o expresso dos inconformados ou o circuito ...maioria dos viajantes, estar a fazer este circuito só...

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42 perspectivas O EXPRESSO DOS INCONFORMADOS OU O CIRCUITO DAS TERCEIRAS OPÇÕES MARIA DA CONCEIÇÃO DUARTE PEREIRA * I PARTE A CANÍCULA E A “LAVRA” DO VESÚVIO... Não há duas sem três. É o que costuma dizer-se. Não sem um fundo de verdade, é certo. Pelo menos, connosco, assim foi. Acreditem ou não, só ao terceiro circuito escolhido tivemos luz verde para embarcar. Nem mesmo quando sinalizamos o segundo tivemos essa garantia. Frustração atirada para trás das costas, um ou outro sapito engolido e aí vamos nós de abalada para mais uma aventura! Melhor dizendo, para uma sucessão de aventuras. Sim, porque, onde nós estamos, está o desassossego. Graças a Deus! Antes viajar do que ficar em casa. A mofar, a fossilizar e a carpir mágoas ao fim de quase um ano de trabalho. Por sinal, desgastante e demolidor de sucos gástricos de incautos e mais frágeis estômagos... Eis-nos de novo, malas aviadas e à espera que nos viessem buscar cá ao burgo. É verdade, este ano, até tivemos direito a que nos viessem buscar. À hora marcada, isto é, um pouquito depois, mas ainda dentro do tal quarto de hora pedagógico, eis que nos surge o autocarro. Bagagem arrumada e lá vamos nós. Ainda bem que é gente nova! Foi a frase que se fez ouvir quando entrámos e tomámos o nosso lugar. Como sempre, a nossa primeira tarefa foi olhar em redor e apreciar os companheiros de peregrinação. Para não variar, era um punhado de peculiares espécimes, na sua grande maioria geriátricos. Aliás, como já estamos habituados de há uns anos a esta parte. Particular destaque para os provenientes das regiões autónomas. Aquele sotaque, meu Deus! Aqueles guturais sons que nos entravam pelos tímpanos e não nos deixavam, sequer, passar pelas brasas... Quase todos bem providos de carnes, melhor dizendo, de sebo, badanecas e pelancas, que, no entanto, não os impedia de se apetrecharem de eróticas roupas. Nomeadamente uns bem aventurados calções cor-de-rosa. Para já não falar na criancinha que os acompanhava. Um verdadeiro torresmo com braços. O que vulgarmente se chama de pote de unto!... Uma reboludinha Miss Piggy! Também, * Assistente Administrativa Especialista do Instituto Superior Politécnico de Viseu.

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O EXPRESSO DOS INCONFORMADOSOU

O CIRCUITO DAS TERCEIRAS OPÇÕES

MARIA DA CONCEIÇÃO DUARTE PEREIRA*

I PARTEA CANÍCULA E A “LAVRA” DO VESÚVIO...

Não há duas sem três. É o que costuma dizer-se. Não sem um fundo deverdade, é certo. Pelo menos, connosco, assim foi. Acreditem ou não, só ao terceirocircuito escolhido tivemos luz verde para embarcar. Nem mesmo quando sinalizamos osegundo tivemos essa garantia.

Frustração atirada para trás das costas, um ou outro sapito engolido e aí vamosnós de abalada para mais uma aventura! Melhor dizendo, para uma sucessão deaventuras. Sim, porque, onde nós estamos, está o desassossego. Graças a Deus! Antesviajar do que ficar em casa. A mofar, a fossilizar e a carpir mágoas ao fim de quase umano de trabalho. Por sinal, desgastante e demolidor de sucos gástricos de incautos emais frágeis estômagos...

Eis-nos de novo, malas aviadas e à espera que nos viessem buscar cá ao burgo.É verdade, este ano, até tivemos direito a que nos viessem buscar. À hora marcada, istoé, um pouquito depois, mas ainda dentro do tal quarto de hora pedagógico, eis que nossurge o autocarro. Bagagem arrumada e lá vamos nós. Ainda bem que é gente nova! Foia frase que se fez ouvir quando entrámos e tomámos o nosso lugar. Como sempre, anossa primeira tarefa foi olhar em redor e apreciar os companheiros de peregrinação.Para não variar, era um punhado de peculiares espécimes, na sua grande maioriageriátricos. Aliás, como já estamos habituados de há uns anos a esta parte. Particulardestaque para os provenientes das regiões autónomas. Aquele sotaque, meu Deus!Aqueles guturais sons que nos entravam pelos tímpanos e não nos deixavam, sequer,passar pelas brasas... Quase todos bem providos de carnes, melhor dizendo, de sebo,badanecas e pelancas, que, no entanto, não os impedia de se apetrecharem de eróticasroupas. Nomeadamente uns bem aventurados calções cor-de-rosa. Para já não falar nacriancinha que os acompanhava. Um verdadeiro torresmo com braços. O quevulgarmente se chama de pote de unto!... Uma reboludinha Miss Piggy! Também,

* Assistente Administrativa Especialista do Instituto Superior Politécnico de Viseu.

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pudera, passou a viagem a enfardar!... Batatas fritas - daquelas com sabor a presunto -,gelados, todo o tipo de bolos e um sem número de lambareirices que pelo mercadoproliferam... Mas nem todos eram disformes. Também lá ia uma modernaça, de corte ecor de cabelo radical e seca de carnes.

Mas há mais! Umas manas de provecta idade e que, face aos adereços com quese adornavam, nomeadamente uns monumentais óculos escuros com as iniciais CD,deveriam ser cheias da nota. Só mais para diante, por terras helvéticas, confirmámoseste pressuposto quando as vimos, num vulgaríssimo restaurante de fast-food, sacar deum Visa Gold... Aqueles rostos eram dignos de um catálogo de uma qualquerprestigiada marca de cosméticos, tal a máscara que os cobria. Mas eram simpáticas e,no final do périplo, até vieram despedir-se de nós! Isto sem esquecer um sui generiscasal oriundo da área metropolitana de Lisboa. Ela, ligada aos serviços de saúde,presumimos que enfermeira. Ele, não sabemos. Só sabemos que iam bem sortidos deeuritos e comeres. Nomeadamente bolachinhas e perinhos, que, no entanto, nuncacomeram sós. Muito pelo contrário! Fizeram sempre questão de oferecer a merenda, altoe em bom som, a todos os viajantes. Faziam-se acompanhar por mais duas amigas cincoestrelas. Uma delas, farrusquita, de uma comicidade contagiante e uma permanente boadisposição. Mesmo quando acordava estremunhada, depois de ter sido torturada comcócegas nos desnudos pés. A outra, também castiça mas mais reservada, chamou-nos aatenção porque, todos os dias, e de acordo com a indumentária, cingia o cabelo com umlaçarote de cor a condizer. Já na parte final do périplo, ficámos a saber que é irmã de umnome grande dos tempos idos do nosso meio artístico, de origem africana, agora maisno esquecimento face à pimbalhada que nos invade. Curioso o facto de, a esmagadoramaioria dos viajantes, estar a fazer este circuito só para não ficar em casa. Tal comonós, também só à segunda ou terceira opção conseguiram embarcar. Uma palavra finalpara o nosso guia. Alto, magro, diríamos mesmo franzino, fumador inveterado e que,por acaso até simpatizou connosco. Dizemos isto porque, durante toda a viagem, fezquestão de o demonstrar. Dirigia-se sempre a nós logo pela manhã e fazia questão denos cumprimentar efusivamente. Conversava, trocava impressões, enfim, apesar derepararmos que para todos tinha sempre uma palavra amiga. Contudo, para nós, essapalavra era não só mais afectuosa como se fazia acompanhar por a mão nas costas ou noombro. Impressionou-nos sobremaneira com os seus comentários e pontos de vista.Alguns bem ácidos, corrosivos e acutilantes. Mas sempre realistas.

Pois bem, depois deste intróito em jeito de prólogo, vamos aos pormenores. Aprimeira paragem foi para o almoço, ainda por terras lusas, para as bandas de Celoricoda Beira e numa área de serviços, sob um calor abrasador e um sol escaldante. Daementa escolhemos uma salada fria que acompanhava uns filetes de pescada, depoismelão, e, por fim, um cafézito. Prosseguimos, e, lá mais para diante, já em terras

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hispânicas, ao redor de Salamanca, fizemos uma pequena paragem técnica. Num hotelcom nome daquele sumo de uma coisa que muitos homens não têm, mas algumasmulheres têm!... Depois do xixi - que por acaso até foi na casa de banho dos homensporque a das mulheres estava entupida de bexigas aflitas - fomos até ao bar eretemperámos forças com um sumo de laranja natural. Daqueles que saem directamenteda laranja, esmagada por uma maquineta, e não de uma garrafa que nos é impingidacomo sendo supostamente natural. Dali seguimos rumo a Burgos, beirando Valladolid,não sem antes cruzarmos a incontornável Cabezón de Pissuerga...

Estamos, uma vez mais, na cidade de El Cid. E por acaso até num hotel jánosso conhecido. Com uma pequena diferença em relação aos anos transactos. Destavez, ao invés do frio que nos envolve sempre que chegamos a esta cidade, é um calorquase sufocante que nos recebe. Descemos para jantar, numa sala que já nos é familiare, até como entrada, é-nos servido um prato que aqui já tínhamos provado. Nada maisnada menos do que uma macarronada com enchidos e pimentos. Depois um frangoestufado, aos quartos, que acompanhava uma macedónia de legumes salteados,composta de batata, cenoura, ervilha e feijão verde. Como sobremesa foi-nos servidogelado de chocolate e baunilha, guarnecido com meia pêra em calda.

Depois do repasto e porque tínhamos em mente andar no chiquitren - ocomboiozinho turístico - coisa que nunca tínhamos conseguido fazer nos anosanteriores, fomos para a praça principal em busca do dito. Até porque sabíamos que aúltima partida era às 23 horas e ainda faltavam alguns minutos. Chegámos e demos decaras não com um, mas com dois chiquitrens. Rasgou-se-nos um sorriso de orelha aorelha. Era desta que íamos passear! Acelerámos o passo e toca de arranjar lugarsentado. Quando finalmente o fizemos, alguém nos disse que teríamos que ir comprar osbilhetes à delegação de turismo que ficava mesmo em frente. Saltámos do comboio e,em passo de corrida, lá fomos comprar o bendito bilhete. Não queríamos acreditarquando nos disseram que a lotação já estava esgotada. Não era possível, mas, uma vezmais, e pela quarta vez consecutiva, não andámos no chiquitren de Burgos. Só podia sermaldição. De El Cid, quem sabe!... Conformados, fomos passear pela cidade. Pelomenos pelo centro histórico ao redor da catedral, pelos bares e pubs, apreciando agentinha que fervilhava pelas ruas em noite de sexta-feira. Como estava calor, vinhamesmo a calhar uma cervejinha fresca. Foi o que fizemos. No pub CarpatiaCompanhia, servidos por uma empregada toda práfrentex, de curtíssimos cabelos ruivose martirizadas orelhas de piercings cravejadas. Uma Miller bem fresquinha, que poracaso até foi bebida por engano. Isto porque, quando pedimos uma rubia, fizemo-locom a convicção de que estávamos a pedir uma cerveja ruiva ou preta. Esquecemo-nosque rubia, em espanhol, quer dizer loira e não ruiva... Mas lá se bebeu e até soube bem.Depois disto, fomos dormir. O dia estava no fim e era preciso preparar o corpo para

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mais um chá de autocarro. Agora rumo a França, tendo como destino final a belíssimaCarcassonne.

Após o pequeno almoço, e ainda antes de seguimos viagem, demos um pulinhoà catedral, àquela hora ainda fechada ao turismo mas já aberta para o culto. Depoistomámos um café num pequeno boteco onde pudemos apreciar os pacotes de açúcar,que tinham a particularidade de ser alusivos ao signos do horóscopo chinês. Já emviagem, de repente, eis que nos surge por diante aquilo que nos pareceu ser uma grandefumarada proveniente de um incêndio. Como estávamos enganados! Mais não era doque um carro que circulava em sentido contrário ao nosso e que, certamente por via daalta velocidade com que rodava, numa curva mais apertada despistou-se e capotoumesmo nas nossas barbas... Valeu-nos a estupenda auto-estrada e o seu quasemonumental separador central, uma pequena via de terra batido que, deste modo,absorveu o impacto do carro e impediu que este se estatelasse contra nós. Lá seguimosviagem sob o eco, ainda que por pouco tempo, daquele infeliz acidente.

Pelos arredores de Victoria (Gasteiz), já no coração do País Basco, a talsenhora que fazia questão de oferecer os perinhos e as bolachinhas, vai de começar-nosa contar as suas aventuras de turista por essa Europa fora. Melhor dizendo, os seus actosde bravura em prol dos outros. Como, por exemplo, no seu dizer, protegeu umavelhinha de voar pelos ares numa montanha russa da Eurodisney. Ou, ainda, quandouma vez amparou um pobre ancião com cataratas. Enfim, mais ou menos a contragostolá ouvimos os relatos daquela autêntica Indiana Jones de saias. Já em Victoria, assimchamada em homenagem à princesa espanhola que dizem ter inventado a moda doveraneio em S. Sebastian, quando passámos pelo aeroporto, pudemos apreciar umenorme 747 de carga que se fazia à pista. Dali a Donostia (S. Sebastian) foi um pulinho.Pelo menos assim nos pareceu. Parámos por pouco tempo, o necessário para dar umasempre fascinante vista de olhos pelas praias da Concha e da Ondarreta e para beber umcappuccino numa pequena gelataria, com nome da cidade das gôndolas, repleta deopíparas iguarias. À saída, ainda houve tempo para comprar uns obesos alperces que seestavam a rir para nós... Lá mais para diante, quase a roçar a fronteira com a França,parámos numa apinhada área de serviços para o almoço. Degustámos uma baguete decrocante pão espanhol recheada com um belo naco de jamón ibérico, e bebemos umrefrescante sumo de laranja natural. Antes de sairmos, ainda demos um pulinho à lojaadjacente e comprámos um livro que nos pareceu interessante: Las Mujeres de losNazis...

Umas boas centenas de quilómetros adiante, já em terras gaulesas, era hora demais uma paragem técnica. Foi no Pic du Midi. À laia de lanche improvisado, tomámosum café au lait. Aquilo que por cá chamamos simplesmente uma meia de leite... Denovo na estrada, lembrou-se a pequena betoneirita insular de ir cantar ao microfone do

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autocarro. Qual mico de circo amestrado, aí vai ela, autocarro fora, bamboleantes carnese sebos a chocalhar, certamente fruto de overdoses de hidratos de carbono e açúcares,sob o olhar embevecido dos progenitores. Finda a récita, explodem os aplausos eirrompem os mais rasgados elogios à criaturita. Ninguém mais pôde dormir ou, sequer,pesar figos naquela viatura, tal era a arruaça e as ruidosas gargalhadas. Mas enfim, commais ou menos descanso, lá fomos dormitando a sono solto. Quando demos conta,estávamos nos arredores de Toulouse. A cidade espacial como é considerada. São aquifabricados os aviões da Air Bus e os Concorde, agora retirados de cena, sem esquecer oAriane, foguetão construído pela agência espacial europeia, rival da americaníssimaNASA. Pelo fim da tarde chegámos a Carcassonne. Ainda antes do jantar, eis que oprimeiro acidente de percurso faz a sua aparição. Já tardava! Desta vez foi uma camapartida, logo que um de nós se lá sentou. Para o jantar, e como entrada, uma salada dequeijo chèvre e tomate aos cubos, regado com molho vinagreta. Como prato principalboeuf bourguignon. Que é como quem diz, carne de bovino cozinhada em vinho tinto.Acompanhava massa cotovelinho cozida e alface roxa. Para sobremesa uma aquosasalada de frutas, que, de imediato, baptizámos de sopa de frutas. Mas estava boa!Depois do jantar fomos visitar a cidade intra muros, que já conhecíamos, mas que ésempre misteriosa e tem sempre coisas novas para descobrir. Ou, pelo, menos, para vercom outros olhos. Comprámos t’shirts,magnets para o frigorífico, saquinhos deervas aromáticas e, para acabar a noite embeleza, no bar A Vins bebemos umacerveja preta bem geladinha. UmaPelforth Brune, garrafa de 33 cl e com6,5% de graduação. As pernas desde logoacusaram o toque... A cama foi a melhoropção. No dia seguinte, depois dopequeno-almoço, às 7 da manhã, aindahouve tempo para uma sessão defotografias mais ou menos artístico-acrobáticas. Primeiro nas muralhas dacidade e depois junto à estátua de DameCarcas, a heroína local.

Conta a lenda que, durante umlongo cerco a que a cidade foi sujeita, emtempos medievais, esta valente e decerto bigoduda mulher, lançou muralhas abaixo umbem nutrido suíno. Apesar da penúria em que a cidade se encontrava, para não dizer

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míngua. Com isto, os sitiados e quase moribundos habitantes enganaram os invasores,que, julgando restar ainda muitos mantimentos nas depauperadas despensas, abriramalas e levantaram o cerco. Em euforia, a multidão tocou os sinos a rebate e, assim se diz,nasceu o nome da cidade. O gesto da senhora Carcas fez com que os sinos tocassem dejúbilo. Assim, Carcas mais sonne (tocar em francês) deu Carcassonne, o nome destabonita e ancestral cidade que, se quisermos, podemos dizer corresponde à nossa vetustaÓbidos. Só que em ponto maior...

Dali só parámos em Nîmes. Mesmo junto à antiga arena romana, ainda emóptimo estado de conservação.

Primeiro para andarmos no comboio turístico, que nos deu a conhecer umpouquinho da cidade, e depois para almoçar. Para melhor aproveitar o tempo fomos aoQuick, uma espécie de sucedâneo do MacDonald’s. Comemos um long chicken, com asindispensáveis batatas fritas e bebemos uma coca-cola light. Depois fomos visitar aarena. Primeiro por fora e depois os bastidores, onde vimos o vomitorium. Vá-se lásaber o que isto era. Por fim, a arena propriamente dita. Aqui só demos umaespreitadela. O calor tórrido depressa nos desencorajou a avançar mais. Já cá fora,passámos por uma esplanada onde, os seus proprietários, colocaram gigantescasventoinhas equipadas com um dispositivo que borrifava água sobre os clientes nelainstalados. Uma bênção face à canícula que se fazia sentir. É caso para dizer que, acabeça, não serve só para coçar os piolhos ou para pôr o chapéu... Haja imaginação!...Fomos depois para Marselha, onde chegámos ao fim da tarde. Ainda antes do jantar,

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fomos até ao velho Porto e espreitámos o tenebroso Chateaux d’If. Pena que a névoa defim de tarde que envolvia a cidade não no-lo deixou ver por completo. Mas imaginámo-lo. Até porque já lá tínhamos estado e já o tínhamos visto antes. Em jeito de aperitivo,fomos até ao bar do hotel beber um sumo de laranja natural e bem fresquinho. Ao jantar,e como entrada, foi-nos servido um prato de charcutarias provençais. Havia patês, umdos quais em aspic em caixa de massa quebrada, também fiambre, presunto, pepinos emconserva, tomate e molho vinagreta. Curioso que o prato vinha polvilhado de paprika.Coincidência das coincidências, voltámos a ter a tal carne de bovino estufada comvinho. Desta vez com o pomposo nome de sauté de boeuf bourguignon. Assim vinhaescarrapachado na ementa que estava distribuída pelas mesas e dava as boas-vindas aogrupo. Desta vez a carne era acompanhada de fininhos fetuccini bicolores. Parasobremesa veio uma normanda tarte de maçã, regada com crème anglais e molho deframboesas. Depois do jantar fomos novamente até ao porto, agora fervilhante de gentee tingido de miríades luzes neon. Contudo, o calor e os pés massacrados fizeram-nosrecolher ao hotel. No bar, envolvidos por um potente ar condicionado, degustámos umaPelforth Brune. A tal cerveja negra com 6,5% de graduação que tem um pelicano norótulo, e que já havíamos provado em Carcassonne. Depois disto, fomos dormir.

No dia seguinte, após o pequeno almoço, rumámos à Côte d’Azur. Íamos paraCannes, onde faríamos a nossa primeira paragem, que incluía o almoço. Como já látínhamos estado, já sabíamos onde era a rua das principais lojas de souvenirs.Nomeadamente das fabulosas t’shirts, alusivas, umas, ao Festival de Cinema, outras, àvida estival desta concorrida estância balnear. Não resistimos e comprámos duas. Cadauma dedicada ao seu tema. Depois de passearmos pelas ruas e jardins da cidade, que,apesar do sufocante calor, formigavam de gente. Um ronco no estômago fez-nosperceber que já era hora de almoço. O olfacto levou-nos a uma pequena padaria - pelomenos tinha exposto todo o tipo de pães e bolos - de nome Le Pain d’Olivier.Escolhemos uma baguete de pão com azeitonas. Deliciosa e recheada com uma pasta deatum, maionese, rodelas de tomate e azeitonas verdes descaroçadas. Para escorregarmelhor, bebemos uma fresquíssima coca-cola light estupidamente gelada. Os olhosquase nos saltaram das órbitas perante a extasiante visão das fatias de tarte e dosbolinhos de todos os tamanhos, sabores e feitios, expostos nos escaparates. Masresistimos! A ameaça de pelancas falou mais alto!... Depois fomos passear até à hora devoltar a embarcar. Percorremos a croisette de Cannes, espreitámos as lojas de marca –

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Yves Saint-Laurent, Louis Vuitton, Cartier, Dior – e tirámos as fotografias da praxe. Napassadeira vermelha do palácio dos festivais, nas mãos das estrelas impressas numquadrado ocre de cimento que fazia lembrar um ladrilho, e onde descortinámos asminúsculas palmas da nossa Maria de Medeiros.

Por fim fomos até ao celebérrimo Carlton. Antes de seguirmos viagem, aindahouve tempo para um expresso no Palm Square, um exótico café de oriental decoração.

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De volta à estrada, rumámos a Saint-Paul de Vence, a tipicazinha cidadeprovençal inspiração de nomes grandes do Impressionismo. Percorremos as ruasestreitas calçadas de seixos, absorvemos os aromas de alfazema que impregnam o ar eescutámos a infernal cantilena das cigarras. Tão típicas da Provence e que ecoavampelos ares. Decidimos ir até ao cemitério, em busca do túmulo de Chagall. Não oencontrámos. Apesar de termos percorrido demoradamente esta típica necrópole,construída no sopé do burgo em jeito de socalco. Descemos pelo menos três conjuntosde escadinhas, e nada. Vimos, sim, inúmeros túmulos judaicos, facilmente identificados.Primeiro, pelos característicos nomes dos seus ocupantes. Depois, pelas pedrasarredondadas que os enfeitavam. O calor, tórrido, fez-nos interromper a busca. Maistarde foi-nos dito ser impossível de descobrir, pelo menos para quem não sabe ondefica, porquanto está anónimo. Dali seguimos para Nice. Depois de um banho refrescanteque, embora temporariamente, aplacou o infernal calor que nos atormentava, saímospara jantar e explorar a cidade. Comemos uma baguete de frango, tomate e alface ebebemos uma coca-cola light. Passeámos pelo elitista Promenade des Anglais eapreciámos os artistas de rua que debitavam as suas performances perante osembasbacados turistas. Transpirados até à medula, entrámos num pequeno pub árabeque, contudo, pasme-se, tinha nome latino - La Flordita. Bebemos uma cerveja fresca eretomámos a marcha. O corpo, outra vez peganhento e lambuzado de suor, já pedianova barrela. Antes, fomos a uma pastelaria e comprámos merenda para a ceia. Um milfolhas de chocolate e uma bebida fresca.

Já novo dia, vamos agora de visita ao Principado do Mónaco. Antes, fomosvisitar a fábrica de perfumes Fragonard. Uma roliça e simpática guia, com o cabeloapanhado em de rabo-de-cavalo e expressando-se numa mistura de castelhano e italiano,lá nos mostrou a fábrica e explicou todas as fases de fabrico dos perfumes e sabonetescomercializados sob esta griffe. Saímos de lá empestados de múltiplos aromas com queíamos sendo bombardeados ao longo da visita. Uns mais eróticos, outros maisapimentados, outros, ainda, mais adocicados. Mas todos anestesiantes! À chegada asolo monegasco, onde ficaríamos um bom par de horas e almoçaríamos, fomos,primeiro, andar no petit train. O tal comboizinho turístico que nos levou pelas ruas doprincipado, desde o rochedo onde está o Palácio Real, até ao cosmopolita Monte Carlo,onde está o Casino e o Hotel de Paris. Decidimos, depois, ir ver a Catedral de Saint-Nicholas. À nossa direita, logo à entrada, começámos por ver as relíquias de SantaDevota, Padroeira do Mónaco, da família real e da Diocese. Depois, uma Santa Teresado Menino Jesus talhada em mármore branco. Seguindo, sempre pela direita, vemosSaint Roman (Romanus) soldado mártir e protector do principado. Vem a seguir SantaRita (1381-1457), depois um óleo do Padre Pio (1887-1968), o capuchinho elevado aosaltares no pontificado de João Paulo II. Agora um Sagrado Coração de Jesus, a que se

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segue um retábulo de Santa Devota e depois a capela do Santo Sacramento com umexpressivo e impressionante crucifixo. Vemos agora uma pequena estátua da Padroeira,oferecida por Rainier III aquando das celebrações dos 700 anos dos Grimaldi. Estáajoelhada sobre um barco e solta aos céus uma pomba. A seguir vem uma estátua deCharles Barromée (1538-1584), patrono das obras da catequese local. Pelo menos assimé identificado. Vimos, depois, S. José com o Menino ao colo, Santa Maria, a Gloriosa eo mártir S. Jorge quando se aprestava a matar o temível dragão. Depois Saint-NicholasIV, Patrono das Escolas Marinhas e co-titular da catedral. Depois de circundarmos anave principal do templo, temos, à nossa esquerda, os túmulos dos antecessores dosGrimaldi no trono monegasco. O último pertence a Grace Patrícia Kelly, a norteamericana convertida Grace Grimaldi do Mónaco pelo casamento com Rainier. Depoisdesta tumba está outra, vazia. Aguarda, pela ordem natural da vida e da lógica, o actualregente do principado, o quase octogenário Rainier, mui amado viúvo de Grace...Prosseguindo a visita, temos agora uma Pietá, depois o “nosso” Santo António, aquiidentificado como sendo de Pádua – Saint Antoine de Padoue (1195-1231). Maisadiante Saint Bénoît, Saint Jean-Baptista de la Salle (1651-1719) e, finalmente, já pertoda saída, a capela da Pia Baptismal. Ainda tivemos tempo para apreciar uma mostrafotográfica alusiva a uma expedição a África, algures a território Massai.

Já fora da Sé e quando íamos em busca de almoço, fomos apreciando aexistência de um certo “linguajar” monegasco, expresso nas placas toponímicas. Porexemplo, para Rue de l’Église , temos Carrugiu d’a Geija!... A fome já apertava edecidimos fazer piquenique. Comprámos um Panini au jambon e uma coca-cola light eacampámos perto da Catedral. Depois do repasto, fomos passear. O sol, inclemente,torrava-nos as costas. E não só... Fomos até ao Palácio Real, demos uma espreitadela aorender da guarda e coscuvilhámos as lojas de souvenirs. Com os corpos em brasa e alíngua de fora, decidimos refugiar-nos num local que tivesse ar condicionado. E, se bemo pensámos, melhor o fizemos. Foi na Chocolaterie de Monaco, um paraíso para osviciados neste puro ouro castanho. Principescamente instalados, como no Éden,pedimos um café e uma fatia de tiramissu. Pagámos cara a brincadeira. Também, quemnos manda armar ao fino, como diria a saudosa Ivone Silva.

De regresso a Nice, ao fim da tarde, fomos até às afamadas Galerias LaFayette e depois ao centro comercial Étoile. Aí comemos, em jeito de lanche, umarefrescante salada de frutas. Voltámos ao hotel, que até era perto, para um merecidorepouso e arrefecer os corpos incandescentes pela canícula no ar condicionado doquarto. Só saímos à noite, para jantar. Apeteceu-nos pizza e lá foi uma napolitana, norestaurante Stekia. Depois fomos até à beira-mar. Percorremos as várias praias, umas aseguir às outras, ao longo do Quai des États Unis – Miami Plage, Florida Plage,Neptune Plage e espreitámos a alta finança hospedada no Negresco. Ficámos pasmados

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com um belo espécime masculino que, ao som de Conquest of Paradise, de Vangelis,contorcia-se e rebolava pelo chão, ensaiando verdadeiras poses de Ioga ou Tai Chi.Soberbo! Lá mais para o centro da cidade, abrimos a boca de espanto perante osexpedientes que se arranjam para sacar dinheiro ao incauto turista!... É o homem estátuaque, vestido à Mozart e completamente pintado de dourado - corpo e roupas - estáimóvel por tempos intermináveis. É o cavalheiro que, com uma gigantesca jibóia e umapolaroid, cobra 9 euros por uma foto com a bichinha às costas... Ainda uns gatosamestrados por um pouco escrupuloso dono que, ao elevá-los ao alto, obriga-os às maismirabolantes acrobacias. Ainda um pobre coitado com um par de filhotes de coelho numcesto, salpicado de rodelitas de cenoura, que espera pelas moedas de quem, comovidopela visão dos animalitos, as deixa cair numa caixa estrategicamente colocado ao lado.Enfim, a imaginação não tem limites e tudo é permitido. De volta ao hotel, ainda fomosà Praça Massena e comprámos uma iguaria para a ceia, que devorámos depois de umretemperador banho. Desta vez foi uma tarte de banana com chocolate. Era tempo demergulhar nos lençóis e repousar o corpo.

Eis-nos de novo na estrada, agora a caminho de Milão. Pela Auto-Estrada dasFlores chegámos à fronteira que separa a França da Itália. Já em terras transalpinascruzámos Génova, para, nos arredores da cidade de Colombo, ficarmos parados notrânsito mesmo à entrada de um dos inúmeros túneis rasgados na montanha que tivemosque atravessar, por via de um forte incêndio que lavrava mesmo por cima de nós.Depois de helicópteros e aviões terem milimetricamente largado litradas de água, lá nosfoi permitido prosseguir a viagem. A paisagem até Milão era desoladora e árida, comalguns rios, ribeiros e cursos de água quase secos. Atravessámos a Liguria, o Piemontee a Lombardia e chegámos a Milão. Parámos mesmo em frente à Catedral - Il Duomo!Já eram horas de almoço e, em plena Piazza del Duomo, num bem aprazível local,comemos um menu pizza/fruta. Pizza margherita, coca-cola e salada de frutas. Depoisfomos visitar a catedral, gigantesca, não sem antes termos sidos convidados a abrir osnossos sacos por dois corpulentos polícias, que, deste modo, fizeram a parte dasegurança. Limitaram-se a dar uma espreitadela lá para dentro, sem, contudo,observarem o seu conteúdo. Mas tinham detectores de metais!... Coisas das conjunturasinternacionais... Afinal, este nosso mundo nunca mais foi o mesmo depois do 11 deSetembro de má memória!... Dentro do templo, depois de o apreciarmosdemoradamente, deixámos uma vela por intenção dos que nos são queridos. Familiares,colegas e amigos. Demos depois um salto às galerias Vittorio Emanuelle e ao La Scallaque, infelizmente, estava encerrado para obras de conservação ou transformação. Aindanão foi desta que o vimos por dentro. Tal como não o vimos em 98, aquando da nossaprimeira visita a Milão. Pela Corso Vittorio Emanuelle chegámos à Corso Venezzia,onde fomos dar uma espreitadela, ainda que tímida, à loja Dolce & Gabbanna. De volta

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ao autocarro, agora em trânsito para Como, ainda parámos no castelo dos Sforzza parauma fotografia final.

Chegámos a Como ao fim da tarde e ficámos num hotel muito bonito. OGrande Hotel di Como. Curiosamente, mais perto de um lugarejo de nome Cernobbiodo que de Como. Aqui íamos ficar dois dias, 6 e 7 de Agosto. Depois de um brevedescanso, fomos jantar. Um espectáculo! Como entrada, pasta com molho de carne –Pennette al ragù di carne. É preciso ver que estamos em Itália. Depois um bife de vitelano forno, à moda de S. Daniel, com batatas assadas e tomate gratinado – Carrè di vitelloal forno alla S. Daniele, patate arrosto, pomodoro gratinato. À sobremesa, gelado comuma rodela de ananás, polvilhados de açúcar em pó e salpicados de pistachio triturado –ananas com gelato. Depois do jantar fomos até Cernobbio, a tal localidade mais pertodo hotel. Passeámos à beira do lago de Como, um oásis de frescura a contrastar com acanícula que até aí sobre nós se tinha abatido e, sentados num aprazível banco dejardim, bebemos uma fresca coca-cola e comemos um monumental gelado. Acabámosum dia e começámos o outro no pub HP, com uma enorme Lowenbrau preta bemgeladinha. Era tempo de ir dormir. O dia prometia ser cheio e repleto de emoções fortes.Entre outras coisas, íamos fazer um cruzeiro pelo Lago de Como.

Depois do pequeno almoço rumámos a Stresa, onde nos aguardava uma lanchaque nos levaria à Isola Bela, em português Ilha Isabel, para visitar o Palácio dosBarromeu. Esta ilha foi presente do conde Barromeu à sua amantíssima esposa, denome Isabel. Daí o nome de Isola (ilha) Bela (Isabel). Pelo menos assim a descreve aguia que nos orientou nesta visita ao palácio. Lindíssimo, por sinal, e cheio de história.Por exemplo, no dia 11 de Abril de 1935, aqui teve lugar uma conferência entreMussolini e uma alta patente militar norte americana, de nome McDonald. Para debater,pasme-se o avanço de Hitler. Mais concretamente o facto de este estar a formar umexército próprio, contrariamente ao que havia ficado estipulado aquando do armistícioque pôs fim à I Guerra Mundial. Com esta atitude pretendia-se pôr travão aoexpansionismo alemão e, consequentemente, à II Guerra Mundial. Curiosamente, anosmais tarde, Mussolini não só criou o seu exército como invadiu a Etiópia e,posteriormente, foi acérrimo apoiante de Hitler. Na sala onde decorreu o encontroexiste, inclusive, um exemplar do protocolo firmado e onde se reconhece, claramente, aassinatura de Benito Mussolini. Também vimos um imponente quarto onde Napoleão ea sua adorada Josefina dormiram quando visitaram o palácio de surpresa e por láapareceram com um séquito de 60 criaturas. Dizem as más línguas que, para alimentartantas bocas famintas, foram-se todas as provisões da despensa... Ao que nos foi dito,Josefina adorou estas paragens e quis voltar. Contudo, teve receio que a água do lagocausasse danos à sua fina cútis. Ao que o conde replicou que esta era perfeitamenteinofensiva e de primeira qualidade e que, sempre que quisesse, seria bem vida à casa.

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Desde que não trouxesse o marido e os seus acólitos. Descendo à parte mais baixa dopalácio, visitámos umas fabulosas grutas, decoradas com seixos do lago, mármore e,espanto dos espantos, lava proveniente do Vesúvio. Lavra, no dizer de umas velhotas donosso grupo!...

Finda a visita ao palácio e antes de embarcarmos na lancha que nos levaria devolta a Stresa, ainda tivemos tempo para tomarmos café no Caffe Lago, junto ao cais deembarque. Todo alusivo ao rock, ostentava nas paredes vitrinas com fotografias eguitarras autografadas, discos de ouro e platina, supostamente originais e conquistadospor grandes nomes do mundo da Pop. Lou Reed, Bruce Springsteen, Aerosmith. Sãoapenas alguns. Já no autocarro, circundámos o Lago Maggiore e chegámos a Lugano, naSuíça, por volta da hora do almoço, com uma temperatura de 36 graus. Um sufoco! Àchegada, somos confrontados com o facto de nem todas as casas comerciais,nomeadamente restaurantes, aceitarem euros. Valeu-nos uma casa de câmbio dasimediações, onde aproveitámos para trocar alguns euros por francos suíços. Já de posseda moeda local, fomos almoçar a um MacDonald’s que ficava por perto. Comemos umBig Mac Large e fomos gastar os francos que nos restavam. Um pequeno São-Bernadode pelúcia, um pacote de chicletes e um gelado de chocolate foram suficientes parafazer desaparecer o resto dos francos... Depois fomos dar uma curva até um centrocomercial. Ficaram-nos por lá os olhos, numas hilariantes t’shirts . Contudo,continuaram nos escaparates porque não entrámos no jogo dos mal intencionadosproprietários. Eu explico! Aceitavam euros, mas, o troco, se o houvesse, teria que serem francos suíços. E mais: euros só aceitavam as notas... Perante tamanha prepotência,só pudemos recusar ser cúmplices desta trafulhice. Não eram obrigados a aceitar oseuros, é um facto, mas só aceitarem notas e, ainda por cima, darem-nos o troco emfrancos suíços já era pretenciosismo a mais para o nosso gosto...

De volta ao lago de Como, deixámos a Suíça de má memória pela fronteira deChiasso, apreciando, contudo, a sua esplêndida paisagem. O lago Lugano e o verde dasmontanhas a contrastar com os coloridos de alguns parapentes que por lá se viam. Ocruzeiro no lago foi, de facto, muito engraçado. A começar pelo barco que nostransportou. Datado de 1926, a vapor, à imagem e semelhança dos velhos barcos doMississipi. Se espreitássemos para a casa das máquinas, quase podíamos imaginar que aembarcação era conduzida por Mark Twain com seu farfalhudo bigode, coadjuvado porTom Sawyer e Huckleberry Finn. Quando demos conta, estávamos de novo no nossomaravilhoso hotel, a retemperar forças e arrefecer os ânimos e os corpos no potente arcondicionado do quarto. Dali só saímos para jantar. Como entrada, ou antipasto, comodizem os italianos, comemos o célebre arroz doce salgado que já havíamos provado em98, em Nápoles. Um arroz de grão pequeno (risotto) cozinhado com vinho italiano elimão – Risottino al limone e Prosecco. Como prato principal, uma posta de espadarte

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(baptizado de peixe espada) grelhado, acompanhado de batatas cozidas e courgettessalteadas – Trancio di pesce spada al salmoriglio, patate naturale e zucchine trifolate.Para sobremesa, panna cota (quitute da doçaria italiana) de café com molho debaunilha, num prato enfeitado com riscas de chocolate derretido e polvilhado de cacauem pó – Panna cota al caffè com salsa vaniglia. Se na noite anterior tínhamos ido paraCernobbio, faltava agora Como. Para onde fomos. A pé. Depois de mais de uma hora decaminho, à beira da estrada, lá chegámos. Mas não era tão animado como Cernobbio.Fomos aos magnets, aos postais e ao sempre delicioso gelado italiano. Voltámos aohotel e já passava da uma da manhã quando chegámos. Mais mortos do que vivos etranspirados até à medula. Depois de um bom duche, fomos dormir.

Após o pequeno almoço, retornámos a França. O nosso destino final era, agora,Aix-en-Provence. Entre Génova e Nice passámos por 55 quilómetros de túneis debaixode terra, escavados nas esventradas montanhas rochosas. Os Apeninos faziam-nos agoracompanhia. Depois de Génova, cruzámos a fronteira de Ventimiglia para entrarmos emFrança. Não sem antes termos cruzado a Auto-Estrada das Flores (Auto Strada deiFiori) e cruzarmos a estância balnear de Varese. Parámos algures pelos Alpes paraalmoçar, numa área de serviço. Comemos uma tripla sanduíche de pão de forma comatum, alface, tomate, pepino e maionese e bebemos sumo de laranja, não natural masminuit maid. Em jeito de remate, um expresso tirado de uma maquineta a troco de umeuro. Com a Côte d’Azur à nossa esquerda, lá continuámos até Aix-en-Provence, ondechegámos por volta das cinco da tarde e com indícios de chuva. Ainda antes do jantar,fomos até ao centro da cidade para lhe tomarmos o pulso. Só depois fomos comer.Como entrada, um prato de carnes frias, patês e alface. Como segundo prato, pasme-se,voltámos a comer, pela terceira vez nesta viagem, o bovino estufado com vinho, océlebre boeuf bourguignon, acompanhado de tagliatelli. Como havia uma aniversarianteno grupo, uma das integrantes do grupo das ilhas, a sobremesa foi transformada em bolode aniversário. Com velas e cantar de parabéns e tudo. Como era um semi-frio dechocolate montado numa caixa de massa de bolachas e cortado em fatias, foi fácilremontá-lo e transformá-lo num bolo inteiriço. Depois do jantar, fomos passear até aocentro da cidade, onde decorria uma mostra de típicos produtos. Nomeadamentesaquinhos de lavanda e as típicas cigarras talhadas em pedra da região. Antes devoltarmos para o hotel, bebemos um espectacular batido de frutas, temperado de açúcarmascavado e refrescado com gelo picado. Uma verdadeira delícia vitamínica!... Deregresso ao hotel e ainda antes de dormirmos, somos confrontados com a notícia damorte de Marie Trintignat, filha do actor Jean-Louis e da realizadora Nadine Trintignat,brutalmente agredida por um energúmeno que se disse ser seu namorado(?), vocalistade uma banda rock de nome, imagine-se Désir Noir!... Como se não bastasse a agressão,Marie foi deixada em coma horas a fio até que o bicho resolveu chamar por socorro.

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Quando já nada havia a fazer. Foi em Vilnius, na Lituânia, aquando da rodagem deCollette, que a actriz interpretava sob a direcção de sua mãe. Transferida para Paris,onde novamente foi operada, desta vez por um reputado neurocirurgião, viria, contudo,a falecer. Repousa em Pére Lachaise, junto a nomes grandes como Alphonse Daudet,Jim Morrison e a mesmíssima Collette, sua derradeira personagem na tela. Ironias dodestino!...

Após o pequeno almoço, rumámos a Montpellier. Para fugirmos ao infernaltrânsito de fim de semana, deixámos a auto-estrada e fomos por uma via secundária, porentre povoações de casinhas térreas cobertas de trepadeiras. Contudo, para entrarmosem Montpellier, tivemos que retomar a auto-estrada e aguentar com o trânsito e asintermináveis filas de carros oriundos de vários sítios. É preciso não esquecer que, nesteitinerário, desemboca todo o tráfego proveniente do norte e do sul do país. Como se issonão bastasse, aqui vêm parar todos os automobilistas provenientes de Paris. Ainda porcima é um Sábado de Agosto. O mês de férias por excelência. Já apeados, começámospor comer uma deliciosa fatia de tarte de chocolate e tomar um café, para depois irmosaté mais adiante em busca de postais e magnets. De volta ao ponto de encontro com orestante grupo, fomos tirar fotografias num parque próximo e sob a estátua equestre deum tal de Ludovico Magno. Vestido de centurião romano, calça sandálias de tiras,enverga uma coroa de louros a cingir-lhe a fronte e, na mão direita em riste, seguraqualquer coisa como um bastão ou um documento enrolado. Continuando a caminhar,vamos ter a um torreão de pedra que vai dar ao aqueduto da cidade.

Prosseguindo a nossa viagem, infernizada pelo colossal trânsito, parámosalgures no Canal du Midi para um frugal almoço. Uma simples baguette au jambon eum sumo de laranja. Passámos depois ao largo de Norbonne, vislumbrando a imponentecatedral de S. Justo que domina a cidade, inacabada desde o século 13. Prosseguimosviagem por entre vinhedos e alcançámos os Pirinéus. Pela fronteira de La Jonquera,entrámos em território espanhol pela região da Catalunha. Íamos para Saragoça. À nossaesquerda, apreciámos a antiga fortaleza desta localidade e demos conta que as placastoponímicas assinalavam as localidades primeiro em castelhano e depois em catalão.Por exemplo salida - sortida; atención - atenció; dirección - direció. Ainda botiga, paraassinalar uma loja... Por volta das 18.30 horas ladeámos Barcelona e, ao fim de muitashoras de viagem, agravadas pelos colossais engarrafamentos, lá chegámos a Saragoça,capital da província de Aragão, de onde é oriunda a nossa Rainha Santa - D. Isabel deAragão. Dado o adiantado da hora, de imediato passámos ao comedor para jantar.Melhor dizendo, àquela hora já era ceia... Nem houve tempo para um apetecido banho.Como entrada, serviram-nos umas postas de pescada (merluza) frita, ainda fumegante,acompanhadas por uma salada de tomate, alface, atum e azeitonas verdes. Depois, fatiasfinas de carne assada, com batatas fritas e pimentos assados. Para sobremesa, um bolo

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de massa folhada enfeitado com maçã e cereja em calda, recheado com creme depasteleiro e polvilhado de coco ralado. Já era tarde quando acabámos a refeição, mas,ainda assim, fomos dar um passeio. Necessariamente curto face à hora que os relógiosfaziam questão de marcar. Mas era preciso fazer a digestão. Fomos até à esplanada daBasílica de Nossa Senhora del Pilar. Magnífica. O calor, infernal, fez sair de casa umaslargas dezenas de pessoas, entre adultos e crianças, que, desprovidas de falsos pudores,se refrescavam nos repuxos e cascatas existentes na praça do templo. Que inveja!... Nodia seguinte, antes de prosseguirmos viagem, tínhamos programado uma visita àbasílica que, haviam-nos dito, abria às seis da manhã. Para acordar a tempo e cumprir avisita que nos tínhamos proposto fazer, vai de pormos o telemóvel a despertar quase aonascer da aurora. Assim, teríamos tempo de nos prepararmos e ir à basílica, ainda antesdo pequeno-almoço. Esquecemo-nos apenas de um pequeno, contudo grande pormenor.Acertar a hora do portátil pela hora local, uma vez que ainda estava pela hora dePortugal. Resultado, quando o alarme nos fez despertar era apenas mais uma hora doque pensávamos ser. Até já nos tinham ido bater à porta do quarto para recolher asmalas. Escusado será dizer que, quando demos conta da verdadeira hora, precipitámo-nos para fora do quarto e galgámos as escadas de malas na mão. Valeu-nos o facto de arua do hotel estar toda esventrada e esburacada para obras. Deste modo, as malas tinhamque ser transportadas, de carrinho, em grupos pequenos, até ao autocarro que seencontrava a uma distância considerável. Malas entregues e lá vão eles rumo à sala dopequeno-almoço para o dito, engolido à pressa depois de duas ou três apressadasmastigadelas. A mania de cumprir horários junto de quem os não cumpre sempre nostrouxe dissabores. Para não fazermos ninguém esperar, prescindimos da visita àcatedral. Como nos arrependemos! Ainda esperámos uma boa hora que, bem gerida,tinha-nos proporcionado uma calma visita à basílica. Resta-nos a consolação de que ficapara uma nova oportunidade. Assim o permita Nossa Senhora del Pilar!...

De regresso a terras lusas, por entre campos de girassol e grandes propriedadescerealíferas já ceifadas, ladeámos Madrid e, ainda antes de cruzarmos a fronteira,parámos para almoçar. Não sem antes termos passado por Alcalá de Henares, terra natalde Miguel de Cervantes, pai do cavaleiro da triste figura, para a história celebrizadocomo D. Quijote de la Mancha. O almoço foi na localidade de Maqueda, bem próximodo seu castelo. Melhor dizendo, do que dele ainda sobra. Comemos caneloni e bebemoságua fresca. Depois desta refeição, mais italiana do que espanhola, lá seguimos rumo aBadajoz para entrarmos em Portugal. Pela fronteira do Caia, já em final de tarde,chegámos à santa terrinha. Que diferença, meu Deus! É por isso que uns paísesevoluem e outros não passam da cepa torta!... Andámos por terras de Espanha, França,Itália e Suíça e pudemos ver a abissal diferença que nos separa destas nações. Contudo,apesar de insignificantes e minúsculos, damo-nos a ares de grandes! É a velha fábula

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do sapo que, para impressionar o boi, inflou até rebentar. Até arder na sua fogueirazinhade vaidade e presunção... Chegámos a Lisboa já lusco fusco. Quase à hora de jantar.Estava terminada a primeira etapa do périplo. Curiosamente, no dia seguinte, íamosfazer este mesmo percurso. Aguardavam-nos cinco dias em Madrid, que, face ao menu,prometiam ser em cheio... É que não era só a capital madrilena. Tínhamos também oEscorial, o Vale dos Caídos, Toledo e o Parque da Warner Brothers. Supimpo!...

II PARTEA CANÍCULA, A PICK-UP E O CARRAÇA...

Manhã cedo, depois de um pequeno-almoço engolido à pressa, lá estávamos àhora marcada no local indicado. O autocarro, espanhol, já nos aguardava. Depois docheck-in , lá nos instalámos e vai de passarmos os olhos pela viatura para apreciarmos afauna que nos acompanhava. Cedo percebemos que éramos os únicos portuguesesnaquele verdadeiro melting pot. Indianos, latino-americanos e sabe-se lá que mais. Oguia que nos acompanhava – pelo menos disso fazia papel – era espanhol. Careca, barbade meia dúzia de dias, expressava-se num algo perceptível portunhol. Foi-nos logoperguntando se éramos brasileiros. Cedo nos apercebemos do barrete que nos tinhamenfiado! Íamos nitidamente de penetras numa excursão para Espanha. Fomos enfiadosnaquele autocarro com o único propósito de apanharmos boleia até Madrid. Todos osoutros iam em passeio, com todas as despesas incluídas. Nomeadamente uma visita àsruínas romanas em Mérida, onde faríamos um paragem para almoço, também já pagopelos outros excursionistas. Como se isso não bastasse, ainda teríamos aqui que mudarde autocarro. Esta viagem tinha como destino final Sevilha e não Madrid. Lá seguimosviagem como cobra se arrastando pelo chão, no dizer da canção da tropicalíssimaSimone. Chegados a Mérida, sob um calor abrasador, foi-nos dado algum tempo para avisita às ruínas romanas, que incluem o mais bem conservado teatro de toda a Europa. Éclaro que nós, os penetras, se as quiséssemos ver teríamos que pagar a entrada. Acanícula depressa nos desencorajou a fazê-lo e optámos por uma bebida fresca num cafécom ar condicionado. Depois de substancialmente inflaccionada a hora de espera, fomospara o hotel onde seria servido o almoço. Claro que aos outros excursionistas, não a nós.Uma vez mais nos apercebemos da nossa insignificância. Totalmente ignorados ejogados às traças. Se queríamos informações tínhamos que andar a mendigá-las.Sentimo-nos uns autênticos pedintes junto de tanto chileno, venezuelano e sabe-se láque mais, mas pagantes em dólares!... Depois de mais um chá de espera e de um menumal tragado num MacDonald’s , eis que o nosso guia nos apresenta uma figurinha, comar de gigolô. Cabelos pelos ombros, barbicha à italiana, camisa preta de manga cavada,

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calça branca a arrastar pelo chão e chinelas pretas de enfiar o dedo!... Dignapersonagem de um qualquer filme de Scorsese ou Coppolla. Esto lles vá a levar aMadrid! Disse-nos de uma assentada. Se a coisa já estava mal, passou a estar péssima.Fomos metidos numa Ford de 11 lugares, no que vulgarmente se chama uma pick-up,prensados, espartilhados e distribuídos pelos lugares existentes. Nós, mais trêsvenezuelanos e dois brasileiros. Com um calor infernal e um ar condicionado que malcumpria a sua missão, lá fizemos as quase quatro horas que nos separavam de Madrid.Ainda houve tempo para uma breve paragem em Talavera de la Reina, para um sumode laranja natural e uma apressada ida à casa de banho. Chegámos por volta das 19horas, com uma temperatura de 41 graus. Um horror! Depressa nos vimos noparadisíaco ar condicionado do nosso quarto do hotel, a um passo da Gran Via, o grandecentro da animação e diversão nocturna da cidade com os seus teatros e cinemas. Quaseporta sim, porta sim.

Saímos para jantar e tomar o pulso a esta fantástica metrópole. Mesmo ao ladodo hotel, comemos bifinhos de frango, batatas fritas, pimentos assados e croquetes debatata com bacon. Depois fomos passear. No Teatro Lope de Vega, estava em cartazuma adaptação da mega obra de Andrew Lloyd Webber, O Fantasma da Ópera – ElFantasma de la Opera. Esta peça nasceu da profícua mente de Webber e do seu amigo ecolaborador Cameron Mackintosh que, durante uma conversa informal, resolveramfazer um musical baseado no filme homónimo. Começaram, primeiro, por visionar aversão muda da película, protagonizada por Lon Chaney, para depois, insatisfeitos,verem a versão da Claude Raines. Como nenhuma destas adaptações foi so seu agrado,resolveram basear-se directamente na obra de Gaston Leroux (1868-1927). Como dadoscuriosos da encenação madrilena dizemos que, por exemplo, a réplica do gigantescolustre do teatro da ópera de Paris, é composta por 6.000 lâmpadas agrupadas em cordéisde 35 luzes cada um deles. Mede três metros e pesa uma tonelada. Na cena da quedadesce dois metros e meio por segundo. Em palco estão 40 actores, que vestem e despemum total de 230 trajes e o cenário muda 22 vezes. Decidimos partilhar convosco estasinformações, depois de as termos lido num folheto que surripiámos no hall do hotel.Não fomos ver este fantasma amistoso porque, apesar de já estar em cena há uns temposvalentes, os bilhetes eram rapidamente esgotados pelas monumentais bichas depotenciais compradores.

Continuámos a nossa visita de Madrid by night descendo a Gran Via, nadirecção das Cibeles. À nossa direita, junto ao hotel Senator, com a maior das latas,trabalhadoras do sexo aguardam os seus fogosos e mais ou menos babosos clientes. Vê-se de tudo! Homens, mulheres, gordas, magras, esqueléticas e outras mais ou menosespalmadas. Também meninos artilhados a preceito, peitudos e de sinuosas curvas, defazer inveja a muita presumida fêmea que por aí se bamboleia... Mas, quem está, está, e

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quem vai, vai! Foi o que fizemos. Já na Plaza de Calao, decidimos dar um pulo ao ElCorte Inglés e dar uma cheirada nas fragrâncias de nomeada, a preços convidativos eque, por terras lusas, não se encontram. Descemos depois o resto da avenida e eis-nosem frente às Cibeles e ao Palácio dos Correios, sempre magnífico, à luz do sol ou dalua. Voltámos para trás e fizemos o sentido inverso. Depois de uma subida em passo deturista, fomos dar à Plaza de España. É quase meia-noite e os termómetros aindamarcam 33 graus. Para refrescar, bebemos uma fresca coca-cola e sentámo-nos numbanco, não sem antes termos mirado Don Quijote e o seu fiel escudeiro, o obeso SanchoPanza, sob o olhar atento do seu criador, Miguel de Cervantes. Mesmo em frente, ohotel Crowne Plaza. O corpo já pedia descanso. Amanhã havia mais. A começar pelavisita panorâmica da cidade, como as zonas monumentais dos bairros chiques e as suasancestrais construções.

Depois do pequeno-almoço, fomos recolhidos no hotel por um autocarrorepleto de turistas de fala hispânica, acompanhados por uma guia local de nomeCristina. Desde o Paseo de la Castellana à Plaza de Colón, fomos arreganhando oolho. Primeira paragem: Palácio del Oriente. Antiga residência de monarcas espanhóis,data do século XVIII. Depois de convidados a tomar uma sangria numa loja derecuerdos, decerto escolhida a preceito para a turistada largar as lecas, fomos até àestátua equestre de Filipe IV para as fotografias da praxe. Curiosa e peculiar, porquanto,o cavalo do monarca está assente só nas patas traseiras. Continuámos para, mais adiante,nos determos no Planet Hollywood.

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Certamente também escolhido a dedo e onde nos foi oferecida uma bebida à escolha.Desde água à sempre incontornável coca-cola. Quando demos por isso, estávamos outravez na Gran Via. No fim do périplo fomos almoçar. Esparguete à Bolonhesa, que nossoube pelas almas. Para fazer a digestão e aplacar o calor dos 44 graus que nos derretiaas entranhas, fomos para o El Corte Inglés da Plaza de Calao, para o seu agressivo massempre delicioso ar condicionado. Depois das compras, fomos para o hotel descansar oesqueleto, já quase liquefeito com tanta canícula... Fomos depois até à Plaza Mayorapreciar os típicos restaurantes e bares de tapas com os seus exóticos e um tudo nadaasquerosos petiscos expostos nas montras. Por entre ruas e vielas fomos de novo dar àGran Via, que descemos, para, numa zona rumo à Moncloa, bebermos um refrescantesumo de laranja natural. Num simpático local de nome Café e Té e servidos por umempregado oriental artilhado com umas monumentais socas de madeira que arrastavapelo chão do estabelecimento. Por ser servido à mesa, o nosso sumo foi acrescido demais 15% em relação ao seu preço real. Como o calor continuava impiedoso, fomos denovo até ao hotel recarregar baterias. De onde só saímos para jantar. Agora comemosuma Salada Beatriz. Tinha batata, frango, maçã, tomate, alface, cogumelos e espargos.Tudo envolto numa acidulada maionese. Foi no mesmo sítio do dia anterior, no CaféRestaurante Via 59, assim chamado, certamente, porque ficava no número 59 destaconcorrida artéria. Depois da janta, veio o passeio. De novo descemos até à Plaza deCalao. Lá estavam as marafonas da noite anterior, hoje mais grotescas do que ontem.Não eram ainda dez da noite e já o local fervilhava de agitação e por ali pululavam asmais estranhas criaturas. Apesar do esforço, não conseguimos descortinar a que sexopertenciam. Enfim, modernices!... Continuámos a descer e decidimos virar à direita,rumo à Plaza Mayor. Se no dia anterior fôramos para a esquerda, até às Cibeles, hojeimpunha-se que fizéssemos o oposto. Assim foi. Antes, ainda apreciámos a Puerta delSol, o local de eleição dos madrilenos para todas as comemorações. Por aquideambulavam milhares de almas, bem dispostas e sequiosas, que, comendo gelados ousorvendo frescas bebidas, tentavam aplacar a sede e refrescar o corpo. Numa tentativafrenética de abafar os sufocantes 36 graus que, apesar do adiantado da hora, ainda sefaziam sentir. A velha plaza, antigo local de actos públicos, como touradas ou autos defé, tinha agora outra vivência. Gentes de apetite voraz deglutiam iguarias, ou,simplesmente, sorviam vinho ao som das doces melodias de um tocador de guitarraclássica. Passámos pelo Convento das Descalzas Reales e, indo sempre em frente,fomos dar à Plaza de Calao. Subimos a Gran Via e decidimos recolher-nos. O corpoassim o pedia. Apesar de ainda ser relativamente cedo, o ar condicionado do quarto eramais convidativo. O dia seguinte prometia ser em cheio. Era uma visita de dia inteiro aoParque da Warner Brothers.

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Depois do pequeno almoço, foram-nos buscar ao hotel. Pasme-se, aguardava-nos um autocarro de cinquenta lugares, com guia incluída, para nos levar ao parque.Não há fome que não dê em fartura. Para Madrid viemos como sardinha na lata, numapick-up. Agora, para uma distância de pouco mais de meia hora, ia um autocarroenorme para levar três gatos pingados...

Quando lá chegámos, foi-nos entregue um mapa e um horário dos espectáculosa que podíamos assistir. Prometia ser de papo cheio. E foi, como vereis pela descriçãoque agora se inicia. O parque está dividido por cinco grandes áreas temáticas –Hollywood Boulevard, Warner Brothers Studios, Super Heroes World, Old WestTerritory e o Cartoon Village.

Entrámos por Hollywood Boulevard e, à laia de aperitivo, fomos a uma espéciede réplica do hollywoodesco Chinese Theatre assistir a um divertido filme em trêsdimensões – Marvin el Marciano. Depois passámos à segunda área temática. AoWarner Brothers Studios, para começarmos por uma atracção do outro mundo. Fomosao Hotel Assombrado - El Hotel Embrujado. Lá dentro, começamos por assistir a umafantasmagórica conversa entabulada por duas ectoplásmicas figuras. Dali passamos auma hipotética sala de jantar, onde, um espectro feminino de nome Isabel, vestida denoiva, toma sozinha uma refeição numa monumental mesa. Sentámo-nos em bancoscorridos e descem sobre nós umas barras metálicas para protecção. Somos avisados deque deveremos manter-nos sentados durante o show e que, se sofrermos de vertigens oude claustrofobia, deveremos de imediato abandonar o local. É que, uma vez fechadas asportas, não podemos sair dos nossos lugares. Findos os avisos, damos conta de que osbancos começam a mover-se e a inclinar-se sobre o cenário. Depois o tecto começa arevirar-se e a tomar o lugar do chão, deixando-nos completamente abananados e à beira

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de uma síncope. Não com medo de fantasmas, mas de um qualquer outro pavor difícilde explicar por palavras. A gritaria inundou a sala mas, felizmente, o espectáculo foi decurta duração. Depois demos uma vista de olhos pelo Super Heroes World, mas fugimosdas suas monstruosas diversões. Tipo El Invertidor de Lex Luthor, com os seusdiabólicos movimentos giratórios e vibratórios; La Fabrica de Hielo de Mr. Freeze,umas aterradoras cadeiras voadoras; La Venganza del Enigma, uma torre de onde se caiabruptamente, em picado, de uma altura de 100 metros. Passámos pelo Old WestTerritory e fomos apreciando as suas atracções mais ou menos inofensivas, contudo,repletas de surpresas, umas mais molhadas que outras. Como La Montaña Rusa de WildWild West, onde carros de madeira são propulsados a toda a velocidade; La Aventura deRio Bravo, onde, uma aventura numa velha mina de carvão nos deixa ensopados até àmedula; Cataratas Selvajes, uma mescla de velocidade, água e o velho oeste de uma sóassentada. Ainda demos um pulinho ao Cartoon Village antes do almoço. Maspreferimos ir comer quando ainda havia pouca gente nos restaurantes. No Valentino’s ,comemos um Menu Combo. Uma enorme pizza Margherita, rectangular, com dois pãesde alho e uma fresca coca-cola light. Voltamos ao Warner Brothers Studios. A partir deagora, uma da tarde, tínhamos que estar atentos aos horários dos espectáculos que seseguiam uns aos outros. O primeiro foi Los Efectos Especiales de Hollywood, onde, deforma divertida e despretensiosa, nos foram mostrados alguns truques da sétima arte.Nomeadamente ao nível da caracterização. Depois de um breve intróito e de umpequeno filme alusivo, mostrado em televisores estrategicamente colocados, foi-nosdado um par de óculos para visão em três dimensões e fomos encaminhados para umenorme auditório. Como anfitrião tivemos nada mais nada menos que o Stanley Ipkiss,já na pele de A Máscara. Um verdadeiro show de diversão. Em jeito de epílogo, já comos óculos postos, somos convidados a ver um hilariante filme animado que tem comoprotagonista esta divertida personagem que, a páginas tantas, quando nos deita a línguade fora e nos brinda com uma sessão de gafanhotos no écran, qual não é o nossoespanto quando, sobre nós, de imediato chovem milhares de gotículas de água.Simulação mais que perfeita dos ditos perdigotos. Um espectáculo! Ainda a rir de tantaparódia, fomos ver El Show de Arma Letal. Um autêntico espectáculo ao vivo, pleno deacção, efeitos especiais, explosões, tiros e acrobáticos saltos. Martin Riggs e o seucompanheiro Roger Murtaugh, para quem viu Lethal Weapon – Arma Mortífera -vividos na tela por Mel Gibson e Danny Glover, derrotam à nossa frente e sob umescaldante sol de início de tarde, um bando de malfeitores. Iates e motas de água sãoalguns dos veículos que se deslocam num enorme lago, sem esquecer uma sanitavoadora que, durante uma monumental deflagração, sai disparada de uma casa. Depoisfoi correr para ver El Show de Loca Academia de Polícia. Uma barrigada de riso e deefeitos especiais, onde, por entre explosões e acrobáticas conduções de motas e carros

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de polícia, os pupilos do Comandante Lassard caçam uns assaltantes de bancos quepretendiam escapulir-se com o produto do roubo. Até um helicóptero por lá se vê emperseguição dos bandidos. Porque o tempo urge, vai de corrermos para o Super HeroesWorld. Está na hora de El Show de Batman. O alado herói, de parceria com o seu fielRobin – o Duo Dinâmico - deitam mão ao pérfido Jocker que faz mais uma das suas.Detonações em catadupa, lutas impecavelmente coreografadas e minuciosamenteensaiadas dão brilho a mais este espectáculo. Só ensombrado pelo calor que quase nosderrete os miolos. E de espectáculos estávamos conversados! Quase em fim de festa,fomos andar nos pueris carroceis do Cartoon Village. Os únicos inofensivos. Como LasTazas de Té de Scooby Doo ou El Paseo en Autobús de Piolin y Silvestre. Para acabarem beleza, El Correo Aéreo de Los Looney Tunes. Numa espécie de arredondadabarcaça, com capacidade para pouco mais de meia dúzia de ocupantes, vamospercorrendo um calminho rio, para, de quando em vez, sermos presenteados com umavalente molhadela que nos ensopa até aos ossos. Diga-se de passagem que, face ao calorinfernal, era uma bênção sempre que umas litradas de água nos caíam pela cabeçaabaixo. Por todo o recinto, estrategicamente colocadas acima das cabeças dos visitantes,dispositivos salpicavam com água fresca os transeuntes à sua passagem. Regressámosao hotel por volta das 19 horas, depois de um dia bem passado e assaz divertido.

Depois de um reconfortante banho, saímos para jantar. Foi no Vip’s Plaza deEspaña, sito ao número 65 da Gran Via, bem juntinho ao nosso hotel. Comemos umadeliciosa Salada César, com tiras de frango crocante e bebemos água fresca.Rematámos com uma salada de fruta de sobremesa. Depois, fomos passear para ajudar àdigestão. Descemos a Gran Via e, na Plaza de España, rumámos à esquerda emdirecção ao Palácio del Oriente. Passámos pela Catedral de Nuestra Señora deAlmudena, a padroeira da cidade. Sempre em frente, cruzámos a Iglesia de SanFrancisco El Grande e fomos dar à Puerta de Toledo. Já era tarde e o dia fora longo.Decidimos regressar ao hotel para um repouso mais do que merecido. As pernas,gelatinosas, assim o exigiam.

Após o pequeno-almoço, saímos para uma excursão de dia inteiro que noslevaria, primeiro, ao Escorial e ao Vale dos Caídos. Isto de manhã. Da parte da tarde,iríamos até Toledo. Tínhamos como guia o que vulgarmente se convencionou chamarde uma coroa enxuta. Uma respeitável e bonita senhora de meia idade, de nome Lola,impecavelmente vestida de corsários e camisa de meia manga verde seco por cima deuma blusa rendada. Descemos a Gran Via até à Moncloa, depois o campus daUniversidade Complutense de Madrid que, curiosamente, foi fundada em Alcalá deHenares e só depois transferida para a capital. Prosseguimos rumo à auto-estradanúmero seis, que nos levou ao Mosteiro de São Lourenço. Construído na pequenalocalidade do Escorial, esta magnífica construção do século XVI, foi mandada erigir por

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Filipe II, que aqui morreu em 1598 aos 71 anos. Na sua maior parte, foi obra do grandearquitecto Juan Herrera e está considerada a oitava maravilha do mundo (será?). Seassim é, têm toda a razão! Comemora a vitória na batalha de S. Quentin, contra astropas de Henrique II de França. Actualmente, para além de mosteiro habitado pormonges Agostinhos, é um colégio. Mais importante, ainda, é o panteão da família realespanhola. Aqui estão sepultados reis e rainhas das duas dinastias que reinaram emEspanha – os Habsburgo e os Bourbon. À entrada somos sujeitos a rigoroso controlo desegurança, à semelhança dos aeroportos, com os nossos pertences a passarem peloscanner e nós pelo detector de metais. Já lá dentro, começamos por apreciar salas equartos de decorações extremamente simples, com paredes e tectos pintados de branco eazulejos azuis e brancos até cerca de um metro de altura. Contudo, as portas sãoautênticas obras de arte. Profusamente decoradas, são feitas de madeira nobre comartísticos desenhos em três dimensões. Chegámos, depois, ao quarto outrora habitadopor Filipe II, já enfermo de gota. Do lado direito, na direcção da cabeceira, umas portasde vidro dão directamente para o altar-mor da basílica. No fim da vida, já recolhido aoleito e impossibilitado de se movimentar, todos os dias assim assistia à celebraçãoeucarística.

Dali descemos à cripta, para visitar o Panteão dos reis de Espanha. Quediferença! O que era simplicidade de decoração é agora luxo. Descemos a pique, por umcorredor forrado a mármore nos tectos e paredes, que a penumbra nos faz suspeitar serverde. Já lá em baixo, sentimos um baque que nos tira o fôlego!... Circular, com umacúpula belíssima, exibe alinhados em prateleiras inúmeros túmulos de ancestraismonarcas. Todos identificados, à excepção de três, vazios, mas já com dono. Um para aavó de Juan Carlos, o actual rei de Espanha, casada com o último rei aqui sepultado. Osoutros dois são para os seus pais. Todos os reis aqui sepultados só para lá foramtrasladados decorridos cerca de vinte ou trinta anos após sua morte. Os espaços sãopequenos e, assim sendo, há que esperar que, dos corpos, já só restem as ossadas. Essassim, são colocadas em pequenas tumbas de mármore e trasladadas para o local derepouso eterno. Dali, passámos aos monumentais frescos e pinturas de El Greco eVellasquez e depois à basílica. Monumental, à semelhança da de S. Pedro, no Vaticano.O altar-mor encimado por um Cristo crucificado, está decorado com fabulosos frescos ecolossais pinturas, que só nos são permitidas ver na penumbra em que o templo seencontra. Em tempos era possível ver todo o seu esplendor, colocando uma moedanuma maquineta que acendia automaticamente umas luzes que permitiam ter umamelhor visibilidade. Contudo, face ao degradar das ditas, agora só à média luz épermitido apreciá-las. Do lado esquerdo do altar, lá vimos as tais portas de vidro quevão dão ao quarto de Filipe II e que permitiam que, deste modo, pudesse assistir à missadiariamente celebrada neste templo.

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Finda esta visita, fomos para o Vale dos Caídos. Aguardava-nos mais umaespantosa surpresa para os olhos. Íamos ver este impressionante monumento, mandadoerigir por Francisco Franco em memória de quantos tombaram na Guerra CivilEspanhola de 1936-1939. Após a sua morte, todas as exéquias aqui decorreram e aquiestá sepultado. Situa-se na serra de Guadarrama, no vale de Cuelgamuros, a umaaltitude aproximada de 1.300 metros. A sua impressionante basílica foi construída narocha, escavada 600 metros adentro da montanha, e a monumental cruz que a encimatem 150 metros de altura.

Estima-se que aqui estejam os restos de cerca de 45 mil combatentes quepereceram na guerra civil espanhola. Somos sufocados por tanta imensidão esimultaneamente paz. Como foi possível um ditador ter mandado construir uma obra tãobela e tão fantástica? Na base da monumental cruz podemos ver quatro evangelistas,também eles de uma grandiosidade impressionante. Descendo umas escadas, quedámo-nos na grandiosa esplanada que rodeia o monumento e apreciámo-lo demoradamente.As arcadas que o circundam, à semelhança da Praça de S. Pedro, no Vaticano, parecembraços abertos que nos envolvem carinhosamente. No topo, uma espantosa e gigantesca

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Pietà. Depois de mais um rigoroso controlo de segurança, com scanner e detectores demetais, percorremos com calma o interior da basílica, sempre na penumbra. À esquerdae à direita, enormes anjos empunham uma espada. No centro do altar encontra-se umcolossal crucifixo e uma cúpula policromada exibe cenas do Juízo Final. A suaconstrução iniciou-se em 1940, logo após o fim da guerra, e prolongou-se por quaseuma década. Rodeiam o altar mor quatro grandiosos anjos. À frente, em campa rasa, umtúmulo identificado como sendo de José António que, em conversa com a nossa guia,soubemos ter sido o fundador das Falanges. À sua morte, em 1936, Franco toma o seulugar. Mas, dizem os verdadeiros falangistas, usurpou os verdadeiros ideais dofundador. Atrás do altar está o túmulo do Generalíssimo.

Finda a visita da basílica, rumámos a Madrid para o almoço. Da parte da tarde,íamos para Toledo. Comemos num restaurante mesmo ao lado do local de partida, ouseja, ao lado do terminal da agência de viagens, no Restaurante Marisquera Pleamar.Como entrada, comemos paella. Como prato principal, um bife de vitela com batatasfritas. À sobremesa, uma fatia de tarte de Santiago, a deliciosa iguaria galega. Nadamais nada menos do que uma tarte de amêndoa, só que esta era regada com licor deamêndoa amarga. Por volta das três da tarde, seguimos viagem para Toledo. Rumámos asul cruzando o rio Manzanares que banha Madrid e, mais adiante, passávamos peloestádio do Atlético de Madrid - Estádio Vicente Calderón. Apercebemo-nos de umaparticularidade interessante. Uma das suas bancadas fica por cima da avenida por ondepassámos. Mas era Toledo que nos aguardava. A capital religiosa de Espanha, onde seencontram as três grandes religiões monoteístas – Judaica, Muçulmana e Cristã. Foicapital de Espanha até que, em 1561, Filipe II transfere-a para Madrid. Começa, então, aperder a sua importância política, mantendo, no entanto, um estatuto cultural que aindahoje detém. Nomeadamente a nível artístico. É capital da região de Castilla La Manchae património da Humanidade. Aqui podem encontrar-se construções de vários estilos,desde o barroco ao árabe. Dentro do autocarro, quando nos aprestávamos a sair,disseram-nos que, lá fora, só estavam 43 graus. E nós lá dentro, no paraíso!... Mastínhamos uma interessante visita para fazer e tínhamos que despachar-nos. O programadas festas, pelo menos, assim prometia. Iríamos visitar a Catedral, a Igreja de S. Tomé -onde apreciaríamos uma fabulosa obra de El Greco - depois o bairro Judeu - para ver aancestral Sinagoga de Santa Maria - após o que iríamos a uma Fábrica deDamasquinados. Uma espécie de artesanato, assim chamado porque teve a sua origemna cidade de Damasco. A primeira visão que se tem, logo que nos abeiramos da cidade,é do velho e sobranceiro Alcazar. Imponente, está encerrado para obras pois, segundonos foi dito, vai ser transformado e adaptado para qualquer coisa como torre de armasou museu de armaria.

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Começámos pela Catedral, construída entre 1526 e 1730. Vimos o coro, todofeito em alabastro ricamente elaborado e as cadeiras, de madeira trabalhada à mão, queexibem cenas da conquista de Granada aos Árabes. Por cima de cada uma delas vimosuma lindíssima cúpula de um rendilhado deslumbrante. No altar-mor há uma imagemda Virgen de Almudena e, a toda a volta, ricos vitrais banham o templo de umapolicromada penumbra. Chamou-nos particular atenção os monumentais e fabulososórgãos de tubos que, durante as cerimónias mais importantes da Igreja Católica, como aFesta do Corpo de Deus, tocam em uníssono. Dali passámos a uma espécie de sacristia,ricamente decorada com fabulosas pinturas de El Greco, Caravaggio, Rafael e Tiziano.Ficámos a saber que El Greco, assim chamado por ser de origem helénica, passou porduas importantes fases na sua prolífica vida artística. A primeira, dos garridosvermelhos e azuis, cores mais alegres, quando ainda jovem esteve em Itália e privoucom Tiziano, que depois seguiu. A dos negros e cinzas, um El Greco já velho eresidente em Espanha, onde morreu. Precisamente aqui, em Toledo. Vimos isso numapintura de Cristo, trajando uma túnica de um vermelho sanguíneo. Espantosa! O tectodeste compartimento, exibindo magníficos frescos pintados pelo italiano LucaGiordanno, fez-nos lembrar a estonteante Capela Sistina. Salvaguardando as devidasproporções, bem entendido! Vimos, ainda deste pintor, duas espantosas colecções, porassim dizer, de Apóstolos pintados com expressões doentias, que, à época, despertaramum chorrilho de críticas. Já cá fora, pela Câmara Municipal, fomos subindo por entretúneis de construção tipicamente árabe com paredes revestidas a tijolo ocre, e subimosuma calçada revestida de seixos rolados. Na calle Santo André, vimos uma espectacularcasa tipicamente medieval e, quase em todas as lojas, bolos de maçapão e artísticaspeças de damasquinados esparrama-se pelas montras. Chegámos à Igreja de São Tomé,onde fomos ver a obra de El Greco – O Enterro do Senhor de Orgaz. Retrata asexéquias deste nobre Toledano, um Conde, especialmente benquisto junto dos popularespor via das obras de misericórdia que patrocinava. À hora da morte foi, inclusive,considerado Santo. O túmulo está precisamente sob esta pintura, em campa rasa e àentrada da Igreja. Nesta obra voltámos a ver a assinatura de El Greco, agora com o seunome de baptismo. No quadro podemos ver, em baixo, a morte do Conde e, em cima, asua ascensão aos céus. Nesta pintura voltámos a ver a tal diferença cromática das duasfases de El Greco. Em cima, os azuis e os vermelhos. Em baixo, os cinzas e os pretos.Neste quadro, foi-nos chamada a atenção para o facto de, entre todos os intervenientes,apenas dois nos olharem de frente. O pintor, aqui em auto-retrato, e uma criança que sediz ser o filho do pintor. No bolso deste, do lado inferior direito, pende um lenço brancoonde se pode ver a assinatura do artista. Precisamente com o seu verdadeiro nome -Domenikos Theotocopoulos.

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Dali fomos para o bairro judeu ver a velha Sinagoga. Sempre a descer,reparámos nas inúmeras lojas de cutelarias. Na ancestral Sinagoga, de seu nomeverdadeiro Santa Maria la Blanca, reparámos que, no cimo, no local destinados àsmulheres no culto judaico, se encontravam arcos agora encerrados. Este templo, o maisantigo de índole judaica em Espanha, foi construído no século XII. Curiosamente pelosÁrabes que o ofertaram aos Judeus. Posteriormente, foi transformado pelos Católicos eadaptado para o culto cristão. Daí a presença do crucifixo e do nome da Virgem.Virando à direita da Sinagoga, seguimos depois para o Mosteiro Franciscano de S. Juande los Reys. À entrada, mesmo no cimo da enorme porta de madeira, jaz um esqueletodeitado de lado, com a mão direita a segurar a cabeça e parecendo dizer-nos: cá vosespero! Passámos ao claustro interior todo decorado com estátuas trabalhadas e colunastorneadas. Contudo, a igreja que alberga no seu interior, é de uma simplicidadeespantosa. O altar é uma cópia e a pintura que o encima não tem mais de trinta anos. Onome deste convento, construído naquele que ficou conhecido como o estilo góticotardio, deriva do facto de ter sido construído para sepultar os reis católicos Fernando eIsabel que, no entanto, repousam em Granada. Foi-nos dito que, nesta igreja, ocorremmais de 90% dos casamentos da cidade. Já cá fora, fomos apreciar uma vistapanorâmica do Tejo – El Tajo – na sua viagem rumo a Lisboa. Descemos depois peladireita sempre a pique, e passámos por uma entrada encimada por lindíssimos torreõesárabes – La Puerta de San Juan de los Reys. Dali avista-se não só o Tejo como,inclusive, a parte moderna da cidade. Vamos agora para o autocarro, um oásis face àsufocante temperatura exterior. Decerto não longe dos 50 graus. Aqui terminou umpériplo a pé pela cidade, que durou mais de duas horas. Agora é a vez da visita à fábricados damasquinados. Aqui vimos, para além de pendentes para fios com ouro incrustado,pratos ricamente decorados, caixinhas para comprimidos, navalhas, adagas e punhais detodos os tamanhos e feitios, bem como réplicas de ancestrais espadas. Para além dasfamigeradas homónimas utilizadas pelos toureiros nas suas lides, para a estocada finalaos infelizes bovinos sacrificados nas touradas para gáudio dos sedentos de sangueaficcionados... Deixámos Toledo ao fim da tarde, sob um medonho céu cor de chumbo euma ameaça de chuva que, no entanto, não se concretizou. Também aqui ficámos asaber que hoje, dia 14 de Agosto, em Sevilha, a temperatura atingira os 52 graus...

À chegada a Madrid os estômagos já reclamavam, como que dizendo estou quenem posso!... A fome é negra. Fomos de novo ao Vip da Gran Via e, desta vez,comemos uma Salada Louisiana. Alface, cenoura, pimento, bacon, e frango marinadoem molho de soja. Uma delícia. Tudo regado com água fresca. Depois do jantardescemos a Gran Via até à Plaza de España. Virámos à esquerda e fomos em busca deuns vendedores ambulantes que havíamos visto no dia da nossa chegada a Madrid e quenos pareceu terem à venda umas carteiras e mochilas, pirateadas de uma conhecida

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marca de elite, identificada, apenas, por duas consoantes: LV! Dá para perceber, não?Sabíamos que estavam no passeio em frente ao hotel Florida Norte. Desgraçadamente,por certo devido ao avançado da hora, não os vimos por lá. Voltámos para trás eretornámos à Gran Via para as despedidas. No dia seguinte, a partir das 8 da manhã - esabe Deus até que horas - faríamos a viagem de regresso a Portugal. Será que era comoa vinda? Seríamos novamente penetras, agora de uma excursão para Portugal?Mistério!...

Após o pequeno almoço, e depois de esperarmos mais do que o combinado, lános vieram buscar. Confirmaram-se as nossas suspeitas! Fomos, uma vez mais, metidosà pressão numa excursão organizada. Iam repetir-se todas as cenas do primeiro filme.Uma sequela à boa maneira de Hollywood!... Lá fomos até Mérida, dali distando cercade 400 quilómetros e, uma vez mais, considerados brasileiros no meio de venezuelanos,chilenos e, desta vez, norte-americanos. Pelo menos uma, que até meteu conversaconnosco e nos contou como tinha sido aldrabada em grande por quem lhe vendeuaquela viagem, supostamente de sonho, via net. Afinal, não são só os portugas - algunsportugas - que vivem de expedientes mais ou menos trafulhitas!... Mas como era mulherde fibra, e de peso - uma vez que pesava seguramente mais de cem quilos - logo quechegasse a Portugal iria cancelar o pagamento que já havia efectuado através de cartãode crédito.

Vamos agora à guia que nos acompanhava. Loura, com um postiço de trançasafro, vomitou-nos atoardas do início ao fim da viagem. O que vale é que, a maioria dosviajantes, decerto, nem conhece Portugal e não faz a mínima ideia de que o que estava aser relatado era um perfeito e despudorado logro. Desde Sinta e Cascais tidos comopovoados mais típicos de Portugal(?)... Ou a sopa verde (presumimos que estava areferir-se ao caldo verde) como sendo a mais tradicional(?) sopa de Portugal. Aqui atétalvez nem estivesse muito errada, mas então e a sopa da pedra? Demos-lhe o benefícioda dúvida... O fado era o folclore(?) mais tradicional de Portugal(?)... Iam a uma noitede fados ao Bairro Alto e foi dito que Lisboa pouco mais tinha que ver. Até porquePortugal era um país pouco desenvolvido (aqui, lamentavelmente, tivemos que dar-lherazão e concordar com ela) e, imagine-se, só tinha República desde a Revolução de1974. Até então, tinha tido uma monarquia, à semelhança de Espanha. Semcomentários!...

Chegámos a Mérida por volta da hora do almoço. Antiga Emerida Augusta deseu nome romano, capital da Lusitânia, foi a capital romana da Espanha. Começou asenhora por nos dizer que, para quem havia visto o filme O Gladiador, aqui morava apersonagem interpretada por Carraça(?!) Assim nos soou o nome vociferado pelamenina. Carraça? Que diabo queria dizer? Depois de muito puxarmos pela cabeça,percebemos que o Carraça só poderia ser Kurt Russell, pronunciado, contudo, com um

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péssimo sotaque castelhano. Mas não é o Kurt Russell que protagoniza este filme, massim o Russell Crowe. Enfim, foi mais uma. Ah! e também nos disse que, grande partesdas cenas deste épico, aqui foram rodadas. Quando é sabido que foi tudo reconstituídoem estúdio e, graças ao miraculoso computador, até o velhinho Coliseu de Romarenasceu das cinzas... Voltámos ao MacDonald’s e, uma vez mais, fomos os filhos deum deus menor!... Entrámos em Portugal pela fronteira de Badajoz, curiosamenteacompanhados por uma guia que dormia profundamente. Nem sequer alertou ospassageiros para o facto de, a partir dali, os relógios marcarem mais uma hora. Foicaricato. Costuma dizer-se que, em serviço, não se bebe! E dorme-se? Não deveriaaplicar-se aqui a mesma prerrogativa? O motorista, que por acaso até era português,sabia o caminho, decerto, caso contrário, seria o bom e o bonito e, quem sabe, quandodéssemos conta, estávamos de novo em Espanha!... Nunca, nas nossas já muitasandanças, vimos coisa igual. Já passámos por algumas, mas, uma guia que se deixoudormir em pleno serviço, era a primeira vez que víamos... Mas não se ficou por aqui.Acordada de repente pelo toque de um telemóvel, olha à volta e, quando vislumbrou umpequeno castelo rodeado de muralhas, logo se apressou a dizer que estávamos empresença de uma pequena cidade medieval(?). Perspicaz, não?

Chegámos a Lisboa por volta das seis da tarde e, de imediato, fomos para oCais do Oriente. Tínhamos que apanhar o intercidades para Viseu, onde chegámos àsonze da noite e onde ficaríamos um fim-de-semana para descanso. Depois retomaríamosa passeata. A terceira tranche destas bem acidentadas férias...

III PARTEA CAPITAL, OS “CRAVAS”, A “INBICTA” E O DOURO

Depois de dois dias de ripanço, eis-nos de novo a bordo de um intercidadesrumo à capital da Lusitânia, onde chegámos por volta da hora do almoço. Depois determos descarregado as bagagens no hotel, em plena avenida de Roma, fomos almoçar.Coisa pouca. Uma sopa de espinafres, uma baguete de delícias do mar e uma coca-colalight. Depois fomos para Sintra. Íamos ver o Castelo dos Mouros, que ainda nãoconhecíamos. O péssimo estado de conservação deste espantoso monumento deixou-nosem choque. A fazer fé nos letreiros que por lá proliferam, o imóvel sofreu obras derestauro no século XIX(?). Isso mesmo, vai para dois séculos atrás!... Subindo edescendo a pique, por entre pedras e pedregulhos, vamos tentando compreender umpouco da história do local onde os encontramos. Vê-se logo que já estamos emPortugal! Sempre gostávamos de saber para onde vai o dinheiro dos bilhetes cobrados àentrada! Por lá vimos sepulturas provenientes de antigos cemitérios cristãos e vestígios

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de técnicas árabes de construção, tudo numa amálgama de pedras! Também uma velhacisterna destinada ao armazenamento das águas pluviais, tão imprescindíveis à vidadurante os prolongados cercos a que o castelo foi sujeito pelos sucessivos invasores.Corremos tudo. Desde as ameias à porta da traição, assim chamada porque era utilizadapelos exércitos usurpadores durante as incursões contra o castelo. Mas também erausada pelos habitantes do interior quando fugiam aos cercos. Terminámos na torre maisalta, onde está hasteada a bandeira nacional. Agora era só descer por ali abaixo e irapanhar o autocarro que nos levaria ao centro da vila. À nossa esquerda, ainda nosdeleitámos com uma magnífica vista de Sinta e do Palácio da Vila. Na descida aindavimos a Alcáçova, tida como o local de residência do Alcaide do Castelo. Ainda dentrodo seu recinto, reparámos numa pequena carripana que vendia garrafas de água,chocolates e, imagine-se, pequenos copos de plástico com Vinho do Porto a 1,25 •. Nãopodíamos ir embora sem comer as tradicionais queijadas e outros típicos e não menosdeliciosos bolinhos. Foi na Periquita. Com um sumo de laranja natural bem fresco,comemos as ditas e, ainda, Croquetes de Coco e Nozes de Cascais. Uma alarvice!... Devolta a Lisboa fomos jantar ao Chiado, num pequeno restaurante situado no agorarenovado edifício dos Grandes Armazéns do Chiado, totalmente destruído pelo incêndiode Agosto de 1986 e a quem Siza Vieira deu nova cara... Comemos arroz de pato esalada de frutas. Depois de um saltito ao Bairro Alto, regressámos de metro ao hotel.Amanhã havia mais.

Após do pequeno almoço, apanhámos o metro até ao Campo Grande paradepois irmos de autocarro até Mafra. Ao Convento e à Tapada Real. Pelo coração daregião saloia, Malveira e Venda do Pinheiro, agora mais conhecida por via dascoscuvilhices Orwellianas, lá chegámos a Mafra. Só não vimos a Beatriz Costa,encabritada na sua carroça repleta de roupa branca que a freguesa deu ao rol, em plenadisputa com as carroças da viúva e aos tombos montanha abaixo, na cena que ficou nosanais do cinema português. Quem nunca viu A Aldeia da Roupa Branca, onde, o noivo éde Caneças e a noiva é da Malveira? Assim rezava a canção entoada por este já falecidonome grande do meio artístico nacional? Mas era terça-feira e o Convento estavafechado. Contudo, a basílica aberta, permitiu-nos uma demorada visita ao seu interior.Antes, numa pequena pastelaria da vila, comemos um bolo de amêndoa das freiras, nodizer da menina que nos atendeu. Já dentro da basílica, pudemos constatar que, a suacúpula, é idêntica não só à da basílica de S. Pedro, em Roma, como à da basílica doMosteiro do Escorial, em Madrid. Aqui vimos outra coisa que só se vê em Portugal.Lamentavelmente. Os restauros serem patrocinados por mecenas, a troco, claro está, debenefícios fiscais. Aqui, eram os órgãos, à custa de uma entidade bancária de terras deIsabel II, que é como quem diz, um banco inglês. A nossa pinderiquice chega a irritar!...ou a nossa chulice!... Uma vez mais não fomos à Tapada. E isto porque para lá não há

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transporte. Disseram-nos que estão a equacionar a hipótese de, para o ano, haver já umcircuito de charrete que faz a viagem de Mafra à Tapada, incluindo a visita ao seuinterior. Hipótese se calhar já não concretizável, a fazer fé nas imagens que nosentraram casa dentro alusivas aos recentes e criminosos fogos que consumiram maisesta incomensurável riqueza do nosso património florestal... Depois demos um pulinhoao parque atrás do Convento e divertimo-nos com os atrevidos esquilos que, com amaior das sem vergonhices, pedincham comida aos visitantes.

Dali fomos até à Ericeira, onde almoçámos. Um bitoque e uma água, numrestaurante com nome de diminutivo de Francisco, para depois acabarmos numagelataria com nome da cidade das gôndolas a comer um gelado de chocolate epistachio!... Antes de apanharmos o autocarro para Lisboa, ainda passeámos à beiramar, do alto das falésias a esboroar-se e, que, a cada passo nosso, ameaçavamcatapultar-nos pelos ares rumo ao Atlântico.

Chegámos à capital ao fim da tarde e apanhámos o metro para a Baixa/Chiado.Coscuvilhámos as lojas, nomeadamente a Fnac, em busca de novidades, a Sport Zone ea Bershka. Uma constante foi sempre a presença de pseudo indigentes, que fazem dapedincha um modo de vida. Dê uma moedinha para uma sopa! Ajude quem precisa!São as frase que se ouvem amiúde. Por toda a parte! Não diríamos todos, mas, algunsdeles, percebe-se à légua que estão a regar e a tentar levar-nos à certa! Havemos de sersempre um país de cravas e de lambões!... Fomos depois a pé até ao Rossio e, nosRestauradores, demos um pulinho ao recém aberto Hard Rock Café, instalado noedifício do velho cinema Condes, na Avenida da Liberdade, que ainda tivemos oprivilégio de conhecer e onde vimos Em Buscada Esmeralda Perdida há quase duasdécadas. Mas, como quem vê um vê todos, a visita foi necessariamente breve. Subindo aavenida, temos à nossa direita o Teatro Tivoli. Em cena As Taradas, movimentadacomédia com nomes grandes do nosso panorama cénico. Sempre a subir, vamos dar aoForum Picoas, já no Saldanha, depois ao Campo Pequeno, agora todo coberto paraobras de restauro. Como se por ali tivesse passado Christo, o tal artista a quem dá ganasde encapotar tudo quando é monumento famoso. Dali subimos até à Avenida de Roma,para um pequeno descanso no nosso hotel antes do jantar. Que foi nas Amoreiras. Umasalada fria de polvo, batata, cenoura, feijão-verde, ovo e tomate, tudo coberto demaionese. Como remate, uma fresca salada de frutas. Depois demos uma vista de olhosàs lojas deste antro do consumismo, para depois sairmos rumo ao Marquês de Pombal.Contornando o Parque Eduardo VII, subimos ao Saldanha e, pela avenida 5 de Outubro,acedemos à João XXI para depois entrarmos na avenida de Roma. Já no quarto e comoainda era cedo, ligamos a televisão e fomos confrontados com a terrível notícia da mortede Sérgio Vieira Melo, em Bagdad, vitimado por uma monumental explosão no quartel

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general da ONU, perpetrada sabe Deus por quem!... Assim vai o nosso mundo. Cadavez mais igual a si próprio!...

Já outro dia, depois do pequeno almoço, fomos de metro até ao Rossio ecaminhámos pela baixa até ao Terreiro do Paço. Lá estavam outras vez os cravas! Cadaum mais esperto do que o outro, com elaboradíssimas artimanhas engendradas para dara volta aos transeuntes. Cortámos depois à direita, pela rua da Madalena. Íamos para aSé que ainda não conhecíamos. Antes, decidimos entrar na Igreja de Santo António,onde, surpresa das surpresas, decorria uma missa em japonês. Depois da Sé subimos atéao miradouro da Santa Luzia. Uma vergonha! Repleto de garrafas vazias, lixo, fezes,animais e humanas certamente, e um cheiro perfeitamente nauseabundo! Era impossívelali ficar mais tempo. Apesar da magnífica vista, o cenário envolvente era deplorável.Subimos depois para o Largo da Graça, à Igreja da Graça, para depois descermos àIgreja de Santa Engrácia - o Panteão Nacional - no Campo de Santa Clara. Tínhamosque ir ver a Amália, que ali se encontra desde 8 de Julho de 2001, por resolução daAssembleia da República. E fomos! Antes, ainda nos rimos quando vimos, entre tantosvultos da nossa cultura e política, os supostos túmulos de Vasco da Gama (?) e de Luísde Camões (?). Então não estão nos Jerónimos? Ou terão, face à sua estatura, o dom daubiquidade? No mínimo, é estranho!... Lá fomos ver a grande senhora do fado, que,diga-se de passagem, merecia melhor sorte depois de tudo o que fez por Portugal.Achamos que merece inteiramente repousar no Panteão. Isso nem se discute. Mas, comomulher do povo, decerto estaria melhor num local mais consentâneo com a sua estranhaforma de vida. Mais perto dos que verdadeiramente a amavam!... Talvez estivessemelhor e mais feliz no Cemitério dos Prazeres, onde foi sepultada primeiramente.

Descemos depois pela Graça, e, já em pleno coração de Alfama, temos à nossadireita a travessa do Menino de Deus e, à nossa esquerda, a travessa do Açougue.Vamos descendo e eis que alguém, decerto alma bem humorada, num pequeno recantointerior, improvisou uma placa toponímica na parede com os dizeres Jardim das PichasMurchas!... Descemos a rua de S. Tomé e, à nossa direita, passámos pela FundaçãoRicardo Espírito-Santo. Ao fundo das Portas do Sol subimos a travessa de Santa Luzia,rumo ao Castelo de S. Jorge. Contudo não entrámos porquanto já lá tínhamos ido o anopassado. Descemos depois a rua do Milagre de Santo António, a rua da Saudade e aCosta do Castelo, antes de cruzarmos o Chapitô. Não vimos por lá a Tété e o seu fielgalináceo!... Descemos depois por um par de ruelas estreitas com escadas, separadas ameio por um corrimão metálico. Só nos faltava ir ter ao Pátio das Cantigas e dar decaras com o Rufino Fino, pai e filho e a senhora D. Rosa acolhendo calorosamente a suabrasileira e agora cançonetista filha, de nome Gracinha, se a memória nos não falha. Àesquerda, descemos para a rua da Madalena, depois a Praça da Figueira e finalmente oChiado. Era hora de almoço e as forças estavam nas lonas... Fomos à Loja das Sopas e

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comemos uma espectacular sopa camponesa. Seguiu-se uma salada oriental, a promoçãoda semana. Com alface, cenoura ralada, milho, rebentos de soja e diminutos camarões,tudo coberto com um molho de ketchup, natas e ervas. Bebemos coca-cola light e, parasobremesa, comemos uma salada de frutas. Para fazer a digestão descemos até ao Caisdo Sodré. Lá chegámos depois de termos passado pelo edifício da edilidade lisboeta ecruzado a Rua do Arsenal. Apanhámos depois o comboio para Belém. Começámos porver o Mosteiro dos Jerónimos. Primeiro a Igreja, onde vimos, outra vez, os túmulos deLuís de Camões e de Vasco da Gama. Afinal onde verdadeira estão? No Panteão? NosJerónimos? Ou nem num nem noutro? Entrámos depois no Mosteiro, que nuncatínhamos visitado. Se o exterior e parte arquitectónica são fantásticos, por via dos seusfabulosos rendilhados na pedra, o interior deixou-nos desiludidos e um tudo nadachocados. Começámos pelo coro alto e passámos depois pelos túmulos de AlexandreHerculano e Fernando Pessoa. Este último, sob a forma de uma coluna quadrada demármore, ostenta uma cinta metálica onde se encontram inscritas as datas do seunascimento e da sua morte 1888 -1935 e um poema do seu heterónimo Ricardo Reis.Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põequanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive.Tem inscrita a data de 14/2/1933. Vimos depois o antigo refeitório do mosteiro, comparedes revestidas de azulejos que espelham o milagre da multiplicação dos pães ecenas da vida de José no Egipto. Já cá fora, atravessámos a Praça do Império e subimosao Padrão dos Descobrimentos para, do alto, nos deleitarmos com a vista panorâmica epodermos apreciar o mapa mundo com as conquistas portuguesas de outrora bemassinaladas, com as respectivas datas. Pela beira-rio fomos depois até à Torre de Belém.Visitámos o interior da velha torre manuelina, que já foi de tudo um pouco. Desde postode vigia a aljube de malfeitores. Fomos depois até à velha fábrica dos pastéis de Belémtrincar os ditos. O dia estava quase no fim e fora muito bom. Pelo menos rico em visitase passeatas. Apanhámos o comboio para Lisboa e, uma vez no Cais do Sodré, subimos arua do Arsenal. Pela rua do Comércio e rua Áurea acedemos ao Rossio. Apanhámos ometro até Roma e fomos descansar um pouco para o fresco do ar condicionado doquarto do hotel.

Saímos para jantar no Vasco da Gama, para onde fomos de metro, pela linhado Oriente, depois de termos ido até à Alameda e mudado para a linha vermelha. Fomosoutra vez à Loja das Sopas. Agora escolhemos uma sopa de legumes e uma salada defusilis tricolores. Depois passeámos pelas lojas do Centro Comercial, algumas de nomesonante, mas que, face às reduções que praticavam, até deu para fazer o gosto ao dedo.Melhor dizendo, o gosto à carteira... Voltámos novamente pela linha do Oriente até àAlameda, onde mudámos para a linha verde que nos levou à avenida de Roma. Por hojejá chegava!...

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Depois do pequeno almoço, apanhámos o metro novamente até à Alameda,onde mudámos para a linha amarela. O destino final era o Rato. Íamos para a Rua deSão Bento, visitar a Fundação Amália Rodrigues. Mais concretamente a sua Casa-Museu, a casa amarelo torrado no número 193 da Rua de São Bento, que a diva habitoupor mais de trinta anos e onde a morte a surpreendeu pela manhã do dia 6 de Outubro de1999. Chegámos por volta das dez horas e foi-nos pedido que aguardássemos um poucoporquanto havia começado, nesse momento, mais uma visita guiada. Assim sendo,poderia ser interrompida para que nós integrássemos o grupo de visitantes. Assim foi.Começámos por subir uma escadaria de madeira, em cujas paredes se viam pinturas aóleo e tapeçarias. Depois, já no primeiro andar, vimos, à nossa esquerda, primeiro umacasa de banho, identificada como sendo a das visitas. Simples, sanitários e azulejosbrancos, com uns sapatos no chão e um dos balandraus (a expressão é de Amália) que aartista costumava usar por casa. Depois um quarto, também identificado como sendo odas visitas, à semelhança da casa de banho contígua. Também aqui está um dos vestidosque Amália usou. Depois uma belíssima sala de jantar, com cerejas pintadas nasparedes, porque, como nos disse a guia que nos mostrava a casa, Amália dizia ternascido no tempo das cerejas... Ainda um belíssimo quadro da sua amiga Maluda - umavista de Lisboa como só esta pintora sabia retratar. Antes de chegar a uma designadaante-câmara, onde vimos as jóias de cenas expostas numa vitrine, ainda passámos poruma estante que exibe os variadíssimos prémios conquistados por Amália. Como o dosaudoso Sete ou o da badaladíssima Nova Gente. Antes do quarto, passámos ainda pelasala. Linda, toda revestida com um fabuloso lambril de azulejos florais do século XVIII,tapetes orientais, uma guitarra com granadas e turquesas embutidas sobre um xailepreto, cómodas portuguesas, peças de fina porcelana da China, um retrato a óleo daartista da autoria de Eduardo Malta e, ainda, o original do famoso busto de Amália doescultor Joaquim Valente. Sobre um piano de cauda vimos uma biografia de AnthonyQueen, o grande amigo da fadista. Agora o quarto. Portas abertas de par em par, tem,sobre a cama, os seus característicos e monumentais óculos do sol, um lenço de mão e oseu livro de versos. Sobre o lado direito da cama alguns terços, entre os quais umoferecido por João Paulo II. À esquerda, um oratório e uma imagem de Nossa Senhorado Carmo, de quem Amália era profundamente devota. A porta da casa de banho, ondea artista foi encontrada já sem vida, à direita do quarto, encontra-se fechada.

Depois desta emocionante visita, pela Rua de São Bento acedemos à Rua PedroÁlvares Cabral para depois virarmos em direcção ao Jardim da Estrela. Quandoentrámos na homónima basílica, no relógio da torre soavam as badaladas das onze damanhã. Percorremos demoradamente este magnífico templo, mandado construir por D.Maria I e seu local de descanso eterno. Conta-se, até, uma curiosa e algo macabrahistória. Para a trasladação dos seus restos mortais do Brasil, onde faleceu, o corpo da

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monarca foi colocado em três urnas, umas dentro das outras, apenas envolto em ervasaromáticas. Quando estas foram abertas, após vários dias de viagem, dizem, face aonauseabundo cheiro que emanava do seu corpo já putrefacto, algumas damas da cortepresentes da cerimónia desmaiaram. Fora da basílica, descemos a Calçada da Estrela e,à nossa esquerda, sempre a descer, cruzámos o Palácio de São Bento, vulgo Assembleiada República. Fomos depois dar à Rua do Poço dos Negros, à Calçada do Combo, àIgreja de Santa Catarina e, virando à esquerda, vimo-nos a subir a pique pela Lisboaprofunda. Se calhar andávamos por zonas por onde muitos lisboetas nunca andaram e,decerto, até nem sabem que existem. Apesar de alguma degradação e imundície, muitobonitas e pitorescas. Quando demos conta, estávamos no Largo de Camões, mesmo àentrada no Bairro Alto. Resolvemos descer, pela direita, para o Cais do Sodré. É que,num repente, resolvemos ir almoçar a Cascais. Ao Cascais Villa. Se bem o pensámos,melhor o fizemos. Pela Rua do Alecrim, depressa vimos a estátua do Duque da Terceira,mesmo em frente à estação do Cais do Sodré.

Chegados a Cascais e porque o estômago já reclamava, fomos logo comer. UmSpaghetti Carbonara e uma água fresca. Depois, passeámos por esta pitoresca esimultaneamente cosmopolita vila piscatória e de veraneio e retornámos à capital.Saímos no metro do Parque e fomos dar uma vista de olhos à quase despudorada, pelomenos para alguns, obra fálica de Cutileiro que aclama a revolução dos cravos. Dalifomos à Estufa Fria, que não conhecíamos. Foi uma lufada de ar mais ou menos frescoface à canícula exterior. Subimos e descemos as várias áreas deste magnífico horto, seassim o podemos chamar, e até nos surpreendemos com uma pequena mangueira, que,apesar do seu diminuto porte, estava carregada de mangas, ainda que verdes. Já cá fora,resolvemos dar um salto ao El Corte Inglés. Até porque era época de saldos e depromessa de pechinchas... Depois de muito calcorrear e de questionar alguns transeuntessobre o seu local exacto, lá o avistámos. Cansados da busca, e antes da coscuvilha,fomos até ao bar tomar uma bebida fresca. Como já era hora do lanche, aproveitámos, e,ao café e à água fresca, juntámos um donut. Até soube bem! Mas depressa noscansámos de lá andar. Por duas razões básicas. Primeiro, porque quem vê um, já viutodos. Segundo, porque, afinal, os saldos já não são o que eram e, as pechinchas, a havê-las, não estavam por aquelas bandas. Fomos depois de metro até à estação daBaixa/Chiado e mudámos para a linha verde que nos levou a Roma, ao nosso hotel, deonde só saímos para jantar. Precisamente no Chiado. Lá fomos outra vez à Loja dasSopas. Já estava a tornar-se um vício! Depois de uma sopa juliana, apeteceu-nos umMcChicken Premiére. Depois voltámos para o hotel. O dia fora longo e, no dia seguinte,tínhamos um comboio para apanhar, bem cedo, rumo à Inbicta...

Manhã cedo, após a primeira refeição do dia, lá apanhámos o metro até àAlameda, para depois mudarmos para a linha vermelha que nos levaria à Estação do

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Oriente. Íamos apanhar o intercidades para o Porto. Ainda houve tempo para tomar umcafézito, com a Torre Vasco da Gama e o Oceanário como pano de fundo. Já no trem,fomos observando a fauna que nos rodeava. O jovem e imberbe marujo que dormia asono solto e que só o revisor fez despertar para picar o bilhete. A rapariguinha que,mesmo ao nosso lado, rezava o terço e dormitava a sono solto. Um pouco mais atrás obalofo casal de calções que, a meio da viagem, resolveu começar a digladiar-se. Dizia amulher, a meio da contenda que, o seu esposo, dava mais trabalho que uma criançapequena!... Ainda um rapazito que, para não incomodar o energúmeno lhe haviaroubado o lugar para poder ir com uma amiga, foi de pé grande parte da viagem. Atéque um revoltado passageiro de barba rija resolve intervir e pôr o penetra a milhas. Sóassim o legítimo proprietário do lugar pôde recuperar o que era seu por direito. Assimvai o nosso paízeco, pejado de marialvas e chicos-espertos. Só me apetece parafrasearuma grande amiga que, com carradas de razão, diz por isso é que uns países evoluem eoutros não...

Na companhia de tão díspares espécimes lá chegámos ao Porto, por volta dameia hora, como dizem os portistas quando se referem ao meio dia e meia. Depois depousarmos as coisas no hotel, situado em plena Praça da Batalha e mesmo ao lado doTeatro Nacional de São João, fomos almoçar. Pela rua de Santa Catarina fomos até aoVia Catarina. Comemos uma baguete com hambúrguer grelhado, guarnecido compimentos assados e cebola às rodelas e bebemos uma coca-cola. Para sobremesa, umasalada de frutas. Depois fomos passear pela cidade. Queríamos começar pela Sé, quenunca tínhamos visitado. Por entre o casario, devido às profundas obras em curso, láchegámos ao templo que visitámos demoradamente. Depois, pelas Escadas dosVendavais, descemos a pique até à Ribeira, sempre por entre as típicas casinhas,intercaladas, aqui e ali por pequenos restaurantes e tabernas. Passámos no Senhor deBoa Fortuna, na Rua do Barredo e, virando à direita, por entre um cheiro a peixe frito eao mavioso som das gaivotas, chegámos à Ribeira com a Ponte de D. Luís à nossaesquerda. Fomos logo assaltados e assediados por angariadores de clientes para oscruzeiros no Douro, das cinco e das seis Pontes. Havia para todos os gostos e bolsas.Caminhámos à beira rio e observámos os garotos que, certamente para aplacar o calorinfernal se fazia sentir, ensaiavam acrobáticos saltos para a água. Também os inúmerospeixes que povoavam a margem. Mesmo em frente, em Gaia, fomos vislumbrando osnomes das casas, e respectivas famílias, produtoras de vinho do Porto. Quase todasestrangeiras e necessariamente inglesas – Calem, Sandeman, Taylor’s , Porto Cruz,Cockburn’s . Resquícios da mais antiga aliança comercial do mundo. Como sempre, euma vez mais, ficámos a perder. Mais à frente, à nossa esquerda, detivemo-nos, aindaque por breves instantes, no memorial que invoca o tristemente célebre Desastre daPonte das Barcas, ocorrido aquando das invasões francesas. Por entre o enegrecido das

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velas acesas, descortinámos a data de 1809. Mais adiante, um singelo tributo ao velhoDuque da Ribeira, que tantas vidas resgatou às traiçoeiras águas do Douro. Subimosagora em direcção ao centro da cidade do Porto. À nossa direita cruzámos a AssociaçãoComercial e depois a estátua de Mouzinho da Silveira. Rumámos aos Clérigos e aoquase desértico e homónimo shopping. Antes, ainda demos uma olhadela à velhinhaLivraria Lello e apreciámos a sua monumental escadaria de madeira que conduz aoprimeiro piso. Vamos agora por uma bem remodelada zona pedonal no Campo dosMártires da Pátria. Acedemos depois à Praça dos Leões, em obras, para irmos para a ruade Cedofeita, agora toda atapetada de calçada portuguesa. Sempre em frente, vamosagora virar à nossa esquerda, rumo à Rua da Boavista, para irmos até ao Brasília. Àdireita temos o Hospital Militar e à esquerda o Oporto Medical Centre. Depois de umabreve visita ao centro comercial, saímos por uma porta que nos levou directamente paraa rotunda da Boavista. Estávamos decididos a visitar os antros do consumismo. Osarrombadores de bolsas e assassinos de ordenados. Assim sendo, dali passámos aoPenínsula, outra gigantesca galeria comercial. Depois da bisbilhotice, aproveitámospara comer um divinal gelado de manga e chocolate. Passámos depois para o Cidade doPorto. Outro colosso da gastadeira que, apesar dos saldos, tinha as lojas às moscas... Éa crise!... Era hora de lanche. Para isso nos alertou um valente ronco de estômago.Entrámos na Petúnia, na Rua Júlio Dinis, uma pastelaria que exibia na montra unssalivantes bolinhos. Comemos uma Glória, um delicioso bolo de massa folhadarecheado de doce de ovos e coberto de açúcar glacê e bebemos um refrescante sumo delaranja natural. Descemos depois para, de novo, apanharmos a rua de Cedofeita. Pelarua da Torrinha e pela Praça dos Leões, ora descendo, ora subindo, lá chegámos à rua deSanta Catarina. Fomos até ao hotel descansar um pouco os massacrados pés e refrescaras moídas carnes no ar condicionado do quarto do hotel, de onde só já saímos parajantar.

Fomos outra vez ao Via Catarina. Comemos uma sopa de legumes e decidimosprovar um dos apregoados petiscos pelo Kentucky Fried Chicken. Foi um combimcnuggets. Uns pedacinhos de galináceo frito, que até estavam apaladados,acompanhados pelos sempre presentes batatas fritas. Para desenjoar, comemos umasalada de frutas. Não podíamos deixar a Invicta sem irmos ao Magestic. Foi o quefizemos. Bonito, bem decorado e carregadinho de história. Fez-nos lembrar o Café NewYork, em Budapeste - Hungaria nos tempos da cortina de ferro... Dali fomosdirectinhos para a cama. Se os dias anteriores haviam sido quase fatais, o de hoje nãofugiu à regra. Mas, também, férias são férias e só à custa de alguns sacrifícios se ficam aconhecer as coisas. Nada que uma boa noite de sono não cure... Os dois diassubsequentes prometiam ser calmos e pacatos. Eram para fazer um cruzeiro no Douro.Primeiro de comboio e depois de barco.

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Após o pequeno almoço, descemos para a Estação de São Bento. Antes dapartida, ainda pudemos apreciar a beleza do edifício que, a presença de andaimes,permite adivinhar obras de restauro. Graças a Deus! Logo no átrio da entrada, antes deacedermos às linhas do comboio, vemos que as paredes estão forradas de azulejos que, àesquerda, reproduzem o Torneio de Arcos de Valdevez - século XII e, à direita, retratamo Infante D. Henrique na Conquista de Ceuta – século XV. Partimos à hora marcada,pela linha do Tua, rumo à Régua. À nossa direita, ainda nos foi permitida uma últimaespreitadela ao Douro e à Ponte D. Luís. Passámos por Paredes, Ermesinde, Penafiel eMarco de Canaveses, terra da portuguesíssima Carmen Miranda, contudo aclamada emHollywood como, pasme-se, brasileira. O sufocante calor que se fazia sentir nacarruagem só era suavizado, de quando em vez, por uma tímida brisa que nos entravapela meia janela aberta. Fazia lembrar aqueles velhos comboios que se arrastamliteralmente pelos Andes, por entre montes e vales, salpicados aqui e ali de pequenoslugarejos. Só faltavam os porcos e as galinhas a saltar dos colos dos passageiros. Daquipara a frente, a até agora sensaborona paisagem começa a mudar. Surge-nos agora o rio,serpenteando por entre as montanhas. Estamos no Douro vinhateiro e os socalcoscomeçam a aparecer. Lá ia o nosso comboio, leve, leve!... Vamos descendo e o rio estáagora quase ao alcance da mão. Já cheira a cruzeiro e já se começam a ver os barcos dosditos, rabelos ou não. O Milénio do Douro, o Barcadouro... E o trem lá vai gemendosobre os carris, balançando-se e balançando-nos os esqueletos e os alicerces. Rio abaixoe rio acima só se vêem pequenos iates, barcos a motor e motas de água. Num pequenolugarejo, algures pelo caminho, vimos o nome de um restaurante que espelha bem arealidade gastronómica nacional – Barriga Farta!...

Chegámos à estação da Régua por volta da uma tarde e um autocarro leva-nosao Solar da Rede para o apetecido já almoço. Também aqui ficámos a saber que já nãopernoitaríamos em Lamego mas sim em Vila Real. Baita surpresa!... Lá chegámos aosolar, encarrapitado no alto e bem no meio das vinhas. Cá em baixo, o Douro e vinhas emais vinhas. Estamos na localidade da Rede, que dista uma dezena de quilómetros deLamego. No velho solar, agora transformado em Pousada, foi-nos servido um lautoalmoço. Primeiro, antes de entrarmos, ainda petiscámos pequenos croquetes e diminutosrissóis, acompanhados de vinho moscatel e de limonada fresca. Já instalados edevidamente refrescados pelo potente ar condicionado, serviram-nos, como entrada,uma salada de atum com cubinhos de pimento - dos verdes, dos amarelos e dosvermelhos – cebola, tomate e molho vinagreta, devidamente acondicionados numa folhade massa filo enrolada em cornucópia. Depois veio um lombo de porco recheado comameixas, acompanhado de batatas coradas e arroz de forno perfumado com folhas dehortelã. Para sobremesa, uma generosa fatia de torta de laranja. Tudo devidamenteregado com vinho branco e tinto e fresca água mineral. Ah, já me esquecia que, à laia de

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acompanhamento da refeição, ainda havia repolho salteado com bacon. Estava tudodivinal. Depois do repasto, retornámos à Régua para depois irmos visitar o Mosteiro deSão João de Tarouca. Ou o que dele resta, a Igreja. Deste, o primeiro da Ordem deCister a ser instalado no nosso país, hoje só restam ruínas. O templo até está bemconservado, depois das obras que experimentou aqui há um bom par de anos. Vimos oseu magnífico órgão, à direita, onde pudemos apreciar uma figura masculina que,manobrada pelo tocador, abre e fecha a boca como se estivesse a entoar os cânticos.Também uma magnífica tela de Vasco Fernandes, vulgo Grão Vasco, muito semelhanteao S. Pedro no Cadeirão do Papa. Ao invés do Sumo Pontífice, temos a Virgem com oMenino ao colo. Ainda antes do altar-mor, apreciámos demoradamente o cadeiral docoro e ficámos a conhecer os truques dos monges quando toda a gente pensava quetinham que se levantar para cantar. Afinal de contas, estavam, sim, amparados nestesmesmos cadeirais, com o rabiosque sorrateiramente pousado sobre uma tábua, se assimlhe podemos chamar, estrategicamente colocada na parte superior do assento da cadeiraquando este está recolhido. Espertinhos!... Ainda lá vimos uma magnífica telaretratando o arcanjo S. Miguel, obra de discípulos de Grão Vasco. Dos lados do altar-mor, apreciámos quatro painéis de azulejos, alusivos precisamente à criação destemosteiro. Antes de entrarmos na sacristia, ainda nos foi mostrado o túmulo de D. Pedro,filho bastardo de D. Dinis, o maior e mais alto existente em Portugal. De facto, édescomunal. Também lá se encontrava o de sua esposa, mas, em tempos idos, terádesaparecido de vista. Parece que foi encontrado em casa de um lavrador que entendeuque era muito mais útil como arca para cereais. A muito custo, lá foi persuadido avendê-lo. Hoje pode ser visto no Museu de Lamego. Na sacristia, rica em frescos eazulejos policromados, ainda nos foi dado ver alguns relicários. Dali demos um salto àUcanha, para visitarmos e atravessarmos a pé a sua velha ponte medieval. Para terminaro dia, antes de seguir viagem para Vila Real, ainda fomos ao Santuário de NossaSenhora dos Remédios, em Lamego. Como já conhecíamos, ficámos calmamente adescansar a uma sombra, enquanto os mais valentes foram convidados a descer asmuitas centenas de escadas deste templo mariano. Pelo menos até ao local onde aestrada as interrompe. Aí seriam apanhados pelo autocarro. Deve dizer-se que secontaram pelos dedos de uma das mãos os que aceitaram o repto...

Percorremos agora montes e vales, por uma estrada rasgada por entre fundasgargantas rochosas. Vinhas a abarrotar de cachos fazem adivinhar estar relativamentepróxima a época das vindimas. Como não podia deixar de ser, por estas bandasabundam as adegas cooperativas e os grémios de viticultores. A paisagem é medonha!Bela, mas terrífica. Precipícios e desfiladeiros abruptos, fazem-nos, a cada passo, virar acara para o outro lado. O verde é deslumbrante, é certo, mas o cenário tira-nos o fôlegoe faz-nos subir os níveis de adrenalina... Não são propriamente os fiordes da Noruega,

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mas quase!... Chegámos ao nosso hotel - Mira Corgo - por volta da hora do jantar. Queaconteceu após um breve descanso. Depois de uma sopinha de legumes que nos forrou oestômago, vieram umas postas de pescada frita, cobertas com um molho de cebolada,acompanhadas de batata cozida. Também uma refrescante salada de alface, tomate epepino, a que se seguiu uma salada de frutas e um café. Depois do jantar, fomos daruma volta pela cidade que ainda não conhecíamos. Saímos do hotel e virámos àesquerda, seguindo uma placa com uma seta que nos indicava o Tribunal e a Sé. Depoisde passarmos o primeiro, lá chegámos a uma igreja. Contudo, ficámos sem saber se eraa Sé. Nada havia a identificá-la. Pareceu-nos pequena demais para ser a Catedral.Continuámos e, virando à direita, fomos ter ao local de partida. Atravessámos a estradae fomos dar ao largo da Câmara Municipal. Repuxos de água, cuidadosamenteiluminados, jorravam alternadamente e aumentavam gradualmente de intensidade. Eramum convite às crianças presentes para uma valente molha. Só a custo, e quase inextremis, os pais as conseguiam retirar. Também, o forte calor que se fazia sentir,ajudava à missa!... Quando demos conta, estávamos numa pequena casinha, toda depedra, identificada com uma placa como tendo sido o berço de Diogo Cão, o navegadorque, noutros idos, chegou primeiro à foz do rio Zaire e, consequentemente, descobriuAngola. Virámos depois à direita e, como ainda era cedo, fomos até ao bar do hotel.Bebemos uma coca-cola fresca com uma rodela de limão. Depois de dois dedos deprosa, lá fomos dormir. O dia seguinte, o derradeiro destas já longas férias, estavadestinado para a descida do Douro, agora de barco.

Depois do pequeno almoço, fomos de autocarro até ao cais da Régua onde jános aguardava o Princesa do Douro. Começámos a viagem por volta das oito e meia, auma velocidade de cruzeiro de 11 nós, que é como quem diz, pouco mais de vintequilómetros por hora. Iríamos passar por duas eclusagens, nas barragens do Carrapateloe de Crestuma/Lever, respectivamente com 35 e 14 metros de desnível. De forma calmae pachorrenta, lá fomos avançando pelas calmas águas do Douro. Como um grande emetálico hipopótamo pelas lamacentas águas de um qualquer rio africano. Ao alto,pequenas casinhas salpicavam o verde do cenário, por entre os socalcos de vinhas aperder de vista, como que presas por gigantescos e invisíveis agrafos. À nossa direita,observámos a estância balnear das Caldas de Moledo e, pelas curvas apertadas daestrada que serpenteia monte abaixo, carros e autocarros vão certamente fazendoarregalar o olho dos seus ocupantes, perante tão magníficas, mas também aterradoras,vistas. De cortar a respiração, mesmo aos mais intrépidos!... Mais adiante, depois decruzarmos uma destilaria (?), pelo menos foi-nos apresentada como tal, de vinho doPorto, o rio estreita o seu curso numa garganta mais estreita, ladeada de grandespenedos de granito. Aqui fez-nos lembrar o seu congénere Reno. Só faltava o rochedode Lorelei... Passamos agora por uma Nossa Senhora da Boa Viagem, imagem de culto

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dos ancestrais marinheiros de outras épocas que cruzavam o Douro com os seus barcosrabelos. À proa do barco, através das translúcidas águas do rio, de quando em vezvíamos revoadas de peixes que assomavam à tona, como que cumprimentando oscruzeiristas. Para as bandas de uma pequena localidade de nome Mosteirô, à nossaesquerda, testemunhámos uma procissão. À distância a que nos encontrávamos, não nosfoi possível identificar os santos que seguiam nos andores que os fiéis transportavamaos ombros. Já próximo da barragem do Carrapatelo, os passageiros que se encontravamà proa foram convidados a entrar no barco. Era preciso preparar a embarcação para aprimeira eclusagem. Já na albufeira da barragem, fomos saudados por uma chusma demotas de água e pequenos barcos a motor. Do alto da barragem, inúmeros mirones,decerto já sabedores da eminente eclusagem, marcada para as dez e quarenta e cinco,aguardavam o desenlace das operações. Ainda antes, fomos apresentados à Quinta doCarrapatelo, famosa por ter sido assaltada pelo Zé do Telhado. O afamado amigo doalheio que, contudo, tinha a particularidade de roubar aos ricos para dar aos pobres.Exactamente o contrários dos dias de hoje!... Com o coração nas mãos, assistimos a umespectáculo ímpar e nunca havíamos experimentado. O barco foi metido numa espéciede compartimento cheio de água, fechado de ambos os lados, e que, através de umsistema hidráulico, vai baixando e vazando até o barco descer 35 metros. Só depois éaberta uma enorme comporta à proa. Como que por milagre já estamos de novo anavegar. Bonito, mas de cortar à faca, tal o respeitinho que impõe. Somos agoraconvidados a beber um cálice de favaios e a provar pequenos rissóis e croquetes. Umaespécie de aperitivo, antes do almoço. Depressa chegámos ao cais de Bitetos e nosvimos de novo no autocarro. Íamos agora para o Convento de Alpendurada, e nãoMosteiro como vulgarmente o chamam os fazedores de folhetos turísticos. Uma vez láchegados, abrimos a boca de espanto perante tanta beleza. Por corredores lindíssimos,cobertos de azulejos policromados e enfeitados por monumentais jarrões chineses,chegámos à sala onde ia ser servida a refeição. Toda de pedra e sob uma deliciosapenumbra. Começámos por uma sopa de legumes, a que se seguiu uma carne de vitelaassada no forno e acompanhada de batatas assadas e arroz de forno cozinhado empanelo de barro. Acompanhava uma salada de alface, tomate, cebola e cenoura ralada.À sobremesa, um leite creme queimado. Sem esquecer a água fresca e o vinho branco etinto.

Após o almoço, retornámos ao autocarro que nos levou de novo ao cais deBitetos onde nos esperava o nosso barco. Uma vez lá dentro, retomámos a viagem. Deimediato, foi-nos servido o café. À nossa esquerda vimos a foz do rio Paiva, que nos foidito ser excelente para a prática de canoagem. O que veio a seguir é que os deixou comuma lágrima no canto do olho. Passávamos agora por Entre-os-Rios, pelo local dahomónima tragédia. Só depois da casa roubada é que se puseram trancas à porta. Ao

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invés de uma velha e decrépita ponte, vêem-se agora duas. Foi preciso morrer tantoinocente para, finalmente, quem de direito, arranjar dinheiro para estas infra-estruturas!... Também vimos o monumental anjo dourado que, como que soçobrado pelador, presta homenagem aos desaparecidos. Prosseguindo, passámos pela curva dalomba, a mais acentuada do Douro navegável em território luso. Faz um ângulo de 180graus e nela vimos uma praia fluvial pejada de veraneantes, dentro e fora de água,apesar do agora pouco convidativo tempo que se fazia sentir. Estava o céu nublado e umventinho que cortava. Já depois das quatro e meia da tarde passámos pela eclusagem dabarragem de Crestuma/Lever. Esta muito mais meiga que a primeira, apenas com 14metros de desnível e a última a ser construída no Douro navegável em Portugal. Masigualmente de meter respeito. A seguir veio a foz do rio Sousa, ao que parece óptimapara a prática de actividades desportivas radicais, por via das suas inúmeras quedas deágua. Num ritmo cadenciado e indolente, fizemos o resto do percurso que nos separavade Vila Nova de Gaia, onde chegámos por volta das dezoito horas. Finava-se o cruzeiroDouro Monumental que, durante dois dias, nos fez subir e descer o Douro. Faltavaagora o regresso à santa terrinha. Mal sabíamos nós que ainda nos aguardava umaúltima e desagradável surpresa! Estávamos no cais de Vila Nova de Gaia, todoremodelado e com uma magnífica zona pedonal que, sem contar, acabámos porpercorrer e ficar a conhecer. É que, sendo Domingo, não se viam taxis pelas ruas nempelo cais. E precisávamos de um que nos levasse até ao local onde iríamos apanhar oautocarro. Decidimos, então, ir a pé. Arrastando as malas, que felizmente tinham rodas,lá seguimos até onde fosse preciso. Até ao Porto. Quando nos aprestávamos a cruzar aPonte de D. Luís, a nossa sorte mudou. Eis que vimos um bendito taxi vazio, a quemfizemos sinal de paragem. Lá nos levou à zona da Batalha, onde, numa decrépita,jurássica e nauseabunda estação de camionagem, digna de um qualquer país do terceiromundo, apanhámos um autocarro da mesma estirpe. Imundo e decrépito, para nãodestoar da estação. Era o regresso a casa.

Acabavam-se as férias.Bem vindos ao terceiro mundo, doce ilusão, com ares de primeiro!...