o fantástico de bioy casares

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O fantástico de Bioy Casares [artigo publicado no Jornal de Letras de 23 de dezembro de 2012] Por Sonia Miceli De La invención de Morel escrevia Jorge Luis Borges, no prólogo do romance, do qual é o dedicatário, que a trama era perfeita. A esta observação do amigo, Bioy Casares, numa entrevista concedida em 1999 a Silvia Hopenhayn, acrescenta que “con eso quería decir que el estilo no. Lo que se dice de algo se niega de lo otro”. Seja como for, La invención de Morel tornou-se uma das obras maiores da literatura argentina e provavelmente a mais conhecida do seu autor. Publicada em 1940, quando Bioy tinha apenas vinte e seis anos, foi considerada, ainda por Borges, obra pioneira da literatura fantástica argentina, numa época em que ainda dominavam o realismo e o romance psicológico, a que Borges, Bioy e outros opunham o fantástico como género que valorizava a obra de arte enquanto objeto artificial, trabalho à volta da linguagem, que podia muito bem prescindir da realidade. Esta batalha em favor do fantástico foi travada pelos dois escritores não apenas nas obras que cada um produziu por sua conta, como na famosa Antología de la literatura fantástica, igualmente de 1940, fruto da colaboração entre Bioy, Borges e Silvina Ocampo, esposa de Bioy e também ela escritora. No

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Artigo publicado no Jornal de Letras de 23 de dezembro de 2014

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Page 1: O fantástico de Bioy Casares

O fantástico de Bioy Casares [artigo publicado no Jornal de Letras de 23 de dezembro

de 2012]

Por Sonia Miceli

De La invención de Morel escrevia Jorge Luis Borges, no prólogo do romance, do qual

é o dedicatário, que a trama era perfeita. A esta observação do amigo, Bioy Casares,

numa entrevista concedida em 1999 a Silvia Hopenhayn, acrescenta que “con eso quería

decir que el estilo no. Lo que se dice de algo se niega de lo otro”. Seja como for, La

invención de Morel tornou-se uma das obras maiores da literatura argentina e

provavelmente a mais conhecida do seu autor. Publicada em 1940, quando Bioy tinha

apenas vinte e seis anos, foi considerada, ainda por Borges, obra pioneira da literatura

fantástica argentina, numa época em que ainda dominavam o realismo e o romance

psicológico, a que Borges, Bioy e outros opunham o fantástico como género que

valorizava a obra de arte enquanto objeto artificial, trabalho à volta da linguagem, que

podia muito bem prescindir da realidade.

Esta batalha em favor do fantástico foi travada pelos dois escritores não apenas nas

obras que cada um produziu por sua conta, como na famosa Antología de la literatura

fantástica, igualmente de 1940, fruto da colaboração entre Bioy, Borges e Silvina

Ocampo, esposa de Bioy e também ela escritora. No prólogo, assinado por Bioy, este

expõe a sua concepção do fantástico, que, no seu essencial, se resume à “conveniencia

de hacer que en un mundo plenamente creíble sucediera un solo hecho increíble” (Bioy

Casares 1977, 5). Ou seja, trata-se de construir ambientes, personagens e enredos

tendencialmente realistas e fazer intervir neles, sem que o leitor esteja preparado para

isso, o elemento estranho, insólito ou, em poucos casos, sobrenatural, segundo uma

estética guiada por aquilo que Borges, ainda no prólogo a La invención de Morel,

chamou de “imaginación razonada” (Borges 1972, 14). Como exemplo deste

procedimento, em que a surpresa é “atenuada ou antecipada” (Barcia 1990, 17), Pedro

Luis Barcia, na introdução à colectânea de contos La trama celeste, de 1948, refere o

conto “El outro labirinto”, onde uma personagem, numa frase que condensa muito bem

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a poética do autor, diz: “De un modo gradual, sin revelaciones patéticas ni sobresaltos,

penetré en esta pesadilla” (Bioy Casares 1990, 215).

Embora esse gosto pelo fantástico se tenha atenuado com o passar dos anos, a

imaginação razoada a que Borges se refere, que se manifesta amiúde na tendência para a

explicação pormenorizada dos factos relatados nas narrativas – frequentemente escritas

na primeira pessoa – é uma constante na escrita de Bioy, seja nos textos construídos à

volta de acontecimentos prodigiosos, seja nos de feição mais realista. La invención de

Morel, por exemplo, gira à volta da relação entre imagem e realidade, ou, se quisermos,

na transformação desta em simulacro por meio do recurso à tecnologia. Com efeito, a

invenção referida no título é uma máquina que consegue gravar e, posteriormente,

reproduzir o ser humano em todos os seus aspectos, inclusive o tacto e o cheiro. O preço

a pagar é, porém, alto, pois o indivíduo, ao ser gravado, é privado das energias vitais e

destinado a morrer. Ora, o desvelamento do motor da história e do romance, narrado por

um narrador-personagem (um fugitivo que foi parar à ilha onde Morel actua para fugir

de uma condenação à morte e que acabará por morrer entregando-se voluntariamente ao

experimento de Morel) que apresenta o seu texto como um relatório, é feito só perto do

desfecho. Morel convoca as pessoas que foi gravando ao longo de uma semana para ler

um texto em que dá conta dos seus actos e das suas motivações, num momento em que

já ninguém pode fugir ao inevitável – a morte ou, desde outra perspectiva, uma vida

repetida ad aeternum, sempre igual, como num filme. “Ya no han de quedar puntos

inexplicables, en mi diario” (Bioy Casares 1972, 148), conclui o narrador pouco antes

de entrar, também ele, no “filme” de Morel e imprimindo à narrativa o teor auto-

interpretativo e autorreflexivo tão característico da ficção de Bioy.

Essa tendência para a dissecação do enredo e do texto que dele surge existe, de facto,

em várias obras de Bioy e está evidentemente ligada ao fantástico, na medida em que o

momento da explicação dos acontecimentos – quer se opte por uma explicação racional,

quer se mantenha a oscilação entre o estranho e o maravilhoso, procedimento menos

frequente em Bioy, mas ainda assim presente – é uma constante do género. El sueño de

los héroes, romance de 1954, repropõe o tema da reversibilidade do tempo e da

repetição: o protagonista tenta desesperadamente recuperar a recordação de uma noite

em que lhe aconteceu uma série de eventos estranhos e da qual tem lembranças muito

vagas. Passados alguns anos, não consegue recuperar a memória, mas sim reviver os

factos, e introduz assim esse acontecimento prodigioso: “Ahora hay que andar despacio,

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muy cuidadosamente. Lo que he de contar es tan extraño, que si no explico todo con

claridad no me entenderán ni me creerán. Ahora empieza la parte mágica de este relato;

o tal vez todo él fuera mágico y sólo nosotros no hayamos advertido su verdadera

naturaleza” (Bioy Casares 1997, 146). Pensando na decidida rejeição do sobrenatural

que Bioy afirmava no prólogo da Antología, esta referência ao mágico poderia fazer

pensar numa reavaliação das suas posições. No entanto, outra personagem, poucas

páginas mais à frente e já muito perto do fim, ajuda-nos a perceber o que devemos

entender por “mágico”: “De acuerdo a lo previsto, el destino había tomado a su cargo la

situación. Mientras pensaba en eso, intuyó que [...] el mundo no es tan extraño; mejor

dicho, tiene su manera de ser extraña, fortuita o circunstanciada, pero nunca

sobrenatural” (Idem, 157).

Neste gosto pelo estranho e pelas circunstâncias insólitas – e amiúde angustiantes –

perante as quais o destino se diverte a colocar o ser humano, poderá Bioy Casares ser

aproximado de outro génio da literatura argentina, de quem este ano também se celebra

o centenário, Julio Cortázar, com quem Bioy nunca teve relações próximas, em parte

devido a divergências políticas, sendo Bioy um conservador y Cortázar, como é sabido,

militante de esquerda. Por isso, é curioso que, no seu último conto, “Diario para um

cuento”, Cortázar tenha resolvido homenagear o colega escritor, dizendo que gostaria de

escrever um conto como ele, pois “me falta el juego de piernas y la noción de distancia

de Bioy para mantenerme lejos y marcar puntos sin dar demasiado la cara” (Cortázar

1984, 49). Embora esse desejo deva ser lido em chave irónica – o que Cortázar defende

aqui, ao negá-la, é justamente a poética da falta de distanciamento e de uma escrita que

se faz a partir de uma declaração de impotência ou de incapacidade – e ainda que a

poética de Bioy não se possa, evidentemente, resumir a isso, é, porém, verdade que a

maestria na construção da personagem e dos enredos, fruto dessa capacidade de manter

o equilíbrio certo entre distância e proximidade, é uma característica da escrita de Bioy:

“Bioy hubiera hablado de Anabel como yo seré incapaz de hacerlo, mostrándola desde

cerca y hondo y a la vez guardando esa distancia, ese desasimiento que decide poner (no

puedo pensar que no sea una decisión) entre algunos de sus personajes y el narrador”

(Idem, 48). O desapego aqui referido combina-se, em muitos casos, com uma curiosa

confluência de angústia e humor com que os narradores de Bioy descrevem as aventuras

das suas personagens. Sirva de exemplo – e com isso termino – a trágica morte do

protagonista de El sueño de los héroes:

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Supo, o meramente sintió, que retomaba por fin su destino y que su destino estaba cumpliéndose. También eso lo conformó.No sólo vio su coraje, que se reflejaba con la luna en el cuchillito sereno, vio el gran final, la muerte esplendorosa. Ya en el 27 Gauna entrevió el otro lado. Lo recordó fantásticamente: sólo así puede uno recordar su propia muerte. Se encontró de nuevo en el sueño de los héroes, que inició la noche anterior, en el corralón del rengo Araujo. Comprendió para quién estaba tendido el camino de alfombra roja y avanzó resueltamente.Infiel, a la manera de los hombres, no tuvo un pensamiento paraClara, su amada, antes de morir.El Mudo encontró el cuerpo. (Bioy Casares 1997, 163).