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nise para spinoza

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O FULGOR DA EXPERINCIA SBITA

De: Nise da Silveira Para: Baruch Spinoza

Nise da Silveira entrou em contato com a obra de Spinoza no perodo de dezesseis meses em que esteve presa durante a ditadura Vargas. Filsofo de sua predileo, Spinoza inspirou a srie de sete cartas que ela escreveria j na maturidade, dentre elas a que se reproduz aqui. O conjunto foi publicado no livro intitulado Cartas a Spinoza.[Rio de Janeiro, 1989]

Meu caro Spinoza,

A vida em Amsterd, depois da absurda excomunho e de outros dissabores, devia ter sido bastante penosa para voc, apesar da acolhida que desde logo lhe ofereceram os Colegiantes, esse curioso grupo de cristos, que reunia indivduos interessados na interpretao da Bblia, estudiosos de filosofia cartesiana, e ainda outros, abertos a fontes neoplatnicas e a obras de msticos como Jakob Bhme.

Foi no crculo dos Colegiantes de Amsterd que voc encontrou ambiente para expor suas ideias sob a forma ousada em que j se apresentavam no esboo do Breve tratado, fonte onde eu gosto muito de beber.

Mas creio que deveria ainda haver algo de hostil no clima de Amsterd quando voc, em 1660, decidiu mudar-se para a aldeia de Rijnsburg, centro dos Colegiantes. Ali voc estaria tranquilo para pensar. Conviveria num ambiente cordial.

s vezes chego a imaginar-me em Rijnsburg, invisvel ouvinte do crculo dos Colegiantes, que voc ali frequentava. Era um prazer v-lo, aos 28 anos, moreno, de cabelos e olhos escuros, os olhos que deveriam ser semelhantes aos de sua me, a portuguesa Ana Dbora. Tenho quase certeza de que as primeiras palavras que voc balbuciou foram em portugus. E isso me comove.

Ali estava voc, no meio de homens louros ou ruivos, que o escutavam surpreendidos e talvez mesmo perturbados. Essas minhas imaginaes o acompanham at o frio sto, onde voc habitava num quarto alugado. Parece-me v-lo debruado sobre sua mesa de trabalho, iluminada por lmpada de luz hesitante, trabalhando e retrabalhando pensamentos e sentimentos nascidos de sua experincia direta da unidade.

Lembrei-me ento desses versos de Baudelaire, embora fossem tranquilas as ruas de Rijnsburg e s fosse ouvido o sopro de ventanias frgidas:

Lmeute, temptant vainement ma vitre,ne fera pas lever mon front de mon pupitre;car je serai plong dans cette voluptdvoquer le Printemps avec ma volont,de tirer un soleil de mon coeur, et de fairede mes pensers brlants une tide atmosphre.[1]

Caraterstica muito simptica dos Colegiantes nunca haverem exigido de voc a adeso ao cristianismo, ao batismo, nem que voc aceitasse a encarnao do Deus infinito num homem.

Mas no deixa de surpreender voc admitir que pode ser que Deus tenha impresso em vs uma ideia clara dEle mesmo, de modo que, por amor, vs esqueceis o mundo e amais os outros homens como a vs mesmos. Em todo caso, evidente que a um homem dotado de tal disposio repugne tudo quanto chamado de mal e, por esta razo, o mal no pode existir nEle (Carta XXIII a Blyenbergh Voorburg 1665 O.C., p. 1220).

Esse homem bem poderia ser o Cristo. E talvez algo semelhante haja acontecido a outros raros seres humanos. Muito provavelmente a voc, querido amigo.

inegvel que a doutrina de Cristo tenha marcado seu pensamento, principalmente na primeira etapa de suas cogitaes filosficas. Assim, na introduo do Breve tratado, voc diz que visa a curar aqueles que se acham doentes em seu entendimento por meio de um esprito de doura e pacincia, segundo o exemplo do Senhor Cristo, nosso mestre maior (O.C., 71). E, bem mais tarde, no Tratado teolgico poltico, publicado em 1670, voc escreve: Eu no li em lugar algum que Deus tenha aparecido ao Cristo, ou que lhe tenha falado, mas o texto ensina que Deus se revelou aos apstolos pela intermediao do Cristo e que Ele a via da salvao, ao passo que a Lei antiga havia sido transmitida por uma voz ecoando no ar, mas no imediatamente Por conseguinte, se Moiss falava face a face com Deus, como um homem com seu semelhante (isto , pela interposio de seus corpos), o Cristo, ele prprio, comunicou-se com Deus de esprito a esprito.

Em concluso, ns declaramos que, exceo do Cristo, ningum recebeu jamais a revelao de Deus sem o auxlio da imaginao, isto , de palavras ou imagens visuais (T.T.P., O.C., 681).

Gostei muito de ler essas suas palavras, porque sou muito amarrada ao Cristo. Peo-lhe perdo por t-las transcrito to longamente numa carta a voc mesmo. Mas isso me deu prazer.

Entre os Colegiantes de Rijnsburg, como j havia acontecido no grupo de Amsterd, voc fez grandes amigos. Uma carta de Simon de Vries (Carta VIII) bem demonstra o contato mantido entre os dois grupos. Alm de Simon de Vries, outro amigo delicadssimo foi Jarig Jelles, firme at a morte. E ainda o editor Juan Rieuwertz, Balleing, para no citar outros. Voc, que tanto amava a solido, a meditao, tinha o dom de fazer amizades slidas. Insisto nisso porque coisa rara. Quase sempre as amizades so instveis e deixam na gente traos de mgoa. Pergunto-me mesmo se, entre os mais fiis de seus amigos, todos entendiam a profundeza de sua filosofia. No tenho dvida de que sua personalidade, sua atitude para com o outro irradiassem algo como a fora do m, vinda do mago de seu ser.

Voc polia lentes. Comentam alguns que este trabalho era feito como um ofcio, como meio de manter a vida. Mas outros o negam. Sua subsistncia modesta estava assegurada por amigos fraternos (Vries). As lentes eram polidas a fim de serem utilizadas em seus prprios trabalhos cientficos, tal como faziam vrios sbios da poca. possvel que algumas fossem vendidas, pois seriam procuradas por sua perfeio, mas no como meio de subsistncia. Aqui fao uma hiptese. O polir lentes obedece a leis geomtricas. Voc as polia com prazer, usando as prprias mos. Divertiu-me o que voc diz, em carta a Oldenburg, a propsito das lentes polidas por Huygens, que se dedicou e se dedica inteiramente ao polimento das lentes; em vista disso, ele construiu uma bela mquina para a fabricao de vrias lentes. Eu no sei ainda quais tenham sido os resultados, e, com efeito, nem sequer me interesso. A experincia, em verdade, mostrou-me suficientemente que com a mo possvel polir as lentes esfricas muito melhor e com maior segurana do que lograria uma mquina (Carta XXXII, Voorburg, 1665).

Voc admitiria a possibilidade de existir uma relao estreita entre o polir de lentes, com as prprias mos, dentro de regras geomtricas, e as transformaes que fizeram do Breve tratado, iniciado em Amsterd a tica , construda sob forma geomtrica, sem cessar, polida e repolida, at 1775?

Nosso Machado de Assis percebeu algo dessa relao quando disse num soneto, que j citei na carta anterior: nas mos a ferramenta do operrio/ no crebro a coruscante ideia.

Dando um passo a mais, ver-se- ficar transparente, em voc prprio, relao estreita entre pensamento e corpo (suas mos) trabalhando, cada um em sua clave, numa personalidade bem integrada.

Foi no retiro de Rijnsburg que voc escreveu o Tratado da reforma do entendimento. Desejei muito este seu livro, mas s consegui anos depois de j ter comigo a tica. Assim, foi uma grande alegria quando o encontrei. Nas primeiras pginas, fiquei logo comovida lendo o que voc diz de si prprio, de maneira to discreta, mas que deixa transparecer um sofrido e profundo trabalho interior.

Sem maior demora, segue-se a exposio de seu mtodo de filosofar, to ligado sua maneira de viver.

Amigo, voc nem avalia a onda de lembranas que logo se ergueu dentro de mim.

Revi-me quando ainda ginasiana. Depois de prestados meus exames de lgebra e geometria no Liceu Alagoano (Macei), logo no incio das frias, eu estava um dia arrumando meus livros: separei os volumes de lgebra, geometria e cadernos correspondentes, guardei-os num armrio prximo de minha pequena mesa de estudo (era linda essa pequena mesa com seus elegantes ps volteados), e coloquei sobre ela livros de fsica, qumica e histria natural, que seriam as matrias no ano letivo seguinte, de acordo com os programas daquela poca.

Meu pai estava perto, sentado numa cadeira de balano. Parecia totalmente absorvido na sua leitura.

Foi com surpresa que o ouvi perguntar-me:

Voc vai recolher seus livros de geometria?

Sim, agora terei outras matrias para estudar.

Lamento, porque geometria no uma matria como as outras. No apenas o estudo das propriedades das figuras. Ensina a arte de pensar.

Meu pai, em poucas palavras, mostrava-me uma perspectiva nova de estudo. Eu tinha na ocasio 14 anos de idade, mas me feriu a expresso arte de pensar.

Peguei logo meu preferido tratado de geometria e coloquei-o ao lado dos livros programados para o ltimo ano de preparatrios, conforme se dizia naqueles distantes tempos. Levei-o tambm comigo para a Bahia, onde fui fazer o curso mdico.

De quando em vez, abria-o ao acaso e ficava seguindo linhas traadas no espao, que conduziam sempre a demonstraes exatas. Assim, cedo tomei o hbito de procurar ordenar e deduzir, embora no conseguisse chegar ao clssico como queramos demonstrar e esbarrasse tantas, tantas vezes, diante de portas misteriosas. Nas cincias biolgicas as coisas so muito complicadas.

Nessa poca, eu estava longe de supor que meu pai havia me impulsionado para o segundo gnero de conhecimento, conforme voc o descreve: conhecimento dedutivo regido pela razo, que deixa para trs o ouvi dizer ou as experincias vagas do primeiro gnero de conhecimento.

Muito mais tarde, quando comecei a estudar apaixonadamente sua filosofia, embora de maneira dispersiva, verifiquei o quanto ainda mais difcil que a prtica do segundo gnero de conhecimento ser a penetrao para alm da cadeia de operaes intelectuais dedutivas, at que se consiga atingir o terceiro gnero de conhecimento, ou seja, a apreenso imediata da essncia das coisas.

Foi um relmpago deste ltimo gnero de conhecimento que deslumbrou Antonin Artaud, quando ele de sbito descobriu o Ser da abelha: jai vu un tre, celui de labeille vivre, cela me suffit pour toujours.[2] Vivncias semelhantes j aconteceram a muitos outros: msticos, poetas, pintores, msicos e mesmo a homens e mulheres comuns em instantes privilegiados, que parecem eternos, mas quase sempre so fugazes.

Voc visa a transmitir a maneira de alcanar a essncia das coisas com maior estabilidade.

Para galgar esta escalada, seu mtodo ensina que ser necessrio, preliminarmente, uma meditao assdua e a maior firmeza de propsitos, alm de traar uma regra de vida e prescrever para si prprio um objetivo bem determinado (Carta XXXVII, aj. Bauwmester).

O pensamento deter-se- sobre uma ideia verdadeira, pois deve existir em ns, como instrumento inato, uma ideia verdadeira. Neste difcil caminhar, quanto maior for o nmero de ideias verdadeiras, ou seja, das essncias das coisas existentes, compreendidas pela reflexo, mais se ampliar o esprito daquele que pratica este mtodo. E, sobretudo, acentua voc, o mtodo alcanar maior perfeio quando o esprito se aplica ao conhecimento do Ser absolutamente perfeito (Tratado da reforma do entendimento, 39). Desde o incio, pois, convir dedicarmo-nos a chegar o mais rapidamente possvel ao conhecimento daquele Ser.

No sei se o entendo bem. Mas no consigo aceitar que voc seja um extremado racionalista, segundo se repete habitualmente.

S em Jaspers encontrei um justo comentrio: Spinoza comunica sua filosofia pelos meios que a razo fornece, mas estes no esgotam seus fundamentos decisivos. Estes fundamentos decisivos provm, parece-me, da experincia da totalidade que voc apreendeu intuitivamente como uma verdade absoluta.

Perdoe-me se comparo sua concepo da unidade original das coisas viso do planetrio de Deus, vislumbrada por Carlos Pertuis.[3] Mas Carlos era fraco. Sua personalidade estilhaou-se sob o impacto da viso extraordinria e acabou internado, pelo resto da vida, num hospital psiquitrico.

Voc suportou, decerto deslumbrado, o fulgor da experincia sbita, mas a estrutura forte de sua personalidade manteve-se coesa. Mas a experincia direta era inefvel. Como falar aos homens? Seria preciso recorrer linguagem racional. Assim voc o fez, desdobrando pensamentos, desvelando paixes e a escravido que elas impem, ateando fogo sagrado ao desejo de liberdade e de beatitude, perturbando mundo afora muitas cabeas. Inclusive, querido amigo, meu curto pensar, meu fraco intuir.

Nise

Nise da Silveira. Cartas a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, pp. 33-43.

[1] N.S.: O Tumulto, golpeando em vo minha vidraa,/ No me far volver a fronte ao que se passa;/ Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento/ De relembrar a Primavera em pensamento/ E um sol na alma colher, tal como quem, absorto,/ Entre as ideias goza um tpido conforto. Cf. BAUDELAIRE, Charles. Paisagem. Poesia e prosa. Edio organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 169.[2] N.S.: Eu vi o Ser da abelha, e isso para mim foi definitivo.[3] N.S.: Carlos Pertuis foi um dos esquizofrnicos cujos desenhos e pinturas foram estudados pela doutora Nise da Silveira.CompartilhePgina 1 de 1