítica da sociedade

A Escola de Frankfurt surgiu na Alema-nha em 1925, representada por MaxHorkheimer, Theodor Adorno, HerbertMarcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e

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Jürgen Habermas2. Foi responsável pela for-mulação da chamada teoria crítica da socie-dade. Os principais temas dessa reflexão denatureza sociológico-filosófica são: a autori-dade, o autoritarismo, o totalitarismo, a famí-lia, a cultura de massa, o papel da ciência e datécnica, a liberdade. Embora o ponto de parti-da seja marxista, os diversos autores repensamesses temas de formas diferentes, muitas ve-zes se afastando da ortodoxia marxista.

Os frankfurtianos elaboram a teoria crí-tica da sociedade em oposição ao que cha-mam de teoria tradicional, significando estaúltima a herança da teoria marxista bem comoas diversas interpretações desse pensamento.

Uma das críticas feitas se refere ao dog-matismo dos leninistas e stalinistas quandodesenvolvem uma concepção naturalista dahistória, segundo a qual a evolução dos fatoshistóricos marcha inexoravelmente em direçãoà sociedade sem classes. Trata-se de uma con-cepção determinista e evolucionista típica do po-sitivismo predominante no final do século XIX.

Segundo a concepção naturalista, o de-senvolvimento capitalista produziria de formairreversível a alienação e pauperização cres-cente da classe operária e a agudização da cri-se resultaria na revolução e na vitória inevitá-vel do socialismo. Resulta daí a noção de pro-gresso e da inevitabilidade da violência. Re-conhece-se na evolução progressiva a passa-gem de um estádio "inferior" para outro ne-cessariamente "melhor" do que o anterior. E aviolência é considerada elemento necessárioe constitutivo do progresso: a revolução é a"locomotiva da história", fator de evolução.

Os frankfurtianos recusam a noção de pro-gresso e condenam a violência. Mas compreen-dem que esta "lógica" já estava embutida na no-ção de razão construída desde a Idade Modernapor Descartes. A exaltação da razão que culmi-na no positivismo oculta o lado escuro da razãoresponsável pela opressão e desumanização.Analisando as sociedades tecnocráticas, alta-mente tecnicizadas e "racionalizadas", a Escolade Frankfurt denuncia a perda da autonomia dosujeito, docilizado tanto pela sociedade indus-trial totalmente administrada como pelas extre-mas regressões à barbárie representada pelos Es-tados totalitários.

No processo de recuperação da razão, osfrankfurtianos reformulam o conceito de indi-víduo, reivindicando a autonomia e o direito àfelicidade. Nesse sentido dizem "não" ao sa-crifício individual das gerações presentes àsgerações futuras e criticam o revolucionário"tagarela" que exalta o sofrimento do povo aomesmo tempo que o submete à mais cruelopressão, como é o caso de Robespierre e detodos os revolucionários contraditoriamente"democráticos".

O eurocomunismo

De maneira geral, o marxismo, enquantoteoria e prática revolucionária, tem sofrido inú-meras alterações a partir das situações históri-cas do nosso tempo. A experiência soviética dototalitarismo stalinista obrigou os europeus areavaliarem vários aspectos importantes, des-de a crítica desencadeada pelo processo dedesestalinização levada a efeito por Kruchev.

Na década de 70 surge o eurocomunis-mo, pelo qual os partidos comunistas ociden-tais começam a repensar os seus próprios ca-minhos, independentemente da tutela soviéti-ca. A semelhança da social-democracia alemã,recusam a rigidez da teoria leninista da ditadu-ra do proletariado e buscam formas pacíficas edemocráticas de transformação da sociedade.

Na Itália, por exemplo, o Partido Comu-nista Italiano, liderado por Togliatti, afirma aidéia de que existem caminhos nacionais parao socialismo (policentrismo), defende opluralismo partidário e preconiza as aliançasque o proletariado deve fazer com outros gru-pos que compõem as classes populares, comocamponeses, intelectuais e camadas médias.

O Partido Comunista Francês orienta-sena mesma direção, e se em 1970 expulsara deseus quadros o filósofo Roger Garaudy sob aacusação de "revisionismo de direita", seráessa mesma a acusação dirigida por Moscouao Partido em 1976, após a atuação deGeorges Marchais no XXII Congresso daPCF. Entre outras mudanças, é substituído oconceito de ditadura do proletariado pelo de"desafio democrático", segundo o qual seriapossível promover a transição pacífica e pro-gressiva por meio do sistema representativo.

2 Habermas deve à Escola de Frankfurt a primeira orientação de seu pensamento, desenvolvendo a seguir um caminhopróprio. (Ver Quadro Cronológico.)

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Na Espanha, após a queda do ditadorFranco, a atuação de Felipe González é feitano sentido de também dar acentuada impor-tância ao projeto eleitoral e à luta pela demo-cratização social. Para tanto são valorizadosos pactos entre empresariado e trabalhadores.

Outras tendências

Têm sido inúmeras as tentativas deadaptar o materialismo histórico e dialético acorrentes filosóficas as mais diversas, não ca-bendo aqui a discussão da maioria delas.

A título de exemplo, destacamos asaproximações feitas por Merleau-Ponty entrea fenomenologia e o marxismo, e de Sartreentre o existencialismo e o engajamento polí-tico marxista e depois maoísta.

Wilhelm Reich, Marcuse e Erich Frommaproximaram Marx e a psicanálise.

As idéias marxistas, expurgadas de seuateísmo, têm servido de base teórica inclusivepara correntes cristãs, tais como a Teologia daLibertação, a fim de auxiliá-las na ação evan-gélica centrada na opção pelos pobres dospaíses subdesenvolvidos.

4. A crise do "socialismo real"

Já tivemos ocasião de dizer que a im-plantação do chamado "socialismo real" en-controu dificuldades inúmeras e desembocouem becos sem saída.

Se de início a União Soviética consegui-ra se transformar em uma potência industria-lizada, com a erradicação do analfabetismo ea resolução de inúmeros problemas sociaiscomo moradia e saúde — o que significa umaforma de democracia substancial, já que osbens produzidos são distribuídos —, por ou-tro lado sempre foi cerceada a liberdade indi-vidual, no que se refere ao direito de circula-ção, expressão e difusão da informação.

Quanto à política, muito cedo a promes-sa de que o poder deveria ser dado aossovietes foi desmentida com a crescente iden-tificação entre o Estado e o Partido Único, quesufocou o pluralismo e a possibilidade de con-testação do sistema. A centralização do podercriou a camada dirigente dos burocratas quemantinham privilégios e não conseguiam evi-tar a corrupção.

O desenvolvimento da economia militare espacial, ao sugar enormes recursos, entrouem descompasso com a insuficiente produçãode bens de consumo. A diminuição do cresci-mento levou a um período de estagnação, nãosendo mais possível evitar a queda da quali-dade de vida.

Na gestão de Brejnev (de 1964 a 1982),o gigante soviético começa a perceber nítidossinais da crise que se avizinha.

Quando Gorbatchev sobe ao poder em1985, inicia uma série de mudanças. Aperestroika, ou "reestruturação da economia",tem por objetivo quebrar a rigidez do planeja-mento estatal com a introdução de elementosde regulação de mercado. A glasnost, ou "aber-tura", "transparência", refere-se às reformasnas instituições políticas, visando a renovaçãodos quadros da velha e autoritária elite buro-crática dirigente; suas conseqüências foram alibertação dos presos políticos, a garantia daimprensa livre e da liberdade individual.

A glasnost, por ter sido desencadeada aomesmo tempo que a perestroika, trouxe ao co-nhecimento dos soviéticos fatos que acelera-ram os anseios de libertação e a impaciência deaguardar as reformas mais lentas da economia.

Em novembro de 1989, a queda do murode Berlim, símbolo da separação de dois mun-dos, teve um caráter desencadeador do proces-so de esfacelamento do Leste Europeu.

O "muro da vergonha", dividindo Berlim ao meio,era o símbolo da separação de dois mundos. Suaqueda, em novembro de 1989, acelerou o proces-so de desagregação dos Estados socialistas.

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Mantida pela força, a antiga "ordem" sedesintegra e os países-satélite Tchecoslováquia,Hungria, Polônia, Bulgária, Romênia e Alema-nha Oriental proclamam um a um a sua inde-pendência. Com exceção da Romênia, ondehouve violência na deposição do ditador, nosoutros países as revoluções eram chamadas "develudo", tal a "maciez" das transformações efe-tuadas, resultantes dos movimentos civis quereuniam pessoas de diversas tendências políticas.

Em pouco tempo a própria URSS se de-sintegra, incapaz de manter unidas as Repú-blicas constituídas por diferentes etnias. É in-troduzido o pluralismo partidário, a imprensalivre e a economia de mercado. Gorbatchevnão realiza a transição gradual que tinha emmente. Quando passa o poder para Ieltsin, en-cerra-se o capítulo da implantação do "socia-lismo real" no Leste Europeu.

Exercícios

1. O que representou a formulação do marxis-mo-leninismo na implantação do socialismo naUnião Soviética e em que medida essa teoria dege-nerou em dogmatismo?

2. Quais são as principais críticas que a so-cial-democracia faz ao socialismo soviético? Evice-versa?

3. Explique o sentido crítico da seguinte frasede Gramsci:

"Se a filosofia da práxis afirma teoricamenteque toda 'verdade' tida como eterna e absoluta teveorigens práticas e representou um valor 'provisó-rio' (historicidade de toda concepção do mundo eda vida), é muito difícil fazer compreender 'prati-camente' que uma tal interpretação seja válida tam-bém para a própria filosofia da práxis, sem comisso abalar as convicções que são necessárias para

a ação. (...) Por isso, ocorre também que a própriafilosofia da práxis tenda a se tornar uma ideologiano sentido pejorativo, isto é, um sistema dogmáti-co de verdades absolutas e eternas."

4. Quais são as principais críticas feitas pelosfrankfurtianos ao marxismo?

5. Leia a epígrafe da Segunda Parte deste ca-pítulo e explique o que está morto no marxismo.

6. Leia o texto complementar, de Paul Singer,e responda:

a) Quais são os motivos do fracasso da eco-nomia de planejamento centralizado?

b) Como a nova proposta de economia socia-lista conciliaria o público e o privado?

c) Por que essa proposta não pode ser confun-dida com os princípios do liberalismo?

Texto complementar

[A economia socialista]

Na realidade, a experiência do "socialismo real" no mundo inteiro demonstra que a estatizaçãototal e o planejamento centralizado não conduzem ao desenvolvimento das forças produtivas nem àelevação da qualidade de vida. A monopolização global da produção permite aos responsáveis pelamesma menosprezar as necessidades e preferências dos consumidores. Ao mesmo tempo, o planeja-mento minucioso de centenas de milhares de atividades, em dado patamar tecnológico, dificulta aoextremo a adoção de novos processos produtivos e a introdução de novos produtos, porque taismudanças alterariam aquele planejamento. Mesmo se o planejamento centralizado fossecompatibilizado com a democracia (...) haveria fortes razões econômicas para não adotá-lo. (...)

É claro que uma economia socialista de mercado não pode deixar de ter um setor público (emque os meios de produção pertencem a um governo), o qual deve ser suficientemente grande parapossibilitar ao governo central um adequado controle da conjuntura. O setor público seria compostobasicamente pelas atividades que constituem monopólios "naturais": produção e distribuição de ener-gia elétrica, telecomunicações, transporte público etc. Sendo monopólios, a necessidade de protegeros consumidores impõe sua estatização. Como essas atividades exigem boa parcela do investimentoglobal, sua administração centralizada permitiria ao governo estimular ou desestimular a expansão

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das empresas privadas. Desse modo evitar-se-iam os altos e baixos da economia como um todo erealizar-se-ia "a busca do pleno emprego" (princípio VIII do art. 170 da Constituição).

A economia socialista seria multiforme, com atividades privadas e públicas, exercidas em em-presas de todos os tamanhos. O seu caráter socialista decorreria do fato de que trabalhador algum seriaum "puro" assalariado, sujeito a realizar tarefas cujo sentido e finalidade não lhe concernem, apenasem troca de um pagamento. Em todo tipo de empresa, o trabalhador compartilharia da responsabilida-de pelo resultado global e teria certos direitos de interferir em sua gestão. Logo, também ninguém seria"patrão", ou seja, ninguém teria poder exclusivo de mando sobre alguma empresa. (...)

Convém notar que a concepção de uma economia socialista em que haja lugar para a livreiniciativa privada e a concorrência não representa uma adesão aos princípios do liberalismo. Dessaconcepção não decorre que a empresa privada é sempre superior à pública, que o funcionamento dosmercados não deva ser regulado por dispositivos legais, nem que a repartição da renda determinadapela competição mercantil não deva ser corrigida por impostos e transferências.

(Paul Singer, O PT e a economia de mercado, in Folha de S. Paulo, 23.11.1989, p. C-2.)

TERCEIRA PARTE — Reflexões finais

Quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidade e perplexidade.

(Habermas)

1. Fim da utopia?

O rápido desencadeamento dos fatoshistóricos que têm marcado o final do séculoXX provocam espanto, independentemente daideologia das pessoas. Mesmo aqueles que di-ziam prever o fracasso do socialismo assus-tam-se com a rapidez dos acontecimentos.

Para os socialistas que recusam aceitarque o sonho da sociedade igualitária acabou,há o consolo de reconhecer que o chamado"socialismo real" nunca foi de fato o socialis-mo sonhado, e alguns o acusam de desvio daproposta inicial.

Em outro nível de discussão, há os quepreferem não se referir a desvios, já que, seconsiderarmos a dialética da teoria e da práti-ca, a política deve ser entendida como um pro-cesso dinâmico em que as interpretações teó-ricas precisam constantemente ser ajustadasàs alterações das circunstâncias. Toda teoria éuma construção histórica, não é a verdade ab-soluta, e para que não envelheça, para sermantida viva, é preciso transformá-la quandopreciso. Uma das causas do descrédito do "so-cialismo real" resultou justamente da incapa-cidade do dogmático marxismo-leninismo emajustar-se aos novos tempos.

Marx escreveu no século XIX, e nãoexiste mais o capitalismo que ele conheceu.

Depois dele houve o fortalecimento das orga-nizações representativas do operariado, e,com os frutos da intervenção do Estadoassistencialista (Welfare State), os trabalhado-res conseguiram inegáveis vantagens queamenizaram o caráter extremamente cruel dasrelações de produção do século XIX.

Além disso, hoje há o prevalecimentodo setor terciário (serviços), e não apenas dosetor secundário (indústria), com inúmerasprofissões novas. Segmentos médios atingemníveis de especialização com boa remunera-ção e melhores condições de trabalho.

Isso não significa o fim da exploração dotrabalho, mas essas mudanças diluíram, de cer-ta forma, a evidência da miséria contempladapor Marx. Apesar disso, o capitalismo não con-segue esconder suas próprias contradições.

2. Neoliberalismo: solução ouproblema?

Os liberais se regozijam com a derrocadado Leste Europeu, contrapondo ao fracasso daeconomia planejada do "socialismo real" opretenso sucesso da economia de mercado.

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Bem-vindos ao progresso, à eficácia, àprodutividade?

O que é, afinal, o capitalismo real? Elenão consiste apenas nas luzes que costumamofuscar contradições intransponíveis. O ladosombrio parece fazer parte integrante da con-dição de crescimento do capitalismo.

A expansão do capitalismo sempre foifeita a partir da criação de laços de dependên-cia: a colonização da América do século XVIao XVIII; o imperialismo na África e Ásia noséculo XIX; no século XX, a implantação dasmultinacionais nos países não-desenvolvidos.Mais recentemente, os acordos do FMI (Fun-do Monetário Internacional) têm feito comque a ajuda dos países mais ricos aos maispobres os transforme de fato em eternos cre-dores, descapitalizados para o pagamento dosjuros da dívida. Tais laços de dependênciaeconômica resultam evidentemente em de-pendência política.

Quando nos referimos aos países maisricos do mundo, não encontramos sequer umadezena entre as 170 nações existentes. E, se adistribuição de renda é assim irregular entreos países, ela também se aprofunda nos paísessubdesenvolvidos, como o Brasil, onde a con-centração de renda atinge níveis alarmantes.

Um dos lados sombrios do capitalismoestá portanto na má distribuição de renda, comconcentração de riqueza em poucos países ri-cos, e, nestes, nos pequenos grupos de privi-legiados. Em decorrência, não há como evitaros focos de pobreza e miséria, e ainda desem-prego, migrações, marginalização de jovens evelhos, surtos inflacionários reprimidos porrecessão longa e dolorosa.

Além disso, como contraponto da evo-lução tecnológica, ocorre a destruição do meioambiente e o desequilíbrio ecológico, pois alógica do interesse privado geralmente nãocoincide com o bem coletivo.

Se ao criticar o "socialismo real" as na-ções capitalistas contrapõem com orgulho aliberdade individual existente no Ocidente, ébom lembrar que se trata de uma liberdadeformal, disponível só para os beneficiados dosistema. Ou seja, numa sociedade em que háinjusta repartição de bens, os contratos de tra-balho não são tão livres quanto se supõe. Nemé livre a "opção" do trabalhador pelo desem-prego, analfabetismo ou baixos salários.

Com isso queremos dizer que a críticafeita pelos socialistas ao capitalismo continua

válida. Ainda mais no momento presente, emque o neoliberalismo tende a rejeitar o Estadoassistencialista — que teoricamente significaa contradição com o livre mercado —, masque bem ou mal tem ajudado a minorar as di-ficuldades dos trabalhadores. Daqui para fren-te, na selva do "salve-se quem puder", onde jásabemos de antemão que as chances no pontode partida não são iguais, a tendência é o re-crudescimento dos problemas sociais.

3. Onde está a saída?

O problema é que a saída deve serconstruída. Ela não existe no momento, a nãoser em esboços de teorias ainda incipientes enas soluções práticas muitas vezes apressadasque freqüentemente têm levado os países socia-listas ao agravamento da crise e a retrocessos.

Se são verdadeiras as críticas feitas aosocialismo real e ao capitalismo real, é precisoreinventar a política. Se, como disse Bobbio, ocapitalismo é o estado da injustiça e o socialis-mo, o da não-liberdade, é preciso agora desco-brir a maneira de conciliar a igualdade de opor-tunidades com a liberdade, ou seja, unir socia-lismo e democracia.

Há quem considere tratar-se de empresaimpossível, argumentando serem incompatí-veis a economia socialista e a política demo-crática. Segundo alguns críticos, a implanta-ção do socialismo exige a estatização, ocentralismo da economia planejada, dondedecorre a burocracia e conseqüentemente ahierarquia e a perda de procedimentos demo-cráticos. Quanto mais existe planejamentocentral, mais próximo fica o autoritarismo e/ou o totalitarismo. Portanto, o stalinismo nãoteria sido apenas "desvio" de rota, mas o ca-minho inevitável do socialismo.

Para outros, no entanto, o que existe éapenas a constatação de que o "socialismo real"não soube fazer a conciliação com a democra-cia, e seria bom que essa experiência ajudassea experimentar novos caminhos.

A saída estaria na economia mista, reu-nindo empresas estatais e particulares a fimde conjugar a economia de planejamento coma economia de mercado. Afinal, entre os ex-tremos do laissez-faire e do estatismo, devemexistir fórmulas as mais variadas e inteligen-tes de controle da economia.

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Para o funcionamento adequado desta,seriam necessários mecanismos políticos paragarantir o prevalecimento de valores coletivossobre os individuais. Os abusos, tanto do Es-tado como dos grupos privados, seriam con-trolados pelo estado de direito e por organiza-ções da sociedade civil que pudessem garan-tir a co-participação na formação das vonta-des e decisões.

Exercícios

1. Pesquise a etimologia da palavra utopia.Explique como esse conceito pode ser interpretadotanto de uma forma pejorativa como pode signifi-car algo positivo e necessário para o ser humano.

2. Tendo em vista o que foi discutido nestecapítulo (e na Unidade também), faça uma disser-

Nesse sentido, o reconhecimento do fra-casso da economia de planos pode significarnão o retorno puro e simples à economia demercado, mas a exigência de novas estruturaspolíticas, sociais e econômicas que permitama gestão do patrimônio público e privado demaneira a impedir privilégios ou exploração egarantir iguais oportunidades de trabalho e deacesso aos bens produzidos pela sociedade.

tação fundamentando com argumentos seu pontode vista a respeito de um dos seguintes assuntos:

a) Entre o liberalismo e o socialismo, defendo...b) Entre o liberalismo e o socialismo não de-

fendo nenhum deles, mas...

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UNIDADE VA MORAL

Cada pessoa responde sozinha pelo que faz, diante de sua própria consciênciamoral. Contudo o ato moral nunca é solitário e sim solidário, porque traz aexigência do respeito e do compromisso com os outros. Daí a imoralidadede todo preconceito, denunciada no cartaz: "Racismo — Perigo — Vivamos

juntos com nossas diferenças".

A verdadeira moral zomba da moral.

(Pascal)

1. Os valores

Diante de pessoas e coisas, estamos cons-tantemente fazendo juízos de valor. Esta cane-ta é ruim, pois falha muito. Esta moça é atraen-te. Este vaso pode não ser bonito, mas foi pre-sente de alguém que estimo bastante, por isso,cuidado para não quebrá-lo! Gosto tanto de diachuvoso, quando não preciso sair de casa!Acho que João agiu mal não ajudando você.

Isso significa que fazemos juízos derealidade, dizendo que esta caneta, esta moça,este vaso existem, mas também emitimosjuízos de valor quando o mesmo conteúdomobiliza nossa atração ou repulsa. Nos exem-plos, referimo-nos, entre outros, a valores queencarnam a utilidade, a beleza, a bondade.

Mas o que são valores? Embora a preo-cupação com os valores seja tão antiga comoa humanidade, só no século XIX surge umadisciplina específica, a teoria dos valores ouaxiologia (do grego axios, "valor"). A axiologianão se ocupa dos seres, mas das relações quese estabelecem entre os seres e o sujeito queos aprecia.

Diante dos seres (sejam eles coisas iner-tes, ou seres vivos, ou idéias etc.) somos mo-bilizados pela afetividade, somos afetados dealguma forma por eles, porque nos atraem ouprovocam nossa repulsa. Portanto, algo pos-sui valor quando não permite que permaneça-mos indiferentes. É nesse sentido que GarciaMorente diz: "Os valores não são, mas valem.

Uma coisa é valor e outra coisa é ser. Quandodizemos de algo que vale, não dizemos nadado seu ser, mas dizemos que não é indiferen-te. A não-indiferença constitui esta variedadeontológica que contrapõe o valor ao ser. Anão-indiferença é a essência do valer"1.

Os valores são, num primeiro momento,herdados por nós.

O mundo cultural é um sistema de sig-nificados já estabelecidos por outros, de talmodo que aprendemos desde cedo como noscomportar à mesa, na rua, diante de estranhos,como, quando e quanto falar em determina-das circunstâncias; como andar, correr, brin-car; como cobrir o corpo e quando desnudá-lo; qual o padrão de beleza; que direitos e de-veres temos. Conforme atendemos ou trans-gredimos os padrões, os comportamentos sãoavaliados como bons ou maus.

A partir da valoração, as pessoas nos re-criminam por não termos seguido as formasda boa educação ao não ter cedido lugar à pes-soa mais velha; ou nos elogiam por sabermosescolher as cores mais bonitas para a decora-ção de um ambiente; ou nos admoestam portermos faltado com a verdade. Nós própriosnos alegramos ou nos arrependemos ou atésentimos remorsos dependendo da ação prati-cada. Isso quer dizer que o resultado de nos-sos atos está sujeito à sanção, ou seja, ao elo-gio ou à reprimenda, à recompensa ou à puni-

1 Garcia Morente, M. Fundamentos de filosofia; lições preliminares, p. 296.

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CAPÍTULO 27INTRODUÇÃO

À MORAL

(Quino, Toda Mafalda, São Paulo, Martins Fontes, 1991.)

ção, nas mais diversas intensidades, desde"aquele" olhar da mãe, a crítica de um amigo,a indignação ou até a coerção física (isto é, arepressão pelo uso da força).

Embora haja diversos tipos de valores(econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos,religiosos), consideramos neste capítulo ape-nas os valores éticos ou morais.

2. A moral

Os conceitos de moral e ética, emborasejam diferentes, são com freqüência usadoscomo sinônimos. Aliás, a etimologia dos ter-mos é semelhante: moral vem do latim mos,moris, que significa "maneira de se compor-tar regulada pelo uso", daí "costume", e demoralis, morale, adjetivo referente ao que é"relativo aos costumes". Ética vem do gregoethos, que tem o mesmo significado de "cos-tume".

Em sentido bem amplo, a moral é o con-junto das regras de conduta admitidas em de-terminada época ou por um grupo de homens.Nesse sentido, o homem moral é aquele queage bem ou mal na medida em que acata outransgride as regras do grupo.

A ética ou filosofia moral é a parte dafilosofia que se ocupa com a reflexão a res-peito das noções e princípios que fundamen-tam a vida moral. Essa reflexão pode seguiras mais diversas direções, dependendo da con-cepção de homem que se toma como ponto departida.

Então, à pergunta "O que é o bem e omal?", respondemos diferentemente, caso ofundamento da moral esteja na ordem cósmica,na vontade de Deus ou em nenhuma ordem ex-terior à própria consciência humana. Podemosperguntar ainda: Há uma hierarquia de valores?

Se houver, o bem supremo é a felicidade? É oprazer? É a utilidade?

Por outro lado, é possível questionar: Osvalores são essências? Têm conteúdo determi-nado, universal, válido em todos os tempos elugares? Ou, ao contrário, são relativos: "ver-dade aquém, erro além dos Pireneus", comodizia Pascal? Ou, ainda, haveria possibilidadede superação das duas posições contraditóriasdo universalismo e do relativismo?

As respostas a essas e outras questõesnos darão as diversas concepções de vida mo-ral elaboradas pelos filósofos através dos tem-pos (ver próximo capítulo).

3. Caráter histórico e social damoral

A fim de garantir a sobrevivência, o ho-mem submete a natureza por meio do traba-lho. Para que a ação coletiva se torne possí-vel, surge a moral, com a finalidade de orga-nizar as relações entre os indivíduos.

Inicialmente, consideremos a moralcomo o conjunto de regras que determinam ocomportamento dos indivíduos em um gruposocial.

É de tal importância a existência domundo moral que se torna impossível imagi-nar um povo sem qualquer conjunto de regras.Uma das características fundamentais do ho-mem é ser capaz de produzir interdições (proi-bições). Segundo o antropólogo francês Lévi-Strauss, a passagem do reino animal ao reinohumano, ou seja, a passagem da natureza àcultura, é produzida pela instauração da lei,por meio da proibição do incesto. É assim quese estabelecem as relações de parentesco e dealiança sobre as quais é construído o mundohumano, que é simbólico.

274

Exterior e anterior ao indivíduo, há por-tanto a moral constituída, que orienta seucomportamento por meio de normas. Em fun-ção da adequação ou não à norma estabeleci-da, o ato será considerado moral ou imoral.

O comportamento moral varia de acor-do com o tempo e o lugar, conforme as exi-gências das condições nas quais os homens seorganizam ao estabelecerem as formas efeti-vas e práticas de trabalho. Cada vez que as re-lações de produção são alteradas, sobrevêmmodificações nas exigências das normas decomportamento coletivo.

Por exemplo, a Idade Média se carac-teriza pelo regime feudal, baseado na rígidahierarquia de suseranos, vassalos e servos. Otrabalho é garantido pelos servos, possibili-tando aos nobres uma vida de ócio e de guer-ra. A moral cavalheiresca que daí deriva re-side no pressuposto da superioridade da clas-se dos nobres, exaltando a virtude da lealda-de e da fidelidade — suporte do sistema desuserania — bem como a coragem do guer-reiro. Em contraposição, o trabalho é desva-lorizado e restrito aos servos. Essa situaçãose altera com o aparecimento da burguesia, aqual, formada pela classe de trabalhadoresoriunda da liberação dos servos, estabelecenovas relações de trabalho e faz surgir novosvalores, como a valorização do trabalho e acrítica à ociosidade.

4. Caráter pessoal da moral

No entanto, a moral não se reduz à he-rança dos valores recebidos pela tradição. Amedida que a criança se aproxima da adoles-cência, aprimorando o pensamento abstrato ea reflexão crítica, ela tende a colocar em ques-tão os valores herdados. Algo semelhanteacontece nas sociedades primitivas, quando osgrupos tribais abandonam a abrangência daconsciência mítica e desenvolvem o questio-namento racional.

A ampliação do grau de consciência ede liberdade, e portanto de responsabilidadepessoal no comportamento moral, introduzum elemento contraditório que irá, o tempotodo, angustiar o homem: a moral, ao mesmotempo que é o conjunto de regras que deter-mina como deve ser o comportamento dos in-divíduos do grupo, é também a livre e cons-ciente aceitação das normas.

Isso significa que o ato só é propriamen-te moral se passar pelo crivo da aceitação pes-soal da norma. A exterioridade da moral con-trapõe-se à necessidade da interioridade, daadesão mais íntima.

Portanto, o homem, ao mesmo tempoque é herdeiro, é criador de cultura, e só terávida autenticamente moral se, diante da mo-ral constituída, for capaz de propor a moralconstituinte, aquela que é feita dolorosamentepor meio das experiências vividas.

Nessa perspectiva, a vida moral se fundanuma ambigüidade fundamental, justamente aque determina o seu caráter histórico. Todamoral está situada no tempo e reflete o mundoem que a nossa liberdade se acha situada.Diante do passado que condiciona nossos atos,podemos nos colocar à distância para reassumi-lo ou recusá-lo. A historicidade do homem nãoreside na mera continuidade no tempo, masconstitui a consciência ativa do futuro, que tor-na possível a criação original por meio de umprojeto de ação que tudo muda.

Cada um sabe, por experiência pessoal,como isso é penoso, pois supõe a descobertade que as normas, adequadas em determinadomomento, tornam-se caducas e obsoletas emoutro e devem ser mudadas. As contradiçõesentre o velho e o novo são vividas quando asrelações estabelecidas entre os homens, aoproduzirem sua existência por meio do traba-lho, exigem um novo código de conduta.

Mesmo quando queremos manter as an-tigas normas, há situações críticas enfrentadasdevido à especificidade de cada acontecimen-to. Por isso a cisão também pode ocorrer apartir do enredo de cada drama pessoal: a sin-gularidade do ato moral nos coloca em situa-ções originais em que só o indivíduo livre eresponsável é capaz de decidir. Há certas "si-tuações-limite", tão destacadas pelo existen-cialismo, em que regra alguma é capaz deorientar a ação. Por isso é difícil, para as pes-soas que estão "do lado de fora", fazer a ava-liação do que deveria ou não ser feito.

5. Caráter social e pessoal damoral

Como vimos, a análise dos fatos moraisnos coloca diante de dois pólos contraditórios:de um lado, o caráter social da moral, de ou-tro, a intimidade do sujeito.

275

Se aceitarmos unicamente o caráter so-cial da moral, sucumbimos ao dogmatismo eao legalismo. Isto é, ao caracterizar o ato mo-ral como aquele que se adapta à norma esta-belecida, privilegiamos os regulamentos, osvalores dados e não discutidos. Nessa pers-pectiva, a educação moral visa apenas incul-car nas pessoas o medo às conseqüências danão-observância da lei.

Trata-se, no entanto, de vivência moralempobrecida, conhecida como farisaísmo:numa passagem bíblica, um fariseu (membrode uma seita religiosa) louva o seu própriocomportamento, agradecendo a Deus por nãoser "como os outros" que transgridem as nor-mas. Tal formalismo muitas vezes está ligadoà pretensão e à hipocrisia.

Por outro lado, se aceitarmos como pre-dominante a interrogação do indivíduo quepõe em dúvida a regra, corremos o risco dedestruir a moral, pois, quando ela dependeexclusivamente da sanção pessoal, recai noindividualismo, na "tirania da intimidade" e,conseqüentemente, no amoralismo, na ausên-cia de princípios. Ora, o homem não é um sersolitário, um Robinson Crusoé na ilha deser-ta, mas "con-vive" com pessoas, e qualquerato seu compromete os que o cercam.

Portanto, é preciso considerar os doispólos contraditórios do pessoal e do socialnuma relação dialética, ou seja, numa rela-ção que estabeleça o tempo todo a implicaçãorecíproca entre determinismo e liberdade, en-tre adaptação e desadaptação à norma, aceita-ção e recusa da interdição.

Para tanto, o aspecto social é considera-do sob dois pontos de vista. Em primeiro lu-gar, significa apenas a herança dos valores dogrupo, mas, depois de passar pelo crivo da di-mensão pessoal, o social readquire a perspec-tiva humana e madura que destaca a ênfase naintersubjetividade essencial da moral. Isto é,quando criamos valores, não o fazemos paranós mesmos, mas enquanto seres sociais quese relacionam com os outros.

Essa questão é importante sobretudo nostempos atuais, quando nos encontramos noextremo oposto das sociedades primitivas outradicionais, nas quais persiste a homogenei-dade de pensamento e valores. Hoje, nas cida-des cosmopolitas, há múltiplas expressões de

moralidade, e a sabedoria consiste na aceita-ção tolerante dos valores dos grupos diferen-tes, evitando o moralismo, que consiste natentação de impor nosso ponto de vista aosoutros.

Isso não deve ser interpretado como de-fesa do extremo relativismo em que todas asformas de conduta são aceitas indistintamen-te. O professor José Arthur Gianotti assim seexpressa: "Os direitos do homem, tais comoem geral têm sido enunciados a partir do sé-culo XVIII, estipulam condições mínimas doexercício da moralidade. Por certo, cada umnão deixará de aferrar-se à sua moral; deve,entretanto, aprender a conviver com outras,reconhecer a unilateralidade de seu ponto devista. E com isto está obedecendo à sua pró-pria moral de uma maneira especialíssima, to-mando os imperativos categóricos dela comoum momento particular do exercício humanode julgar moralmente. Desse modo, a moraldo bandido e a do ladrão tornam-se repreensí-veis do ponto de vista da moralidade pública,pois violam o princípio da tolerância e atin-gem direitos humanos fundamentais"2.

6. O ato moral

Estrutura do ato moral

A instauração do mundo moral exige dohomem a consciência crítica, que chamamosde consciência moral. Trata-se do conjunto deexigências e das prescrições que reconhece-mos como válidas para orientar a nossa esco-lha; é a consciência que discerne o valor mo-ral dos nossos atos.

O ato moral é portanto constituído dedois aspectos: o normativo e o fatual.

O normativo são as normas ou regrasde ação e os imperativos que enunciam o"dever ser".

O fatual são os atos humanos enquantose realizam efetivamente.

Pertencem ao âmbito do normativo re-gras como: "Cumpra a sua obrigação de estu-dar"; "Não minta"; "Não mate". O campo dofatual é a efetivação ou não da norma na ex-periência vivida. Os dois pólos são distintos,mas inseparáveis. A norma só tem sentido se

• José Arthur Gianotti, Moralidade pública e moralidade privada, in Adauto Novaes (org.), Ética, p. 245.

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orientada para a prática, e o fatual só adquirecontorno moral quando se refere à norma.

O ato efetivo será moral ou imoral, con-forme esteja de acordo ou não com a normaestabelecida. Por exemplo, diante da norma"Não minta", o ato de mentir será considera-do imoral. Convém lembrar aqui a discussãoestabelecida anteriormente a respeito do so-cial e do pessoal na moral. Nesse caso estamosconsiderando que o ato só pode ser moral ouimoral se o indivíduo introjetou a norma e atornou sua, livre e conscientemente.

Considera-se amoral o ato realizado àmargem de qualquer consideração a respeitodas normas. Trata-se da redução ao fatual, ne-gando o normativo. O homem "sem princí-pios" quer pautar sua conduta a partir de si-tuações do presente e ao sabor das decisõesmomentâneas, sem nenhuma referência a va-lores. É a negação da moral.

Convém distinguir a postura amoral danão-moral, quando usamos outros critérios deavaliação que não são os da moral. Por exem-plo, quando é feita a avaliação estética de umlivro, a postura do crítico é não-moral; issonão significa que ele próprio não tenha princí-pios morais nem que a própria obra não possaser imoral, mas o que está sendo observado éo valor da obra como arte. As discussões arespeito do que é ou não é uma obra porno-gráfica se encontram muitas vezes prejudica-das devido à intromissão da moral em camposonde não foi chamada, o que muitas vezes temjustificado indevidamente a ação da censura.

O ato voluntário

Se o que caracteriza fundamentalmenteo agir humano é a capacidade de antecipaçãoideal do resultado a ser alcançado, concluímosque é isso que torna o ato moral propriamentevoluntário, ou seja, um ato de vontade quedecide pela busca do fim proposto.

Nesse sentido, é importante não confun-dir desejo e vontade. O desejo surge em nóscom toda a sua força e exige a realização; éalgo que se impõe e, portanto, não resulta deescolha. Já a vontade consiste no poder de pa-rada que exercemos diante do desejo.

Seguir o impulso do desejo sempre queele se manifesta é a negação da moral e dapossibilidade de qualquer vida em sociedade.Aliás, não é essa a aprendizagem da criança,que, a partir da tirania do desejo, deve chegar

ao controle do desejo? Observe que nãoestamos dizendo repressão do desejo, pois arepressão é uma força externa que coage, en-quanto o controle supõe a autonomia do sujei-to que escolhe entre os seus desejos, osprioriza e diz: "Este fica para depois"; "Aque-le não devo realizar nunca"; "Este realizo ago-ra com muito gosto"...

O ato responsável

A complexidade do ato moral está nofato de que ele provoca efeitos não só na pes-soa que age, mas naqueles que a cercam e naprópria sociedade como um todo.

Portanto, para que um ato seja conside-rado moral, ele deve ser livre, consciente, in-tencional, mas também é preciso que não sejaum ato solitário e sim solidário. O ato moralsupõe a solidariedade, a reciprocidade comaqueles com os quais nos comprometemos. Eo compromisso não deve ser entendido comoalgo superficial e exterior, mas como o ato quederiva do ser total do homem, como uma "pro-messa" pela qual ele se encontra vinculado àcomunidade.

Dessas características decorre a exigên-cia da responsabilidade. Responsável é aque-le que "responde por seus atos", isto é, o ho-mem consciente e livre assume a autoria doseu ato, reconhecendo-o como seu e respon-dendo pelas conseqüências dele.

O dever e a liberdade

O comportamento moral é consciente,livre e responsável. É também obrigatório,cria um dever. Mas a natureza da obrigatorie-dade moral não reside na exterioridade; é mo-ral justamente porque deriva do próprio sujei-to que se impõe a necessidade do cumprimen-to da norma. Pode parecer paradoxal, mas aobediência à lei livremente escolhida não éprisão; ao contrário, é liberdade.

A consciência moral, como juiz interno,avalia a situação, consulta as normas estabe-lecidas, as interioriza como suas ou não, tomadecisões e julga seus próprios atos. O com-promisso humano que daí deriva é a obediên-cia à decisão.

No entanto, o compromisso não excluia não-obediência, o que determinará justa-mente o caráter moral ou imoral do nossoato. Por isso o filósofo existencialista Gabriel

277

Marcel diz: "O homem livre é o homem quepode prometer e pode trair". Isso significaque, para sermos realmente livres, devemoster a possibilidade sempre aberta da trans-gressão da norma, mesmo daquela que nósmesmos escolhemos.

Para entendermos melhor, considere-mos as noções de heteronomia e autonomia.

A palavra heteronomia (hetero, "dife-rente", e nomos, "lei") significa a aceitação danorma que não é nossa, que vem de fora,quando nos submetemos aos valores da tradi-ção e obedecemos passivamente aos costumespor conformismo ou por temor à reprovaçãoda sociedade ou dos deuses. É característicado mundo infantil viver na heteronomia.

A autonomia {auto, "próprio") não negaa influência externa e os determinismos, masrecoloca no homem a capacidade de refletirsobre as limitações que lhe são impostas, apartir das quais orienta a sua ação para supe-rar os condicionamentos. Portanto, quandodecide pelo dever de cumprir uma norma, ocentro da decisão é ele mesmo, a sua própriaconsciência moral. Autonomia é autodetermi-nação.

A virtude

Etimologicamente, virtude vem da pala-vra latina vir, que designa o homem, o varão.Virtus é "poder", "potência" (ou possibilida-de de passar ao ato). Virilidade está ligada àidéia de força, de poder. Virtuose é aquele ca-paz de exercer uma atividade em nível de ex-celência, como, por exemplo, um virtuose doviolino.

Em todos esses sentidos persiste a idéiade força, de capacidade. Em moral, a virtudedo homem é a força com a qual ele se aplicaao dever e o realiza. A virtude é a permanentedisposição para querer o bem, o que supõe acoragem de assumir os valores escolhidos eenfrentar os obstáculos que dificultam a ação.

Uma vida autenticamente moral não seresume a um ato moral, mas é a repetição e con-tinuidade do agir moral. Aristóteles afirmavaque "uma andorinha, só, não faz verão" paradizer que o agir virtuoso não é ocasional e for-tuito, mas deve se tornar um hábito, fundadono desejo de continuidade e na capacidade deperseverar no bem. Ou seja, a verdadeira vidamoral se condensa na vida virtuosa.

7. Conclusão

O delicado tecido da moral diz respeitoao indivíduo no mais fundo de seu "foro ínti-mo", ao mesmo tempo que o vincula aos ho-mens com os quais convive.

Embora a ética não se confunda com apolítica, cada uma tendo seu campo específi-co, elas se relacionam necessariamente. Porum lado, a política, ao estender a justiça so-cial a todos, permite a melhor formação mo-ral dos indivíduos. Por outro lado, as exigên-cias éticas não se separam da ação dos gover-nantes, que não devem interpor seus interessespessoais aos coletivos.

Estabelecer a dialética entre o privado eo público é tarefa das mais difíceis e exigeaprendizagem e têmpera. É assim que se forjao caráter das pessoas.

Exercícios

1. O que significa dizer que "a não-indiferen-ça é a essência do valor"?

2. Explique esta afirmação: O homem, dife-rentemente do animal, é capaz de produzir inter-dições.

3. Em que consiste o caráter histórico-socialda moral? E o caráter pessoal?

4. Ao explicar a superação dos dois póloscontraditórios da moral (o social e o pessoal), ana-lise a citação de Pascal que consta da epígrafe docapítulo: "A verdadeira moral zomba da moral".

5. Por que, mesmo considerando a tolerânciaum valor máximo da convivência humana, nãoaceitamos a moral de grupos como a Máfia, a Klu-Klux-Klan ou grupos neonazistas?

6. O que determina que um ato seja conside-rado moral ou imoral?

7. O que é um ato amoral? E o não-moral?

8. Todo ato moral deve ser julgado em fun-ção dos motivos, fins, meios, resultados. Expliquecomo esses aspectos se inter-relacionam.

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9. Explique: "Não há moral do desejo; só émoral o ato voluntário".

10. O que é heteronomia? E autonomia?

11. O que significa progresso moral? Por quenão pode ser identificado com mudança moral?

12. Explique: No mundo contemporâneo, mui-tas pessoas não têm condição de vida autentica-mente moral.

13. Leia o texto complementar I, "O crime'elegante'", e responda às questões:

a) Quais são os tipos de violência analisados notexto?

b) Explique como numa sociedade dividida emclasses há, ao lado da violência física aparente, umoutro tipo de violência que é velada (que não serevela à primeira vista).

c) Explique como a ênfase dada à violência fí-sica de rua denota uma postura individualista.

d) Indique outros tipos de distorção semelhan-tes na avaliação dos atos de violência.

e) Interprete o texto usando os conceitos apren-didos no Capítulo 5 — Ideologia.

14. Leia o texto complementar II, "Interdiçãoe transgressão", e responda:

a) O que significa "um tipo de transgres-são que não suprima as interdições, mas as mante-nha transgredidas"?

b) Qual é a diferença entre a transgressãoautêntica e a pseudotransgressão?

15. Leia o texto III, "Diante da Lei", e inter-prete-o usando os conceitos aprendidos. Seguemalgumas sugestões:

a) O camponês "esquece-se dos outros","retorna à infância", "enfraquece-se", "diminui detamanho", "morre": qual é a conotação dessas ex-pressões se considerarmos o comportamento mo-ral do camponês? O que significa "morrer" nessecontexto?

b) Explique o significado do guarda na portada Lei, recorrendo aos conceitos de heteronomia eautonomia.

c) Interprete a última frase do texto a partir doaspecto pessoal da moral.

d) Relacione o texto de Kafka com o anterior,"Interdição e transgressão", explicando qual foi oprincipal erro do camponês.

Textos complementares

IO crime "elegante"

Os temas da violência urbana são importantes, mas estão permitindo que se tire de foco outraviolência cujas conseqüências são muito mais sérias para a sociedade como um todo: a dos crimino-sos de paletó e gravata.

Essa desfocagem é gravíssima. O grupo social está consciente do perigo do "trombadinha".Tem raiva do ladrão. São muitos os que proclamam as vantagens da pena de morte para assassinos eestupradores. Todavia, encara com indiferença e até com desalentada passividade que o grandegolpista dos dólares, o despudorado ladrão de ações, o cínico criminoso das empresas públicas, oimpiedoso manipulador do mercado imobiliário fiquem impunes.

Essa é uma atitude irracional e primária. Entretanto, aparentemente, inevitável. O canalhacolunável que se sustenta em sucessivos golpes, ao preço da infelicidade e do patrimônio alheio,muitas vezes levando famílias inteiras à ruína, é encarado como aventureiro ousado e, às vezes, atémesmo como provido de um certo charme. O "trombadinha", ainda que menor de idade, ao tirar umacarteira e sair em disparada, sempre encontra quem o queira linchar. Sobre ele se abate, com facili-dade, a baba do ódio que está alojada nos sentimentos do povo.

A causa aparente do absurdo está na indiferença ante o grande dano coletivo e a fúria cada vezmais agravada contra a ofensa individual. O mundo inteiro — é evidente que sob o impacto de co-bertura maciça da imprensa escrita e da televisão — se sensibilizou até as lágrimas com o caso dosreféns americanos. Todavia, são muito poucos os que se afligem com as dezenas de crianças quediariamente morrem de inanição neste nosso Brasil. Do ponto de vista do direito essa atitude reper-cute em leis que tendem a ser cada vez mais rigorosas com o pequeno criminoso individual, aindaque brutal e impiedoso, e cada vez mais generosas com os "assaltantes" que ouvem Bach, que distin-guem Picasso de Miró, a um primeiro olhar, ou que, simplesmente, tendo amealhado fortuna, sen-tem-se desobrigados de qualquer gesto de respeito pelo patrimônio alheio ou pela dignidade.

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A lei, pelo tratamento benévolo que dá a esses delitos, incentiva-os. Isto, sem falar em suaproverbial impunidade. Tende a lei a não ser alterada, porque o grupo social não consegue sensibili-zar-se para a imensa fonte de danos que tais delitos provocam. Diversamente portanto do que acon-tece com os crimes individuais geralmente praticados pelo maloqueiro e pelo favelado, e, por isso,juridicamente "pequenos".

Alguns exemplos ilustram o que quero dizer. O cidadão que, por culpa, provoque poluição deuma fonte de água potável sujeita-se a detenção de seis meses a dois anos, embora ponha em risco avida e a saúde de muita gente, como se tem visto em casos repetidos. Aquele que corrompa, adultereou falsifique substância alimentícia destinada ao consumo público sujeita-se a uma pena máxima deseis anos. Ou seja, dois anos mais que a do autor de apropriação indébita de uma caneta-tinteiro.Todavia, dois anos menos que o criminoso do furto qualificado, ainda que o produto seja de umaspoucas centenas de cruzeiros.

O funcionário público, prevaricador — tanto o pequeno quanto o grande potentado do serviçopúblico —, que retarde ou deixe de praticar indevidamente ato de ofício, para satisfazer interesse ousentimento pessoal, corre o risco máximo — rarissimamente aplicado — de um ano de detenção,seja qual for a relevância social do ato praticado.

A formulação da lei tem um defeito de origem, como se demonstraria com mais outros exem-plos, se fossem necessários. Os que aí ficaram são, porém, suficientes para evidenciar outro aspectorelevante: é a elite que faz a lei. Escreve-a a seu gosto, voltada para seus principais interesses. Osúnicos, aliás, de que tem compreensão adequada. Só assim é possível entender que a fraude nocomércio, consistente em enganar intencionalmente o adquirente ou o consumidor, vendendo mer-cadoria falsificada ou deteriorada como se fosse verdadeira, merece apenas detenção de seis meses adois anos, pouco importando qual o prejuízo causado ou quais sejam os enganados. Porém, para orufião, que explora uma prostituta, a pena é de reclusão de um a quatro anos. O pequeno comercian-te, porém, pode até ser levado a ajoelhar-se diante do juiz, como aconteceu há pouco3. É a puniçãoque recebe por ser pequeno...

A óptica social está errada. A atitude da sociedade é burra, quando fecha os olhos para o crimi-noso de punhos de seda, cuja conduta tem um terrível subproduto ainda insuficientemente avaliado.Subproduto consistente na contribuição para o agravamento das condições sócio-econômicas damaioria do povo, geradores principais das agressões urbanas. E, paradoxo dos paradoxos: algumasdas vozes mais calorosas do combate à violência assustadora mas nascida no submundo da metrópo-le certamente seriam caladas se fosse possível punir a grande e desumana violência dos criminososde paletó e gravata. Isso porque algumas dessas vozes pertencem a eles. Essa é uma realidade queainda não atingiu a consciência do povo.

(Walter Ceneviva, in Folha de S. Paulo, 6.2.1981.)

IIInterdição e transgressão

O homem é o ser que produz interdições. (...) A vida social, com as suas normas e as suashierarquizações, as suas instituições e os seus sistemas simbólicos, exige necessariamente uma redede interdições que assinalam os lugares de ruptura entre o homem e o animal.

Mas o que define o homem é a transgressão. Não quer isto dizer que se pretenda um regresso ànatureza, mas sim um tipo de transgressão que não suprima as interdições, mas as mantenhatransgredidas. Existe, assim, "uma cumplicidade profunda da lei e de sua violação"*. (...) A trans-gressão é o rasgar das normas, é a subversão de uma ordem. Existem inúmeras formas de existênciainautêntica, que são aquelas que nos indicam as diversas figuras da alienação. A existência autêntica

3 O autor se refere a um caso noticiado nos jornais: por questões pessoais, o juiz de direito de uma cidade do interior doEstado de São Paulo humilhou um padeiro, obrigando-o a ajoelhar-se e pedir perdão.

* Georges Bataille.

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é a que se lança na exploração do possível rumo ao impossível que lhe acena e a obceca, lugarabsoluto da ação, limiar da loucura.

A existência inautêntica pode subordinar-se à Lei, reificá-la nas formas instituídas da aliena-ção, projetá-la nos instrumentos opressivos do capitalismo: teremos o universo modelar do catecis-mo e da "moralina", das boas ações e dos bons sentimentos, dos discursos de inauguração e dosartigos de fundo, do adocicado e viscoso da palavra virtuosa, da mediocridade resignada e quasefeliz no seu destino dócil, dos mitos da autoridade e da identidade, do comportamento íntegro quenão oferece dúvidas.

(...) Devemos distinguir entre a transgressão autêntica e a pseudotransgressão a que a nossacivilização repressiva nos habituou. Como nota Sollers, "uma tal libertação é apenas a máscara deuma repressão redobrada". As pseudotransgressões são brechas abertas na muralha da moral queapenas servem para consolidar a resistência dessa muralha. É por isso que certas atitudes "escanda-losas" são toleradas, e até mesmo cultivadas, porque elas constituem a face demoníaca que estabele-ce, numa sutil contabilidade, o equilíbrio da repressão social. Determinados meios, determinadascamadas (a juventude como momento de purificação que antecede a austeridade de uma vida), deter-minadas ruas, determinadas formas de clandestinidade, são apenas álibis por meio dos quais a so-ciedade obtém a dosagem exata da sua moral.

"Ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mérite ni égards ni patience."4 (René Char)

(Eduardo Prado Coelho, Introdução à obra Estruturalismo; antologia de textos teóricos. Lis-boa, Martins Fontes, Portugália Ed., p. LXVIII.)

IIIDiante da Lei

Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhepermita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixá-lo entrar. O homemreflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar.

— E possível — disse o porteiro —, mas não agora.A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o

homem inclina-se para espiar. O guarda vê isso, ri-se e lhe diz:— Se tão grande é o teu desejo, experimenta entrar apesar de minha proibição. Mas lembra-te

de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas. Entre salão e salão também existemguardas, cada qual mais poderoso do que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não possosuportar seu aspecto.

O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível paratodos, pensa ele, mas ao observar o guarda, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como deáguia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar. O guarda dá-lheum banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitasvezes entrar, e cansa ao guarda com suas súplicas. Com freqüência o guarda mantém com ele brevespalestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indife-rentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valio-so que seja, para subornar ao guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz:

— Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço.Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece-se dos

outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz sua má sorte, durante os

4 "Aquele que vem ao mundo para nada alterar não merece nem consideração nem paciência."

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primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmurapara si. Retorna à infância, e, como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até aspulgas de seu abrigo de pele, também suplica às pulgas que o ajudem e convençam ao guarda. Final-mente, sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganamseus olhos. Mas em meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da portada Lei. Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anosse confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formou. Faz sinais ao guardapara que se aproxime, já que o rigor da morte endurece seu corpo. O guarda vê-se obrigado a baixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estaturas entre ambos aumentou bastante com otempo, para detrimento do camponês.

— Que queres saber agora? — pergunta o guarda. — És insaciável.— Todos se esforçam por chegar à Lei — diz o homem —; como é possível então que durante

tantos anos ninguém mais do que eu pretendesse entrar?O guarda compreende que o homem já está para morrer, e, para que seus desfalecentes senti-

dos percebam suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz atroadora:— Ninguém podia pretender isso, porque esta entrada era somente para ti. Agora vou fechá-la.

(F. Kafka, Diante da Lei, in A colônia penal, São Paulo, Livr. Exposição do Livro, 1965, p. 71.)

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A civilização científico-técnica confrontou todos os povos, nação, culturas com suas tradições morais,culturais e grupais com suas respectivas específicidades. Pela primeira vez na história da humanidade, oshomens estão diante da tarefa prática de assumir a responsabilidade solidária pelas conseqüências de suasações, seguindo parâmetros de dimensões planetárias.

(K.-O. Apel)

1. Mito, tragédia e filosofia

Uma das características da consciênciamítica é a aceitação do destino: os costumesdos ancestrais têm raízes no sobrenatural; asações humanas são determinadas pelos deu-ses; em conseqüência, não se pode falar pro-priamente em comportamento ético, uma vezque falta a dimensão de subjetividade quecaracteriza o ato livre e autônomo.

Ao analisarmos a passagem do mito à ra-zão no Capítulo 7 vimos como se deu o proces-so do advento da consciência crítica. Mas háum período intermediário caracterizado pelaconsciência trágica que representa o momentoem que o mito não foi totalmente superado eainda não se firmou a consciência filosófica.

A tragédia grega floresceu por curto perío-do, e os autores mais famosos foram Ésquilo(525-456a.C), Sófocles (496-c.406a.C.) eEurípedes (c.480-406a.C). O conteúdo das pe-ças é retirado dos mitos, mas há algo de novo notratamento que os autores — sobretudo Só-focles — dão ao relato das façanhas dos heróis.

Tomemos por exemplo a tragédiaÉdipo-Rei de Sófocles. Nela conta-se queLaio, senhor de Tebas, soube pelo oráculo queseu filho recém-nascido haveria um dia deassassiná-lo, casando-se em seguida com aprópria mãe. Por isso, Laio antecipa-se ao des-tino e manda matá-lo, mas suas ordens não sãocumpridas, e a criança cresce em lugar distan-te. Quando adulto, Édipo consulta o oráculo eao tomar conhecimento do destino que lhefora reservado, foge da casa dos supostos pais

a fim de evitar o cumprimento daquela sina.No caminho desentende-se com um desconhe-cido — e o mata. Esse desconhecido era, semque Édipo soubesse, seu verdadeiro pai. En-trando em Tebas, casa com Jocasta, viúva deLaio, ignorando ser ela sua mãe. E assim secumpre o destino.

Mesmo que Sófocles tenha tomado domito o enredo da história, as figuras lendáriasapresentam-se com a face humanizada, agi-tam-se e questionam o destino. A todo mo-mento emerge a força nova da vontade que serecusa a sucumbir aos desígnios divinos e ten-ta transcender o que lhe é dado com um ato deliberdade. E, mesmo quando a intuição deÉdipo lhe indica ser ele próprio o assassinoprocurado em Tebas, leva o inquérito até ofim, como se estivesse em busca da própriaidentidade ("O dia de hoje te fará nascer e tematará").

Mas, se no final vence o irracional,Édipo não foi um ser passivo. E a tragédiaconsiste justamente na contradição entre de-terminismo e liberdade, na luta contra o desti-no levada a cabo pelo homem que surge comoum ser de vontade. Quando no final Édipose cega, diz: "Apoio me culminou com osmais horrorosos sofrimentos. Mas estes olhosvazios não são obra dele, mas obra minha".

A tentativa de reflexão retrata o logosnascente. Daí em diante a filosofia represen-tará o esforço da razão em compreender omundo e orientar a ação.

CAPÍTULO 28CONCEPÇÕES

ÉTICAS

283

2. A concepção grega de moral

No período clássico da filosofia grega,os sofistas rejeitam a tradição mítica ao consi-derar que os princípios morais resultam deconvenções humanas. Embora na mesma li-nha de oposição aos fundamentos religiosos,Sócrates se contrapõe aos sofistas ao buscaraqueles princípios não nas convenções, masna natureza humana.

Inúmeros são os diálogos de Platão emque são descritas as discussões socráticas a res-peito das virtudes e da natureza do bem. Resul-ta daí a convicção de que a virtude se identificacom a sabedoria e o vício com a ignorância:portanto, a virtude pode ser aprendida.

Na célebre passagem de A República emque Platão descreve o mito da caverna (verPrimeira Parte do Capítulo 10) reaparece essaidéia: o sábio é o único capaz de se soltar dasamarras que o obrigam a ver apenas sombrase, dirigindo-se para fora, contempla o sol, querepresenta a idéia do Bem.

Portanto, "alcançar o bem" se relacionacom a capacidade de "compreender bem". Sóo filósofo atinge o nível mais alto de sabedo-ria, só a ele cabe a virtude maior da justiça eportanto lhe é reservada a função de gover-nar. Outras virtudes menores, mas tambémimportantes para a cidade, caberão aos solda-dos defensores da pólis e aos trabalhadorescomuns, artesãos e comerciantes.

Herdeiro do pensamento de Platão,Aristóteles aprofunda a discussão a respeitodas questões éticas. Mas, para ele, o homembusca a felicidade, que consiste não nos pra-zeres nem na riqueza, mas na vida teórica econtemplativa cuja plena realização coincidecom o desenvolvimento da racionalidade.

O que há de comum no pensamento dosfilósofos gregos é a concepção de que a virtu-de resulta do trabalho reflexivo, da sabedoria,do controle racional dos desejos e paixões.

Além disso, o sujeito moral não pode sercompreendido ainda, como nos tempos atuais,na sua completa individualidade. Os homensgregos são antes de tudo cidadãos, membros in-tegrantes de uma comunidade, de modo que aética se acha intrinsecamente ligada à política.

No período helenista, os filósofos seocupam predominantemente com questõesmorais, e destacam-se duas tendências opos-tas, o hedonismo e o estoicismo.

Para os hedonistas (do grego hedoné,"prazer"), o bem se encontra no prazer. Mas,

ao contrário do que se poderia supor, o princi-pal representante do hedonismo grego, Epicuro(341-270 a.C), considera que os prazeres docorpo são causas de ansiedade e sofrimento.Para permanecer imperturbável, a alma precisadesprezar os prazeres materiais, o que levaEpicuro a privilegiar os prazeres espirituais,dentre os quais aqueles referentes à amizade.

Na mesma época, o estóico Zeno deCítio (336-264 a.C.) despreza os prazeres emgeral, ao considerá-los fonte de muitos males.As paixões devem ser eliminadas porque sóproduzem sofrimento e por isso a vida virtuo-sa do homem sábio, que vive de acordo com anatureza e a razão, consiste em aceitar comimpassibilidade o destino e o sofrimento.

As teorias estóicas foram bem aceitaspelo cristianismo ainda na época do ImpérioRomano, tendo também fecundado as idéiasascéticas do período medieval.

3. A moral iluminista

Durante a Idade Média, a visão teo-cêntrica do mundo fez com que os valores re-ligiosos impregnassem as concepções éticas,de modo que os critérios do bem e do mal seachavam vinculados à fé e dependiam da es-perança de vida após a morte.

Na perspectiva religiosa os valores sãoconsiderados transcendentes, porque resultamde doação divina, o que determina a identifi-cação do homem moral com o homem temen-te a Deus.

No entanto, a partir da Idade Moderna,culminando no movimento da Ilustração noséculo XVIII, a moral se torna laica, seculari-zada. Ou seja, ser moral e ser religioso nãosão pólos inseparáveis, sendo perfeitamentepossível que um homem ateu seja moral, emais ainda, que o fundamento dos valores nãose encontre em Deus, mas no próprio homem.

O movimento intelectual do séculoXVIII conhecido como Iluminismo, Ilustraçãoou Aufklarung e que caracteriza o chamado Sé-culo das Luzes exalta a capacidade humana deconhecer e agir pela "luz da razão". Critica areligião que submete o homem à heteronomia,que o subjuga a preconceitos e o conduz ao fa-natismo. Rejeita toda tutela que resulta do prin-cípio de autoridade. Em contraposição, defen-de o ideal de tolerância e autonomia.

No lugar das explicações religiosas, aIlustração fornece três tipos de justificaçãopara a norma moral: ela se funda na lei natu-

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ral (teses jusnaturalistas), no interesse (tesesempiristas, que explicam a ação humana comobusca do prazer e evitação da dor) e na pró-pria razão (tese kantiana).

Kant

A máxima expressão do pensamentoiluminista se encontra em Kant (1724-1804),que, além da Crítica da razão pura (ver Ter-ceira Parte do Capítulo 10), escreveu a Críti-ca da razão prática e Fundamentação da me-tafísica dos costumes, nas quais desenvolve asua teoria moral.

A razão prática diz respeito ao instru-mento para compreender o mundo dos costu-mes e orientar o homem na sua ação. Anali-sando os princípios da consciência moral,Kant conclui que a vontade humana é verda-deiramente moral quando regida por impera-tivos categóricos. O imperativo categórico éassim chamado por ser incondicionado, abso-luto, voltado para a realização da ação tendoem vista o dever.

Nesse sentido, Kant rejeita as concepçõesmorais que predominam até então, quer seja dafilosofia grega, quer seja da cristã, e que nor-teiam a ação moral a partir de condicionantescomo a felicidade ou o interesse. Por exemplo,não faz sentido agir bem com o objetivo de serfeliz ou evitar a dor, ou ainda para alcançar océu ou não merecer a punição divina.

O agir moralmente se funda exclusiva-mente na razão. A lei moral que a razão desco-bre é universal, pois não se trata de descobertasubjetiva (mas do homem enquanto ser racio-nal), e é necessária, pois é ela que preserva adignidade dos homens. Isso pode ser sintetizadonas seguintes afirmações do próprio Kant:"Age de tal modo que a máxima de tua ação pos-sa sempre valer como princípio universal deconduta"; "Age sempre de tal modo que trates aHumanidade, tanto na tua pessoa como na dooutro, como fim e não apenas como meio".

A autonomia da razão para legislar su-põe a liberdade e o dever. Pois todo imperati-vo se impõe como dever, mas a exigência nãoé heterônoma — exterior e cega — e sim li-vremente assumida pelo sujeito que seautodetermina.

Vamos exemplificar. Suponhamos anorma moral "não roubar":

• para a concepção cristã o fundamentoda norma se encontra no sétimo mandamentode Deus;

• para os teóricos jusnaturalistas (comoRousseau) ela se funda no direito natural, co-mum a todos os homens;

• para os empiristas (como Locke,Condillac) a norma deriva do interesse próprio,pois o sujeito que a desobedece será submetidoao desprazer, à censura pública ou à prisão;

• para Kant, a norma se enraíza na pró-pria natureza da razão; ao aceitar o roubo econseqüentemente o enriquecimento ilícito,elevando a máxima (pessoal) ao nível univer-sal, haverá uma contradição: se todos podemroubar, não há como manter a posse do quefoi furtado.

O pensamento de Kant foi importantepara fornecer as categorias da moraliluminista racional, laica, acentuando o cará-ter pessoal da liberdade. Mas, a partir do finaldo século XIX e ao longo do século XX, osfilósofos começam a se posicionar contra amoral formalista kantiana fundada na razãouniversal, abstrata, e tentam encontrar o ho-mem concreto da ação moral.

É nesse sentido que podemos compre-ender o esforço de pensadores tão diferentescomo Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard eos existencialistas.

4. Marx: a moral comosuperestrutura

No século XIX as relações entre capita-listas e proletariado atingiram níveis agudosde antagonismo, fazendo surgir os movimen-tos de massa e a tentativa de teorização dessesfenômenos, particularmente por duas ciênciasnascentes, a economia e a sociologia.

Deriva daí a preocupação empírica emexaminar a situação concreta vivida pelos ho-mens nas suas relações sociais. Foi original acontribuição feita por Marx (ver Segunda Par-te do Capítulo 24) que, ao desenvolver a teoriado materialismo dialético, considera que "o sersocial determina a consciência", ou seja, "omodo de produção da vida material condicionao desenvolvimento da vida social, política e in-telectual em geral". Isso significa que as ex-pressões da consciência humana — inclusive amoral — são o reflexo das relações que os ho-mens estabelecem na sociedade para produzi-rem sua existência, e portanto mudam confor-me se alteram os modos de produção.

Nesse sentido, Marx desenvolve outra li-nha de pensamento, diferente da concepção tra-

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dicional de moral que se orienta em direção aosvalores universais aceitos em todas as épocas.Ao contrário, Marx busca recuperar o homemconcreto na atividade produtora que determinarelações de produção muito específicas confor-me o tempo e o lugar. Esse tipo de análise lhepermite observar que, onde existe sociedade di-vidida em classes, com interesses antagônicos, amoral da classe dominante predomina, impõe-se sobre a classe dominada e torna-se instrumen-to ideológico para manter a dominação.

Por isso, só na sociedade mais fraterna,sem a exploração de uma classe sobre outra, éque se poderá esperar o surgimento de umamoral autêntica. Coerente com sua concepçãocomunista, Marx preconiza que as condiçõesda moral verdadeira só existiriam na socieda-de sem Estado e sem propriedade privada.Para ele, mesmo que a moral diga respeito àesfera pessoal, não há como viver moralmen-te em um mundo que ainda não tenha instau-rado a ordem da justiça social.

5. Nietzsche: a transvaloraçãodos valores

O pensamento de Nietzsche (1844-1900) se orienta no sentido de recuperar asforças inconscientes, vitais, instintivassubjugadas pela razão durante séculos. Paratanto, critica Sócrates por ter encaminhadopela primeira vez a reflexão moral em direçãoao controle racional das paixões. SegundoNietzsche, nasce aí o homem desconfiado deseus instintos, tendo essa tendência culminadocom o cristianismo, que acelerou a "domesti-cação" do homem.

Em diversas obras, como Sobre agenealogia da moral, Para além do bem e domal e Crepúsculo dos ídolos, em estilo apai-xonado e mordaz, Nietzsche faz a análise his-tórica da moral e denuncia a incompatibilida-de entre esta e a vida. Em outras palavras, ohomem, sob o domínio da moral, se enfraque-ce, tornando-se doentio e culpado.

Nietzsche relembra a Grécia homérica,do tempo das epopéias e das tragédias, consi-derando-a como o momento em que predomi-nam os verdadeiros valores aristocráticos,quando a virtude reside na força e na potên-cia, sendo atributo do guerreiro belo e bom,amado dos deuses.

Nessa perspectiva, o inimigo não é mau:"Em Homero, tanto o grego quanto o troiano são

bons. Não passa por mau aquele que nos infligealgum dano, mas aquele que é desprezível".

Ao fazer a crítica da moral tradicional,Nietzsche preconiza a "transvaloração de to-dos os valores". Denuncia a falsa moral, "de-cadente", "de rebanho", "de escravos", cujosvalores seriam a bondade, a humildade, a pie-dade e o amor ao próximo. Contrapõe a ela amoral "de senhores", uma moral positiva quevisa à conservação da vida e dos seus instin-tos fundamentais.

A moral de senhores é positiva, porquebaseada no sim à vida, e se configura sob o sig-no da plenitude, do acréscimo. Por isso se fundana capacidade de criação, de invenção, cujo re-sultado é a alegria, conseqüência da afirmaçãoda potência. O homem que consegue superar-seé o Super-homem (Übermensch, expressão ale-mã que significa "além-do-homem", "sobre-hu-mano", "que transpõe os limites do humano").

À moral aristocrática, moral de senhores,que é sadia e voltada para os instintos da vida,Nietzsche contrapõe o pensamento socrático-platônico (que provoca a ruptura entre o trági-co e o racional) e a tradição da religião judai-co-cristã. A moral que deriva daí é a moral deescravos, moral decadente porque baseada natentativa de subjugação dos instintos pela ra-zão. O homem-fera, animal de rapina, é trans-formado em animal doméstico ou cordeiro. Amoral plebéia estabelece um sistema de juízosque considera o bem e o mal valores metafísicostranscendentes, isto é, independentes da situa-ção concreta vivida pelo homem.

A moral de escravos nega os valores vi-tais e resulta na passividade, na procura da paze do repouso. O homem se torna enfraquecidoe diminuído em sua potência. A alegria étransformada em ódio à vida, o ódio dos im-potentes. A conduta humana, orientada peloideal ascético, torna-se marcada pelo ressen-timento e pela má consciência.

O ressentimento nasce da fraqueza e énocivo ao fraco. O homem ressentido, incapazde esquecer, é como o dispéptico: fica "enve-nenado" pela sua inveja e impotência de vin-gança. Ao contrário, o homem nobre sabe "di-gerir" suas experiências, e esquecer é uma dascondições de manter-se saudável. A má cons-ciência ou sentimento de culpa é o ressentimen-to voltado contra si mesmo, daí fazendo nascera noção de pecado, que inibe a ação.

O ideal ascético nega a alegria da vida ecoloca a mortificação como meio para alcan-çar a outra vida num mundo superior, do além.

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Assim, as práticas de altruísmo destroem oamor de si, domesticando os instintos e pro-duzindo gerações de fracos.

"É por isso que contra o enfraquecimen-to do homem, contra a transformação de for-tes em fracos — tema constante da reflexãonietzschiana — é necessário assumir umaperspectiva além de bem e mal, isto é, 'alémda moral'. Mas, por outro lado, para além debem e mal não significa para além de bom emau. A dimensão das forças, dos instintos, davontade de potência, permanece fundamental.'O que é bom? Tudo que intensifica no ho-mem o sentimento de potência, a vontade depotência, a própria potência. O que é mau?Tudo que provém da fraqueza.""

6. Freud: as ilusões da consciência

As crenças racionalistas do poder que ohomem teria de controlar os desejos e tornar-seo centro de suas próprias decisões foram seria-mente abaladas pela teoria psicanalítica desen-volvida por Sigmund Freud (1856-1939). Já vi-mos um pouco de seu pensamento no Capítulo16 (As ciências humanas) e examinaremos ou-tros aspectos no Capítulo 34 (O erotismo).

Ao levantar a hipótese do inconsciente,Freud descobre o mundo oculto da vida daspulsões, dos desejos, da energia primária dasexualidade e agressividade que se encontramna raiz de todos os comportamentos humanos,mesmo daqueles que à primeira vista não apa-recem como sendo de natureza sexual.

Para Freud, o ego, enquanto instânciaconsciente da personalidade, é de tal formapressionado por conflitos entre as forçaspulsionais (vindas do id) e as regras sociais(introjetadas pelo superego), que nem semprepode agir equilibradamente. Ao explicar osmecanismos da repressão, Freud revela que oneurótico não age plenamente consciente dosdeterminantes da sua ação. Ora, se a moral su-põe a autonomia, nada mais distante disso doque o comportamento resultante da repressãodos impulsos.

Não resta dúvida de que o amplo desen-volvimento da psicanálise levou a uma novaconcepção de moral cada vez mais orientadana direção do homem concreto, com ênfasenos valores da vida e da espontaneidade, o quecertamente ajudou na superação de preconcei-

tos e comportamentos hipócritas, bem comona valorização do corpo e das paixões.

Se por um lado isso foi saudável, pois arepressão sempre desencadeia formas doen-tias de comportamento, por outro dificultoupara muitos (embora não-propriamente paraFreud e para os psicanalistas) a compreensãoclara de que o reconhecimento e o controledos desejos (e não a repressão deles) é indis-pensável para o adentramento no mundo adul-to e a realização da vida moral.

É nesse sentido que o próprio Freud ter-mina a quarta lição do seu famoso Cinco liçõesde psicanálise com a seguinte observação: "Sequiserem, podem definir o tratamento psicana-lítico como simples aperfeiçoamento educativodestinado a vencer os resíduos infantis".

Essa educação consiste na aceitação dodesejo, na sua recusa consciente, ou no adia-mento, além das formas da sublimação.

7. A filosofia da existência

No século XIX, o filósofo dinamarquêsKierkegaard foi o primeiro a descrever a an-gústia como experiência fundamental do serlivre ao se colocar em situação de escolha.Mais tarde, no século seguinte, os exis-tencialistas continuaram o caminho por eleaberto, tentando compreender a singularidadeda escolha livre.

Quando analisamos o pensamento deSartre (ver Capítulo 31 — O existencialismo),podemos observar esse tipo de preocupação,claramente formulada na seguinte passagem:"O conteúdo [da moral] é sempre concreto epor conseguinte imprevisível; há sempre inven-ção. A única coisa que conta é saber se a inven-ção que se faz, se faz em nome da liberdade".

A decorrência desse pensamento é a difi-culdade em estabelecer os critérios para a funda-mentação da moral. Sartre prometeu e não conse-guiu cumprir a elaboração de uma ética que nãosucumbisse ao individualismo e relativismo, jáque, segundo o próprio Sartre, "cada homemé responsável por toda a Humanidade".

8. A questão moral contemporânea

Retomemos o caminho percorrido atéaqui. Vimos que, a partir da modernidade e

1 R. Machado, Nietzsche e a verdade, p. 77.

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culminando na Ilustração, a moral se seculari-za, permitindo a construção de um projetomoral desligado da religião e cujo fundamen-to se encontra na razão autônoma.

Contudo, nos séculos seguintes, váriascríticas foram feitas à razão, ora por abafar asemoções, os sentimentos, a instintividade, osvalores "da vida", ora por se tornar instrumen-to de opressão política, mascarando a ideolo-gia. Poderíamos acrescentar muitas outrasqueixas dirigidas à razão enquanto instrumen-to capaz de desenvolver a ciência e a tecnolo-gia, mas impotente para resolver os problemaspor elas desencadeados.

Ainda mais, vimos que o Iluminismovaloriza a autonomia do sujeito moral. Mas abusca de valores subjetivos e o reconhecimen-to do valor das paixões têm levado à inversãoda hierarquia tradicional razão-paixão, ao in-dividualismo exacerbado, à anarquia dos va-lores, o que culmina com a impossibilidade doequacionamento dos critérios da vida moral.

Outra característica da vida moral con-temporânea é a existência de inúmeros parti-cularismos contrapostos ao antigo ideal de uni-versalidade da moral. Mais do que nunca pre-domina a atomização em diversas morais: dosjovens, das seitas religiosas, dos movimentosecológicos e pacifistas, dos homossexuais, dasfeministas e assim por diante.

Com tal observação, não negamos a im-portância dessas morais, já que elas represen-tam o posicionamento de grupos minoritáriosem busca do reconhecimento e aceitação porparte dos que os discriminam e excluem. Oque realçamos com a referida atomização éque muitas vezes ocorre a perda do sentido detotalidade da ação humana.

Só para dar um exemplo: é importante oesforço dos movimentos feministas no sentidode buscar o reconhecimento da maioridade damulher. Mas essa luta, desvinculada das ques-tões políticas, pode levar — como muitas vezeslevou — a certos descaminhos. Afinal, a eman-cipação feminina não pode ser compreendidaapenas a partir da oposição homem-mulher, mascomo um dos elos do sistema de poder maisamplo em uma sociedade dividida, onde persis-tem formas de exploração de trabalho humano.

Além disso, da atomização resulta a per-cepção de que a ação moral não teria funda-

mentos, o que nos condena ao relativismo dasdecisões imediatistas e aos casuísmos.

Tal situação oferece alguns sérios riscosde regressão para soluções arcaicas, anterioresàs conquistas do Iluminismo. A isso se refere ofilósofo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet: "Atentação mais óbvia é recolocar a moral sobrefundamentos religiosos. O cristianismo tradi-cional está sempre disponível, mas não faltamalternativas pós-modernas, que vão desde osfundamentalismos, evangélicos ou carismáti-cos, até o esoterismo. Quando a tradição reli-giosa não basta, há receitas ecléticas, um pou-co de Jung, algum Herman Hesse, Reich empequenas doses, e muita meditação no interiorde pirâmides de cristal, entre um baralho detarô e um livro de Paulo Coelho".2

O novo Iluminismo

Em síntese, a situação da moral no mun-do contemporâneo nos lança diante de umimpasse:

• de um lado, o prevalecimento da ordemsubjetiva das vivências e emoções, a anarquiade princípios ou a simples ausência deles...

• de outro lado, a razão dominadora, ins-trumento de repressão, como nos denuncia-ram Marx, Nietzsche, Freud e muitos outros.

Filósofos tais como os representantes daEscola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno,Benjamin, Marcuse) analisam a crise da razãocontemporânea, o "eclipse da razão", e, visan-do evitar os irracionalismos, desenvolvem otrabalho de recuperação da razão não re-pressora, capaz de autocrítica e que esteja aserviço da emancipação humana.

Esses filósofos utilizam o conceito deIluminismo em um sentido mais amplo do queaquele que se refere ao período histórico daIlustração, no século XVIII. Assim, um pen-sador iluminista é aquele existente em qual-quer tempo e cujas idéias fazem uso das luzesda razão para combater as superstições, o ar-bítrio do poder e para defender o pluralismo ea tolerância.

Em que a tendência iluminista poderianos ajudar no impasse da busca dos fundamen-tos da moral? Vamos procurar algumas pistasno pensamento do filósofo Jiirgen Habermas.

Sérgio Paulo Rouanet, Dilemas da moral iluminista, in Adauto Novaes (org.), Ética, p. 157.

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Habermas e a ética discursiva

Jürgen Habermas (1929) inicialmentesofreu influência da Escola de Frankfurt, masdela se desligou para percorrer itinerário pró-prio. Desenvolveu então a teoria da ação co-municativa, que fornece os elementos para acompreensão da ética discursiva (ver QuartaParte do Capítulo 10).

A ética discursiva é uma teoria da moralque recorre à razão para sua fundamentação.Embora sofra a influência de Kant, não se fun-damenta no conceito de razão reflexiva, masde razão comunicativa. Ou seja, enquanto narazão kantiana o juízo categórico está fundadono sujeito e supõe a razão monológica (do mo-nólogo), o sujeito em Habermas é descentrado,porque a razão comunicativa supõe o diálogo,a interação entre os indivíduos do grupo, me-diada pela linguagem, pelo discurso.

A razão comunicativa é mais rica por serprocessual, construída a partir da relação en-tre os sujeitos, enquanto seres capazes de se

posicionarem criticamente diante das normas.Nesse caso, a validade das normas não derivade uma razão abstrata e universal, nem depen-de da subjetividade narcísica de cada um, masdo consenso encontrado a partir do grupo, doconjunto dos indivíduos.

Portanto, a subjetividade se transformaem intersubjetividade. Se retomássemos oexemplo dado anteriormente (no item sobreKant), a validade da norma "não roube" deve-ria estar fundada na razão comunicativa e re-sultaria do discurso interpessoal.

Evidentemente, a interação entre os su-jeitos precisa se fazer sem os recursos de pres-sões típicas do sistema econômico (que se ba-seia na força do dinheiro), ou do sistema polí-tico (que se funda no exercício do poder). Aação comunicativa supõe o entendimento en-tre os indivíduos que procuram, pelo uso deargumentos racionais, convencer o outro (ouse deixar convencer) a respeito da validade danorma: instaura-se aí o mundo da sociabilida-de, da espontaneidade, da solidariedade, dacooperação.

Exercícios

1. Quais são os elementos em comum entre oherói trágico e o herói mítico']

2. Quais são os elementos indicativos do iní-cio da reflexão filosófica no herói trágico?

3. Identifique o fundamento dos comporta-mentos ou normas a que se referem as seguintesafirmações e justifique sua resposta:

a) "Não sou eu o culpado, mas Zeus e o Des-tino e a Erínia." (Agamemnon, citado por Homero)(Observação: Erínias são deusas da vingança.)

b) Para Aristóteles a essência do bem é a feli-cidade.

c) "Chamamos ao prazer princípio e fim davida feliz." (Epicuro)

d) "Existe, pois, no fundo das almas, um prin-cípio inato de justiça e de virtude, com o qual, ape-sar de nossas próprias máximas, julgamos nossasações e as alheias como boas ou más, e é a esseprincípio que dou o nome de consciência."(Rousseau)

e) "Age sempre de tal modo que a máxima detua ação possa sempre valer como princípio uni-versal de conduta." (Kant)

4. Qual foi a contribuição de Marx e Freud —cada um no seu campo de reflexão — para a críticade uma concepção abstrata de valor moral?

5. Qual é a crítica feita por Nietzsche à moralcristã?

6. Por que para os filósofos da Escola deFrankfurt a descoberta dos aspectos sombrios darazão não nos devem levar às formas deirracionalismo?

7. Qual é a influência de Kant na ética de Ha-bermas? Em que a ética discursiva se afasta de Kant?

8. Interprete a epígrafe do capítulo, do filóso-fo Apel (também amigo e interlocutor deHabermas).

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A liberdade adolescente é uma adolescência da liberdade, uma liberdade de aspiração. (...) A juventudeé o tempo de aprendizado da liberdade.

(Georges Gusdorf)

ICiça, in Folha de S. Paulo, 7 jul. 1985, Supl. Mulher.)

1. Introdução

Por que um capítulo sobre a adolescên-cia na Unidade de filosofia moral? Certamen-te porque se trata do momento privilegiado dapassagem do mundo infantil ao universo adul-to, em que o suposto amadurecimento da ra-zão daria os instrumentos para ser assumida aautonomia moral.

Além disso, essa reflexão vale enquantoalerta diante da constatação de que nem sem-pre as metas do aperfeiçoamento intelectual,afetivo e moral têm sido de fato alcançadas.

2. A crise da adolescência

A adolescência não é um fenômeno uni-versal. Os antropólogos constatam que as so-ciedades tribais não passam por esse estágio,mesmo porque o advento do mundo adulto seencontra nitidamente marcado pelos "ritos de

passagem" (ver Capítulo 6). Os rituais intro-duzem a criança no sistema de valores bemdefinidos do mundo adulto, não havendo am-bigüidades a respeito dos direitos e deveresque o novo estado lhe acarreta.

Em nossa cultura, não só há o períodode adolescência, como a tendência é ampliá-lo cada vez mais, na medida em que o tempode estudo aumenta, adiando a entrada no mer-cado de trabalho. Torna-se cheio de contradi-ções o espaço de tempo em que a pessoa,abandonando as características infantis, aindanão assumiu as obrigações e responsabilida-des da vida adulta.

De início, o adolescente precisa elabo-rar algumas perdas, como, por exemplo, a docorpo infantil, a do papel e identidade infan-tis, a dos pais da infância. Não se reconhecemais no seu corpo, questiona-se a respeito daprópria identidade.

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AADOLESCÊNCIA

CAPÍTULO 29

Além disso, vive uma situação de ambi-güidade: ao mesmo tempo que hostiliza os pais,deseja sua atenção; tanto deseja viver o novoestado quanto sente perder a familiaridade an-tiga, que lhe dava mais segurança; depende dospais, de quem recebe casa, comida e afeto, masdiverge deles quanto aos objetivos de sua con-duta; rejeita as interferências nas suas decisões,mas exige o apoio para sua subsistência.

Por outro lado, também a atitude dospais é ambígua, pois em certos assuntos espe-ram dos filhos o comportamento adulto (porexemplo, nas responsabilidades de estudo) e,em outros momentos, tratam-nos como crian-ças (por exemplo, em relação à vida sexual).

Caracteriza-se, assim, a situação de cri-se. Esta palavra significa "ruptura", e é preci-so retomá-la evitando o sentido pejorativo quenormalmente lhe é atribuída. Crise pode sig-nificar o momento criativo em que o antigoequilíbrio desaparece para dar lugar ao novo.Crise pode ser condição de crescimento.

De fato, há várias alterações no desen-volvimento infantil, mas nenhuma é tãocrucial como a da adolescência. Não se tratade pequenas mudanças quantitativas, mas deum "salto qualitativo" que traz certa perplexi-dade ao adolescente.

3. A teoria de Piaget

Para compreendermos o que ocorre naadolescência, vamos utilizar a análise feitapelo psicólogo suíço (e também filósofo) JeanPiaget (1896-1980), que desenvolveu umateoria conhecida como psicologia genética,base para o desenvolvimento de fecundas prá-ticas pedagógicas.

Segundo essa teoria, não há inteligênciainata, mas a gênese da razão, da afetividade eda moral se faz progressivamente em estágiossucessivos em que a criança organiza o pen-samento e o julgamento. Por isso sua teoria eas que dela derivam são chamadas construti-vistas, já que o saber é construído pela crian-ça, e não imposto de fora.

Embora por questões didáticas tratemosseparadamente a inteligência e a afetividade,elas se acham imbricadas. Enquanto aafetividade é a mola, a energia, a força queimpulsiona a ação (tendências, desejos, amor,entusiasmo etc), a inteligência fornece osmeios, esclarece os fins, disciplina a ação.

A fim de compreender a psicogênese emlinhas gerais, na evolução da lógica e da mo-

ral, resumiremos os quatro estágios de desen-volvimento mental da criança desde o nasci-mento até a adolescência.

Vale lembrar, no entanto, que as referên-cias às idades se referem aos padrões de Gene-bra, cidade onde Piaget fez suas observações eexperiências. Dependendo do grupo social aque pertença a criança, haverá variação nas fai-xas etárias, e pode ser, como já dissemos, queas últimas etapas nem sejam atingidas.

Os quatro estágios

V estágio: sensório-motor

A maneira pela qual o bebê (de zero adois anos) conhece o mundo é sobretudo sen-sório-motora, ou seja, predomina o desenvol-vimento das percepções sensoriais e dos mo-vimentos, não se podendo ainda dizer que acriança pensa. Nesse estágio, a inteligência dobebê evolui à medida que ele aprende a coor-denar as sensações e os movimentos.

Daí a preocupação em estimular os senti-dos com chocalhos, mobiles, brinquedos deencaixe para coordenação motora, sem falar-mos no esforço pessoal da criança emengatinhar, subir nos móveis, andar e levar tudoà boca. Pode-se até dizer que o bebê conhece omundo levando coisas à boca, de tal forma quenão há exagero em afirmar que, para ele, "omundo é uma realidade a sugar". TambémFreud se refere a esse período como constituin-do a "fase oral", quando a zona erógena (gera-dora de prazer) se localiza na boca.

Na relação do bebê com as pessoas, háuma indiferenciação, ou seja, a separação en-tre ele e o mundo não é percebida muito niti-damente. É como se ele fizesse parte de umatotalidade da qual não consegue distinguir-secomo sujeito individual. Podemos ver a des-coberta gradativa que faz do seu corpo quan-do, por volta dos três meses, o encontramos,fascinado, olhando a própria mão. O psicana-lista Lacan se refere à "experiência do espe-lho", pela qual, por volta dos dezoito meses, acriança reconhece a dualidade, descobrindo-se separada da mãe e de todo o resto.

2º estágio: intuitivo ou simbólico

O segundo momento (dos dois aos seteanos) começa quando a lógica infantil sofreum salto, resultante da descoberta do símbo-lo. A realidade pode então ser representada,

no sentido de que a palavra torna presente oque está ausente.

Nesse período a inteligência é intuitivaporque não se encontra separada da experiênciavivida, isto é, não consegue transpor abstrata-mente o que foi vivenciado pela percepção.

Por exemplo: mesmo sabendo ir até acasa da avó, a criança é ainda incapaz de re-produzir o caminho num conjunto de peque-nos objetos tridimensionais de papelão (repre-sentando casas, ruas, igrejas etc). Isso acon-tece porque suas lembranças são motoras, e arepresentação implica uma descentralizaçãoda experiência que se acha centrada no pró-prio corpo da criança quando ela vai de fato àcasa da avó.

Outra evidência da incapacidade de abs-tração e descentralização (ou seja, de colocar-se do ponto de vista do outro) aparece quandopedimos à criança que imite nosso gesto, es-tando defronte a ela: se levantamos a mão di-reita, ela levanta a esquerda, repetindo a açãocomo um espelho.

Trata-se de uma forma de inteligênciaegocêntrica, que persiste também no nível daafetividade. O egocentrismo infantil não podeser sumariamente confundido com egoísmo:não é um defeito da criança, mas constituia própria condição humana nesse estágio.Egocentrismo significa estar centrado em simesmo, tanto no aspecto da afetividadecomo no do conhecimento. Em outras pala-vras, a criança é o ponto de referência, pensaa partir de si.

Afetivamente acha que o mundo gira emtorno dela, quer todas as atenções, não repartebrinquedos, quer o seu desejo satisfeito no ins-tante em que se manifesta; a conversa não épropriamente uma interação, pois é incapaz dediscutir e de ouvir o outro: o que há são ver-dadeiros "monólogos coletivos". Freqüente-mente, aos três ou quatro anos, é vista falandosozinha, com seus brinquedos "animados".

Do ponto de vista moral, de início nãose pode dizer que exista a introjeção de regraalguma: vive em um mundo que seria pro-priamente pré-moral, em que predomina aanomia (ausência de leis). Além dos exemplosda sua relutância em aceitar as regras do con-vívio social, é interessante lembrar que aindanão está pronta para os jogos com regras.Após os três ou quatro anos, começa a tornar-se capaz de heteronomia, ou seja, de aceitar anorma exterior, tornando-se mais sociável.3

3º estágio: operações concretas

No terceiro estágio (de sete a dozeanos), a lógica deixa de ser puramente intuiti-va e passa a ser operatória. Isso quer dizer quea criança é capaz de interiorizar a ação (pro-cesso que não ocorria no exemplo da visita àcasa da avó).

Passar da intuição para a operação sig-nifica tornar-se capaz de constituir sistemas deconjuntos, passíveis ainda de composição erevisão. É o processo que permite realizar asoperações matemáticas, perceber a relação ló-gica do sistema de parentesco, classificar, tor-nar as intuições móveis e reversíveis. Ora, aspercepções intuitivas da primeira infânciaeram irreversíveis (lembrar o exemplo da mãolevantada); tornar essa percepção reversível éser capaz de operacionalizá-la, por exemplo,inverter mentalmente a sua própria posição,colocando-se no lugar do outro.

A operacionalização no terceiro estágioainda é concreta, pois depende de certa formadas percepções fornecidas pela intuição,achando-se presa à experiência vivida. Mes-mo assim, como vimos, o pensamento já setorna mais coerente e permite construções ló-gicas mais aprimoradas.

A força do egocentrismo diminui, poiso discurso lógico tende a ser mais objetivo,estabelece o confronto com a realidade e comos outros discursos e procura alicerçar-se emprovas que ultrapassem o nível das explica-ções mitológicas da fase anterior. O relato dashistórias deixa de ser fragmentado e passa aapresentar organização mais estruturada, comcomeço, meio e fim, já sendo possível um iní-cio de discussão.

Do ponto de vista afetivo, os progressosna sociabilidade são percebidos na formaçãodos grupos que antes se baseavam na contigüi-dade, e agora são coesos e expressam formasclaras de companheirismo. Essa nova organi-zação se dá sob a ação da liderança e confrontode grupos antagônicos. Ilustram bem esse está-gio o livro Os meninos da rua Paulo (FerencMoinar) e o filme A guerra dos botões.

Do ponto de vista moral afirma-se aheteronomia, com a introjeção das normas dafamília e da sociedade. Também nos jogosessa tendência se revela de maneira clara napreferência por aqueles de regras rígidas,como os de botão e bola de gude, cujas nor-mas são seguidas rigorosamente.

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4º estágio: operações formais A construção da consciência moral

Finalmente, o último estágio é o da ado-lescência, quando aparecem as característicasque marcarão a vida adulta.

O pensamento lógico atinge o nível dasoperações formais ou abstratas. Isso signifi-ca que, além de interiorizar a ação vivida(fase das operações concretas), o adolescen-te é capaz de distanciar-se da experiência, detal forma que pode pensar por hipótese. E oamadurecimento do pensamento formal ouhipotético-dedutivo. O desenvolvimento dareflexão atinge tal estágio que torna possívelo pensamento científico, matemático e filo-sófico.

Exemplificando: as discussões entabula-das pelos jovens a respeito da família podempartir das experiências vividas particularmen-te, mas se orientam para a abordagem do temageral e abstrato da família como instituição.A teorização leva à crítica da própria vivênciae à elaboração de um projeto de mudança. Osdebates se desenvolvem no nível do discurso,da argumentação apoiada em conceitos.

O processo de desprendimento da pró-pria subjetividade é sinal de que o egocentris-mo intelectual está em vias de ser superado.

Afetivamente, a superação se realizapela cooperação e pela reciprocidade. Os gru-pos em que persistia a idéia de mando e obe-diência são substituídos por outros baseadosna discussão e no consenso.

A capacidade de reflexão dá condiçõespara o amadurecimento moral, pela organizaçãoautônoma das regras e pela livre deliberação.

Reflexão, discussão, reciprocidade, au-tonomia são termos que aqui se acham enla-çados. Refletir é desdobrar o pensamento, épensar duas vezes, é tematizar. É como setrouxéssemos o outro para dentro de nós: re-fletir é discutir interiormente. Ora, isto é pos-sível porque de fato descobrimos o outrocomo um alter ego, um outro sujeito, exteriora nós, capaz de uma argumentação que res-peitamos.

Da mesma forma, a discussão é a exte-riorização da reflexão. Se nos dispusermos adiscutir partindo do pressuposto de que nãomudaremos de idéia, não haverá discussão,mas "diálogo de surdos". Portanto, a discus-são supõe reciprocidade: disponibilidade paraouvir o outro, mas também preservação denossa individualidade e autonomia.

Tanto a afetividade como a inteligênciaresultam da conversão do egocentrismo pri-mitivo:

• a lógica evolui das formas intuitivas aopensamento abstrato;

• a afetividade, do egocentrismo à reci-procidade e cooperação;

• da relação entre as duas, a consciênciamoral evolui da anomia, passando pelaheteronomia, até atingir a autonomia. É o ca-minho percorrido pelo desejo até a constru-ção da vontade, suporte da vida livre e moral.

Por isso, só na adolescência surge a pos-sibilidade de um plano de vida. E, se o quecaracteriza o homem é a capacidade de fazerprojetos, o adolescente se encontra aparelha-do intelectual e afetivamente para iniciar essacaminhada verdadeiramente humana.

Dizemos iniciar, pois o desenvolvimen-to mental é um processo diferente do cresci-mento orgânico. Este atinge o ápice no inícioda vida adulta, tem um período de plenitude etende à evolução regressiva que conduz à ve-lhice. Os esportistas sabem como é curta suacarreira e procuram "pendurar as chuteiras"antes que os sinais da decadência apareçammuito fortemente.

Não é o que acontece com o desenvolvi-mento mental, que amadurece na adolescên-cia. As formas superiores da inteligência e daafetividade têm um "equilíbrio móvel", pois atendência é ampliar cada vez mais a experiên-cia, e esta por sua vez se enriquece, aperfei-çoa a reflexão e a capacidade de se relacionar.A sabedoria do homem maduro está nesseexercício inesgotável, e por isso ele não cessanunca de aprender: aprender a conhecer omundo, aprender a liberdade, aprender o en-contro com o outro, aprender a democracia.

Tudo isso não se faz automaticamente,pois é necessário aprendizagem. Se o adoles-cente não é estimulado a desenvolver a refle-xão crítica, mas, ao contrário, se encontra sub-metido à educação dogmática (ou a nenhumaeducação, como é o caso dos excluídos da es-cola), é provável que muito dificilmente atin-ja os níveis desejáveis do pensamento formal.Do mesmo modo, as pessoas devem sereducadas para a cooperação, sob pena de per-manecer infantilmente egocêntricas, o que nãoé nada raro na sociedade individualista...

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(Fernando eAngeli, in Folha de S. Paulo, 16 out. 1985, Fovest.)

Assim, na fase de transição, em que seacomoda a uma situação cujo equilíbrio mó-vel ainda não foi atingido, o adolescente osci-la entre o egocentrismo e a superação dele:vivendo a idade metafísica por excelência, oegocentrismo intelectual reside justamente nacrença da onipotência da reflexão, como senão coubesse a ela explicar a realidade, masesta, sim, devesse se adaptar à razão.

Do ponto de vista afetivo também hácontradição, resultante da mistura constantede devotamento à humanidade, como um todoabstrato, e intenso egoísmo.

4. A teoria de Kohlberg

Lawrence Kohlberg (1927-1987) foi umamericano que se dedicou ao estudo da teoriapiagetiana, centrando suas preocupações nasquestões morais.

Expandiu as experiências aplicando ricomaterial em grupos de controle nos EstadosUnidos, Turquia, Israel, analisando essas pes-soas por vários anos. Por exemplo, em Chica-go acompanhou um grupo de 75 meninos erapazes que inicialmente tinham de dez adezesseis anos, por quinze anos, com entre-vistas a cada três anos.

Uma das diferenças do trabalho deKohlberg em relação ao seu mestre está emque ele rejeita a teoria do paralelismo entre apsicogênese do pensamento lógico e apsicogênese da moralidade. Se o desenvolvi-mento do pensamento lógico formal é condi-ção necessária para a vida moral plena, nãoé, entretanto, condição suficiente. E suas ob-servações comprovam que a maturidade mo-ral geralmente só é atingida (quando é...)

apenas pelo adulto, uns dez anos depois daadolescência. E que o nível mais alto demoralidade exige estruturas lógicas novas emais complexas do que aquelas do pensa-mento formal.

Kohlberg reformula então a teoria dosestágios morais, distinguindo três grandes ní-veis de moralidade: o pré-convencional, oconvencional e o pós-convencional.

No nível pré-convencional as regrasmorais derivam daqueles que as formulam, esua aceitação se baseia no reconhecimento daautoridade, orientando-se o comportamento apartir dos critérios de obediência e de puniçãoe recompensa.

No nível convencional é superada a faseanterior, valorizando-se o reconhecimento dooutro (grupo, família, nação); predominam asexpectativas interpessoais e a identificaçãocom as pessoas do grupo a que pertence.

No nível pós-convencional os compor-tamentos são regulados por princípios. Os va-lores independem dos grupos ou das pessoasque os sustentam, porque são princípios uni-versais de justiça: igualdade dos direitos hu-manos, respeito à dignidade dos seres huma-nos como pessoas individuais, reconhecimen-to de que as pessoas são fins em si e precisamser tratadas como tal.

O resultado das pesquisas empíricas deKohlberg levou à constatação de que umpercentual baixíssimo de cidadãos atingem onível de moralidade pós-convencional.

Isso nos faz refletir a respeito das condi-ções sócio-econômicas que excluem uma po-pulação tão grande das escolas, bem como nosleva a considerar que na sociedade competiti-va e individualista pode parecer utopia aspi-rar por valores como a justiça, baseados nareciprocidade e no compromisso pessoal.

294

Exercícios

1. Por que o egocentrismo infantil não é pro-priamente um defeito? Explique como ele ocorreno aspecto intelectual e no afetivo.

2. Explique o que é anomia, heteronomia eautonomia.

3. Estabeleça a relação entre reflexão e dis-cussão.

4. Justifique por que relacionamos a adoles-cência com o momento possível do início do filo-sofar.

5. Explique a afirmação de Bornheim, apli-cando-a à vivência do adolescente: "O paradoxo dasituação humana reside no fato de que o homem,para poder entrar realmente no mundo, precisa pri-meiro sair dele".

6. Leia a citação de Bárbara Freitag e respon-da às questões propostas:

"Os gregos diferenciavam, como sabemos,entre dois conceitos distintos de tempo: cronos ecairós. O primeiro conceito refere-se à passagemcontínua do tempo (donde, cronologia) e o segun-do conceito refere-se ao momento certo, maduro,para certos eventos. Há, também, no caso dapsicogênese infantil, momentos certos (cairós)para promover o pensamento lógico, a moralidadeautônoma e a competência lingüística. Sociedadesque se omitem e não fornecem as condições mate-riais e sociais adequadas para as novas geraçõesnos momentos certos, perdem a oportunidade decriar cidadãos maduros, capazes de assumir comresponsabilidade e autonomia suas funções na so-ciedade."

a) Em que sentido podemos dizer que no es-tudo da psicogênese da razão Piaget privilegia oconceito de cairós")

b) Por que o desenvolvimento do pensamentológico e da moralidade não diz respeito apenas auma evolução mecânica do psiquismo infantil? Emoutras palavras: como podemos relacionar desen-volvimento psicológico e política?

7. Interprete a citação de Gusdorf transcritana epígrafe deste capítulo.

8. Leia o texto complementar "Para Maria daGraça" e atenda ao solicitado:

a) Explique as frases seguintes usando os con-ceitos de Piaget:

• "Não te espantes quando o mundo amanhe-cer irreconhecível."

• "Quem sou eu no mundo?"• "Se gostas de gato, experimenta o ponto de

vista do rato."b) Que crítica podemos fazer aos que "vivem

apostando corrida"?c) Que elementos reveladores de autonomia

e liberdade se encontram nos "conselhos" dados aMaria da Graça?

9. Leia o texto complementar do Capítulo 31,"Moral da ambigüidade", e responda às questões:

a) Qual é a principal diferença entre o mundoinfantil e o mundo do adolescente?

b) Após a crise da adolescência, quais os doiscaminhos reservados ao homem?

e) Que semelhança a autora descobre entre acriança, as mulheres e os humildes?

Texto complementar

Para Maria da GraçaAgora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no

País das Maravilhas.Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para

a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive asloucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem asportas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gati-

nha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?"Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece

muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada

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história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teusossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta.Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falouno fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá,abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cãesamestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de espe-rar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maiordos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I

beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoriade bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice:"Gostarias de gatos se fosses eu?"

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional einternacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher,até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tãodesnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que,quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quemganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveresde ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempreaonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás aterrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas etristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge,polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria umromance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que sepensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Querodizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde,prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuin-do de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongopor um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário tambémacontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamosontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicadaque produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinoce-rontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto paraenfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o peque-no por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais oumenos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisater quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha precio-sa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos emque estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triun-famos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento,com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e estese vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castiga-da, afogando-me em minhas próprias lágrimas".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar afronteira de nossa dor, Maria da Graça.

(Paulo Mendes Campos, Para Maria da Graça, in Para gostar de ler, crônicas, São Paulo,Ática, 1979, v. 4, p. 73-76.)

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Não há determinismo ou escolha absoluta: jamais sou coisa, jamais sou consciência nua.

1. Introdução

As parcas fiando o destino de Maria de Medici,de Rubens, 1622-25. Nos relatos míticos gregos,as Moiras (Parcas para os romanos) tecem e cor-tam o fio do destino humano.

(Merleau-Ponty)

As Moiras, divindades da mitologia gre-ga, são três irmãs que dirigem o movimentodas esferas celestes, a harmonia do mundo e asorte dos mortais. Elas presidem o destino(moira, em grego) e dividem entre si as diver-sas funções: Cloto, que significa "fiar", teceos fios dos destinos humanos; Láquesis, quesignifica "sorte", põe o fio no fuso; Atropos,ou seja, "inflexível", corta impiedosamente ofio que mede a vida de cada mortal.

Está implícita nesse mito a idéia de quea ação humana se acha ligada aos desígniosdivinos. Os relatos de Homero e Hesíodo re-velam como os heróis até se orgulham de serescolhidos por certos deuses, que os fazemseus protegidos, defendendo-os da ação ma-lévola de outros deuses.

Vamos reler agora a citação do psicólo-go americano Watson feita no Capítulo 16:"Dêem-me doze crianças sadias, de boa cons-tituição, e a liberdade de poder criá-las à mi-nha maneira. Tenho a certeza de que, se esco-lher uma delas ao acaso, e puder educá-la,convenientemente, poderei transformá-la emqualquer tipo de especialista que eu queira —médico, advogado, artista, grande comercian-te, e até mesmo em mendigo e ladrão —, in-dependente de seus talentos, propensões, ten-dências, aptidões, vocações e da raça de seusascendentes".1

Prosseguindo nesse ideal de controle docomportamento, Skinner, outro psicólogo ex-perimental, imagina uma utopia no romanceWalden II, onde todos os atos humanos seriam

1 Watson, apud E. Heidbreder, Psicologias do século XX, p. 218.

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CAPÍTULO 30A

LIBERDADE

cientificamente planejados e controlados. Aí aspessoas são felizes, pois os técnicos e cientis-tas cuidam para que elas queiram fazer preci-samente as coisas que são melhores para elas epara a comunidade. Nesse mundo, as questõessobre determinismo e liberdade são reduzidasa pseudoquestões de origem lingüística...

O mito relatado no primeiro parágrafoperde-se no tempo da história da Grécia Anti-ga. Homero talvez tenha vivido no século IXa.C. e sabe-se que ele apenas recolheu as his-tórias transmitidas desde longo tempo pelatradição oral.

Já os americanos Watson e Skinner, psi-cólogos da corrente comportamentalista, sãonossos contemporâneos.

O que distingue essas duas posições tãodistantes no tempo é que a primeira é mítica ea segunda, científica. O que as aproxima éque, em ambos os casos, inexiste a liberdadehumana, porque no mito o homem se achasubmetido ao destino inexorável, e no discur-so científico daqueles psicólogos o homemestá sujeito ao determinismo.

Tentaremos colocar a questão da liber-dade sob um ponto de vista diferente, exami-nando inicialmente duas posições antagôni-cas — o determinismo e a liberdade incondi-cional —, para em seguida apresentar a supe-ração dessa dicotomia.

2. O que é determinismo

Segundo o determinismo científico, tudoque existe tem uma causa. O mundo explicadopelo princípio do determinismo é o mundo danecessidade, e não o da liberdade. Necessáriosignifica tudo aquilo que tem de ser e não podedeixar de ser. Nesse sentido, a necessidade é ooposto de contingência, que significa "o quepode ser de um jeito ou de outro".

Exemplificando: se aqueço uma barra deferro, ela se dilata; a dilatação é necessária,no sentido de que é um efeito inevitável, quenão pode deixar de ocorrer. No entanto, é con-tingente que neste momento eu esteja usandoroupa vermelha ou amarela.

Ora, se a ciência não partisse do pressu-posto do determinismo, seria impossível esta-belecer qualquer lei. A física, a química, a

biologia se constituíram em ciências ao longodos três últimos séculos procurando descobriras relações constantes e necessárias entre osfenômenos. Não haveria conhecimento cien-tífico se tudo fosse contingente, isto é, pudes-se acontecer ora de uma forma, ora de outra.

Já no século XVIII, os materialistas fran-ceses D'Holbach e La Mettrie explicam os atoshumanos como simples elos de uma cadeiacausai universal. O físico Laplace resumiu as-sim esse determinismo: "Um calculador divi-no, que conhecesse a velocidade e a posição decada partícula do universo num dado momen-to, poderia predizer todo o curso futuro dosacontecimentos na infinidade do tempo".

No século XIX, o positivismo, na ânsiade aplicar o mesmo método das ciências danatureza às ciências humanas, estende a estaso determinismo, considerando a escolha livreuma mera ilusão. A psicologia de Watson eSkinner reflete, no século XX, a influência davisão positivista nas ciências humanas.

Um dos discípulos de Comte, Taine(1828-1893), tornou-se conhecido sobretudopelas leis da sociologia, segundo as quaistoda vida humana social se explicaria por trêsfatores:

• a raça, que é a grande força biológicados caracteres hereditários determinantes docomportamento do indivíduo;

• o meio, pelo qual o indivíduo se achasubmetido aos fatores geográficos (como o cli-ma, por exemplo), bem como ao ambiente só-cio-cultural e às ocupações cotidianas da vida;

• o momento, pelo qual o indivíduo éfruto da época em que vive, estando subordi-nado a uma determinada maneira de pensarcaracterística do seu tempo.

O pressuposto do pensamento de Taineé o determinismo, pois o ato humano não élivre, já que é causado por esses fatores e de-les não pode escapar.

Vamos encontrar o reflexo dessa visãodeterminista na clássica teoria de Lombroso,jurista que pretendia, pela análise das caracte-rísticas físicas dos indivíduos, identificar ocriminoso "nato".

Também a literatura foi influenciadapelo determinismo positivista: a estética natu-ralista2 oferece inúmeros exemplos da tentati-

2 No Brasil, enquadram-se nessa linha os romances de Aluísio Azevedo: O mulato, O cortiço e Casa de pensão.

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va de explicar o comportamento humanocomo decorrente de fatores determinantes,sem nenhuma possibilidade de transcendência.Émile Zola, romancista francês, afirmou: "Oromance experimental é uma conseqüência daevolução científica do século; cabe-lhe conti-nuar e completar a fisiologia...; ele substitui oestudo do homem abstrato, do homem metafí-sico, pelo estudo do homem natural, submeti-do às leis físico-químicas e determinado pelasinfluências do meio".

3. A teoria da liberdadeincondicional

Contrapondo-se ao determinismo, háteorias que enfatizam a possibilidade da liber-dade humana absoluta, do livre-arbítrio, se-gundo o qual o homem tem o poder de esco-lher um ato ou não, independentemente dasforças que o constrangem.

Segundo essa perspectiva, ser livre édecidir e agir como se quer, sem qualquer de-terminação causai, quer seja exterior (am-biente em que se vive), quer seja interior (de-sejos, caráter). Mesmo admitindo que tais for-ças existam, o ato livre pertence a uma esferaindependente em que se perfaz a liberdadehumana. Ser livre é, portanto, ser incausado.

Bossuet (séc. XVII), no Tratado sobreo livre-arbítrio, diz o seguinte: "Por mais queeu procure em mim a razão que me determi-na, mais sinto que eu não tenho nenhuma ou-tra senão apenas a minha vontade: sinto aí cla-ramente minha liberdade, que consiste unica-mente em tal escolha. É isto que me faz com-preender que sou feito à imagem de Deus".

4. Superação da dicotomia

Determinismo ou liberdade?

Afinal, "o homem é livre ou é determi-nado?" A questão assim colocada gera um fal-so problema.

Na verdade, o homem é determinado eé livre. E preciso considerar os dois pólos con-traditórios, superando o materialismo meca-nicista, segundo o qual o homem é determina-do bem como a tese da liberdade incondicio-nal. Segundo a concepção dialética, embora

os pólos determinismo-liberdade se oponham,na verdade estão ligados:

• o homem é realmente determinado,pois se encontra situado em um tempo e espa-ço e é herdeiro de uma certa cultura;

• mas o homem é também um ser cons-ciente, capaz de conhecer esses determinis-mos; tal conhecimento permitirá a açãotransformadora que, a partir da consciênciadas causas (e não à revelia delas), pode cons-truir um projeto de ação.

Portanto, só a consciência do determi-nismo não é suficiente, pois a liberdade se tor-na verdadeira quando acarreta um poder, umdomínio do homem sobre a natureza e sobre asua própria natureza.

A consciência que o homem tem dascausas se transforma, por sua vez, em outracausa, capaz de alterar a ordem das coisas.Com isso, não se rompe o nexo causai, masintroduz-se uma outra causa — a consciênciado determinismo — que transforma o homemem ser atuante, e não simples efeito passivodas causas que agem sobre ele.

Vejamos o exemplo da ação do vírus datuberculose no corpo humano: pela ordem na-tural da ação das causas, a morte é inevitável.Pelo menos era assim no século passado, e adespeito da aura romântica que envolvia osjovens poetas tuberculosos, a doença era im-placável. Quando Koch descobre o nexo cau-sai da doença, pela ação do bacilo, o conheci-mento das causas possibilita a ação efetiva:remédios, alimentação, clima, repouso etc, eeis o fantasma da doença letal deixando deassombrar as pessoas.

O filósofo personalista Mounier diz:"Enquanto se desconheceram as leis da aero-dinâmica, os homens sonhavam voar; quandoo seu sonho se inseriu num feixe de necessi-dades, voaram". Lembremos aqui o significa-do do conceito de necessidade. Descobrir ofeixe de necessidades é conhecer as leis daaerodinâmica, ou seja, saber o que faz voarum corpo mais pesado do que o ar. Não hámágica: há conhecimento dos determinismos.O sonho se concretiza no trabalho do homemcomo ser consciente e prático.

Do ponto de vista psicológico, ocorre omesmo processo. Suponhamos que alguémtenha um temperamento agressivo. Se ele sereconhece assim, cuida para não ser levadopelo impulso, para saber usar a agressividadeconforme a ocasião e conveniência. Aliás,

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uma das grandes contribuições de Freud é termostrado que o neurótico não é livre, pois seacha dominado por forças inconscientes quemascaram suas ações.

A atitude obsessivo-compulsiva, como ade lavar as mãos seguidamente, por considerá-las sempre sujas ou cheias de micróbios, nãorepresenta o ato livre de alguém preocupadocom a higiene. Trata-se de um sintoma e por-tanto tem um significado latente, oculto, quepode ser investigado. A interpretação é semprerelativa a cada caso concreto, mas, para fins deexemplificação, vamos supor que o significa-do fosse a culpa resultante de desejos sexuaisreprimidos e considerados "sujos" pelo pacien-te. A cura da neurose estaria em trazer à cons-ciência a causa escondida, ajudando o pacientea lidar com o seu próprio desejo.

A liberdade situada

O que observamos na posição que pre-tende superar a antinomia determinismo-liber-dade é que a discussão sobre liberdade não sefaz no plano teórico, a partir do conceito daliberdade abstrata. Ao contrário, trata-se da li-berdade do homem situado, do homem en-quanto ser de relação.

Na linguagem da fenomenologia, tradu-zimos esses dois pólos como sendo afacticidade (ou imanência) e a transcendênciahumanas. Pólos antitéticos (ou seja, contradi-tórios, relativos à tese e a antítese), mas indis-soluvelmente ligados.

A facticidade é a dimensão de "coisa"que todo homem tem, é o conjunto das suas de-terminações. São os "fatos" (donde facticida-de) que estão aí, tais como são e sem possibili-dade de ser de outra forma. O fenomenólogoLuijpen diz: "Refletindo sobre sua existência,o homem se encontra, com efeito, como 'já'imerso em determinado corpo e 'já' envolvidoem determinado mundo. Acha-se como holan-dês, judeu, inteligente, aleijado, operário, emo-cional, doente, rico, gordo, ou outra coisa qual-quer. Tudo isto constitui o que ele ja é, a saber,seu passado. Esse 'já' é também chamado a'determinação' do homem".3

A transcendência é a ação pela qual ohomem executa o movimento de se ultrapassara si mesmo. É a sua dimensão de liberdade.

A liberdade não é uma dádiva, algo queé dado, nem é um ponto de partida, mas é oresultado de uma árdua tarefa, alguma coisaque o homem deve conquistar.

A liberdade não é a ausência de obstá-culos, mas o desenvolvimento da capacidadede dominá-los e superá-los. O filósofo fran-cês Gusdorf conta que "um grande pintor, ten-do feito em algumas sessões o retrato de umfreguês, teve que ouvir deste a objeção que opreço exigido era muito alto por algumas ho-ras de trabalho. 'Algumas horas', respondeuo artista, 'mas toda a minha vida'"4. Isso sig-nifica que a aparente simplicidade do traba-lho executado naquele curto espaço de tempona verdade era o resultado de muita disciplinae domínio das dificuldades enfrentados duran-te longo período de aprendizado.

A juventude é a fase em que se tornamais forte a reivindicação de liberdade. Mastambém é o período em que se inicia o exercí-cio desse poder. Por isso, ainda segundoGusdorf, "a liberdade adolescente é uma ado-lescência da liberdade, uma liberdade de aspi-ração (...) A juventude é o tempo de aprendi-zado da liberdade"5.

É importante rever o Capítulo 2 que tra-ta do trabalho como forma por excelência doagir livre humano, a fim de melhor compre-ender como a alienação no trabalho é desu-manizadora, por retirar do homem aquilo queo caracteriza fundamentalmente, ou seja, acapacidade de transcendência.

5. A estrutura do homem

Tentaremos explicitar mais detalhada-mente as conclusões a que chegamos até aqui.Como se dá o entrelaçamento de responsabi-lidade, liberdade e necessidade? E precisoexaminar a estrutura do homem, e para tal usa-remos o esquema utilizado pelo filósofo VanRiet6 como ponto de partida para sua teoria doconhecimento. Embora originalmente o pon-

3 W. A. M. Luijpen, Introdução à fenomenologia existencial, p. 197.4 0. Gusdorf, Impasses e progressos da liberdade, São Paulo, Convívio, 1979, p. 100.5 G. Gusdorf, Impasses ..., p. 106.6 Um resumo do esquema de Van Riet, mais ampliado que o nosso e aplicado à educação, encontra-se em D. Saviani,

Educação brasileira; estrutura e sistema, p. 33.

300

to de referência para o filósofo tenha sido ohomem enquanto sujeito que conhece, vamosfazer a adaptação à questão da liberdade, istoé, o homem enquanto ser livre.

Segundo Van Riet, o homem possui umaestrutura formada por aspectos distintos, masligados entre si: empírico (ou corpóreo), pes-soal (ou voluntário) e aperceptivo (ou inte-lectual).

Aspecto empírico

Chama-se empírico o aspecto da estru-tura humana referente aos fenômenos que po-dem ser constatados pela experiência.

• O homem é um corpo e, como tal, estásujeito às leis da física (ocupa lugar no espa-ço, está sujeito à lei da queda dos corpos etc).

• O homem é um corpo biológico, umorganismo vivo, e responde às influênciasdo mundo de forma coordenada: busca ar ealimento, se reproduz, herda e transmitecaracteres segundo leis conhecidas pelagenética.

• O homem é um ser psicológico e, comotal, percebe o mundo, reage emocionalmente aele e elabora as próprias vivências. Por exem-plo, o processo de aprendizagem se faz a partirde funções específicas que se desenvolvemgradativamente: não adianta querer ensinar ál-gebra a uma criança que ainda não aprendeu arit-mética elementar. Isso sem falar na existênciade caracteres patológicos que podem influen-ciar o comportamento das pessoas.

• O homem é um ser cultural, vive nomeio humanizado, transformado por sua pró-pria ação. Ao nascer, já recebe língua, costu-mes, moral, religião, organização econômicae política, uma história, enfim. É a isso quechamamos historicidade, ou seja, o homem seencontra sempre situado em determinada épo-ca, numa certa cultura.

O aspecto empírico refere-se à facti-cidade humana. Se considerássemos apenas oaspecto empírico do homem, concluiríamosque ele é determinado e não é livre.

Aspecto pessoal

O aspecto empírico não é, entretanto,determinante de forma absoluta. Podemosconstatar que, diante dos determinismos, ohomem tem uma reação pessoal.

O aspecto pessoal é também chamadovoluntário, pois não se explica só pelo fato deo homem estar situado na sua facticidade, maspor ser capaz de transcender, decidir, esco-lher, e, conseqüentemente, de ser responsávelpor seus atos, comprometido neles, engajadonuma ação.

Exemplo interessante é o da linguagem,que faz parte do aspecto empírico, já que setrata de um fato da cultura herdada. No entan-to, as mesmas palavras usadas por todos po-dem ser organizadas de modo original, de talforma que é possível reconhecer o estilo in-confundível de cada um. Isso decorre da ori-ginalidade e criatividade humanas.

Nossa própria experiência pode ser re-tomada em vários sentidos diferentes: nuncalemos o mesmo livro da mesma forma, nossaslembranças são reelaboradas nos contextosvividos; descobrimos coisas novas a cada vezque ouvimos a mesma música.

Mas aí surge um problema: se o aspectopessoal justifica a liberdade do homem, e essaliberdade é pessoal e intransferível, cabe acada homem decidir sobre o que é melhor parasi; querer determinar o que é melhor para to-dos seria violar a liberdade de cada um.

Entretanto, o resultado de tal postura semdúvida individualista é o relativismo moral e osolipsismo (o homem voltado para si mesmo eincapaz de comunicar-se com o outro).

Tal posição é muito comum hoje em dia,principalmente quando as pessoas "justifi-cam" o individualismo dos seus atos: "Estouna minha"... Permanecer nesse estágio pessoalresulta em empobrecimento da moral, pois oindivíduo não é capaz de descentrar-se de sipróprio.

Aspecto aperceptivo

O terceiro aspecto da estrutura do ho-mem chama-se aperceptivo, porque procura-se fazer uma abordagem além da percepção,e que portanto seja abstrata, conceituai, inte-lectual.

Nesse aspecto as afirmações subjetivasaspiram à objetividade, permitindo ao sujeitoa superação das contingências da própria ex-periência e colocando-se do ponto de vista dosoutros. A descentralização do sujeito em bus-ca da relação intersubjetiva (isto é, entre ossujeitos) possibilita a comunicação e retira oindivíduo do seu universo fechado.

301

Retomemos o exemplo da linguagem:pelo aspecto empírico, ela é um determinis-mo, pois a recebemos como herança cultural;pelo aspecto pessoal, transcendemos o determi-nismo pela elaboração original de um discursocriador e pessoal; pelo aspecto aperceptivo,por mais original que seja nosso discurso, nósnos fazemos entender, pois existe na lingua-gem o sentido intersubjetivo que supera opessoal.

Conclusão

Fizemos a exposição dos três aspectosda estrutura do homem em determinada se-qüência, o que não deve ser entendido comotrês momentos isolados que surgem nessa or-dem de experiência. A moral é tecida na tra-ma dos três aspectos que, embora contraditó-rios, se acham indissoluvelmente ligados.

Prender-se ao aspecto empírico é mergu-lhar na heteronomia, é regular-se por leis ex-ternas, é sucumbir ao determinismo. Privi-legiar o aspecto pessoal é negar a dimensãointersubjetiva da moral. Ater-se exclusivamenteao aspecto aperceptivo é tornar a moral e a liber-dade conceitos abstratos e descarnados.

A relação que se estabelece entre os trêsaspectos é dialética, pois supõe a reciprocida-de de influências, em que a atuação de um as-pecto, mesmo "negando" o outro, de certa for-ma o "conserva".

Só assim será possível superar aheteronomia, indo em direção à autonomia: arealização do ato moral livre.

6. A dimensão social da liberdade

Quando, no Capítulo 27, tratamos docaráter social da moral, nos referimos a duasmaneiras de o social agir sobre o homem.Num primeiro momento, o social é resultadoda herança cultural e, como tal, condição daimanência ou facticidade (aspecto empírico).Posteriormente, ao considerarmos o aspectoaperceptivo, o social que aí encontramos éjustamente condição de transcendência e ex-pressão da nossa liberdade.

Isso significa que é impossível a liberda-de fora da comunidade dos homens. As rela-ções entre os homens não são de contigüidade,mas de intersubjetividade, de engendramento,isto é, os homens não estão simplesmente uns

ao lado dos outros, mas são feitos uns pelosoutros: o homem se humaniza pelo trabalho,cuja ação é social. Daí não podermos falar pro-priamente do homem como uma "ilha".

Ao nos referirmos ao caráter social da li-berdade, nos contrapomos à idéia individualis-ta de liberdade herdada da tradição liberal bur-guesa. Para explicar melhor, vamos examinaro conceito liberal de liberdade, tal como foiteorizado a partir dos séculos XVII e XVIII.

Como vimos no Capítulo 22, o pensa-mento liberal é essencialmente individualista.Parte do pressuposto de que os indivíduos vi-vem inicialmente em estado de natureza e sereúnem para estabelecer o contrato social peloqual o poder se torna legítimo. O Estado queresulta do consenso dos cidadãos não deve serintervencionista (o liberalismo defende olaissez-faire, opondo-se ao mercantilismo),servindo, em última análise, para garantir a li-berdade individual, a segurança dos cidadãose a propriedade.

Portanto, a liberdade individual surgecomo ponto de partida e ponto de chegada,onde se alicerçam as relações possíveis entreas pessoas. A expressão clássica dessa con-cepção é: "A liberdade de cada um é limitadaunicamente pela liberdade dos demais".

A escravidão é condenada e o contratode trabalho se apresenta como uma forma le-gal de acordo livre entre iguais: o dono do ca-pital paga o salário ao operário; este, por suavez, vende sua força de trabalho. Mas tambémjá vimos que a democracia liberal é uma de-mocracia de direito e não de fato, formal e nãosubstancial, pois permite a elitização do po-der: apenas as pessoas que têm propriedadetêm poder político. A decorrência é que oshomens não são tão iguais assim e, portanto, a"liberdade de escolha" não é tão "livre" quan-to se poderia imaginar. Na verdade as condi-ções de escolha já estão predeterminadas e re-duzidas para aqueles que não são proprietá-rios. O princípio do liberalismo é: "A raposalivre no galinheiro livre".

Ou seja, ao tentar exercer sua liberdade,o proletário verifica que a livre escolha dos in-divíduos privilegiados delimita cada vez maiso seu próprio espaço de ação. Na selva do sal-ve-se-quem-puder, onde cada um luta por simesmo e não deve obrigações a ninguém, a li-berdade é uma ilusão. Além de que, quando ospobres querem expressar seus desejos, isso as-sume imediatamente um caráter de desordem.

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Segundo a posição crítica do pensamen-to liberal burguês, a concepção de liberdadenão tem como ponto de partida a liberdade in-dividual, mas sim o interesse coletivo, porqueé a partir dele que o comportamento indivi-dual se regula. Vimos que a vida moral só épossível enquanto ação baseada na coopera-ção, na reciprocidade e no desenvolvimentoda responsabilidade e do compromisso. Sóassim torna-se viável a efetiva liberdade decada um. Nesse sentido, o outro não é o limite danossa liberdade, mas a condição para atingi-la.

Merleau-Ponty dá o exemplo da torturainfligida a um homem para obrigá-lo a falar:"Se ele recusa a dar os nomes e os endereçosque se quer arrancar dele, não é por uma deci-são solitária e sem apoio; ele ainda se sentiacom seus camaradas e, ainda engajado na lutacomum, ele estava como que incapaz de falar(...) Não é finalmente uma consciência nua queresiste à dor, mas o prisioneiro com seus cama-radas ou com o que amam e sob o olhar dequem vive. (...) Estamos misturados no mundoe aos outros numa confusão inextrincável"7.

Exercícios

1. Que relação estabelecemos entre o exem-plo do mito grego e a citação de Watson?

2. Qual é a importância dos determinismospara a ciência?

3. Como relacionar reciprocamente determi-nismo e liberdade? Dê exemplos diferentes dos queestão no texto, referindo-se à sua história pessoal.

4. Explique a frase de Gusdorf: "A liberdadeadolescente é uma adolescência da liberdade".

5. Faça um esquema da estrutura do homem,identificando cada um dos três aspectos(empírico, pessoal, aperceptivo), conforme os se-guintes critérios:

a) Qual o relativo? Qual o absoluto?b) Qual o subjetivo? Qual o objetivo?c) Qual representa a facticidade? E a

transcendência?

6. O movimento de maio de 1968, deflagradonas universidades francesas, pode ser ilustrado emparte por graffiti como este: "É proibido proibir",Quais são os possíveis significados dessa frase?

7. Comente a afirmação de Merleau-Ponty:"Não há determinismo ou escolha absoluta: jamaissou coisa, jamais sou consciência nua".

8. Simone de Beauvoir critica o patriarcadoneste trecho extraído de O segundo sexo (1949),

obra que significou um marco na luta pela humani-zação da mulher. Leia-o e atenda ao solicitado aseguir:

"O paternalismo, que reclama a mulher no lar,define-a como sentimento, interioridade e ima-nência; na realidade, todo existente é, ao mesmotempo, imanência e transcendência; quando não lhepropõem um objetivo, quando o impedem de atin-gir algum, quando o frustram em sua vitória, suatranscendência cai inutilmente no passado, isto é,recai na imanência; é o destino da mulher no pa-triarcado. (...) Para grande número de mulheres oscaminhos da transcendência estão barrados: comonão fazem nada, não se podem fazer ser; pergun-tam-se indefinidamente o que poderiam vir a ser, oque as leva a indagar o que são: é uma interrogaçãovã; se o homem malogra em descobrir essa essên-cia secreta é muito simplesmente porque ela nãoexiste. Mantida à margem do mundo, a mulher nãopode definir-se objetivamente através desse mun-do e seu mistério cobre apenas um vazio." (Simonede Beauvoir)

a) Justifique a afirmação de que a mulher emcertas circunstâncias não atinge a transcendência.

b) O que é preciso para que ela saia da ima-nência?

c) Em que medida permanecer na imanên-cia significa não ter possibilidade de vida moraladulta?

e) Em que proporção essa descrição aindaé válida para a mulher de hoje?

7 M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, p. 456.

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Ser livre não é ter o poder de fazer não importa o quê, é poder ultrapassar o dado para um futuro aberto.

(Simone de Beauvoir)

O importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele.

(Sartre)

1. A fenomenologia

A fenomenologia é o método e a filoso-fia que fornecem os conceitos básicos para areflexão existencialista. Já vimos alguma coi-sa a respeito nos Capítulos 10 e 16.

O postulado básico da fenomenologia éa noção de intencionalidade, pela qual se con-sidera que toda consciência é intencional, ten-de para algo fora de si. Isso significa que, con-trariamente ao que afirmavam os racionalistasdo século XVII (como Descartes), não há puraconsciência, separada do mundo, mas todaconsciência tende para o mundo, toda cons-ciência é consciência de alguma coisa. Mas,também, contrariamente aos empiristas (comoLocke), os fenomenólogos afirmam que nãohá objeto em si, já que o objeto é sempre paraum sujeito que lhe dá significado.

Por meio do conceito de intencionali-dade a fenomenologia se contrapõe à filosofiapositivista do século XIX, presa demais à vi-são objetiva do mundo. A crença na possibili-dade de um conhecimento científico cada vezmais neutro, mais despojado de subjetivida-de, mais distante do homem, a fenomenologiacontrapõe a retomada da "humanização" daciência, estabelecendo uma nova relação en-tre sujeito e objeto, homem e mundo, consi-derados pólos inseparáveis.

É bom lembrar que a consciência que ohomem tem do mundo é mais ampla que omero conhecimento intelectual, pois a cons-

ciência é fonte de intencionalidades não sócognitivas mas afetivas e práticas. O olhar dohomem sobre o mundo é o ato pelo qual o ho-mem experiencia o mundo, percebendo, ima-ginando, julgando, amando, temendo etc.

A fenomenologia critica a filosofia tra-dicional por desenvolver uma metafísica cujanoção de ser é vazia e abstrata, voltada para aexplicação. Ao contrário, a fenomenologiatem como preocupação central a descrição darealidade, colocando como ponto de partidade reflexão o próprio homem, no esforço deencontrar o que realmente é dado na expe-riência, e descrevendo "o que se passa" efeti-vamente do ponto de vista daquele que vivedeterminada situação concreta. Nesse sentido,a fenomenologia é uma filosofia da vivência.

2. Heidegger

Martin Heidegger (1889-1976), discípu-lo de Husserl, na obra Ser e tempo usa o mé-todo fenomenológico para discutir e elaboraruma teoria do Ser. Para tal, Heidegger parteda análise do ser do homem, que ele denomi-na Dasein. Esta expressão alemã significa jus-tamente o "ser-aí", ou seja, o homem é um ser-no-mundo. Retomando a noção de intencio-nalidade, o ser humano não é uma consciên-

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0EXISTENCIALISMO

CAPÍTULO 31

cia separada do mundo: ser é "estourar","eclodir" no mundo. O "ser-ai' não é a cons-ciência separada do mundo, mas está numasituação dada, toma conhecimento do mundoque ele próprio não criou e ao qual se achasubmetido num primeiro instante. A isso cha-mamos facticidade (ver Capítulos 27 e 30).Assim, além da herança biológica, o homemrecebe a herança cultural que depende do tem-po e do lugar em que nasceu.

A partir do "ser-aí", Heidegger demons-tra a especificidade do ser do homem, que é aexistência. Se o homem é lançado no mundode maneira passiva, pode tomar a iniciativa dedescobrir o sentido da existência e orientarsuas ações em direções as mais diversas. Aisso se chama transcendência. No processo, ohomem descobre a temporalidade, pois, aotentar compreender o seu ser, dá sentido aopassado e projeta o futuro. Ao superar afacticidade, atinge um estágio superior, que éa Existenz, a pura existência do Dasein.

Tal passagem, porém, não é feita semdificuldade, pois o homem, mergulhado nafacticidade, tende a recusar seu próprio ser,cujo sentido se anuncia, mas ainda se achaoculto. A angústia retira o homem do cotidia-no e o reconduz ao encontro de si mesmo. Aangústia surge da tensão entre o que o homemé e aquilo que virá a ser, como dono do seupróprio destino.

Do sentido que o homem imprime à suaação, decorre a autenticidade ou a inautentici-dade da sua vida. O homem inautêntico é oque se degrada vivendo de acordo com verda-des e normas dadas; a despersonalização o fazmergulhar no anonimato, que anula qualqueroriginalidade. É o que Heidegger chama "mun-do do man" (em alemão, man significa "se") eque designa a impessoalidade: come-se, bebe-se, vive-se, como todos comem, bebem, vivem.Ao contrário, o homem autêntico é aquele quese projeta no tempo, sempre em direção ao fu-turo. A existência é o lançar-se contínuo às pos-sibilidades sempre renovadas.

Entre as possibilidades, o homem vis-lumbra uma, privilegiada e inexorável: a mor-te. O "ser-aí" é um "ser-para-a-morte". A má-xima "situação-limite", que é a morte, ao apa-recer no cotidiano possibilita ao homem oolhar crítico sobre sua existência. É caracte-rística de inautenticidade abordar a morte en-quanto "morte na terceira pessoa", ou seja, amorte dos outros, evitando tematizar a própria

finitude e, portanto, nunca questionando aprópria existência.

Embora tenha se preocupado com aquestão da existência, Heidegger recusa serenquadrado entre os filósofos existencialistas,argumentando que as reflexões acerca da exis-tência são, na sua filosofia, apenas introduçãoà análise do problema do Ser, e não propria-mente da existência pessoal. Mas não restadúvida de que inspirou o pensamento dosexistencialistas.

3. Sartre e o existencialismo

O existencialismo sartriano sofre in-fluências de Husserl, Heidegger, Jaspers eMax Scheler, chegando até as obras deKierkegaard (1813-1855), filósofo dina-marquês que se lançou contra a filosofiaespeculativa, opondo-lhe a filosofia existen-cial. Na nova atitude, o filósofo de "carne eosso" se inclui a si mesmo no pensar, que atéentão se propunha objetivo e distanciado dovivido.

Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreveuO ser e o nada, sua principal obra filosófica,em 1943. Mas em 1938 já havia publicado oromance A náusea. Seu pensamento é muitoconhecido e gerou, inclusive, uma "modaexistencialista", também pelo fato de ele terse tornado famoso romancista e teatrólogo.

Sua produção intelectual foi fortementemarcada pela Segunda Guerra Mundial e pelaocupação nazista da França. Podemos dizerque há um Sartre de antes da guerra e outro dopós-guerra, tal o impacto da Resistência Fran-cesa sobre sua concepção política deengajamento. Engajamento significa a neces-sidade de o pensador estar voltado para a aná-lise da situação concreta em que vive, tornan-do-se solidário nos acontecimentos sociais epolíticos de seu tempo. Pelo engajamento, aliberdade deixa de ser apenas imaginária epassa a estar situada e comprometida na ação.Assim, ao escrever a peça de teatro AÍ mos-cas, que versa sobre o mito grego de Orestes eElectra, Sartre na verdade faz uma alegoria daocupação alemã em Paris. Com essa obra,inaugura o chamado "teatro de situação".

Ao lado de Simone de Beauvoir, tam-bém filósofa existencialista e sua companhei-ra de toda a vida, Sartre participou da vida

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Sartre participando demanifestação pró-Argé-lia. Sartre não dissociavaa reflexão filosófica nema produção literária doenvolvimento na políticado seu tempo.

política não só da França, mas mundial. Ape-sar de marxista, nunca deixou de criticar oautoritarismo, sobretudo quando as forças so-viéticas invadiram a Tchecoslováquia. Saía àrua em protestos e, com a imunidade que lheconferia a sua figura de cidadão do mundo,vendia nas esquinas La Cause du Peuple (ACausa do Povo) jornal maoísta, sem que nin-guém ousasse prendê-lo.

Sartre pertence à ala dos filósofosexistencialistas ateus, entre os quais se incluiMerleau-Ponty; na ala cristã, está GabrielMarcel.

Essência e existência

"A existência precede a essência." Eis afrase fundamental do existencialismo. Paramelhor compreender o significado dela, é pre-ciso rever o que quer dizer essência. A essên-cia é o que faz com que uma coisa seja o queé, e não outra coisa. Por exemplo, a essênciade uma mesa é o ser mesmo da mesa, aquiloque faz com que ela seja mesa e não cadeira.Não importa que a mesa seja de madeira,fórmica ou vidro, que seja grande ou peque-na: importa que tenha as características quenos permitam usá-la como mesa.

No famoso texto O existencialismo é umhumanismo, Sartre usa como exemplo um ob-jeto fabricado qualquer, como um livro ou

uma espátula de cortar papel. Quando um fa-bricante faz alguma coisa, tem antes em men-te o ser do objeto que será fabricado. Da mes-ma forma, uma pessoa que crê em Deus, su-põe que ele seja o artífice superior que criou ohomem segundo um modelo, tal qual o arte-são faz qualquer objeto. Daí deriva a noção deque o homem teria uma natureza humana, en-contrada igualmente em todos os homens.Portanto, segundo essa concepção, a essênciado homem precede a existência.

Não é essa, no entanto, a posição deSartre, que não identifica a fabricação de coi-sas ao fazer-se do homem. E, sendo ateu, nãoaceita a concepção de criação divina a partirde um modelo. Por isso especifica que, aocontrário das coisas e animais, no homem aexistência precede a essência, e isso "signifi-ca que o homem primeiramente existe, se des-cobre, surge no mundo; e que só depois se de-fine. O homem, tal como o concebe oexistencialista, se não é definível, é porqueprimeiramente não é nada. Só depois será al-guma coisa e tal como a si próprio se fizer.Assim, não há natureza humana, visto que nãohá Deus para a conceber. O homem é, nãoapenas como ele se concebe, mas como elequer que seja, como ele se concebe depois daexistência, como ele se deseja após este im-pulso para a existência; o homem não é maisque o que ele faz. Tal é o primeiro princípiodo existencialismo"1.

1 J.-P. Sartre, O existencialismo é um humanismo, p. 216.

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A liberdade e a angústia

Qual é a diferença entre o homem e ascoisas? É que só o homem é livre. O homemnada mais é do que o seu projeto. A palavrapro-jeto significa, etimologicamente, "ser lan-çado adiante", assim como o sufixo ex da pa-lavra existir significa "fora". Ora, só o homemexiste (ex-siste) porque o existir do homem éum "para-si", ou seja, sendo consciente, o ho-mem é um "ser-para-si" pois a consciência éauto-reflexiva, pensa sobre si mesma, é capazde pôr-se "fora" de si. Portanto, a consciênciado homem o distingue das coisas e dos ani-mais, que são "em-si", ou seja, como não sãoconscientes de si, também não são capazes dese colocar "do lado de fora" para se auto-exa-minarem.

O que acontece ao homem quando sepercebe "para-si", aberto à possibilidade deconstruir ele próprio a sua existência? Desco-bre que, não havendo essência ou modelo paralhe orientar o caminho, seu futuro se encontradisponível e aberto, estando portanto irreme-diavelmente "condenado a ser livre". É o pró-prio Sartre que cita a frase de Dostoiévski emOs irmãos Karamazov: "Se Deus não existe,então tudo é permitido", para relembrar queos valores não são dados nem por Deus nempela tradição: só ao próprio homem cabeinventá-los.

Se o homem é livre, é conseqüentemen-te responsável por tudo aquilo que escolhe efaz. A liberdade só possui significado na ação,na capacidade do homem de operar modifica-ções no real.

A má fé

O homem não é "em-si", ele é "para-si",que a rigor não é nada, pois se a consciêncianão tem conteúdo, não é coisa alguma. Masesse vazio é justamente a liberdade fundamen-tal do "para-si", que, movendo-se através daspossibilidades, poderá criar-lhe um conteúdo.

Eis que o homem, ao experimentar a li-berdade, e ao sentir-se como um vazio, vive aangústia da escolha. Muitas pessoas não su-portam essa angústia, fogem dela, aninhando-se na má fé. A má fé é a atitude característicado homem que finge escolher, sem na verda-de escolher. Imagina que seu destino está tra-çado, que os valores são dados; aceitando asverdades exteriores, "mente" para si mesmo,

simulando ser ele próprio o autor dos seuspróprios atos já que aceitou sem críticas osvalores dados. Não se trata propriamente deuma mentira, pois esta supõe os outros paraquem mentimos, enquanto a má fé se caracte-riza pelo fato de o indivíduo dissimular parasi mesmo com o objetivo de evitar fazer umaescolha da qual possa se responsabilizar.

O homem que recusa a si mesmo aquiloque fundamentalmente o caracteriza comohomem, ou seja, a liberdade, torna-se "safa-do", "sujo" (salaud), pois nesse processo re-cusa a dimensão do "para-si" e torna-se "em-si", semelhante às coisas. Perde a transcen-dência e reduz-se à facticidade.

Sartre chama tal comportamento de espí-rito de seriedade. O homem sério é aquele querecusa a liberdade para viver o conformismo ea "respeitabilidade" da ordem estabelecida e datradição. Esse processo é exemplificado noconto A infância de um chefe.

A fim de ilustrar o comportamento de máfé, Sartre descreve o garçom cuja função exigeque ele aja não como um "ser-para-si", mascomo um "ser-para-outro"; comporta-se comodeve se comportar um garçom, desempenhan-do o papel de garçom, de tal forma que ele sevê com os olhos dos outros. É assim que Sartreo descreve em O ser e o nada: "Consideremosesse garçom de café. Tem um gesto vivo e apu-rado, preciso e rápido; dirige-se aos consumi-dores num passo demasiado vivo, inclina-secom demasiado zelo, sua voz e seus olhos ex-perimentam um interesse demasiado cheio desolicitude para o pedido do freguês (...) Ele re-presenta, brinca. Mas representa o quê? Não épreciso observá-lo muito tempo para perceber:ele representa ser garçom de café".

Outro tipo de má fé é o da mulher que,estando com um homem, deixa-se "seduzir"por ele, dissimulando para si mesma, desde oinício, o caráter sexual do encontro.

A responsabilidade

Tais colocações a respeito do existen-cialismo poderiam fazer supor que se trata deum pensamento que defende o individualis-mo, em que cada um estaria preocupado coma própria liberdade e ação.

Contra esse mal-entendido, Sartre ad-verte: "Mas se verdadeiramente a existênciaprecede a essência, o homem é responsávelpor aquilo que é. Assim, o primeiro esforço

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do existencialismo é o de pôr todo o homemno domínio do que ele é e de lhe atribuir atotal responsabilidade da sua existência. E,quando dizemos que o homem é responsávelpor si próprio, não queremos dizer que o ho-mem é responsável pela sua restrita indivi-dualidade, mas que é responsável por todos oshomens. (...) Com efeito, não há dos nossosatos um sequer que, ao criar o homem que de-sejamos ser, não crie ao mesmo tempo umaimagem do homem como julgamos que deveser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar aomesmo tempo o valor do que escolhemos,porque nunca podemos escolher o mal, o queescolhemos é sempre o bem, e nada pode serbom para nós sem que o seja para todos. Se aexistência, por outro lado, precede a essênciae se quisermos existir, ao mesmo tempo queconstruímos a nossa imagem, esta imagem éválida para todos e para toda a nossa época.Assim, a nossa responsabilidade é muitomaior do que poderíamos supor, porque elaenvolve toda a humanidade"2.

O absurdo

Sartre também discute a questão da mor-te. Diferentemente de Heidegger, que conce-be a morte como aquilo que confere significa-do à vida, Sartre acha que ela lhe retira qual-quer sentido. A morte é a "nadificação" dosnossos projetos, ou seja, a certeza de que umnada total nos espera. Por isso, Sartre concluipelo absurdo da morte e, simultaneamente, davida, que é uma "paixão inútil": "Se nós te-mos de morrer, a nossa vida não tem sentido,porque os seus problemas não recebem qual-

quer solução e porque até a significação dosproblemas permanece indeterminada".

O conceito de náusea, usado no roman-ce de mesmo nome, refere-se justamente aosentimento experimentado diante do real,quando se toma consciência de que ele é des-provido de razão de ser, absurdo. Roquentin,a personagem principal do romance, numacélebre passagem, ao olhar as raízes de umcastanheiro, tem a impressão de existir à ma-neira de uma coisa, de um objeto, de estar-aí,como as coisas são. Tudo lhe surge como puracontingência, gratuitamente, sem sentido.

4. Conclusão

O existencialismo é uma moral da ação,porque considera que a única coisa que defineo homem é o seu ato. Ato livre por excelên-cia, mesmo que o homem sempre esteja situa-do em determinado tempo ou lugar. Não im-porta o que as circunstâncias fazem do ho-mem, "mas o que ele faz do que fizeram dele".

Vários problemas surgem no pensamen-to sartriano, desencadeados pela consciênciacapaz de criar valores e, ao mesmo tempo, seresponsabilizar por toda a humanidade, o queparece gerar uma contradição indissolúvel.

Sartre se coloca nos limites da ambigüi-dade, pois, se a moral é impossível porque origor de um princípio leva à sua destruição, arealização do homem, da sua liberdade, exigeo comportamento moral. Sartre sempre pro-meteu escrever um livro sobre moral, mas nãorealizou seu projeto. Uma tentativa nesse sen-tido foi levada a efeito por Simone deBeauvoir no livro Moral da ambigüidade.

Exercícios

1. O que é para Heidegger a vida autêntica e ainautêntica?

2. Compare o significado da morte paraHeidegger e para Sartre.

3. O que significa para Sartre "a existênciaprecede a essência"?

4. Explique o significado do que Sartre dizem As palavras, livro onde relata sua infância: "Eu

não podia admitir que a gente recebesse o ser defora, que ele se conservasse por inércia, nem queos movimentos da alma fossem os efeitos de movi-mentos anteriores (...) Diziam-me amiúde: o pas-sado nos impele; mas eu estava convencido de queo futuro me puxava".

5. Explique as afirmações: "Só os atos deci-dem do que se quis" e "Ninguém é mais que suavida".

J.-P. Sartre, O existencialismo é um humanismo, p. 219.

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6. O texto a seguir foi retirado do livro deSalinger O apanhador no campo de centeio. A per-sonagem em questão é o jovem Holden. Faça umaanálise usando os conceitos sartrianos, inclusive ode má fé: "O caso é o seguinte: na maioria das ve-zes que a gente está quase fazendo o negócio comuma garota — uma garota que não seja uma prosti-tuta nem nada, evidentemente — ela fica dizendopara a gente parar. Meu problema é que eu paro. Amaioria dos sujeitos não pára, mas eu não consigoser assim. A gente nunca sabe se elas realmentequerem que a gente pare, ou se estão apenas comum medo danado, ou se estão pedindo que a gentepare só para que, se a gente continuar mesmo, aculpa seja só nossa, e não delas".

Texto complementar

Moral da ambigüidade

A infelicidade do homem, disse Descartes, deriva de que ele foi primeiro uma criança. E, comefeito, estas escolhas infelizes que fazem a maior parte dos homens só se podem explicar porque seoperaram a partir da infância. O que caracteriza a situação da criança é que ela se encontra jogadanum universo que não contribuiu para constituir, que foi moldado sem ela e que lhe aparece comoum absoluto ao qual não pode senão submeter-se. Aos seus olhos, as invenções humanas — as pala-vras, os costumes, os valores — são fatos consumados inelutáveis como o céu e as árvores, ou seja, omundo em que vive é o mundo do sério, já que o específico do espírito de seriedade é considerar osvalores como coisas estabelecidas. (...) O mundo verdadeiro é o dos adultos, onde não lhe é permiti-do senão respeitar e obedecer. Ingenuamente vítima da miragem do para-outro, crê no ser dos seuspais, dos seus professores: considera-os como as divindades que estes procuram vãmente ser e cujaaparência se comprazem em imitar diante de olhos ingênuos. As recompensas, as punições, os prê-mios, as palavras de elogio ou de censura insuflam na criança a convicção de que existe um bem, ummal, fins em si, como existe um sol e uma lua. (...) E é nisto que a condição da criança (ainda quepossa ser, em outros aspectos, infeliz) é metafisicamente privilegiada: a criança escapa normalmenteà angústia da liberdade; pode ser, a depender de sua vontade, indócil, preguiçosa; seus caprichos esuas faltas dizem respeito somente a ela, não pesam sobre a terra, não poderiam perturbar a ordemserena de um mundo que existia antes dela, sem ela, no qual está em segurança por sua própriainsignificância; pode fazer impunemente tudo o que lhe agradar, sabe que nada acontecerá por causadisso, tudo já está dado; seus atos não comprometem nada, nem mesmo a si própria.

(...) É muito raro que o mundo infantil se mantenha além da adolescência. Desde a infância, jásuas falhas se revelam; no espanto, na revolta, no desrespeito, a criança pouco a pouco se interroga:por que é preciso agir assim? A quem isto é útil? E, se eu agisse de outra forma, que aconteceria? (...)E quando chega a idade da adolescência, todo seu universo se põe a vacilar, porque percebe as con-tradições que os adultos opõem uns aos outros, bem como suas hesitações, suas fraquezas. Os ho-mens cessam de lhe aparecer como deuses, e, ao mesmo tempo, o adolescente descobre o caráterhumano das realidades que o cercam: a linguagem, os costumes, a moral, os valores, têm sua fontenessas criaturas incertas; chegou o momento em que será chamado a participar também dessa opera-ção; seus atos pesam sobre a terra tanto quanto os dos outros homens, ser-lhe-á preciso escolherdecidir. Compreende-se que tenha dificuldade em viver esse momento de sua história e reside nisso,sem dúvida, a causa mais profunda da crise da adolescência: é que o indivíduo deve, enfim, assumira sua subjetividade. De certa forma, o desabamento do mundo sério é uma libertação. Irresponsável,a criança se sentia também sem defesa em face das potências obscuras que dirigiam o curso dascoisas. Mas, qualquer que seja a alegria dessa libertação, não é sem uma grande confusão que o

309

7. Leia o texto complementar de Simone deBeauvoir e responda às questões:

a) O que significa dizer que a criança não épropriamente um ser livre?

b) Em que sentido a adolescência é o mo-mento privilegiado da construção da consciênciamoral?

c) O que você entendeu pela frase: "Existir éfazer-se carência de ser"?

d) O que são "atitudes inautênticas"?e) Que comparação é feita entre as crianças,

as mulheres e os humildes?f) Quando a autora diz "não é mais um ho-

mem, mas um pai, um chefe", em que medida serefere ao conceito de "homem sério"?

adolescente encontra-se jogado num mundo que não é mais completamente feito, mas a fazer, donode uma liberdade que nada mais prende, abandonado, injustificado. Em face dessa situação nova,que pode ele fazer? É nesse momento que se decide; se a história, que se pode chamar natural, de umindivíduo — sensualidade, seus complexos afetivos etc. — depende sobretudo de sua infância, é aadolescência que surge como o momento da escolha moral: então, a liberdade se revela e é precisodecidir que atitude tomar diante dela. (...) A infelicidade que vem ao homem do fato de ele ter sidouma criança consiste, pois, em que sua liberdade lhe foi inicialmente ocultada e em que ele guardarátoda sua vida a nostalgia do tempo em que ignorava as exigências dela.

(...) Existir é fazer-se carência de ser, é lançar-se no mundo: pode-se considerar como sub-homens os que se ocupam em paralisar esse movimento original; eles têm olhos e ouvidos, masfazem-se desde a infância cegos e surdos, sem amor, sem desejo. Essa apatia demonstra um medofundamental diante da existência, diante dos riscos e da tensão que ela implica; o sub-homem recusaessa paixão que é a sua condição de homem, o dilaceramento e o fracasso deste impulso em direçãodo ser que nunca alcança seu fim; mas com isso, é a existência mesma que ele recusa.

(...) Compreende-se facilmente porque, de todas as atitudes inautênticas, essa é a mais freqüen-te: é que todo homem foi inicialmente uma criança; depois de ter vivido sob o olhar dos deuses,tendo prometido a si mesmo a divindade, não aceita de bom grado voltar a ser, na inquietude e nadúvida, simplesmente um homem. Que fazer? Em que acreditar? Freqüentemente, o jovem que,como o sub-homem, não recusou logo a existência de maneira a que essas questões não se colocas-sem, assusta-se, entretanto, por ter de respondê-las; após uma crise mais ou menos longa, volta-separa o mundo de seus pais e de seus senhores ou então adere a valores novos, mas que parecemtambém seguros. Em lugar de assumir uma afetividade que o lançaria perigosamente adiante de simesmo, ele a repele.

(...) A má fé do homem sério provém de que ele é obrigado, sem cessar, a renovar a renegaçãodessa liberdade. Ele escolhe viver num mundo infantil; mas à criança, os valores são realmentedados. O homem sério deve mascarar esse movimento através do qual se dá os valores, tal como amitômana, que lendo uma carta de amor, finge esquecer que essa lhe foi enviada por si mesma. Jáindicamos que, no universo do sério, certos adultos podem viver com boa fé: aqueles a quem érecusado qualquer instrumento de evasão, aqueles de quem outros se servem ou que são mistifica-dos. Menos as circunstâncias econômicas e sociais permitem a um indivíduo agir sobre o mundo,mais esse mundo lhe aparece como dado. É o caso das mulheres que herdam uma longa tradição desubmissão e daqueles a quem se chama de humildes; há, freqüentemente, preguiça e timidez na suaresignação, sua boa fé não é integral; mas na medida em que existe, sua liberdade permanece dispo-nível, não se renega: eles podem, na sua situação de indivíduos ignorantes, impotentes, conhecer averdadeira existência e elevar-se a uma vida propriamente moral.

(...) Ao contrário, o homem que tem os instrumentos necessários para evadir-se desta mentira eque não quer usá-los, esse destrói sua liberdade ao recusá-la; faz de si mesmo sério, dissimula suasubjetividade sob a armadura de direitos que emanam do universo ético reconhecido por ele; não émais um homem, mas um pai, um chefe, um membro da Igreja Cristã ou do Partido Comunista.

(...) É no medo que o homem sério experimenta essa dependência em relação ao objeto, e aprimeira das virtudes, aos seus olhos, é a prudência. Ele não escapa à angústia da liberdade senão paracair na preocupação, no cuidado; tudo para ele é ameaça. (...) E dado que não será jamais senhor dessemundo exterior ao qual consentiu em submeter-se, a despeito de todas as suas precauções, será semcessar contrariado pelo curso incontrolável dos acontecimentos. Sem cessar, declarar-se-á decepciona-do, porque sua vontade de congelar o mundo em coisa é desmentida pelo próprio movimento da vida.O futuro contestará seus sucessos presentes; seus filhos lhe desobedecerão, vontades estranhas opor-se-ão à sua, será presa do mau humor e da acidez. (...) Quer libertar-se de sua subjetividade, mas semcessar ela ameaça se desmascarar, ela se desmascara. Então, explode o absurdo de uma vida que procu-rou fora de si as justificações que só ela se podia dar. Desligados da liberdade que os teria fundamenta-do autenticamente, todos os fins perseguidos aparecem como arbitrários, inúteis.

(Simone de Beauvoir, Moral da ambigüidade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970, p. 29 e segs.)

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Sem o corpo a alma não goza.

(Adélia Prado)

1. A posição idealista

O homem sempre teve dificuldade emver claramente e sem preconceitos seu própriocorpo. De maneira geral, sempre houve a ten-dência entre os filósofos em explicar o homemnão como unidade integral, mas como com-posto de duas partes diferentes e separadas: ocorpo (material) e a alma (espiritual e cons-ciente). Chamamos a isso dualismo psicofísico,ou seja, a dupla realidade da consciência se-parada do corpo.

Platão

A dicotomia corpo-consciência já apare-ce no pensamento grego no século V a.C, comPlatão. Esse filósofo parte do pressuposto deque a alma, antes de se encarnar, teria vivido acontemplação do mundo das idéias (ver Capí-tulo 10 — Teoria do conhecimento), onde tudoconheceu por simples intuição, ou seja, por co-nhecimento intelectual direto e imediato, semprecisar usar os sentidos. Quando — por neces-sidade natural ou expiação de culpa — a almase une ao corpo, ela se degrada, pois se tornaprisioneira dele. A alma humana passa então ase compor de duas partes, uma superior (a almaintelectiva) e outra inferior (a alma do corpo).Esta última é irracional e se acha dividida emduas partes: a irascível, impulsiva, localizadano peito; e a concupiscível, localizada no ven-tre e voltada para os desejos de bens materiaise apetite sexual.

Todo drama humano consiste, paraPlatão, na tentativa de domínio da alma supe-rior sobre a inferior. Esta perturba o conheci-mento verdadeiro, pois, escravizada pelo sen-sível, leva à opinião e, conseqüentemente, aoerro. O corpo é também ocasião de corrupção

e decadência moral, e se a alma superior nãosouber controlar as paixões e os desejos, ohomem será incapaz de comportamento mo-ral adequado.

Da mesma forma, o amor sensível deveestar subordinado ao amor intelectual. No diá-logo O banquete, Platão demonstra que, na ju-ventude, predomina a admiração pela belezafísica; mas o verdadeiro discípulo de Eros ama-durece com o tempo ao descobrir que a belezada alma é mais preciosa que a do corpo.

No entanto, pode parecer contraditória aconstatação de que os gregos sempre se preo-cuparam com o seu corpo, estimulando osexercícios físicos, a ginástica, os esportes.Não é à toa que a Grécia aparece como o ber-ço das Olimpíadas.

Ora, Platão também valoriza a ginásti-ca, e isso apenas confirma a idéia da superio-ridade do espírito sobre o corpo. "Corpo sãoem mente sã" significa que a educação físicarigorosa põe o corpo na posse de saúde per-feita, permitindo que a alma se desprenda domundo do corpo e dos sentidos para melhorse concentrar na contemplação das idéias.Caso contrário, a fraqueza física torna-se em-pecilho maior à vida superior do espírito.

O ascetismo medieval

O período final da Antiguidade é mar-cado pelas migrações bárbaras e início da de-sagregação da grande unidade representadapelo Império Romano. O processo de transi-ção para o feudalismo medieval é lento e con-fuso. A partir do século IV, devido às inva-sões germânicas, a insegurança nas cidadesprovoca o declínio das atividades mercantis e

311

O CORPO

CAPÍTULO 32

o retorno ao campo, onde começa a se desen-volver outro tipo de relação de produção.

Tais mudanças, que marcam um perío-do de crise, fazem surgir interpretações pessi-mistas e críticas à dissolução dos costumesromanos, feitas sobretudo por monges quebuscam refúgio na fé. Abandonam o convíviodas pessoas, procurando as cavernas e o de-serto para a purificação do espírito. Aliás, apalavra monge vem do latim monachós, for-mada pelo radical grego monos, que significa"só", "solitário". Portanto, inicialmente, mon-ge é aquele que busca a perfeição por meio doafastamento da vida mundana. Passado o pe-ríodo das manifestações individuais de recusado mundo dos pecados, os monges se reunemem monastérios, conventos onde cada mongeocupa cela separada, mas também desenvol-vem trabalhos comuns. Foi importante, porexemplo, o Mosteiro de Monte Cassino, fun-dado por São Bento no século VI.

Partindo do princípio de que o corpo é si-nal de pecado e degradação, desenvolvem práti-cas de purificação que estimulam o ascetismo.A palavra ascese em grego significa "exercício",enquanto atividade espiritual que visa ao con-trole dos desejos por meio da mortificação dacarne. Isso é feito com práticas de jejum, absti-nência e flagelações (por exemplo, chicoteandoo próprio corpo), caminho considerado necessá-rio para atingir a efetiva realização da virtude eda plenitude da vida moral.

As interpretações religiosas medievaisbuscam os fundamentos racionais no pensa-mento de Platão, adaptando-o à luz da revela-ção cristã. O neoplatonismo preponderante naAlta Idade Média inspira-se sobretudo na gran-de síntese teológica feita por Santo Agostinho.

2. A posição materialista

A dessacralização do corpo

No Renascimento e Idade Moderna co-meçam a ocorrer transformações a respeito daconcepção de corpo. Pois se na Idade Média ocorpo era considerado inferior, nem por issodeixava de ser criação divina, o que o envol-via num véu de sacralidade. Durante o perío-do medieval havia proibições expressas da

Igreja quanto à dissecação de cadáveres."Abrir o corpo de um morto para estudar suaconstituição íntima é um crime capital, nãosomente porque jamais se sabe se um mortoestá verdadeiramente morto, mas sobretudoporque tal empreitada tem um caráter sacríle-go. O olhar humano não deve se fixar em re-giões que Deus nos ocultou e não deve violaruma realidade sobrenatural, um dos aspectosdo destino eterno do homem."1

Daí o impacto das experiências deVesálio (1514-1564), médico belga que ousoudesafiar os preconceitos estabelecidos, apesarde sofrer severas condenações. Esse procedi-mento revolucionário alterou várias concep-ções inadequadas da anatomia tradicional ba-seada na obra de Galeno (séc. II). Sabemostambém que Leonardo da Vinci conseguia àsescondidas cadáveres para os estudos de ana-tomia e que serviam de base às suas pinturas.

A lição de anatomia, de Rembrandt. Na IdadeModerna, o corpo torna-se objeto de ciência. Noquadro, Rembrandt representa a "profanação"pelo olhar iniciada pelos anatomistas que desa-fiaram a proibição da Igreja de dissecar cadáveres.

Por outro lado, a "profanação" peloolhar levada a efeito por Vesálio e ilustrada,no século XVII, por Rembrandt no célebrequadro A lição de anatomia pode ser inseridana perspectiva da revolução científica promo-vida por Bacon, Descartes, Galileu.

O novo olhar do homem sobre o mundoé o olhar da consciência secularizada, ou seja,dessacralizada, da qual se retira o componen-

1 G. Gusdorf, A agonia da nossa civilização, p. 125.

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te religioso para só considerar a natureza físi-ca e biológica. O corpo passa a ser objeto daciência.

A filosofia cartesiana contribui para anova abordagem a respeito do corpo. Comovimos na Terceira Parte do Capítulo 10, par-tindo da dúvida metódica, Descartes começaduvidando da realidade do mundo e do pró-prio corpo, até chegar à primeira verdadeindubitável: o cogito, o pensamento. Ao recu-perar a realidade do mundo e do corpo, en-contra um corpo que é pura exterioridade,uma substância extensa, material. Consideraentão que o homem é constituído por duassubstâncias distintas: a substância pensante,de natureza espiritual — o pensamento; e asubstância extensa, de natureza material — ocorpo. Eis aí o dualismo psicofísico.

Tal posicionamento determina a novavisão do corpo, diferente da posição de Platão,pois agora ele é o corpo-objeto, associado àidéia mecanicista do homem-máquina. É Des-cartes que afirma: "Deus fabricou nosso cor-po como máquina e quis que ele funcionassecomo instrumento universal, operando sempreda mesma maneira, segundo suas própriasleis". Com isso Descartes torna o corpo autô-nomo, alheio ao homem.

Embora o próprio Descartes privilegiassea substância pensante, caracterizando assim atendência idealista do seu pensamento, a idéiado homem-máquina não demora a gerar a cor-rente empirista, que tem como principal repre-sentante o inglês Locke (séc. XVII). Este nãopode ser considerado propriamente materialista,mas será nesse sentido que se desenvolverãoposteriormente os efeitos do seu pensamento.

O materialismo naturaliza o corpo e suasfunções, o que significa, em última instância,que o corpo físico já não é um corpo vivente.Continua sendo um "cadáver", como em A li-ção de anatomia... Aliás, a palavra corpo, dolatim corpus, significa "cadáver".

Com o desenvolvimento das ciências, omodelo mecânico é substituído por outras for-mas mais elaboradas, mas persiste ainda aidéia de corpo como coisa submetida às leisda natureza. O próprio homem, reduzido à di-mensão corpórea e sujeito às forças determi-nistas da natureza, torna-se incapaz e irrespon-sável pelo próprio destino. A literatura natura-lista do século XIX exemplifica bem essa ten-dência, mostrando o homem como simples jo-guete do meio, da raça, do momento.

Os pressupostos materialistas da concep-ção de corpo representam, inicialmente, empe-cilhos para o desenvolvimento das ciências hu-manas no século XIX, devido ao problema emrestabelecer as ligações entre as duas realida-des constitutivas do homem dividido em partesque não se comunicam. Se isso significou paraComte a impossibilidade da psicologia comociência, a psicologia experimental nascente pri-vilegiará no homem apenas a exterioridade docomportamento, tal como acontece, por exem-plo, nas psicologias de tendência naturalista(como o behaviorismo), nas quais a consciên-cia é colocada "entre parênteses".

3. A relação corpo-espírito paraSpinoza

Embora só no século XX tenham surgi-do correntes filosóficas que visam superar adicotomia corpo-consciência, restabelecendoa unidade humana, há uma exceção no séculoXVII, representada por Spinoza.

Baruch Spinoza (1632-1677) era judeuholandês e sofreu inúmeros reveses em suavida. Cedo foi expulso da sinagoga, acusadode heresia. Deserdado pela família, ocupou-se como polidor de lentes, a fim de garantir asobrevivência e dedicar-se à reflexão. Escre-veu Tratado teológico-político e Ética, entrevárias obras malcompreendidas e quase nun-ca lidas, tanto no seu século como nos subse-qüentes. Sempre sofreu acusações, ora deateísmo, ora de panteísmo.

Considerado por muitos um filósofodeterminista, no sentido de que negaria a li-berdade humana, o que Spinoza faz, ao con-trário, é a crítica a toda forma de poder, querpolítico, quer religioso, na tentativa deelucidar os obstáculos à vida, ao pensamentoe à política livres. Ele quer descobrir o queleva o homem à servidão e à obediência. Suaanálise teórica a respeito da superstição temcaracterísticas que a aproximam do conceitomarxista de ideologia, elaborado dois séculosdepois. Por isso, ao analisar o comportamentomoral, Spinoza procura o que possibilita e oque impede o exercício da liberdade.

Ao mostrar as possibilidades de expres-são da liberdade, Spinoza desenvolve umateoria absolutamente nova no seu tempo e quedesafia uma tradição vinda dos gregos. Vimosque Platão dicotomiza corpo-consciência,

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dando ao espírito a superioridade e o poder dedominar as paixões, como condição da pró-pria humanização. Também em Descartes per-siste o dualismo psicofísico, a hierarquização eo princípio de causalidade. E, como vimos,essa posição, levada às últimas conseqüên-cias, abre caminho para a concepção materia-lista do corpo.

A novidade de Spinoza é a teoria doparalelismo, segundo a qual não há nenhumarelação de causalidade ou de hierarquia entrecorpo e espírito. Ou seja, nem o espírito é su-perior ao corpo, como queriam os idealistas,nem o corpo determina a consciência, comodizem os materialistas. A relação entre um eoutro não é de causalidade, mas de expressãoe simples correspondência. O que se passa emum deles se exprime no outro: a alma e o cor-po exprimem, no seu modo próprio, o mesmoevento.

Nesse sentido, também não convém di-zer que o corpo é passivo enquanto a alma éativa, ou vice versa. Tanto a alma como o cor-po podem ser, por sua vez, ativos ou passivos.Quando passivos, o somos de corpo e alma.Quando ativos, o somos de corpo e alma. So-mos ativos quando autônomos, senhores denossa ação, e passivos quando o que ocorreem nosso corpo ou alma tem uma causa exter-na mais poderosa que nossa força interna, daídecorrendo a heteronomia.

Ora, a virtude da alma, no sentido pri-mitivo de força, poder, consiste na atividadede pensar, conhecer. Portanto, a sua fraquezaé a ignorância. Quando a alma se volta para simesma e se reconhece capaz de produziridéias, passa a uma perfeição maior e é, por-tanto, afetada pela alegria. Mas, se em dadasituação, a alma não consegue entender, a des-coberta de sua impotência causa sentimentode diminuição do ser e, portanto, provoca tris-teza. Nesse caso, a alma está passiva.

Já nas relações entre os corpos, resultamafecções, na medida em que é da natureza docorpo afetar outros corpos e ser afetado poreles. A maneira pela qual um corpo afeta ou-tro determina duas situações diferentes. Se ocorpo que nos afeta se "compõe" com o nos-so, a sua potência (ou capacidade de agir) seadiciona à nossa, o que provoca aumento danossa potência; passando a uma perfeição

maior, o resultado é a alegria. Ao contrário, sehá um "mau encontro", quando o outro corponão se compõe com o nosso (por exemplo, nocaso da tirania), há uma subtração da nossapotência, que, diminuída, gera tristeza.

Spinoza chama de paixões a tristeza e aalegria, que, no sentido etimológico da palavra,significa "padecer", "sofrer". Ao padecer, nãosomos nós que agimos, mas a ação tem umacausa exterior, e nós permanecemos passivos.

A diferença entre paixão triste e paixãoalegre é que esta, ao aumentar o nosso ser e anossa potência de agir, nos aproxima do pontoem que nos tornaremos senhores dela e, portan-to, dignos de ação. A paixão triste nos afastacada vez mais da nossa potência de agir, sendogeradora de ódio, aversão, temor, desespero, in-dignação, inveja, crueldade, ressentimento.

Como fazer para evitar a paixão triste epropiciar a paixão alegre? Aí reside a originali-dade de Spinoza: "Nem o corpo pode determi-nar a alma a pensar, nem a alma determinar ocorpo ao movimento ou ao repouso ou a qual-quer outra coisa (se acaso existe outra coisa)"2.

O trovador, de Giorgio de Chirico. Toda repres-são nega a autonomia, capacidade fundamentaldo homem como ser moral. Uma das conse-qüências é a perda do próprio corpo, tornadocoisa assexuada e desvitalizada.

2 Spinoza, Ética, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 185.

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Não cabe ao espírito combater as pai-xões tristes, mas o que as destruirá só podeser uma paixão alegre, quando então, de jo-guetes dos nossos afetos, podemos passar aser senhores deles.

Portanto, diferentemente de outros filó-sofos que estabelecem hierarquias e preten-dem subjugar as paixões à razão ou vice-ver-sa, Spinoza afirma que um dos aspectos da li-berdade não está em nos livrarmos das pai-xões, mas em sermos capazes de perceber quesomos causas das paixões: liberdade é auto-determinação, é autonomia. Conseguimosisso sobrepondo, às paixões nascidas da tris-teza, as paixões alegres. Portanto, um afetojamais é vencido por uma idéia, mas um afetoforte é capaz de destruir um afeto fraco. So-mos autônomos quando o que acontece emnós é explicado pela nossa própria natureza, enão por causas externas.

Por isso, Spinoza é um filósofo da vidae considera prejudicial toda moral baseada nodever, na noção de falta e de mérito, de peca-do e de perdão.

4. A posição da fenomenologia

Já vimos nos Capítulos 10 e 16 que acorrente da fenomenologia pretende superar adicotomia corpo-consciência, desfazendo ahierarquização determinada pela visão platô-nico-cristã.

Pela noção de intencionalidade, a feno-menologia tenta superar não só a dicotomiacorpo-espírito, como as dicotomias consciên-cia-objeto e homem-mundo, descobrindo nes-ses pólos relações de reciprocidade. Afinal, oque é o corpo nessa perspectiva? Ele não seidentifica às "coisas", mas é enriquecido pelanoção de que o homem é um ser-no-mundo.Revendo as noções de facticidade e transcen-dência desenvolvidas no Capítulo 30, o corpoé facticidade no sentido de "estar lá com ascoisas". Mas nunca é facticidade pura, pois étambém "acesso às coisas e a ele mesmo";portanto, a dimensão de facticidade do corponão se desliga da possibilidade de transcendên-cia. É isso que veremos por meio de exemplos.

Se o corpo não é coisa, nem obstáculo,mas é parte integrante da totalidade do ser hu-

mano, meu corpo não é alguma coisa que eutenho; eu sou meu corpo. Ao estabelecer ocontato com outra pessoa, eu me revelo pelosgestos, atitudes, mímica, olhar; enfim, pelasmanifestações corporais. Ao observar o mo-vimento de alguém, não o vejo enquanto sim-ples movimento mecânico, como se o outrofosse máquina, mas como sujeito cujo movi-mento representa um gesto expressivo. Por-tanto, o gesto nunca é apenas corporal: ele ésignificativo e nos remete imediatamente àinterioridade do sujeito.

De fato, o corpo do outro que percebe-mos não é um corpo qualquer; é um corpohumano. Diz o filósofo Luijpen: "É o outro'em pessoa' que vejo tremendo de medo, queouço a suspirar de cuidados. Sinto sua cordia-lidade no aperto de mãos, na meiguice de suavoz, na benevolência de seu olhar. Da mesmaforma, quem me odeia, quem é indiferente ameu respeito, quem se aborrece comigo, quemtem medo de mim, quem me despreza ou des-confia de mim, quem me quer consolar, sedu-zir ou censurar, convencer-me ou divertir-me — está presente em pessoa a mim. Seuolhar, seu gesto, sua palavra, sua atitude etc.são sempre seu olhar, gesto, palavra e atitude:ele, em pessoa, está imediatamente e direta-mente presente a mim"3.

Então, o corpo é o primeiro momento daexperiência humana. E antes de ser um "serque conhece", o sujeito é um "ser que vive esente", que é a maneira de participar, com ocorpo, do conjunto da realidade.

5. Exemplos de integraçãocorpo-consciência

Com o corpo nos engajamos diante doreal de inúmeras maneiras possíveis: por meiodo trabalho, da arte, do amor, do sexo, da açãoem geral.

O trabalho humano

O trabalho humano é o processo peloqual o homem submete a natureza a modifi-cações e, ao mesmo tempo, transforma a simesmo. Mas isso só é possível pela força docorpo humano, que opera na natureza. As pró-

' W. A. M. Luijpen, Introdução à fenomenologia existencial, p. 275.

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prias ferramentas e máquinas em geral nadamais são que ampliações do poder do corpo.

Por exemplo, o martelo é a ampliaçãodo poder do punho fechado; o computador é aprojeção do cérebro. No entanto, o corpo nãoé um instrumento como o são o martelo e ocomputador, pois o movimento do corpo estáentrelaçado no projeto do trabalho, referênciaconstante do seu agir sobre o mundo. Mesmoporque o instrumento usado supõe o sentidoque o homem lhe confere: uma arma tem parao caçador um significado bem diferente doque lhe dá o revolucionário.

A educação física

Outro exemplo de integração corpo-consciência é o da educação física. Quando oadolescente sofre as alterações decorrentes doamadurecimento glandular, por um períodoele se sente estranho ao próprio corpo. Ficadesajeitado, incomodado com os próprios bra-ços, dando encontrões com objetos em seucaminho e precisa aprender uma nova dinâ-mica corporal caracterizada por gestos, atitu-des e reflexos diferentes.

Nesse momento crucial, a educação fí-sica se torna elemento importante de in-tegração do corpo na unidade do sujeito, e porisso não pode ser compreendida como simplestreinamento muscular, nem como momentode descontração ou simples garantia de higie-ne e condição de equilíbrio fisiológico. Para oeducador suíço Pierre Furter, cabe à educaçãofísica o delicado esforço pelo qual os adoles-centes reconhecem seu corpo, respeitandoseus limites. A educação física, assim com-preendida, provoca o equilíbrio interiorda personalidade.

Também o treinamento esportivo, en-quanto atividade humana significativa, é o ape-lo ao aperfeiçoamento incessante, posto emquestão pelos esforços de outros esportistas. Adescoberta de si próprio e do outro supõe o de-senvolvimento das próprias habilidades, o as-sumir as regras coletivas, o agir individualcomo momento não desligado da ação comum.

Portanto, o jogo não é apenas uma ativi-dade que diz respeito à manutenção da formafísica ou ao mero desenvolvimento da habili-dade em levar a bola: o esporte é a expressãomesma da alegria, do desafio e do compromis-so com o outro. É o ser pleno (e não só o corpo)que nos envolve na luta e que se realiza na ação.

A sexualidade

Também a sexualidade não deve ser vis-ta como atividade puramente biológica, sepa-rada do homem integral.

Na verdade, sempre houve tendência emconsiderar o sexo separado da totalidade daexistência, o que é ilustrado pelas posiçõesopostas do puritanismo e do libertinismo (verCapítulo 34 — O erotismo). O puritanismo es-força-se por criar a imagem do ser que nega arealidade dos próprios impulsos eróticos por-que os considera aviltantes, e o libertinismonão só aceita esses impulsos como os torna aúnica mola de suas ações. Em ambos os ca-sos — um porque pretende anular o sexo, ou-tro porque o separa da totalidade da experiên-cia humana mais global — estamos diante dedeformações da sexualidade.

Na verdade, a sexualidade é parte inte-grante do ser total e não apenas a expressãodo corpo biológico ou o resultado exclusivodo funcionamento glandular. Ela é a expres-são do ser que deseja, que escolhe, que ama, quese comunica com o mundo e com o outro. Éuma "linguagem" que será tanto mais huma-na quanto mais pessoal for.

A dor e a doença

Poderíamos argumentar que, ao contrá-rio dos exemplos anteriores, a dor e a doençasão puramente manifestações da corporei-dade. Afinal, há uma objetividade na cadeiraonde demos uma "canelada", e todo órgãoafetado por alguma doença "padece" a açãode vírus ou bactérias. Há doenças hereditárias,defeitos congênitos. Tudo isso parece muitodistante da ação da consciência.

No entanto, como dissemos, a facticidadenunca vem separada da transcendência, que re-side no sentido que o homem dá à sua doença ouno uso que faz dela. A doença pode ser ocasiãode despertar a atenção do outro, a sua compla-cência, o abrandamento da sua severidade. Tam-bém às vezes representa a forma sádica pela qualsacrificamos o companheiro. Ou ainda, a condi-ção de nos furtarmos a certas obrigações. Poroutro lado, as restrições do corpo, mesmo quesejam fonte de dependência, podem tornar-secondição de domínio de si: a gagueira deDemóstenes o incita a ser um grande orador.

Em A doença como metáfora, a filóso-fa americana Susan Sontag analisa a doença

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clássica do século passado, a tuberculose, e ado nosso século, o câncer. Ela aborda não adoença em si, mas a doença como metáfora:"Qualquer doença encarada como um misté-rio e temida de modo muito agudo será tidacomo moralmente, se não literalmente, con-tagiosa. Assim, pessoas acometidas de cân-cer, em número surpreendentemente eleva-do, vêem-se afastadas por parentes e amigose são objetos de procedimentos de desconta-minação por parte das pessoas da casa, comose o câncer, a exemplo da tuberculose, fosseuma doença transmissível. O contato comuma pessoa acometida por doença tida comomisteriosa malignidade afigura-se inevita-velmente como uma transgressão ou, pior,como a violação de um tabu. Os próprios no-mes dessas doenças são tidos como possui-dores de um poder mágico. Em Armance(1827), de Stendhal, a mãe do herói se recu-sa a dizer 'tuberculose', pelo medo de quepronunciar a palavra acarrete o agravamentoda doença do filho".

Para constatar a discriminação dessasdoenças, basta observar que a um cardíaco nãose esconde a verdade, nada havendo de vergo-nhoso num ataque do coração. No entanto,"mente-se aos pacientes cancerosos não só por-que a doença é (ou é tida como) uma sentençade morte, mas porque é considerada obscena,no sentido original da palavra: de mau pressá-gio, abominável, repugnante aos sentidos"4.

Poderíamos acrescentar a esses co-mentários as considerações a respeito da novadoença do século, a Aids. A própria SusanSontag lançou posteriormente outro livro,Aids e suas metáforas, onde analisa a tendên-cia de estigmatizar as vítimas dessa doença,também anunciada como uma "praga". Porestar inicialmente relacionada com os "gruposde risco", sejam drogados ou homossexuais, eportanto a uma forma de vida e de sexualida-de desviantes, foram criadas metáforas daAids que a associam à culpabilidade e à con-denação daquilo que é considerado excessivoe reprovável.

Assim como houve um processo de sau-dável desdramatização de doenças comoa lepra (que até passou a ser nomeada

hanseníase), Susan Sontag espera que o mes-mo aconteça com a Aids: "O antiquíssimoprojeto, aparentemente inexorável, por meiodo qual as doenças adquirem significados(uma vez que passam a representar os temo-res mais profundos) e estigmatizam suas víti-mas é sempre algo que vale a pena contestar.(...) No caso desta doença, que produz tantossentimentos de culpa e vergonha, a tentativade dissociá-la desses significados, dessas me-táforas, é particularmente liberadora, até mes-mo consoladora. Mas para afastar as metá-foras, não basta abster-se delas. É neces-sário desmascará-las, criticá-las, atacá-las,desgastá-las".5

Integração das atividades gerais

Outro exemplo de integração é o das ati-vidades gerais do conhecimento, emoção evontade humanos. Há uma tendência em frag-mentar o homem em compartimentos estan-ques: a razão funciona quando se estuda; aemoção, quando se visita uma pessoa amiga;a força de vontade, quando se prepara para umexame. A compartimentalização de valores emetas conduz rapidamente à desintegração dapersonalidade. Na verdade, embora possamosdidaticamente distinguir as diversas ativida-des, o homem é uma unidade que pensa-sen-te-quer-age. Você já reparou na ansiedade quesentimos ao tentar resolver um problema decaráter aparentemente apenas intelectual? Ena satisfação que temos ao resolvê-lo? Ou nafrustração, quando a dificuldade nos desafia?Por outro lado, você notou que o amor, o ódio,a afeição que temos pelas pessoas se fortale-cem ou se justificam pelo conhecimento quetemos delas?

6. Conclusões

Com esses exemplos quisemos dizerque o corpo não é um instrumento pelo qual onosso ser íntimo tenta se exprimir: meu corposou eu mesmo me expressando.

O corpo humano jamais poderá ser umacoisa entre as coisas e, nesse sentido, a rela-ção do homem com o seu corpo nunca será

4 Esta citação e a anterior são de Susan Sontag, A doença como metáfora, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 10 e 13, Col.Tendências.

5 S. Sontag, Aids e suas metáforas, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 110.

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objetiva, mas carregada de valores. O corponunca é dado ao homem como mera anatomia:o corpo é a expressão dos valores sexuais,amorosos, estéticos, éticos, ligados bem deperto às características da civilização a quepertencemos.

No entanto, estamos nos referindo àsconcepções teóricas que, mesmo tendo sidosuscitadas pelas condições reais vividas peloshomens do nosso tempo, nem sempre corres-pondem à maneira pela qual as pessoas estãode fato compreendendo essa realidade. Ou seja,se os filósofos fazem juízos de valor a respeitode como entendem a relação corpo-consciên-cia, nem por isso deixam de continuar existin-do tendências idealistas e materialistas daque-les que ora vêem o corpo como estorvo, oracomo determinante das ações humanas.

Mais ainda, após as mudanças ocorridasna Idade Moderna e que culminaram com aimplantação do capitalismo e do sistema fabril,o corpo precisou ser cada vez mais transforma-do em coisa, a fim de se tornar suportável a ex-ploração do trabalho mecânico e repetitivo.

No século XX, com os movimentos deemancipação da mulher e a revolução sexual,nem sempre tem sido possível encarar o cor-po de forma mais serena, tornando-se ele aarena de sentimentos ambíguos, enquanto ob-jeto de amor-ódio: repelido como algo infe-rior e escravizado, mas desejado e exaltado.Se analisarmos os fenômenos de corpolatria,veremos que o endeusamento do corpo é umfenômeno que não descarta a possibilidade da"morte do corpo" para o espírito, recolocandoa velha dicotomia, só que agora invertida.

Exercícios

1. Qual é a posição platônica com relação aocorpo?

2. Como o corpo é compreendido na IdadeMédia?

3. Em que medida a dessacralização do corponão significou, na Idade Moderna, a superação dadicotomia?

4. Leia a citação de Spinoza e explique o sig-nificado dela: "Filósofos há que concebem os afe-tos, em nós conflitantes, como vícios em que caemos homens por sua própria culpa. Por isso costu-mam ridicularizá-los, deplorá-los, censurá-los e(quanto querem parecer mais santos) detestá-los.(...) Tive todo o cuidado em não ridicularizar aspaixões humanas, nem lamentá-las ou detestá-las,mas compreendê-las".

5. O que significa dizer que o homem é umaunidade que pensa-sente-quer-age?

6. Faça um levantamento de propagandas queacentuam o ser do corpo como facticidade pura eanalise-as.

7. Em que sentido um concurso de beleza (fe-minino ou masculino) enfatiza a dicotomia corpo-consciência?

8. Faça uma comparação entre Spinoza eNietzsche (ver Capítulo 28 — Concepções éticas).

9. Leia o texto complementar "O corpo", deMerleau-Ponty, no Capítulo 16 (As ciências huma-nas), e explique qual é a crítica feita às teorias quefazem prevalecer o dualismo psicofísico.

10. Leia com atenção as citações a seguir, re-ferentes à relação corpo-espírito. Identifique e jus-tifique a que corrente elas pertencem: idealismo,materialismo ou fenomenologia.

a) A sexualidade humana é essencialmente aexpressão do corpo biológico, é o resultado do fun-cionamento glandular.

b) O corpo não é coisa, nem obstáculo, mas éparte integrante da totalidade do ser humano. Meucorpo não é alguma coisa que eu tenho; eu sou meucorpo.

c) Os negros têm um temperamento alegre eextrovertido, por isso têm facilidade para as ativi-dades musicais.

d) As paixões perturbam a mente, daí a neces-sidade de ascese a fim de controlar os desejos pormeio da "mortificação" do corpo.

e) Em uma sociedade civilizada e sem precon-ceitos, será possível encarar o corpo como expres-são da pura natureza, pura anatomia: sem nenhumavergonha, sem nenhum pudor.

f) O gesto nunca é apenas corporal: ele é signi-ficativo e me remete imediatamente à interioridadedo sujeito.

g) A consciência pensa perfeitamente quandonenhuma destas sensações a perturba: nem a vista,nem o ouvido, nem o prazer, nem a dor.

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Para amar é preciso ser, mas para ser é preciso, antes de tudo, amar: pois quem não ama é um simplesfantasma.

(V.Jankélévitch)

1. O mito de Eros

As lendas gregas foram transmitidasoralmente, e por isso sofreram inúmeras mo-dificações, resultando numa variação muitogrande de interpretações e sentidos. Às vezes,uma figura mítica aparece em várias versões,sempre ricas de significados.

Na Teogonia de Hesíodo, as entidadesque saem do seio de Caos — vazio da desorga-nização inicial — surgem por segregação, porseparação. Até que nasce Eros, o Amor, forçade natureza espiritual que preside a partir daí acoesão, a ordem do universo nascente.

No ciclo dos mitos olimpianos, Eros(Cupido, para os romanos), filho de Afrodite eAres, é representado por uma criança travessaocupada em flechar os corações para torná-losapaixonados. Mas ele próprio se apaixona porPsique (Alma). Afrodite, invejosa da beleza dePsique, afasta-a do filho e a submete às maisdifíceis provas e sofrimentos, dando-lhe comocompanheiras a Inquietude e a Tristeza; até queZeus, atendendo aos apelos de Eros, liberta-apara que o casal se una novamente.

Também entre os filósofos gregos per-siste essa imagem mítica. Os pré-socráticosParmênides e Empédocles se referem ao prin-cípio do amor e do ódio que preside à combi-nação dos elementos entre si para formaremos diversos corpos físicos.

No diálogo de Platão O banquete, diver-sos oradores discursam sobre o que consideramser o Amor. Aristófanes, o melhor come-diógrafo da época, relata o mito segundo oqual, no início, os seres eram duplos e esféri-cos, e os sexos eram três: um constituído porduas metades masculinas; outro por duas me-tades femininas; e o terceiro, andrógino, meta-de masculino, metade feminino. Como ousas-

sem desafiar os deuses, Zeus cortou-os em doispara enfraquecê-los. Cada ser tornou-se entãoum ser tendido, e o amor recíproco se originada tentativa de restauração da unidade primiti-va. Como os seres iniciais não-eram apenasbissexuais, é valorizada a amizade entre seresdo mesmo sexo, sobretudo o masculino, comoforma possível desse encontro. O mito signifi-ca também o anseio do homem por uma totali-dade do ser, representando o processo de aper-feiçoamento do próprio eu.

Sócrates, o último dos oradores do refe-rido diálogo, começa dizendo que Eros re-presenta "um anelo de qualquer coisa que nãose tem e se deseja ter". Também usa um mitopara ilustrar sua afirmação: Eros é descenden-te de Poros (Riqueza) e de Penia (Pobreza).Seu significado reside na ânsia de sair dasituação de penúria para a de riqueza; é a os-cilação entre o possuir e o não-possuir. "É ca-paz de desabrochar e de viver, morrer e res-suscitar no mesmo dia. Come e bebe, dá e sederrama, sem nunca estar rico ou pobre."

A partir dessa discussão, Platão, pelaboca de Sócrates, estabelece a relação entreEros e a filosofia. Assim como os deuses nãofilosofam nem aprendem por já possuírem asabedoria, os tolos e os ignorantes não aspiramadquirir conhecimento, pois, embora nada sai-bam, julgam saber. Só o filósofo deseja conhe-cer, pois sabe que não sabe e sente necessidadede conhecer. O filósofo ocupa o lugar interme-diário entre a sabedoria e a ignorância.

Portanto, Platão não reduz a busca ape-nas à procura da outra metade do nosso serque nos completa; Eros é ânsia de ajudar o eupróprio autêntico a realizar-se. E a realizaçãose faz enquanto a vontade humana tende para

CAPÍTULO 33O AMOR

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o Bem e para o Belo: subordina a beleza físicaà beleza espiritual e desliga-se da paixão pordeterminado indivíduo ou atividade, ocupan-do-se com a pura contemplação da beleza.

É importante observar que a posiçãoplatônica deve ser compreendida dentro davisão esboçada no Capítulo 32, segundo aqual Platão subordina Eros a Logos, ou seja,subjuga as paixões à razão.

2. O encontro: a intersubjetividade

O que os mitos nos revelam como ver-dade fundamental é que Eros é predominante-mente desejo, desencadeando, portanto, a pro-cura do outro que nos completa. Eros leva ohomem a sair de si para que, na intersubjetivi-dade, ou seja, na relação com os outros, reali-ze o encontro.

Assim, poderíamos caracterizar o homemcomo sendo fundamentalmente um "serdesejante", tal é a força da energia que o impul-siona a agir, a procurar o prazer e a alegria querepresenta alcançar o objeto de seus desejos.

Talvez isso nos fizesse questionar oprincípio cartesiano de que o homem é um"ser pensante", mas na verdade não queremosinverter o tema clássico da superioridade darazão sobre a paixão. A paixão não é superiorà razão, pois os dois princípios estão indisso-luvelmente ligados e ambos são importantespara a realização humana: enquanto o desejomobiliza o homem, a razão é o princípioorganizador que distingue os desejos e buscaos meios para sua realização.

Na relação intersubjetiva, o desejo nãonos impulsiona apenas para alcançar o outroenquanto objeto. Mais que isso, o desejo exigea relação em que se busca sobretudo o reco-nhecimento do outro. O amante não deseja seapropriar de uma coisa: deseja capturar a cons-ciência do outro. A relação amorosa se fundana reciprocidade, ou seja, desejamos o outroenquanto ser consciente e também desejante.

Em sentido muito amplo, Hegel com-preende a consciência de si como desejo dereconhecimento. Isso significa que no amor,quando um corpo se estende em direção a ou-tro corpo, exige que esse corpo, que ele dese-ja, também se estenda; porque amar é desejaro desejo do outro.

Além disso, o amor é o convite para sairde si mesmo. Se a pessoa estiver muito

centrada nela mesma, não será capaz de ouviro apelo do outro. É isso que acontece com acriança, que procura com naturalidade quemmelhor preencha suas necessidades. Mas quan-do esse procedimento continua na vida adulta,torna-se impedimento do encontro verdadeiro.Basta lembrar a lenda de Narciso, que, ao con-templar seu rosto refletido na água, apaixona-se por si próprio, o que causa sua morte, poisesquece de se alimentar, tão envolvido se achacom a própria imagem inatingível. O narcisista"morre" na medida em que torna impossível aligação fecunda com o outro.

O egocentrismo persiste na adolescên-cia, enquanto momento de passagem da vidainfantil para a vida adulta. Por isso o adoles-cente muitas vezes não ama propriamente ooutro, ser de carne e osso, mas ama o amor.Trata-se do amor idealizado, romântico, emparte fruto do medo de lançar-se nas contradi-ções do exercício efetivo do amor.

O exercício do amor é conquista da ma-turidade.

Os paradoxos do amor

Quando dizemos que os amantes buscamo encontro, isso não significa que a metaalcançada represente algo estático. Muito aocontrário, começa aí o caminho que será o tem-po todo objeto de construção e reconstrução.

Isso porque, se as pessoas são adultas esupostamente maduras, têm sua própria per-sonalidade, que se caracteriza pela autonomiae individualidade. Ora, o encontro supõe oestabelecimento de vínculos, o que pode pare-cer paradoxal: como é possível um vínculo emque as pessoas não sejam aprisionadas e nãose dissolvam na união?

Vínculo e liberdade

O amor, sendo o desejo de união com ooutro, estabelece um tipo de vínculo parado-xal porque o amante cativa para ser amado li-vremente. O fascínio é gerador de poder: opoder de atração de um sobre o outro. No en-tanto, tal "cativeiro" não pode ser entendidocomo ausência de liberdade, pois a união écondição de expressão cada vez maisenriquecida da nossa sensibilidade e persona-lidade. E fácil observar isso na relação entreduas pessoas apaixonadas: a presença do ou-

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tro é solicitada na sua espontaneidade, poissão os dois que escolhem livremente estarjuntos. O amor imaturo, ao contrário, éexclusivista, possessivo, egoísta, dominador.

Não é fácil, porém, determinar quandoo poder exercido pelo amor ultrapassa os li-mites. Vimos que a força do amor está na atra-ção que um exerce sobre o outro. Em que mo-mento isso se transforma em desejo de con-trolar, de manipular?

O ciúme exacerbado é o desejo de do-mínio integral do outro. Marcel, personagemde Proust na obra Em busca do tempo perdi-do, inquieta-se, varado de ciúme até dos pen-samentos de sua amada Albertine. Só descan-sa quando a contempla adormecida...

Não queremos dizer que o ciúme nãoexiste também nas relações maduras. Etimo-logicamente, ciúme significa "zelo": o amorimplica cuidado e temor de perder o amado.Portanto, se não desejamos o rompimento datrama tecida na relação recíproca e se o outrodá densidade à nossa emoção e nos enriquecea existência, sofremos até mesmo com a idéiada perda. Mas isso não justifica que o "zelo"obstrua a liberdade do outro.

Vínculo e alteridade

Há outro paradoxo no amor: ele deve seruma união, com a condição de cada um pre-servar a própria integridade. Faz com que doisseres estejam unidos e, contudo, permaneçamseparados. Alter em latim significa "outro".Manter a alteridade é permanecer outro, é evi-tar a fusão.

A manutenção da alteridade traz a exi-gência do respeito, não no sentido moralistaque rotineiramente se dá a esse conceito, nãocomo temor resultante da autoridade imposta.Respicere, em latim, significa "olhar para", ouseja, o respeito é a capacidade de ver a pessoacomo tal, reconhecendo sua individualidadesingular. Isso supõe a preocupação com ocrescimento da pessoa como ela é, e não comoqueremos que ela seja. O amor maduro é livree generoso, fundando-se na reciprocidade, nãona exploração: o outro não é alguém de quemnos servimos.

Na mitologia grega consta que um as-saltante chamado Procusto aprisionava osviajantes e os adaptava a uma cama de ferro:se eram pequenos, os alongava; se eram gran-des, os mutilava terrivelmente para que dimi-

nuíssem de tamanho. Quantos tiranos Pro-custos encontramos nos mais "ternos" namo-rados, ansiosos por adaptar o parceiro à suaprópria medida!

O paradoxo da relação amorosa, coloca-da ao mesmo tempo como desejo de união epreservação da alterídade, dimensiona a am-bigüidade em que o homem é lançado. Os sen-timentos gerados também são ambíguos: sãosentimentos de amor e ódio para com aqueleque escolhemos conscientemente, mas de cujaescolha resultou o abandono da realização deoutras possibilidades...

O não saber viver a ambigüidade dessaexperiência leva certas pessoas a procurar afusão com o outro, da qual decorre a perda daindividualidade, ou a recusar o envolvimentopor temer essa perda de si mesmo.

3. Amor e perda

O risco do amor é a separação. Mergu-lhar na relação amorosa supõe a possibilidadeda perda. Segundo o psicanalista austríacoIgor Caruso, a separação é a vivência da mor-te numa situação vital: é a vivência da mortedo outro em minha consciência e a vivênciade minha morte na consciência do outro. E,quando falamos em morte, nos referimos nãosó ao sentido literal da palavra mas às diver-sas "mortes" ou perdas que permeiam nossasvidas. Por exemplo, podemos deixar de amaro outro ou não mais ser amado por ele; ou,ainda, mesmo mantendo o amor recíproco, háo caso de sermos obrigados à separação; tam-bém nas relações duradouras, as pessoas mu-dam, e a modificação do tipo de relação signi-fica conseqüentemente a perda da forma anti-ga de expressão do amor.

Quando a perda é grave, a pessoa preci-sa de um tempo para se reestruturar, pois,mesmo quando mantém a individualidade, otecido do seu ser passa inevitavelmente peloser do outro. Há um período de "luto" a sersuperado após a separação, quando, então, ébuscado novo equilíbrio. Uma característicados indivíduos maduros é saber integrar a pos-sibilidade da morte no cotidiano da sua vida.

No entanto, nas sociedades massificadas,onde o eu não é suficientemente forte, as pes-soas preferem não viver a experiência amorosapara não ter de viver com a morte. Talvez porisso as relações tendam a se tornar superficiais,

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e é nesse sentido que o pensador francês EdgarMorin afirma: "Nas sociedades burocratizadase aburguesadas, é adulto quem se conforma emviver menos para não ter que morrer tanto. Po-rém, o segredo da juventude é este: vida querdizer arriscar-se à morte; e fúria de viver querdizer viver a dificuldade".

4. O amor no mundocontemporâneo

Na sociedade contemporânea, fala-se eescreve-se muito sobre sexo e quase nada so-bre o amor.

Talvez seja pelo fato de que o amor, sen-do um enigma, não se deixa decifrar, repelin-do toda tentativa de classificação ou defini-ção. Por isso, a poesia, campo mítico por ex-celência, encontra na metáfora a compreensãomelhor do amor. Efetivamente, a literaturanunca deixou de falar do amor.

Talvez o vazio conceituai se deva à difi-culdade de expressão do amor no mundo con-temporâneo. O desenvolvimento dos centrosurbanos criou o fenômeno da "multidão soli-tária": as pessoas estão lado a lado, mas suasrelações são de contiguidade, seus contatosdificilmente se aprofundam, sendo raro o en-contro verdadeiro.

Talvez o falar muito sobre sexo sejauma tentativa de camuflar a impessoalidadefundamental dessas relações, na medida emque o contato físico simula o encontro.

No entanto, não só as relações entreduas pessoas (na clássica relação amorosa) seacham empobrecidas. O afrouxamento dos la-ços familiares — não importa aqui analisar ascausas nem procurar a validade da situação —lançou as pessoas num mundo onde elas con-

tam apenas consigo mesmas. Ainda que sejamválidas as críticas ao autoritarismo da família,esta ainda é o lugar da possibilidade do afeto.Ou, pelo menos, o sair dela não é garantia deter o vazio de amor preenchido.

Além disso, o trabalho na sociedade ca-pitalista, estimulado pela competição e peloindividualismo, exige um ritmo exaustivo,mesmo para os que têm melhores chances, emergulha a maior parte das pessoas no traba-lho alienado, rotineiro, repetitivo, de onde éimpossível extrair algum prazer ou estabele-cer vínculos.

Do ponto de vista da política, a situaçãotambém não é das mais reconfortantes. Seconsiderarmos que todo regime autoritáriosubsiste em função da força e da opressão, oambiente que daí decorre é de medo e ódio.Mas Eros pertence à democracia, que se ba-seia no pressuposto da igualdade e da nega-ção da exploração. Tanatos (morte) é o domí-nio do autoritarismo.

Os amantes, de René Magritte. As ligações entreas pessoas se tornam empobrecidas quando asconvenções e a superficialidade dos contatos es-tabelecem relações impessoais e impedem o au-têntico encontro amoroso.

Exercícios

1. Qual é o significado de Eros para Hesíodo,para os pré-socráticos e para Platão?

2. O que significa dizer que o vínculo amoro-so é paradoxal?

3. Em que sentido tornar duradoura a relaçãoamorosa é um exercício que exige maturidade?

4. Por que os comportamentos narcisistas sãoantiamorosos?

5. Analise a citação de Edgar Morin, transcri-ta no item 3 deste capítulo.

6. Utilize o mito de Procusto para explicar umdos aspectos defendidos pelo movimento feminis-ta quando tenta rever as relações homem-mulher.

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Texto complementar

Fragmentos de um discurso amoroso1

Que é que eu penso do amor? — Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é,mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor)é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). A reflexão me é certamente permitida,mas como essa reflexão é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna nunca reflexividade:excluído da lógica (que supõe linguagens exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Domesmo modo, mesmo que eu discorresse sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o concei-to "pelo rabo": por flashes, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos pelo grande escoamento do Ima-ginário; estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado: "O lugar mais sombrio, diz um provérbiochinês, é sempre embaixo da lâmpada".

2Adorável é o vestígio fútil de um cansaço, que é o cansaço da linguagem. De palavra em palavra me

esforço para dizer de outro modo o mesmo da minha Imagem, impropriamente o próprio de meu desejo:viagem ao término da qual minha última filosofia só pode ser reconhecer — e praticar — a tautologia. Éadorável o que é adorável. Ou ainda: adoro você porque você é adorável, te amo porque te amo. Assim, oque fecha a linguagem amorosa é aquilo mesmo que a instituiu: a fascinação. Pois descrever a fascinaçãonão pode nunca, no fim das contas, ultrapassar este enunciado: "estou fascinado". Ao atingir a extremida-de da linguagem, lá onde ela não pode senão repetir sua última palavra, como um disco arranhado, meembriago de sua afirmação: a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos osvalores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?

3"Estou apaixonado? — Sim, pois espero." O outro não espera nunca. Às vezes quero representar

aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: oque quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fataldo enamorado não é outra senão: sou aquele que espera.

4Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é

viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar!

5Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo, porque temo

que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade: sofro por ser excluído,por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.

(R. Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, p. 50, 15, 96, 17 e 47.)

As questões 11 e 12 se referem ao texto com-plementar.

11. Quais as dificuldades de pensar o que é oamor?

12. Por que a linguagem amorosa é tautológi-ca? O que o autor quer dizer com isso? (Observa-ção: um dos sentidos de tautologia é: "proposiçãoque tem por sujeito e predicado um mesmo concei-to, expresso ou não pelo mesmo termo" — AurélioBuarque de Holanda).

7. Comente: "O amor imaturo diz: amo-teporque necessito de ti; o amor maduro diz: neces-sito de ti porque te amo". (Erich Fromm)

8. Faça uma dissertação sobre a solidão nosaglomerados urbanos.

9. Faça um levantamento dos mais diversostipos possíveis de amor.

10. Relacione amor e poder, analisando oschamados "crimes de paixão".

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"Viajo no teu corpo"Viajo no teu corpo. Só teu corpo?Mas quão breve seria essa viagemSe no limite dela a alma nuaNão me desse do corpo a certa imagem.

(José Saramago)

Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amoapenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo.

1. A cultura e a lei

(Roland Barthes)

A distinção entre o homem e o animalse dá pelo trabalho e pela linguagem, por meiodos quais o homem se realiza como ser cultu-ral, superando o mundo da pura natureza. Paraque a civilização pudesse existir, foi necessá-rio o controle da instintividade humana, e apassagem para o mundo humano se deu coma instauração da lei e, conseqüentemente,com o advento da interdição.

As proibições estabelecem regras quecontrolam o sexo e a agressividade, de modoa tornar possível a vida em comum. O proces-so observado na história da humanidade serepete na lenta adequação de cada criança àsnormas sociais, o que faz com que o homemsonhe nostalgicamente com o "paraíso perdi-do", onde tudo seria permitido.

Que forças são essas que o homem pre-cisa controlar, desviar, canalizar para outrossetores aceitos socialmente?

Freud chama de libido a força primária,a energia de natureza sexual orientada peloprincípio do prazer, que se encontra na ins-tância da personalidade chamada id. Atravésdesse princípio o curso dos processos mentaisé regulado para buscar o prazer e evitar a dor.O contato com as normas sociais determina,no entanto, a formação do superego, que

interioriza as forças inibidoras do mundo ex-terior. O conflito entre as duas forças antagô-nicas — a busca do prazer e a exigência dosdeveres — é resolvido pelo ego que, a partirdo princípio de realidade, levando em contaas condições impostas pelo mundo exterior,saberia lidar com o desejo, decidindo da con-veniência de realizá-lo, de proibir sua satisfa-ção ou apenas adiá-la (ver o item sobre psica-nálise no Capítulo 16).

A cultura se torna possível, portanto,pelo controle do desejo, e uma dessas formasé a sublimação, pela qual a força primária dalibido é desviada para um alvo não-sexualcaracterizado por atividades valorizadas so-cialmente. Assim, Freud considera como for-mas sublimadas da utilização da libido as di-versas atividades como o trabalho, o jogo, ainvestigação intelectual, a produção artísti-ca, entre outras.

Para a teoria freudiana, de uma forma oude outra, há libido investida em todos os atospsíquicos, e é isso que nos permite encontrarprazer também nas atividades que não são pri-mariamente de natureza sexual. A energia se-xual está difusa nos diversos atos que realiza-mos com prazer, mesmo quando não se mani-festa como tal, como pura sexualidade.

324

O EROTISMO

CAPÍTULO 34

Portanto, a civilização só se tornou pos-sível pelo controle dos impulsos primários.Mas nem sempre o controle da sexualidade ésaudável e consciente. Muitas vezes ele se fazpela repressão, e nesse caso as normas intro-jetadas no inconsciente impedem a decisãoautônoma das pessoas.

O processo de repressão acontece quan-do o ego, sob o comando do superego, nãoconsegue tomar conhecimento das exigênciasdo id, por serem demasiadamente conflitivase inconciliáveis com a moral, e por isso essasexigências são rejeitadas, permanecendo noinconsciente. Entretanto, a energia não-cana-lizada não permanece contida, reaparecendosob a forma de sintomas, muitas vezes neuró-ticos. É assim que Eros se torna doente, e aele se sobrepõe Tanatos (morte). O sexo pas-sa a ser visto na relação ambígua de atração erepulsa, desejo e culpa.

Por tudo isso, a sexualidade humana nãopode ser considerada como simples expressãobiológica: embora a atividade sexual seja co-mum aos animais e aos homens, apenas estes atransformam em atividade erótica. Só no ho-mem ela é busca psicológica, independente dofim natural dado pela reprodução, e se traduzem infinita riqueza de formas que o espíritoempresta à sexualidade. A ação erótica é oca-sião da expressão da alegria e da invenção.

Mesmo quando busca seus fins primá-rios, a sexualidade é uma força agregadora daspessoas. O homem, percebendo-se um serdescontínuo, ou seja, separado de todo o res-to, procura substituir o isolamento pelo senti-mento de continuidade profunda. A sexuali-dade surge como uma linguagem possível, pormeio da qual nos comunicamos com o outro,rompendo a descontinuidade dos corpos: acarícia é a "palavra" do corpo.

Por isso a sexualidade é também a ex-pressão máxima da intimidade e do desejo.Para o filósofo francês Georges Bataille, odomínio do erotismo está justamente no dese-jo que triunfa da proibição. O comportamentoerótico se opõe ao comportamento habitual.Tudo o que é construído para o estabelecimen-to das relações formais começa a se dissolverna excitação sexual: "a nudez destrói a boa fi-gura que as nossas roupas emprestam"; as pa-lavras obscenas, a imaginação exacerbada, astransgressões das proibições, a violação do

corpo, o excesso desmedido, tudo leva a uma"perda" constante de si mesmo que culminano orgasmo (que pode ser comparado a uma"pequena morte"). O êxtase e a vertigem são,de certa forma, um "sair de si".

Então, por um lado o erotismo percorreo caminho inverso do nascimento da cultura(que se fez pela instauração da lei), situando-se no limiar da transgressão, ou seja, compra-zendo-se da violação das proibições sob asquais repousa a civilização. Por outro lado, eparadoxalmente, o erotismo é o lugar da má-xima manifestação da individualidade, lugarpor excelência da invenção.

A dança, de Jean-Baptiste Carpeaux, 1869. Essaescultura do renomado artista francês havia sidoencomendada para ornamentar a Ópera de Pa-ris, mas provocou escândalo e foi recusada por"insultar a moral pública".

O impacto gerado pelo erotismo leva aspessoas a temerem a ação dele. A paixão, apesarda promessa de felicidade que a acompanha, in-troduz a perturbação e a desordem. Talvez este-ja aí a necessidade que os poderosos sentem decontrolar a sexualidade pela repressão.

325

Mas, como já dissemos, a repressão dasexualidade produz o sentimento ambíguo dedesejo e culpa.

Tal ambigüidade gera também tendên-cias opostas de comportamento igualmentecriticáveis: o puritanismo e a permissividade,resultantes da oscilação entre proibir e tudopermitir. É o que veremos a seguir.

2. Obstáculos a Eros

O puritanismo

O discurso moralista e puritano é her-deiro das tendências platônico-cristãs que des-valorizam o corpo (ver Capítulo 32) e consi-deram que o caminho da humanização está napurificação dos sentidos "mais baixos". Nes-sa perspectiva a sexualidade é desvalorizada,como se deixasse de fazer parte do homemintegral, para ser reduzida ao silêncio.

A visão platônico-cristã dissocia o amorespiritual do amor carnal e associa sexo ao pe-cado, a não ser quando tem por finalidade areprodução. O apóstolo São Paulo defende ocelibato, mas diz que é "melhor casar-se queabrasar-se". Santo Agostinho, que tivera vidadevassa antes da conversão, achava o prazerum companheiro perigoso. Os ideais ascéticosestimulam a continência, que é o controle daatividade sexual até a abstinência. Mas, paraisso, o homem deve lutar contra a tentação,procurando todos os meios de fugir à luxúria(sensualidade).

A Reforma protestante retoma essatemática, e o trabalho surge como a ocasião depurificação. É conhecida a tese do sociólogoMax Weber contida na obra A ética protestan-te e o espírito do capitalismo, na qual explicacomo o ideal de vida ascética constitui o nú-cleo da ética protestante. Pela teoria dapredestinação, a salvação ou a condenação dasalmas independe do próprio homem, pois éDeus que nos escolhe ou nos condena. Mas eiso que importa: as obras, a riqueza, a prosperi-dade, são sinais da escolha divina. Daí o traba-lho ser o meio de fugir da tentação e a condi-ção da purificação. "A ociosidade é a mãe detodos os vícios", e o principal pecado é a pre-guiça. Está surgindo aí a moral burguesa.

O corpo deserotizado

Com a implantação do capitalismo e odesenvolvimento do sistema fabril, é exerci-do um controle cada vez mais severo sobre otrabalhador.

O princípio de adestramento do corpo,que deve ser submetido a uma disciplina cadavez mais férrea (lembre-se da jornada de tra-balho de quatorze a dezesseis horas no séculopassado), faz com que o trabalho não seja ape-nas um freio para o sexo, mas que promovaum processo de dessexualização e deserotiza-ção do corpo.

Tínhamos visto que o trabalho é, segun-do Freud, o resultado da sublimação da libi-do. Mas o que acontece nas fábricas do mun-do contemporâneo é inédito na história da hu-manidade. Existe uma situação de dominaçãoem que uma classe se encontra submetida aotrabalho alienado, fragmentado, repetitivo emecânico, de onde foi retirado todo prazer.

Segundo a análise de Marcuse em Erose civilização, as exigências da nova ordem detrabalho provocam uma super-repressão, quese acha intimamente ligada ao princípio de de-sempenho, segundo o qual o trabalhadorinterioriza a necessidade de rendimento, deprodutividade, preenchendo funções preesta-belecidas e organizadas em um sistema cujofuncionamento se dá independentemente daparticipação consciente de cada um. "Eficiên-cia e repressão convergem": isso significa queo ideal de produtividade da sociedade indus-trial se faz por meio da repressão.

A dupla moral

O sexo, retirado da amplitude inicial emque deveria se encontrar, isto é, em todas asações humanas, é restrito a momentos isola-dos, nas horas de lazer, e ainda reduzido àgenitalidade (ao próprio ato sexual). Mais ain-da: é controlado para que não se desvie da fun-ção de procriação, considerada fundamental.

Na família burguesa vão se tecendo ospapéis destinados a cada um. O pai é o prove-dor da casa, aquele que garante a subsistênciada família, e seu espaço é público (o trabalhoe a política). A mulher, "protegida" pelo ho-mem, desempenha o papel biológico que lheé destinado e fica confinada no lar.

326

A conseqüência disso é a chamada du-pla moral, isto é, a existência de uma moralpara a mulher e outra para o homem.

Para que a mulher possa desempenhar opapel de mãe, a educação da menina é orien-tada como se ela fosse um ser assexuado. Suavida sexual deve começar apenas no casamen-to e, muitas vezes, sem os "prazeres da luxú-ria". A virgindade é valorizada, o adultériopunido (até pouco tempo, inclusive no Códi-go Penal) e sempre os homens aceitaram comnaturalidade as justificativas de "matar paralavar a honra".

Por outro lado, a educação do menino ébem diversa, orientada para a vida sexual pre-coce. Um exemplo desse processo encontra-se no romance de Mário de Andrade Amar,verbo intransitivo, em que o pai contrata umagovernanta alemã sob o pretexto de educar osfilhos (um rapaz e duas meninas), mas com oobjetivo oculto de proceder à iniciação sexualdo filho (sem problemas de vícios e doen-ças...). A mesma duplicidade se repete nocomportamento do próprio pai, quando àsquartas-feiras à noite freqüenta o Vale doAnhangabaú, na cidade de São Paulo, entãozona de meretrício, e de onde não traz sequerum fio de cabelo estranho...

Esse comportamento dicotomiza a figu-ra feminina: ou é santa ou é prostituta. Dequalquer forma, é interessante como a recusade sexualizar a mulher se contrapõe, a todoinstante, à tendência a sexualizá-la de formaperversa.

Por exemplo, vejamos o simples uso dosadjetivos honesto e sério: quando nos referi-mos a um "homem honesto", elogiamos suaintegridade moral, sua probidade; já uma"moça honesta" é a mulher "casta e pura". Umhomem indignado pode ter o seu comporta-mento analisado de diversas formas. Idênticocomportamento na mulher gera explicaçõesreferentes à suposta "precariedade" da suavida sexual. De um homem, no seu trabalho,exige-se apenas competência; de uma mulher,que também seja bonita e charmosa.

A própria educação da mulher é feitadesse tecido ambíguo de exposição e negaçãoda sua sexualidade. E ensinada desde cedo a

ser vaidosa, insinuante, mas deve ir "até certoponto", no "limite da decência". Bunuel mos-tra o paroxismo dessa situação no filme Bellede jour (A bela da tarde), onde uma mulherda alta sociedade, à tarde, freqüenta umbordel. Com isso Bunuel desvela a contradi-ção entre a realidade vivida pela mulher"bem-comportada" e os seus desejos secretose inconfessáveis.

Também é ambíguo o papel da prostitu-ta: condenada e ridicularizada, é no entanto ocontraponto da virgindade das "moças de boafamília". A esse respeito, diz Marilena Chaui:"Inúmeros estudos têm mostrado como, nageografia das cidades (anteriores às megaló-poles contemporâneas), o bordel é tão indis-pensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeiae a escola, integrando-se à paisagem, aindaque significativamente localizado na frontei-ra da cidade, quase seu exterior. Nas grandescidades contemporâneas, a localização torna-se central, mas sob a forma de guetos e, por-tanto, de espaço segregado, significativamen-te designado em São Paulo como 'boca dolixo'. (...) Em suma, a sociedade elabora pro-cedimentos de segregação visível e de integra-ção invisível, fazendo da prostituta peça fun-damental da lógica social".1

A permissividade

O quadro de nítida repressão sexualtem sido substituído, nas últimas décadas,pela valorização da sexualidade, o que noslevaria, num primeiro momento, a admitiruma liberação. Veremos, entretanto, comoessas alterações têm nuances que precisamser esclarecidas.

O movimento estudantil de maio de1968, iniciado na França e propagado pelomundo, teve importância no processo de pro-cura da afirmação do direito à sexualidade eda alegria por ela proporcionada. A duplamoral foi duramente criticada, assim comotodas as formas hipócritas de relacionamentohumano; os movimentos feministas consegui-ram progressos na tentativa de recuperação dadignidade e autonomia da mulher; houve a

Marilena Chaui, Repressão sexual, essa nossa (des)conhecida, p. 80.

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exigência de uma linguagem mais livre e me-nos preconceituosa; iniciou-se a valorizaçãodo corpo.

Estava começando a chamada revoluçãosexual.

Mas eis que surgem alguns problemas.Parafraseando o compositor Chico Buarque,a sexualidade "é aquilo que não tem governo,nem nunca terá": não permite padronizações,não pode ser reduzida a fórmulas, nem se sub-mete a receitas.

Ora, o ideal do corpo e do ambienteerotizados constituiria uma ameaça à socieda-de, que exige um corpo dócil e à disposiçãopara trabalhar quanto for necessário à produ-tividade do sistema.

Como reage o capitalismo diante de taisformas emergentes de "dissolução" dos cos-tumes? Incorporando-as para amenizar osseus efeitos. Vejamos como isso ocorre.

Uma ampla produção de revistas, fil-mes, livros, peças teatrais veio atender ao in-teresse despertado pelas questões sexuais.Mas essa produção se acha voltada para um"novo filão" de dinheiro: o sexo torna-se ven-dável e exposto como num supermercado. Porisso é preciso examinar o conteúdo de taispublicações que, simulando a liberação da se-xualidade, na verdade reforçam preconceitos.

É essa a posição de Marcuse, que denun-cia a liberação ilusória, na medida em quecontinuam ocorrendo formas mais sutis de re-pressão.

Em primeiro lugar, porque a sexualida-de que se acha "liberada" é a sexualidadegenital, isto é, a que se centraliza no ato se-xual. Ora, isso é empobrecimento da sexuali-dade humana, que deveria estar difusa não sóno corpo todo como também no ambiente enos atos não propriamente sexuais. Já vimosque o trabalho alienado "deserotizou" o am-biente humano, e esta foi a condição de semanter a produção e a eficiência. Assim, a ca-nalização dos instintos para os órgãos do sexoimpede que seu erotismo "desordenado" e"improdutivo" prejudique a "boa ordem" dotrabalho e extravase os limites permitidos.

O alívio de fim de semana dado às ne-cessidades sexuais cada vez mais "liberadas"

faz o indivíduo pensar que, afinal, o mundonão é tão hostil assim aos seus desejos; mas,na verdade, é ocultado que "o ambiente noqual o indivíduo podia obter prazer — que elepodia concentrar como agradável quase comouma zona estendida de seu corpo — foi re-duzido. Conseqüentemente, o 'universo' deconcentração de desejos libidinosos é do mes-mo modo reduzido. O efeito é uma localizaçãoe contração da libido, a redução da experiênciaerótica para experiência e satisfação sexuais"2.

Além disso, trata-se de uma liberação"versão Playboy", ou seja, as publicações des-se tipo e a invasão de filmes pornográficosdeixam entrever a total permissividade, masna verdade tais extravagâncias apenas sãopossíveis no imaginário da maior parte daspessoas, para as quais o sexo "liberado" surgecomo um sonho, como a ilusão de que tal pa-raíso seja um dia possível.

Resta-nos examinar ainda outra formade repressão. Se, na sociedade padronizada, opapel do controle da intimidade coube em pri-meiro momento à religião — lembre-se doconfessionário —, atualmente cabe à ciência,por meio da sexologia.

No Capítulo 33, dissemos que muito seescreve sobre sexo e quase nada sobre o amor.Agora, diremos ainda: escreve-se muito sobresexo, mas do ponto de vista científico. Os ro-manos tiveram a Ars amatoria (A arte deamar), de Ovídio; os japoneses, a sua arte eró-tica, os hindus, o Kama Sutra. Nessas obras,procura-se conhecer o sexo pelo domínio docorpo e pelo exercício do amor: trata-se deuma arte. A sexologia, por sua vez, explica osexo pela razão: é uma ciência.

Segundo Michel Foucault (1926-1984),filósofo francês autor de História da sexuali-dade, "falar sobre sexo" é uma maneira camu-flada de evitar "fazer sexo". Daí a mudança daars erotica para a scientia sexualis. A ciênciatorna-se uma forma controladora da sexualida-de e, através do "discurso da competência",busca-se a "normalidade" e a "objetividade".

Explicando melhor: o discurso científico,considerando-se além dos tabus e dos precon-ceitos (já que se diz discurso objetivo), reduz osexo a uma visão biologizante. Ao mostrá-lo

2 H. Marcuse, A ideologia da sociedade industrial, p. 83.

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como algo "natural", estabelece cânones (pa-drões) sobre o que é normal ou patológico, clas-sifica os tipos de comportamento, determina aprofilaxia (ou seja, formas de higiene e controlede doenças etc.) e aprisiona os indivíduos à últi-ma palavra do especialista "competente", atra-vés do qual o sexo é vigiado e regulado.

Diz Bataille: "O especialista nunca podeestar à altura do erotismo. Entre todos os pro-blemas, o erotismo é o mais misterioso, o maisgeral, o mais longínquo. Para aquele que senão pode furtar a ele, para aquele cuja vida seabre à exuberância, o erotismo é, por excelên-cia, o problema pessoal. É ao mesmo tempo,por excelência, o problema universal. O mo-vimento erótico é também o mais intenso dosmovimentos (à exceção, se se quiser, da expe-riência dos místicos). Por isso está situado nocume do espírito humano".3

3. Conclusão

Pelo que pudemos constatar, a supera-ção do puritanismo com seus fundamentos re-

pressivos não conseguiu alcançar a liberaçãodo erotismo humano, mas, ao contrário, temcriado formas sutis de repressão.

No entanto, é preciso prosseguir na bus-ca da autêntica liberação. Para tanto, emboraa sexualidade diga respeito à mais funda inti-midade pessoal, não convém esquecer que osmecanismos de repressão se encontram naprópria sociedade e são exercidos como ins-trumentos de dominação.

O que podemos concluir é que a re-pressão sexual sempre existirá em socieda-des onde persistem relações de poder basea-das na exploração. Parece que a sexualida-de só se libertará caso possa ser desfeito onó da dominação social. Já dissemos ante-riormente que Eros é do domínio da demo-cracia, pois a "amizade é a recusa do ser-vir", como já sabia La Boétie, filósofo fran-cês do século XVI.

O caminho para a libertação de Eros,tornado Tanatos na sociedade alienada, passaportanto pela discussão política das condiçõesdessa alienação.

Exercícios

1. Que contradição existe entre instinto e ci-vilização?

2. Qual é a diferença entre sublimação e re-pressão?

3. Em que sentido o erotismo não é simplesatividade sexual?

4. Qual é a relação entre repressão sexual etrabalho?

5. O que é super-repressão para Marcuse?

6. O que é dupla moral? Quais são as conse-qüências para a mulher?

7. Qual foi a importância do movimento estu-dantil de maio de 68?

8. Em que sentido a sexualidade exclusiva-mente genital pode ser considerada empobrecimen-to do erotismo?

9. Em que medida o discurso científico da se-xualidade pode ser um tipo de controle da sexuali-dade?

10. Explique por que a questão da repressãosexual pode também ser uma questão política.

11. Releia o texto complementar "A sexualida-de", de Merleau-Ponty, no Capítulo 16, e expliqueo que caracteriza a sexualidade humana.

3G. Bataille, O erotismo, p. 245.

329

12. Há debates a respeito da introdução ou nãoda disciplina Educação Sexual no currículo dolº grau. Algumas pessoas argumentam que seriamfavoráveis "desde que as informações sejam estri-tamente científicas e restritas à biologia". Comopodemos criticar essa orientação?

13. A censura a espetáculos geralmente é maisrigorosa com os filmes e revistas sobre sexo do quecom os de violência. Em que sentido o erotismoseria "mais perigoso" para o sistema?

As questões a seguir se referem ao texto com-plementar.

14. Compare as duas afirmações: "o fetichenão responde" e "pede-se à pele que responda".

15. Explique o significado da expressão: "fes-ta não dos sentidos, mas do sentido".

Texto complementar

Fragmentos de um discurso amoroso

Sem querer, o dedo de Werther toca o dedo de Charlotte, seus pés, sob a mesa, se encontram.Werther poderia se abstrair do sentido desses acasos; poderia se concentrar corporalmente sobreessas fracas zonas de contato e gozar esse pedaço de dedo ou de pé inerte, de um modo fetichista,sem se preocupar com a resposta (como Deus — é sua etimologia — o Fetiche não responde). Masprecisamente: Werther é perverso, ele está apaixonado: cria sentido, sempre, em toda a parte, decoisa alguma, e é o sentido que o faz ficar arrepiado: ele está no braseiro do sentido. Todo contato,para o enamorado, coloca a questão da resposta: pede-se à pele que responda.

(Pressão de mãos — imenso dossiê romanesco —, gesto delicado no interior da palma, joelhoque não se afasta, braço estendido, como por acaso, no encosto de um sofá e sobre o qual a cabeça dooutro vem pouco a pouco repousar, é a região paradisíaca dos signos sutis e clandestinos: como umafesta, não dos sentidos, mas do sentido.)

(R. Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, p. 56.)

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Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver.

(Montaigne)

O que se tornou perfeito, inteiramente maduro, quer morrer.

(Nietzsche)

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não servivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia.

(Camus)

1. A morte como enigma

A morte é o destino inexorável de todosos seres vivos. No entanto, só o homem temconsciência da própria morte. Por se perceberfinito, o homem aguarda com ansiedade o quepoderá ocorrer após a morte. A crença naimortalidade, na vida depois da morte, simbo-liza bem a recusa da própria destruição e oanseio de eternidade.

Estudos a respeito dos primórdios danossa civilização relacionam o aparecimentodas primeiras angústias metafísicas do homemao registro dos sinais de culto aos mortos. Por-tanto a morte se apresenta desde o início comouma fronteira que não significa apenas o fimda vida, mas o limiar de outra realidadeinstigante porque ininteligível, além de ate-morizadora.

A morte daqueles que amamos e aiminência da nossa própria morte estimula acrença a respeito da imortalidade. SegundoJaspers, "existe algo em nós que não se podecrer suscetível de destruição". Por isso é ine-vitável que desde o início da cultura humanao recurso à fé religiosa tenha aplacado o te-mor diante do desconhecido.

Através dos tempos, a consciência reli-giosa tem oferecido um conjunto de convic-

ções que orientam o comportamento humanodiante do mistério da morte: quer seja pelosrituais de passagem dos primitivos quer sejanas religiões mais elaboradas, pelos preceitosdo viver terreno para garantir melhor destinoà alma. Por isso, a angústia da morte tem le-vado à crença na imortalidade e na aceitaçãodo sobrenatural, do sagrado, do divino.

2. As mortes simbólicas

O homem não tem, contudo, consciênciaapenas da morte enquanto fim da sua vida. Oconceito de finitude o acompanha em tudo quefaz: é significativa a imagem mítica do deusCronos (Tempo) devorando os próprios filhos.

A morte, como clímax de um processo,é antecedida por diversas formas de "morte"que permeiam o tempo todo a vida humana.O próprio nascimento é a primeira morte, nosentido de ser a primeira perda, a primeiraseparação. Rompido o cordão umbilical, aantiga e cálida simbiose do feto no útero ma-terno é substituída pelo enfrentamento donovo ambiente.

CAPÍTULO 35A MORTE

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A oposição entre o velho e o novo repe-te indefinidamente a primeira ruptura e expli-ca a angústia do homem diante do seu própriodilaceramento interno: ao mesmo tempo queanseia pelo novo, teme abandonar o confortoe a segurança da estrutura antiga a que já sehabituou.

Os heróis, os santos, os artistas, os revo-lucionários são sempre os que se tornam ca-pazes de enfrentar o desafio da morte, tantono sentido literal como no simbólico, por se-rem capazes de construir o novo a partir dasuperação da velha ordem.

3. A filosofia e a morte

No diálogo Fedon, Platão descreve osmomentos finais da vida de Sócrates antes desua execução, quando discute com os discípu-los a respeito da ligação entre corpo e alma.Sendo o corpo um estorvo para a alma, a sere-nidade do sábio diante da morte é o reconhe-cimento de que a separação significa a liber-tação do espírito.

No decorrer da história da filosofia,muitas vezes os pensadores trataram explici-tamente a respeito da morte e da imortalidadeda alma, mas essa questão está na raiz de todafilosofia e, mesmo quando não se discute di-retamente sobre a morte, ela se situa no hori-zonte de toda reflexão filosófica. É nesse sen-tido que Platão afirma ser a filosofia uma me-ditação da morte, e Montaigne diz que "filo-sofar é aprender a morrer". Pois se a filosofiaé uma das formas da transcendência humana,pela qual refletimos a respeito de nossa exis-tência e destino, a discussão sobre a morte nãolhe pode ser estranha.

Segundo Heidegger (ver Capítulo 31 —O existencialismo), o ser do homem comopossibilidade, como projeto, o introduz natemporalidade. Isso não significa apenas queo homem tem um passado e um futuro e queos momentos se sucedem passivamente unsaos outros; significa que o futuro se revelacomo aquilo para o qual a existência é proje-tada e que o passado é aquilo que a existênciatranscende. O existir humano consiste no lan-çar-se contínuo às possibilidades, entre asquais se encontra justamente a situação-limiterepresentada pela morte, a qual possibilita o

olhar crítico sobre o cotidiano. É nesse senti-do que podemos considerar o homem comoum "ser-para-a-morte".

Para Heidegger, só o homem autênticoenfrenta a angústia e assume a construção dasua vida. O homem inautêntico foge da angús-tia, refugia-se na impessoalidade, nega atranscendência e repete os gestos de "todo omundo" nos atos cotidianos. No mundo mas-sificado do homem inautêntico, até a morte ébanalizada, e dela se fala como se fosse umacontecimento genérico, longínquo e im-palpável. A impessoalidade tranqüiliza e alie-na o homem, confortavelmente instalado numuniverso sem indagações. Há a recusa de re-fletir sobre a morte como um acontecimentoque nos atinge pessoalmente.

Sartre, referindo-se à sua infância em ASpalavras, diz: "A morte era a minha vertigemporque eu não amava viver: é o que explica oterror que ela me inspirava. (...) Quanto maisabsurda a vida, menos suportável é a morte".

Na teoria sartriana, ao contrário da deHeidegger, a consciência da morte retira todosignificado à vida, pois a morte é a "nadifica-ção" dos nossos projetos, a certeza de que umnada total nos espera. E conclui pelo absurdoda morte e, simultaneamente, da vida, que éuma "paixão inútil".

Mas seja a morte considerada, como emHeidegger, algo que dá sentido à vida; ou,como em Sartre, a dimensão do absurdo, o quenos intriga é a recusa que o homem contem-porâneo manifesta em abordar a temática domorrer humano. Em nenhum tempo a recusado enfrentamento da própria finitude foi tãovisível. Muitas podem ser as explicações da-das por antropólogos, sociólogos, psicólogos,que certamente fecundarão a matéria de refle-xão dos filósofos. O que não podemos é dei-xar de pensar na morte: vejamos por quê.

4. Aspecto histórico-social damorte

As sociedades tribais e tradicionais

Observando a história e os diversos po-vos, verificamos que o sentido da morte não ésempre o mesmo. A maneira pela qual umpovo enfrenta a morte ou o significado que lhe

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dá refletem de certa forma o sentido que eleconfere à vida. Os pólos antagônicos vida emorte não são excludentes, pois são formasdialéticas inseparáveis.

No mundo tribal, a morte não é propria-mente um problema. Ela não é enfocada doponto de vista da morte de um indivíduo, masse acha integrada nas práticas coletivas de cul-to aos mortos, aos ancestrais.

Como vimos no Capítulo 6, o homemprimitivo se acha de tal forma envolvido nacomunidade que o seu ser, não tendo o centroem si mesmo, se faz por meio da participaçãono todo coletivo. Como o eu se afirma pelosoutros, o existir do primitivo é essencialmen-te relacionai, e a individualidade se encontraenvolvida pela totalidade maior da comunida-de. Por isso a morte não é percebida como dis-solução, o morto apenas muda de estado e pas-sa a pertencer à comunidade dos mortos, o queé viabilizado por "rituais de passagem" ade-quados à ocasião. "Vivos e mortos, totem edeuses, antepassados, participam de uma mes-ma realidade vital."1 Não há nenhuma idéiade aniquilamento, e os mortos podem retornarao mundo dos vivos durante o sono destes epor meio de aparições.

Nas sociedades tradicionais, fortementemarcadas pela predominância da vida comu-nitária, ocorre algo semelhante. Como são so-ciedades relacionais, onde o indivíduo se en-contra inserido numa totalidade mais impor-tante que ele, há uma série de cerimônias erituais que cercam o evento da morte. Isso nãosignifica que seja fácil morrer (muito ao con-trário!), mas sim que a morte não é banalizadaporque se acha inserida no cotidiano das pes-soas como um evento importante.

Evidentemente, essas cerimônias variamconforme os costumes, mas vamos relembraralgumas delas, típicas das pequenas cidades,até ainda na primeira metade do século XX.

Os parentes, vizinhos e amigos acompa-nham a agonia do moribundo. Geralmente odoente permanece em casa, atendido pelo mé-dico da família. As cerimônias são procedidasconforme a religião do morto: dependendo

disso, chama-se o padre para dar a extrema-unção, de preferência enquanto há lucidez,sem falsos escrúpulos de que o doente perce-ba a proximidade da morte.

Ao morrer, geralmente seu caixão é co-locado sobre a mesa da sala de jantar e diantedele passarão os parentes, conhecidos e atétranseuntes ocasionais, velando-se o defuntonoite adentro. As crianças circulam pelo am-biente. O morto é chorado e freqüentementerelembrado. A ausência é assinalada pelo luto,cuja duração varia conforme o tipo de paren-tesco; em algumas regiões, a viúva deve guardá-lo pelo resto da vida. Um conjunto de atos deter-minados socialmente — como visitas ao cemi-tério, missas para a alma do morto, flores, visi-tas de pêsames, cartas de condolências — ajudaos parentes a atravessar o período doloroso daperda e a reintegração à vida normal.

A negação da morte

Um fenômeno diferente vem ocorrendo hácerca de cinqüenta anos, como resultado do pro-cesso de urbanização dos centros industrializa-dos. A grande cidade cosmopolita impiedosa-mente destruiu os antigos laços, fragmentando acomunidade em núcleos cada vez menores e ins-taurando extremo individualismo.

As pessoas vivem no ritmo aceleradoimprimido pelo sistema de produção e nãotêm tempo para os velhos e os doentes. A me-dicina, cada vez mais especializada, se ocupadesses "marginais" da sociedade — porquereduzidos à improdutividade —, que são tras-ladados para hospitais "a fim de ser melhorassistidos". Se, por um lado, são tratados emambientes assépticos e com técnicas sofisti-cadas que prolongam a vida, por outro ladonão escapam à solidão e à impessoalidade doatendimento. Os enfermeiros e médicos sãoeficientes, mas o moribundo se encontra afas-tado da mão amiga, da atenção sem pressanem profissionalismo.

Quando morre, o velório geralmente éfeito no necrotério, para o qual não se costu-ma levar crianças, as quais crescem à margem

G. Gusdorf, Tratado de metafísica, p.

333

dessa realidade da vida: nunca vêem um mor-to, nem um cemitério.

O francês Philippe Ariès aborda essasquestões no clássico História da morte noOcidente. Nele se refere ao sociólogoGeoffrey Gorer, que escreveu um estudo como título provocativo de "A pornografia damorte", no qual mostra como a morte se tor-nou um tabu, substituindo o sexo como prin-cipal interdito: "Antigamente dizia-se àscrianças que se nascia dentro de um repolho,mas elas assistiam à grande cena das despedi-das, à cabeceira do moribundo. Hoje, são ini-ciadas desde a mais tenra idade na fisiologiado amor, mas, quando não vêem mais o avô ese surpreendem, alguém lhes diz que ele re-pousa num belo jardim por entre as flores".2

A "obscenidade" em falar da morte setorna grave quando se trata dos doentes termi-nais, ou seja, daqueles que não escaparão damorte próxima. É comum tal fato ser escamo-teado: os parentes, com a cumplicidade dosmédicos, escondem do paciente sua doençaletal e o fim próximo. Nem diante da imi-nência da morte ousamos falar dela.

A tentativa de ocultamento da morte tal-vez explique a sofisticação das funeráriasamericanas que "tomam conta do morto".Medard Boss, médico e psicanalista suíço,diz: "Nunca esquecerei minhas visitas aos'Funeral Homes' americanos, nos quais osdefuntos são maquilados, um cigarro é colo-cado em suas bocas, e ao lado se tocam fitasgravadas com discursos que os falecidos pro-nunciaram outrora"3.

O antropólogo brasileiro Roberto daMatta também se refere ao fato de os mortosserem colocados em caixões acolchoados decetim que lembram uma cama confortável:"O que seria tudo isto, senão um modo radi-cal de livrar-se do morto, transformando-oem alguém que realmente dá a impressão derepousar?"4

Por que será que o homem contemporâ-neo escamoteia assim a morte? Talvez porquea dificuldade que ele sente para lidar com amorte esteja relacionada à sua incapacidadepara lidar com a vida.

O homem urbano, individualista, massa-crado pelo sistema de produção, obrigado a de-sempenhar funções que não escolheu e numritmo que não é o seu, acha-se muito distantedaquilo que poderíamos considerar uma boaqualidade de vida. Independentemente do pro-gresso técnico atingido, são altos os níveis dealienação humana no trabalho, no consumo, nolazer (ver Capítulo 2 — Trabalho e alienação).

Mais ainda, a insensibilidade com rela-ção à morte individual tem paralelo com a in-consciência referente ao destino do planeta.Pela primeira vez na história da humanidade amorte ultrapassa a dimensão do indivíduo eameaça a sobrevivência de todos.

Por isso, é preciso resgatar, no mundoatual, a consciência da morte, o que não deveser entendido como a preocupação mórbida,doentia do homem que vive obcecado pelamorte inevitável. Tal atitude seria pessimistae paralisante. Ao contrário, ao reconhecer afinitude da vida, reavaliamos nosso compor-tamento e escolhas, e podemos proceder auma diferente priorização de valores.

Por exemplo, se tomamos como valoresabsolutos o acúmulo de bens, a fama e o po-der, a reflexão sobre a mortalidade torna ridí-culos esses anseios, privilegiando outros va-lores que nos dão maior dignidade. Essa mes-ma reflexão, no nível planetário, nos ajuda aquestionar os falsos objetivos do progresso aqualquer custo.

A consciência da morte nos ajuda aquestionar não só se nossa vida é autênticaou inautêntica, mas também se faz sentido odestino que os povos legaram para seus her-deiros.

- Ph. Aries, História da morte no Ocidente, p. 56.1 Medard Boss, Angústia, culpa e libertação, 2. ed., São Paulo, Livr. Duas Cidades, 1977, p. 73.4 Roberto da Matta, A casa e a rua, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 117.

334

Exercícios

1. "O problema da morte, em seu significadoradical, não tem apenas conexão com o problemado aniquilamento ou da sobrevivência: consistenele." (Julian Marías)

Em que medida a citação acima revela a di-mensão religiosa da morte?

2. "No fundo de nós mesmos, nós nos senti-mos não-mortais." Comente a frase de PhilippeAries, observando que ele não diz "imortais", mas"não-mortais".

3. Em que sentido a reflexão sobre a mortepode ser importante para a ética?

4. Qual é a principal diferença entre o enfren-tamento da morte no mundo tribal, nas sociedadestradicionais e no mundo contemporâneo?

5. O que quer dizer, nas sociedades contem-porâneas, o "tabu da morte"?

6. "... ninguém morre antes da hora. O tempoque perdeis não vos pertence mais do que o queprecedeu vosso nascimento, e não vos interessa:'Considerai em verdade que os séculos inumerá-veis, já passados, são para vós como se não tives-sem sido'*. Qualquer que seja a duração de vossavida, ela é completa. Sua utilidade não reside naduração e sim no emprego que lhe dais. Há quemviveu muito e não viveu. Meditai sobre isso en-quanto o podeis fazer, pois depende de vós, e nãodo número de anos, terdes vivido bastante.Imagináveis então nunca chegardes ao ponto parao qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não te-nha fim?" (Montaigne)

Comente o significado do trecho dos Ensaios,de Montaigne, capítulo XX, intitulado "De comofilosofar é aprender a morrer".

Lucrécio.

335

Nesse estudo, para seu famoso quadro Antropofagia (1929), a pintoramodernista brasileira escolhe os elementos que entrarão em sua composição e que, depois,serão retrabalhados em função de seu melhor aproveitamento do ponto de vista da forma

pictórica. É sempre interessante poder acompanhar a evolução de uma idéia artística.

UNIDADE VIESTÉTICA

Estudo de antropofagia, Tarsila do Amaral,

Na verdade, o que é a criação matemática ? Não consiste em fazer novas combinações com entidadesmatemáticas já conhecidas. Qualquer um poderia fazer isso, mas as combinações assim construídas seriaminfinitas e, na sua maior parte, absolutamente sem interesse. Criar consiste precisamente em não fazer combi-nações inúteis e em fazer aquelas que são úteis e que constituem uma pequena minoria. Invenção édiscernimento e escolha.

(Henry Poincaré)

Antes da discussão dos conceitos, suge-rimos a seguinte atividade para ser feita emgrupo: tracem, em uma folha de papel, 24 cír-culos de, aproximadamente, cinco centíme-tros de diâmetro e desenhem livremente emseu interior o que quiserem, durante quinzeminutos. Em seguida, façam um levantamen-to de todos os desenhos e apresentem para ogrupo os mais comuns e os mais incomuns. Apartir disso, discutam o que é criatividade.

1. Conceitos: o uso vulgar, adefinição do dicionário, ouso em psicologia

Quando começamos a discutir sobrecriatividade, parece sempre que ingressamosnum universo um tanto mágico, habitado porseres escolhidos pelos deuses, seres que pos-suem o dom da criatividade, geralmente na áreade artes, que é negado ao comum dos mortais.Chamamos de criativas as pessoas que sabemdesenhar, tocam algum instrumento, têm algu-ma habilidade manual "especial", como pintarcamisetas ou ser bom marceneiro; enfim, asque sabem fazer coisas que a maioria das pes-soas (principalmente nós) não sabe.

Será que basta habilidade técnica paraser criativo? Ou será que a criatividade envol-ve processos mais complexos?

Vamos começar a discutir esse assuntopartindo de alguns significados da palavracriar e de seus derivados criador, criatividadee criativo que constam do dicionário':

criar. V. t. d. 1. Dar existência a; tirar do nada. 2.Dar origem a; gerar, formar. 3. Dar princípio a;produzir, inventar, imaginar, suscitar.

criador. Adj. 3. Inventivo, fecundo, criativo.criatividade. S.f.l. Qualidade de criativo.criativo. Adj. Criador.

Podemos ver, nesses vocábulos, que acriatividade pressupõe um sujeito criador, istoé, uma pessoa inventiva que produz e dá exis-tência a algum produto que não existia ante-riormente. Vemos, também, que imaginar éuma forma de inventar ou criar um produto.Portanto, esse produto da atividade criativa deum sujeito não é, necessariamente, um objetopalpável, mas pode ser uma idéia, uma ima-gem, uma teoria.

Agora estamos prontos para abordar al-guns conceitos elaborados por psicólogos quevêm se dedicando à pesquisa na área dacriatividade e levantando várias hipóteses so-bre as pessoas criativas. Diz Ghiselin que a

1 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, 2. ed., 20' impr., Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1986.

337

CAPÍTULO 36CRIATIVIDADE

medida da criatividade de um produto "estána extensão em que ele reestrutura nosso uni-verso de compreensão"2; ou, segundo Laklen,a medida da criatividade é "a extensão da áreada ciência que a contribuição abrange"3.

2. Critérios de determinação dacriatividade

Podemos notar que as definições deGhiselin e Laklen medem a criatividade atra-vés do critério da abrangência de seus efei-tos, isto é, quanto mais uma contribuição (sejaela um objeto ou uma idéia) remexer nossascrenças estabelecidas, quanto mais revolucio-nar o nosso universo de saber (o que temoscomo sendo o "certo", o "indiscutível"), maiscriativa ela será.

Notamos, também, que em todos essesconceitos já está inserida a idéia do novo. Aobra verdadeiramente criativa traz algum tipode novidade que nos obriga a rever o que jáconhecíamos, dando-lhe uma nova organiza-ção. Acontece quando exclamamos: "Nossa,nunca tinha percebido isso!"

O novo que a obra criativa nos propõe,no entanto, não é gratuito, ou seja, a novidadenão aparece só por ser novidade. Podemos,então, dizer que tudo que é criativo é novo,mas nem tudo que é novo é criativo. Expli-cando melhor: a inovação aparece com rela-ção a um dado problema ou a uma dada situa-ção, solucionando-a ou esclarecendo-a. A ino-vação surge, geralmente, do remanejo do co-nhecimento existente que revela insuspeitadosparentescos ou semelhanças entre fatos já co-nhecidos que não pareciam ter nada em co-mum. Assim, Gutenberg resolveu o problemada impressão ao ver uma prensa de uvas parafazer vinho. Aparentemente, uvas e vinho, deum lado, e papel e letra, de outro, nada tinhamem comum, e no entanto foi a partir do proce-dimento para fazer vinho que Gutenberg pen-sou em pressionar papel contra tipos molha-dos de tinta.

Já temos, pois, mais um critério paramedir a criatividade: a inovação, além daabrangência já citada. Não podemos esquecer,no entanto, que a inovação tem de ser rele-

vante, isto é, adequada à situação. Um ato,uma idéia ou um produto é criativo quando énovo, adequado e abrangente.

3. Criatividade como capacidadehumana

Levando em conta essa discussão, per-cebemos que a criatividade é uma capacidadehumana que não fica confinada no territóriodas artes, mas que também é necessária àciência e à vida em geral. A ciência não pode-ria progredir se alguns espíritos mais criati-vos não tivessem percebido relações entre fa-tos aparentemente desconexos, se não tives-sem testado essas suas hipóteses e chegado anovas teorias explicativas dos fenômenos.

A imaginação

O processo de trabalho do cientistaaproxima-se do processo de trabalho do ar-tista. Ambos desenvolvem um tipo de com-portamento denominado "exploratório", istoé, dedicam-se a "explorar" as possibilidades,"o que poderia ser", em vez de se deter noque realmente é. Para isso, necessitam daimaginação. Assim, um dos sentidos de criaré imaginar. Imaginar é a capacidade de veralém do imediato, do que é, de criar possibi-lidades novas. É responder à pergunta: "Senão fosse assim, como poderia ser?". Se der-mos asas à imaginação, se deixarmos de ladoo nosso senso crítico e o medo do ridículo,se abandonarmos as amarras lógicas da rea-lidade, veremos que somos capazes de en-contrar muitas respostas para a pergunta.Este é o chamado pensamento divergente,que leva a muitas respostas possíveis. É ocontrário do pensamento convergente, queleva a uma única resposta, considerada cer-ta. Por exemplo, à pergunta "Quem desco-briu o Brasil?", só há uma resposta certa:Pedro Álvares Cabral. Para a pergunta "Seos portugueses não tivessem descoberto oBrasil, como estaríamos vivendo hoje?", háinúmeras respostas possíveis. A primeira en-volve memória; a segunda, imaginação.

2 Ghiselin, The creative process andits relation to the identification of creative talent, in 1955 Univ. of Utah ResearchConference on Identification of Creative Scientific Talent, 1956.

3 Laklen, apud C. W. Taylor, Criatividade: progresso e potencial, p. 27.

338

Tanto o artista quanto o cientista têm deser suficientemente flexíveis para sair do se-guro, do conhecido, do imediato, e assumir osriscos ao propor o novo, o possível.

A inspiração

Nesse contexto, qual seria o lugar da tãofalada inspiração? Na verdade, a inspiração éresultado de um processo de fusão de idéiasefetuado no nosso subconsciente. Diante de umproblema, de uma preocupação ou ainda deuma situação, obtidas as informações funda-mentais acerca do assunto, o nosso subcons-ciente passa a lidar com esses dados, fazendouma espécie de jogo associativo entre os várioselementos. É como tentar montar um quebra-cabeças: experimentamos ora uma peça, oraoutra, até acharmos a adequada. É o momentoem que a imaginação é ativada para propor to-das as possibilidades, por mais inverossímeisque sejam. Desse jogo subconsciente surgirãoem nossa consciência sínteses e novas confi-gurações dos dados sobre as quais trabalharánosso intelecto, pesando-as, julgando-as, ade-quando-as ao problema ou à situação. Aosurgimento dessas sínteses em nossa consciên-cia damos o nome de inspiração.

Tanto o artista quanto o cientista traba-lham intelectualmente a inspiração. O artista

tem de decidir entre materiais, técnicas e esti-los para a produção da sua obra. O cientistatem de elaborar e testar as suas hipóteses parachegar a uma teoria ou produto novos.

4. Desenvolvimento e repressãoda criatividade

Podemos afirmar que, como capacidadehumana, a criatividade pode ser desenvolvidaou reprimida. O desenvolvimento acontece namedida em que o ambiente familiar, a escola,os amigos, o lazer ofereçam condições ao ple-no exercício do comportamento exploratórioe do pensamento divergente, incentivando ouso da imaginação, do jogo, da interrogaçãoconstante, da receptividade a novidades e dodesprendimento para ver o todo sem precon-ceito e sem temor de errar.

A repressão, por sua vez, acontece quan-do essas condições não são oferecidas e, alémdisso, é enfatizado o não assumir riscos e oficar no terreno seguro da repetição do já co-nhecido.

Assim, a criatividade não é um dom quesó os gênios têm e os outros não. É uma capa-cidade que todos nós podemos desenvolver senos dispusermos a praticar alguns tipos decomportamentos específicos.

Exercícios

1. Levante as idéias principais do texto, ex-plicando-as com suas palavras.

2. Qual o papel da imaginação no ato de criar?

3. O que é inspiração?

4. Como se pode desenvolver a criatividade?

Leia o texto complementar e, a partir do queaprendeu sobre criatividade, responda às questões5 a 8.

5. O que o autor quer dizer com "o modo nor-mal de ver o mundo"?

6. O que significa "a mentalidadeconsumista" e por que ela é um obstáculo àcriatividade?

7. No que consiste a contemplação ativa?Quais suas relações com o comportamentoexploratório? Por que ela é criativa?

8. Estabeleça uma ligação entre o conceito de"novidade" discutido no capítulo e o conceito de"diferente" exposto no texto complementar.

Sugestões para debates em grupo ou dis-sertação

a) Educação criativa: Como seria uma esco-la que tivesse por objetivo desenvolver acriatividade nos alunos? Como é a sua escola?

b) Lazer criativo: Dentre as opções de lazeroferecidas hoje em dia, quais desenvolvem acriatividade e quais a reprimem?

c) Criatividade na ciência: Procure umexemplo concreto de como um cientista usou dacriatividade para chegar a uma teoria ou idéia nova.

d) Distinção entre ciência e tecnologia.

339

Texto complementar

[Contemplação e criatividade]

O fenômeno da inspeção prolongada pode ser relacionado à criatividade de uma forma modes-ta ou em grande escala. Pode ser considerado simplesmente como um instrumento facilitador dosestágios preparatórios da criação. Ou, mais ambiciosamente, como um modelo, em pequena escala,de todo o processo criativo, mostrando, sob condições simples, o essencial do que acontece quandoo pensador, o artista ou o cientista criativos enfrentam o mundo. Finalmente, as transformaçõescausadas pela inspeção prolongada podem ser consideradas idênticas ao que se costuma denominarcriatividade. Neste caso, o verdadeiro trabalho do criador seria nada mais do que o anotar das revela-ções tidas durante a inspeção.

Sem dúvida, a contemplação profunda do objeto a ser representado ou interpretado, bem comode cada etapa do trabalho, é um requisito essencial de toda criação. (...) É, também, evidente que talinspeção faz descobrir possibilidades de estruturar e reestruturar a totalidade do trabalho, ou partedela. (...) Essas descobertas servem para que o pensador criativo se afaste do modo normal de ver omundo. (...)

O modo normal de ver, embora indispensável até mesmo para o artista como base e modelo deoperação, não pode prevalecer se a pessoa quiser expressar, de forma artisticamente verdadeira, oque o objeto significa para ela. (...)

Mas, entretanto, o que é contemplação? Sua natureza é freqüentemente mal interpretada a fimde fundamentar algumas fraquezas na civilização moderna. A mentalidade consumista de hoje emdia leva as pessoas à total passividade. A pessoa age como um receptor que pega o que encontra esofre as imposições do mundo. Se é necessário afastar-se do comum — em nome da originalidade edo progresso — ele tende a esperar que essas mudanças lhe sejam reveladas ou dadas pelo meioambiente, ou seja, pelo mundo social e pelo mundo percebido ou, ainda, pelo estoque de inspiraçõesinconscientemente geradas. Em virtude desse estado de espírito, tendemos a ver a contemplaçãocomo uma atividade puramente passiva. (...)

[É preciso esclarecer que:](...) A verdadeira contemplação não se resume a esperar e juntar informação. Ela é essencial-

mente ativa. (...) Quando uma pessoa contempla, ela se aproxima do mundo de um modoquestionador, mundo esse que não é simples como uma figura geométrica, mas cuja complexidademisteriosa incita a mente. O artista olha para seu modelo à procura de respostas visíveis para apergunta: Qual é a natureza desta vida? Mais precisamente, ele procura similares para as constela-ções e processos da realidade. A contemplação não se assemelha à atitude do espectador médio; elanão tem respostas a oferecer para a pessoa que não fizer perguntas.

(...) O indivíduo criativo não deseja sair do que é o normal e comum só para ser diferente. Elenão tenta desistir do objeto, mas penetrá-lo de acordo com seus próprios critérios de verdade. E,nesse processo, freqüentemente abandona o modo normal de ver as coisas. Quando Picasso fala deseu trabalho como sendo uma série de destruições, evidentemente se refere à destruição positivanecessária a toda busca. O desejo de ser diferente só por ser diferente é prejudicial, e a necessidadede fugir de uma dada condição deriva de um estado patológico inerente à situação (...) ou à pessoa,como nos mecanismos de fuga dos neuróticos, que os freudianos atribuem aos artistas. Frente afrente com a realidade prenhe de sentido, a pessoa verdadeiramente criativa não foge, mas caminhaem direção a ela. A contemplação permite-lhe analisar as potencialidades do objeto em relação aotipo de verdade que seja adequado a ambos. (...)

(Rudolf Arnheim, Towards a psychology of art, Londres, Faber and Faber, 1966, p. 296-299.)

340

A arte é uma série de objetos que provocam emoções poéticas.

(Le Corbusier)

1. Conceituação: no uso vulgar, em artes, em filosofia

Fazendo um levantamento do uso co-mum da palavra estética encontramos: Insti-tuto de Estética e Cosmetologia, estética cor-poral, estética facial etc. Essas expressões di-zem respeito à beleza física e abrangem desdeum bom corte de cabelo e maquilagem bem-feita a cuidados mais intensos como ginásti-ca, tratamentos à base de cremes, massagens,chegando, às vezes, à cirurgia plástica. Encon-tramos ainda expressões como: senso estéti-co, arranjo de flores estético ou decoração es-tética. Nelas também está presente a relaçãocom a beleza ou, pelo menos, com o agradá-vel; mas aqui a palavra estética é usada comoadjetivo, isto é, como qualidade.

Se continuarmos a procurar, saindo ago-ra do uso comum e entrando no campo dasartes, encontraremos expressões como: estéti-ca renascentista, estética realista, estética so-cialista etc. Nesses casos, a palavra estética,usada como substantivo, designa um conjun-to de características formais que a arte assu-me em determinado período e que poderia,também, ser chamado de estilo.

Resta, ainda, outro significado, mais es-pecífico, usado no campo da filosofia. Sob onome estética enquadramos um ramo da filo-

sofia que estuda racionalmente o belo e o sen-timento que suscita nos homens1.

Assim, tradicionalmente, mesmo em fi-losofia, a estética aparece ligada à noção debeleza. E é exatamente por causa dessa liga-ção que a arte vai ocupar um lugar privilegia-do na reflexão estética, pois, durante muitotempo, ela foi considerada como tendo porfunção primordial exprimir a beleza de modosensível.

2. Etimologia da palavraestética

Etimologicamente, a palavra estéticavem do grego aisthesis, com o significado de"faculdade de sentir", "compreensão pelossentidos", "percepção totalizante". A ligaçãoda estética com a arte é ainda mais estreita sese considera que o objeto artístico é aqueleque se oferece ao sentimento e à percepção.Por isso podemos compreender que, enquan-to disciplina filosófica, a estética tenha tam-bém se voltado para as teorias da criação epercepção artísticas.

Dicionnaire de Ia philosophie, Paris, Larousse, 1982, p. 91.

CAPÍTULO 37ESTÉTICA:

INTRODUÇÃOCONCEITUÁL

341

3. O belo e o feio: a questão dogosto

O que é a beleza? Será possível defini-la objetivamente ou será uma noção eminen-temente subjetiva, isto é, que depende decada um?

De Platão ao classicismo, os filósofostentaram fundamentar a objetividade da arte eda beleza. Para Platão, a beleza é a única idéiaque resplandece no mundo. Se, por um lado,ele reconhece o caráter sensível do belo, poroutro continua a afirmar a sua essência ideal,objetiva. Somos, assim, obrigados a admitir aexistência do "belo em si" independente dasobras individuais que, na medida do possível,devem se aproximar desse ideal universal.

O classicismo vai ainda mais longe, poisdeduz regras para o fazer artístico a partir des-se belo ideal, fundando a estética normativa.É o objeto que passa a ter qualidades que otornam mais ou menos agradável, indepen-dente do sujeito que as percebe.

Do outro lado da polêmica, temos os fi-lósofos empiristas, como David Hume, querelativizam a beleza ao gosto de cada um.Aquilo que depende do gosto e da opinião pes-soal não pode ser discutido racionalmente, don-de o ditado: "Gosto não se discute". O belo,portanto, não está mais no objeto, mas nas con-dições de recepção do sujeito (ver os conceitosde subjetivo e objetivo no Vocabulário).

Kant, numa tentativa de superação des-sa dualidade objetividade-subjetividade, afir-ma que o belo é "aquilo que agrada universal-mente, ainda que não se possa justificá-lo in-telectualmente". Para ele, o objeto belo é umaocasião de prazer, cuja causa reside no sujei-to. O princípio do juízo estético, portanto, é osentimento do sujeito e não o conceito do ob-jeto. No entanto, há a possibilidade de univer-salização desse juízo subjetivo porque as con-dições subjetivas da faculdade de julgar sãoas mesmas em todos os homens. Belo, portan-to, é uma qualidade que atribuímos aos obje-tos para exprimir um certo estado da nossasubjetividade. Sendo assim, não há uma idéiade belo nem pode haver regras para produzi-lo. Há objetos belos, modelos exemplares einimitáveis (ver o item Criticismo Kantianona Terceira Parte do Capítulo 10).

Hegel, em seguida, introduz o conceitode história. A beleza muda de face e de aspec-to através dos tempos. Essa mudança (devir),

que se reflete na arte, depende mais da culturae da visão de mundo vigentes do que de umaexigência interna do belo.

Hoje em dia, de uma perspectiva feno-menológica, consideramos o belo como umaqualidade de certos objetos singulares que nossão dados à percepção. Beleza é, também, aimanência total de um sentido ao sensível. Oobjeto é belo porque realiza o seu destino, éautêntico, é verdadeiramente segundo o seumodo de ser, isto é, é um objeto singular, sen-sível, que carrega um significado que só podeser percebido na experiência estética. Nãoexiste mais a idéia de um único valor estéticoa partir do qual julgamos todas as obras. Cadaobjeto singular estabelece seu próprio tipo debeleza.

O problema do feio está implícito nascolocações que são feitas sobre o belo. Porprincípio, o feio não pode ser objeto da arte.No entanto, podemos distinguir, de imediato,dois modos de representação do feio: a repre-sentação do assunto "feio" e a forma de repre-sentação feia. No primeiro caso, embora o as-sunto "feio" tenha sido banido do territórioartístico durante séculos (pelo menos desde aAntiguidade grega até a época medieval), noséculo XIX ele vem a ser reabilitado.

No momento em que a arte rompe coma idéia de ser "cópia do real" para ser conside-rada criação autônoma que tem por função re-velar as possibilidades do real, ela passa a seravaliada de acordo com a autenticidade da suaproposta e com sua capacidade de falar aosentimento (ver Capítulo 38 — Arte como for-ma de pensamento). O problema do belo e dofeio é deslocado do assunto para o modo derepresentação. E só haverá obras feias na me-dida em que forem malfeitas, isto é, que nãocorresponderem plenamente à sua proposta.Em outras palavras, quando houver uma obrafeia — neste último sentido —, não haveráuma obra de arte.

Antes de seguirmos adiante, queremoslembrar que o próprio conceito de gosto nãodeve ser encarado como uma preferência ar-bitrária e imperiosa da nossa subjetividade. Asubjetividade assim entendida refere-se maisa si mesma do que ao mundo dentro do qualela se forma, e esse tipo de julgamento estéti-co decide o que nós preferimos em virtude doque somos. Nós passamos a ser a medida ab-soluta de tudo, e essa atitude só pode levar aodogmatismo e ao preconceito. A subjetivida-

342

de em relação ao objeto estético precisa estarmais interessada em conhecer, entregando-seàs particularidades de cada objeto, do que empreferir. Nesse sentido, ter gosto é ter capaci-dade de julgamento sem preconceitos. É aprópria presença da obra de arte que forma ogosto: torna-nos disponíveis, reprime as par-ticularidades da subjetividade, converte o par-ticular em universal. A obra de arte "convidaa subjetividade a se constituir como olharpuro, livre abertura para o objeto, e o conteú-do particular a se pôr a serviço da compreen-são em lugar de ofuscá-la fazendo prevaleceras suas inclinações. A medida que o sujeitoexerce a aptidão de se abrir, desenvolve a ap-tidão de compreender, de penetrar no mundoaberto pela obra. Gosto é, finalmente, comu-nicação com a obra para além de todo saber ede toda técnica. O poder de fazer justiça aoobjeto estético é a via da universalidade dojulgamento do gosto"2.

4. A recepção estética

Outro assunto que ainda precisamosabordar diz respeito à atitude que propicia aexperiência estética em face de uma obra dearte3. Costuma-se dizer que a experiência es-

tética, ou a experiência do belo, é gratuita, édesinteressada, ou seja, não visa um interesseprático imediato. Só nesse sentido podemosentender a gratuidade dessa experiência, e ja-mais como inutilidade, uma vez que ela res-ponde a uma necessidade humana e social. Aexperiência estética não visa o conhecimentológico, medido em termos de verdade; nãovisa a ação imediata e não pode ser julgadaem termos de utilidade para determinado fim.

A experiência estética é a experiência dapresença tanto do objeto estético como do su-jeito que o percebe.

A obra de arte, como já dissemos, pedeuma recepção que lhe faça justiça, que se abrapara ela, sem lhe impor normas externas. Essarecepção tem por finalidade o desvelamentoconstituinte do objeto, através de um senti-mento que o acolhe e que lhe é solidário. Aobra de arte espera que o público "jogue o seujogo", isto é, entre no seu mundo, de acordocom as regras ditadas pela própria obra paraque seus múltiplos sentidos possam aparecer.

O espectador, através do seu acolhimen-to, atualiza as possibilidades de significado daarte e testemunha o surgimento de algumassignificações contidas na obra. Outros a ve-rão, e outros significados surgirão. Todosigualmente verdadeiros.

Exercícios

1. Levante as principais idéias do texto básico.

2. Como Kant supera a dualidade objetivo-subjetivo?

3. Qual é a importância do conceito de histó-ria introduzido por Hegel?

4. Como se coloca o problema do belo doponto de vista da fenomenologia?

5. Por que não há obra de arte quando o modode representação é feio?

6. O que é ter gosto? Explique com suas palavras.

7. Quais são as principais características daexperiência estética?

8. Discuta: "A experiência estética tem por fi-nalidade o desvelamento constituinte da obra de arte".

9. Leia os textos seguintes e explique-oscom suas palavras, indicando a corrente a que per-tencem:

"A perfeição final de toda arte é reproduzir,não as coisas que vemos, pois estas estão sujeitas aerros e imperfeições, mas uma natureza idealmentebela, de acordo com os princípios da verdadeira be-leza, presentes na própria natureza." (Quatremèrede Quincy)

A beleza envolve "integridade e perfeição,uma vez que as coisas defeituosas são, por issomesmo, feias; proporção adequada ou harmonia; e,por último, brilho ou claridade, donde as coisasbonitas têm cores brilhantes". (Santo Tomás deAquino)

M. Dufrenne, Phénoménologie de Vexpérience esthétique, p. 100.Não estamos nos referindo à experiência estética perante fenômenos da natureza, uma vez que, neste livro, o que

realmente nos interessa discutir é a experiência da arte.

343

10. Explique, com suas palavras, o queDufrenne quer dizer: A obra de arte "convida a sub-jetividade a se constituir como olhar puro, livreabertura para o objeto, e o conteúdo particular a sepôr a serviço da compreensão em lugar de ofuscá-la fazendo prevalecer as suas inclinações. A medi-da que o sujeito exerce a aptidão de se abrir, desen-volve a aptidão de compreender, de penetrar nomundo aberto pela obra".

Depois de ler o texto complementar, respondaàs questões 11 a 14.

11. A partir do texto base, discuta o queSchiller quer dizer com "falso gosto".

12. O que se entende por "liberdade estética"?Compare com a posição fenomenológica e faça asua síntese.

13. Qual a importância da educação da sensi-bilidade?

14. Qual o papel que a disciplina EducaçãoArtística deve desempenhar na formação do estu-dante?

Texto complementar

Carta XXDiscutindo o estado estético, Schiller esclarece, na Carta XX, dirigida ao príncipe

Augustenburg:

Para leitores que não estejam familiarizados com a significação deste termo tão mal-emprega-do pela ignorância, sirva de explicação o seguinte. Todas as coisas que de algum modo possamocorrer no fenômeno são pensáveis sob quatro relações diferentes. Uma coisa pode referir-se imedia-tamente a nosso estado sensível (nossa existência e bem-estar): esta é a sua índole física. Ela pode,também, referir-se a nosso entendimento, possibilitando-nos conhecimento: esta é sua índole lógica.Ela pode, ainda, referir-se a nossa vontade e ser considerada como objeto de escolha para um serracional: esta é sua índole moral. Ou, finalmente, ela pode referir-se ao todo de nossas diversasfaculdades sem ser objeto determinado para nenhuma isolada dentre elas: esta é sua índole estética.Um homem pode ser-nos agradável por sua solicitude; pode, pelo diálogo, dar-nos o que pensar;pode incutir respeito pelo seu caráter; enfim, independentemente disso tudo e sem que tomemos emconsideração alguma lei ou fim, ele pode aprazer-nos na mera contemplação e apenas por seu modode aparecer. Nesta última qualidade, julgamo-lo esteticamente. Existe, assim, uma educação para asaúde, uma educação do pensamento, uma educação para a moralidade, uma educação para o gostoe a beleza. Esta tem por fim desenvolver em máxima harmonia o todo de nossas faculdades sensíveise espirituais. Para contrariar a corriqueira sedução de um falso gosto, fortalecido também por falsosraciocínios segundo os quais o conceito do estético comporta o do arbitrário, observo ainda uma vez(embora estas cartas sobre a educação estética de nada mais se ocupem além da refutação deste erro)que a mente no estado estético, embora livre, e livre no mais alto grau, de qualquer coerção, de modoalgum age livre de leis; e acrescento que a liberdade estética se distingue da necessidade lógica nopensamento e da necessidade moral no querer, apenas pelo fato de que as leis segundo as quais amente procede ali não são representadas e, como não encontram resistência, não aparecem comoconstrangimento.

(Friedrich Schiller, A educação estética do homem. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 107.)

344

Entender a idéia de uma obra de arte é mais como ter uma nova experiência do que como admitir umanova proposição.

(Suzanne Langer)

1. Arte é conhecimento intuitivo do mundo

Assim como o mito e a ciência são mo-dos de organização da experiência humana —o primeiro baseado na emoção e o segundo narazão —, também a arte vai aparecer no mun-do humano como forma de organização, comomodo de transformar a experiência vivida emobjeto de conhecimento, desta vez através dosentimento (ver Capítulos 6 e 11).

O entendimento do mundo, como já vi-mos no caso do mito, não se dá somente pormeio de conceitos logicamente organizadosque, pelo fato de serem abstrações genéricas,estão longe do dado sensorial, do momentovivido. Ele também pode se dar através daintuição1, do conhecimento imediato da for-ma concreta e individual, que não fala à ra-zão, mas ao sentimento e à imaginação.

E a arte é um caso privilegiado de en-tendimento intuitivo do mundo, tanto para oartista que cria obras concretas e singularesquanto para o apreciador que se entrega a elaspara penetrar-lhes o sentido.

O verdadeiro artista intui a formaorganizadora dos objetos ou eventos sobre osquais focaliza sua atenção. Ele vê, ou ouve, o

O grito, de Edvard Munch, 1895, serigrafia. Obraexpressionista, revela, no uso do branco e preto,na simplicidade dos traços do desenho, nas vá-rias direções das linhas que compõem o fundo,na expressão do rosto e na posição das mãos,uma maneira de ver o mundo que pode ser com-preendida intuitiva e imediatamente.

1 Intuição: enquanto conhecimento imediato, pode ser empírica, quando diz respeito a um objeto do mundo; e racional,quando diz respeito à relação imediata entre duas idéias. Toda intuição tem caráter de descoberta, seja de um objeto, de umanova idéia ou de um sentimento. (Ver Capítulo 3 — O que é conhecimento.)

CAPÍTULO 38ARTE COMOFORMA DE

PENSAMENTO

345

que está por trás da aparência exterior domundo. Por exemplo, no filme Amadeus, deMilos Forman (prêmio Oscar de 1985), háuma cena que mostra didaticamente esse pro-cesso. A sogra de Mozart, emocionada e mui-to irritada, conta ao compositor por que a fi-lha dela o abandonou. Mozart, que a princípiorealmente procurava uma resposta para essaquestão, lentamente deixa de prestar atençãoàs palavras para sintonizar com a melodia e rit-mo do discurso. Ele ouve a musicalidade portrás do discurso inflamado e compõe uma áriapara A flauta mágica. Assim, como todo artis-ta, Mozart percebe, pelo poder seletivo e inter-pretativo dos seus sentidos, formas que nãopodem ser nomeadas, que não podem ser redu-zidas a um discurso verbal explicativo, poiselas precisam ser sentidas, e não explicadas. Apartir dessa intuição, o artista não cria mais có-pias da natureza, mas, sim, símbolos dessamesma natureza e da vida humana.

Esses símbolos, portanto, não são enti-dades abstratas, não são entes da razão. Aocontrário, são obras de arte, objetos sensíveis,concretos, individuais, que representam ana-logicamente, ou seja, por semelhança de for-ma, a experiência vital intuída pelo artista.Assim, a tela de Mondrian intitulada NewYork não reproduz figurativamente, iconica-mente, a cidade, mas representa analogica-mente a vivência do artista em relação a ela. Eessa apreensão do concreto, do imediato, dovivido, é transportada para uma outra obraque, ela também, é um objeto concreto para oespectador. Assim, quando apreciamos umaobra de arte, fazemo-lo através dos nossos sen-tidos: visão, audição, tato, cinestesia e, se aobra for ambiental, até o olfato. É a partir dessapercepção sensível que podemos intuir avivência que o artista expressou em sua obra,uma visão nova, uma interpretação nova da na-tureza e da vida. O artista atribui significadosao mundo por meio da sua obra. O espectadorlê esses significados nela depositados. Essa "in-terpretação só é possível em termos de intuiçãoe não de conceitos, em termos de forma sensí-vel e não de signos abstratos"2. Podemos dizer,então, que na obra de arte o importante não é otema em si, mas o tratamento que se dá ao

tema, que o transforma em símbolo de valoresde uma determinada época.

A luz, a cor, o volume, o peso, o espaço,enquanto dados sensíveis, não são experimen-tados da mesma maneira na vida do dia-a-dia ena arte. No cotidiano, usamos esses dados paraconstruir, através do pensamento lógico, o nos-so conceito de mundo físico. Em arte, essesmesmos dados são usados para alargar o hori-zonte de nossa experiência sensível. Por exem-plo, pelo uso incomum de cores ou sons, pelaorganização inusitada de um espaço, pela tex-tura ou forma dada a um material, a nossa pró-pria perspectiva da realidade é alterada. O ar-tista não copia o que é; antes cria o que poderiaser e, com isso, abre as portas da imaginação.

O papel da imaginação na arte

É exatamente a imaginação que vai ser-vir de mediadora entre o vivido e o pensado,entre a presença bruta do objeto e a represen-tação, entre a acolhida dada pelo corpo (osórgãos dos sentidos) e a ordenação do espírito(pensamento analógico).

A imaginação, ao tornar o mundo pre-sente em imagens, nos faz pensar. Saltamosdessas imagens para outras semelhantes, fa-zendo uma síntese criativa. O mundo imagi-nário assim criado não é irreal. É, antes, pré-real, isto é, antecede o real porque aponta suaspossibilidades em vez de fixá-lo numa formacristalizada. Assim, a imaginação alarga ocampo do real percebido, preenchendo-o deoutros sentidos3.

Arte e sentimento

Na experiência estética, a imaginaçãomanifesta, ainda, o acordo entre a natureza eo sujeito, numa espécie de comunhão cuja viade acesso é o sentimento. O sentimento aco-lhe o objeto, reunindo as potencialidades doeu numa imagem singular. É toda nossa perso-nalidade que está em jogo, e o sentimento des-pertado não é o sentimento de uma obra, masde um mundo que se descortina em toda suaprofundidade, no momento em que extraímoso objeto do seu contexto natural e o ligamos a

2 E. Cassirer, Symbol, myth and culture, p. 175.3 Não podemos esquecer da origem da palavra sentido, como particípio passado do verbo sentir. O problema do signi-

ficado, portanto, passa pelo sentido, tanto do ponto de vista sensorial quanto do ponto de vista emocional.

346.

um horizonte interior. Este sentimento, por-tanto, "não é emoção, é conhecimento"4.

Estabeleçamos as diferenças entre senti-mento e emoção. O termo emoção, etimologi-camente, refere-se a agitação física ou psicoló-gica e é reservado para os níveis profundos deagitação. Ela rompe a estabilidade afetiva. As-sim, emoção designa um estado psicológicoque envolve profunda agitação afetiva.

O sentimento, por outro lado, é uma rea-ção cognitiva, de reconhecimento de certas es-truturas do mundo, cujos critérios não sãoexplicitados. É percepção das tensões dirigidas,comunicadas e expressas pelos aspectos estáti-cos e dinâmicos da forma, tamanho, tonalidadeou altura. Essas tensões são tão perceptíveisquanto o espaço ou a quantidade.

Podemos, então, dizer que o sentimentoesclarece o que motiva a emoção, na medidaem que são essas tensões percebidas que cau-sam a agitação psicológica.

A emoção é uma resposta, é uma ma-neira de lidarmos com o sentimento. A ale-gria expressa pelo riso, por exemplo, é o modopelo qual lidamos com o sentimento do cômi-co; o medo é uma resposta ao sentimento deameaça. Assim, o sentimento é conhecimentoporque esclarece o que motiva a emoção; esseconhecimento é sentimento porque é irrefleti-do e supõe uma certa disponibilidade paraacolher o afetivo, disponibilidade para aempatia, ou seja, sentir como se estivéssemosno lugar do outro. É preciso lembrar que sem-pre podemos nos negar a essa disponibilida-de, pois ela pressupõe um certo engajamentono mundo: o objetivo não é pensá-lo, nem agirsobre ele; é, tão-somente, senti-lo na sua pro-fundidade.

O sentimento, na sua função de conhe-cimento, alcança, para além da aparência doobjeto, a expressão. A expressão é o poder deemitir signos e de exteriorizar uma interiori-dade, isto é, de manifestar o que o objeto épara si. Mas essa expressão, em arte, ocorresempre através de um meio específico. O ar-tista não escolhe o seu meio (vídeo, pintura,dança etc.) como um meio material externo eindiferente. Para ele, as palavras, as cores, aslinhas, as formas e desenhos, os sons (timbre)dos diversos instrumentos não são somente

meios materiais de produção. São condiçõesdo pensar artístico, momentos do processo decriação e parte integrante e constituinte da suaexpressão. O projeto do artista condiciona omeio e o material, que, por sua vez, condicio-nam as técnicas e o estilo. Tudo isso reunidoforma a linguagem da obra, sua marca incon-fundível, seu significado sensível. Em virtudedessa ligação indissolúvel entre significante esignificado na obra de arte é que podemos di-zer que "o objeto estético é, em primeiro lu-gar, a apoteose do sensível, e todo seu sentidoé dado no sensível"5. Assim, a obra de arte nãopode ser traduzida para outra linguagem.Quando contamos um filme a alguém (existecoisa mais chata?), ele perde a maior parte deseu significado, pois sua forma sensível deimagem desapareceu. A obra de arte pode,quando muito, inspirar uma outra, e então te-remos um filme a partir de um livro, uma mú-sica a partir de um quadro etc. São obras dife-rentes, no entanto.

2. A educação em arte

A educação em arte só pode propor umcaminho: o da convivência com as obras dearte. Aquelas que estão assim rotuladas emmuseus e galerias, as que estão em praças pú-blicas, as que estão em bancos, em repartiçõesdo governo, nas casas de amigos e conheci-dos. Também aquelas, anônimas, que encon-tramos às vezes numa vitrina, numa feira, nasmãos de um artesão. As que estão em algunscinemas, teatros, na televisão e no rádio. Asque estão nas ruas: certos edifícios, casas, jar-dins, túmulos. Passamos por muitas delas, to-dos os dias, sem vê-las. Por isso, é precisouma determinada intenção de procurá-las, depercebê-las.

Quanto mais ampla for essa convivên-cia com os tipos de arte, os estilos, as épocas eos artistas, melhor. É só através desse contatoaberto e eclético que podemos afinar a nossasensibilidade para as nuances e sutilezas decada obra, sem querer impor-lhe o nosso gos-to e os nossos padrões subjetivos, que sãomarcados historicamente pela época e pelolugar em que vivemos, bem como pela classe

4 M. Dufrenne, Phénoménologie de I' expérience esthétique, p. 471.5 M. Dufrenne. Phénoménologie de I' expérience esthétique, p. 425.

347

social a que pertencemos. "Lembraremos, ain-da, que é na freqüentação da obra que a inter-subjetividade pode se dar. É através dela quepodemos 'encontrar' com o autor, sua época etambém com nossos semelhantes. É pelas ve-redas não-racionais da arte que a freqüentaçãopermite descobrir e percorrer, que nos 'sintoni-zamos' com o outro, numa relação particularque a vida cotidiana desconhece. Terreno daintersubjetividade, a arte nos une, servindo delugar de encontro, de comunhão intuitiva; elanão nos coloca de acordo: ela nos irmana."6

Em seguida, precisamos aprender a sen-tir. Em nossa sociedade, dada a importânciaatribuída à racionalidade e à palavra, não éraro tentarmos, sempre, enquadrar a arte den-tro desse tipo de perspectiva. Assumimos, en-tão, tal distância da obra que não é possívelrecebê-la através do sentimento. Por outrolado, o sentimento, como já dissemos, não é aemoção descabelada. Chorar ao assistir a umdrama ou ao ouvir uma música não é sinal deque estejamos acolhendo a obra através dosentimento. Podemos estar fazendo umacatarse das nossas emoções. No sentimento,ao contrário, a emoção é despida de seu con-teúdo material e elevada a um outro estado:

retirado o peso da paixão, permanecem o mo-vimento e as oscilações do sentir em comu-nhão com o objeto.

Finalmente, já fora da experiência esté-tica, podemos chegar ao nível da recepção crí-tica, da análise intelectual da obra, do julga-mento do seu valor, que é o trabalho do criti-co e do historiador da arte. Para essa tarefa, sóa convivência com a obra não basta. É neces-sário o conhecimento histórico dos estilos, dalinguagem de cada arte, além de um profundoconhecimento da cultura que gerou cada obra.

Concluindo, a arte não pode jamais sera conceitualização abstrata do mundo. Ela épercepção da realidade na medida em que criaformas sensíveis que interpretam o mundo,proporcionando o conhecimento por familia-ridade com a experiência afetiva. Esse modode apreensão do real alcança seus aspectosmais profundos, que pela sua própria imedia-ticidade não podem ser apresentados de outraforma. A partir dessas idéias, podemos com-preender a epígrafe do capítulo:

"Entender a idéia de uma obra de arte émais como ter uma nova experiência do quecomo admitir uma nova proposição."7

Exercícios

1. Levante as idéias principais do texto base.

2. Por que a arte é um caso privilegiado doentendimento intuitivo do mundo?

3. Explique por que o artista cria símbolos enão cópias da natureza a partir da sua intuição.

4. O que caracteriza esses símbolos?

5. Qual é a diferença entre sentimento e emo-ção? Qual deles é a via de acesso ao acordo entrenatureza e sujeito?

6. Como se dá a expressão em arte?

7. Por que é importante a convivência com asobras de arte?

Leia o texto complementar e responda àsquestões 8 a 11.

8. O que o autor quer dizer com a frase: "Umartista só pode exprimir a experiência daquilo queseu tempo e suas condições sociais têm para ofere-cer".

9. Como você relaciona essa afirmação com ofato de o artista não mostrar o que o mundo é, maso que ele pode ser?

10. Como ele pode manter a relação dialéticaentre "realidade humana individual e coletiva, sin-gular e universal"?

11. Em que sentido a sociedade precisa do ar-tista?

6 J. Coli, O que é arte, p. 126.7 S. K. Langer, Sentimento e forma, p. 259.

348

Texto complementar

Arte e sociedade... Um artista só pode exprimir a experiência daquilo que seu tempo e suas condições sociais

têm para oferecer. Por essa razão, a subjetividade de um artista não consiste em que a sua experiên-cia seja fundamentalmente diversa da dos outros homens de seu tempo e de sua classe, mas consisteem que ela seja mais forte, mais consciente e mais concentrada. A experiência do artista precisaapreender as novas relações sociais de maneira a fazer que outros também venham a tomar consciên-cia delas; ela precisa dizer hic tua res agitur. Mesmo o mais subjetivo dos artistas trabalha em favorda sociedade. Pelo simples fato de descrever sentimentos, relações e condições que não haviam sidodescritos anteriormente, ele canaliza-os do seu "Eu" aparentemente isolado para um "Nós"; e este"Nós" pode ser reconhecido até na subjetividade transbordante da personalidade de um artista. Esseprocesso, todavia, nunca é um retorno à primitiva coletividade do passado; ao contrário, representaum impulso na direção de uma nova comunidade cheia de diferenças e tensões, na qual a voz indivi-dual não se perde numa vasta unissonância. Em todo autêntico trabalho de arte, a divisão da realida-de humana em individual e coletiva, em singular e universal, é interrompida; porém é mantida comofator a ser incorporado em uma unidade recriada.

Só a arte pode fazer todas essas coisas. A arte pode elevar o homem de um estado de fragmen-tação a um estado de ser íntegro, total. A arte capacita o homem para compreender a realidade e oajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação de torná-la maishumana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade social. A socie-dade precisa do artista, este supremo feiticeiro, e tem o direito de pedir-lhe que ele seja consciente desua função social. Tal direito nunca foi discutido numa sociedade em ascensão, ao contrário do queocorre nas sociedades em decadência. A ambição do artista que se apoderou das idéias e experiênciasdo seu tempo tem sido sempre não só de representar a realidade como a de plasmá-la. O Moisés deMichelangelo não era só a imagem artística do homem do Renascimento, a corporificação em pedrade uma nova personalidade consciente de si mesma. Era também um mandamento em pedra dirigidoaos contemporâneos de Miguel Ângelo e a seus dirigentes: "É assim que vocês precisam ser. Aépoca em que vivemos o exige. O mundo a cujo nascimento presenciamos o requer".

(E. Fischer, A necessidade da arte, p. 56-57.)

349

A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente a mesma. A função da arte, numa sociedade emque a luta de classes se aguça, difere, em muitos aspectos, da função original da arte. No entanto, a despeitodas situações sociais diferentes, há alguma coisa na arte que expressa uma verdade permanente. E é essa coisaque nos possibilita — nós, que vivemos no século XX — o comovermo-nos com as pinturas pré-históricas dascavernas e com antiqüíssimas canções.

(Ernst Fischer)

As obras de arte, desde a Antigüidadeaté hoje, nem sempre tiveram a mesma fun-ção. Ora serviram para contar uma história,ora para rememorar um acontecimento impor-tante, ora para despertar o sentimento religio-so ou cívico. Foi só neste século que a obra dearte passou a ser considerada um objetodesvinculado desses interesses não-artísticos,um objeto propiciador de uma experiência es-tética por seus valores intrínsecos.

Assim, dependendo do propósito e dotipo de interesse com que alguém se aproximade uma obra de arte, podemos distinguir trêsfunções principais para a arte.

1. Função pragmática ouutilitária

A arte serve ou é útil para se alcançarum fim não-artístico, isto é, ela não é valori-zada por si mesma, mas só como meio de sealcançar uma outra finalidade. Esses fins não-artísticos variam muito no curso da história.Na Idade Média, por exemplo, na medida emque a maior parte da população dos feudos eraanalfabeta, a arte serviu para ensinar os prin-cipais preceitos da religião católica e para re-latar as histórias bíblicas. Esta é uma finalida-de pedagógica da arte.

Na época da Contra-Reforma, a arte bar-roca foi muito utilizada para emocionar os

fiéis, mostrando-lhes a grandeza e a riquezado reino do céu, numa tentativa de segurar osfiéis dentro da religião católica, ameaçadapela Reforma protestante. Na medida em queos argumentos racionais não conseguiam semanter de pé diante das críticas dos protestan-tes, a via que restava para a Igreja católica eraa emocional. Esse é um exemplo da arte sen-do usada para finalidades religiosas.

No nosso século, o "realismo socialista"tem por finalidade retratar a melhoria das con-dições de vida do trabalhador e as principaisfiguras da revolução socialista como um meiopara despertar o sentimento cívico e mantera lealdade da população. A própria arte en-gajada, que floresceu entre nós no final da dé-cada de 50 e início da década de 60, pretendiaconscientizar a população sobre sua situaçãosocioeconômica.

Portanto, as finalidades a serviço dasquais a arte pode estar podem ser pedagógi-cas, religiosas, políticas ou sociais.

Nessa perspectiva, quais seriam os cri-térios para se avaliar uma obra de arte? Essescritérios também vão ser exteriores à obra: ocritério moral do valor da finalidade a que ser-ve (se a finalidade for boa, a obra é boa); e ocritério de eficácia da obra em relação à fina-lidade (se o fim for atingido, a obra é boa).

Como vemos, em nenhum momento,dentro desse tipo de interesse, a obra é enca-rada do ponto de vista estético.

FUNÇÕESDA ARTE

CAPÍTULO 39

350

2. Função naturalista

Refere-se aos interesses pelo conteúdo daobra, ou seja, pelo que a obra retrata, em detri-mento da sua forma ou modo de apresentação.

A obra é encarada como um espelho,que reflete a realidade e nos remete direta-mente a ela. Em outras palavras, a obra temfunção referencial de nos enviar para fora domundo artístico, para o mundo dos objetos re-tratados. Assim, uma escultura de D. Pedro I,por exemplo, serviria, dentro dessa perspecti-va, para nos remeter ao homem e ao político,ao que ele representou num determinado mo-mento histórico brasileiro. Deixaríamos emsegundo plano a leitura propriamente dita daescultura, isto é, valores como qualidade téc-nica, expressividade, criatividade etc, pois onosso interesse estaria voltado somente parao assunto tratado.

Essa atitude perante a arte surge bastan-te cedo. Como veremos no Capítulo 41 (Con-cepções estéticas), ela aparece na Grécia, noséculo V a.C, nas esculturas e pinturas que"imitam" ou "copiam" a realidade. Essa ten-dência caracterizou a arte ocidental até mea-dos do século XIX, quando surgiu a fotogra-fia. A partir de então, a função da arte, espe-cialmente da pintura, teve de ser repensada ehouve uma ruptura do naturalismo.

Os critérios de avaliação de uma obra dearte do ponto de vista da função naturalistasão: a correção da representação (se é o as-sunto que nos interessa, deve ser representadocorretamente para que possamos identificá-lo); a inteireza, ou seja, a qualidade de ser in-teiro, íntegro (o assunto deve ser representadopor inteiro); e o vigor, que confere um poder depersuasão (especialmente se a situação repre-sentada for imaginária). Como exemplo desteúltimo, temos a figura do E.T., no filme demesmo nome. Ele foi representado com tama-nho vigor que ficamos convencidos da possibi-lidade de sua existência, enternecemo-nos comsuas aventuras e torcemos por ele até o final.

3. Função formalista

Finalmente, temos o interesse forma-lista, que, como o próprio nome indica,preocupa-se com a forma de apresentação daobra, forma esta que, como já vimos no Capí-tulo 38 (Arte como forma de pensamento),

contribui decisivamente para o significado daobra de arte. Este, portanto, é o único dos in-teresses que se ocupa da arte enquanto tal epor motivos que não são estranhos ao âmbitoartístico.

Desse ponto de vista vamos buscar, emcada obra, os princípios que regem sua orga-nização interna: que elementos entraram emsua composição e que relações existem entreeles. Não importa o tipo de obra analisado:pictórico, escultórico, arquitetônico, musical,teatral, cinematográfico etc. Todos compor-tam uma estruturação interna de signos sele-cionados a partir de um código específico.

Há, nessa função, uma valorização daexperiência estética como um momento emque, pela percepção e pela intuição, temosuma consciência intensificada do mundo.Embora a experiência estética propicie o co-nhecimento do que nos rodeia, este conheci-mento não pode ser formulado em termos teó-ricos porque ele é imediato, concreto e sensí-vel (ver Capítulo 38 — Arte como forma depensamento).

O critério através do qual uma obra dearte será avaliada, dentro da perspectivaformalista, é sua capacidade de sustentar acontemplação estética de um público cuja sen-sibilidade seja educada e madura, isto é, queconheça vários códigos e esteja disponívelpara encontrar na própria obra suas regras deorganização.

Como exemplo, para ilustrar essa fun-ção, vamos analisar um samba da bossa nova,Samba de uma nota só, de Antônio CarlosJobim e Newton Mendonça, gravado por JoãoGilberto.

Samba de uma nota só

1 Eis aqui este sambinha2 Feito numa nota só3 Outras notas vão entrar4 Mas a base é uma só5 Esta outra é conseqüência6 Do que acabo de dizer7 Como eu sou a conseqüência8 Inevitável de você.9 Muita gente existe por aí

10 Que fala, fala e não diz nada, ou quasenada

11 Já me utilizei de toda a escala12 E no final não sobrou nada, não deu em

nada13 E voltei pra minha nota

351

14 Como eu volto pra você15 Vou mostrar com a minha nota16 Como eu gosto de você17 Quem quiser todas as notas — ré, mi, fá,

sol, lá, si, dó18 Fica sempre sem nenhuma. Fique numa

nota só.

Em primeiro lugar, precisamos estabe-lecer o quadro de referências a partir do qualvamos proceder à análise, quadro este que édado pela própria obra.

É uma canção, com música e letra. Éuma composição musical popular, portantourbana, de fácil entendimento, inserida noprocesso de comunicação de massa. É músicada classe média do Rio de Janeiro, com ideo-logia pequeno-burguesa, individualista, sempreocupações sociais. Pertence à bossa nova,cujas propostas principais são:

• fazer uma renovação na MPB a partirda incorporação de elementos do jazz, como aimprovisação, os acordes dissonantes;

• ser música camerística (ao contrário domodelo operístico), intimista, para pequenosambientes;

• usar uma batida diferente do sambatradicional;

• integrar harmonia-ritmo-melodia econtraponto (a melodia não é conduzida peloritmo);

• integrar voz, instrumento e arranjo, deforma que um complete o outro, enriquecen-do o resultado final.

Assim, o primeiro aspecto que notamosno Samba de uma nota só é que letra e músicaestão estreitamente ligadas, uma comentandoou ilustrando os procedimentos da outra. Paraentender isso, é preciso ouvi-lo. Durante osprimeiros quatro versos, a música acompanhaa idéia de ser feita sobre uma nota só. Os ver-sos 5 e 6 são acompanhados de uma mudança,e os versos 7 e 8 voltam para a nota base, rela-cionando a complementaridade das notas com

a complementaridade dos participantes deuma relação amorosa (eu e você) e introdu-zindo o aspecto individualista.

A melodia que acompanha os quatroversos seguintes (9, 10, 11 e 12) utiliza toda aescala musical, fazendo um contraponto aoresto da composição, ao mesmo tempo queilustra a letra. Não é a variedade de notas uti-lizadas em uma composição que lhe conferevalor estético.

Em seguida, como dizem os versos 13,14, 15 e 16, volta-se à nota base, introduzin-do-se outra vez o tema amoroso.

Por meio da analogia entre as notas e osamores, os versos finais e o fim da melodiavoltam a repetir os mesmos procedimentos jámostrados. O segundo aspecto que esta análi-se evidencia é que, ao comentar e ilustrar osprocedimentos da leitura musical, a composi-ção esclarece alguns dos próprios princípiosda bossa nova que, na época, vinham sendocriticados por fugirem dos padrões de sambaaceitos até então.

A interpretação de João Gilberto é per-feita: afinada, contida, clara, transmitindo asnuances emocionais sem exageros. O próprioamor aí cantado é declarado de forma simples,sem os arroubos característicos do samba-can-ção. Podemos assim perceber que a obra apre-senta uma unidade orgânica (entre forma mu-sical e letra) perceptível ao ouvido treinado,que se encanta ao deparar com ela.

É apenas do ponto de vista didático quepodemos separar as funções da arte. Na ver-dade, elas podem se apresentar juntas. Às ve-zes, para que uma obra tenha finalidade peda-gógica, por exemplo, ela precisa ter funçãonaturalista. Outras vezes é o estético que sesobrepõe às outras funções. Assim, é o modocomo nos aproximamos de qualquer obra dearte que vai determinar a função da obra na-quele momento. Em si, todas as obras que sãoverdadeiramente de arte necessariamente sãocapazes de sustentar a contemplação estéticade um observador sensível e treinado.

Exercícios

1. De que depende a função que a obra de artetem em cada época ou sociedade?

2. Como a arte é encarada do ponto de vistada função pragmática?

3. Dê exemplos dos tipos de fins a que a artepode servir.

4. Quais são os critérios de avaliação da obrade arte na perspectiva pragmática?

352

5. Que tipo de interesse pela arte surge na fun-ção naturalista?

6. Quais são os critérios de avaliação da obrade arte na perspectiva naturalista?

7. Como a arte é encarada do ponto de vistada função formalista?

8. Quais são os critérios de avaliação da obrade arte na perspectiva formalista?

9. Identifique a função da arte e justifique:

a) "Quero ficar no seu corpofeito bailarinaQue logo se alucinasalta, se iluminaquando a noite vem."

(Chico Buarque)

b) A foto de uma pessoa querida.c) Um filme histórico, como Reds, usado na

aula de história para ilustrar a Revoluçãode 1917.

d) "A arte bizantina, sobretudo a pinturabizantina, era uma arte não só religiosa, mas tam-

bém didática. Tinha por objetivo ensinar, por meiodos seus ícones, a religião cristã ortodoxa até aosanalfabetos." (A. Michelis)

e) "As pinturas faziam parte da técnica desteprocesso de magia; eram a 'ratoeira' em que a caçahavia de cair, ou a ratoeira com o animal já captu-rado. É que os desenhos constituíam simultanea-mente a representação e a coisa representada, eramsimultaneamente o desejo e a realização do desejo.O caçador e o pintor da era paleolítica supunhamencontrar-se na posse do próprio objeto desde quepossuíssem a sua imagem; julgavam adquirir po-der sobre o objeto por intermédio da representa-ção." (A. Hauser)

Leia o texto complementar e responda àsquestões 10 a 12.

10. De acordo com Léger, pintor francês con-temporâneo, a batalha entre o tema e o objeto refe-re-se a que funções da arte?

11. Qual é a diferença entre pintura abstrata efigurativa?

12. Qual é o papel da realidade na criação ar-tística?

Texto complementar

O novo realismo: a cor pura e o objeto

Um exemplo: se componho um quadro utilizando como objeto um fragmento de casca de árvo-re, um fragmento de asa de borboleta, é provável que não se reconheça a casca de árvore, a asa deborboleta, e que se diga: que representa isto? É um quadro abstrato, não é um quadro figurativo.

Aquilo a que se chama quadro abstrato é coisa que não existe. Não há quadros abstratos nemquadros concretos. Há quadros bons e quadros maus. Há quadros que nos comovem e quadros quenos deixam indiferentes.

Nunca se deve julgar um quadro por comparação com elementos mais ou menos naturais. Umquadro tem um valor em si próprio, como uma partitura musical, como um poema.

A realidade é infinita e muito variada. Que é a realidade? Onde começa? Onde acaba? Quedose de realidade deve existir na partitura? Impossível responder.

Outro exemplo sobre esta questão da realidade: fotografo, com muita exatidão e com uma luzmuito forte, uma unha de mulher. Esta unha, muito cuidada, é valorizada como um olho, como aboca. É um objeto que tem um valor em si.

Depois projeto a unha aumentada cem vezes e digo a uma pessoa: veja aqui, é um fragmentode um planeta em evolução; e a uma outra: é uma forma abstrata. Ficarão espantadas e entusiasma-das, acreditarão no que digo. Mas, finalmente, dir-lhes-ei: não, o que acabam de ver é a unha do dedomindinho da mão esquerda da minha mulher. Essas pessoas ir-se-ão embora vexadas, mas nuncamais farão a famosa pergunta: que representa isto?

Esta pergunta já não tem nenhuma razão de ser. O Belo está em toda a parte, no objeto, nofragmento, em formas puramente inventadas. O que é preciso é desenvolver a sensibilidade parapoder discernir o que é belo e o que não é. A inteligência, a lógica, não têm nada a ver em tudo isso.

Não se explica a arte. É coisa do domínio da sensibilidade, que pode e deve desenvolver-se. (...)

(Fernand Léger, Funções da pintura, São Paulo, Difel, s.d., p. 72.)

353

O SIGNIFICADONA ARTE

Sabemos que em literatura uma mensagem ética, política, religiosa ou mais geralmente social só temeficiência quando for reduzida à estrutura literária, à forma ordenadora. Tais mensagens são válidas comoquaisquer outras, e não podem ser proscritas; mas a sua validade depende da forma que lhes dá existênciacomo um certo tipo de objeto.

(Antônio Cândido)

Como ficou claro na Unidade I, o ho-mem está continuamente atribuindo significa-dos ao mundo. A essa atividade damos onome genérico de leitura. Assim, não lemosapenas os textos escritos, mas lemos igual-mente outros tipos de textos, não-verbais, aosquais também atribuímos significados. Já vi-mos que a arte se constitui em um texto muitoespecial, pois a atribuição de significados estápresa a sua forma sensível de apresentação e éinseparável dela.

Assim, a divisão que vamos fazer emtermos de forma e conteúdo é apenas didáticae opera um corte na unidade da obra de arte,como um bisturi que disseca corpos viventese os separa em partes para que se possa co-nhecer cada uma e, depois, apreender a rela-ção entre elas. Ao fazer isso, estamos des-truindo, em primeiro lugar, a experiência es-tética e, em segundo lugar, a Gestalt da obra,ou seja, a apreensão do conjunto, do todo,dentro do qual as partes tomam sentido.

1. A especificidade dainformação estética

Teixeira Coelho Netto, ao discutir a in-formação estética, comparando-a à semânti-ca, levanta aspectos muito interessantes1.

A informação estética, ao contrário dainformação semântica, não é necessariamentelógica. Ela pode ou não ter uma lógica seme-lhante à do senso comum ou da ciência. Elatambém não precisa ter ampla circulação, istoé, não há necessidade de que um públiconumeroso tenha acesso a ela. A informaçãoestética continua a existir mesmo dentro deum sistema de comunicação restrito, atéinterpessoal, ou mesmo quando não há ne-nhum receptor apto a recebê-la. Sabemos queisso aconteceu inúmeras vezes. Por exemplo,a informação estética contida numa tela deVan Gogh permaneceu lá, embora em suaépoca ninguém pudesse entendê-la. Outra ca-racterística da informação estética que a dife-rencia da informação semântica é o fato denão ser traduzível em outras linguagens.Quando dizemos "O tempo hoje está ruim",podemos traduzir a informação semânticacontida nessa frase para qualquer outra língua,sem perda da informação original. Quandovemos, no entanto, num filme, uma cena comtempo ruim, vemos a qualidade da cor, a for-ça do vento, da chuva ou da neve, a vegeta-ção, os ruídos ou o silêncio, a névoa, a quali-dade da luz e inúmeros outros detalhes quenos são mostrados pelas câmeras e que noscausam um determinado sentimento. Essa in-formação estética não pode ser traduzida nempara a linguagem verbal nem para qualquer

' J. T. Coelho Netto, Introdução à teoria da informação estética, p. 9-16.

354

CAPÍTULO 40

outra sem ser mutilada, isto é, sem perder par-te de sua significação.

A informação estética apresenta, ainda,um outro aspecto distintivo, que é o fato denão ser esgotável numa única leitura. Porexemplo, a informação sobre o tempo ruim sóme conta algo de novo na primeira vez em quefor dada. Ela se esgota. A informação estéticacontida em uma obra de arte, no entanto, podeser lida de várias maneiras por pessoas dife-rentes ou por uma mesma pessoa. Na primei-ra vez que lemos um livro ou ouvimos umamúsica, recebemos uma certa quantidade deinformações; numa segunda leitura ou audi-ção, podemos receber outras informações;anos mais tarde, ainda outras. Essa caracterís-tica de inesgotabilidade permite que as obrasde arte não envelheçam nem se tornem ultra-passadas. A obra de arte é aberta, no sentidode que ela própria instaura um universo bas-tante amplo de significações que vão sendocaptadas, dependendo da disponibilidade dosreceptores2.

2. A forma

Roman Jakobson, conhecido lingüista,definiu algumas características da funçãopoética da linguagem e ampliou muito a no-ção do poético. Com ele, a função poética ga-nha uma dimensão estética, podendo, assim,ser aplicada a todas as outras formas artísticasalém da poesia3.

A função poética: a transgressãodo código

A função poética da linguagem, segun-do Jakobson, caracteriza-se por estar centradasobre a própria mensagem, isto é, por chamara atenção sobre a forma de estruturação e decomposição da mensagem. A função poéticapode estar presente tanto numa propaganda,num outdoor, quanto numa poesia, numa mú-sica ou em qualquer outro tipo de obra de arte.

Mas como é que se chama a atenção paraa própria mensagem? Como vimos, no inte-resse naturalista pela arte, a atenção do espec-tador não se detém na obra, na mensagem,

mas é remetida para o contexto fora da obra.Na classificação de Jakobson, a função pre-sente seria a referencial, centrada exatamenteno contexto externo à obra. A estruturação daobra, a sua organização interna, não chama anossa atenção. Para que isso aconteça, é ne-cessário sair do habitual, daquilo a queestamos acostumados e que, por isso mesmo,nem percebemos mais. Em outras palavras,sair do esperado, o que implica transgredir ocódigo consagrado.

Composição em vermelho, amarelo e azul, dePiet Mondrian, 1921. Um dos artistas mais repre-sentativos do abstracionismo geométrico,Mondrian trabalha a superfície do quadro respei-tando suas duas dimensões (largura e altura) esem criar nenhuma ilusão de profundidade. Usapoucas cores, sempre primárias, contrastandocom o branco e com o negro das linhas que divi-dem a superfície em quadrados e retângulos. Éa partir desse trabalho em cima da forma quepodem surgir os significados da obra.

U. Eco, Obra aberta.3 R. Jakobson, Éssais de linguistique générale, p. 209-248.

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Quando o código é usado de maneiraincomum, a forma de apresentação da mensa-gem chama a nossa atenção pela sua forçapoética. Isso fica bastante claro em poesia. Aspalavras de que nos utilizamos para escreverum poema ou para nos comunicarmos no dia-a-dia são fundamentalmente as mesmas. Nafala diária, no entanto, não prestamos atençãoà forma das palavras, porque o que nos interes-sa para que a comunicação se efetive é o seuconteúdo semântico. A poesia, ao contrário,chama a nossa atenção para essa forma. Há umpoema de Carlos Drummond de Andradeintitulado "Ao Deus Kom Unik Assão"4. Semdúvida, chama a atenção. Primeiro, pela formade escrever comunicação: com a letra K, de usorestrito na língua portuguesa; com a substitui-ção do ç por dois s; com a divisão da palavraem três outras. Em seguida, notamos que deusé substantivo masculino, enquanto comunica-ção é substantivo feminino. Portanto, váriastransgressões do código num único título.

O que precisa ficar claro, no entanto, éque essas inovações e subversões do códigonão são gratuitas, não são feitas só para serengraçadas. Elas contribuem para o significa-do da obra, neste caso o poema. Assim, veja-mos: quanto à transformação do feminino emmasculino, sabemos que nossa sociedade dámais valor ao homem do que à mulher; umadeusa nunca é levada muito a sério. O poderde deus é muito mais forte também porque asreligiões ocidentais não cedem nenhum lugara deusas. Quanto ao uso da letra K, dos dois se à divisão da palavra, causam um estranha-mento, um distanciamento, remetendo a códi-gos e culturas estrangeiros. Em se tratando dedeus, remetem também a deuses e faraós(Tutancâmon etc). A divisão da palavra co-municação reflete uma divisão nas discussõessobre o próprio assunto.

A partir dessa discussão sobre a funçãopoética, que leva necessariamente à transgres-são dos códigos habituais e consagrados,podemos justificar por que, no Capítulo 4,incluímos as linguagens artísticas entre as quesão estruturadas de forma mais flexível. Seromper o código é uma característica própriada arte, nenhum código artístico pode ser in-flexível (como, por exemplo, os códigos ma-

temáticos) nem exercer força coercitiva sobrea produção dos artistas. Ou estes não seriamartistas.

O papel das vanguardas artísticas

A ênfase dada à forma da obra de arte eàs transgressões do código nos leva a examinaro papel das vanguardas artísticas. Avant-garde,em francês, é um termo militar que designa ogrupo de soldados que avança à frente da guar-da ou batalhão. Transferindo o termo para a

Escultura, de Hans Arp. A obra desse escultor,que também é pintor, se situa dentro do abstra-cionismo informal. O nome do trabalho é bas-tante indicativo: é uma escultura que não querrepresentar nada fora dela. Ela simplesmenteocupa um espaço, é um objeto tridimensionala mais no mundo, e suas formas arredondadascriam jogos de luz e sombra.

4 Carlos Drummond de Andrade, As impurezas do branco, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976, p. 3.

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área artística e cultural, também designa os des-bravadores, os que fazem o "reconhecimentodo terreno", os que ampliam o espaço da lin-guagem artística através de experimentações.É a vanguarda que rompe os estilos, que pro-põe novos usos do código. Atrás dela vêm osbatalhões, ou seja, os outros artistas, conside-rados seguidores e que formam as escolas. Nes-te momento, o que era novo, o que constituíauma transgressão do código, passa a ser, outravez, o habitual, o código consagrado.

Assim, a linguagem da vanguarda culturale artística é sempre difícil de entender. É por issoque temos certa dificuldade em compreender asobras expostas nas bienais, os filmes de arte, oteatro experimental, a música dodecafônica eassim por diante. Todas essas obras instituemum novo repertório de signos e novas regras decombinação e de uso. Leva algum tempo, e mui-ta convivência com o mundo artístico, para do-minarmos, ou seja, compreendermos os novoscódigos e as novas linguagens.

A existência das vanguardas, no entanto,é imprescindível à manutenção da fermentaçãocultural. No campo das artes não podemos falarem progresso. O conceito de progresso envolveidéias de melhoria e ultrapassagem, absoluta-mente estranhas ao mundo artístico. A arte doséculo XX não é melhor nem pior que a arte gre-ga ou renascentista. E apenas diferente, porqueresponde a questões colocadas pelo homem epela cultura atuais. Os artistas de vanguarda sãoexatamente aqueles que levantam essas questõesantes que a maior parte da sociedade as tenhapercebido e respondem-nas trabalhando a lin-guagem e a forma sensível de suas obras.

3. O conteúdo

A interpretação da obra de arte, ou seja, aatribuição de significados pelo espectador,como vimos nos Capítulos 38 e 39, se dá emvários níveis. O primeiro nível é o do sentimen-to, que já foi discutido. Sentir em uníssono coma obra, deixar que ela nos leve e enleve, seguirseu ritmo interno, é o modo próprio dedecodificação que se dá na experiência estéti-ca. Esse sentimento apresenta-se como umaunidade não dissociável da experiência, isto é,ele só pode acontecer na presença da obra.

O segundo nível de interpretação se dáatravés do pensar e envolve análise cuidadosada obra.

Construção espaço negativo, de N. Kasak. Esseé outro exemplo de escultura abstrata que ilus-tra a experimentação na busca de novos usos docódigo artístico. Essa obra, em vez de trabalharcom o volume, trabalha com os espaços vazioscriados pela modelagem do metal.

Como se pode fazer essa análise?Sem querer fornecer um receituário, é

possível traçarmos algumas balizas para umaanálise que respeite a individualidade decada obra.

Em primeiro lugar, precisamos fazer umlevantamento da forma, em termos descritivos.Para isso, no entanto, é necessário conhecer al-gumas coisas fundamentais das linguagens ar-tísticas. Por exemplo, a linguagem teatral dife-re da linguagem cinematográfica. Assim, seformos analisar um espetáculo teatral, vamosprecisar, antes de mais nada, saber o que carac-teriza a linguagem específica do teatro.

Em seguida, precisamos descrever a obraem nível denotativo, isto é, a partir do que real-mente vemos ou ouvimos. Por exemplo, antesde percebermos que se trata do afresco Últimaceia, de Leonardo da Vinci, nós vemos, repre-sentados na parede, treze homens atrás de umamesa, de frente para nós, agrupados três a três,exceto a figura central, com tal tipo deindumentária, fazendo tais gestos etc. Essa des-crição dos signos que aparecem na obra e de

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como se combinam é muito importante, poisvai nos fornecer dados para estabelecermos re-lações que não estão tão aparentes, mas que seencontram implícitas na obra. Por isso é im-prescindível que façamos uma descrição deta-lhada e cuidadosa, a mais completa possível.

Finalmente, como na leitura de um livro,vamos levantar os significados conotativos decada signo e dos signos combinados entre si.No momento em que se coloca uma figura so-bre um determinado fundo, em que se combi-nam determinadas cores ou sons ou formas,em que se associa uma música a uma imagem,os significados de cada signo vão sendo alte-rados pelos significados dos outros signos,formando um espesso tecido de significaçõesque se cruzam e entrecruzam.

No levantamento dessas conotações,precisamos sempre levar em conta a época e olugar em que a obra foi criada. Por exemplo,no Renascimento o unicórnio simbolizava avirgindade. Se desconhecermos esse fato, ainterpretação de uma obra do período em queapareça esse símbolo será deficiente. Por ou-tro lado, além desse significado conotativocristalizado, podemos encontrar outros signi-ficados a partir da perspectiva da nossa épo-ca. Assim, para podermos penetrar a signifi-cação mais profunda de qualquer obra de arteé necessário que tenhamos conhecimentos dehistória geral, de história da arte e dos estilos,da história dos valores e da filosofia da épocaem que a obra foi criada, para podermos situá-la no seu contexto. Precisamos, também, estarengajados no nosso tempo para podermos per-ceber o que a obra nos diz hoje.

É por isso que dissemos, nos Capítulos37 e 38, que a arte nos traz o conhecimento deum mundo e não somente o conhecimento deuma obra. A arte instaura um universo de sig-nificações que jamais é esgotado e que ultra-passa em muito a intenção do autor. Esque-maticamente, podemos representar esse pro-cesso da seguinte forma:

Para terminar, vamos dar um exemplode como fazer uma das leituras analíticas pos-síveis de um poema de José Lino Grünewald.

f o r m ar e f o r m a

d i s f o r m at r a n s f o r m a

c o n f o r m ai n f o r m a

f o r m a

É um poema concreto, portanto sua for-ma visual tem tanta importância quanto a for-ma sonora. O que vemos? Sete palavras dis-postas de maneira a formar um hexágono, namedida em que a primeira palavra tem 5 le-tras; a segunda, 7; a terceira, 8; a quarta, 10; aquinta, 8; a sexta, 7; e a sétima, 5 outra vez.Existe, portanto, um movimento crescente se-guido por outro decrescente. Vemos, ainda,que a palavra base FORMA se desloca para adireita até atingir a metade do poema e, emseguida, volta à sua posição inicial, no eixodireita-esquerda. No eixo superior-inferior, amesma palavra apresenta correspondência in-vertida de posições, como se puséssemos umespelho sobre o eixo.

Quanto aos prefixos utilizados, formamum losango, descrevendo o mesmo movimen-to crescente e decrescente do poema. Em ní-vel de conteúdo denotativo, temos os signifi-cados imediatos das palavras:

• forma: os limites exteriores da maté-ria de que é constituído um corpo; feitio, con-figuração; também remete a molde;

• reforma: formar de novo, reconstruir,corrigir, emendar, melhorar, aprimorar;

• disforma: dis: separação, negação (daforma); remete a deforma: alterar a forma, fa-zer perder a forma primitiva;

• transforma: dar nova forma, modifi-car, transfigurar, metamorfosear;

• conforma: conciliar, harmonizar, ade-quar, amoldar, acomodar-se, resignar-se,corresponder;

• informa: comunicar, participar.

Portanto, partimos de uma forma que écorrigida, emendada, a ponto de se tornar dis-forme, de perder a forma primitiva. Há, então,a metamorfose, o aparecimento de uma novaforma (prefixo trans, "além de"). A partir daí,temos o processo de cristalização. Acomoda-mo-nos e resignamo-nos à nova forma, que

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universo de significações possí-veis de uma obra

x: intencionalidade do autory, h, w, n etc: significados

que podemos atribuir àobra, sem desrespeitarsua proposta

o: significado arbitrário; quenão pertence ao universoda obra e que não pode-mos impor a ela

será comunicada, espalhada, compartilhada.Chegamos ao ponto terminal do processo: for-ma cristalizada. Ele também pode ser umnovo início.

No nível do conteúdo conotativo, perce-bemos que o processo descrito corresponde aoprocesso de abertura ou ruptura de algo esta-belecido, que culmina numa descoberta, numatransformação (processo de crescimento daforma), e termina no estabelecimento de ou-tro molde ou modelo, isto é, num fechamento.Esse processo tanto pode se referir didatica-mente à descoberta de novas linguagens artís-ticas, ao processo da vanguarda que rompe oscódigos estabelecidos, mas acaba propondo

outros que tendem ao fechamento, como podese referir ao processo de crescimento do serhumano em geral. Cada vez que aprendemosuma coisa nova (seja no terreno intelectual,seja no afetivo), rompemos um molde, tenta-mos reconstruí-lo, corrigi-lo, até que ele mudatanto que passa a ser uma nova forma. Aí co-meça o processo de nos acostumarmos comela, de a mostrarmos aos outros, até que, fi-nalmente, ela se torna habitual outra vez.

O que parecia uma brincadeira se enchede sentido. Torna-se belo. Ou, talvez, umgrande "barato". E nos emociona, nos enchede alegria, de satisfação. É o sentimento decompletude.

Exercícios

1. Levante as idéias principais do texto base.

2. Como podemos caracterizar a informaçãoestética?

3. Como se chama atenção para a própriamensagem?

4. Qual é a função das vanguardas?

5. Por que é difícil entender as obras de artede vanguarda?

6. O que é interpretar a obra no nível do sen-timento?

7. O que é analisar a obra de arte?

8. Quais são os passos para se analisar umaobra de arte?

9. Por que a arte nos traz o conhecimento deum mundo?

10. Qualquer obra de arte pode servir paraexercícios de interpretação. Sempre que houveroportunidade (visitas a museus, acesso a reprodu-ções ou livros de arte, além de filmes, teatro etc),procure cultivar essa prática, individualmente ouem grupo (por ex., programando atividades dessetipo e organizando, depois, debates sobre as im-pressões de cada um).

Leia o texto complementar e responda às ques-tões 11 a 15.

11. O que significa, no texto, "uma temáticanão-pictórica"? Que função da arte está presentenessa posição?

12. A que necessidade responde a obra deCézanne?

13. Explique a afirmação: "Mondrian almoçade costas para a paisagem".

14. A que necessidade responde a obra deKandinsky?

15. Qual a posição do autor do texto, FerreiraGullar, sobre a arte abstrata?

Sugestões para dissertação

Utilizando os conceitos do Capítulo 4, discutaos temas seguintes:

a) A produção artística, a construção da lingua-gem e o processo histórico e social.

b) Se uma linguagem só se desenvolve em fun-ção de um projeto (como afirma Jean-ClaudeBernardet), quais os projetos artísticos que estãosendo discutidos pelo crítico e pelo autor do texto"O que diz a obra de arte"?

Sugestões para pesquisa e seminário

c) Qual o projeto artístico da Renascença e comose desenvolve a linguagem pictórica a partir dele?

d) Qual o projeto artístico da modernidade ecomo se desenvolvem as linguagens pictóricas nes-te século?

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Texto complementar

O que diz a obra de arte

Não faz muito tempo, li num jovem crítico que a pintura é o meio menos apropriado para sedizer alguma coisa. Ele criticava um pintor, jovem também, que tomara como tema de seus quadrosfiguras e fatos da vida política brasileira. Quer dizer, o crítico argumentava contra a adoção pelopintor de uma temática não-pictórica ou extrapictórica, não sei como ele a definiria. É um ponto devista e, como não conheço os quadros do referido pintor, não posso dizer se, no caso particular, ocrítico tinha ou não razão. Mas o princípio geral sobre que baseava a sua crítica me parece discutível.Se a arte é o meio menos apropriado para dizer alguma coisa, isso significa que a arte não diz nada?É uma tese inaceitável.

Mas não vamos nos valer de uma formulação possivelmente infeliz para atribuir ao crítico oque ele talvez não tenha querido dizer. E não se trata aqui de armar uma discussão pessoal. O queimporta é a concepção implícita na tese. Admitamos que seu propósito foi apenas afirmar que a artenão pode cingir-se a uma temática explícita, e essa é uma questão que volta à baila.

Não resta dúvida que o caminho percorrido pela arte nos últimos cem anos tendeu preponde-rantemente à eliminação do tema, a começar pelo tema literário: as cenas mitológicas, alegóricas ouhistóricas foram banidas da pintura pelo impressionismo. O artista se voltou para a realidade objeti-va: as paisagens e as cenas da vida moderna. Esse defrontar-se com o presente é um defrontar-secom o devenir: Degas capta os gestos das bailarinas que dançam, Monet capta a luz cambiante dapaisagem. E uma pintura onde não há heróis, não há história, não há mitos: o artista elabora assensações que lhe chegam do mundo que ele vê.

Cézanne sentiu a necessidade de fundar essas sensações em termos permanentes, de criar umnovo espaço pictórico como haviam feito os mestres do Renascimento. Mas não um espaço idealiza-do como o deles: um espaço ambíguo capaz de conter as contradições que a experiência direta lherevelava — um espaço, por assim dizer, arrancado às coisas. E essa visão da natureza vai gerar ocubismo que, partindo dela, termina por negá-la: idealiza-a, desarticula os volumes em planos e abrecaminho para a abstração geométrica. Surge em seguida Mondrian para quem, na natureza, só hádois ritmos fundamentais — o vertical e o horizontal. O impressionismo, que negara as formasidealizadas, gera desse modo o seu contrário: Mondrian almoça de costas para a paisagem.

Os retângulos assimetricamente distribuídos do pintor holandês não lembram nem de longe asnáiades e odaliscas da pintura acadêmica, mas estão, como elas, desligados da experiência cotidianadas pessoas. Há, porém, uma diferença fundamental: Mondrian reduz a expressão de seu idealismoao sensorialmente percebido.

Por outros caminhos, Kandinsky chega também à eliminação de qualquer referência à realida-de objetiva. O primeiro quer exprimir a essência da natureza; o segundo, a espiritualidade do ho-mem. Em ambos está a pressuposição de que a representação das coisas e dos seres é um empecilhoà expressão da verdadeira realidade.

Essa atitude ideológica em face do real suscita uma série de questões. Existe uma "verdadeirarealidade" ou a realidade é um incessante transformar-se? A essência pode ser apreendida se seelimina a aparência? As formas ditas abstratas têm algum significado imanente? E, se têm, é possí-vel articulá-las numa linguagem capaz de exprimir, de modo cada vez mais rico e profundo, as"verdades" subjacentes?

Durante mais de cinqüenta anos os artistas e os teóricos da arte debateram-se com essas ques-tões e, ao que eu saiba, não conseguiram respondê-las. A linguagem das formas abstratas por suavez — quer seja a mondrianiana quer seja a kandinskiana — não se mostrou capaz daquele enrique-cimento. Pelo contrário, no curso das décadas, essa linguagem enveredou por um caminho de pro-gressiva autodestruição. Os representantes mais conseqüentes de ambas as tendências, em sua fasefinal, voltaram-se para a aplicação prática de suas experiências expressivas: uns no campo da indús-tria, outros no da terapêutica ou da investigação psicológica.

Agora pergunto: cabe, em nome de qualquer destas tendências, negar ao artista de hoje a buscade uma linguagem referencial? E a busca dessa linguagem implica inevitavelmente o rebaixamentoda qualidade artística? Só por mero dogmatismo se poderia garantir que sim.

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Vejamos agora a questão sob outro enfoque. Afirmar-se que a arte é o meio menos indicadopara dizer alguma coisa implica uma definição da linguagem artística, segundo a qual esta lingua-gem é um universo fechado que se alimenta exclusivamente de si mesmo. Essa definição aparececomo verdadeira se se concebe a linguagem da arte (ou qualquer outra) como um sistema desligadodo processo global da história e do espaço social. É certo também que, em determinados períodos enuma considerável parte de sua utilização, a linguagem funciona aparentemente como um sistemafechado. Digo "aparentemente" porque as raízes da linguagem estão de tal modo mergulhadas naexperiência que temos do real que, a rigor, seria impossível dizer onde termina uma e onde começa ooutro. Podemos definir o âmbito da linguagem em termos de sistema (elementos, relações, princípiosetc.) mas não em termos de expressão. E a linguagem da arte se empobrece, se academiza, precisa-mente na medida em que o sistema prepondera sobre a expressão: a linguagem "se fecha". Paraexemplificar: quando os impressionistas descobrem a possibilidade de captar a expressão cromáticadas coisas expostas à luz do sol, rompem os limites do sistema da linguagem pictórica para fazê-laabarcar uma nova dimensão do real; quando Seurat tenta metodizar a aplicação das descobertas ex-pressivas de seus antecessores, a linguagem se submete ao sistema, em detrimento da expressão.Uma nova ruptura se dá com Van Gogh, em quem de novo a expressão supera o sistema estabeleci-do. E esse processo de "ruptura" se verifica mesmo no interior da obra de um mesmo artista, dequadro para quadro, às vezes quase imperceptivelmente, pois é ele o indício de que a linguagem estáviva, de que a arte "fala". Noutras palavras: a linguagem pictórica, como qualquer outra, só é lingua-gem porque é sistema e por isso há nela uma natural tendência a fechar-se em seus limites; por outrolado, ela só é linguagem porque é expressão e por isso há também nela uma tendência natural pararomper o sistema. Essa contradição interna, dialética, da linguagem revela sua ligação profunda como conjunto do processo da realidade. A sua autonomia existe, mas é relativa.

Voltando à tese do crítico: ele não pretende afirmar que a arte não diz nada, mas que ela dizapenas o que está implícito no sistema. E mais, ele considera que esse sistema inclui tudo, ou seja,tudo o que pode ser dito pela linguagem da arte; o mais que se pretenda dizer com essa linguagem"não é arte".

Considero muito compreensível que hoje no Brasil alguns críticos se vejam levados a umaposição como essa. No fundo, se trata de uma posição que busca defender o essencial, depois de umperíodo (se é que já passou) em que os limites do sistema da linguagem artística foram amplamenterompidos e se adotou a atitude de afirmar que a própria linguagem da arte era uma forma de repres-são. A partir daí, tudo é expressão e tudo é arte; isto é: nada é expressão e nada é arte.

Não estou aqui para defender a arte como instituição a ser preservada a qualquer preço. Nada émenos (ou deve ser) institucional que a arte. Mas, se se destrói o sistema da linguagem — que não foicriado por decisão de nenhuma autoridade mas por uma necessidade real de expressão e comunica-ção — e se pretende substituí-lo pela valorização de meras atitudes e especulações arbitrárias, não seganha nada, não se cria nada, não se ajuda a ninguém. Trata-se de uma posição "libertária", de fundoniilista, que confunde os valores e prejudica os verdadeiros artistas.

Há que compreender, porém, que tal fenômeno é produto de uma crise geral da arte contempo-rânea que se reflete de maneira aguda nos países culturalmente dependentes como o nosso. Creio, noentanto, que a atitude correta em face de tal fenômeno não é a defesa do purismo artístico, já que essepurismo está na raiz mesma da crise. Quando Mondrian e Kandinsky dão as costas à realidade ebuscam formas idealizadas para se exprimirem, não se tornam os profetas de uma arte futura —como se disse e se repetiu muitas vezes — mas os profetas do fim de uma arte que se nega a exprimiras relações concretas da vida.

(Ferreira Gullar, Sobre arte, Rio de Janeiro, Avenir, 1982, p. 9-13.)

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A Idade Média tinha tanta noção do que entendemos pelo termo arte quanto a Grécia ou o Egito, quecareciam de uma palavra para exprimi-lo. Para que essa idéia pudesse nascer, foi preciso que se separassemas obras de arte de sua função. (...) A metamorfose mais profunda principiou quando a arte já não tinha outrafinalidade senão ela mesma.

(André Malraux)

O conceito de belo, como já dissemosno Capítulo 37, é eminentemente histórico.Cada época, cada cultura, tem o seu padrão debeleza próprio. Já houve até quem dissesseque "gordura é formosura".

Da mesma forma, as manifestações ar-tísticas têm sido bastante diversas e, por ve-zes, até desconcertantes no curso da história.Essa diversidade se deve a vários fatores, quevão do político, social e econômico até os ob-jetivos artísticos que cada época ou culturatem se colocado.

Ao longo dos séculos, surgiram váriascorrentes estéticas que vieram a determinarnão só as relações entre arte e realidade, mas,mais importante ainda, o estatuto e a funçãoda obra de arte.

Discutiremos aqui algumas dessas cor-rentes mais importantes que marcaram a pro-dução artística, sendo, por isso, fundamentaispara a compreensão da história da arte.

1. O naturalismo grego

Conceito de naturalismo

O naturalismo constitui uma noção fun-damental que marcou profundamente toda aarte ocidental desde a Grécia Antiga até o fi-nal do século XIX.

O naturalismo, segundo HaroldOsborne, pode ser definido como a ambição

de colocar diante do observador uma seme-lhança convincente das aparências reais dascoisas. A admiração pela obra de arte, dentrodessa perspectiva, advém da habilidade do ar-tista em fazer a obra parecer ser o que não é,parecer ser a realidade e não a representação.

Dentro da atitude naturalista, podemosdistinguir algumas variações, dentre as quais asmais importantes são o realismo e o idealismo.

O realismo mostra o mundo como ele é,nem melhor nem pior. É característico, porexemplo, da arte renascentista do século XV.

Já o idealismo retrata o mundo nas suascondições mais favoráveis. Na verdade, mos-tra o mundo como desejaríamos que fosse,melhorando e aperfeiçoando o real. É o pa-drão da arte grega, que não retrata pessoasreais, mas pessoas idealizadas. Foram os gre-gos que elaboraram a teoria das proporções docorpo humano.

A ruptura com a atitude naturalistaocorre na segunda metade do século XIXcom os impressionistas, que passam a darprimazia às variações da luz e não aos obje-tos representados.

Essa mudança de atitude se deve, emparte, ao aparecimento do "bisavô" da máqui-na fotográfica — o daguerreótipo —, que fixaas imagens do mundo de forma mais rápida emais econômica do que a tela pintada. Assim,os artistas, principalmente os pintores, tive-ram de repensar a função da arte e o espaçoespecífico da pintura.

362

CAPÍTULO 41CONCEPÇÕES

ESTÉTICAS

O naturalismo na arte grega

Na Grécia Antiga não havia a idéia deartista no sentido que hoje empregamos, umavez que a arte estava integrada à vida. Asobras de arte dessa época eram utensílios (va-sos, ânforas, copos, templos etc.) ou instru-mentos educacionais. Assim, o artífice que osproduzia era considerado um trabalhador ma-nual, do mesmo nível do agricultor ou doferramenteiro. Ele era um artesão numa socie-dade em que o trabalho manual era considera-do indigno.

Nesse período (séc. V e IV a.C.) foramdesenvolvidas técnicas cuja principal motiva-ção era produzir cópias da aparência visíveldas coisas. A função da arte era criar imagensde coisas reais, imagens que tivessem aparên-cia de realidade.

Há várias anedotas que ilustram bemisso, embora poucos exemplares da pinturagrega tenham chegado até nós. Dizem queApeles pintou um cavalo com tanto realismoque cavalos vivos relincharam ao vê-lo. Outrahistória conta que Parrásio pintou uvas tãoreais que passarinhos tentavam bicá-las.

Na verdade, talvez essas pinturas só pos-sam ser consideradas realistas em relação àestilização da pintura que a precedeu ou à pin-tura egípcia, por exemplo. Por outro lado, te-mos de admirar a fidelidade anatômica dasesculturas gregas, tais como a Vitória deSamotrácia e o Discóbulo.

Essa atitude perante a arte está fundadasobre o conceito de mímesis.

Embora mímesis seja normalmentetraduzida por "imitação", para os gregos elasignificava muito mais que isso. Para Platão(séc. V a.C), no Crátilo, as palavras "imitam"a realidade. Neste caso, a tradução mais cor-reta para mímesis talvez fosse "representar", enão "imitar".

Para Aristóteles (séc. IV a.C), a arte"imita" a natureza. Arte, para ele, no entanto,englobava todos os ofícios manuais, indo daagricultura ao que hoje chamamos de belas-artes. Assim, a arte, enquanto poiésis, ou seja,"construção", "criação a partir do nada", "pas-sagem do não-ser ao ser", imita a natureza noato de criar. Por outro lado, também aqui po-deríamos entender mímesis com o sentido de

Vitória de Samotrácia, Grécia, século IV a.C. Estaescultura, embora tenha perdido a cabeça, é umexemplo claro do naturalismo grego. Além domovimento do corpo e das roupas, percebem-sedetalhes sutis por baixo das vestes, como, porexemplo, o umbigo.

"representar". Para Aristóteles, "todos os ofí-cios manuais e toda a educação completam oque a natureza não terminou"1.

Ainda segundo Aristóteles, a apreciaçãoda arte vem do prazer intelectual de reconhe-cer a coisa representada através da imagem.Assim, ele resolve o problema do feio. O pra-zer, no caso, não vem do reconhecimento dacoisa feia, mas da habilidade que o artista de-monstra ao representá-la.

É no sentido de cópia ou reproduçãoexata e fiel que a palavra mímesis passa a seradotada pela teoria naturalista. E as obras dearte, dentro dessa perspectiva, são avaliadassegundo o padrão de correção colocado porPlatão: "Agora suponhamos que, neste caso,o homem também não soubesse o que eramos vários corpos representados. Ser-lhe-ia

1 Aristóteles, Política, VII, 17.

363

possível ajuizar da justeza da obra do artista?Poderia ele, por exemplo, dizer se ela mostraos membros do corpo em seu número verda-deiro e natural e em suas situações reais, dis-postos de tal forma em relação uns aos outrosque reproduzam o agrupamento natural —para não falarmos na cor e na forma — ou setudo isso está confuso na representação? Po-deria o homem, ao vosso parecer, decidir aquestão se simplesmente não soubesse o queera a criatura retratada?"2.

2. A estética medieval ea estilização

Na Europa ocidental, durante a IdadeMédia, não houve grande interesse pelas artesque, como coisas terrenas ligadas à culturapagã, poderiam prejudicar o fortalecimento daalma e do espírito.

Entretanto, em virtude do analfabetismomais ou menos generalizado das populaçõesdos feudos, a Igreja utiliza-se da pintura e daescultura para fins didáticos, ou seja, para en-sinar a religião e infundir o temor do julga-mento final e das penas do inferno. As obrasde arte assumem a condição de símbolos quemanifestam a natureza divina e canalizam adevoção do homem para o deus supremo.

Por isso, a postura naturalista é abando-nada em prol da estilização, isto é, da simpli-ficação dos traços, da esquematização das fi-guras e do abandono dos detalhes individuali-zadores. A estilização responde melhor à ne-cessidade de universalização dos princípios dareligião cristã.

A arte bizantina do mesmo período mos-tra extraordinária homogeneidade a partir desua codificação, no século VI, até a queda deConstantinopla em 1453. Preocupada com aexpressão religiosa e com a tradução da teolo-gia em forma de arte, a Igreja Ortodoxa bi-zantina padroniza a expressão artística, abo-lindo a representação tridimensional em pin-turas e mosaicos, preferindo as figuraschapadas, cujas vestes eram representadas porlinhas sinuosas (ver a reprodução do mosaicoda igreja de São Vital, Ravena, no Capítulo13 — A ciência medieval).

Mantidas suas características próprias,tanto no Ocidente quanto no ImpérioBizantino prevalece a idéia de que a belezanão é um valor independente dos outros, masque é o refulgir da verdade no símbolo. A obrade arte, assim, permite-nos alcançar a visãodireta da perfeição da natureza divina. Desseponto de vista, a beleza é uma qualidade maisbem apreendida pela razão do que pelos senti-dos, e corresponde ao pensamento religiosodessa época, marcado pelo desejo de ascenderdo mundo sensual das sombras, das aparên-cias, à contemplação direta da perfeição divi-na (ver Terceira Parte do Capítulo 10).

Santo Agostinho

Santo Agostinho, ao tratar da ordem eda música, considera o número como medidade comparação que leva à ordenação das par-tes iguais dentro de um todo integrado e har-mônico.

O conceito de beleza, enquanto ordena-ção dos objetos ao que deve ser, pressupõe umconceito anterior da ordem ideal, dado por ilu-minação divina. É esse mesmo conceito quefundamenta a objetividade do julgamento dabeleza, donde se podem criar normas para aprodução do belo.

Santo Tomás de Aquino

Cabe a Santo Tomás de Aquino (séc.XIII) retomar o pensamento de Aristóteles erecuperar o mundo sensível que havia sidoconsiderado fonte de pecado durante quasetoda a Idade Média. Se é criação de Deus, omundo terá as marcas de sua origem e será aencarnação simbólica do logos divino. Pode,assim, ser objeto de nossa atenção e interpre-tação. Para Santo Tomás, a beleza é um dosaspectos do bem: "A beleza e a bondade deuma coisa são fundamentalmente idênticas".A beleza é o aspecto agradável da bondade,pois o belo é agradável à cognição.

Santo Tomás estabelece três condiçõespara a beleza:

• integridade ou perfeição, uma vez queos objetos incompletos ou parcialmentedestruídos são feios;

2 Platão, Leis, 668.

364

• devida proporção ou harmonia entreas partes e entre o objeto e o espectador;

• claridade ou luminosidade, ou seja, oresplandecer da forma em todas as partes damatéria.

3. O naturalismo renascentista

O Renascimento artístico, ocorrido en-tre os séculos XIV e XV na Europa, passa adignificar o trabalho do artista ao elevá-lo àcondição de trabalho intelectual. Conseqüen-temente, a obra de arte assume um outro lugarna cultura da época.

Nesse contexto, as artes vão buscar umnaturalismo crescente, mantendo estreita re-lação com a ciência empírica que desponta naépoca e fazendo uso de todas as suas desco-bertas e elaborações em busca do ilusionismovisual. Assim, a perspectiva científica, a teo-ria matemática das proporções, que possibili-tam a criação da ilusão da terceira dimensãosobre uma superfície plana, as conquistas daastronomia, da botânica, da fisiologia e daanatomia são incorporadas às artes.

Osborne distingue seis princípios funda-mentais que dominaram o ponto de vista re-nascentista no terreno da estética:

1. A arte é um ramo do conhecimentoe, portanto, criação da inteligência.

2. A arte imita a natureza com a ajudadas ciências.

3. As artes plásticas e a literatura têmpropósito de melhoria social e moral, aspiran-do ao ideal.

4. A beleza é uma propriedade objetivadas coisas e consiste em: ordem, harmonia,proporção, adequação. A harmonia expressa-se matematicamente.

5. As artes alcançaram a perfeição naAntiguidade clássica, que deve ser estudada.

6. As artes estão sujeitas a regras deperfeição racionalmente apreensíveis que po-dem ser formuladas e ensinadas com precisão.Aprendemo-las pelo estudo das obras da An-tiguidade.

4. Iluminismo e academismo:a estética normativa

Descartes (séc. XVII) não elaborou umateoria estética, mas seu método e conclusões

em relação à teoria do conhecimento foramdecisivos no desenvolvimento da estéticaneoclássica.

A busca da clareza conceituai, do rigordedutivo e da certeza intuitiva dos princípiosbásicos invadiu o campo da teoria da arte.Combinaram-se elementos cartesianos earistotélicos nos conceitos polissêmicos, istoé, com muitos sentidos, de razão e natureza.Artistas e críticos identificaram o seguir a na-tureza com o seguir a razão, uma vez que anatureza do homem é ser racional.

Assim, o racionalismo estético, nos sé-culos XVII e XVIII, tentou estabelecer nor-mas sólidas para o fazer artístico, mediante adedução de um axioma fundamental e eviden-te por si mesmo. Esse axioma pode ser expres-so nos seguintes termos: a arte é uma imita-ção da natureza que inclui o universal, onormativo, o essencial, o característico e oideal. A natureza deve ser representada emabstrato, com'as características da espécie. Oprincípio básico da arte, portanto, continua aser a imitação, embora de cunho idealista.

Posteriormente, esses princípios foramreduzidos a um sistema, dando origem aoacademismo, isto é, ao classicismo ensinadopelas academias de arte. É a chamada estéticanormativa, que estabelece regras para o fazerartístico, limitando a criatividade e a indivi-dualidade da intuição artística.

O academismo acaba por estrangular avida da atitude naturalista na arte, abrindo es-paço para indagações e propostas novas.

5. Kant e a crítica do juízoestético

Na Crítica do juízo, elaborada em 1790,Kant se ocupa, em primeiro lugar, do julga-mento estético, expressando de maneira lógi-ca muitas das idéias e doutrinas dos estetasingleses do século XVIII e modelando-as den-tro de um sistema coerente.

Começou por distinguir a base lógica dojuízo estético da base lógica dos juízos sobreoutras fontes de prazer e da base dos juízos deutilidade e de bondade. Estabeleceu, também,a distinção entre percepção estética e formasde pensamento conceituai (belo é o que agra-da independentemente de um conceito), indocontra a estética cartesiana e racionalista.

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A seguir, dividiu a beleza em duas espé-cies: a beleza livre, que não depende de ne-nhum conceito de perfeição ou uso; e a belezadependente, que depende desses conceitos. Osjuízos estéticos estão relacionados com a pri-meira espécie de beleza.

A partir do conceito de prazer desinte-ressado, Kant diferencia os juízos estéticosdos juízos morais, dos juízos sobre a utilida-de e dos juízos baseados no prazer dos senti-dos. A experiência do belo se dá no sensívele independe de qualquer interesse de outrotipo. "O gosto é a faculdade de julgar umobjeto ou um modo de representação poruma satisfação ou insatisfação inteiramenteindependentes do interesse. Ao objeto dessasatisfação chama-se belo." Assim, para Kant,a beleza reside primordialmente na atitudedesinteressada do sujeito, em relação a qual-quer experiência. O que garante a universali-dade dos juízos estéticos é o fato de que to-dos os homens têm a mesma faculdade dejulgar, assim como a razão também é idênti-ca para todos.

6. A estética romântica

As idéias fundamentais da estética ro-mântica, desenvolvida ao longo de um século(meados do séc. XVIII a meados do séc. XIX)na Europa, podem ser resumidas pelas expres-sões gênio, imaginação criadora, originalida-de, expressão, comunicação, simbolismo,emoção e sentimento.

A noção de gênio, como dom inte-lectual e espiritual inato, liga-se em especialà figura do artista, que passa a ser apresentadocomo possuindo profunda compreensão dasuprema realidade. Assim visto, o gênio eraessencialmente original e expressava suanatureza superior através de obras por cujointermédio os homens comuns entrariam emcontato com ele e comungariam com a suapersonalidade.

A imaginação, por sua vez, passou a servista como faculdade captadora de verdade,acima e, às vezes, superior à razão e ao enten-dimento, sendo um dom especial do artista.Era, ao mesmo tempo, criadora e reveladorada natureza, dentro de uma visão romantizada

do idealismo transcendental kantiano que cir-cunscrevia a forma da experiência à capaci-dade configuradora da mente (ver TerceiraParte do Capítulo 10).

É a imaginação que nos permite com-preender os sentimentos dos outros e comuni-car-lhes os nossos. Pelo seu poder de recom-binar impressões sensíveis e dados da expe-riência, é fonte de invenção e originalidade. Oconceito romântico de imaginação criadoranão era, como vemos, um conceito psicológi-co e jamais foi claramente definido.

Quanto ao simbolismo, no período ro-mântico adquire especial relevância a idéia deque a obra de arte é um símbolo, é a encarnaçãomaterial de um significado espiritual.

Enfim, o romantismo concebe a artecomo expressão das emoções pessoais de umartista cuja personalidade genial se torna ocentro de interesse.

7. A ruptura do naturalismo

A revolução estética iniciada no séculoXVIII, quando se propôs a atenção desinteres-sada como marca da percepção estética e osentimento como forma de cognição, foi com-pletada nos últimos cem anos, passando aapreciação estética a ser o único valor dasobras de arte.

Nas palavras de André Malraux, críticofrancês deste século, "a Idade Média tinha tan-ta noção do que entendemos pelo termo artequanto a Grécia ou o Egito, que careciam deuma palavra para exprimi-lo. Para que essaidéia pudesse nascer, foi preciso que se sepa-rassem as obras de arte de sua função. (...) Ametamorfose mais profunda principiou quan-do a arte já não tinha outra finalidade senãoela mesma"3.

É essa independência da obra de arte tan-to em relação à intenção do autor quanto a va-lores e propósitos não propriamente estéticosque vai caracterizar a produção do século XX.

A partir do momento em que o ser daarte não é representar naturalisticamente omundo, nem promover valores, sejam eles so-ciais, morais, religiosos ou políticos, é possí-vel encontrar a especificidade da arte enquan-to promotora da experiência estética.

3 André Malraux, Les voix du silence, apud H. Osborne, Estética e teoria da arte, p. 248.

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Ao lado disso, encontramos o repúdio àestética sistemática e um certo ceticismo quan-to às possibilidades de definição da beleza.

A nova atitude estética advém do estadode espírito cauteloso, empírico e analítico quenão quer generalizar, mas que se mantématento às características individuais de cadaforma de arte. Isso vai possibilitar a cada umaempreender experimentações, na busca da sualinguagem específica e característica, comovimos no Capítulo 40, quando discutimos opapel das vanguardas.

Com a dissolução da atitude naturalista,os artistas passam a menosprezar o assunto outema das suas obras para valorizar o fazer aobra de arte. Qualquer assunto serve, ou mes-mo nenhum assunto, como é o caso da arteabstrata e da música atonal.

Cabeça, de Pablo Picasso, 1910. Embora aindaconserve alguns traços que nos permitem iden-tificar esta escultura como representando umacabeça humana, ela está muito longe da fideli-dade naturalista que vimos na figura anterior. Háinúmeras deformações que emprestam novossignificados a esta realidade instaurada pelaexistência da obra.

Assim, a obra de arte adquire um esta-tuto próprio de obra, isto é, ela não tem porfunção representar nenhum aspecto da reali-dade exterior, pois ela é a própria realidade.

Realidade especial, diferente da realidade donosso cotidiano. Realidade de obra de arte.

Apesar de essa ruptura ter condicionadopraticamente toda a produção artística desteséculo, a postura naturalista continuou a pre-dominar em outros campos, principalmentenos meios de comunicação de massa, como atevê, o cinema, o rádio.

Tomemos, por exemplo, a televisão.Considerando a programação televisiva, per-cebemos que toda ela tem por objetivo criaruma ilusão de realidade e, mais do que isso,fazer-nos acreditar nessa realidade criada. Astelenovelas, os telejornais, os programas deauditório querem nos convencer de que as coi-sas acontecem do jeito que nos está sendomostrado. Assim, a casa do trabalhador, daempregada doméstica, os quais, todos sabe-mos, ganham pouco, tem móveis e objetos dedecoração bastante caros. Eles próprios usamroupas caras e da moda, e raramente apare-cem trabalhando. Essa realidade mostrada natevê não nos incomoda, não nos perturba olazer. Muito pelo contrário, nos diz que omundo está em ordem e as pessoas, felizes.As próprias imagens do telejornal dão-nos aimpressão de que presenciamos os aconteci-mentos ao vivo. O que fica escondido é o fatode que, ao selecionar as imagens que vão sermostradas, ao cortá-las, ao montá-las numadeterminada ordem, a produção do telejornaljá mutilou a realidade, já a interpretou e nosmostra o produto final manipulado como sefosse o fato em si. É o naturalismo a serviçoda ideologia dominante (ver a Primeira Partedo Capítulo 5).

8. O pós-modernismo

Vivemos uma época de pós-tudo. A ve-locidade da transmissão da informação na so-ciedade pós-industrial, dominada pelos meiosde comunicação de massa, pelos micro-computadores, pelas máquinas de fax e pelossatélites, faz surgir uma estética adequada aessas condições de vida.

O pós-modernismo, movimento inicia-do na arquitetura italiana dos anos 50, coloca-se como reação à busca da universalidade eracionalidade, propondo a volta do passadoatravés de materiais, formas e valores simbó-licos ligados à cultura local.

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Beaubourg, Centro Pompidou, Paris. O projeto arquitetônico pós-moderno desse museu de arte contem-porânea torna-se evidente através da subversão operada pela exposição externa das entranhas construti-vas do edifício, com seus canos de água e conduítes de eletricidade deixados a mostra.

Da arquitetura, passa para as artes plás-ticas (pop arte dos anos 50 e 60), para a lite-ratura (o novo romance francês), para o tea-tro, com os happenings, as performances, atéchegar às intervenções4.

A estética pós-moderna caracteriza-sepela desconstrução da forma. No romance,no cinema, no teatro não há mais uma históriaa ser contada ou personagens fixas. As coisasvão acontecendo, aparentemente sem ligaçõescausais. Caracteriza-se ainda pelo pastiche e

ecletismo que permitem juntar-se as coisasmais variadas e até mesmo antagônicas namesma obra; pelo uso da paródia, discursoparalelo que comenta e, em geral, ridicularizao discurso principal; pelo uso da meta-linguagem, isto é, da citação de outras obras;pela incorporação do cotidiano e da estéticados meios de comunicação de massa; pelaefemeridade, ou pequena duração, de muitasdas suas obras. Não existe um estilo único,tudo vale dentro do pós-tudo.

Exercícios

1. Qual a relação entre naturalismo e ilusãodo corpóreo?

2. Por que o impressionismo pode ser consi-derado como o primeiro passo da dissolução da vi-são naturalista em arte?

3. Qual a importância dos estilos do passado,ou seja, da própria história da arte da arquiteturamoderna?

4. Por que a arquitetura pós-moderna não éuma mera cópia do que já existiu?

4 Happenings são os espetáculos teatrais, sem um texto definido, que se constroem a partir da interação atores-público;as performances referem-se a espetáculos, sejam de teatro ou de música, que se utilizam de várias linguagens artísticas;intervenções são as manifestações artísticas que interferem na vida da cidade.

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Textos complementares

I[O naturalismo]

George Schmidt, procurando definir o conceito pictórico do naturalismo, enumerou em seis osseus elementos constitutivos: a ilusão dos corpos, a ilusão do espaço, a ilusão da matéria, o acabadodesenho do pormenor, a justeza das proporções anatômicas e da perspectiva e a exatidão da cor dosobjetos. O diretor do Museu das Belas-Artes de Basiléia diz: "A história da pintura européia, deDelacroix a Picasso, não é outra coisa, precisamente, senão o desmantelamento progressivo do natu-ralismo" (Histoire de Ia peinture moderne, t. II). Com efeito, só a pintura ao ar livre liquidou comtrês dos componentes do naturalismo: o acabado dos detalhes, a ilusão da matéria e o absoluto da cordos objetos, atingindo gravemente a ilusão do corpóreo.

O impressionismo chega e, prosseguindo nas conquistas dos pintores ao ar livre, faz da luzsolar o seu deus: a pintura tonai se esvai para dar lugar à descoberta fascinante dos contrastes diretosde cor. Manet e seus êmulos têm também, pela primeira vez, contato com o produto de uma culturainteiramente estranha àqueles parisienses provincianos — as estampas japonesas. A franqueza dodesenho destas e os acordes exóticos de áreas claras e escuras encantam Manet e amigos. Posterior-mente, essas estampas seriam apreciadas, sobretudo na geração pós-impressionista, pelas superfí-cies sem sombras e pelas cores puras. Hoje é que sabemos admirar-lhes também, como acentuouSchmidt, o poder expressivo das linhas.

As cores são descobertas na sua pureza, e os artistas percebem que, sempre carregadas de luz,elas podem exprimir pelo contraste as intensidades mais claras, como faz o branco. Outra descobertasensacional é que as sombras não são absolutas. Podem ser dadas pela cor. Na decomposição doclaro-escuro que dessas descobertas resulta, o modelado dos objetos torna-se secundário, quandonão desaparece. A tela é tomada pelas pequenas manchas de cor da nova fatura; o artista não respeitamais a parte do quadro destinada à perspectiva aérea. Tudo se colore, enquanto a cor local se evapo-ra. A cor natural é um fantasma que se dissolve.

A transformação do mundo visível em cores representa o esforço mais grandioso, mais revolu-cionário, para superar o naturalismo, para libertar a pintura da escravidão da imitação da natureza,para tornar independentes os meios do artista (Schmidt). Os objetos naturais, sob a influência da cor,perdem sua existência particular, sua autonomia local. Cézanne veio destruir os dois últimos antepa-ros naturalistas: a ilusão do espaço sensorial e a correção das proporções anatômicas e da perspecti-va que escaparam à avalancha impressionista. Nessa depuração, o mestre de Aix contou com a coo-peração espontânea de Gauguin e Van Gogh, Toulouse-Lautrec e Seurat. A obra de destruição esta-va consumada.

(Mário Pedrosa, Arte/forma e personalidade, São Paulo, Kairós, 1979, p. 122-125.)

II[O pós-moderno]

A arquitetura pós-moderna não é, ainda, a arquitetura High-Tech, marcada exteriormente pelouso de elementos de construção próprios das edificações industriais: tubulações de metal, como nasrefinarias; saídas de ventilação, como nos navios. O centro cultural de Beaubourg, em Paris, podeser considerado High-Tech, um caso da arquitetura moderna em seu ponto mais radical, algo comouma "máquina de habitar" exacerbada, não inteiramente aceita na área da edificação particular, masadmitida (ainda como um escândalo, tal uma Torre Eiffel de hoje!) nos domínios da edificação pú-blica. Interiormente, o design High-Tech define-se pelo uso de móveis industriais e comerciais oudeles derivados: guarda-roupas que são os módulos de aço dos vestiários esportivos; mesas de açocomo nos escritórios; estantes de ferro como as usadas nos almoxarifados industriais, e o restantelixo, supérfluo ou salvados de falência dos empreendimentos comerciais.

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A novíssima arquitetura livrou-se de tudo isso, e de todos os estilos. Seu estilo próprio é umaespécie de neo-ecletismo: todos os elementos de significação de todos os códigos anteriores podemser usados (citados, é a palavra pós-moderna) numa mesma edificação; é o recurso à historiografia.Não, porém, com o senso moderno de medida e comedimento que marcou o ecletismo da segundametade do século XIX, mas com uma marca forte e livre, de modo que os diferentes códigos fiquemtodos em evidência, uns ao lado dos outros. Charles Moore projetou (1976-1979) para a cidade deNew Orleans uma das grandes obras da pós-modernidade arquitetural: a Piazza d'Itália, praça inte-rior de uma ampla edificação comunal. No centro circular da praça, um grande mapa da Itália grava-do no chão, como um mosaico. O mapa se desdobra por entre fachadas (fachadas apenas, nada hápor trás delas) que são reproduções de fachadas de grandes construções "antigas" nos estilos dórico,coríntio, compósito e toscano. Mas não se trata de uma cópia tal qual, uma cópia conforme ou con-formada: capitéis de colunas são em metal reluzente, material que cobre mesmo toda uma fachada.Bases de colunas são pintadas de marrom e mostram-se como se tivessem sofrido um corte transver-sal, como se fossem ilustrações de um livro vivo. A fachada central, a maior, tem colunas cuja partesuperior do fuste, sob o capitei, recebeu aplicações de néon vermelho (o néon, símbolo pós-modernorevivido quatro décadas depois). E são também frisos de néon que recortam e ilustram o frontão e aparte interior dessa fachada principal. Há repuxos d'água e luzes coloridas por toda parte, e coresvivas agitam as fachadas (mais ou menos as mesmas cores reais dos templos gregos da antigüidade,que nunca foram "classicamente" brancos como os representaram os movimentos classicistas eneoclassicistas europeus entre os séculos XV e XVIII).

Ecletismo, citação, fuga dos padrões habituais do bom gosto, mistura de elementos expressi-vos. "Volta" ao passado, mas sem submissões a estilos-fonte, a estilos modelares. Não é, na verdade,um simples retorno ao antigo, não se trata de mais um caso do "eterno retorno". A linguagem agoraé a da decomposição (onde antes valera a composição modernista, tão cara aos mestres modernos),linguagem da visão contemporânea sobre o passado. Tudo isso somado ao uso de materiais de hoje ecom "muita imaginação", pedra de toque do pós-modernismo. Tudo isto para escapar das caixasluzidias mas redundantes e previsíveis, de concreto e vidro, típicas da arquitetura moderna que to-mou de assalto o mundo todo, padronizando-o.

Uma certa crítica fala em retrocesso e diz que por trás de rótulos como neo, hiper, meta, o queexiste mesmo é o velho. Fala-se numa operação de revival, de recuperação do velho, um trabalho deexumação. A realidade não é bem essa. A pintura de Edward Hopper tem em comum com a obra dospintores holandeses dos séculos XVII e XVIII o que se poderia chamar de um certo realismo. Mas oregistro é outro. Absurdo dizer que Hopper exuma os flamengos, ou que o hiper-realismo é merorevival. Hiper-realismo, nova objetividade, verismo, precisionismo, realismo fotográfico, pinturanazista da década de 30 e realismo socialista estão, de certo modo, numa mesma grande margem.Cada um, porém, com sua identidade própria, inconfundível.

O pós-moderno arquitetural recorre a estilemas, a traços de estilo de códigos em desuso. Mas alinguagem que combina esses signos é outra, e outros os materiais. Muda a expressão, muda o signi-ficado, muda a significação global e final. E, depois, o passado não é nem mesmo a opção primordialdessa arquitetura: ela é, antes de mais nada, inclusivista. O objetivo é alcançar uma codificaçãoplural, longe dos compromissos de ocasião e dos pastiches não-intencionais de alguns manipuladoresmais limitados. Resultado: a complexidade e a contradição (para não dizer: a dialética) são seustraços de base. Venturi, arquiteto e teórico do pós-modernismo avant Ia lettre, vê nesse, aliás, oprimeiro grande traço da pós-modernidade arquitetural quando comparada com a modernidade.

(J. Teixeira Coelho Netto, Moderno e pós-moderno, São Paulo, L&PM, 1986, p. 72-75.)

370

Este quadro tem a finalidade de situar a atividade filosófica no contexto histórico, relacionando-a com osmais significativos acontecimentos culturais, políticos e científicos, na tentativa de superar em parte o caráterfragmentário da abordagem por assuntos.

ANTIGUIDADE

Século

VI a.C.

V a.C.

IV a.C.

III a.C.

I a.C.

I d.C.

II

III

IV

Filosofia

Período pré-socráticoEscola jônica: Tales, Anaximandro,

Anaxímenes, HeráclitoEscola itálica: PitágorasEscola eleática: Xenófanes, Parmêni-

des, Zenão

Escola atomista: Leucipo, DemócritoAnaxágorasEmpédoclesPeríodo clássicoSofistica: Górgias, Protágoras, HíppiasEscola socrática: Sócrates

PlatãoAristóteles

Período pós-socráticoEstoicismo: Zenão de CítioEpicurismo: EpicuroCeticismo: Pirro

Lucrécio, Cícero

Sêneca

Marco Aurélio

PlotinoFilosofia patrística (Padres da Igreja):

Clemente, Orígenes

Filosofia patrística: Santo Agostinho

Contexto histórico

Registro escrito da Ilíada e Odisséia (Ho-mero)

Reformas de SólonReformas de ClístenesPeríodo arcaico da arte grega

Guerras médicasPériclesHeródoto (história), Hipócrates (medicina)Tragédias e comédiasGuerra do PeloponesoTirania dos TrintaPeríodo clássico da arte grega

Eudoxo (sistema geocêntrico)Crise política em AtenasFilipe da Macedônia e Alexandre Magno

(helenismo)Período helenístico da arte grega

Euclides (geometria), Arquimedes(mecânica)

Guerras púnicas (Roma-Cartago)

Fundação do Império Romano

Cristianismo

Ptolomeu (sistema geocêntrico)Apogeu do Império Romano

Galeno (anatomia)Crise do Império Romano

Começo da alquimiaVulgata (tradução da Bíblia para o latim)Divisão do Império Romano (do Ocidente e

do Oriente)Cristianismo (religião oficial)

371

QUADROCRONOLÓGICO

IDADE MÉDIA

Século

V

VI

VII

VIII

IX

XI

XII

XIII

XIV

Filosofia

Morte de Santo Agostinho

Boécio

Alcuíno

Scotus ErígenaAl Kindi

AvicenaQuerela dos universais: Guilherme de

Champeaux, Roscelino

AbelardoAverróis

Tradução de Aristóteles para o latimEscolástica: Santo Alberto, Santo To-

más de AquinoEscola de Oxford: Duns Scotus, Roger

Bacon

Escola de Oxford: Guilherme deOckham

Ibn KhaldunDante Alighieri, Marsílio de Pádua

Contexto histórico

Queda do Império do Ocidente

Justiniano (Império Bizantino; Corpus JúrisCivilis)

Mosteiros beneditinos

Surgimento do islamismo

Fundação do Império do Ocidente: CarlosMagno

Alcuíno (inglês) organiza o ensino no reinofranco

Tratado de VerdunApogeu da cultura islâmica

Cisma do OrienteArte românica

CruzadasUniversidadesNúmeros decimais na Europa

CruzadasOrdem dos Dominicanos e Ordem de São

FranciscoArte gótica e mouriscaAlquimia

Início da Guerra dos Cem AnosEstados GeraisCisma do OcidenteBússolaPré-RenascimentoFim da Idade Média: tomada de Constantino-

pla pelos turcos (1453)

RENASCIMENTO

Século

XV

XVI

Filosofia

Nicolau de Cusa

ErasmoGiordano BrunoBodin, MaquiavelThomas MoreMontaigne

Contexto histórico

Joana d' ArcGrandes navegações: descoberta da AméricaRenascimento artístico italianoGutenberg (imprensa)

Descobrimento do BrasilFormação das monarquias nacionaisReforma protestanteConcilio de TrentoCopérnico (heliocentrismo)Fim do Renascimento artístico/Barroco

372

IDADE MODERNA

Século

XVII

XVIII

Filosofia

CampanellaEmpirismo: Francis Bacon, Hobbes,

LockeRacionalismo: Descartes, Pascal, Male-

branche, Spinoza, Leibniz

Berkeley, HumeIluminismo: Montesquieu, KantEnciclopedismo: Voltaire, Diderot,

D'Holbach, La Mettrie, Rousseau

Contexto histórico

Renascimento científico: Galileu, Kepler,Newton

Mercantilismo e absolutismoGuerra dos Trinta AnosCromwellRevolução GloriosaBarroco

LiberalismoRevolução Industrial (máquina a vapor)Despotismo esclarecidoInconfidência MineiraIndependência dos EUARevolução FrancesaBarroco Brasileiro, Rococó e NeoclassicismoInício do romantismo

IDADE CONTEMPORÂNEA

Século

XIX

Filosofia

Idealismo: Fichte, Schelling, Hegel,Schopenhauer

Positivismo: Comte, Taine, Stuart Mill,Spencer

Socialismo: Saint-Simon, Fourier,Owen, Proudhon, Feuerbach, Marxe Engels

KierkegaardNietzsche

Contexto histórico

NapoleãoRainha VitóriaColonialismoRevoluções liberaisComuna de ParisIndependência do BrasilUnificação alemãUnificação italianaRepública brasileiraIndependência das colônias americanasRomantismo, realismo, parnasianismo,

simbolismo, impressionismo

SÉCULO XX

É difícil proceder à classificação das correntes filosóficas do século XX: em primeiro lugar, trata-se deum período que ainda estamos vivendo, por isso não temos suficiente distanciamento para fazer análises maisobjetivas; em segundo lugar, às vezes a classificação se torna uma "camisa-de-força", pois "encaixamos" pen-sadores em correntes que podem ter exercido influência sobre eles, mas com as quais não podem ser plenamen-te identificados. É o que ocorre com Heidegger, que sempre negou estar entre os existencialistas, ou Foucault eAlthusser, entre os estruturalistas. Além disso, existem casos de influência múltipla, como, por exemplo,Merleau-Ponty e Sartre, que usavam o método da fenomenologia e também sofreram influência do marxismo.

Outros, ainda vivos, têm o seu pensamento em processo, sendo prematura qualquer "rotulação", como é ocaso de Habermas que, inicialmente ligado à Escola de Frankfurt, hoje desenvolve um pensamento com carac-terísticas bem específicas e já independente dos frankfurtianos.

Portanto, é preciso observar o quadro a seguir sob um prisma puramente didático, como ponto de partidapara maiores investigações, considerando sempre sua precariedade.

Devido ao elenco de nomes de filósofos do século XX ser muito maior do que os referentes aos períodosanteriores, indicamos primeiro os principais fatos históricos e movimentos artísticos do século XX e, em segui-da, as diversas correntes filosóficas.

373

Acontecimentos históricos

Primeira Guerra Mundial (1914-1918)Revolução Russa (1917)Ascensão do fascismo na Itália (1922)Quebra da Bolsa de Nova Iorque (1929)Brasil: Revolução de 30 (Vargas — fim da República Velha)Portugal: ditadura de Salazar (1932-1968)Ascensão do nazismo na Alemanha (1933)Brasil: Estado Novo (1937-1945)Espanha: guerra civil; ditadura de Franco (1939-1969)Segunda Guerra Mundial (1939-1945)Bomba atômica — Hiroshima e Nagasaki (1945)Brasil: República populista (1945-1964)Guerra Fria: EUA x URSSRepública Popular da China (1949)Revolução Cubana (1959)Descolonização da África e ÁsiaBrasil: golpe militar de 1964Brasil: Nova República (1985)Queda do muro de Berlim (1989)Desagregação dos Estados socialistas (a partir de 1991)

Movimentos artísticos

Os movimentos artísticos no século XX são muitos e coexistem numa mesma época. Assim, indicamossomente a data de seu surgimento.

1905 — Fauves (França)Expressionismo — A ponte (Alemanha)

1908 — Cubismo (França)1909 — Futurismo (Itália)1911 — Expressionismo abstrato — Cavaleiro azul (Alemanha)1913 — Suprematismo (Rússia)1916 — Dadaísmo (Suíça)1917 — Neoplasticismo — De Stijl (Holanda)1924 — Surrealismo (França)

Bauhaus (Alemanha)Anos 50 — Action-painting (Estados Unidos)

Op-art (Estados Unidos)Anos 60 — Pop-art

minimalismohiper-realismo

Anos 70 — Arte-conceitual

Correntes filosóficas

CRÍTICA DA CIÊNCIA: Emst Mach (1838-1916), Pierre Duhem (1861-1916), Henri Poincaré (1854-1912)Neopositivismo: Alfred Ayer (1910), Ludwig Wittgenstein (1889-1951)Filosofia da matemática (logística): Gottlob Frege (1848-1925), Giuseppe Peano (1858-1932), George Can-tor (1845-1918), Bertrand Russell (1872-1970), Alfred Whitehead (1861-1947)Círculo de Viena (positivismo lógico): Rudolf Carnap (1891-1970), Moritz Schlick (1882-1936)Tendências contemporâneas: Karl Popper (1902-1994), Thomas Kuhn (1922), Imre Lakatos (1922-1974),Paul Feyerabend (1924)Epistemologia francesa: Gaston Bachelard (1884-1962), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), MichelFoucault (1926-1984)

374

PRAGMATISMO: William James (1842-1910), Sanders Peirce (1839-1914), John Dewey (1859-1952)

NEOKANTISMO:Escola de Marburg: Hermann Cohen (1842-1918), Ernst Cassirer (1874-1945), Paul Natorp (1854-1924)Escola de Baden: Wilhelm Windelband (1848-1915), Heinrich Rickert (1863-1936)Neocriticismo: Charles Renouvier (1815-1903), Octave Hamelin (1856-1907)

ESPIRITOALISMO CRISTÃO: Louis Lavelle (1883-1951), René Le Senne (1883-1954), Maurice Blondel(1861-1949)

RACIONALISMO: Alain (pseud. de Émile-Auguste Chartier, 1868-1951), Léon Brunschvicg (1869-1944)

HISTORICISMO: Wilhelm Dilthey (1833-1911)

NEO-HEGELIANISMO (espiritualista): Giovanni Gentile (1875-1944), Benedetto Croce (1866-1952)

NEO-ESCOLÁSTICA: Désiré Mercier (1851-1926), Jacques Maritain (1882-1973), Réginald Garrigou-Lagrange (1877-1964), Antonin Sertillanges (1863-1948)

FENOMENOLOGIA: Franz Brentano (1838-1917), Edmund Husserl (1859-1938), Max Scheler (1874-1928),Nicolai Hartmann (1882-1950), Martin Heidegger (1889-1976), Karl Jaspers (1883-1969), MauriceMerleau-Ponty (1908-1961), Alphonse de Waelhens (1911), Martin Buber (1878-1965)Existencialismo: Jean-Paul Sartre (1905-1980), Gabriel Marcel (1889-1973)Hermenêutica: Paul Ricoeur (1913)Personalismo: Emmanuel Mounier (1905-1950)

ESTRUTURALISMO: Claude Lévi-Strauss (1908), Roland Barthes (1915-1980), Michel Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1930), Louis Althusser (1918-1990)

MARXISMO: Lênin (1870-1924), Rosa Luxemburg (1870-1919), Antonio Gramsci (1891-1937), GeorgLukács (1885-1971), Lucien Goldmann (1913-1970), Louis Althusser (1918-1990)Escola de Frankfurt (Teoria crítica): Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1969), WalterBenjamin (1892-1940), Herbert Marcuse (1898-1979), Erich Fromm (1900-1980)

ÉTICA DO DISCURSO: Jürgen Habermas (1929), Karl-Otto Apel (1922), Ernst Tugendhat (1930), Otte FriedHöffe (1943)

ARQUEOGENEALOGIA*: Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925), Félix Guattari (1930-1992),Jean Baudrillard (1929), Jean-François Lyotard (1924)

FILÓSOFOS INDEPENDENTES (sem escola): Henri Bergson (1859-1941), Teilhard de Chardin (1881-1955), Vladimir Jankelévitch (1903-1985), José Ortega y Gasset (1883-1955)

Esta classificação é proposta pelo professor Antonio Joaquim Severino. Ver obra de sua autoria: Filosofia. SãoPaulo, Cortez, 1992, p. 204.

375

ABSOLUTO Absolvere tem dois sentidos dife-rentes: desligar, livrar, absolver e acabar, tor-nar perfeito. Absoluto é o que tem em si mes-mo a razão de ser e que, portanto, para serconcebido ou para existir não precisa de qual-quer outra coisa; o que é em si e por si (exem-plo: Deus é Ser absoluto). O Espírito absolutode Hegel representa, após o Espírito subjetivoe o Espírito objetivo, o momento supremo dodesenvolvimento da idéia, como consciênciadesligada de todo conteúdo concreto do Espí-rito. Absoluto é também sinônimo de a priori,isto é, independente da experiência (exemplo:verdades absolutas). Significa ainda o que nãocomporta nenhum limite, ou seja, que está "ab-solvido" de qualquer constrangimento (exem-plo: poder absoluto) ou não está sujeito a ne-nhuma restrição (necessidade absoluta).

ABSTRAÇÃO Ato de abstrair, ou seja, isolarmentalmente para considerar à parte um ele-mento da representação que não é dado sepa-radamente na realidade. Por exemplo, o con-ceito homem resulta de uma abstração, poisconsidera o que é comum a todos os homens,deixando de lado as características de cadahomem individual. Outro exemplo: o concei-to movimento, independentemente de qual-quer corpo movido. Consultar Capítulo 3.

AGNOSTICISMO (a-gnose, "não-conhecimen-to") Doutrina segundo a qual o fundo dascoisas é incognoscível, não podendo ser co-nhecido pelo espírito humano.

ALIENAÇÃO A alienação surge na vida econô-mica quando o operário, ao vender sua forçade trabalho, perde o que ele próprio produ-ziu. A conseqüência dessa perda é a fragmen-tação de sua consciência, que também deixade lhe pertencer; a pessoa não é mais o centrode si mesma e passa a ser "comandada" defora; perda da individualidade; perda da cons-ciência crítica. Consultar Capítulos 2 e 24.

ALTERIDADE (do latim alter, "outro") Qualida-de do que é outro; o outro é aquele que nãosou eu. Consultar Capítulo 33.

AMORALISMO Ausência de princípios morais;o ato amoral é o que se realiza à margem dequalquer consideração a respeito das normasmorais. Não confundir com o ato imoral, quesupõe a existência de formas morais, no caso,transgredidas. Consultar Capítulo 27.

ANALOGIA Raciocínio por semelhança; é umaindução parcial ou imperfeita na qual passa-mos de um ou de alguns fatos singulares nãoa uma conclusão universal, mas a outraenunciação singular ou particular inferida emvirtude da comparação entre objetos que, em-bora diferentes, apresentam pontos de seme-lhança. Consultar Capítulo 9.

ANARQUIA No sentido vulgar: confusão, ausên-cia de governo. Ver anarquismo.

ANARQUISMO (an-archon, "sem governante")Doutrina política que rejeita toda forma decoerção e preconiza a supressão da institui-ção do Estado; também conhecido como co-munismo libertário. Consultar Capítulo 24.

ANTITÉTICO Relativo a antítese, a oposição, acontradição.

ANTROPOMÓRFICO Que assume forma humana.

A POSTERIORI Posterior; conhecimento adqui-rido graças à experiência.

A PRIORI Anterior a toda experiência.

CARTESIANO Relativo ao pensamento de Des-cartes (séc. XVII). Cartesius era o nome lati-no de Descartes.

CETICISMO ou CEPTICISMO (skepptomai,"examino") Doutrina segundo a qual o espí-rito humano nada pode conhecer com certe-za; conclui pela suspensão do juízo e pela dú-vida permanente. Oposição: dogmatismo(ver). Consultar Capítulos 3 e 8.

CIENTIFICISMO Forma de pensar derivada dopositivismo, pela qual o único conhecimentoadequado é o científico; concepção deforma-da da ciência que consiste em tomá-la como

VOCABULÁRIO

A

c

377

sistema fechado e definitivo e como soluçãode todos os problemas. Consultar CapítuloslOe 11.

COGNITIVO Referente ao conhecimento. Sujei-to cognocente: sujeito que conhece.

COMUNISMO Organização política e econômi-ca que torna comuns os bens de produção. Se-gundo Marx, o comunismo é a fase posteriorao socialismo (ver), quando seria possívelinstaurar a sociedade sem Estado. ConsultarCapítulo 24.

CONCEITO Idéia abstrata e geral; representaçãointelectual, apreensão abstrata do objeto.Consultar Capítulo 10.

CONCRETO São concretas as representações quemanifestam seu objeto tal como ele é dado naintuição sensorial (exemplos: sensação, ima-gem, percepção). Portanto, a representaçãoconcreta é singular, individual; ao contrário, arepresentação abstrata é geral (exemplo: idéia).

CONOTAÇÃO Significado segundo, figurado, àsvezes subjetivo, dependente de experiênciapessoal de um signo. Ver denotação.

CONTINGENTE Tudo que é concebido comopodendo ser ou não ser de um modo ou de ou-tro. Exemplos: o futuro é contingente quando,independentemente dos acontecimentos pre-sentes, pode se produzir ou não; um fato é con-tingente quando pode ocorrer ou não (diferen-temente, a lei geral supõe a repetição constan-te); uma proposição é contingente quando averdade ou falsidade da relação que ela enun-cia só pode ser conhecida pela experiência enão apenas pelos dados da razão. Oposição:necessário (ver). Consultar Capítulo 30.

COROLÁRIO Proposição resultante, dedutiva-mente, de uma proposição já demonstrada;conseqüência.

COSMOGONIA Origem e formação do mundo;referente aos mitos da criação do mundo.Consultar Capítulo 7.

COSMOLOGIA (logos, "estudo", "razão") Parteda filosofia que estuda o mundo, a natureza;parte da metafísica que se ocupa da essênciada matéria.

gica por excelência é chamada por Aristóte-les silogismo (ver). Consultar Capítulo 9.

DENOTAÇÃO Significado primeiro e imediatode um signo (palavra, imagem etc). Verconotação.

DETERMINISMO Conjunto das condições ne-cessárias de um fenômeno. Princípio da ciên-cia experimental segundo o qual tudo queexiste tem uma causa, isto é, as leis científi-cas são as relações constantes e necessáriasentre os fenômenos. Na moral, teoria segun-do a qual tudo é determinado, isto é, tem umacausa, inclusive as decisões da vontade, nãohavendo, portanto, liberdade humana.

DEVIR Movimento; vir-a-ser; transformação in-cessante e permanente pela qual as coisas seconstróem e se dissolvem noutras coisas atra-vés do tempo.

DIALÉTICA No sentido amplo, arte de discutir;tensão entre opostos. Em Hegel, significa amarcha do pensamento que procede por con-tradição, passando por três fases — tese, an-títese e síntese —, e reproduz o próprio mo-vimento do Ser absoluto, ou Idéia. ParaEngels, é a ciência das leis gerais do movi-mento, tanto do mundo externo como do pen-samento humano; Engels aproveita a dialéticade Hegel, mas transforma o idealismo hege-liano em materialismo.

DICOTOMIA Divisão em duas partes.

DOGMA Ponto de doutrina religiosa aceito comoindiscutível; verdade de fé, aceita sem prova.

DOGMATISMO Doutrina filosófica que parte dopressuposto da capacidade de atingir verda-des certas e absolutas (nesse sentido, opõe-sea ceticismo: ver). Para Kant, posição dos filó-sofos que admitem a capacidade da razão emconhecer, sem antes fazer a crítica da facul-dade de conhecer. Para o marxismo, tendên-cia de aceitar verdades definitivas, o que con-traria o movimento da dialética. No sentidocomum, atitude de quem tende a impor dou-trina ou valores sem provas suficientes e semadmitir discussões. Consultar Capítulos 3 e 8.

DOUTRINA Conjunto de princípios, de idéias,que servem de base a um sistema religioso,político, filosófico ou científico.

DEDUÇÃO Operação lógica na qual se passa deuma ou mais proposições a uma outra que é aconseqüência; é o argumento cuja conclusãoé inferida necessariamente das duas premis-sas; raciocínio que vai do geral ao particularou ao geral menos conhecido. A dedução ló-

EMPIRICO Baseado na experiência comum, naometódica. Não confundir com experimenta-ção (ver). Consultar Capítulo 11.

EMPIRISMO Doutrina filosófica moderna (séc.XVII) segundo a qual o conhecimento proce-

D

378

E

de principalmente da experiência. Principaisrepresentantes: Bacon, Locke, Hume. Doutri-na oposta ao racionalismo (ver). ConsultarCapítulo 10.

ENGAJAMENTO Situação do filósofo cujo pen-samento supõe comprometimento com asituação social e política vivida. ConsultarCapítulo 31.

EPISTEMOLOGIA (episteme, "ciência") Estudodo conhecimento científico do ponto de vistacrítico, isto é, do seu valor; crítica da ciência;teoria do conhecimento.

ESCOLÁSTICA Escola filosófica da Idade Mé-dia cujo principal representante é Santo To-más de Aquino. No sentido pejorativo, quedecorre da escolástica decadente, o termo es-colástico se refere a todo pensamento formal,verbal, estagnado nos quadros tradicionais.Consultar Capítulos 10, 13 e 20.

ESOTÉRICO Todo ensinamento ministrado a cír-culo restrito e fechado de ouvintes. Saber se-creto. Em oposição, exotérico é o saber pú-blico, aberto a todos.

ESSÊNCIA O que faz com que uma coisa seja oque é, e não outra coisa; conjunto de determi-nações que definem um objeto de pensamen-to, conjunto dos constitutivos básicos. Porexemplo, a essência de mesa é o que faz comque uma mesa seja uma mesa, e não outra coisa,deixando de lado as características secundáriase acidentais como cor, tamanho, estilo etc.

ESTEREOTIPO Opinião preconcebida a respeitodas coisas e das pessoas; imagem simplificadaque retira as nuances da individualidade; o ho-mem médio de certo meio social.

ÉTICA (ethos, "costume") Parte da filosofia quese ocupa com a reflexão a respeito das noçõese princípios que fundamentam a vida moral.Consultar Capítulo 27.

EXISTENCIALISMO Corrente filosófica quepõe o primado do existir sobre a essência etoma como objeto de análise a existência hu-mana concreta e vivida. Consultar Capítulo 31.

EXPERIMENTAÇÃO Método científico queconsiste em provocar observações em condi-ções especiais, com vistas a controlar uma hi-pótese. Consultar Capítulo 15.

FACTICIDADE (factum, "fato") Caráter do queexiste como puro fato. Para a fenomenologia,a facticidade é uma das dimensões humanaspela qual o homem se encontra lançado entreas coisas em situações dadas e não escolhidas

por ele. Por exemplo, nascer em uma famíliade operários ou de burgueses. Também se dizimanência (ver). Consultar Capítulos 30 e 31.

FENOMENOLOGIA No sentido geral, é o estu-do descritivo de um conjunto de fenômenostais como se manifestam no tempo ou no es-paço, em oposição às leis abstratas e fixasdesses fenômenos. Em Hegel, a fenomenolo-gia do Espírito é o estudo das etapas percorri-das pelo Espírito, do conhecimento sensívelao saber verdadeiro. Em Husserl, trata-se deum novo método que procura apreender, pormeio dos acontecimentos e dos fatos empí-ricos, as essências, ou seja, as significaçõesideais, percebidas diretamente pela intuição(ver). Consultar Capítulos 16 e 31.

FORMA SIMBÓLICA Estrutura de signos.

GERAL Conceito que convém à totalidade deindivíduos de uma espécie; que é atribuível atodos os componentes de um grupo, espécie ougênero. Por exemplo, quando usamos o con-ceito homem, referimo-nos a todos os homens.É geral a proposição em que o sujeito é geral.Exemplos: "Todos os homens são mortais" e"Nenhum homem é mineral". Oposição: par-ticular (ver). Consultar Capítulos 9 e 11.

ÍCONE Signo que representa o objeto, mantendocom ele uma relação de semelhança (exem-plo: a fotografia). Consultar Capítulo 4.

IDEALISMO No sentido mais popular, consistena atitude de subordinar atos e pensamentos aum ideal moral ou intelectual. Do ponto de vis-ta da teoria do conhecimento, idealismo é onome genérico dos diversos sistemas pelosquais o ser ou a realidade são determinadospela consciência. "Ser" significa "ser dado naconsciência". Consultar Capítulos 10, 23 e 24.

IDEOLOGIA No sentido amplo, é o conjunto dedoutrinas e idéias ou o conjunto de conheci-mentos destinados a orientar a ação. Do pon-to de vista político, é o conjunto de idéias daclasse dominante estendido à classe domina-da e que visa à manutenção da dominação.Consultar Capítulos 5 e 24.

ILUMINISMO (ou Ilustração, ou Filosofia das Lu-zes, ou Aufklärung) Movimento racionalistado século XVIII (Kant e os enciclopedistasfranceses) que consiste na crença no poder darazão de reorganizar o mundo humano. Con-sultar Capítulos 10 e 22.

F

379

G

I

IMANÊNCIA (immanere, "permanecer em", "nãoultrapassar") Caráter do que é imanente. Eimanente a um ser ou a um conjunto de seresaquilo que está compreendido neles e não re-sulta de uma ação exterior. Por exemplo, ajustiça imanente é a que resulta do curso na-tural das coisas, sem intervenção de um agen-te distinto delas. Também é imanente aquiloque se acha circunscrito ao âmbito da expe-riência possível, estando excluído tudo o quenão pode ser experimentável. Com relação aDeus, o panteísmo imanentista nega a trans-cendência divina, identificando Deus e natu-reza. Do ponto de vista da fenomenologia,imanência é o mesmo que facticidade (ver).Oposição: transcendência (ver).

INDUÇÃO Operação lógica em que, de dadossingulares suficientemente enumerados, infe-rimos uma verdade universal. É o raciocínioque leva à conclusão a partir de dados parti-culares. Consultar Capítulo 9.

INSTINTO Atividade automática, caracterizadapor um conjunto de reações bem determina-das, hereditárias, específicas, idênticas na es-pécie. Não confundir com intuição (ver).Consultar Capítulo 1.

INTELIGIBILIDADE Qualidade do que é inteli-gível, que pode ser compreendido.

INTERSUBJETIVO Relação estabelecida entreas pessoas, entre os sujeitos.

INTUIÇÃO Conhecimento imediato, feito sem in-termediários, visão súbita. Consultar Capítulo 3.

LAICIZAÇÃO Ato de tornar algo ou alguém lei-go (laico), isto é, não mais religioso. Diz-setambém secularização (ver).

LIBERALISMO Teoria política e econômicasurgida no século XVII e que exprime osanseios da burguesia. Defende os direitos dainiciativa privada, restringe o mais possível asatribuições do Estado e opõe-se vigorosamenteao absolutismo. Consultar Capítulos 22 e 26.

LIBERTÁRIO Partidário do anarquismo (ver).

LÓGICA Parte da filosofia que investiga a valida-de dos argumentos e dá as regras do pensamen-to correto; trata do estudo normativo das con-dições da verdade (da conseqüência e da ver-dade da argumentação). Consultar Capítulo 9.

MARXISMO Doutrina econômica e filosóficainiciada por Marx e Engels (séc. XIX); con-trapõe-se ao liberalismo (ver); faz a crítica do

Estado burguês. A teoria marxista tem comofundamento o materialismo histórico edialético (ver). Consultar Capítulo 24.

MASSIFICAÇÃO Ato de influenciar as pessoaspor meio da comunicação de massa; orientaro indivíduo no sentido de estereotipar-lhe asreações e a conduta. Ver estereótipo.

MATERIALISMO No sentido moral, designa aorientação de vida em busca do gozo e dosbens materiais. No sentido psicológico, con-siste na negação da existência da alma comoprincípio espiritual, e na redução dos fatos daconsciência a epifenômenos da matéria. Doponto de vista da teoria do conhecimento, odado material é considerado anterior ao espi-ritual e o determina. Distinguem-se: a) mate-rialismo mecanicista (séc. XVIII), que reduztudo aos fenômenos mecânicos; as idéias, de-terminadas pela matéria, permanecem passi-vas à ação dela; b) materialismo histórico edialético (séc. XIX, Marx e Engels), segundoo qual as idéias derivam também das condi-ções materiais, mas, ao contrário do materia-lismo mecanicista, o mundo não é estático,mas concebido como processo, e o real é con-traditório e dinâmico. Nesse sentido, o ho-mem não é passivo, mas reage sobre aquiloque o determina.

METAFÍSICA Parte da filosofia que estuda o "serenquanto ser", isto é, o ser independentemen-te de suas determinações particulares; estudodo ser absoluto e dos primeiros princípios. Épara Aristóteles a ciência primeira, na medi-da em que fornece a todas as outras o funda-mento comum, isto é, o objeto ao qual todasse referem e os princípios dos quais depen-dem. (Exemplos de conceitos metafísicos:identidade, oposição, diferença, todo, perfei-ção, necessidade, realidade etc.) Alguns pro-blemas metafísicos: a essência do universo(cosmologia racional); a existência da alma(psicologia racional); a existência de Deus(teologia racional ou teodicéia).

MORAL (mos, moris, "costume") Conjunto denormas livre e conscientemente adotadas quevisam a organizar as relações das pessoas nasociedade tendo em vista o bem e o mal; con-junto dos costumes e valores de uma socieda-de, com caráter normativo (regras do compor-tamento das pessoas no grupo). ConsultarCapítulo 27.

NECESSÁRIO O que nao pode ser de outromodo, nem deixar de ser. Exemplos: é neces-sário o encadeamento de causas e efeitos numsistema determinado; uma proposição é ne-

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MN

380

cessaria quando deriva logicamente de princí-pios dados anteriormente; chama-se condiçãonecessária aquela sem a qual o condicionadonão se realiza. Oposição: contingente (ver).

OBJETIVO Conhecimento objetivo é aquele fun-dado na observação imparcial, independentedas preferências individuais. Conhecimentoresultante da descentralização do sujeito queconhece, pelo confronto com outros pontos devista. Oposição: subjetivo (ver). ConsultarCapítulo 11.

OBJETO O que se apresenta à vista, coisa percebi-da; também o que é pensado, representado noespírito: o que está posto diante do espírito.

ONTOLOGIA Parte mais geral da metafísica, quetrata do "ser enquanto ser"; às vezes, o con-ceito de ontologia é usado como sinônimo demetafísica (ver).

sobre o pensamento. Para Sanders Peirce, avalidade de uma idéia resulta de suas conse-qüências práticas.

PRAXIS Os gregos chamavam práxis à ação delevar a cabo alguma coisa; também designa aação moral; significa ainda o conjunto deações que o homem pode realizar e, neste sen-tido, a práxis se contrapõe à teoria (ver). Nomarxismo, também conhecido como filosofiada práxis, o termo ganha um sentido maispreciso e não se identifica propriamente coma prática, mas significa a união dialética dateoria e da prática; ao mesmo tempo que aconsciência (teoria) é determinada pelo modocomo os homens produzem a sua existência,também a ação humana (prática) é projetada,refletida, consciente. Consultar Capítulo 24.

PSICANÁLISE Método, teoria e forma de trata-mento psicológico iniciado por Freud e cujanovidade principal está na descoberta do in-consciente e da natureza sexual da conduta.Consultar Capítulos 16 e 28.

PARTICULAR Conceito que se refere só a al-guns indivíduos da mesma espécie; supõe umtodo do qual se considera apenas uma parte(exemplos: alguns homens; certos animais).É particular a proposição em que o sujeito éparticular, ou seja, quando o predicado é afir-mado ou negado de uma parte indeterminadada extensão do sujeito: "Alguns homens sãojovens"; "Nem todos os homens são justos".Não confundir com subjetivo (ver). Consul-tar Capítulo 9.

POSITIVISMO Filosofia de Augusto Comte (séc.XIX) que considera o estado positivo (ver) oúltimo e mais perfeito estado abrangido pelahumanidade. Valoriza a ciência como a for-ma mais adequada de conhecimento, dondederiva o cientificismo (ver). Consultar Capí-tulos 10, l1 e 16.

POSITIVO O que é real, palpável; dado da expe-riência; baseado nos fatos. Para Comte, de-pois de ter superado as formas teológicas emetafísicas de explicação do mundo, o ho-mem atinge o estado positivo, que se opõe atudo o que é quimérico ou vago: "Somentesão reais os conhecimentos que repousam so-bre fatos observados".

PRAGMÁTICO Que se refere à ação, ao sucessoou à prática; também significa útil, eficaz.Oposição: teórico, especulativo.

PRAGMATISMO Sistema filosófico de WilliamJames e John Dewey que subordina a verda-de à utilidade e reconhece a primazia da ação

RACIOCÍNIO Operação discursiva do pensamen-to que consiste em encadear logicamente juízose deles tirar uma conclusão. Em lógica, chama-se argumentação. Consultar Capítulo 9.

RACIONALISMO Doutrina filosófica moderna(séc. XVII) que admite a razão como únicafonte de conhecimento válido; superestima opoder da razão. Principais representantes:Descartes, Leibniz. Doutrina oposta aoempirismo (ver). Consultar Capítulo 10.

RAZÃO Em sentido geral, é a faculdade de co-nhecimento intelectual, entendimento (emoposição a sensibilidade). Faculdade do pen-samento discursivo, feito por meio de argu-mentos e de abstrações; faculdade de racioci-nar; faculdade de alcançar o conhecimento douniversal, de ascender às idéias.

REFLEXÃO Ato do conhecimento que se voltasobre si mesmo, tomando por objeto seu pró-prio ato; ato de pensar o próprio pensamento.Consultar Capítulo 8.

SECULARIZAÇÃO Ato de tornar secular (isto é,do século, do mundo); deixar de ser religiosoou sagrado. Diz-se também laicização (ver).

SIGNO Alguma coisa que está no lugar de outra,sob algum aspecto.

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SILOGISMO Tipo de raciocínio dedutivo que, deuma proposição geral, conclui outra proposi-ção geral ou particular. Consultar Capítulo 9.

SOCIALISMO Nome genérico das doutrinas quepretendem substituir o capitalismo por umsistema econômico planificado que conduzaa resultados mais eqüitativos e mais favorá-veis ao pleno desenvolvimento do ser huma-no. Designação das correntes e movimentospolíticos da classe operária que visam a pro-priedade coletiva dos meios de produção. Osocialismo utópico (Saint-Simon, Fourier,Proudhon etc.) foi criticado pelo socialismocientífico (Marx e Engels). Para Marx, o socia-lismo é a primeira fase revolucionária após adestruição do Estado burguês e supõe ainda aexistência de um aparelho estatal; após esta fase,deveria surgir o comunismo propriamente dito(ver). Socialismo real é a denominação pelaqual se tornou conhecido o sistema implantadona ex-URSS, sobretudo a partir da crise da dé-cada de 80. Consultar Capítulos 24 e 26.

SOFISMA Falso raciocínio. Consultar Capítulo 9.

SOFISTAS (sophistés, "sábio") Filósofos do sé-culo V a.C. Inicialmente, sofista designavaqualquer filósofo, mas a partir de Platão e Aris-tóteles adquiriu um sentido pejorativo, qualifi-cando a pessoa cuja sabedoria é aparente e queargumenta com sofismas (ver). Somente noséculo XIX iniciou-se a reabilitação dos sofis-tas. Consultar Capítulos 10 e 19.

SUBJETIVO Conhecimento subjetivo é aqueleque depende do ponto de vista pessoal, indi-vidual, não fundado no objeto, mas condicio-nado somente por sentimentos ou afirmaçõesarbitrárias do sujeito. Não confundir compar-ticular (ver). Oposição: objetivo (ver). Con-sultar Capítulo 11.

TEOLOGIA Estudo da existência, da natureza edos atributos de Deus, assim como de suarelação com o mundo. Chama-se teologiaracional ou teodicéia a parte da metafísicaque se ocupa desse assunto usando exclusi-vamente a razão. Chama-se teologia sobre-natural ou revelada a que baseia suas afirma-ções, em última instância, na revelação sobre-natural procedente de Deus. Na Idade Média,a filosofia era considerada ancilla theologiae,ou seja, "serva da teologia". Consultar Capí-tulos 10, 13 e 20.

TEORIA (théorein, "contemplar"; theoria, "visãode um espetáculo") Construção especulativado espírito; construção intelectual para justi-ficar ou explicar alguma coisa. Em oposiçãoà prática, a teoria é um conhecimento inde-pendente das aplicações; no entanto, isso nãosignifica que a teoria possa estar separada daprática, pois ela nasce da prática e deve estarsempre sujeita à crítica a partir dos aconteci-mentos. Em oposição ao senso comum, a teo-ria é uma etapa do método científico que secaracteriza pela concepção metódica e siste-maticamente organizada sobre determinadoassunto; também chamada hipótese geral,reúne diversas leis particulares numa expli-cação mais abrangente (exemplo: teoria da re-latividade). Teoria do conhecimento é a parteda filosofia que estuda as relações entre su-jeito e objeto no ato de conhecer. O conceitode teoria é também usado no sentido pejora-tivo como construção racional artificial e utó-pica, incapaz de explicar a realidade.

TOTALITARISMO Sistema político no qual to-das as atividades do ser humano estão sub-metidas ao Estado. Consultar Capítulo 25.

TRANSCENDÊNCIA Ato de ultrapassar, de iralém de; superação. Na teoria do conheci-mento, diz-se do objeto como realmente dis-tinto da consciência (caso não seja admitida atranscendência do objeto, prevalece a concep-ção idealista do conhecimento). Na teologia,a transcendência de Deus consiste no fato dea realidade infinita de Deus sobrepujar omundo e tudo quanto é finito. Na filosofiaexistencial e no existencialismo, a consciên-cia não é "em-si", mas se acha voltada paraalgo fora dela: o homem é capaz de um proje-to pelo qual executa o movimento de ultra-passar a si mesmo. A transcendência é o ou-tro pólo dialético da facticidade (ver), peloqual o homem supera as situações dadas e nãoescolhidas. Consultar Capítulos 30 e 31.

UTOPIA (ou-topos, "nenhum lugar") Que nãoexiste em lugar algum; descrição de uma so-ciedade ideal; refere-se a um ideal de vidaproposto. Pode ser também a expressão da es-perança, pois, graças ao projeto utópico —como antecipação teórica daquilo que "ain-da-não-é" —, torna-se possível criar condi-ções para a reforma social. No sentido pejo-rativo, refere-se ao ideal irrealizável.

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Revistas

Algumas já interromperam sua publicação regular.

ALMANAQUE. São Paulo, Brasiliense.

ARTE EM REVISTA. São Paulo, Centro de Estu-dos de Arte Contemporânea, Kairós.

CADERNOS DA PUC. São Paulo, PUC, Cortez.

CADERNOS DA UnB. Brasília, Ed. Universidadede Brasília.

CADERNOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DACIÊNCIA. Campinas, Centro de Lógica,Epistemologia e História da Ciência daUnicamp.

DISCURSO. São Paulo, Departamento de Filoso-fia da USP.

MANUSCRITO. Campinas, Centro de Lógica,Epistemologia e História da Ciência daUnicamp.

NOVOS ESTUDOS CEBRAP. São Paulo, CentroBrasileiro de Análise e Planejamento.

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Coleções

LOGOS. São Paulo, Ed. Moderna.

ENCANTO RADICAL. São Paulo, Brasiliense.

ESCRITORES DE SEMPRE. Lisboa, Portugália.

OS PENSADORES. São Paulo, Abril Cultural.

POLÊMICA. São Paulo, Moderna.

PRIMEIROS PASSOS. São Paulo, Brasiliense.

PRIMEIROS VÔOS. São Paulo, Brasiliense.

QUALÉ. São Paulo, Brasiliense.

TUDO É HISTÓRIA. São Paulo, Brasiliense.

VIDA E OBRA. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor.

Nota: É importante a seguinte publicação para aconsulta dos interessados nos trabalhos comfilosofia no Brasil:

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Obras literárias

O uso de textos literários como complemen-tação do debate filosófico é importante, já que oexercício de interpretação ajuda a passagem dopensamento concreto para o abstrato, propiciandodiscussões bastante ricas e abertas. A lista que sesegue não pretende ser absolutamente exaustiva,pois queremos apenas sugerir algumas pistas. Semdúvida faltarão muitos textos importantes que opróprio professor poderá completar com a sua ex-periência pessoal.

ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo.Belo Horizonte, Itatiaia, 1982.

BEAUVOIR, Simone de. Todos os homens sãomortais. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

BRECHT, Bertolt. A vida de Galileu. São Paulo,Abril Cultural, 1977. (Col. Teatro Vivo)

BUKOWSKI, Charles. Cartas na rua. São Paulo,Brasiliense, 1983. (Col. Circo de Letras)

CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro, Record.

. O estrangeiro. Rio de Janeiro, Record.

DOSTOIEVSKI, Fiodor. "O grande inquisidor". InOs irmãos Karamazov. São Paulo, Abril Cul-tural, 1970. (Col. Os Imortais da LiteraturaUniversal)

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. Os físicos. São Paulo, Brasiliense.

FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

FREIRE, Roberto. Cleo e Daniel. São Paulo, Glo-bal, 1981.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Ninguém escreveao coronel. 4. ed. Rio de Janeiro, JoséOlympio, 1976.

. O veneno da madrugada. 2. ed. Rio de Janei-ro, Record.

GOLDING, William. O senhor das moscas. Rio deJaneiro, Nova Fronteira, 1977.

GUIMARÃES, Josué. Os tambores silenciosos.Porto Alegre, Globo, 1977.

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HESSE, Hermann. Demian. 17. ed. Rio de Janeiro,Record, s.d.

. Sidarta. 20. ed. Rio de Janeiro, Record, s.d.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Rio deJaneiro, Cia. Brasileira de Divulgação do Li-vro, 1967.

KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo,Brasiliense, 1986.

. Carta a meu pai. São Paulo, Brasiliense, 1986.LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de

Janeiro, José Olympio, 1979.

. Laços de família; contos. Rio de Janeiro,Sabiá, 1960.

MACHADO DE ASSIS. O alienista e outros con-tos. São Paulo, Moderna, 1991.

MACHADO, Rubem Mauro. Jantar envenenado;contos. São Paulo, Ática, 1979.

MUSIL, Robert von. O jovem Tôrless. Rio de Ja-neiro, Nova Fronteira, 1981.

ORWELL, George. A revolução dos bichos. PortoAlegre, Globo, 1964.

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TOLSTOI, Leão. A morte de Ivan Ilich. Lisboa,Verbo, s.d.

VEIGA, J. J. A hora dos ruminantes. São Paulo, Difel.

389

ABELARDO, Pedro, 102, 372ADORNO, Theodor W., 8, 15, 124, 265, 288,

375,386

ALCUÍNO, 143, 372ALFARABI, 145ALKINDI, 145,372ALTHUSSER, Louis, 384ANAXIMANDRO, 13, 40, 166, 265, 373, 375ANAXÍMENES, 66, 68, 371APEL, Karl-Otto, 283, 289, 375ARENDT, Hannah, 183, 184ARIES, Phillipe, 334, 335, 384ARISTARCO de Samos, 139ARISTÓFANES, 319

ARISTÓTELES, 62, 72, 80, 84, 85, 91, 92, 94,96, 98, 99, 102, 116, 120, 137, 138, 139, 140,141, 143, 144, 145, 146, 150, 152, 157, 160,185, 190, 192, 194, 195, 196, 197, 200, 201,278, 284, 289, 363, 364, 371, 372

ARNHEIM, Rudolf, 340ARQUIMEDES, 27, 136, 140, 143, 150, 156,

160,371AVERRÓIS, 372AVICENA, 145,372

BABEUF, Gracchus, 236BACHELARD, Gaston, 131, 374BACON, Francis, 83, 85, 106, 107, 108, 154,

155,210,373BACON, Roger, 106, 145, 372BAKUNIN, Mikhail Aleksandrovitch, 237, 238,

239, 247, 248, 249BARTHES, Roland, 60, 61, 323, 324, 330, 375,

384BASAGLIA, Franco, 39BATAILLE, Georges, 280, 325, 329, 384

BAUDELOT, Christian, 41BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb, 112

BEAUVOIR, Simone, 186, 188, 303, 304, 305,308,309,310,388

BECCARIA, César, 182BENEVIDES, Maria Victoria M., 227BENJAMIN, Walter, 124, 132, 265, 288, 375BENTHAM, Jeremy, 230, 231BERGER, Peter, 7, 383, 384BERGSON, Henri, 23, 375BERNARD, Claude, 86, 87, 155, 157, 161, 164BERNARDET, Jean Claude, 33, 359BERNSTEIN, Eduard, 263, 264, 265BETTELHEIM, Bruno, 60BINSWANGER, Ludwig, 123BLANC, Louis, 237, 238BLANQUI, Auguste, 237, 238BOBBIO, Norberto, 259, 261, 262, 270, 383, 384BODIN,Jean, 213, 372BOÉCIO, 102,372BOURDIEU, Pierre, 40BORNHEIM, Gerd, 69, 295, 383, 385BOSS, Medard, 334BOSSUET, Jacques B., 299BRENTANO, Franz, 123, 170, 375BRUNO, Giordano, 146, 151, 372BUKHARIN, Nikolai, 264BURNET, John, 68

CAMPANELLA, Tommaso, 236, 373CAMUS, Albert, 331,388CAPALBO, Creusa, 2CARNAP, Rudolf, 163, 374CARUSO, Igor, 321,385

CASSIRER, Ernst, 28, 57, 58, 206, 346, 375, 383,385

391

C

B

A

ÍNDICEONOMÁSTICO

CHAMPEAUX, Guilherme de, 102, 372CHÂTELET, François, 75, 76, 112, 117, 118,

122, 175, 239, 254, 383, 385CHAUI, Marilena de Souza, 40, 86, 134, 165,

182, 183, 185,327,383,385CIRNE, Moacy, 48, 49, 385CLASTRES, Pierre, 60, 186, 188, 189, 385CLEMENTE de Alexandria, 143, 371COELHO NETTO, J. Teixeira, 354, 370, 385COMFORD, Alex, 248COMTE, Auguste, 58, 115, 116, 117, 118, 132, 155,

161, 162, 168, 174, 175, 231, 298, 313, 373CONDILLAC, Etienne Bonnot de, 81, 285COOPER, David, 39COPÉRNICO, Nicolau, 113, 128, 139, 144, 151,

159, 163, 166,226,372COPI, Irving, 83, 84, 86, 385CORNFORD, F. M., 67CUVILLIER, Armand-Joseph, 157, 383

D'ALEMBERT, 112,222DA MATTA, Roberto, 334DANTE ALIGHIERI, 202, 372DAR WIN, Charles, 88, 90, 158, 161, 163, 166DELEUZE, Gilles, 21, 26, 375, 385DEMÓCRITO, 66, 67, 371DEMÓSTENES, 316DESCARTES, René, 10, 22, 23, 24, 26, 85, 102,

103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 111, 112,124, 149, 154, 166, 210, 218, 266, 304, 309,312,313,314,365,373

DESNÉ, Roland, 112DE WAELHENS, Alphonse, 123, 375DEWEY, John, 24, 169, 375D'HOLBACH, barão, 298DIDEROT, Denis, 112, 121, 222, 224, 373DIELS, Hermann, 68DILTHEY, Wilhelm, 23, 375DIONÍSIO, o Velho, 54, 193DORFMAN, Ariel, 46, 385DUFRENNE, Mikel, 344, 347, 385DUHEM, Pierre, 162, 164, 374DUMAZEDIER, J., 18, 19, 385DUMESNIL, 105DURKHEIM, Émile, 161, 168

ECO, Umberto, 43, 46, 145, 355, 385EHRENFELS, Christian, baron von, 171

EINSTEIN, Albert, 83, 156, 158, 162, 163ELIADE, Mircea, 47, 56, 57, 385EMPÉDOCLES, 66, 67, 69, 138, 319, 371ENGELS, Friedrich, 88, 89, 91, 119, 121, 232,

235, 237, 238, 239, 240, 262, 263, 373, 387EPICURO, 284, 289, 371ESCOREL, Lauro, 205, 385ESTABLET, Roger, 41EUCLIDES, 24, 135, 143, 150, 160, 162, 371EURÍPEDES, 283

FECHNER, Gustav Theodor, 168, 175FEUERBACH, Ludwig, 91, 115, 119, 235, 239,

373, 387FEYERABEND, Paul K., 163, 374FICHTE, Johann Gottlieb, 115, 373FILÓPONO, 69FISCHER, Ernst, 349, 350, 385

FOUCAULT, Michel, 39, 166, 167, 231, 328,373, 374, 375, 386

FOURIER, Charles, 237, 238, 373FRAYSE PEREIRA, João, 39, 187FREGE, Gottlob, 86, 374FREITAG, Bárbara, 295, 386FREUD, Sigmund, 55, 124, 125, 166, 167, 172,

173, 177, 285, 287, 288, 289, 291, 300, 324,326, 386

FRIEDMANN, G., 16,386FROMM, Erich, 13, 265, 267, 323, 375, 386FURTER, Pierre, 316, 386

GALILEU GALILEI, 10, 73, 102, 106, 116, 126,128, 130, 136, 138, 139, 144, 146, 148, 149,150, 151, 152, 153, 155, 156, 157, 158, 159,160, 163, 167, 210, 312, 373, 388

GANDHI, Mahatma, 248GARAUDY, Roger, 91, 233, 266, 386GARCIA MORENTE, Manuel, 95, 97, 104, 106,

117, 118,273,383GHISELIN, 337, 339GIANOTTI, José Arthur, 276GILSON, Étienne, 199, 202GOLDMAN, Emma, 248GORBATCHEV, Mikhail, 267, 268GORER, Geoffrey, 334GÓRGIAS, 25, 94, 96, 192, 371GRAMSCI, Antonio, 35, 37, 74, 129, 131, 265,

268, 375, 386GREEN, Thomas, 260

F

D

G

E

392

GRÓCIO, Hugo, 213GUATT ARI, Felix, 21, 26, 375GUILLAUME, Paul, 3, 386GUSDORF, Georges, 6, 28, 32, 57, 59, 77, 79,

290, 295, 300, 303, 312, 333, 386GUTENBERG, Johannes, 10, 372

HABERMAS, Jürgen, 14, 125, 266, 269, 288,289, 373, 375

HAMILTON, Sir William, 170HARTMANN, Nicolai, 123, 375HAUSER, Arnold, 353, 386HAYEK, Friedrich, 261HEGEL, Georg Wilhelm, 11, 12, 88, 89, 91, 93,

94,96, 115, 118, 119,233,234,235,239,240, 244, 246, 320, 373, 386

HEIDBREDER, Edna, 170, 297, 386HEIDEGGER, Martin, 7, 13, 123, 124, 170, 304,

305, 308, 332, 373, 375, 386HELVETIUS, 112, 121HERÁCLITO de Éfeso, 66, 69, 92, 93, 99, 371HERDER, Joham Gottfried, 112, 383, 386HESÍODO, 54, 63, 66, 67, 72, 84, 94, 96, 192,

297,319,322HIPÓCRATES, 145, 146, 371HIPÓDAMOS, 94, 96, 192HIPPIAS, 192HITLER, Adolf, 26, 54, 252, 253, 265HOBBES, Thomas, 210, 211, 212, 213, 215, 218,

219, 224, 227, 373, 386, 387HOBHOUSE, Leonard, 260HOBSON, John, 260HOMERO, 62, 63, 68, 69, 70, 72, 84, 94, 96, 192,

286,289,297,298,371HORKHEIMER, Max, 8, 9, 15, 122, 124, 265,

288, 375, 386HUISMAN, Denis, 27, 77, 79, 164, 383HUME, David, 23, 107, 108, 110, 111, 112, 154,

373HUSSERL, Edmund, 23, 71, 123, 170, 171, 304,

305, 375

JAEGER, Werner, 94, 96, 191, 192, 386JAKOBSON, Roman, 355, 386JAMES, William, 24, 55, 169, 375, 386JANKÉLÉVITCH, Vladimir, 319JAPIASSU, Hilton, 131, 134, 384, 386JASPERS, Karl, 76, 77, 78, 79, 123, 170, 305,

331,375,383

JUNG, Carl Gustav, 28

KANT, Immanuel, 21, 23, 26, 72, 91, 112, 113,114, 115, 117, 125,221,222,259,285,289,365, 366, 373, 386

KAUTSKY, Karl, 263, 264KEYNES, John Maynard, 260KIERKEGAARD, Sõren, 122, 125, 285, 287,

305,373KNELLER, George, 131, 158, 159, 386KOESTLER, Arthur, 144, 386KOFFKA, Kurt, 171KOHLBERG, Lawrence, 294KöHLER, Wolfgang, 3, 4, 171, 172KOYRÉ, Alexandre, 152, 386KRANZ, Walter, 68KROPÓTKIN, Pierre A., 248KRUCHEV, Nikita S., 255, 266KUHN, Thomas, 163, 374

LA BOETIE, Etienne de, 213, 329LACAN, Jacques, 291LAING, Ronald, 39LAKATOS, Imre, 163, 374LAKLEN, 338LALOUP, Jean, 146LA METTRIE, Julien Offray de, 298, 373LANGER, Suzanne, 345, 348, 387LÉBRUN, Gerard, 180, 262, 387LEFORT, Claude, 181, 182, 207, 387LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, 85, 149, 373LÊNIN (Wladimir Ilitch Ulianov), 14, 89, 255,

263, 264, 375LEUCIPO, 66, 371LÉVI-STRAUSS, Claude, 274, 375LÉVY-BRÜHL, Lucien, 186LIEBKNECHT, Karl, 265LOBATCHEVSKI, 162LOCKE, John, 23, 26, 103, 106, 107, 108, 110,

111, 112, 154, 166,218,219,220,221,222,224, 226, 227, 232, 285, 304, 313, 373, 387

LOPES, Edward, 32, 33, 387LUCRÉCIO, 335, 371LUIJPEN, W. A. M., 300, 315, 387

LUKÁCS, Georg, 375LÚLIO, Raimundo, 108LUXEMBURGO, Rosa, 265

J

393

K

H

MACHADO, Roberto, 287, 387MACPHERSON, C. B., 212, 213, 219, 387MALEBRANCHE, Nicolas, 111, 373MALRAUX, André, 362, 366MAQUIAVEL, Nicolau, 196, 203, 204, 205, 206,

207, 209, 213, 372, 384, 385, 386, 387

MARCEL, Gabriel, 278, 306, 321, 375MARCHAIS, Georges, 266MARCUSE, Herbert, 17, 124, 265, 267, 288, 326,

328, 329, 375, 387MARÍAS, Julián, 335, 383MARSÍLIO de Pádua, 201, 202, 372MARX, Karl, 8, 11, 12, 14, 19, 88, 89, 91, 93,

119, 120, 121, 124, 125, 161, 166, 226, 232,234, 235, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 243,244, 245, 246, 247, 248, 249, 255, 260, 262,263, 267, 269, 285, 286, 288, 289, 373, 387

MATOS, Olgária, 124, 387MATTELART, Armand, 46, 385MAUROIS, André, 87MERCHIOR, José Guilherme, 230MERLEAU-PONTY, Maurice, 71, 76, 78, 123,

130, 133, 170, 171, 173, 175, 177, 267, 297,303, 306, 318, 329, 373, 374, 375, 387

MERSENNE, Marin, 144MICHELIS, A., 353MILL, James, 86, 230,MILL, John Stuart, 85, 229, 230, 231, 232, 237,

259, 373MONDOLFO, Rodolfo, 198, 383MONTAIGNE, Michel de, 25, 331, 332, 335, 372MONTESQUIEU, barão de, 112, 182, 219, 221,

222, 223, 230, 373MOORE, Charles, 370MORE, Thomas, 213, 236, 372MORIN, Edgar, 322MOUNIER, Emmanuel, 9, 13, 299, 375MUSSOLINI, Benito, 252, 253, 256

OIT1CICA, José, 249ORÍGENES, 143,371ORWELL, George, 5, 248, 256, 258, 389OSBORNE, Harold, 362, 365, 366, 387OWEN, Robert, 237, 238, 373

PAINE, Thomas, 230PARMÊNIDES, 66, 69, 84, 92, 93, 98, 99, 136,

319,371PASCAL, Blaise, 10, 130, 147, 148, 149, 184,

273, 274, 278, 373PASSERON, Jean-Claude, 40PASTEUR, Louis, 157, 161PAVLOV, Ivan, 169PEDROSA, Mário, 369PEIRCE, Charles Sanders, 24, 29, 375, 387PEREIRA, Maria Helena Rocha, 39, 63, 68, 387PÉRICLES, 65, 93, 191, 196, 197, 371PETERFALVI, 33PIAGET, Jean, 291, 295, 387PIÉRON, Henri, 170PITÁGORAS de Samos, 66, 72, 135, 137, 371PLATÃO, 10, 62, 68, 69, 70, 71, 72, 77, 79, 84,

92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 101, 102, 129, 133,136, 137, 138, 140, 146, 190, 192, 193, 194,196, 197, 198, 200, 206, 284, 311, 312, 313,319, 320, 322, 332, 363, 364, 371, 387

POINCARÉ, Henri, 162, 337, 339, 374POPPER, Karl, 163, 164, 165, 374PRADO COELHO, Eduardo, 166, 281PRÉLOT, Marcel, 387PROTÁGORAS, 93, 94, 96, 192, 371PROUDHON, Pierre Joseph, 237, 238, 239, 247,

248, 373PSEUDO-PLUTARCO, 68PTOLOMEU, Cláudio, 139, 143, 144, 150, 152,

158, 160, 371

NEURATH, Otto, 163NEWTON, Isaac, 112, 128, 131, 139, 149, 152,

156, 158, 159, 163,351,373NIETZSCHE, Friedrich, 24, 25, 122, 123, 124, 164,

285, 286,287, 288, 289, 318, 331, 373, 387NOGUEIRA, Marco Aurélio, 262NOSELLA, Maria de Lourdes, 43, 387NOVAES, Adauto, 185, 276, 387, 288

OCKHAM, Guilherme de, 201, 372

QUINCY, Quatremère de, 343

RABELAIS, François, 132RAWLS, John, 261READ, Herbert, 248, 387REICH, Wilhelm, 267, 288REID, Thomas, 112

REY, J. M., 122RICARDO, David, 161, 217, 240

M

P

QN

R

O

394

RICOEUR, Paul, 123, 375ROCHA E SILVA, Maurício, 159, 160, 388ROSCELINO, 102, 372ROSSELLI, Cario, 260ROUANET, Sérgio Paulo, 27, 124, 256, 288, 388ROUSSEAU, lean-Jacques, 12, 112, 204, 218,

222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 259,285, 289, 373, 388

RUSSELL, Bertrand, 86, 163, 374

SAINT-SIMON, conde de, 231, 237, 238, 373SA.LMON, Wesley, 81, 86, 388SANTO AGOSTINHO, 101, 103, 143, 199, 200,

202, 312, 326, 364, 371, 372

SANTO ANSELMO, 102SAN TOS, Laymert Garcia dos, 19, 388S A N T O TOMÁS de Aquino, 10, 91, 102, 103,

14.3, 146, 200, 201, 202, 364, 372SÃO B ERNARDO de Claraval, 200SARTR-E, Jean-Paul, 13, 123, 170, 267, 287, 304,

305, 306, 307, 308, 332, 373, 375, 388, 389SAVIAMI, Dermeval, 74, 300, 388SCHAFT', Adam, 32, 388SCHELIiR, Max, 123, 305, 375SCHELIJNG, Friedrich, 115, 373SCHLIC K, Moritz, 163, 374SCHUHL, M. P. M., 135SEVILHA, Isidoro de, 202SILVA, Aracy Lopes da, 189SIMPLfclO, 68SINGER, Paul, 268, 269

SKINNER, Burrhus Frederic, 170, 175, 176, 297,298

SMITH, Adam, 161, 240SNYDERS, Georges, 42SÓCRATES, 62, 66, 69, 71, 72, 76, 77, 78, 79,

80, 81, 84, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 129,192, 193, 197, 198, 284, 286, 319, 332, 371

SÓFOCLES, 55, 283, 389SOLLERS, 281SONTAG, Susan, 317SPENCER, Herbert, 162, 373SPINOZA, Baruch, 154, 213, 313, 314, 315, 318,

373STÁLIN, Joseph, 90, 181, 255, 263, 264STECKEL, Wilhelm, 177

TAINE, Hippolyte, 298, 373

TALES de Mileto, 66, 67, 72, 135, 371TAYLOR, Calvin W., 388TAYLOR, Frederick, 13TELLES, Norma, 189TERTULIANO, 143THATCHER, Margareth, 261THOUREAU, Henry, 247TOCQUEVILLE, Alexis de, 230, 231, 232TOGLIATTI, 266TOLSTÓI, Leon, 248TOUCHARD, Jean, 230, 388TRACY, Destutt de, 42, 44TRÓTSKI, Leon, 90, 256, 263, 264

VALERY, Paul, 131,227VAN RIET, Georges, 300VERDENAL, René, 117, 118VERGEZ, André, 27, 77, 79, 164, 383VERNANT, Jean-Pierre, 62, 65, 67, 68, 135, 388VESÁLIO, 149, 312VIEIRA PINTO, Álvaro, 90, 388VOLTAIRE, François-Marie Arouet, 112, 222,

224, 373

WATERSTON, John James, 159WATSON, John B., 169, 170, 175, 297, 298, 303WATSON-CRICK, 159WEBER, Max, 161, 180, 326WEFFORT, Francisco, 115, 388WEIL, Eric, 234WHITEHEAD, Alfred, 75, 86, 163, 374WITTGENSTEIN, Ludwig, 163, 374WOLFF, Christian, 112WOODCOCK, George, 248, 249, 250WOODSWORTH, 169WUNDT, Wilhelm, 168, 169, 175

XENÓFANES, 66, 371XENOFONTE,71,95,97

ZENÃO de Eléia, 66, 371ZENO de Cítio, 284

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