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51 Ling. Acadêmica, Batatais, v. 5, n. 2, p. 51-70, jul./dez. 2016 O franciscanismo e os modelos culturais do século XIII na abordagem de Jacques Le Goff Luciano Assumpção NUNES 1 Semíramis Corsi SILVA 2 Resumo: O presente artigo pretende oferecer uma melhor compreensão das diferentes mentalidades e processos na construção histórica do franciscanismo, a partir da biografia São Francisco de Assis de Jacques Le Goff, em contraposição às hagiografias do século XIII. Através da análise e do confrontamento das hagiografias e do texto do historiador da Escola dos Annales, esse artigo tem por objetivo reportar e avaliar o conhecimento produzido destacando: conceitos, procedimentos, resultados, discussões e conclusões relevantes para o tema. Todas as fontes, mesmo o texto de Le Goff, exigem uma leitura atenta e crítica para a compreensão do franciscanismo em seu tempo, que juntamente com a figura de Francisco de Assis moldou boa parte do imaginário ocidental do medievo até os dias atuais. Palavras-chave: São Francisco de Assis. Biografias. Hagiografias. Jacques Le Goff. 1 Luciano Assumpção Nunes. Especialista em História Cultural pelo Claretiano – Centro Universitário – Polo de São Paulo (SP). Licenciado em História pela mesma instituição. Licenciado em Filosofia pela UNIFAI (SP). Docente da área de Filosofia do Colégio Porto União e E. E. Sólon Borges dos Reis. E-mail: <[email protected]>. 2 Semíramis Corsi Silva. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) – campus de Franca (SP). Mestre e graduada em História pela mesma instituição. Docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: <[email protected]>.

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Ling. Acadêmica, Batatais, v. 5, n. 2, p. 51-70, jul./dez. 2016

O franciscanismo e os modelos culturais do século XIII na abordagem de Jacques Le Goff

Luciano Assumpção NUNES1

Semíramis Corsi SILVA2

Resumo: O presente artigo pretende oferecer uma melhor compreensão das diferentes mentalidades e processos na construção histórica do franciscanismo, a partir da biografia São Francisco de Assis de Jacques Le Goff, em contraposição às hagiografias do século XIII. Através da análise e do confrontamento das hagiografias e do texto do historiador da Escola dos Annales, esse artigo tem por objetivo reportar e avaliar o conhecimento produzido destacando: conceitos, procedimentos, resultados, discussões e conclusões relevantes para o tema. Todas as fontes, mesmo o texto de Le Goff, exigem uma leitura atenta e crítica para a compreensão do franciscanismo em seu tempo, que juntamente com a figura de Francisco de Assis moldou boa parte do imaginário ocidental do medievo até os dias atuais.

Palavras-chave: São Francisco de Assis. Biografias. Hagiografias. Jacques Le Goff.

1 Luciano Assumpção Nunes. Especialista em História Cultural pelo Claretiano – Centro Universitário – Polo de São Paulo (SP). Licenciado em História pela mesma instituição. Licenciado em Filosofia pela UNIFAI (SP). Docente da área de Filosofia do Colégio Porto União e E. E. Sólon Borges dos Reis. E-mail: <[email protected]>.2 Semíramis Corsi Silva. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) – campus de Franca (SP). Mestre e graduada em História pela mesma instituição. Docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: <[email protected]>.

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The Franciscans and the culture of the eighteenth century models according to Jacques Le Goff

Luciano Assumpção NUNESSemíramis Corsi SILVA

Abstract: This article aims to provide a better understanding of different mentalities and processes in the historic building of the Franciscans, from the biography of St. Francis of Assisi Jacques Le Goff, in contrast to the thirteenth century hagiographies. Through the analysis and confrontation of hagiographies and text historian of the Annales school, the intention of this study is to report and assess the knowledge produced highlighting: concepts, procedures, results, discussion and conclusions relevant to the topic. All sources, even the text of Le Goff, require careful and critical reading for understanding the Franciscan in his time, which together with the figure of Francis of Assisi has shaped much of the Western imagination of the Middle Ages to the present day.

Keywords: St. Francis of Assisi. Biographies. Hagiographies. Jacques Le Goff.

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1. INTRODUÇÃO

Os estudos biográficos encontraram novo lugar na produção dos historiadores. Impulsionados pela terceira geração da Escola dos Annales e pelas novas leituras e interpretações do processo histórico, essa produção de conhecimento proporciona, de maneira singular, um olhar diferenciado e particular sobre seu objeto de estudo.

As pesquisas biográficas tornam possível o redimensionamento de várias problemáticas referentes à escrita da História, às relações sociais e seus contextos, ajudando o pesquisador a compreender melhor os processos que determinam as motivações de sua produção. Mesmo assim, os detalhes que cercam a biografia histórica são complexos e estão num amplo debate entre os acadêmicos. Segundo Silva (2012, p. 6):

O historiador precisa inserir o biografado em seu contexto, analisar sua representatividade mesmo em sua singularidade, mostrar como ele faz parte de um momento histórico e como podemos, por meio de sua trajetória individual, compreender esse momento da história.

O artigo acadêmico em questão pretende oferecer uma contribuição para os diferentes processos na construção da figura histórica do franciscanismo, através da obra de Jacques Le Goff, “São Francisco de Assis”, em contraposição às hagiografias do século XIII. Nesse caso, por meio da comparação das produções do período do biografado, com uma produção pautada nas atuais premissas da História, representada pela Escola dos Annales, na figura de Le Goff.

Através da análise e do confrontamento do livro de Jacques Le Goff intitulado São Francisco de Assis e das hagiografias do primeiro século de franciscanismo, pretendemos reportar e avaliar o conhecimento produzido, destacando conceitos, procedimentos, resultados, discussões e conclusões relevantes para os objetivos deste artigo.

Todas as fontes medievais, inclusive as hagiografias, estão reunidas em São Francisco de Assis, escritos e biografias: crônicas

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e outros testemunhos do primeiro século de franciscanismo, organizadas por Frei Idelfonso Silveira e Orlando dos Reis (1991). Essa obra de inestimável valor para os pesquisadores de Francisco e do franciscanismo constituiu a primeira tentativa de reunir em um volume todos os textos medievais relacionados com a gênese do movimento e espiritualidade franciscana, reunidos com um cuidado especial quanto à tradução e às fontes.

Logo, para que o objetivo do presente artigo acadêmico seja alcançado, é necessária uma leitura aprofundada dos textos utilizados, além do diálogo entre os autores. Contudo, focar a reflexão no franciscanismo histórico é muito importante para que as diversas construções possam ser confrontadas e comparadas.

Interpretar e promover a releitura da figura do franciscanismo através da pesquisa documental possibilita que tenhamos um novo olhar sobre esse movimento, que, por sua forma de vida e ideias, demonstra o quanto é relevante para a contemporaneidade. Suas reflexões e posições sobre a alteridade, desapego material e a relação do indivíduo com ele mesmo e a com a natureza se encaixam nos anseios do homem contemporâneo, pois esbarram em questões que transcendem o tempo e o contexto no qual o movimento se desenvolveu.

Talvez por esse motivo, o franciscanismo, ainda hoje, desperte a simpatia e a admiração não só de cristãos católicos, com também de indivíduos de todas as religiões e culturas. Dessa forma, no percurso das interpretações e construções através dos séculos, o franciscanismo perdeu-se em “florilégios” e lendas, o que dificulta ao pesquisador determinar o limite entre o fato e a fantasia.

Todas as fontes, principalmente o texto de Le Goff, mesmo exi gindo uma leitura atenta e crítica, serão neces sárias para entender esse movimento no seu tempo, em seu contexto; parafraseando Frei Idelfonso no prefácio das Fontes Franciscanas: “[...] um tempo e uma terra que ele viveu co mo intensamente seu” (SILVEIRA, 1991, p. 10).

Esperamos que, por meio deste artigo acadêmico, possamos contribuir para uma melhor compreensão desse movimento, que

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moldou boa parte do imaginário ocidental do medievo até os dias atuais.

2. AS HAGIOGRAFIAS DO PRIMEIRO SÉCULO DE FRANCISCANISMO

Os antigos gregos e romanos escreveram biografias para ressaltar os feitos de pessoas ilustres que serviam como modelo ou antimodelo a ser seguido ou negado. Com o advento do Cristianismo, temos a continuidade dessa tradição. Desde os seus primeiros séculos, a Igreja retratou a vida de seus santos e suas formas de vida pela “hagiografia”, do grego “há gios”, que quer dizer “divino”, que “procede do divino”, “santo”. De acordo com Silveira (1991, p. 17, grifo do autor):

Dentre as hagiografias mais antigas, podemos destacar a de Santo Antão abade, que foi escrita pelo famoso santo Atanásio de Alexandria. Outra que sempre foi conhecida é a autobiografia de Santo Agostinho, contida em seu livro As Confissões.

Relatos da vida dos mártires da igreja primitiva também são considerados e inseridos no estilo hagiográfico, mesmo contextualizado em uma outra realidade de Igreja e Cristianismo, ainda não imersos nas questões políticas, seculares e ideológicas que compõem a cristandade no medievo.

Numa linha geral, as hagiografias eram encomendadas pela Igreja, visando ao processo de canonização do santo biografado. Nesses textos, não havia uma preocupação histórica ou temporal por parte do autor, sendo o objetivo da hagiografia exaltar as virtudes e afirmar a santidade dos contemplados pela canonização perante os leitores. Por esse motivo, as construções de Francisco e do franciscanismo, pautadas nas hagiografias do século XIII, carecem de um olhar crítico, para que cheguemos por meio delas ao Francisco e ao franciscano histórico que retratam.

As hagiografias franciscanas estão divididas em três grupos de fontes biográficas, de acordo com três gran des biógrafos do primeiro século de franciscanismo: Frei To más de Celano, com

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Vida I e Vida II; São Boaventura, com a Legenda Maior e Menor, e o Grupo Leonino, cujos textos são atribuídos a Frei Leão, Egídio e outros companheiros e contemporâneos de Francisco, com: A legenda dos três companheiros, o Sacrum Commercium, o Anônimo perusino (De inceptione Ordi nis minorum), o Espelho da Perfeição (Speculum perfectionis) e os Fioretti (SILVEIRA, 1991, p. 10-44).

O grupo de hagiografias celanenses está dividido em: Vida I de São Francisco, datado de 1228 e apresentado ao Vaticano em 1229 em virtude de sua canonização; a Vida II de São Francisco, datada de 1246, é uma versão estendida e revisada da Vida I, apoiada nos testemunhos dos contemporâneos de Francisco; e o Tratado dos Milagres, datado de 1252, escrito como um complemento da Vida II, com relatos de milagres atribuídos a Francisco nos anos seguintes à sua Canonização (SILVEIRA, 1991, p. 10-44).

Frei Tomás de Celano conviveu com o poverello de Assis, foi admitido na Ordem Franciscana em 1215 e faleceu em 1260. O primeiro hagiógrafo de Francisco compilou sua obra com o objetivo comum das hagiografias: a de exaltar a santidade e os feitos do santo que surgia. Celano foi referência básica para a his tória de Francisco nas primeiras décadas após sua morte; sua hagiografia foi suplantada pela de Boaventura, que permaneceu como relato oficial da vida de Francisco pelos séculos seguintes. Cita Silveira (1991, p. 29) que:

Na prática, todos os outros biógrafos de São Francisco depen deram de Celano e de suas informações, de ma neira geral. Até São Boaven tura, apesar de ter dar uma nova inter pretação ao conjunto, usou intensa mente a obra do autor.

À medida que foi sendo redes coberto no fim do século XIX, por estudiosos como Paul Sabatier, Celano reencontrou sua importância na bibliografia franciscana, mesmo sendo acusado de favorecer em seu relato os interesses da Igreja e dos frades que governavam a Ordem no período. Podemos contemplar em seus textos uma construção singular de Francisco, pois, além de retratar uma mentalidade e prática literária da época, sua obra utilizou como fonte recordações pessoais, além dos testemunhos de pessoas que conviveram com o poverello.

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Quero contar a vida e os feitos do nosso bem-aventurado pai Francisco. Quero fazê-lo com devoção, guiado pela verdade e em ordem, porque ninguém se lembra comple-tamente de tudo que ele fez e ensinou. Procurei apresentar pelo menos o que ouvi de sua própria boca, ou soube por testemunhas de confiança. Fiz isso por ordem do glorioso Papa Gregório, conforme consegui, embora em linguagem simples. Oxalá tenha eu aprendido as lições daquele que sempre evitou a linguagem difícil e desconheceu os ro-deios de palavras! (CELANO, 1991, p. 179).

O grupo de hagiografias bonaventurianas está divido em: Legenda Maior (Legenda Maior Sancti Francisc), datado de 1263, e Legenda Menor (Legenda minor ad usum chori), compilada para ser recitada em coro.

Boaventura Fidanza de Bagnoreggio nasceu em 1221 em Viterbo, Itália, e não conheceu Francisco, que faleceu em 1226. Entrou na Ordem Franciscana em 1243. Conviveu no meio acadêmico com Tomás de Aquino, de quem foi contemporâneo. Professor de Teologia, Bispo e Cardeal, é considerado Doutor da Igreja, sendo sua “Filoteologia” de orientação Agostiana Platônica, com influências do Tomismo Aristotélico, característica comum dos teólogos franciscanos do século XIII e XIV; faleceu em 1274 (SILVEIRA, 1991, p. 35).

Boaventura permaneceu como ministro geral da Ordem Franciscana de 1254 a 1274, sendo o primeiro grande reformador da Instituição. Suas hagiografias permaneceram como as oficiais de Francisco por quase oito séculos.

Pela sua erudição, temos nos textos de Boaventura uma construção de Francisco extremamente categórica, pautada nos alicerces que regem a Teologia do período. Na Legenda Maior e Menor, encontramos um texto repleto de alusões e citações bíblicas, citações litúrgicas, símbolos e linguagens simbólicas, que a tornam mais elaborada que a obra de Tomás de Celano.

Movido assim pelo Espírito de Deus, começou Francisco a desejar vivamente a prática da perfeição evangélica e a convidar os outros a que abraçassem os salutares rigores da penitência. E as palavras que para esse fim lhes dirigia não eram vãs nem ridículas, mas cheias de virtude celeste, e

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penetravam até o íntimo do coração, suscitando admirável compunção dos ouvintes. Em todas as pregações anunciava a paz, saudando o povo no início dos sermões com estas palavras: “O Senhor vos dê a paz”. Porque, como ele atestou mais tarde, o Senhor mesmo lhe revelou esta forma de saudação. Poderíamos dizer, aplicando a palavra do verso de Isaías: “Anunciou a paz, pregou a salvação e, por suas oportunas intervenções, reconciliou com a verdadeira paz aqueles que, longe de Cristo, estavam longe da salvação” (Is 52,7) (BOAVENTURA, 1991, p. 475, grifo do autor).

Boaventura escreveu a Legenda Maior e Menor num período muito conturbado da Ordem Franciscana, em que os Espirituais e os Reformistas quase provocaram o primeiro cisma da Instituição, que ocorreria definitivamente no século XVI, com a divisão da Ordem em três: Ordem dos Frades Menores, Ordem dos Frades Menores Capuchinhos e Ordem dos Frades Menores Conventuais.

O intuito das Legendas foi o de amenizar as contendas internas, com um único relato e leitura do santo. Como relata Silveira (1991, p. 29):

É fundamental perceber as novas interpretações que o movimento francisca no está recebendo. Boaventura coloca-se entre os que promovem e os que contestam a evolução do franciscanismo e sabe fazer um excelente trabalho, enriquecido por sua incontestável capacidade de teó logo e de místico.

Dessa forma, o Francisco e o franciscanismo representados na Legenda procuram atender aos anseios das vertentes que disputavam o poder da Ordem. Durante esse processo, as demais obras que circularam no período foram praticamente banidas do meio franciscano, prevalecendo a construção bonaventuriana.

O grupo de hagiografias leoninas está divido em: A legenda dos três companheiros, o Sacrum Commercium, o Anônimo perusino (De inceptione Ordi nis minorum), o Espelho da perfeição (Speculum perfectionis) e os Fioretti.

Esse grupo de hagiografias é singular, pois muitas são atribuídas aos primeiros companheiros de Francisco; porém, suas autorias são duvidosas. Todas remontam aos dois primeiros

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séculos de franciscanismo e compõem um importante acervo sobre a construção de Francisco e do franciscanismo, também mediante aos interesses de grupos que disputavam o poder e a hegemonia da Ordem nos seus primórdios.

Marcados por contradições em sua cronologia, devaneios poéticos e narrativas fantásticas, seus textos têm valor histórico por elucidarem traços essenciais sobre a espiritualidade franciscana primitiva e traços do Francisco histórico em suas entrelinhas. Após a Reforma de Boaventura, a maioria desses textos ficou quase perdida, sendo redescobertos apenas nos dois últimos séculos em acervos e bibliotecas franciscanas e não franciscanas.

Coisa admirável! Imediatamente após S. Francisco ter feito a cruz, o lobo terrível fechou a boca e cessou de correr; e dada a ordem, vem mansamente como um cordeiro e se lança aos pés de S. Francisco como morto. Então S. Francisco lhe falou assim: “Irmão lobo, tu fazes muitos danos nesta terra, e grandes malefícios, destruindo e matando as criaturas de Deus sem sua licença; e não somente mataste e devoraste os animais, mas tiveste o ânimo de matar os homens feitos à imagem de Deus; pela qual coisa és digno da forca, como ladrão e homicida péssimo: e toda a gente grita e murmura contra ti, e toda esta terra te é inimiga. Mas eu quero, irmão lobo, fazer a paz entre ti e eles; de modo que tu não mais os ofenderás e eles te perdoarão todas as passadas ofensas, e nem homens nem cães te perseguirão mais” (FIORETTI, 1991, p. 1123, grifo do autor).

As hagiografias leoninas, assim como as demais hagiografias, atualmente, devem seu estudo, pesquisa e interpretação a Paul Sabatier, que iniciou o processo que inovou a investigação histórica sobre Francisco e o movimento franciscano no fim do século XIX. Sabatier procurou resgatar o Francisco histórico através não só das hagiografias, mas também dos textos conhecidos, como Escritos de São Francisco, que consistem em opúsculos, cartas, seu testamento, e as primeiras versões da regra franciscana, escritas pelo próprio santo.

Dessa maneira, como numa colcha de retalhos, Sabatier tenta imprimir uma investigação de caráter mais científico sobre o poverello de Assis, com o intuito de resgatar o Francisco histórico

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e diferenciá-lo do personagem, muitas vezes mítico, construído no decorrer dos séculos. Segundo Conti (2004, p. 45):

O ano de 1894 marca uma nova época no campo do franciscanismo e dos estudos históricos e críticos das fontes franciscanas. Hoje se pode afirmar sem sombra de dúvida que os biógrafos franciscanos se distinguem a partir de uma maior ou menor aproximação dos estudos e pesquisas de Paul Sabatier.

Durante o século XX, os estudos sobre Francisco e o franciscanismo avançaram muito, promovidos pelas próprias Ordens e historiadores interessados no medievo e nas ordens mendicantes.

A partir dos anos 1960, autores como Caetano Esser, Chiara Frugoni, Jacques Dalarun, Leonardo Boff e Jacques Le Goff, dentre outros, contribuíram sensivelmente para releituras de Francisco e do franciscanismo. Nas próprias Ordens Franciscanas, há um interesse cada vez maior e estudos aprofundados sobre o franciscanismo e sua gênese. Isso se dá, até mesmo, por uma carência da contemporaneidade, devido à sua correspondência e identificação com as ideias de Francisco, face os apelos dos dias atuais.

Porém, para que seja possível compreendermos o franciscanismo e sua mensagem devidamente, é necessário debruçarmos sobre as fontes. Devemos, acima de tudo, manter um olhar crítico e uma atitude criteriosa, com o cuidado de considerar os pormenores que constituem o processo histórico e suas produções. Aos moldes do movimento de resgate, iniciado por Paul Sabatier e aprofundado pelos que seguiram seus passos, cita Le Goff (2001, p. 48):

Percebe-se a fonte principal das dificuldades da historio-grafia franciscana a existência de duas tendências dentro da Ordem buscando atrair o fundador para si e interpretar em benefício próprio suas palavras e seus escritos.

Nesse sentido, é fundamental, ao analisar as fontes medievais, que tenhamos o devido cuidado de contextualizar suas intenções, pois elas pertencem a um tempo e foram compiladas com um intuito. O Francisco e o franciscanismo que emergem das hagiografias do

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primeiro século não podem ser considerados totalmente fictícios, caracterizados pela mentalidade teológica que imprimem o estilo literário da época.

Podemos dizer que, mesmo com todas essas premissas, as hagiografias franciscanas procuram retratar um movimento real, que existiu em seu tempo, em sua totalidade e vigor, e, por mais que exprimam uma tendência literária de um momento da história, retratam os contextos e os modelos culturais que caracterizaram o franciscanismo.

3. A CONSTRUÇÃO DO FRANCISCANISMO EM JACQUES LE GOFF

O historiador Jacques Le Goff é, sem dúvida, uma das maiores autoridades mundiais sobre a Idade Média. Possui inúmeras publicações sobre o período, sendo suas obras obrigatórias e indispensáveis para os estudos do medievo. Membro da Escola dos Annales, é um dos seus mais influentes expoentes, ainda em atividade. Dirigiu seus estudos e pesquisas pautado nas premissas da “Nova História”, dentre eles, o estudo histórico biográfico, com destaque para a biografia de São Luís, publicada em 1996, que renovou os estudos históricos biográficos, pelo seu método modus operandi na construção do personagem biografado. Ao abordar o tema, diz o autor:

Mas há também biografias que são pura e simplesmente reacionárias, anedóticas, narrativas, de um psicologismo que não leva a nada! Na França, estão correndo um fenômeno bem significativo. Há uma editora, à qual estou ligado – faço questão de dizer, é a Fayard, que publica grande número de biografias. Pois bem, publica tanto biografias renovadas, ao novo estilo, como biografias ultra-tradicionais (LE GOFF, 1991, p. 3).

Em 2001, mediante seu interesse particular no poverello de Assis, publicou um estudo biográfico sobre Francisco, que se tornou referência para os pesquisadores do santo e do seu movimento. Segundo o próprio autor:

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Há meio século, quando comecei a me interessar pela Idade Média, sou duplamente interessado pela personagem de São Francisco de Assis. Primeiro, pela personagem histórica que no coração da virada decisiva do século XII para o XIII em que nasceu uma Idade Média moderna e dinâmica, sacudiu a religião, a civilização e a sociedade (LE GOFF, 2001, p. 11).

Em seu livro intitulado São Francisco de Assis, o historiador francês traz uma construção de Francisco dividida em quatro ensaios. O primeiro ensaio localiza a figura de Francisco no período de transição entre o medievo e a modernidade, que caracterizou o século XIII. No segundo ensaio, Le Goff apresenta um breve estudo sobre a biografia do poverello e a análise de documentos e fatos, para a compreensão do Francisco histórico; o terceiro ensaio faz uma análise da influência do movimento franciscano no século XIII e das hagiografias do período. Por fim, o quarto ensaio oferece um estudo comparativo entre o franciscanismo e os modelos culturais e sociais do século XIII.

O primeiro ensaio, Francisco de Assis entre a renovação e os fardos do mundo feudal, compilado para a revista internacional de teologia Concilium, de 1981, contextualiza Francisco no ambiente que caracteriza a virada do século XII para o século XIII, marcado pelo grande desenvolvimento das cidades, do comércio, diferenças sociais, disputas políticas e religiosas entre as comunas e representantes da Igreja. Como escreve o pesquisador:

[...] Quando Francisco nasce em 1181 ou 1182, essa nova sociedade está a ponto de ultrapassar sua fase de crescimento anárquico, de ímpeto estágio de institucionalização, ainda que na Itália, no que diz respeito tanto às corporações de artesão e mercadores, como à organização política, o movimento tenha começado mais cedo que em outros lugares (LE GOFF, 2001, p. 26). [...] A esse mundo novo a Igreja se esforça para dar novas formulações doutrinais, novas práticas religiosas (LE GOFF, 2001, p. 31). [...] nenhuma derrota é mais significativa do que a da Igreja do fim do século XII diante dos movimentos leigos francamente heréticos ou catalogados pela Igreja como heréticos (LE GOFF, 2001, p. 35).

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Pela sua narrativa pautada no contexto histórico, Le Goff torna o primeiro ensaio indispensável para a compreensão do Francisco histórico ao ressaltar as movimentações e mudanças sociais, políticas, econômicas, culturais e religiosas que regem o período. Dessa forma, no início do livro, o historiador já dá o tom de sua intenção na construção do poverello, que consiste, não só em descrever a importância do santo e sua relevância para o medievo, mas localizá-lo em seu tempo, para ser contemplado nos dias atuais de uma maneira mais fidedigna: “Esta publicação se insere numa atividade de historiador desejoso de refletir, renovando-a, sobre a história de São Francisco e a imagem que ele nos transmite no limiar do terceiro milênio” (LE GOFF, 2001, p. 35).

No segundo ensaio, verificamos a busca de Le Goff pelo “Verdadeiro Francisco”, onde o autor debruça seu interesse nas fontes documentais do século XIII; dentre elas, estão os escritos do próprio Francisco, suas hagiografias, as regras primitivas da ordem franciscana, seu testamento, em que, ao final, traça uma breve biografia analisando essas fontes de maneira crítica.

A abordagem do historiador demonstra a dificuldade de se trabalhar numa pesquisa com fontes documentais da época, tanto pelos séculos que nos separam dos documentos originais, o que dificulta a constatação de sua autenticidade, como pelo estado em que muitos documentos estão – muitas vezes fragmentados e com trechos ilegíveis pela ação do tempo – e pelos interesses ideológicos de grupos que disputavam o poder no franciscanismo primitivo.

A essas perdas acrescentam-se incertezas sobre a autenticidade de alguns dos escritos que nos foram legados sob o nome de São Francisco: essas dúvidas são relativas apenas a textos em geral considerados secundários, mas, para alguns, a discussão sobre a autenticidade deles não é desprovida de importância para o conhecimento de São Francisco (LE GOFF, 2001, p. 47).

Quanto às hagiografias, o autor é extremamente pontual:Deveria ser suficiente, completar as leituras das obras com o exame de vida (as hagiografias). Mas aí é que a dificuldade é maior. As dissensões dentro da Ordem dos Frades Menores no século XIII acabaram, afinal, por

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privar de fontes dignas de total confiança sobre a vida do fundador da Ordem (LE GOFF, 2001, p. 49).

Dessa forma, a análise de Le Goff quanto à questão documental na pesquisa biográfica traduz os percalços comumente encontrados nessa modalidade de produção histórica.

No terceiro ensaio, O vocabulário de categorias sociais em São Francisco de Assis e seus biógrafos do século XIII, Le Goff dedica-se inteiramente à questão documental, identificando e classificando os principais grupos de escritos, testemunhos e hagiografias referentes a Francisco, sua relevância na compreensão do santo e o contexto histórico no qual foram compilados.

Ainda no terceiro ensaio, o autor dá destaque aos documentos atribuídos ao próprio santo e às hagiografias, além de testemunhos do meio franciscano e do meio não franciscano, para compor elementos constitutivos da figura de Francisco e de seu movimento. Com isso, Le Goff aprofunda a problemática dos fins que envolvem muitos documentos, além dos contextos que envolvem sua produção:

Consideramos conhecidos, em suas grandes linhas, os problemas historiográficos que apresentam, de um lado, a autenticidade de alguns escritos de São Francisco e, de outro, a objetividade de alguns testemunhos dos primeiros biógrafos de São Francisco. Far-se-á simplesmente alusão disso na medida em que essa crítica tradicional do texto afete nossa pesquisa. Porque, ainda aqui, devemos trabalhar em dois níveis: o da relação do vocabulário de nossos textos com o que sabemos quanto à realidade que ele designa, e o da relação desse vocabulário com o mundo mental dos seus utilizadores (LE GOFF, 2001, p. 122).

Por fim, no quarto ensaio, Franciscanismo e modelos culturais do século XIII, são analisadas as inovações do pensamento e da forma de vida de Francisco, além dos choques, permanências e mudanças, provocados por sua forma de vida na Europa Medieval. Segundo o autor:

Meu propósito é preparar um inventário de modelos, ou antes, conceitos-chave da mentalidade e da sensibilidade comuns do século XIII e buscar definir a atitude dos

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Franciscanos em face desses modelos na sua perspectiva de evangelização leiga (LE GOFF, 2001, p. 185).

Observa-se, no quarto ensaio, a preocupação de Le Goff em esmiuçar uma série de conceitos, que vão desde aqueles que remontam à sociedade medieval, como casa, cidade, comércio, até conceitos culturais, morais e teológicos, como humildade, cortesia, religiosidade e devoção, que auxiliam definitivamente em contextualizar Francisco e o movimento franciscano no século XIII.

Nesse sentido, no encerramento de sua obra, o autor ressalta a importância de Francisco e do franciscanismo:

Há poucos movimentos próprios para exprimir e para esclarecer qualquer momento da humanidade. Abrir-se e ao mesmo tempo resistir ao mundo é um modelo, um programa de ontem e de hoje, de amanhã sem dúvida (LE GOFF, 2001, p. 242).

A obra de Le Goff sobre São Francisco traz uma construção de seu movimento diferenciada das demais produções nos últimos tempos. Ao colocar a serviço da produção biográfica seu indiscutível conhecimento e autoridade sobre o medievo, o autor nos ajuda a vislumbrar um Francisco e um franciscanismo extremamente conectados com seu tempo, fruto de um contexto. Essa leitura permite um distanciamento das construções comumente feitas no decorrer da história que retratam um Francisco que conversa com os animais, levita e apazigua lobos furiosos e um franciscanismo lúdico e desconectado, com uma ordem de “monges mendigos” alienados do mundo que os cerca.

A conexão do movimento franciscano com os contextos e modelos culturais do século XIII, além do distanciamento das hagiografias com os meandros do processo histórico por questões ideológicas, é muito bem explorada por Le Goff e constitui o objetivo desta pesquisa.

Nesse sentido, o autor faz comentários pontuais sobre as hagiografias citadas. Quanto às obras de Celano:

Quanto a Vida I e II de Tomás de Celano: Portanto, a utilização desse grupo e textos tropeça em numerosas dificuldades. Se, em comparação com o Francisco “oficial”,

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parece apresentar um Francisco mais intransigente [...] não se pode deixar de considerar que existe a possibilidade de que deforme São Francisco no sentido oposto (LE GOFF, 2001, p. 57).

Quanto à Legenda Maior e Menor de São Boaventura: “A Legenda escrita por São Boaventura é quase inútil como fonte de vida de São Francisco; de um modo ou de outro, deve ser controlada por documentos mais seguros” (LE GOFF, 2001, p. 53).

Quanto ao grupo Leonino: Entre outros textos que fornecem dados biográficos de São Francisco é preciso dar um lugar a parte a obras de caráter mais lendário do que histórico, mas que desempenham um papel de primeiro plano na mitologia franciscana (LE GOFF, 2001, p. 53).

Quanto aos modelos culturais do século XIII e sua conexão com o franciscanismo, o autor ressalta que o movimento está intimamente ligado às transformações de espaço e tempo, evolução econômica, estrutura da sociedade global e civil, modelos ético-religiosos e tradições sagradas próprias do século XIII, demonstrando que o franciscanismo é fruto de um contexto, uma resposta a uma realidade que dialoga consigo mesma, não a esgotando, nem alienada de seus processos, mas complementando-a, inserida de maneira quase orgânica num contexto particular.

Nesse Sentido, Le Goff demonstra que as produções do primeiro século de franciscanismo não consistem numa fonte fidedigna para a construção do Francisco histórico e do franciscanismo primitivo, mas são essenciais para compreendê-lo em sua totalidade, quando associada a uma leitura mais profunda e crítica dos contextos que propiciaram essa forma de vida.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao escolher o tema para este trabalho, fui motivado pela minha profunda admiração por Francisco de Assis e seu movimento. Após quatro anos na Ordem dos Frades Menores, pude, de maneira singular, experimentar a vida franciscana, sua espiritualidade e

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dinâmica. Em todos esses anos, não cessei minhas pesquisas sobre o poverello de Assis, mesmo durante a faculdade de Filosofia, e quanto mais aprofundei o estudo e a reflexão sobre Francisco, maiores foram os desafios para a sua compreensão.

As hagiografias do primeiro século de franciscanismo, representadas pelos grupos Celanense, Bonaventuriano e Leonino, demonstraram que, mesmo longe de serem fontes confiáveis para a construção do Francisco histórico e do franciscanismo primitivo, são de extrema importância para compreender o contexto em que o santo viveu e seu movimento se desenvolveu, principalmente quanto à intenção de suas compilações.

O grupo Celanense, sendo o mais antigo, encontra problemas como fonte histórica, por ter sido encomendado pelo Vaticano mediante a canonização de Francisco. É de se notar que no texto existem longos elogios ao Papa e a Frei Elias, conturbado e polêmico ministro geral da Ordem dos Frades Menores no momento de sua compilação. Porém, o Grupo Celanense foi escrito a partir dos testemunhos de contemporâneos de Francisco, o próprio autor, Tomás de Celano, foi admitido na Ordem pelo santo.

Por ser a “primogênita” das hagiografias, os franciscanólogos da atualidade imprimem grande simpatia pelo grupo Celanense, que tem sido base de inúmeros estudos na busca do Francisco histórico. De modo geral, é razoável considerar que, em suas entrelinhas, podemos encontrar traços do poverello e de seu movimento que são dignos de atenção, principalmente na descrição de Celano do aspecto físico de Francisco e os detalhes de sua conversão, mensagens e crises, que não são encontradas em outras hagiografias.

O Grupo Bonaventuriano é o que encontra maiores desafios para o historiador. Compilado em um dos momentos mais licenciosos da Ordem, atende a interesses políticos e disputas de poder durante o processo de sua compilação por Boaventura. Contemplando em seu texto reivindicações dos observantes e reformistas, podemos observar que, mesmo baseado na cronologia de Celano e em sua narrativa, o texto contém uma série de interpretações e construções sobre a vida e a espiritualidade propostas por Francisco, que se afastam do ideal original dos primeiros anos do movimento

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franciscano. Porém, é um documento inestimável para entendermos as bases para a construção do imaginário do poverello, já que as Legendas de Boaventura foram, por quase oito séculos, as hagiografias oficiais de Francisco.

O Grupo Leonino, composto por inúmeros textos de origem duvidosa e cravado por inúmeras lendas e folclores, não constitui um grupo sólido para os estudos do Francisco histórico, mas são, sem dúvida, belíssimas obras literárias que traduzem como a vida do poverello impactou e foi absorvida pela cultura popular da Europa Medieval no primeiro século de franciscanismo. Sua consulta é indispensável para compreender Francisco em sua totalidade.

Le Goff imprime um novo sentido na construção de Francisco e do franciscanismo, sentido traçado, a partir do século XIX, por Paul Sabatier, de utilizar a pesquisa histórica, documental e um caráter científico na construção de Francisco, e na compreensão do franciscanismo primitivo, ressaltando a relação desse movimento com o contexto histórico e modelos culturais do século XIII.

Dessa forma, os estudos sobre Francisco e o franciscanismo, apresentados por Le Goff em São Francisco de Assis, abrem um novo horizonte na compreensão do poverello. Com a sua competência e rigor na análise das fontes documentais, Le Goff faz um trabalho quase “cirúrgico” com os textos medievais. Sua obra é de fundamental importância para os estudos de Francisco e do franciscanismo e demonstram como os estudos biográficos históricos são relevantes para a compreensão do processo histórico em suas particularidades.

O franciscanismo que emerge de sua obra, sem maquiagem, sem o peso da carga ideológica, muitas vezes impostas pelas hagiografias, permite que vislumbremos o homem por trás do santo, o fato por trás do mito, e os processos que determinam que o franciscanismo seja fruto de um tempo, de um contexto; com uma forma de vida e ideias relevantes para a contemporaneidade. Além disso, sua obra nos ajuda a refletir sobre métodos do historiador ao tratar das biografias e de como é possível buscar por um personagem histórico envolto em lendas e interesses diversos na construção de sua imagem, tipo de estudo muito em voga na historiografia atual.

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Sem mais, faço minhas as palavras do próprio Le Goff (2001, p. 243):

E na época atual, em que nossos olhares, nossos esforços, devem antes de tudo se voltar para os trágicos países do terceiro mundo e neles tomar como modelos os pequenos, os pobres, os oprimidos, permanece, apesar das derrotas, dos escorregões das tradições, a lição do franciscanismo em seu grande movimento no sentido dos leigos. Essa é ainda, enquanto a fome, a miséria, a opressão não forem vencidas, uma lição de plena atualidade.

REFERÊNCIAS

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