loureiro, interpretações contemporâneas da representação

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  • 7/31/2019 Loureiro, Interpretaes contemporneas da representao

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    Maria Rita Loureiro

    Interpretaes contemporneasda representao

    Se as coisas so inatingveis... ora!

    No motivo para no quer-las...Que tristes os caminhos se no ora

    A presena distante das estrelas!M Q

    Os princpios representativos undamentam a legitimidade dos regimes,

    a ormao da autoridade, os arranjos institucionais e as ormas de vincu-lao entre os cidados e o poder nas democracias contemporneas1. Toda-via, o tema da crise da representao est presente hoje no s nos debatesacadmicos como nos meios polticos de todos os pases democrticos. amplamente reconhecido que as eleies so instrumentos insufcientes deexpresso da soberania popular, de responsividade e de representatividadedos governantes. O peso desmesurado do poder econmico, a corruporelacionada ao fnanciamento de campanhas, a desproporcionalidade natraduo de votos em cadeiras, entre outros, questionam os parlamentoscomo espaos de representao. Alm disso, o declnio acentuado do com-

    parecimento s urnas na maior parte das democracias indica igualmente queos partidos so cada vez menos capazes de representar opinies, interesses,valores e, sobretudo, as novas identidades que surgem nas sociedades atuais,

    1 Texto apresentado no Seminrio Temtico Controvrsias conceituais da democracia, do 31. Encontro

    Anual da ANPOCS, realizado em Caxambu, 22 a 26 de outubro de 2007. Na oportunidade, agradeo

    o apoio nanceiro da GVPesquisa da EAESP/FGV.

    Revista Brasileira de Cincia Poltica, n 1. Braslia, janeiro-junho de 2009, pp. 63-93.

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    em processo de proundas transormaes no mundo do trabalho e no plano

    da cultura (PRZEWORSKI, STOKES & MANIN, 1999a; MIGUEL, 2003;LAVALLE, HOUTZAGER & CASTELLO, 2006).

    Diante de tais limitaes, assiste-se, de um lado, emergncia de propos-tas de reormas polticas que procuram corrigir os problemas dos sistemaseleitorais e partidrios e tornar os governantes mais representativos. De outrolado, os que descrem da representao poltica e, portanto, das reormas deseus sistemas institucionais, deendem novas ormas de participao popular,para alm das eleies e dos partidos Assim, enatizam no s os estudos, mastambm as prticas que ampliam a participao dos cidados e privilegiamprocessos deliberativos em novas arenas decisrias, como conselhos sociais

    de gesto e de controle de polticas pblicas, em oramentos participativose outros experimentos em voga em dierentes pases nas ltimas dcadase inclusive no Brasil (ARATO & COHEN, 1999; YOUNG, 2000; SANTOS,2002).

    Considerando desejvel a complementaridade entre as instituies elei-torais e partidrias e a participao popular, como a literatura nacional eestrangeira mais recente j comea a apontar (YOUNG, 2000; PINTO, 2004;AVRITZER, 2006), este trabalho retoma o tema da democracia representativa.Ele procura sistematizar o estado das discusses tericas a eetuadas, desde o

    trabalho seminal de Hanna Pitkin, do fnal dos anos 1960, at contribuiesmais recentes.A reviso do debate sobre representao poltica justifca-se por vrias

    razes: em primeiro lugar, h uma clara insufcincia da compreenso dessacategoria. Como afrmou Pitkin na introduo de seu livro, aprender oque signifca a representao condio para aprender como representar.Por outro lado, os estudos recentes apontam novas perspectivas analticasque superam a oposio entre representao e participao e elaboramuma consistente deesa da democracia representativa e de suas potencia-lidades rente chamada democracia direta, sem cair nos argumentos da

    teoria minimalista ou procedimental, nem tampouco se reduzir tese dainevitabilidade prtica do governo representativo nas sociedades contem-porneas. Em suma, a reexo aqui eetuada considera que o grande desa-fo da teoria e da prtica democrtica hoje reside no apereioamento dademocracia representativa (a incluindo seus vnculos com a participaodos cidados para alm do voto), e no na reduo de eseras de deciso

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    por parte dos representantes eleitos ou mesmo sua substituio por outros

    atores polticos2

    .

    Considerando que a discusso dessa temtica est muito marcada, des-de Schumpeter, pela separao entre teoria normativa e teoria empricaou realista, necessrio indicar que nesta reviso da teoria democrtica,procura-se superar tal oposio na medida em que se rejeita a premissa daincompatibilidade entre rigor cientfco e julgamento de valores3. Comoindicam vrios autores de dierentes disciplinas e correntes de pensamentopoltico, valores esto inevitavelmente presentes, de forma implcita ou ex-plcita, nas premissas que orientam nossas escolhas tericas, nos conceitose variveis com que trabalhamos4. No tema especfco de representao, as

    palavras de Pitkin so sbias:

    A posio adotada por um autor, no interior dos limites estabelecidos pelo conceito

    de representao, depender de sua metapoltica sua concepo ampla sobre a

    natureza humana, a sociedade humana e a vida poltica. Sua viso da representao

    no ser escolhida arbitrariamente, mas estar inserida no, e dependente do padro

    de seu pensamento poltico (PITKIN, 1967, p. 167).

    Alm disso, preciso no perder de vista que uma das implicaes maisunestas que o discurso sobre o realismo pode gerar a atitude de aceitao

    2 Este trabalho inspirou-se nas discusses do seminrio de ps-graduao sobre representao poltica,

    realizado no Departamento de Cincia Poltica da USP no 1. semestre de 2007, sob a coordenao

    de Cicero Araujo, a quem reitero aqui meus agradecimentos pela oportunidade de participao.3 Com relao denominada concepo realista de democracia, vale citar a seguinte crtica: Ainda

    que tericos como Schumpeter e Downs no tenham muita inclinao pela reexo normativa, po-

    demos ormular por eles a norma moral que est por trs de (seu) raciocnio. Trata-se de uma norma

    de considerao igual das preerncias e interesses de cada eleitor que, como os lderes, no se

    supe que sejam motivados por alguma coisa que no por seu prprio interesses. Em princpio, cada

    eleitor teria ou deveria ter uma oportunidade igual de ver suas prprias preerncias prevalecerem no

    mecanismo de agregao de preerncias individuais que so as eleies. O processo democrtico ,

    em si mesmo, uma orma de justia distributiva: ele distribui poder poltico, um recurso crucial para

    a distribuio de quaisquer outros bens sociais, na sociedade (VITA, 2000, p. 7).4

    Autores de dierentes abordagens tericas procuram desmisticar a separao entre cincia positiva enormativa: Poucas teorias empricas evitam julgamentos de valor, explcitos ou no, e a viso de uma

    teoria normativa em geral se baseia sobre um entendimento particular do presente e do passado

    (LUKES, 1977, p. 38); No boa lgica armar que no acreditamos em democracia porque os atos

    a reutam (SARTORI, 1987, p. 71). Mesmo na Economia, que se pretende a mais hard das cincias

    sociais, h crticas contundentes: Operando com denies que pretendem ser universalmente vlidas,

    reqentemente se tem logrado azer com que um princpio poltico implcito parea logicamente

    correto (...) O perptuo jogo de esconde-esconde em Economia consiste em esconder a norma no

    conceito (MYRDAL, 1997, p. 212).

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    resignada do que visto como a realidade e de abandono do debate e da

    luta sobre as possibilidades de sua transormao. Em outras palavras, adeesa normativa no o mero discurso sobre o que desejamos e jamaisalcanaremos, mas a deesa de princpios atravs dos quais no s julga-mos o passado e o presente, mas que tambm nos orientam para o uturo.So tais consideraes que inspiraram a escolha da epgrae que orienta apresente reexo.

    O texto a seguir est assim organizado: na primeira parte, retoma-se otrabalho seminal de Hanna Pitkin sobre o conceito de representao, mos-trando suas contribuies, mas tambm seus limites; a segunda parte siste-matiza e critica o trabalho de reconstruo histrica das ormas institucionais

    assumidas pelo governo representativo, realizado por Bernard Manin; e aterceira parte apresenta a deesa da democracia representativa eetuada porNdia Urbinati. As consideraes fnais destacam alguns desdobramentosdeste debate para a teoria democrtica e a construo institucional.

    I. O conceito de representao em Pitkin:

    suas contribuies e limites

    O livro de Hanna Pitkin, publicado em 1967 nos Estados Unidos, sob ottulo O conceito de representao, teve enorme impacto nos meios acadmicos,

    no s pela inovao conceitual, mas tambm pelo momento poltico emque os movimentos de direitos civis dos negros questionavam seriamente asinstituies representativas naquele pas. Alm de ser um dos mais inuentese mais citados trabalhos na literatura sobre o tema, o livro oerece ampladiscusso do conceito de representao poltica e mostra seu carter contra-ditrio. Adotando a abordagem da flosofa da linguagem de Wittgenstein,Pitkin sustenta que, para se compreender o conceito de representao poltica,devem ser considerados os dierentes modos como o termo usado5.

    Ela rejeita as concepes ortodoxas e prope uma mudana radical naconcepo de representao centrada nas intenes e atos de indivduos. As-

    sim, opera um deslocamento de seu oco, de uma relao entre duas pessoas,e da viso do representante como um advogado ou delegado (calcada naanalogia com a representao privada) para uma abordagem da representaocomo um arranjo institucional pblico. Ou seja, a representao poltica passa

    5 Os comentrios a seguir levam em conta a literatura que revista hoje o trabalho de Pitkin, depois de

    mais de 40 anos de sua publicao e, em particular, a resenha crtica de Lisa Disch (s/d).

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    a ser vista no como um atributo pessoal, mas uma atividade social.

    Para desenvolver suas crticas viso ortodoxa, Pitkin distingue quatrovises de representao: ormalista, descritiva, simblica e substantiva. Naviso ormalista, inclui-se tanto a representao por autorizao prvia,originria de Hobbes (para quem o representante aquele que recebeu umaautorizao para agir por outro) quanto a representao por responsabi-lizao a posteriori (originria do pensamento liberal), na qual a essnciada representao a accountability ou responsividade do representante.Enquanto a representao descritiva a correspondncia ou semelhanaacurada com o que representado, um espelho ou reexo dele, a represen-tao simblica implica usar smbolos para azer presente alguma coisa que,

    de ato, no esteja presente. A representao substantiva a deendida porPitkin nos termos caracterizados a seguir.

    Essa autora prope duas condies para que o conceito de representaoseja adequado. A primeira que a representao deve ser concebida comouma atividade mais do que uma relao entre dois termos, ou seja, quandoum agente representa um principal, ele toma decises e az compromissosque o principal orado a honrar. A segunda que o conceito de repre-sentao deve ser substantivo, isto , no basta supor que o agente tenha odireito de agir em nome do principal, independentemente do que ele az,

    mas ao contrrio, a representao reere-se substncia do que feito. Emoutras palavras, preciso ultrapassar o mero raciocnio que prescreve normasrelativas conduta prpria dos representantes ou que determina os meiosadequados para institucionalizar o governo representativo, tal como azemos adeptos da viso ormalista. E realizar a anlise da substncia da ativida-de de representao, indicando como essa atividade se dierencia de outrassituaes em que uma pessoa age no lugar de outra pessoa.

    Com tais condies, Pitkin procura evitar as teorias ormalistas de repre-sentao que so insatisatrias porque no captam o que ocorre durante arepresentao. No basta saber se um agente representa, mas se ele repre-

    senta bem ou mal. Portanto, undamental ter uma concepo substantivada representao que indica o que o representante az (acting for) e o que orepresentante (standing for).

    O quadro da pgina seguinte sistematiza as caractersticas das quatrovises de representao de Pitkin, as questes de pesquisa decorrentes e oscritrios de avaliao dos representantes em cada uma.

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    Embora Pitkin insista no componente substantivo da representao,

    ela no considera que a viso descritiva de representao lhe d substnciaAo contrrio, esta criticada, pois pode levar idia de uma promessa pe-rigosa de pereita correspondncia, que impossvel. Ela indica ainda queas analogias mais requentemente usadas pelos tericos da representaopara caracterizar o que ocorre, de ato, durante a representao tais comoagente, guardio, advogado, delegado ou embaixador e especialista soinsatisatrias6.

    Tabela 1. As vises de representao em Hanna Pitkin

    Fonte: site Enciclopdia de cincia poltica, traduo da autora.

    6 Do caos das muitas analogias e expresses adverbiais, e das muitas implicaes de cada uma, emer-

    gem trs idias principais: a idia de substituio ou agir no lugar de algum, a idia de tomar conta

    ou agir no interesse de algum e a idia de agir como subordinado, sob instrues, de acordo com

    os desejos de outro. Nenhuma das trs, por si mesma, revela-se um equivalente satisatrio da idia

    de representao (PITKIN, 1967, p. 139).

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    Com relao representao simblica, esta produz uma das condies da

    representao requeridas por Pitkin: a atividade. A representao simblicase unda em um estado de mente de satisao ou crena dos governadosna pessoa do lder e, nela se eetuam a identifcao e o alinhamento devontades entre governante e governado. O representante ativo como pro-dutor de smbolos, azendo-se um lder aceito. Todavia, Pitkin rapidamentepercebe que isso no pode ser representao e afrma que a representaosimblica tem pouco a ver com um adequado reexo da vontade populare, no limite, pode se transormar em uma teoria ascista de representao a representao pelo Fhrer (PITKIN, 1967, p. 106-7).

    A partir da, Pitkin constri seu prprio conceito de representao como

    uma atividade de agir por outros, um agir substantivo por outros. E enatizaneste conceito duas dimenses: a equivalncia entre representante e represen-tado (ou seja, a relao entre representante e representado deve ser recprocae no unilateral); e a exigncia paradoxal de que a pessoa substituda pelorepresentante esteja de alguma orma presente.

    A questo da equivalncia na relao de representao construda paradesmontar a controvrsia mandato-independncia, j que, para Pitkin, estocorretos tanto os deensores da idia de que o representante tem que azer oque os representados querem, quanto os que afrmam que no realmente

    representao se o representante no or independente para decidir na basede seu prprio julgamento. Para ela, os tericos no devem tentar reconciliara natureza paradoxal da representao poltica. Ao contrrio, percebendo ocarter rgil da representao e a exigncia de que a delegao seja genui-namente recproca, Pitkin afrma que este paradoxo deva ser preservado,recomendando aos cidados que salvaguardem tanto a autonomia do re-presentante quanto dos que esto sendo representados. Os representantesdevem agir de orma a salvaguardar a capacidade dos representados paraautorizar e manter seus representantes responsveis perante si e salvaguardara capacidade dos representantes de agir independentemente dos desejos dos

    representados7.

    7 Madison exprime esta viso de representantes como delegados que simplesmente seguem as pree-

    rncias expressas de seus constituintes. Ao contrrio, Burke concebe os representantes como trustees

    (administradores, procuradores) que seguem sua prpria compreenso do que seja o melhor curso de

    ao. Assim diz ele: o Parlamento no um congresso de embaixadores de dierentes e hostis interesses

    que devem ser mantidos, como um agente ou advogado contra outros agentes e advogados; mas

    o parlamento uma assemblia deliberativa de uma nao com um interesse do conjunto... De ato,

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    Assim, ao procurar superar a oposio mandato-independncia e mos-

    trar que a representao uma relao recproca, na qual ao e julgamentoso caractersticas tanto do representante quanto do representante, Pitkin extremamente inovadora. Ela o ainda quando discute que a questo daequivalncia exige o enrentamento das condies para institucionalizaruma relao recproca entre representante e representado. Ao mesmotempo, ela se distingue, neste ponto, tanto dos crticos da representaoadeptos da democracia direta, quanto dos tericos elitistas, ao proclamarque a representao no uma mera alternativa pragmtica nas sociedadescontemporneas, mas um ideal que no deve ser avaliado apenas em ter-mos de sua viabilidade poltica. Isso porque percebe dimenso importante

    contida na representao, como atividade criativa e transormadora que despao liderana, pois o representado no tem uma preerncia prvia aser espelhada adequadamente pelo representante. Este age por um grupoinorgnico que no tem um interesse singular, mesmo que seus membrospudessem ser capazes de ormular algum. Na verdade, o interesse nasceou resultado da prpria representao. Da sua dimenso intrnseca einevitavelmente transormativa.

    Alm disso, Pitkin traz outro elemento importante nesta discusso, di-erenciando a representao poltica da representao privada e revelando

    que h um conito irredutvel entre representante poltico e representado,distintamente do que ocorre na relao privada.Com relao ao segundo aspecto que singulariza a viso de Pitkin o

    paradoxo de que o representado est, ao mesmo tempo, presente e nopresente no ato de representao cabe apontar as crticas pertinentes deLisa Disch. Segundo essa comentarista, ao procurar evitar a armadilha dacontrovrsia mandato-independncia, Pitkin acabou rem da idia de querepresentar tornar presente um ausente (dado seu demasiado apego eti-mologia da palavra re-present) e de uma noo metasica de representaocomo derivao de uma realidade original. Inspirando-se na reexo do

    flsoo rancs, Jacques Derrida, Dish mostra que ela fcou presa idiaundacionista de ser preciso existir antes para que algo seja representado. A

    escolhe-se um membro, mas quando oi escolhido no um membro de Bristol, mas ele membro

    do Parlamento. Burke, Edmund. (1949). Burkes politics. Edited by Ross J. S. Hofman and Paul Levack.

    New York: Alred A. Knop (apud Pitkin, 2006, p. 13).

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    realidade ento a condio de possibilidade da representao mais do que

    um eeito de atos de representao8

    .Na verdade, como mostra ainda Lisa Disch, o trabalho de Pitkin apresenta

    inmeras ambigidades. Elas aparecem desde suas crticas, por exemplo, representao simblica, elaboradas exatamente nos termos antes rejeitados derepresentao por espelhamento ou reexo. Tais ambigidades se intensifcamna medida em que Pitkin desenvolve o seu prprio conceito de representaoe trabalha seus componentes distintivos de equivalncia entre representante erepresentado e o paradoxo da presena-ausncia. Na verdade, mesmo rejeitan-do a idia de que a representao , acima de tudo, uma relao a um reerentee mesmo destacando o aspecto transormador da representao e o papel ativo

    do representante em produzir o interesse comum que no existia previamente representao, ela acaba defnindo representao como responsividade dorepresentante s preerncias dos representados9:

    A representao poltica , de ato, representao, particularmente no sentido de agir

    em nome de, e de que isso precisa ser entendido no nvel pblico. O sistema repre-

    sentativo precisa cuidar do interesse pblico e ser responsvel perante a opinio pblica,

    exceto quando, e na medida em que, sua no-responsabilidade possa ser justifcada

    em termos do interesse pblico (PITKIN, 1967, p. 224).

    So essas ambigidades que explicam porque o trabalho de Pitkin,mesmo considerado seminal por toda a literatura que o analisa, continuaainda hoje indevidamente ignorado (MANIN, PRZEWORSKI & STOKES,2006), no conseguindo produzir impactos signifcativos nos estudos sobre otema. Tambm Lisa Disch indica que, mesmo citando Pitkin, a maior parteda pesquisa emprica sobre o congresso norte-americano nos anos 1970concebia a representao precisamente nos termos que Pitkin rejeitava, ouseja, como uma relao entre legisladores e seu eleitorado que mais oumenos representativo, dependendo da responsividade dos congressistas s

    preerncias de seus representados.8 Derrida procura desmontar a idia de representao como uma derivao de um original e prope,

    em seu livro Discurso e fenmeno, publicado na Frana em 1967, no mesmo ano de publicao do

    livro de Pitkin, nos Estados Unidos, o conceito de repetio primordial, ou seja, pela repetio que

    a realidade adquire o atributo de originalidade.9 A noo de representao em Burke, por exemplo, reerencial. Para ele o governo no representa

    pessoas nem como indivduo nem como vontade geral mas interesses, ou seja, o reerente da

    representao no o povo, mas uma abstrao: interesses pblicos virtuais.

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    Na verdade, embora tenha aberto a discusso sobre representao poltica,

    procurando superar os equvocos das concepes ortodoxas, Pitkin acabouno cumprindo suas promessas. De um lado, porque, para discutir o cartercriativo do representante, ela se apia no diagnstico elitista schumpeteria-na sobre os representados nas sociedades de massa (cujo comportamentose caracteriza pela apatia, indierena e meabilidade manipulao)10. Emoutras palavras, mesmo partindo de pressupostos normativos distintos echegando a propostas de sadas tambm distintas de Schumpeter, acaba seaproximando, at por conta das ambigidades apontadas anteriormente emsua anlise, da chamada viso realista da poltica:

    um representante poltico pelo menos o membro tpico de um legislativo eleito tem como outorgante da representao um determinado eleitorado ao invs de

    um outorgante singular; e isso levanta problemas [quanto a saber] se um tal grupo

    desorganizado pode mesmo ter um interesse a ser perseguido pelo representante, para

    no alar de uma vontade perante a qual pudesse ser responsvel, ou de uma opinio

    perante a qual pudesse procurar justifcar-se pelo que houvesse eito. Esses problemas

    tornam-se mais evidentes quando se considera o que ensina a cincia poltica sobre

    os membros de um eleitorado, pelo menos em uma moderna democracia de massas

    sua apatia, sua ignorncia, sua maleabilidade (PITKIN, 1967, p. 215).

    Assim, Pitkin termina seu livro de orma ctica, dizendo que a represen-tao como uma atividade substantiva parece estar distante das realidadesda vida poltica (Id., p. 215). Embora tenha aberto um importante cami-nho para se repensar a representao nas democracias contemporneas, elamesma o echa, descaracterizando a representao poltica e aderindo aocoro dos tericos da democracia direta que a rejeitam ou, quando muito, aconsideram uma mera alternativa inevitvel. Em artigo posterior, publicadoem 1989 e reproduzido no Brasil, em 2006, no nmero especial da revista Lua nova, ela retoma o dilema entre mandato ou independncia e surpre-endentemente termina com os argumentos rousseaunianos e a reafrmao

    de que a dignidade da poltica (na expresso de Hanna Arendt) s se afrmana democracia direta. No texto abaixo, Pitkin afrma, de orma explcita, a

    10 Outros comentaristas tambm apontam que Pitkin no se incomada tanto com o teor elitista dos

    autores trabalhados por ela. Lisa Disch, por exemplo, indica que as crticas de Pitkin viso de Burke

    no se reerem a seu elitismo, mas sua concepo reerencial e despolitizadora de representao

    de interesses intangveis (virtuais).

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    completa negao da democracia representativa:

    Apenas a participao democrtica direta proporciona uma alternativa real para o di-

    lema entre mandato ou independncia, no qual o representante ou um mero agente

    de interesses privados ou um usurpador da liberdade popular periodicamente

    eleito. No primeiro caso, absolutamente ningum tem acesso vida pblica, j que

    no h nenhuma. No segundo, a antiga distino entre governante e governado (...)

    venceu outra vez; uma vez mais o povo no admitido no domnio pblico, uma

    vez mais os assuntos de governo se tornam o privilgio de poucos (PITKIN, 2006,

    p. 43; grio meu).

    II. Crise da representao ou de uma orma de governorepresentativo?

    Bernard Manin outro importante estudioso contemporneo do temada representao. No livro Princpios do governo representativo, publicado naFrana em 1995, ele mostra que os sistemas de governos contemporneos,hoje denominados democracias representativas, tiveram origens nas trsrevolues modernas a inglesa, a americana e a rancesa, mas nunca oramconsiderados por seus undadores como governo do povo11.

    Realizando uma ampla anlise histrica dos processos de designaodos governantes, desde a antiguidade grega, o autor procura explicar o

    ato de que a instituio do governo representativo moderno implicou odesaparecimento da seleo dos governantes por sorteio e a introduo deeleio, que um mtodo essencialmente aristocrtico. Se o sorteio sempreoi visto, tanto pelos clssicos da Antiguidade como pelos pensadores dosculo XVII e XVIII, como democrtico, porque implica a igualdade dechances de todos os cidados virem a participar do poder, a eleio supeo princpio da distino, ou seja, os eleitos devem ser cidados socialmentedistintos superiores aos seus eleitores12. Assim, boa parte de seu livro dedicada anlise histrica do triuno da eleio como mtodo de escolhados governantes.

    11 Rousseau condenava a representao poltica como uma orma de servido, apenas suavizada por breves

    momentos de liberdade. Madison opunha a democracia das cidades antigas (de pequeno nmero de

    cidados) repblica moderna undada na representao.12 Lembrando que etimologicamente eleio e elites tm a mesma origem, Manin indica que o sorteio, na

    Antiguidade grega, baseava-se no princpio da rotao (ligado prudncia poltica, e idia de que aquele

    que comanda hoje pode vir a obedecer amanha e vice-versa).

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    Na verdade, uma das grandes contribuies do trabalho de Manin

    encontra-se no ato de ter relacionado governo representativo eleio eesta aristocracia. Dierentemente de vrios outros tericos, como RobertDahl, por exemplo, que enatiza o direito de votar, Manin enatiza o direitode ser votado. Para ele, esta a questo crucial e no o sufrgio universal. Elelembra que historicamente, vrios pases explicitaram ormas de restrio aodireito de ser votado. Na Frana revolucionria, havia restries j nas cons-tituies de 1791 e1793; na Inglaterra, alm das regras eleitorais (censitrias),havia tambm regras sociais tcitas que igualmente restringiam o direito deser eleito. Nos Estados Unidos, os ederalistas apoiavam a distino entreeleitores e eleitos ou representantes. Madison, ao identifcar repblica com

    governo representativo (distinto de democracia) considera que a repblicano o governo em que os representantes so iguais aos governados, masem que os governantes prestam contas ou respondem aos governados. Paraos ederalistas, a questo no a semelhana entre governantes e governadose sim a capacidade de exprimir o interesse pblico. Os representantes sosuperiores aos eleitores porque enquanto estes esto presos aos seus interessesparticularistas, aqueles exprimem o interesse pblico. Da a exaltao de umaaristocracia natural distinta de uma aristocracia hereditria. A modernida-de do governo representativo se encontra, ento, na eleio da aristocracia

    natural, isto , dos que se destacam por seus mritos, virtudes ou talentos(e no por leis ou hereditariedade).Assim, retomando uma tradio que se iniciou com Schumpeter, Manin

    associa o governo representativo como aristocracia eleitoral e com governode elites. Para Manin, o governo representativo relaciona-se a uma aristo-cracia eletiva porque supe dois tipos de superioridade dos governantessobre os governados: 1) superioridade como aptido para governar, pois osgovernados s so aptos para escolher; 2) superioridade no sentido de queos governantes teriam uma excelncia objetiva ou real, isto , eles teriam acapacidade de exercer um governo de orma excelente. Dierentemente dos

    clssicos (Madison, Sieyes, Hamilton, entre outros), Manin descr desteltimo tipo de superioridade. Ao contrrio, ele v grande possibilidade dea eleio produzir governantes sem talentos ou virtudes para governar. Esteaspecto ser retomado mais adiante13.

    13 Alm de mostrar historicamente a no semelhana entre eleitores e eleitos, Manin procura tambm

    desenvolver dedutivamente uma teoria pura do carter aristocrtico da eleio. Assim, ele identica,

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    Alm da eleio princpio central , Manin percebe que outros elemen-

    tos tambm esto presentes nos governos representativos. Assim, ele procuraexaminar as idias que serviram de base para a criao das instituies re-presentativas, ou seja, seus princpios ou elementos constantes. Defnindoesses princpios como dispositivos institucionais concretos inventados emum determinado momento histrico (sculos XVII e XVIII) e que, a partirde ento, podem ser observados, em todos os governos representativos, in-dica seus quatro componentes bsicos: 1) os representantes so eleitos pelosgovernados; 2) os representantes conservam certa independncia rente vontade dos representados ou rente s preerncias dos eleitores, j que astentativas de impor instrues aos eleitos e a revocabilidade dos mandatos

    oram sempre rejeitadas; 3) liberdade de maniestao da opinio pblica,como contrapartida ausncia do mandato imperativo; 4) as decises polti-cas so tomadas aps debate em assemblias, porque as sociedades modernasso complexas e s as discusses permitem chegar a um acordo.

    Como estes quatro princpios do governo representativo oram mo-delados conorme as circunstncias histricas em que eles oram postosem prtica, Manin distingue trs ormas de governo representativo: o tipoparlamentar, caracterstico dos seus primrdios; o de partidos de massa,do fnal do sculo XIX e meados do sculo XX; e o governo representativo

    contemporneo, que ele denomina de democracia de pblico ou democraciade audincia14.No governo representativo de tipo parlamentar, os eleitos so pessoas

    ilustres (ou notveis) que inspiram deerncia e confana pessoal noseleitores, em virtude de sua notoriedade social e de seu status na comu-nidade em que pleiteiam votos. Com a extenso do surgio e a era dospartidos de massa, os cidados no votam mais em algum que conhecempessoalmente, mas em um candidato de seu partido, j que de modo geral,a representao a um reexo da estrutura social e as clivagens eleitorais

    no captulo IV de seu livro, quatro atores que determinam o carter no igualitrio contido na elei-

    o: 1) o tratament6o desigual dos candidatos pelos eleitores, ou seja, a preerncia de pessoas; 2) a

    dinmica de uma situao de escolha, ou seja, como eleio escolha, o escolhido tem sempre um

    trao que o distinga dos demais candidatos; 3) proeminncia ou salincia do candidato e vantagem

    cognitiva conerida por ela; 4) custo para obteno da inormao.14 O autor trabalha nesta tipologia com a noo de tipo ideal, indicando que as modalidades de repre-

    sentao poltica podem coexistir na realidade, mas dependendo do tempo e do lugar, uma orma

    ou outra predomina (MANIN, 1995a, p. 7).

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    exprimem as divises de classe. A confana do eleitor no se dirige mais

    para uma pessoa, mas para o partido. A democracia de audincia, caracte-rizada pela fgura de lderes pessoais com grandes habilidades miditicas,apresenta certos traos semelhantes ao modelo parlamentar. Aqui tambma personalidade dos candidatos parece ser um dos atores explicativos dovoto, que, dierentemente da estabilidade apresentada na democracia dospartidos, caracteriza-se por extrema volatilidade de uma eleio para outra,no havendo mais uma identidade partidria bem defnida que determineos votos dos militantes ou simpatizantes.

    Se, na democracia de partidos, os representantes no so mais inteiramen-te livres para votar segundo sua conscincia e julgamento (como deendia

    Burke na Inglaterra do comeo do sculo XIX), eles tampouco so merosdelegados do partido, como pretendiam alguns tericos do incio do sculoXX, como Kautsky e Kelsen. Segundo Manin, os processos de coalizo polticaque caracterizaram as sociais democracias europias, em boa parte do sculoXX, exigem margem de manobra por parte da direo partidria. Ou seja, nademocracia de partidos, a independncia no do representante individual,mas do grupo ormado pelos lderes de partido para negociarem com seusuturos aliados. Nas democracias de pblico, diante da alta de inormaessufcientes para dierenciar os candidatos (j que no h mais reerncias

    decorrentes da identifcao partidria), os eleitores acabam usando certasimagens esquemticas produzidas pela mdia para escolher entre os candi-datos e seus programas propositadamente vagos e pouco detalhados. Isso,diz Manin, d um espao de liberdade aos eleitos para agir, aps as eleies,assegurando-lhes, em outro ormato, a independncia que caracteriza ogoverno representativo.

    Dierentemente do modelo parlamentar, em que as questes polticas comoliberdade de religio, livre comrcio, dentre outras, no encontravam expressoatravs do voto e eram resolvidas por presses de ora do parlamento, no mo-delo de partidos, estes organizam no s a disputa eleitoral, mas igualmente a

    articulao e a expresso da opinio pblica, atravs de imprensa partidria. Oscidados comuns se expressam pelos partidos e suas organizaes fliadas. Comona democracia de partido, o governo de partido, a liberdade de opinio pblica liberdade da oposio. J na democracia de pblico, os canais de comunicaocom a opinio pblica no tm uma base partidria, confgurando-se situaosemelhante ao modelo parlamentar.

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    Neste ponto, Manin az afrmao bastante problemtica, relativa ao

    papel dos partidos polticos no contexto de predomnio dos meios de co-municao de massa. Mesmo reconhecendo que h distoro dos atos pelamdia, ele diz que na democracia de audincia, a presena signifcativa dosinstitutos de pesquisa como canais privilegiados de ormao da opiniopblica e a uniormizao das inormaes levam neutralizao das cli-vagens partidrias. Alm de exprimir uma viso muito calcada na situaoamericana, na qual as clivagens partidrias no so to claras, este tipo deobservao tem sido ortemente questionado por vrios autores (FISHKIN,1995; SARTORI, 1998).

    Com relao ao ltimo componente do governo representativo as

    decises polticas so tomadas aps debate , Manin indica que, no modeloparlamentar, como os representantes no esto submetidos vontade de seuseleitores, o Parlamento um local de deliberao no sentido pleno da palavra,na medida em que a os polticos defnem suas posies atravs da discussoe o consentimento da maioria alcanado pela troca de argumentos. Aocontrrio, na democracia de partidos, o Parlamento no mais um lugaronde se chega a um acordo de maioria sobre polticas especfcas a partir deposies inicialmente divergentes. A posio da maioria j est fxada antes decomearem os debates. As sesses do Parlamento apenas conerem um selo de

    validade legal a decises tomadas em outro lugar(MANIN, 1995b, p. 24). Nademocracia de pblico, o Parlamento tambm tem pouca importncia comorum de debates, mas por razes dierentes. Como o eleitor hoje utuante,sem identifcao partidria estvel, mas razoavelmente bem-inormado einstrudo, isso estimula os polticos a exporem suas idias diretamente aopblico. Pode-se conquistar o apoio de uma maioria, alando-se diretamenteao eleitorado, sem mediao partidria. Assim, os debates no fcam restritosao Parlamento (como ocorria no modelo parlamentar), nem s comissesconsultivas dos partidos (tpicas do modelo de partido), mas eles se proces-sam no meio do pblico, pelos meios de comunicao de massa.

    Este estudo sobre as transormaes histricas do governo representativopermite a Manin dar consistncia a seu argumento de que no h crise derepresentao, como muitos afrmam hoje, mas sim a emergncia de umaoutra orma de governo representativo. Ele lembra que cada processo detransormao da orma do governo representativo oi vivido, em seu tempo,como uma experincia de crise da representao.

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    A idia de crise de representao associa-se suposio de que represen-

    tao uma orma de governo democrtico, isto , de democracia indireta.Consequentemente, crise de representao seria crise de democracia e exigiriareormas democrticas, no sentido de aproundamento da democracia, comoafrmam vrios autores (AVRITZER, 2002; LAVALLE et al., 2006). Maninrejeita esta idia porque, para ele, governo representativo e democraciaso distintos. Os princpios que regem o governo representativo no sodemocrticos nem tampouco oram pensados para instituir o autogovernodo povo:

    Boa parte da insistncia na idia de que existe uma crise da representao se deve

    percepo de que o governo representativo vem se aastando da rmula do governodo povo pelo povo. A situao corrente, no entanto, toma outros contornos quando

    se compreende que a representao nunca oi uma orma indireta ou mediada de

    autogoverno do povo. O governo representativo no oi concebido como um tipo

    particular de democracia, mas como um sistema poltico original baseado em prin-

    cpios distintos daqueles que organizavam a democracia (MANIN, 1995b, p. 33).

    Em suma, o carter singular do governo representativo deriva das eleiese no da representao. Na verdade, a representao no o ncleo centralda anlise de Manin, mas as eleies, j que seu objetivo principal provar

    o carter no democrtico, mas aristocrtico (que discrimina e exclui) daseleies.

    Portanto, como Pitkin, Manin tambm acaba rejeitando a representaopoltica, ou seja, negando-lhe potencialidades. Pitkin o az, ao afrmar a im-possibilidade de superao do dilema mandato ou independncia. Manin,ao enatizar a dimenso eleitoral, desacredita da representao pelo carterelitista, aristocrtico ou oligrquico contido na eleio15. Mesmo reconhe-cendo que a eleio tem uma dupla ace, ou duplo carter um aristocrticoe outro democrtico Manin privilegia o primeiro porque acredita que hhoje uma tendncia a esquec-lo16.

    15 Manin no dierencia, como os clssicos da antiguidade o zeram, as duas ormas de governo: aris-

    tocracia (governo de poucos homens, mas superiores) e oligarquia (orma degenerada da primeira).16 O carter aristocrtico da eleio repousa na distino entre eleito e eleitor e seu carter democrtico

    no ato de que todos os cidados (pobres e ricos) tm o mesmo peso e todos tm igual poder de

    destituir os governantes no nal de seus mandatos.

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    Como alguns crticos j apontaram, esse autor v a representao como

    autorizao eleitoral, isto , uma relao entre indivduos, atravs da qual oeleitor avalia as qualidades pessoais de um candidato em relao a outros.Torna, assim, o processo poltico um mero jogo psicossocial de conrontoentre pessoas, sem necessidade de instituies intermedirias o partido notem peso em sua anlise do governo representativo (URBINATI, 2006a). justamente esta reduo da representao a uma mera relao indivduopara indivduo que constitui o principal obstculo identifcao da repre-sentao democracia e que leva Manin a concluir que o surgio universalno gerou mudanas na prtica e nas instituies do governo representativo,que continuam as mesmas desde sua instituio.

    Aqui se encontra outro aspecto problemtico na anlise de Manin. Comoele identifca representao com eleio e esta uma relao entre eleitores ecandidatos que decidem racionalmente em uno de clculos individuais,sem mediao de partidos (PRZEWORSKI, MANIN & STOKES, 2006), eleperde importantes transormaes histricas trazidas pela extenso do su-rgio e seus impactos na prpria extenso da cidadania social, como j oilongamente demonstrado (MYRDAL, 1962; MARSHALL, 1967; ESPINGEN-ANDERSEN, 1999).

    Em suma, como no governo representativo das chamadas democracias

    de pblico no h mais embates ou lutas polticas j que se trata para oeleitor apenas de reagir propaganda, orientada pelos institutos de pesquisa,que constroem imagens e salincias distintivas de alguns candidatos rentea outros, em contexto de uniormizao generalizada das inormaes ,Manin descr da possibilidade de que os governos escolhidos por eleiesvenham a ser democracia, entendida como autogoverno do povo. Alis, ele extremamente ctico quanto s possibilidades de o processo eleitoral (ouseja, a democracia eleitoral) gerar um bom governo.

    A seguir, veremos como Ndia Urbinati retoma as pistas levantadas eno aproveitadas por Pitkin e Manin para azer uma deesa da democra-

    cia representativa, mostrando suas potencialidades rente democraciadireta.

    III. O que torna a representao democrtica?

    Urbinati parte da constatao de que h uma lacuna na undamentaonormativa da democracia representativa que hoje est sendo redescoberta,

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    inclusive por parte de alguns adeptos da democracia participativa, como

    Mansbrigde (1983), Young (2000) e outros. Esta a tarea que ela se properealizar em seu livro mais recente sobre os princpios e a genealogia da de-mocracia representativa, no qual az a deesa da superioridade da democraciarepresentativa rente direta.

    Questionando os pressupostos de que a democracia direta a orma polti-ca mais democrtica e que a representativa um mero expediente prtico, umsecond best, ela se aasta no s dos adeptos da democracia direta, mas igual-mente dos tericos schumpeterianos e neo-schumpeterianos, deensores dacirculao das elites e da democracia eleitoral.De um lado, rejeitando a visode que o pice da democracia seja a democracia direta, busca undamentar

    sua tese na anlise do uncionamento da assemblia ateniense e mostra quea a presena direta dos cidados no signifcava participao ativa de todos.A maioria se abstinha da completa participao, pois apenas comparecia,mas no azia uso da palavra. O que os antigos desencorajavam, diz ela, era aausncia, no o silncio. Em outras palavras, o carter direto signifca apenaspresena sica, mas no voz necessariamente. Mesmo em uma assembliade uma ou duas centenas de pessoas, algumas delas participaro de ormapassiva, apenas ouvindo as poucas pessoas que alam.

    De outro lado, Urbinati critica a democracia eleitoral que unda a repre-

    sentao no princpio da diviso de trabalho e em uma seleo uncionaldos mais capazes para governar.Distinguindo-se da democracia eleitoral, ademocracia representativa uma orma de governo original que no excluia participao. uma orma de participao poltica que pode ativar umavariedade de ormas de controle e de superviso por parte dos cidados. Nademocracia representativa, o oposto representao no participao, masexcluso da representao. O modelo de democracia representativa que visaevitar a concentrao da onte de legitimao nas instituies estatais e areduo do consentimento popular em um nico ato de autorizao. Estemodelo de representao se unda na teoria do consentimento, que v a

    eleio como expresso do direito de participar em algum nvel da produodas leis, no apenas como um mtodo de transerncia das preerncias daspessoas para profssionais polticos selecionados.

    Urbinati desenvolve sua deesa normativa da democracia representativacom base nas reexes de John Stuart Mill, que j associava democracia

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    representao proporcional e ao carter agonstico da assemblia17. A repre-

    sentao proporcional preenche os princpios democrticos de igualdadepoltica e de controle popular mais do que o sistema majoritrio. Enquantoo sistema majoritrio retm a dimenso do direito de deciso, a represen-tao proporcional retm o direito de representao, alm de encorajar oobjetivo mais amplo de debate pblico e o desenvolvimento da competnciade julgamento entre os eleitores.

    Introduzindo na discusso de Mill a idia de deliberao e advocacy, elamostra que o carter indireto marca constitutiva da representao abreespao para a deliberao e encoraja a distino entre deliberao e voto18.O intervalo temporal e espacial aberto pela representao, preenchido pelo

    discurso, pela confana sustentvel, pelo controle dos governados e pela ac-countabilitydos governantes, ornece ento um impulso para a participaopoltica na medida em que o carter deliberativo tende a expandir a polticapara alm da estreiteza da deciso e da administrao.

    Por outro lado, a introduo da categoria de advocacypermite no s evi-tar a concepo racionalista subjacente aos modelos recentes de democraciadeliberativa, mas tambm opor-se crtica da proporcionalidade como ontede ragmentao do interesse geral. Urbinati argumenta que a proporciona-lidade mais do que um meio para se alcanar uma verdade imparcial ou um

    espelho que reproduz a segmentao social, permite que a assemblia possauncionar como uma gora moderna (espao de debate, de ormao de juzoe opinies), se a proporcionalidade or ligada fgura do representante comoadvocate. Segundo a autora, o carter duplo da advocacy como participaoou deesa de uma causa e como distanciamento permite superar os plosextremos, de um lado, da parcialidade e, de um lado, de uma viso objetivistada vontade geral19. A categoria de advocacyoerece ainda uma alternativa vivelpara a tradicional dicotomia entre a concepo do representante, ora comoadministrador independente, ora como delegado sem autonomia alguma. Esta

    17

    Conorme o dicionrio Aurlio, agonstico reere-se luta, especialmente luta pela vida. Na Filosoa,reere-se idia de que a luta desejvel, pois onte de progresso. No caso da assemblia, luta

    debate.18 Urbinati lembra que, desde o sculo XVIII, Paine e Condorcet j propunham situar a representao

    dentro de um complexo de deliberao e voto, autorizao ormal e inuncia inormal, envolvendo

    representantes e cidados. Ao invs de delegao da soberania, eles viam a representao como um

    processo poltico que conecta a sociedade e as instituies estatais.19 Aqui bom relembrar que Rousseau herdeiro de uma tradio do pensamento poltico que subs-

    tancializa o sujeito, vendo-o como substrato.

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    categoria, em suma, possibilita iluminar as duas unes polticas que Mill atri-

    buiu representao: igualdade poltica e controle popular dos governantes.Assim, a teoria da democracia representativa implica a reviso da con-

    cepo moderna de soberania popular que contesta o monoplio da vontadena defnio e na prtica da liberdade poltica. Essa teoria marca o fm dapoltica do sim ou no e o incio da poltica como uma arena de opiniescontestveis e decises sujeitas a reviso a qualquer momento. A maniestaomais ativa e consoante da poltica a voz. Seu contedo o juzo acerca dasleis e polticas justas ou injustas20.

    As eleies e a autorizao eleitoral so essenciais, mas elas no so su-fcientes para a ordem democrtica. Elas engendram a representao, mas

    no os representantes. No mnimo, elas produzem um governo responsvele limitado, mas no um governo representativo. A representao aciona umtipo de unifcao poltica que no pode ser defnida meramente em termosde um acordo contratual entre eleitores e eleitos.

    Dialogando no s com a literatura clssica, mas tambm com a recente,Urbinati afrma que o representante poltico nico no porque ele substituio soberano. Mas, precisamente porque ele no um substituto do soberanoausente (a parte que substitui o todo), ele (o representante) precisa ser cons-tantemente recriado e estar em harmonia contnua com a sociedade para

    aprovar as leis legtimas. Dierentemente de Manin, Urbinati afrma quedemocracia e processo representativo compartilham da mesma genealogiae no so antitticos. Tanto quanto a vontade, o juzo e a opinio compema soberania e esta corresponde a uma temporalidade ininterrupta que trans-cende os atos de deciso na eleio. Ou seja, representao ultrapassa os atosde deciso nos momentos eleitorais (URBINATI, 2006b).

    Assim, as principais linhas de argumentos desenvolvidos por Urbinati so:1. A representao est ligada histria e prtica democrtica, ou seja,

    democracia e governo representativo tm a mesma origem histrica e un-cional e se inuenciam mutuamente.

    20 Urbinati utiliza de orma importante, em sua argumentao a avor da democracia representativa e

    como contra-argumento aos problemas postos por Rousseau, a distino kantiana entre vontade e

    julgamento, tema o qual ela dedica todo o captulo 3 de seu livro. Lembrando que, em Kant, a vontade

    no est orientada pela razo (pelo imperativo categrico), mas arbtrio, capricho e congura uma

    relao (cujo prottipo a do senhor e escravo) na qual a capacidade de juzo autnomo anulada,

    Urbinati indica que na relao de representao (com sua orma indireta), o governo trata o repre-

    sentado como um agente com capacidade de juzo autnomo.

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    2. Vrias teorias de representao podem ser dierenciadas, dependendo

    da relao entre Estado e sociedade civil.3. Na relao entre Estado e sociedade civil, h um papel importante para a

    ideologia e para os partidos, o que tem sido pouco destacado na teoria polticacontempornea, marcada pela abordagem racionalista da deliberao.

    A anlise histrica do nascimento do processo eleitoral na Inglaterra, nosculo XVII, permite mostrar que houve uma ligao clara entre a adoodo processo eleitoral e a transormao dos eleitos em representantes eainda a emergncia de alianas partidrias ou ideolgicas entre os cidados.As eleies desencadearam a transormao das relaes simbiticas entresociedade e Estado, permitindo que elas assumissem ormas simblicas de

    unifcao e ossem construdas politicamente. Alm disso, a dissociao doscandidatos de suas posies de classe destacou o papel das idias na poltica,ou seja, o propsito idealizador no processo de representao.

    Por outro lado, olhando para a histria de 200 anos de governo representa-tivo, Urbinati distingue trs teorias de representao, segundo a maneira comque concebem a soberania, a poltica e as relaes entre Estado e sociedade:a teoria jurdica, a institucional e a poltica. Mostrando os limites contidosna teoria jurdica e institucional, az sua opo pela teoria da representaopoltica.

    A teoria jurdica prxima da institucional. Ambas se expressam emlinguagem ormalista, baseiam-se na analogia entre Estado e Pessoa e emuma concepo voluntarista de soberania. A institucional decorre da jurdica,que mais antiga e anterior concepo moderna de soberania, vista comoum contrato privado de concesso de autorizao. Delegao (instruesvinculativas) e alienao (incumbncia ilimitada) so os dois plos extremosdeste modelo. Rousseau simboliza o primeiro plo e Hobbes o segundo, assimcomo Siyes e Burke. Aqui a lgica individualista e no-poltica, na medidaem que supe que os eleitores julguem as qualidades pessoais dos candida-tos, ao invs de suas idias polticas e projetos. Como j oi reconhecido,

    neste modelo de representao privada, no h nada para os representantesrepresentarem. Tampouco h que discutir questes de representatividadeou representao justa.

    A representao institucional liga-se lgica presena/ausncia dosoberano e descola a representao da deesa da representatividade. Ela setornou a base do governo representativo liberal e depois, da democracia

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    eleitoral. Funda-se no dualismo bem defnido entre Estado e sociedade e az

    da representao uma instituio centrada rigorosamente no Estado, cujarelao com a sociedade deixada ao juzo do representante. Ela restringeainda a participao popular a um mnimo procedimental (eleies paraconstituio dos governantes). A nao soberana ala apenas atravs da vozdos eleitos. As duas teorias supem que a uno dos eleitores se resume nomeao de polticos profssionais que tomam decises s quais elesse submetem voluntariamente. Segundo Urbinati, este no tambm umsistema de representao, mas sim de organizao do povo e da vontadeda nao. Moldado antes da transormao democrtica da sociedade e doEstado, ao longo dos sculos XIX e XX, ele concretiza a separao que Marx

    denunciou entre homem e cidado, entre autonomia na esera poltica e naesera social.

    Seguindo os caminhos abertos por Pitkin, a teoria de representao pol-tica deendida por Urbinati rompe com os modelos anteriores que supemmandatos privados de autorizao e cria uma categoria inteiramente novana medida em que concebe a representao de orma dinmica que no tema ver com entidades preexistentes. A representao no pertence aos agentesou instituies governamentais, mas designa uma orma de processo poltico,estruturada em termos de circularidade ou mediao entre as instituies

    estatais e a sociedade e no se restringe deliberao e deciso na assemblia.Aqui, a unidade poltica no decorre automaticamente da unidade daqueleque representa, mas deve ser criada e constantemente recriada atravs deum processo dinmico.

    importante enatizar novamente que esta concepo de representaopoltica implica uma nova viso do processo eleitoral, distinta da perspectivainstrumentalista, de orientao schumpeteriana que reduz a eleio a umprocedimento de seleo de elites21. Mesmo considerando que o processoeleitoral seja um mtodo de controle dos governantes, ormalmente limitadoporque a posteriori e apenas indiretamente antecipatrio, Urbinati retm

    21 Sendo uma viso incompleta e distorcida do que sejam os representantes e sobre como eles devem agir, a

    teoria de representao eleitoral contm um paradoxo: de um lado, a opinio do povo vista como onte

    de legitimidade e, de outro, sustenta-se que os representantes tomam decises boas e racionais se estive-

    rem protegidos de uma opinio popular sempre manipulvel. Alm de reduzir a deliberao democrtica

    aos eleitos, esta abordagem abre caminho para uma teoria das instituies to insensvel representao

    quanto a de Rousseau sobre o governo direto (que achava que o representante deveria ser surdo opinio

    pblica para tomar boas decises).

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    que as eleies so undamentais para impedir que os representantes sejam

    insulados da sociedade. Em outras palavras, elas tm as seguintes virtudes: a)permitem que os cidados aprendam a se livrar de governantes; b) de ormapacfca, sem guerra civil; c) e engendram uma vida poltica rica, promovendoagendas de polticas pblicas e condicionando a vontade dos legisladores deorma constante, no apenas no dia das eleies.

    Tambm em conronto com Manin, Urbinati sustenta que o governorepresentativo uma amlia complexa e plural que contem um ramo de-mocrtico22. A democracia representativa singular e especfca na medidaem que permite que as eleies estabeleam a mediao entre sociedade eEstado, ligando cidados e assemblia legislativa. Ou seja, as eleies, mesmo

    que insufcientes, so componentes necessrios de uma ordem democrtica. Arepresentao no pode ser reduzida a um contrato (de delegao), frmadoatravs das eleies, nem tampouco reduzida nomeao de legisladorescomo substitutos do soberano ausente.

    Assim, os elementos constitutivos da teoria de representao democrticade Urbinati so os seguintes:

    Em primeiro lugar, ela rejeita a viso de sociedade como a agregao deindivduos isolados que votam e agregam preerncia por atos discretos delivre escolha. Ao contrrio, v a sociedade democrtica como uma malha

    intrincada de signifcados, interpretaes de crenas e opinies sobre quaisso os interesses dos cidados. Portanto, os votos no reetem preernciasindividuais, mas essa complexidade social, representando opinies, e inclusiveuma dimenso temporal de longo prazo.

    Em segundo lugar, essa concepo considera a democracia representativa(dado seu carter indireto e mediado pelo distanciamento temporal e espa-cial) como orma superior e mesmo desejvel democracia direta, porqueo voto direto no cria um processo de opinies (no qual se ormam juzosautnomos); no permite uma continuidade histrica, sendo um eventoabsoluto que torna a poltica uma srie nica e discreta de decises; no

    transcende o ato de votar, azendo de todo voto um novo comeo ou umaresoluo fnal porque corresponde simplesmente contagem das vontadesou preerncias e no representa opinies. E, ainda, o voto direto no uma

    22 Urbinati lembra que os pensadores do sculo XVII distinguiam os dois termos: governo representativo

    e democracia representativa, especialmente Condorcet para quem designar representantes no era

    o nico meio de se participar do droit de cite (2006, p. 206).

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    alternativa guerra civil, mas aumenta o risco da guerra civil porque no

    permite que a divergncia de opinies se manieste23

    .O terceiro componente importante desta teoria da representao reere-se

    ao peso crucial dos partidos polticos. Considerando que democracia no consenso, mas mtodo de resoluo de conito sem derramamento de san-gue como Bobbio afrmou, Urbinati argumenta que a realizao do potencialexistente na representao s se eetiva atravs da poltica partidria. O papeldos partidos o de integrao da multido, unifcando ideais e interesses dapopulao, e tornando o soberano permanentemente presente como agentede inuncia e superviso extra-estatais. A situao que assistimos hoje decandidatos sem partidos decorrente da crise dos partidos ideolgicos gera

    eeitos semelhantes ao de uma assemblia em que se agregam vontades indi-viduais, como ocorre em uma democracia direta, incapaz de tomar decisespor meio de um processo deliberativo estendido.

    Em suma, os argumentos de Urbinati a avor de democracia representativapodem ser assim sintetizados:

    1. A democracia representa opinies, idias e no indivduos. A retricae o juzo valorativo (e no s a presena e a vontade) so essenciais na de-mocracia.

    2. As opinies so importantes porque compem uma narrativa que

    vincula eleitores atravs do tempo e do espao e az das causas ideolgicasuma representao de toda a sociedade e de seus problemas.3. A representao reabilita uma dimenso ideolgica da poltica: o pro-

    cesso complexo de unifcao e desunio dos cidados que os projeta parauma perspectiva orientada ao uturo

    4. A divergncia de opinies, de interpretaes de idias um ator deestabilidade. O exerccio do poder requer uma contestao repetida e peri-dica, sendo a autoridade dos investidos de poder criada e recriada comoresultado da maniestao do povo24.

    23

    Armando que interpretaes de idias um ator de estabilidade, Urbinati lembra Paine que com-preendeu que as opinies e crenas podem converter poder em processo poltico incessante e ao

    qual a representao d eetividade. Mais recentemente, Claude Leort tambm salientou que, na

    democracia representativa, a virtude do discurso revela que o poder pertence a ningum e que os

    que exercem o poder no tm domnio sobre ele, no o personicam.24 Mesmo autores que no partilham das mesmas premissas tericas e metodolgicas de Urbinati, argu-

    mentam em direo similar. Assim, reetindo sobre as experincias brasileiras recentes de referendum

    e plebiscito, Santos (2007) arma que, ao contrrio do voto direto, o parlamento o espao para o

    contraditrio, para os debates de opinies, para a persuaso, a reconsiderao de opinies e para a

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    Assim, a teoria democrtica da representao az retifcaes no s teo-

    ria minimalista (que no ornece um retrato completo do jogo democrtico)quanto viso deliberativa de Habermas (que joga luz insufciente para a lutapoltica). Embora a teoria do discurso de Habermas ornea uma imagemda representao ao enatizar a circularidade que unifca seus momentosparlamentar e extraparlamentar, esta imagem parcial, diz Urbinati. parcialporque no apreende os momentos em que h a ruptura da comunicaoentre sociedade e Estado, ou seja, no apreende os momentos de curto cir-cuito que justamente azem emergir os problemas de representatividade. Talaspecto importante porque uma teoria democrtica da representao deveser capaz de explicar os momentos de continuidade e de crises e ainda deve

    envolver a idia de que o poder soberano conserva um poder negativo quepermite ao povo investigar, julgar, inuenciar e reprovar seus legisladores.Segundo ainda Urbinati, esse poder popular negativo no independentenem contrrio representao poltica, mas um componente essencial delaporque est entranhado no seu prprio carter duplo, com uma ace para oEstado e outra para a sociedade.

    Por fm, Urbinati lembra ainda que a democracia representativa requercertas pr-condies: no s os procedimentos de eleies livres, justas eidneas, liberdade de inormao e de associao, mas igualmente certa

    igualdade bsica de recursos materiais. Se tais condies so necessrias,certamente no so sufcientes. importante tambm o desenvolvimento deuma cultura tica que possibilite a deesa do partidarismo, tanto por partedos representantes como dos representados. necessrio ver as relaes par-tidrias no como necessariamente antagnicas e a deesa dos partidos nocomo promoo incondicional de privilgios sectrios contra o bem-estarde todos. Ou seja, a democracia representativa, dierentemente da eleitoral,supe certa viso da poltica que mantm o soberano em moto perptuo.Isso porque a representao, por sua natureza, consiste em ser continuamenterecriada e dinamicamente ligada sociedade.

    deliberao nal. Lembra tambm que, no voto direto, as minorias que no so contempladas e que

    no se pode recorrer de decises plebiscitrias, j que os perdedores nestas decises so perdedores

    absolutos. Portanto, a substituio de instituies representativas e parlamentares por mecanismos

    deliberativos, sem mediao, equivaleria a transormar o poder causal produtivo a preerncias sus-

    tentadas sem o ltro do conronto argumentativo.

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    Consideraes fnais

    Conrontando os autores contemporneos aqui examinados, pode-seafrmar que enquanto Pitkin e Manin encerram suas reexes rejeitando,por dierentes razes, a democracia representativa, Urbinati quem retm arepresentao como orma desejvel de democracia. Em outras palavras, sePitkin e Manin introduziram a representao democrtica no debate tericopara, em seguida, descaracteriz-la, Urbinati enatiza suas potencialidadesno s luz do pensamento poltico clssico, mas igualmente levando emconta as transormaes da sociedade contempornea.

    Todavia, o trabalho de Urbinati no se desdobrou em reexes no planoda construo institucional em vista realizao das potencialidades apon-

    tadas na representao poltica25. Essa lacuna constitui, como a literaturatem apontado reiteradamente, um srio desafo para a teoria e a prticademocrtica. Held (2006), em sua importante obra de anlise crtica dosmodelos democrticos e de suas prticas institucionais, indica que, se hojeh muito ceticismo com relao democracia, tambm h muita incertezasobre os tipos de instituio ou de arranjos institucionais que devem serconstrudos e sobre qual a direo poltica a ser seguida26.

    Na literatura contempornea da cincia poltica e da sociologia h aindamuito poucas descries empricas que poderiam ser interpretadas como

    experincias de apereioamento da representao via participao dos cida-dos para alm do processo eleitoral. Dentre elas, pode-se citar a instiganteanlise eetuada por Stark e Brustz (1998) sobre os desenhos institucionaisadotados nos pases do Leste Europeu aps o socialismo. Desenvolvendo oconceito de accountabilitydemocrtica estendida, estes autores indicam que acapacidade de elaborar e implementar programas de reormas ou de polticaspblicas em geral pode ser aumentada (e no reduzida, como se afrma maisreqentemente) quando o poder executivo menos concentrado, ou seja,

    25 Em artigo mais recente, Urbinati (2008) comea a considerar novas ormas no eleitorais de representao

    que levem em conta problemas de justia, julgamento deliberativo e denio de novas constituencies(para alm da dimenso territorial) e contemplem particularmente as minorias e as mulheres.

    26 Outros autores igualmente tm plena conscincia destas diculdades. Beetham, por exemplo, arma

    que, se o conceito de democracia orma de tomada de decises pblicas que concede ao povo

    o controle social incontestvel, o mesmo no ocorre com relao ao quanto de democracia

    desejvel ou praticvel e como ela pode ser realizada numa orma institucional sustentvel (Beetham,

    1993, apud Miguel, 2005). Por outro lado, cabe relembrar as inmeras experincias que tm buscado

    institucionalizar a participao da sociedade em runs deliberativos. Para o exame dos limites e

    potencialidades destes experimentos, ver Held (2006), Fung (2004) e Coelho & Nobre (2004).

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    mais constrangido a prestar contas de suas decises s diversas oras po-

    lticas no Parlamento e na sociedade organizada. Ao debater e negociar suaspropostas com vrios atores, eles aumentam a compreenso dos problemasenvolvidos, ampliam a capacidade de obter inormaes crticas, corrigindoerros de clculo que, na ausncia deste processo, s apareceriam posterior-mente no momento da implementao e, portanto, com menor possibilidadede correo. Em outras palavras, o controle das decises dos governanteseleitos, no s atravs das instituies representativas tradicionais comoParlamento e partidos, mas conjuntamente com novas instituies criadasna sociedade (no caso em estudo, os conselhos envolvidos com questesde emprego e salrio) permitiram que pases como a Repblica Tcheca,

    dierentemente de outros analisados, como a Hungria e Alemanha Oriental,pudessem elaborar e executar polticas econmicas mais sustentveis emtermos econmicos e sociais.

    H outros experimentos deste tipo que se mostraram sustentveis? Hiniciativas de engenharia institucional nas democracias j consolidadas enas emergentes que contemplem tais preocupaes de apereioamento darepresentao via controle social? Com no h respostas a essas e outrasquestes da mesma natureza, resta esperar que o tema seja investigado emuturas pesquisas empricas.

    Para fnalizar, cabe sistematizar as respostas indagao sobre a impor-tncia terica e prtica da reviso do tema da representao poltica hoje.Discutir o que representao poltica seus limites e potencialidades per-mite rever questes importantes da poltica contempornea. Em primeirolugar, possibilita pensar as reormas dos sistemas eleitorais e partidriospara alm de medidas que procurem apenas corrigir distores na repre-sentatividade, entendida no estrito sentido descritivo de representao, parausar o conceito de Pitkin. Em segundo lugar, d margem redefnio danoo de accountabilitydos governantes exclusivamente na matriz liberalque repousa na analogia com a representao privada e na idia de que

    o representante um mero agente dos interesses de quem o contratou(ou escolheu) atravs do processo eleitoral. Possibilita compreender esseprocesso de orma continuada no tempo e envolvendo relaes de controlee autonomia recproca entre governantes e governados. Por fm, e maisimportante, ornece importantes ingredientes para o debate sobre novasormas de representao e os conseqentes arranjos institucionais a serem

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    construdos nas sociedades contemporneas para realizar a complementa-

    ridade desejvel entre representao e participao Se a deesa normativada democracia representativa (que no exclui a participao para alm doprocesso eleitoral) pode ser considerada bem sucedida, ela contm esse desa-fo undamental: gerar reexes sobre novas prticas de institucionalizaodaquelas potencialidades. Estes novos arranjos contemplariam a dinmicaininterrupta de vnculos entre representantes e representados, durante osmandatos, e envolveriam variadas ormas de controle e fscalizao por partedos cidados. Ou seja, eles levariam em conta tambm opoder negativo dosoberano que permite ao povo investigar, julgar, inuenciar e reprovar seuslegisladores, como indicaram Pitkin e Urbinati. Concretamente isso requer

    a institucionalizao de arenas de comunicao e controle continuados entrea sociedade e os representantes (como por exemplo, conselhos de gesto efscalizao de polticas pblicas, agncias ormativas de opinio pblica,entre outros) tanto na esera legislativa como na executiva (e em sua buro-cracia encarregada de implementar as polticas pblicas).

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    ResumoEste trabalho retoma as discusses tericas sobre democracia representativa desde o

    trabalho seminal de Pitkin at as contribuies mais recentes. A reviso justifca-se no

    s por uma clara insufcincia de compreenso dessa categoria, mas tambm porque os

    estudos tm apontado novas perspectivas de superao da oposio entre representao

    e participao. E elaboram uma consistente deesa da democracia representativa e de

    suas potencialidades rente chamada democracia direta, sem cair nos argumentos da

    teoria minimalista ou procedimental, nem tampouco se reduzir tese da inevitabilidade

    do governo representativo nas sociedades contemporneas. Finalmente, considera a

    necessidade de discusso institucional combinando novas ormas de representao e a

    participao dos cidados.

    Palavras-chave:teoria democrtica; deesa normativa da democracia representativa;

    participao; novos arranjos institucionais

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    AbstractThe article reviews contemporary interpretations o political representation, rom Hanna

    Pitikins seminal book up to the more recent works. The review can be justifed or many

    reasons. There is no clear understanding o the concept o representation and most

    importantly, the new studies have pointed out to perspectives o overcoming the oppo-

    sition between representation and participation. These studies also propose a consistent

    deense o democratic representation without alling in the minimalist or schumpeterian

    arguments or in those o practical inevitability o representation in contemporary mass

    democracies. In its conclusion, the article considers the need or working on new arran-

    gements combining representative and participatory institutions.

    Key-words: democratic theory; normative deense o representative democracy;

    participation; new institutional arrangements.

    Recebido em agosto de 2008.

    Aprovado para publicao em setembro de 2008.