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O GÊNERO DIÁRIO PESSOAL: contexto e interdisciplinaridade no

estudo da obra Diário de Anne Frank

POZZANI, Graciana Martelozo1

STEFFLER, Juliana Carla Barbieri2

Resumo: O presente artigo é resultado da implementação da Unidade Didática intitulada “Revelação

de um segredo guardado a sete chaves”. Desenvolvida com um grupo de alunos do 8º e 9º ano do

Ensino Fundamental, da Escola Estadual Agostinho Stefanello, em Alto Paraná, PR, apresenta-se

como requisito obrigatório no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE). O objetivo foi

aprimorar a prática discursiva a partir do trabalho com o gênero Diário Pessoal utilizando, para isso, a

obra mundialmente conhecida O Diário de Anne Frank. Ao final, pode-se constatar que as práticas

desenvolvidas durante as aulas possibilitaram um maior interesse pela leitura e, consequentemente,

pela escrita.

Palavras-chave: língua-portuguesa; ensino fundamental; diário pessoal.

1 INTRODUÇÃO

“Quando escrevo, consigo afastar todas as preocupações. Minha tristeza desaparece, meu ânimo renasce! Mas- e esta é uma grande questão- será que conseguirei escrever alguma coisa importante, será que me tornarei jornalista ou escritora?

Espero, ah, espero muito, porque escrever me permite registrar tudo, todos os meus pensamentos, meus ideais e minhas fantasias.” (ANNE FRANK, 2015, p.306).

O presente artigo constitui parte integrante das atividades previstas no

Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), promovido pela Secretaria de

Educação do Estado (SEED). Além disso, é resultante do aprofundamento teórico, da

reflexão sobre as práticas pedagógicas e da implementação da Unidade Didática

intitulada “Revelação de um segredo guardado a sete chaves”, desenvolvido com um

grupo de quinze alunos da Escola Estadual Agostinho Stefanello.

A escolha do trabalho com a leitura e, posteriormente, com a escrita se deu em

1 Professora da rede Estadual de Educação do Estado do Paraná – SEED, participante do PDE, edição 2016-2017, área de Língua Portuguesa. 2 Professora do Colegiado de Letras da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR / Pvaí), Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e doutoranda em Linguística pela mesma universidade.

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função da grande dificuldade demonstrada pelos educandos cuja ausência de hábitos

regulares de leitura reflete não apenas no processo de ensino-aprendizagem de

Língua Portuguesa, como no das demais disciplinas. Por isso, para que o aprendizado

ocorra de modo satisfatório, é preciso que os leitores sejam capazes não apenas de

decifrar o código linguístico, mas, acima de tudo, de compreender o mundo à sua volta

com criticidade. Por conseguinte, o ensino da leitura, cada vez mais, tem se tornado

um elemento indispensável para a inclusão social e a formação da cidadania.

Partindo desse pressuposto, a escolha do gênero Diário Pessoal foi subsidiada

pela necessidade de se valorizar a linguagem e o pensamento crítico em busca da

formação do sujeito letrado. O gênero em questão, por seu turno, oferece ao leitor a

compreensão de que o registro é o diálogo de um indivíduo com seu tempo e seu

espaço. Nesse afã, optou-se por trabalhar O Diário de Anne Frank, visto que o texto

oferece um panorama bastante claro da interação entre o sujeito e o mundo a sua

volta.

Com o objetivo de aprimorar a prática discursiva de modo a garantir uma

inserção crítica na sociedade, o trabalho realizou-se sob a abordagem teórica que

considera a linguagem um produto da interação humana. Sob essa ótica, as DCEs

convidam o professor a ter uma postura educacional diferenciada: o docente,

enquanto mediador, deve proporcionar aos alunos condições para compreender o

texto como manifestação viva da linguagem. Esta, por sua vez, é permeada por

significações e sentidos produzidos por um sujeito participante de um discurso através

das propostas enunciativas resultantes dos processos de interação social. Com vistas

à sua implementação, elaborou-se um material didático na forma de Unidade Didática,

com propostas que abordaram desde o conhecimento da estrutura do gênero diário,

até estudos de temas relativos à adolescência. Além disso, integraram-se à proposta

atividades que funcionaram como verdadeira força motriz, capazes de despertar o

gosto pela leitura e o envolvimento com a escrita.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

As Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa conceituam a linguagem como

fenômeno social da interação humana, realizada através da enunciação ou das

enunciações. Saber disso implica que o professor fundamente a sua ação pedagógica

numa postura diferenciada, uma vez que coloca a linguagem como o lugar de

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constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos. Não é mais só

“passar” informações, mas compartilhá-las. O professor surge como um mediador

permitindo ao estudante se posicionar, se envolver, participar, discutir, dialogar, enfim,

constituir-se como sujeito participante de um discurso.

A reforma educacional dos últimos anos, defendida pelas Diretrizes, descarta,

por um lado, a antiga proposta de programas fechados das áreas de ensino. Por outro,

problematiza a questão de se ensinar ou não gramática e a importância do ensino da

língua materna, tendo em vista que: “não se trata mais de decifrar uma língua, mas,

uma vez que essa língua é decifrada, de ensiná-la” (BAKHTIN, 2003, p.100).

Nesse ínterim, ganham especial relevo os estudos de Bakhtin3, nome influente

entre teóricos, que concebe a linguagem com ênfase na interação. O ensino de língua

passa a ter como foco o discurso e a análise dele. Não mais a velha máxima de que

saber língua significava saber – tão somente - teoria gramatical. Essa concepção cede

lugar à que compreende o “saber linguístico” como o estudo do discurso e das

relações estabelecidas entre a língua e os sujeitos que a empregam, bem como entre

as situações comunicativas.

Os discursos, sejam eles políticos, literários, acadêmicos, ou midiáticos,

sempre vêm carregados de ideologias, de intenções e tensões. A esse traço inerente

Bakhtin (2003) dá o nome de dialogismo: fala constituída do eu e do outro; a

necessidade do EU e do TU nas capacidades discursivas.

Ao produzirmos esses discursos, devemos tomar como ponto de referência o

horizonte do enunciador em relação ao receptor, uma vez que, conforme Geraldi

(1997, p.29), “diversas operações discursivas são realizadas pelos falantes na

construção de seus discursos, para atingir os propósitos que motivam suas falas”. Em

outras palavras, o falante discursivamente competente é aquele que emprega uma

linguagem diferente dependendo da situação experimentada. Diante disso, o receptor

ou leitor precisa considerar: a posição e o propósito da enunciação do autor, a

modalidade e informações usadas; o suporte e o formato em que os enunciados serão

veiculados; o contexto de produção e as implicações que sairão dessa comunicação.

Portanto, estudar o texto não significa tão somente analisar os aspectos

gramaticais, sintáticos, morfológicos, semânticos, ou aqueles infindáveis

3 O filósofo criou, no fim da década de 10 e início dos anos 20, o Círculo de Estudos que, depois, viria a receber seu nome (Bakhtin). Do grupo fazia parte um conjunto de pensadores que discutiam questões de natureza filosófica, artística e literária.

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questionamentos que tinham como propósito avaliar apenas se o texto fora lido. É

essencial observar os pontos extratextos, os fenômenos extralinguísticos, porque o

enunciado está para além da simples decodificação dos signos linguísticos.

O desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente com as peculiaridades das diversidades de gênero do discurso em qualquer campo da investigação linguística redundam em formalismo e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as relações da língua com a vida. (BAKHTIN, 2003, 265).

Ao sair da esfera da palavra, parte-se para a esfera dos sentidos. Ver o que há

por trás, quais as estruturas empregadas, porque cada estrutura demanda um

conhecimento, ou ainda, segundo Geraldi (1997, p.98), “um texto é o produto de uma

atividade discursiva onde alguém diz algo a alguém”.

Ademais, uma sociedade dinâmica e tecnológica espera que o leitor vá além

do saber reconhecer e decodificar as letras. Só assim, conseguir-se-á desenvolver a

prática discursiva para que o cidadão analise, de forma bastante crítica, os mais

diversos discursos ideológicos que, muitas vezes, dominam e alienam.

Nesse sentido, Dias et alli. 2011 explicam:

Sabemos que a competência discursiva engloba outras, tais como: a competência linguística, - capacidade de usar, nas diversas situações de comunicação, os recursos linguísticos que a língua oferece - proposta por Chomsky (1971); a competência textual - a capacidade que todo usuário tem de reconhecer um texto como uma unidade de sentido coerente e de produzir textos coerentes de diversos tipos – proposta por Van Dijk (1972); a competência comunicativa - capacidade de usar a língua de acordo com a situação e local onde o falante se encontra, de saber quando falar, quando não falar, a quem falar, com quem, onde e de que maneira; de saber e de usar as regras do discurso específico da comunidade na qual se insere – proposta por Dell Hymes (1984).

Com a finalidade de desenvolver as habilidades discursivas, o professor

precisa apresentar uma diversidade de textos de diferentes funções, de diferentes

esferas sociais, com práticas que envolvam o sujeito. Isso ocorre, porque, ao contrário

do senso comum a respeito, a leitura de textos literários clássicos não deve ser

tomada como a única de valor.

O trabalho com a linguagem, na escola, vem se caracterizando cada vez mais pela presença do texto, quer enquanto objeto de leituras, quer enquanto trabalho de produção. Se quisermos traçar uma especificidade para o ensino de língua portuguesa, é no trabalho com textos que a encontraremos. Ou seja, o específico da aula de português é o trabalho com textos (GERALDI, 1997, p. 105).

A par das considerações de Geraldi, entende-se que trabalho com os gêneros

discursivos não deve se limitar ao estudo da forma, visto que assim perde-se a

dinâmica, a história. Antes, deve extrapolar os limites estruturais em direção ao

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contexto de produção histórico-cultural.

Por isso, falar de gêneros discursivos é entender que estes estão relacionados

às diferentes formas de expressão e se manifestam de acordo com a cultura, o

conhecimento e as ideias de cada indivíduo. São famílias de textos, relativamente

estáveis quanto às suas características e à estrutura física. Diante disso, é primordial

entender que os gêneros evoluem, se transformam, caem em desuso, de acordo com

a evolução da sociedade, das necessidades de comunicação e das possibilidades de

intenção. Não há limite para a criação de gêneros, pois que eles “nascem” de uma

situação de comunicação que pede um texto específico com características

particulares.

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitos, porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque, em cada campo dessa atividade, é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN, 2003, p. 262).

Há, assim, gêneros orais (conversa ao telefone, piadas, debates,

apresentação escolar, seminário, dentre outros) e escritos (e-mail, bilhete, diário,

conto, bula de remédio, receita, por exemplo). Importante salientar que cada um deles

possui uma tipologia textual pautada nas intenções de narrar, descrever, argumentar,

instruir ou relatar.

Apesar de ser confundida com os gêneros do discurso, a tipologia textual

apresenta algumas características internas próprias observadas de acordo com a

sequência e a sucessão de informações. Ora, o gênero discursivo conto, por exemplo,

traz numa sequência narrativa, trechos com caráter descritivo e até argumentativo.

Daí o caráter híbrido dos gêneros, quando um texto pode trazer, em sua constituição,

duas ou mais tipologias.

Outro ponto importante a se considerar é que nem todos os gêneros têm a

mesma relevância nos mais diversos contextos sociais. Cada esfera discursiva lança

mão dos que lhes são próprios. Dentre estas, pode-se citar a esfera jornalística, a

religiosa, a acadêmica, a literária, a publicitária, a jurídica, a política, a midiática e a

cotidiana. Por isso, entende-se que apenas um indivíduo discursivamente qualificado

é capaz de transitar nas diferentes esferas e participar das práticas sociais

específicas.

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas. Frequentemente, a pessoa domina magnificamente o discurso em diferentes

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esferas de comunicação cultural, sabe ler o relatório, desenvolver uma discussão científica, fala magnificamente sobre questões sociais, cala ou intervém de forma muito desajeitada em uma conversa mundana. Aqui não se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata; tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertório de gêneros da conversa mundana, a uma falta de acervo suficiente de noções sobre todo o enunciado que ajudem a moldar de forma rápida e descontraída o seu discurso nas formas estilístico- composicionais definidas, a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo, de começar corretamente e terminar corretamente. (BAKHTIN, 2003 p.284).

Ao se considerar o trabalho com gêneros discursivos, deve-se ponderar que

a escola é a instituição, socialmente constituída, responsável por promover o contato

dos alunos com os gêneros discursivos de forma analítica e sistemática, de modo que

possam reconhecer suas características estruturais e também produzi-los de maneira

eficiente.

No que se refere ao reconhecimento quanto às características estruturais,

acredita-se que não se deva enfatizar somente a forma, já que essas são variáveis.

Deve-se preocupar também com o modo como as atividades humanas estão

organizadas em linguagem. Lembrando que a meta principal do processo ensino-

aprendizagem é levar o aluno ao domínio de sua língua materna.

Sobre isso, as DCEs (2008, p. 63) destacam que “a língua deve ser trabalhada

na sala de aula a partir da linguagem em uso, que é a dimensão dada pelo Conteúdo

Estruturante”. Assim, o trabalho com a disciplina deve tomar como ponto de partida

os gêneros discursivos (aqui entendidos como aqueles que circulam socialmente). O

professor, por conseguinte, precisa apresentar aos alunos uma diversidade de textos

advindos de diferentes funções, de diferentes esferas sociais, com práticas

discursivas que envolvam o sujeito.

Nesse afã, parte-se de uma esfera discursiva específica e, depois, para um

gênero que lhe é próprio. Para o ensino de língua, propõem-se o enfoque nos gêneros

discursivos presentes no cotidiano dos alunos. De acordo com as DCEs (2008, p. 64),

“o professor é que tem o contato direto com o aluno e com suas fragilidades linguístico-

discursivas”. Consequentemente, cada ao docente avaliar qual gênero melhor se

adequa às necessidades de aprendizagem de seus alunos. Assim, por exemplo,

enquanto os gêneros da esfera jornalística ou política tendem a figurar nas séries

referentes do Ensino Médio, justamente por serem gêneros secundários, o gênero

Diário Íntimo pode ser explorado de modo bastante satisfatório nas séries finais do

Ensino Fundamental.

O diário, do latim diarium, está relacionado ao vocábulo dia e, para muitos,

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pode ser considerado uma autobiografia, com a seguinte ressalva: produz-se um texto

autobiográfico, ou de memórias, tratando-se de um passado mais longínquo. Já o

diário lida com eventos presentes (quase) imediatos. Os relatos são bastante

próximos quanto à temporalidade do momento da escrita.

Quanto à presença constante das marcas temporais relativas ao tempo de produção, pode-se dizer que ela está ligada ao caráter de periodicidade, quando não ao de cotidianidade, de escritura do dia-a-dia, que mantém uma distância temporal mínima entre os acontecimentos vividos e o ato de produção. (MACHADO, 1998, p. 25).

O gênero diário caiu no gosto dos leitores, talvez, pela linguagem simples,

familiar, sem grandes preocupações literárias. Vale ressaltar, porém, que a prática de

se registrar as impressões pessoais vem de tempos.

Entre o século XVIII e final do século XIX, a atividade de se registrar em diário

acontecia por motivos educativos ou religiosos. No campo da educação, era uma

prática envolvendo instrutora/mãe com o aluno no intuito de acompanhar e avaliar o

aprendizado da escrita. A igreja Católica incentivava tal escrita como exercício para

exame de consciência dos pecados cometidos, o que facilitaria ao pecador lembrar-

se dos erros na hora da confissão, recebendo assim prontamente o perdão.

Entretanto, a partir de um certo momento, foram se desenvolvendo duas posições educacionais antagônicas: uma que estimulava essa prática, e outra que a condenava e que apontava riscos em sua utilização. A primeira posição era característica do ensino laico, fornecido em casa, pela mãe ou pela instrutora, que recomendavam a escrita do diário todos os dias, ou diretamente, ou através da sugestão da leitura de romances-diários, que se constituíam em modelos de conduta e de escrita. De outro lado, aparecia uma posição contraditória da Igreja que, ao mesmo tempo que aconselhava o exame de consciência, apontava para o perigo de os jovens caírem no narcisismo e na complacência de si. (MACHADO, 1998, p.43).

O diário teve seu ápice no século XX. A racionalidade da modernidade

instigara o sujeito à reflexão pessoal, ao questionamento de suas ações e atitudes.

Esse momento de questionamento da própria existência trouxe consigo um estímulo

à escrita.

O exercício dessa prática diarista, por vezes, foi marcado por preconceitos,

posto que havia poucas publicações de caráter didático. Para muitos pesquisadores

e educadores, ela é vista como um instrumento “pouco sério”, ironizando-se

frequentemente a ação daqueles que começam a utilizá-la e a defendê-la

(MACHADO, p.44).

Na contramão dessa desconfiança, historiadores, psicólogos, pedagogos,

pesquisadores passam a escrever diários abordando diversos assuntos significativos

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para a ciência.

Os dias atuais estão marcados por exposições constantes da vida privada em

vários meios de comunicação. Nessa evidenciação intimista, o sujeito passa a situar

sua vida particular como uma aventura individual, que se deve perpetuar na memória

dos outros.

Utilizar o diário como material didático é compreender sua riqueza, uma vez

que este oferece uma dimensão do perfil social, histórico, político, cultural do momento

em que foi escrito. A disciplina de interiorização é capaz de registrar o diálogo de um

indivíduo com seu tempo e seu espaço. Nesses materiais, pode-se ver a

interdisciplinaridade com outras disciplinas bem como história, sociologia, geografia,

ensino religioso, arte, e demais. Por isso, valendo-se da Língua Portuguesa, este

material faz amplo uso de experiências com as linguagens.

Desse modo, explicita-se que as disciplinas escolares não são herméticas, fechadas em si, mas, a partir de suas especialidades, chamam umas às outras e, em conjunto, ampliam a abordagem dos conteúdos de modo que se busque, cada vez mais, a totalidade, numa prática pedagógica que leve em conta as dimensões científica, filosófica e artística do conhecimento. (PARANÁ, 2008, p.27).

O diário é considerado um gênero discursivo, pois promove a reflexão

individual, com características próprias e funções específicas, sendo ainda uma

ferramenta de transformação utilizada em diferentes esferas sociais, como

acadêmica, literária, religiosa, cotidiana, escolar. E o diário íntimo/pessoal, da esfera

cotidiana, é um subgênero assim como o diário de leitura, diário de viagem, diário de

bordo e outros.

Aqui, o foco será o diário íntimo no qual o interlocutor é a própria pessoa que

escreve. Protagonista e narrador são coincidentes e, por esse motivo, a modalidade

de enunciação do discurso é a 1º pessoa do singular.

Os gêneros e estilos íntimos se baseiam na máxima proximidade interior do falante com o destinatário do discurso (no limite, como que na fusão dos dois). O diário íntimo é impregnado de uma profunda confiança no destinatário, em sua simpatia- na sensibilidade e na boa vontade da sua compreensão responsiva. Nesse clima de profunda confiança, o falante abre as suas profundezas interiores. (BAKHTIN, 2003, p. 304).

Esse diálogo íntimo entre escritor e papel tem como objetivo relatar

experiências, registrar a rotina, expressar ideias, emoções, desejos, frustrações. Além

de textos, incluem fotos, imagens, figuras, bilhetes, anotações, poesias. São outros

gêneros dentro desse gênero. Considerados hibridismos, como já mencionado.

A jovem Anne em seu famoso diário, selecionado para este trabalho, tenta

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descrever essa experiência vivida por muitos.

Sábado, 20 de junho de 1942

Fiquei alguns dias sem escrever porque queria, antes de tudo, pensar sobre meu diário. Ter um diário é uma experiência realmente estranha para uma pessoa como eu. Não somente porque nunca escrevi nada antes, mas também porque acho que mais tarde ninguém se interessará, nem mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de 13 anos. Bom, não faz mal. Tenho vontade de escrever e uma necessidade ainda maior de desabafar tudo o que está preso em meu peito. (ANNE FRANK, 2015, p.25).

Os segredos guardados a sete chaves, justificando assim a existência de

cadeado, são produzidos e lidos pelos próprios autores ou por alguém muito íntimo.

Logo, não há muita preocupação com a linguagem utilizada que, muitas vezes, é

informal, coloquial, espontânea, com gírias, de caráter intimista e confidencial. Essa

escrita confessional apresenta data e local, vocativo (muitos dão apelidos a esse

“amigo” confidente), texto com ordem cronológica e assinatura.

Conforme registra Machado (1998),

Podemos dizer que esse gênero teria, como características individualizadoras: - um destinatário empírico normalmente ausente e percebido como “fora dos âmbitos da hierarquia e das convenções sociais” - um papel mais acentuado do superdestinatário, no sentido bakhtiniano do termo; - o estabelecimento de um contrato de confiança entre o agente produtor e o superdestinatário e mesmo entre o agente produtor e o destinatário empírico, quando presente, com a implicação da expectativa de otimização da compreensão responsiva desse destinatário; - a atribuição de franqueza, pelo locutor, ao discurso produzido; - um estilo marcado por uma expressividade particular, por uma atitude pessoal e informal com a realidade; - a construção de um mundo discursivo temporalmente conjunto ao da situação de comunicação; - a implicação do locutor, do tempo e do espaço da situação material de comunicação; - a ausência de preocupação com os procedimentos de textualidade, isto é, com a conexão e a coesão, o que lhe confere a característica de fragmentado; - objetivos múltiplos; - a criação de um espaço que permite a constituição das subjetividades (MACHADO, 1998, p. 52).

Esse gênero, apontado por muitos como feminino e de adolescente, tem como

objeto o “eu”. Considerado uma autoanálise da história da vida, pode contribuir

ricamente para reconhecer o contexto histórico com suas particularidades, fatos

sociais. Cabe aqui um adendo do porquê dessa prática ser estereotipada como

feminina: o fato de que as mulheres têm a necessidade de dar forma a seu mundo

através da escrita, em um espaço de isolamento.

A escolha do material supracitado adveio de vários aspectos, dentre os quais

pode-se citar: a faixa etária da protagonista, que coincide com a dos alunos atendidos

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no projeto a ser executado no primeiro semestre de 2017. Além disso, justamente pelo

fato de serem adolescentes, o trabalho assumirá o compromisso de enfocar a

adolescência vivida por Anne e a fase pela qual passa a geração atual. Destacar-se-

á, nesse período, o processo - sobremaneira doloroso - de amadurecimento.

Por fim, a escolha do gênero Diário Íntimo pautou-se no fato de que os jovens

dessa faixa etária se identificam com esse gênero e procuram por títulos na biblioteca

escolar. O critério de seleção partiu também da importância e da riqueza histórica

revelada por tal documento, o que corrobora para a estreita relação entre a interação

do sujeito com o mundo à sua volta.

3 DESENVOLVIMENTO

A Produção Didático-Pedagógica intitulada “Revelação de um segredo

guardado a sete chaves” foi aplicada a um grupo de alunos da Escola Estadual

Agostinho Stefanello, na cidade de Alto Paraná, núcleo de Paranavaí, no período

contraturno. Os alunos dos oitavos e nonos anos foram convidados a participarem dos

encontros semanais, perfazendo um total de 34 horas aulas.

A princípio, o projeto fora desenvolvido somente para as meninas dos nonos

anos, visto que o gênero, ainda bastante estereotipado no âmbito estudantil, era tido

como algo feminino. Porém, ao convidar as turmas, os meninos se interessaram e

começaram a participar também. Outra mudança ocorrida aconteceu quanto ao

público-alvo: a escolha da série supracitada se justificava em função do tema Segunda

Guerra Mundial, conteúdo da disciplina de história previsto para o ano/série. Porém,

logo na primeira aula, percebeu-se que seria possível atender mais de 15 jovens e,

por isso, alunos do oitavos anos também foram convidados.

Dessa maneira, a partir do segundo encontro, passaram a integrar o projeto o

total de 21 alunos, estudantes do período matutino que, uma vez por semana,

frequentavam o contraturno, no período da tarde.

Durante as aulas, os alunos foram bem participativos, debateram os temas

propostos e trouxeram suas experiências, de modo a dividir seus problemas, além de

compartilhar dificuldades e medos vivenciados durante a adolescência. Tal processo

foi ao encontro da adolescência vivida por Anne Frank e da fase pela qual passa essa

geração atual. Em diversos momentos, os alunos – meninos e meninas - conseguiram

se colocar no lugar da protagonista. Outras vezes, não perceberam a dimensão exata

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do que é a guerra e o quanto se é capaz de suportar para sobreviver. O grande desafio

foi trazer os alunos no horário contrário. Alguns desistiram, outros, porém,

mantiveram-se assíduos graças à intervenção da equipe pedagógica e dos pais. Por

fim, o projeto teve 15 alunos concluintes.

Durante todos as aulas, os alunos foram estimulados a escreverem seus

próprio diários. A primeira dificuldade que relataram era que nunca conseguiam ter

um diário “por falta de privacidade”. De fato, muitos pais, ao tomarem conhecimento

do caderno onde os textos eram redigidos, liam todas informações nele contidas, o

que prejudicava o trabalho de estimulo à escrita. Foi preciso intervir para que tivessem

uma conversa sincera com os familiares e que deixassem claro que escrever o diário

era parte do projeto de que estavam participando.

A atividade de escrita do diário é uma experiência riquíssima. É uma excelente

maneira de meninos e meninas, homens e mulheres exercitarem sua escrita,

expressarem seus sentimentos, deixarem no papel suas angústias e incertezas. O

autor de um diário é um sujeito histórico, porque deixa marcas da sua existência que

permanecerá para sempre. E com essa motivação, na produção do diário, os alunos

puderam, enquanto registram suas experiências humanas, significar e ressignificar o

papel da escrita. Em outras palavras, pode-se afirmar que não escreveram apenas

para o professor de Língua Portuguesa, com vistas à correção, à identificação dos

erros e à atribuição de nota; pelo contrário, escreveram com um objetivo, escreveram

para si e sobre si.

Durante o estudo do terceiro módulo, intitulado Relacionamento com os Pais,

houve um assunto bastante polêmico que permeou as redes sociais, os noticiários, as

escolas, as famílias: o Jogo da Baleia Azul. Sendo assim, foi propício debater esse

tema, visto que os jovens são as vítimas dessa “modinha” suicida. A ampliação do

debate enriqueceu muito o projeto, pois abordou temas que estão presentes no

universo teen e não são debatidos no ambiente escolar. Ao proporcionar a abordagem

do referido jogo, o trabalho contribuiu para a reflexão de um assunto polêmico e, ao

mesmo tempo, auxiliou, psicologicamente, os alunos que são mais fragilizados, como

comprovado ao fim do projeto, quando um dos diários revelou a realidade de uma

aluna que se mutilava ao se sentir deprimida.

Ontem de tarde me cortei e hoje novamente. Ele me diz que se preocupou! Mas, será?....afinal, se eu morrer ninguém vai sentir minha falta. Porque eu

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sou isso! NADA. (Fernanda, 14 anos) 4

Outra mudança ocorrida durante a implementação foi a sequência das

atividades previamente planejadas. Entendendo a flexibilidade que todo planejamento

pode ter, optou-se trabalhar antes o módulo 3 (Relacionamento com os Pais), o qual

envolve toda a discussão sobre a temática da adolescência. Só então, iniciaram-se os

estudos relativos ao módulo 2, o qual trata das questões linguísticas, bem como da

estrutura própria do gênero, tendo em vista o maior grau de familiaridade dos alunos

com os trechos do diário, o que permitiria o reconhecimento dos traços analisados

com mais propriedade.

No que diz respeito ao trabalho com o Módulo IV, “Falando de Intolerância”,

merece especial menção a atividade de pesquisa sobre o Holocausto. Diante dos

depoimentos de sobreviventes e das imagens reais dos campos de concentração, das

câmaras de gás, compreenderam o quão verdadeira, aterradora e desumana foi toda

a história vivida pela também adolescente Anne Frank.

O último encontro foi dedicado à entrega dos diários produzidos, embora,

desde o início da implementação, os alunos tenham sido alertados de que caberia a

eles a autorização para que a professora lesse ou não os textos produzidos.

Com a autorização de alguns alunos, alguns excertos foram escaneados e

momentos, fotografados. Vale ressaltar que nem todos produziram; outros não

permitiram que ninguém visse sequer a capa; outros sentiram-se à vontade para

compartilhar momentos registrados. Ali conseguiram se despir revelando suas

intimidades e deixando claros, como vemos a seguir, o verdadeiro significado que

esse objeto passou a ter para eles.

29/03/2017 ...Demorei para vir conversar contigo, e eu por não ter bastante amizade não fiz nada hoje. Mas, queria desabafar aqui coisas que não falarei a minhas amigas... (Emanuela, 14 anos) 29/05/2017 uerido Diário ... Fiquei muito tempo sem conversar contigo, mas estou aqui para falar do ocorrido até aqui. Então, vou começar acho que vai ficar extenso mas eu quero para lembrar desse dia, um dia que para mim foi especial... (Emanuela, 14 anos) Obrigada pela atenção diário! É o único que me entende. (Mariana, 14 anos) É diário. Acho que vou parar por aqui. Amanhã conversamos mais. Muitos

4Todos os nomes aqui citados são fictícios, usados para preservar a identidade dos alunos.

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beijos de mim mesmo. (Letícia, 14 anos) Alto Paraná, 5 de abril de 2017. Diário... hoje não passei por nada especial, mas quando me deitei senti uma vontade de escrever. (Maíra, 14 anos)

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo reúne resultados e reflexões suscitadas durante o desenvolvimento

do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), cujo objetivo é proporcionar

aos professores da rede pública estadual subsídios teóricos-metodológicos para a

aplicação de ações educacionais sistematizados, e que resultem em

redimensionamento da prática pedagógica.

Com base nesse pressuposto, optou-se pelo Ensino e Aprendizagem de

Leitura, como Linha de Estudo, assumindo o compromisso de aperfeiçoar, a partir do

trabalho com o gênero Diário Pessoal, a prática discursiva, de modo a assegurar que

o aluno possa participar de modo crítico e ativo na sociedade.

Os materiais elaborados durante o primeiro ano do PDE serviram de suporte e

embasaram toda a implementação. Foram eles: O projeto de Intervenção Pedagógica

intitulado: Diário de Anne Frank: contexto e intervenção no trabalho com o gênero

discursivo, no qual se discute a parte teórica no que concerne à leitura e o segundo

documento, Produção didático-pedagógica, elaborada com o título: Revelação de um

segredo guardado a sete chaves, produzido enquanto estratégia metodológica,

buscando a fundamentação teórica para a garantia da sua aplicabilidade na realidade

escolar.

Após a Implementação do Projeto de Intervenção Pedagógica, concluiu-se que

o trabalho realizado a partir da leitura e produção do gênero Diário Pessoal pode

contribuir para uma aprendizagem efetiva, uma vez que o gênero em questão

extrapola os limites da mera recepção de conteúdos desarticulados com a realidade.

Colaborou com o aprimoramento das habilidades de escrita, tendo em vista que a

atividade de produção textual aconteceu de forma contínua e sistemática, favorecendo

a formação do sujeito letrado.

Vale ressaltar que por ser um gênero bastante rico não seria possível, em um

curto espaço de tempo, esgotar suas capacidades enunciativas. O que ficou de válido

é perceber a possibilidade da literatura abrilhantar o conhecimento.

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Referências

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4.ed. São Paulo. Martins Fontes, 2003.

DIAS, MESQUITA, FINOTTI, OTONI, LIMA & ROCHA. Gêneros Textuais e (ou) Gêneros Discursivos: uma questão de nomenclatura? Número 19, p 142-155, 2011.

FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. 54 ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MACHADO, A. R. O Diário de Leituras: A introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo. Martins Fontes, 1998.

PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa. Documento Preliminar, 2008.