o eurasianismo: sua influência na política externa russa pós-soviética e reflexos na política...

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O Eurasianismo: sua influência na política externa russa pós-soviética e reflexos na Política de Defesa do Brasil ESCOLA DE COMANDO E ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO ESCOLA MARECHAL CASTELLO BRANCO Maj Eng HERMES LEÔNEO MENNA BARRETO LARANJA GONÇALVES Rio de Janeiro 2014

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O Eurasianismo: sua influência na política externa russa pós-soviética e reflexos na Política de Defesa do Brasil

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  • (INTENCIONALMENTE EM BRANCO)

    O Eurasianismo: sua influncia na poltica

    externa russa ps-sovitica e reflexos na

    Poltica de Defesa do Brasil

    ESCOLA DE COMANDO E ESTADO MAIOR DO EXRCITO ESCOLA MARECHAL CASTELLO BRANCO

    Maj Eng HERMES LENEO MENNA BARRETO LARANJA GONALVES

    Rio de Janeiro

    2014

  • Maj Eng HERMES LENEO MENNA BARRETO LARANJA GONALVES

    O Eurasianismo: sua influncia na poltica

    externa russa ps-sovitica e reflexos na

    Poltica de Defesa do Brasil

    Dissertao apresentada Escola de Comando e Estado-Maior do Exrcito, como um dos requisitos para aprovao no Programa de Ps-graduao stricto sensu de Mestrado em Cincias Militares.

    Orientadora: Profa. Dra. Adriana Aparecida Marques

    Rio de Janeiro

    2014

  • G635e GONALVES, Hermes L.M.B.L. O eurasianismo: sua influncia na poltica externa russa ps-sovitica e reflexos para a poltica de defesa do Brasil. / Hermes L. Menna Barreto

    Laranja Gonalves. 2014. 134 f.; il.: 30 cm. Dissertao (Mestrado) Escola de Comando e Estado-Maior do

    Exrcito, Rio de Janeiro, 2014.Bibliografia: f. 124-134.

    1. Geopoltica; 2. Poltica. 3. Relaes Internacionais. I. Ttulo

    CDD 355.45

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, Pai todo poderoso, e ao nosso senhor Jesus Cristo, pela proteo

    concedida em todos os momentos e por ter me proporcionado a sade e a energia

    necessrias para a realizao deste trabalho cientfico.

    minha querida esposa, Andra Cristina, por todo amor, compreenso,

    pacincia, e irrestrito apoio para que esta dissertao chegasse a seu termo. A sua

    presena ao meu lado um constante incentivo para que eu busque maximizar meus

    eventuais pontos fortes e minimizar as minhas inevitveis oportunidades de

    melhoria.

    minha orientadora, a incansvel professora-doutora Adriana Aparecida

    Marques, pela segura e oportuna orientao acadmica que me foi prestada, sem a

    qual dificilmente concluiria o presente trabalho.

    Ao professor-doutor Andr Roberto Martin, pelos oportunos e enriquecedores

    conhecimentos e orientaes transmitidos durante suas significantes visitas ECEME,

    oportunidades mpares na qual, face aos valiosos dados que apresentou, nos fez

    sentir a necessidade de continuar estudando a Geopoltica brasileira.

    professora-doutora Selma Lcia de Moura Gonzales, agradeo pelas

    sugestes, sempre pertinentes, que vem sendo fundamentais para o aperfeioamento

    tanto do presente trabalho quanto da minha compreenso da complexa conjuntura

    atual.

    Ao Senhor Tenente-Coronel Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon, pelo

    incansvel trabalho de coordenao, inestimvel apoio na obteno de diversas

    fontes de consulta, de difcil obteno no Brasil, permitindo uma pesquisa bem mais

    abrangente e completa.

    Aos meus colegas de programa de ps-graduao 2013-2014 agradeo pelas

    valiosas sugestes, crticas e recomendaes as quais muito contriburam para elevar

    a qualidade do presente trabalho dissertativo.

    Aos meus pais, Hermes e Maria Cristina, pelo exemplo de toda uma vida

    dedicada famlia e pela fora que fizeram para que tivesse a chance de frequentar

    as melhores escolas que lhes foi possvel me propiciar.

    nossa querida Antonela, onde estiver.

    Aos soldados do Brasil, de todos os tempos.

  • RESUMO

    Esta dissertao busca examinar a escola geopoltica do Eurasianismo, sua influncia

    na poltica externa da Federao Russa, desde o fim da antiga Unio Sovitica, e os

    reflexos para a Poltica de Defesa do Brasil. Inicialmente a pesquisa discute as

    condicionantes geopolticas que formaram a atual configurao, a atuao

    internacional e a identidade do Estado Russo ao longo de sua histria. A seguir, o

    estudo passa a expor as caractersticas fundamentais dos diversos tipos de

    Eurasianismo que surgiram na Rssia desde o incio do sculo XX, convergindo

    finalmente para o chamado Eurasianismo contemporneo, ou Neo-Eurasianismo.

    Esta escola de pensamento possui um conjunto de ideias baseado na Geopoltica, na

    Filosofia e na cultura, mas tambm no pensamento do Eurasianismo Primitivo,

    desenvolvido por emigrados russos entre os anos de 1920 e 1930. Esta base terica

    mltipla foi reforada, ainda, com o pensamento de diversos tericos do Ocidente. A

    nova geo-ideologia russa, que preferimos chamar no presente estudo de

    Eurasianismo contemporneo, vem sendo exposta fora da Rssia principalmente pelo

    cientista poltico russo Alexandr Dugin, que o autor de diversos livros sobre o assunto.

    Finalmente, a pesquisa analisa a Poltica Externa russa ps-sovitica, influenciada

    pelos eurasianos, buscando ressaltar os eventuais reflexos dessa para o

    planejamento estratgico de defesa do Brasil neste comeo de sculo XXI.

    Palavras-chave: Rssia Eurasianismo Brasil

  • ABSTRACT

    This dissertation seeks to examine the eurasian geopolitical school, its influence in the

    Russia Federation Foreign Affairs policies since the end of the Soviet Union and its

    consequences for the brazilian defense policy. Initially the research discusses the

    geopolitical imperatives that has originated the presente structure, the international

    behavior and the identity of the Russian State thoughout its history. Next, the study

    starts explaining the basic features of the different types of Eurasianisms that ocurred

    in Russia since the beginning of 20th century, finally converging to the so called Neo-

    Eurasianism, or modern Eurasianism.This school of thought has a set of ideas based

    on geopolitics, philosophy and culture, but also in the thought of the early Eurasianism,

    developed by Russians emigres in the 1920s and 1930s. This multiple framework

    was reinforced yet with the thoughts of various western thinkers. The new russian geo-

    ideology, that we prefer to denominate modern Eurasianism, has been disseminated

    outside Russia specially by the russian political scientist Alexandr Dugin, who has

    authored a dozen books on the issue. Finally, the research analyses the post-Soviet

    Russian foreign policies, wich has been influenced by the eurasian thought, seeking

    to stress its consequences for the brazilian defense estrategical planning in the

    beggining of 21st century.

    Key-words: Russia Eurasianism - Brazil

  • LISTA DE IMAGENS

    Imagem 01 - Mapa topogrfico da Rssia, dezembro de 2013.................................14 Imagem 02 - Componentes da organizao de cooperao de Shanghai................17 Imagem 03 - Representao dos grandes espaos de Dugin...................................18 Imagem 04 - A rea piv revista por Mackinder em 1919..........................................19

    Imagem 05 - Diviso do estudo da Geopoltica pela Escola Crtica...........................27 Imagem 06 - Braso de Armas da Rssia..................................................................31 Imagem 07 - Corredores histricos de invaso da Rssia.........................................36 Imagem 08 - Mapa de Brzezisnki do Tabuleiro Eurasitico........................................45 Imagem 09 - Flmula do nacional-bolchevismo russo...............................................58

    Imagem 10 - General Igor Rodionov..........................................................................60 Imagem 11 - General Leonid Ivashov.........................................................................61 Imagem 12 - Alexandr Dugin em 2014.......................................................................62 Imagem 13 - Evoluo temporal dos Eurasianismos.................................................66 Imagem 14 - Eixos geoestratgicos russos sobre o mapa da Eursia......................75 Imagem 15 - Ideologia governamental na Rssia (1991-2014) ................................88 Imagem 16 - Prioridades para atuao internacional do Exrcito Brasileiro..............98 Imagem 17 - Poder naval comparado de algumas potncias....................................99 Imagem 18 - PNB 2013 comparado.........................................................................104 Imagem 19 - Expanso do dispndio militar russo comparado ao dos EUA...........108 Imagem 20 - Indstria aeroespacial ucraniana........................................................114 Imagem 21 Plataforma Universal Armata T99....................................................116

  • Imagem 22 Sistema Pantsir S1.............................................................................117 Imagem 23 - Caa Sukhoi T-50...............................................................................117

    LISTA DE ABREVIATURAS

    BRICS arranjo Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul (acrnimo)

    CEI Comunidade dos Estados Independentes

    CS/ONU Conselho de Segurana da ONU

    DAEBAI Diretriz para Atividades do Exrcito Brasileiro na rea Internacional

    EB Exrcito Brasileiro

    ECEME Escola de Comando e Estado-Maior do Exrcito

    EDN Estratgia Nacional de Defesa

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FAB Fora Area Brasileira

    GRU Glavnoye Razvedyvatel'noye Upravleniye Servio Militar de Inteligncia

    MD Ministrio da Defesa

    MRE Ministrio das Relaes Exteriores

    OCX Organizao de Cooperao de Xangai

    ONG Organizao No-Governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    OPEP Organizao dos Pases Produtores de Petrleo

    OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte

    PEB Poltica Externa brasileira

    PCFR Partido Comunista da Federao Russa

    PLDR Partido Liberal Democrtico da Rssia

    PNB Produto Nacional Bruto

    SIPLEx Sistema de Planejamento Estratgico do Exrcito

    SISGAAz Sistema de Gerenciamento da Amaznia Azul

    UNASUL Unio de Naes Sul-Americanas

    URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

    ZOPACAS Zona de Paz e Cooperao do Atlntico Sul

  • SUMRIO

    1. INTRODUO.......................................................................................................13

    2. FUNDAMENTAO TERICAS E CONCEITUAIS..............................................23

    3. A GEOPOLTICA DA RSSIA...............................................................................31

    3.1 A Federao Russa hoje.......................................................................................32

    3.2 Uma anlise da geopoltica russa.........................................................................35

    3.3 A geoestratgia ocidental sobre a Eursia............................................................43

    4. O EURASIANISMO NA RSSIA PS-SOVITICA...............................................49

    4.1 Consideraes iniciais..........................................................................................49

    4.2 A fragmentao do Eurasianismo.........................................................................51

    4.2.1 O Eurasianismo clssico.................................................................................52

    4.2.2 O Eurasianismo de transio..........................................................................53

    4.2.3 O Eurasianismo filosfico de Panarin............................................................54

    4.2.4 A politizao: o nacional-bolchevismo..........................................................56

    4.2.5 O Eurasianismo e os militares russos...........................................................59

    4.3 A sntese: o Eurasianismo de Dugin.....................................................................62

    4.4 O Eurasianismo e a questo da identidade russa..................................................67

    5. O PENSAMENTO GEOPOLTICO EURASIANO...................................................71

    5.1 Consideraes Iniciais..........................................................................................71

    5.2 Os grandes espaos.............................................................................................75

    5.3 O eixo europeu.....................................................................................................77

    5.4 O eixo asitico......................................................................................................78

    5.5 O eixo iraniano......................................................................................................79

    6. A POLTICA EXTERNA DA FEDERAO RUSSA..............................................81

    6.1 Consideraes iniciais..........................................................................................81

    6.2 Cooperao com o Ocidente.................................................................................83

    6.3 Reafirmao da potncia emergente....................................................................86

    6.4 O esforo multilateral e a aproximao com o Brasil............................................89

    7. O PLANEJAMENTO ESTRATGICO BRASILEIRO...........................................94

    7.1 As estratgias nacionais russas...........................................................................94

  • 7.2 O planejamento estratgico Brasileiro.................................................................96

    7.3 A influncia da atual cultura estratgica brasileira..............................................102

    7.4 Uma proposta de geo-ideologia autctone.........................................................104

    8. REFLEXOS PARA A POLTICA DE DEFESA DO BRASIL.................................106

    8.1 A Rssia e a conjuntura recente........................................................................106

    8.2 Reflexos para a Defesa do Brasil........................................................................112

    9. CONCLUSO.......................................................................................................120

    REFERNCIAS........................................................................................................124

  • 13

    1 INTRODUO

    A chegada de cerca de 200 soldados das tropas aeroterrestres russas ao

    Aeroporto de Pristina, na Srvia, em 12 de junho de 1999, foi uma ao de inesperada

    da Rssia durante o desfecho da Crise do Kosovo, ocorrida naquele mesmo ano

    (ANTONENKO, 1999). Para os pases da Organizao do Tratado do Atlntico Norte

    (OTAN), que esperavam ocupar o estratgico aeroporto conforme o planejamento

    anterior, a movimentao das tropas da Rssia, inesperadamente, evidenciou uma

    sensvel mudana da postura internacional daquele pas.

    De fato a Rssia, desde o fim da Unio Sovitica, e da Guerra Fria, em 1991,

    estivera sempre disposta a cooperar com os EUA e seus aliados1. Segundo Kerr, a

    cooperao irrestrita com os membros da OTAN2 se deu naquele perodo, de 1991

    at meados dos anos 1990, pelo fato da cpula diplomtica e governamental da poca

    ser favorvel a uma aproximao com os europeus e norte-americanos (KERR, 1995).

    Atualmente, a Federao Russa (Imagem 01 abaixo), que no presente estudo

    trataremos tambm pelo termo Rssia, desde que foi formada, dos escombros da

    antiga Unio Sovitica, vem sendo ator indispensvel na arena internacional,

    sobretudo a partir do incio deste sculo XXI. nessa poca que, com a ascenso ao

    poder de Vladimir Putin, o Estado russo reinicia o reforo de seu poder nacional,

    almejando usar a geopoltica como fator primordial de reconquista do antigo espao

    controlado pela Unio Sovitica.

    Na sequncia do colapso sovitico, gradualmente, as elites russas trataram

    de formular uma doutrina que permitisse o soerguimento da grandeza, territorial e

    poltica, da Rssia czarista, e mesmo do Imprio Sovitico, recm-desaparecido.

    Dentre as diversas correntes que surgiram, destacou-se o Eurasianismo

    contemporneo, tambm conhecido por Neo-Eurasianismo, cujos princpios tericos

    preconizam o reestabelecimento da rea de domnio poltico dos soviticos, sob uma

    nova ideologia que substituiria a comunista.

    1 Aqui tratados como Ocidente, no sentido da Comunidade de Segurana pensada por Deutsch e reelaborada por Adler e Barnett (ADLER e BARNETT, 1998). Para Isakova, o Ocidente englobaria a Amrica do Norte, a Europa Ocidental, alm da Austrlia e Nova Zelndia. (ISAKOVA, 2005) 2 Organizao do Tratado do Atlntico Norte - Aliana estruturada a partir de 1949, pelos EUA e pases do chamado Ocidente, para se opor Unio Sovitica e seus aliados totalitrios, que posteriormente formaram o Pacto de Varsvia (nota do autor)

  • 14

  • 15

    Mas, antes de prosseguir, pode ser bom perguntar: o que seria a geopoltica

    to prezada pela atual elite governante russa? No h uma resposta fcil para essa

    questo, visto que no h um conceito nico sobre o termo.

    A Geopoltica clssica teve incio, como uma corrente de pensamento

    autnomo, por volta do final do sculo XIX. Nessa poca, pensadores com Friedrich

    Ratzel, Rudolph Kjelen, Alfred Mahan, Halford Mackinder e outros consolidaram os

    primeiros conceitos e teorias sobre a geopoltica chamada clssica ou tradicional.

    (OTUATHAIL, 2006).

    A Rssia tambm teve seus geopolticos e teorias da linhagem clssica, nos

    sculos XIX e XX, como por exemplo: Soloviev e Chenenin (Aliana da Ortodoxia

    crist com o Czarismo), Trubetskoy (Eurasianismo clssico), Danilevsky (Pan-

    Eslavismo) Gorshkov (Globalismo naval sovitico). (GREGOR, 1989, p.36; ISAKOVA,

    2005, p.10-12).

    O Eurasianismo atual, por sua vez, uma doutrina geopoltica lastreada nos

    aspectos teorizados principalmente pelo cientista poltico russo Alexandr Dugin. Essa

    doutrina trata-se de uma viso renovada e expandida do Eurasianismo clssico de

    Trubetskoy, que busca, da mesma forma, orientar as aes geoestratgicas da Rssia

    preferencialmente para a sia, e especialmente para a sia Central (SOUZA, 2012;

    GREBENIKOVA, 2012).

    A Rssia, desde os primrdios de sua formao, em meados do sculo XII,

    sempre foi um Estado influenciado tanto pela herana cultural europeia, quanto por

    uma forte influncia asitica. Para Kerr, apesar de o Estado russo ter sua origem

    histrica e cultural na Europa, desde a expanso para o leste desencadeada a partir

    do sculo XVI, quando vastos territrios asiticos foram incorporados pelos russos, tal

    percepo predominantemente europeia comeou a ser alterada (KERR, 1995).

    Ainda segundo Kerr, no foi seno no sculo XX, contudo, que o conceito, ou

    seja, o discurso geogrfico de Eursia, como uma entidade poltica surgiu (KERR,

    1995). Para Matos, contudo, a sistematizao, ainda nos anos 1920, da teoria

    geopoltica do Eurasianismo, baseou-se em pensamento russo de razes bem mais

    antigas, remontando ao sculo XIX e anteriores (MATOS, 2012). O que importa que

    essa viso de mundo eurasiana, teorizada no sculo passado, sempre esteve pronta

    para justificar a expanso, e hegemonia, russo-sovitica sobre a sia Central e

    Extremo-Oriente (ISMAILOV e PAPAVA, 2010).

  • 16

    Para esses eurasianistas tradicionais, tambm conhecidos como emigrados3,

    ou a Rssia se tornava uma nao eurasitica, uma grande nao, ou seja, um imprio,

    ou nada deveria ser (ISMAILOV e PAPAVA, 2010). No entender de Ersen, por sua vez,

    os eurasianistas preconizam a ideia do Imprio Eurasiano, de forma distinta dos

    imprios russo e sovitico, a ser estabelecido por meio do fortalecimento do poder

    geopoltico e a formao de uma comunidade turco-eslava (ERSEN, 2004).

    A partir da ascenso de Vladimir Putin, efetivamente, ao poder na Rssia, em

    2000, percebeu-se uma sensvel mudana de posio na poltica externa do pas.

    Para Smith, contudo, tal mudana j comeara a ocorrer a partir de 1993, quando,

    ainda no Governo de Boris Yeltsin, para agradar setores descontentes, foram

    permitidas certas contestaes ao discurso pr-Ocidente vigente na cpula (SMITH,

    1999).

    Com a chegada do movimento poltico de Putin (o Rssia Unida) ao poder,

    consolidou-se uma crescente discordncia da poltica de aproximao com os EUA e

    a Europa Ocidental, que, alis, j fora esboada a partir da nomeao para o Ministrio

    dos Negcios Estrangeiros de Yevgeny Primakov, em 1996, e mesmo antes

    (ZAPOLSKIS, 2007; MAZAT e SERRANO, 2012 e MANKOFF, 2012, p.07).

    Tal afastamento pode ser exemplificado pelos seguintes fatos, dentre outros:

    o fim do alinhamento automtico russo aos desgnios da OTAN, a reafirmao do

    poder russo na regio do Cucaso (sob ameaa de aderir OTAN), a criao da

    Organizao de Cooperao de Xangai (OCX), o suporte velado a adversrios dos

    EUA e do Ocidente, a retomada do apoio ancestral aos eslavos do sul nos Blcs

    (questo do Kosovo), dentre outras medidas de conteno ocidental (ZAPOLSKIS,

    2007).

    A OCX, organizao que rene a Rssia a China, alm de alguns outros

    pases da Eursia4, foi o formato diplomtico que, na prtica, tentou evitar a insero

    da OTAN, na sia Central (SOUZAS, 2012). Visando, oficialmente, combater trs

    malefcios regionais: o separatismo, o terrorismo e o extremismo, a OCX rene alguns

    3 So chamados de emigrados, por que em sua maioria tais intelectuais eram russos que fugiram do regime comunista instaurado formalmente na Rssia com o fim da guerra civil e a fundao da Unio Sovitica, em 1922 (nota do autor) 4 Atualmente, segundo o site da organizao so membros da OCX: China, Rssia, Casaquisto, Usbequisto, Quisguisto, Tadjiquisto. So membros observadores Ir, Paquisto, ndia e Monglia. So parceiros de dilogo: Turquia, Sri Lanka e Belarus. O Turcomenisto eventualmente participa como observador e o Afeganisto j foi convidado ocasional do grupo (OCS, 2014).

  • 17

    dos maiores produtores de energia do mundo, sendo hoje, de fato, um frum regional

    contrrio aos EUA (KHANNA, 2008).

    Imagem 02 Organizao de Cooperao de Shanghai em 2008 (em vermelho)

    Fonte:STRATFOR

    Voltando a Alexandr Dugin, em suas pesquisas, ele se inspirou em diversos

    geopolticos da Europa Ocidental e dos EUA, com destaque para o geopoltico alemo

    Karl Haushofer. Este, foi um dos tericos do chamado poder terrestre, e um dos

    grandes idelogos do famoso espao vital (Lebensraum) nazista, que teorizou um

    mundo dividido nas chamadas pan-regionen, ou pan-regies (traduo nossa),

    verdadeiros espaos de hegemonia, e as redesenha para defender, contra o mundo

    unipolar da globalizao atual, um novo modelo de globalizao multipolar. Trata-se

    dos chamados Grandes Espaos, representados na imagem 3 abaixo.

    Os tericos do poder terrestre, seguidos atentamente por Alexandr Dugin

    ressaltam a Teoria do Poder Terrestre, elaborada pelo gegrafo britnico Halford J.

    Mackinder, em 1904, de que quem controlar o Heartland controlar o mundo. Afirma

    que a geopoltica internacional ainda vive do confronto de potncias terrestres

    (Continentalistas ou Eurasianos) e potncias martimas (Atlantistas) (SOUZA, 2012).

  • 18

    Imagem 03 - Representao dos grandes espaos de Dugin

    Fonte: International Eurasian Movement

    Para Mackinder, o chamado piv da Eursia conteria, inicialmente, a sia

    Central e a poro norte da Eursia at as proximidades do Oceano rtico, conforme

    seu famoso artigo O piv geogrfico da Histria, de 1904. Tal artigo foi a base para

    diversos outros estudos sobre o poder terrestre e a Eursia (MACKINDER, 1904).

    Cabe notar que nessa primeira verso, o pensador britnico fez questo de

    demonstrar que o corao da Eursia seria insuscetvel de ser atingido pelo poder

    naval. A segurana contra as foras do poder martimo estaria coerente com o

    pensamento de outro gegrafo famoso, o norte-americano Alfred Thayer Mahan.

    Para Mahan, por sua vez, o poder martimo seria o mais importante para

    alguma potncia que deseje atingir a supremacia mundial. Segundo Meira Mattos, a

    estratgia do poder martimo resultou a estratgia baseada no centro do poder

    mundial localizado no territrio biocenico norte-americano (enorme subcontinente

    debruado sobre os dois maiores oceanos do planeta) e domnio dos estreitos e

    passagens ocenicas (MEIRA MATTOS, 2002, p.147).

    Posteriormente, Mackinder revisou seu pressuposto inicial, e em seu artigo

    seguinte, Ideais Democrticos e Realidade, de 1919, ele apresenta o piv, ou

  • 19

    Heartland, como sendo uma vasta extenso da Eursia geogrfica. A imagem 4,

    abaixo, faz a representao dessa viso revisitada da rea piv da histria.

    Imagem 04 A rea piv revista por Mackinder em 1919

    Fonte: Mackinder Forum, 2013

    A Rssia, portanto, nesta ltima dcada, tem procurado interagir, mais

    intensamente, com os pases de seu entorno, como por exemplo, por meio da OCX,

    acima mencionada, mas tambm com outras potncias emergentes, dessa feita por

    meio do chamado agrupamento BRICS 5 . Este, inserido no eixo das relaes de

    cooperao Sul-Sul6, formado por pases em ascenso, a saber: Brasil, Rssia, ndia,

    China e frica do Sul (KOSOLAPOV, 2013).

    Em anos recentes, o Brasil, por sua vez, vem intensificando seus esforos

    para uma maior participao nos negcios internacionais, o que inclui, por exemplo

    uma agressiva poltica de exposio internacional (abertura de novas embaixadas,

    crescente participao em misses de paz da ONU, aes de liderana no G20 tanto

    5 Para o Ministrio das Relaes Exteriores brasileiro, o agrupamento BRICS um mecanismo inter-regional que abre para seus cinco membros (Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul) um espao para (a) dilogo, identificao de convergncias e concertao em relao a diversos temas; e (b) ampliao de contatos e cooperao em setores especficos. (BRASIL, 2014) 6 Para Lima, a cooperao Sul-Sul seria a originalmente realizada entre pases do antigo Terceiro Mundo, porm renovada a partir da formao do G-20, na Conferncia de Cancun, em 2003. Nessa ocasio, pases como o Brasil passaram a questionar a hipocrisia dos pases desenvolvidos, bem como demandar mais concesses econmicas dos mesmos, particularmente na rea agrcola (LIMA, 2005)

  • 20

    no poltico como no econmico, busca de proeminncia na questo ambiental, e a

    aproximao com a Rssia, a ndia, a China e a frica do Sul, por meio do

    Agrupamento BRICS.

    Portanto, coerentemente com a sua posio geopoltica o pas vem tentando

    expandir seu poder de influncia na esfera internacional por meio de sucessivas

    interaes com pases, blocos e potncias regionais do chamado eixo sul-sul, sem

    esquecer de manter relaes com os pases mais desenvolvidos do hemisfrio norte.

    Dentre essas potncias emergentes com inter-relaes em ascenso,

    destaca-se a Rssia, ou Federao Russa, que por ser herdeira da antiga Unio

    Sovitica, recebeu um depsito residual considervel de poder poltico, econmico e

    militar (VISENTINI,2006).

    O pensamento geopoltico brasileiro, tradicionalmente, sempre buscou

    influncia poltica no continente sul-americano e, por vezes, no continente africano.

    Ocorre que com o rpido crescimento do pas, e tambm devido a sua prpria situao

    geopoltica tpica de um pas continental - o Brasil, naturalmente, vai tender a

    extrapolar os limites de influncia tradicional.

    Por outro lado, no campo militar, o Brasil ainda apresenta poder militar

    incompatvel com suas ambies internacionais. Atualmente, o pas aparece na 14a

    posio do ranking de potncias militares convencionais montado anualmente pela

    Global Firepower (GLOBAL FIREPOWER,2014). O pas deve fazer uso dos conceitos

    do softpower (cultura, empatia, expresso lingustica), incluindo a sua vasta tradio

    diplomtica, mas o hardpower vem sendo esquecido.

    Face ao exposto, a presente dissertao pretende responder como a viso

    geopoltica do Eurasianismo, ou ainda, como veremos, dos variados tipos de

    Eurasianismo, vem influenciando a poltica externa russa, destacando especialmente

    os reflexos para a poltica de defesa do Brasil. Tal questo vem se tornando cada vez

    mais relevante, na medida em que o pas vem incrementando suas relaes com a

    Rssia, quer seja no campo bilateral, mas tambm na esfera multilateral.

    A partir das eventuais constataes acerca da atuao da Rssia no plano

    internacional pretende-se propor aes para a adequao das polticas de defesa do

    Brasil a esses cenrios. O objetivo, por conseguinte, ser lanar as ideias iniciais de

    um planejamento estratgico do Brasil visando a melhor resposta a um mundo onde

    a Rssia venha a se confirmar como grande potncia.

  • 21

    O Captulo 2 ser dedicado realizao do enquadramento terico e

    conceitual, procurando dar um rpido panorama acerca do que h de mais atual nas

    discusses sobre o Eurasianismo. Longe de esgotar totalmente o que se discutido

    sobre o tema, o intento chegar o mais prximo possvel do Estado da Arte acerca

    desse complexo e inquietante tema. Dentro desse captulo pretendemos fornecer as

    definies mais significativas para alguns conceitos que sero essenciais no decorrer

    do estudo.

    No Captulo 3 ser buscada uma breve recapitulao sobre a o pensamento

    geopoltico russo. Isso porque concordamos que cada pas, possui uma interpretao

    especfica da sua conjuntura geopoltica (CHAPMAN, 2011). Neste captulo, que ser

    uma breve volta ao passado, a ateno se voltar a que condies geogrficas e

    polticas que influenciaram a atual conjuntura geopoltica russa, justificando assim a

    atuao de sua poltica externa.

    No captulo 4 sero analisados o surgimento e a evoluo do conceito de

    Eurasianismo, a partir do sculo XX, destacando-se as variaes de sua matriz

    ideolgica central. Ao final dar-se- nfase mais destacada s propostas de Alexandr

    Dugin, que vem a ser a corrente eurasiana de mais relevncia nos dias atuais.

    Ao longo do captulo 5 sero explanados os principais aspectos geopolticos

    da escola eurasiana contempornea. A nfase ser dada nos aspectos pensados pelo

    j citado Alexandr Dugin, em sua obra principal Osnovy Geopolitiki: Geopoliticheskoe

    Budushee Rossii, ou seja, Os Fundamentos da Geopoltica: o futuro geopoltico da

    Rssia. bom ressaltar que essa obra no possui, ainda, tradues do russo para o

    portugus, no tendo sido encontradas verses completas em outras lnguas de uso

    internacional corrente como ingls, francs ou espanhol.

    No Captulo 6 ser realizada uma descrio seguida de uma anlise da

    evoluo da poltica externa russa, com nfase nos primeiros anos do sculo XXI, que

    coincidem, mais ou menos, com o mandato inicial de Vladimir Putin na presidncia da

    Federao Russa. Nesta parte, que vai enfocar a poltica externa russa dos anos

    recentes, o enfoque ser descrever os principais eventos da diplomacia russa, que

    serviro de base para os captulos mais frente.

    No captulo 7 ser feita uma reviso das estratgias nacionais e dos setores

    de defesa da Rssia e do Brasil, com nfase nos eventos desse incio de sculo. Com

    esse recorte, alis, ser dado nfase aos acontecimentos dos ltimos anos, quando

  • 22

    as duas potncias regionais esboam a concluso de algum tipo de parceria

    estratgica.

    No captulo 8 ser realizada uma breve explanao acerca das conjunturas

    presentes de Brasil e Rssia. Dentro do captulo sero postos em relevo eventos

    relacionados s questes de defesa, dando nfase queles onde sobressai a

    influncia eurasiana. Ao final, baseado nos eventos descritos sero examinadas

    ameaas e oportunidades da interao com a Rssia para o planejamento estratgico

    de defesa brasileira

    Finalmente, como concluso, sero relatados os principais resultados obtidos

    nos captulos anteriores, luz das ocorrncias recentes descritas no captulo 8, como

    os desdobramentos da parceria com a Rssia, isoladamente, e no mbito do

    agrupamento BRICS e a Crise da Ucrnia Tudo com o objetivo de aprofundar o

    conhecimento sobre as interaes aventadas, oportunidades e ameaas, no

    relacionamento entre as duas potncias emergentes.

  • 23

    2 FUNDAMENTAES TERICAS E CONCEITUAIS

    A pesquisa a ser realizada ter a Geopoltica, como paradigma principal, com

    contribuies assessrias das Relaes Internacionais, da Cincia Poltica, alm da

    Geografia Poltica e da Histria. Tendo levado em conta que o tema do estudo

    bastante complexo, foi selecionada essa perspectiva interdisciplinar para a construo

    do modelo de anlise e para a compreenso da insero do Eurasianismo no espao,

    no tempo e, mesmo, na viso poltica de outros atores internacionais que se associam

    questo.

    O uso dos termos Rssia ou Federao Russa vem sendo encontrado

    simultaneamente na literatura consultada. Segundo a prpria Constituio Federal da

    Rssia, define, em seu artigo 1, tanto faz usar um termo ou outro (RSSIA, 1993).

    No presente estudo, seguiremos a flexibilidade admitida pela prpria lei maior da

    Rssia, usando os dois temos para designar o pas.

    A Geopoltica uma disciplina que possui definio difcil, face prpria din-

    mica e complexidade do mundo atual. Para o general Meira Mattos, um grande expo-

    ente da geopoltica brasileira no sculo XX, a Geopoltica seria a poltica aplicada ao

    espao geogrfico. Do mesmo modo, mais a frente, na mesma obra, o pensador bra-

    sileiro cita o pensamento de Ratzel como o mais adequado para entendermos o con-

    ceito, por sua simplicidade: espao poder (MEIRA MATTOS, 2011, p.88).

    J para Costa, esta seria uma manipulao de alguns conhecimentos ditos

    geogrficos para a formulao de esquemas (de interesses) s polticas de poder.

    Para o autor, a Geopoltica brasileira do sculo XX voltava-se mais para a vitria do

    Estado brasileiro dentro de seus limites, quando muito tratando do espao contguo

    sul-americano (COSTA, 1992).

    Ao estudarmos atores estrangeiros, o conceito de geopoltica continua de

    complexa definio. Para Kaplan, expoente do pensamento dos EUA e dos pases-

    membros da OTAN, que aqui chamamos de Ocidente, a Geopoltica visaria:

    (...)ao estudo do ambiente externo enfrentado com que cada Estado se depara ao traar sua prpria estratgia - ambiente que envolver a presena de outros Estados, tambm lutando pela sobrevivncia e por vantagens. Em suma, a geopoltica a influncia da geografia sobre as divises humanas (KAPLAN,2012, p 62).

  • 24

    Segundo Gray (1986), que um famoso estrategista contemporneo, profes-

    sor de relaes internacionais e colaborador de diversos governos recentes dos EUA

    e da Gr-Bretanha, a geopoltica seria a relao imutvel entre a geografia e o poder

    estratgico (GRAY, 1986). Em obra posterior, o autor afirma que ela teria relaes

    com the spatial study and practice of international relations7 (GRAY, 2005).

    Mais frente, no mesmo estudo, Gray se complementa afirmando que o es-

    tudo espacial serve para avaliar os persistentes padres de ocorrncia de conflitos no

    mundo atual, calcado na disputa territorial. Para ele, portanto, a Geopoltica clssica

    seria uma variante do Realismo Clssico (GRAY, 2005).

    Para os eurasianistas como Dugin, a geopoltica seria a reconsiderao da

    histria das relaes internacionais, baseando-a na dicotomia entre a luta histrica

    entre o Atlantismo e o Eurasianismo, ou seja, o poder martimo contra o poder terrestre.

    Para os eurasianistas, a Rssia seria o centro de um imprio eurasiano imprio

    terrestre - que se oporia ao globalismo dos EUA e seus aliados o imprio martimo

    (ERSEN, 2004).

    Para Paragh Khanna, estudioso da ascenso dos pases emergentes, o con-

    ceito em tela seria simplesmente: a geopoltica a relao entre poder e espao.

    Para o autor, a geografia o que molda a geopoltica. Alm disso, Khanna coloca mais

    nfase nas relaes econmicas do que na influncia cultural ou psicolgica

    (KHANNA,2008).

    J para Dodds, um crtico da geopoltica, esta, por sua viso espacial, ou seja,

    por se preocupar com conceitos variados, tais como fronteiras, recursos, fluxos, terri-

    trios e identidades, precisa de (mais) parmetros que possam prover uma anlise e

    compreenso crtica, por mais controvrsias que possam suscitar (DODDS, 2007).

    Segundo Chapman, esse complemento surge ainda nos anos 1980, em con-

    traponto s realidades da Guerra Fria, centrada na competio ideolgica entre as

    duas superpotncias, quando surge uma escola de pensamento que combate vigoro-

    samente o paradigma geopoltico anterior.

    This perspective which is leftist in ideological orientation, seeks to chal-lenge traditional geopolitical interpretations. It criticizes what it sees as a state-centric approach to international relations; takes a hostile ap-proach to what it claims are ethnocentric, determinist, and exception-alist attributes to classical geopolitical writings; it dismisses traditional

    7 o estudo e a prtica espacial das relaes internacionais (GRAY, 2005, traduo nossa)

  • 25

    balance of power and influence analyses of international affairs; it is concerned with geographical aspects of U.S. and other Western inter-ventions in the developing world; it emphasizes rhetorical aspects of geopolitical analysis while seeking to deconstruct this literature; it challenges the strategic rationalizations used by the United States and other Western countries to portray countries such as the former Soviet Union and China and transnational terrorist groups such as al-Qaeda as geopolitical threats; and it is concerned with political rhetoric, which its proponents contend maintains Western dominance of international affairs (CHAPMAN, 2011)8.

    Para OTuathail, dessa mesma linha crtica, a Geopoltica seria o estudo da

    espacializao da poltica internacional por poderes centrais e estados hegemnicos

    (OTUATHAIL, 1996, p.60). Em outra obra, afirmou que seria a teoria redentora para

    a conceituao e prtica da poltica dos Estados (OTUATHAIL,1999).

    Posteriormente, em um manual de geopoltica que escreveu juntamente com

    outros autores, definiu a mesma como um discurso sobre a poltica mundial com uma

    nfase particular na competio estatal e nas dimenses geogrficas do poder

    (OTUATHAIL et Al, 2006). Ou seja, a nfase do autor volta-se para o aspecto

    autoritrio da geopoltica.

    Para Lacoste, gegrafo francs, e um dos prceres da Geopoltica Crtica, a

    geopoltica teria diversos usos, destacando o seu uso para justificar a chamada

    poltica de poder entre os diversos atores internacionais:

    (...) dsigne en fait tout ce qui concerne les rivalits de pouvoirs ou d'influence sur des territoires et les populations qui y vivent: rivalits entre des pouvoirs politiques de toutes sortes - et pas seulement entre des tats, mais aussi entre des mouvements politiques ou des groupes arms plus ou moins clandestins - rivalits pour le contrle ou la domination de territoires de grande ou petite taille. (LACOSTE, 2006)9.

    8 Esta perspectiva, que esquerdista em sua orientao ideolgica, busca desafiar as interpretaes geopolticas tradicionais. Ela critica o que v como uma nfase (excessiva) na centralidade do Estado nas relaes internacionais; demonstra uma viso hostil ao que afirma como atributos etnocntricos, deterministas e excepcionalistas dos escritos da geopoltica clssica; desconsidera os tradicionais (conceitos de ) equilbrio de poder e anlise de influncias na esfera internacional; preocupa-se com os aspectos geogrficos das intervenes dos EUA e de outros pases do Ocidente no mundo em desenvolvimento; enfatiza os aspectos retricos da anlise geopoltica enquanto busca desconstruir essa literatura; desafia as racionalizaes estratgicas usadas pelos EUA e outros pases ocidentais para caracterizar a antiga Unio Sovitica, a China e os grupos terroristas transnacionais, como a Al Qaeda, como ameaas geopolticas; e demonstra interesse pela retrica poltica, que seus proponentes afirmam, mantm a dominncia do Ocidente nas relaes internacionais (CHAPMAN, 2011, p.3. Traduo nossa). 9 (...) designando de fato, tudo o que diz respeito rivalidade de poderes ou influncia sobre os territrios e as pessoas que ali vivem: rivalidade entre os poderes polticos de todos os tipos - e no s entre os Estados, mas tambm entre os movimentos polticos e grupos armados mais ou menos clandestinos - rivalidade para o controle ou dominao de territrios grandes ou pequenos (LACOSTE, 2006, traduo nossa)

  • 26

    Para Flint, lembrando que a noo de poder teve bastante influncia no

    conceito de geopoltica, esta seria uma disputa acerca dos espaos e lugares,

    focando a obteno de poder (FLINT, 2006)

    Para Agnew, da mesma linha de pensamento do anterior, o estudo do impacto

    da geografia nas relaes entre Estados (AGNEW, 2000). O mesmo autor fornece

    outra definio mais elaborada: a geopoltica buscaria visualizar o mundo em termos

    de reas geogrficas avanadas, recursos naturais e acesso ao mar pelo Estado,

    como uma forma suprema de organizao, competindo com outros estados por estas

    reas e recursos (AGNEW, 1998).

    Do exposto acima, podemos concluir que a Geopoltica Crtica sobretudo

    uma viso contestadora acerca da viso de mundo moderna Ela buscaria uma

    desconstruo do pensamento geopoltico tradicional, baseado to somente nas

    questes de espao e localizao. Para os crticos, mais que isso, a geopoltica

    tradicional teria uma viso estreita, eurocntrica, estereotipada e visando a construo

    de verses e o desenvolvimento de estratgias (OTUATHAIL, 1996).

    Para OTuathail, a geopoltica crtica teria trs dimenses a serem

    perseguidas: 1) demolidora da Geopoltica Tradicional; 2) partcipe da vida estatal real;

    e 3) modificadora da viso convencional da geografia na poltica global. (OTUATHAIL,

    1994).

    Para Dodds, a Geopoltica Crtica difere da Geopoltica tradicional por meio

    de trs preocupaes: 1) a geopoltica como passada para os pblicos internos de

    cada nao, ou seja, o discurso geopoltico para uso interno; 2) a Geopoltica como

    discurso poltico que procura passar representaes geogrficas para as polticas

    globais, ou seja, o discurso geopoltico para uso externo e 3) a Geopoltica engajada

    em questes e gnero, raa e classe (DODDS, 2007, p.45)

    Alm disso, os geopolticos crticos, at para facilitar as anlises de temas

    complexos, dividiram a geopoltica crtica em trs vertentes: Geopoltica crtica formal,

    Geopoltica crtica popular e Geopoltica crtica prtica (DODDS, 2007; OTUATHAIL,

    1999). A primeira, abarcando a Geopoltica tradicional, aquela trabalhada pelos

    meios acadmicos, think tanks e centros de pesquisa estratgica. A Geopoltica

    popular seria aquela levada opinio pblica interna, de cada potncia, e da

    comunidade internacional, por meio de filmes, msicas, centrais de notcias, romances,

    entre outros meios de comunicao de massa.

  • 27

    A Geopoltica prtica, muito importante para o nosso estudo, seria a traduo

    dos postulados elaborados pela geopoltica formal, por parte das chancelarias,

    governos e instituies polticas. A parte prtica tenta realizar, ou tornar vivel, as

    teorias polticas emitidas pelas Academias.

    Abaixo segue o quadro esquemtico baseado em uma imagem originalmente

    esboado por Dodds (2007):

    Imagem 05 Diviso do estudo da Geopoltica pela Escola Crtica

    Fonte: DODDS, 2007, p.46

    Segundo Klinke, para os objetivos propostos serem atingidos, sero usados

    os mtodos de anlise referentes Geografia Crtica. Esta, vai se debruar sobre

    quatro questes precpuas: o espao, a identidade, o ponto de vista (as vises

    contraditrias) e a viso do Estado (KLINKE, 2009).

    O ponto de vista da Geopoltica Crtica vai abordar as questes sob um

    enfoque pluralista (ou seja, aceitando que o Estado no ator exclusivo na arena

    internacional). Alm disso, h sempre a preocupao em explicar as motivaes de

    ambos os lados de determinada contenda ou relao (TUATHAIL,2008).

    Para Ambrosio, a Geopoltica Crtica nas ltimas dcadas j est consagrada

    como escola de anlise da geopoltica. Diferentemente da anlise que feita pela

    Geopoltica Clssica (que preza fatores objetivos como, por exemplo, tamanho de

    territrio, populao e posicionamento geogrfico) a geopoltica crtica se detm em

    examinar como os polticos e diplomatas usam variadas formas de discurso para

  • 28

    influenciar a natureza da poltica internacional, a viso internacional sobre seus

    Estados e as relaes interestatais (AMBROSIO, 2013).

    Para Kerr, a essncia do fenmeno geopoltico, concordando assim com

    OTuathail e os crticos, no que tange a sua complexidade, que ela diz respeito ao

    controle do espao. Como houve um brutal desenvolvimento da tecnologia, com

    consequente interdependncia cada vez maior entre os diversos atores

    internacionais, o sentido de espao mudou. Antes, um controle espacial que bastava,

    para ser feito, pela disponibilidade de meios militares, agora com as nuances

    transnacionais do espao moderno, vai demandar meios econmicos, eletrnicos e

    de inteligncia para ter sucesso. Da a quase impossibilidade dos grandes atores

    geopolticos exercerem o seu poder da maneira tradicional, no presente (KERR, 1995).

    No presente estudo no haver espao para fazermos uma anlise completa

    dos documentos oficiais, por exemplo, do Ministrios de Assuntos Exteriores da

    Rssia ps-sovitica. No obstante, sempre que possvel procuraremos fornecer uma

    viso crtica dos eventos descritos, inclusive pelos Eurasianos, conforme a

    metodologia clssica.

    Outro conceito a ser bastante usado em nosso trabalho ser o de

    Geoestratgia. Esta, segundo Brzezinski, ocorreria no contexto da geopoltica, nos

    termos abaixo:

    The words geopolitical, strategic, and geostrategic are used to convey the following meanings: geopolitical reflects the combination of geographic and political factors determining the condition of a state or region, and emphasizing the impact of geography on politics; strategic refers to the comprehensive and planned application of measures to achieve a central goal or to vital assets of military significance; and geostrategic merges strategic consideration with geopolitical ones. (BRZEZINSKI, 1986)10.

    O prprio Brzezinski, em obra posterior afirma que a geoestratgia - que seria

    a gesto estratgica dos interesses geopolticos pode ser comparada a um xadrez,

    jogado (no caso) sobre o tabuleiro oval da Eursia e por vrios parceiros

    (BRZEZINSKI, 1998, p.19).

    10 As palavras geopoltica, estratgica e geoestratgica so usadas para fornecer os seguintes significados: geopoltica reflete a combinao de fatores geogrficos e polticos determinando as condies de um Estado ou regi, e enfatizando o impacto da geografia sobre a poltica; estratgica refere-se aplicao planejada e abrangente de medidas para atingir um objetivo central ou bens vitais de significado militar;e geoestratgica mescla consideraes estratgicas e geopolticas (BRZEZINSKI, 1986, traduo nossa).

  • 29

    J para Meena, gegrafo indiano, apresenta uma viso mais limitada do

    conceito. Para ele Geoestratgia teria mais a ver com a direo para onde

    determinado Estado priorizaria seus sempre escassos recursos, para fins de

    maximizar seus resultados em poltica externa:

    Geostrategy is the geographic direction of a states foreign policy. More precisely, geostrategy describes where a state concentrates its efforts by projecting military power and directing diplomatic activity. The underlying assumption is that states have limited resources and are unable, even if they are willing, to conduct an all-out foreign policy. Instead they must focus politically and militarily on specific areas of the world. Geostrategy describes the foreign-policy thrust of a state and does not deal with motivations or decision-making processes. The geostrategy of a state, therefore, is not necessarily motivated by geographic or geopolitical factors. A state may project power to a location because of ideological reasons, interest groups, or simply the whim of its leader (MEENA, 2014)11

    Dando um olhar brasileiro para o conceito: para Tosta, apoiado no trabalho de

    tericos norte-americanos como Spykman e Weigert, que em seus trabalhos miram

    os EUA, v a Geoestratgia como o estabelecimento de diretrizes para uma poltica

    de segurana nacional, baseado nas realidades geogrficas (TOSTA, 1984, p.31).

    Para Vesentini, a geoestratgia seria simplesmente a dimenso espacial da

    estratgia (VESENTINI, 2008, p.18). Para Meira Mattos, por sua vez a geoestratgia

    seria a estratgia aplicada s reas privilegiadas pela geopoltica (s reas

    consideradas crticas) (MEIRA MATTOS, 2011b, p.223).

    No que tange nomenclatura dos pases, de bom tom deixar evidente que

    usaremos nesse trabalho os conceitos emitidos por Buzan e Waever, em seus estudos

    sobre segurana internacional (BUZAN e WAEVER, 2003). O ponto em questo diz

    respeito ao que seriam: superpotncia, grande potncia e potncia regional, os quais

    sero eventualmente utilizados por aqui.

    11 A Geoestratgia a direo geogrfica da poltica exterior de determinado Estado. Mais precisamente, a geoestratgia descreve onde um Estado concentra seus esforos por meio da projeo de poder militar e direcionamento da atividade diplomtica. A percepo subentendida que os Estados possuem recursos limitados e so incapazes, mesmo se quisessem, de conduzir uma poltica externa ilimitada. Ao invs disso eles precisam focar poltica e militarmente em reas especficas do mundo. A geoestratgia descreve a investida diplomtica de um Estado e no se preocupa com motivaes ou processos decisrios. A geoestratgia de um Estado, portanto no necessariamente motivada por fatores geogrficos ou geopolticos. Um Estado pode projetar poder para um local devido a razes ideolgicas, interesses setoriais ou simplesmente pelo desejo de seu lder (MEENA, 2014, Traduo Nossa)

  • 30

    Por superpotncias, entende-se que sejam pases que renem exrcito

    numeroso, bem equipado e tecnologicamente avanado; alm disso, dispem de

    enorme poder poltico e econmico, este capaz de subsidiar aos dois primeiros

    elementos. Estes atributos materiais (hardpower), somados a uma capacidade de

    exercer o poder brando (softpower), devem ser consistentes a ponto de possibilitarem

    a interferncia nos assuntos de todo o globo (BUZAN e WAEVER, 2003). Alm disso,

    uma superpotncia deve desejar atingir esse status, ao mesmo tempo em que todas

    essas capacidades so reconhecidas por seus pares na comunidade internacional.

    Por grandes potncias entendem-se os pases que no possuem todas as

    capacidades das superpotncias, simultaneamente, mas podem eventualmente

    exercer influncia em algum cenrio. Tais potncias podem ter uma fora armada

    pujante, mas uma economia fraca, ou uma economia forte e elementos de defesa

    fracos. Outra variao visualizada por Buzan e Waever diz respeito a uma economia,

    poder poltico e valores universais paradigmticos, mas sem um exrcito robusto.

    Contudo, ainda que no projetem poder mundialmente, seus interesses, por motivos

    diversos, por exemplo, histricos, no se restringem aos assuntos de sua esfera

    regional. Com isso, elas se inserem em dinmicas de outras regies do globo.

    Similarmente superpotncia, as grandes potncias devem ser reconhecidas como

    tal.

    Ento, chega-se gradao de potncia regional. Esta possui poder apenas

    na regio em que se situa. Na cena internacional, sua influncia inexiste, no sendo

    reconhecidas pelas grandes potncias como tendo capacidade de atuar de forma

    impositiva na arena mundial (BUZAN e WAEVER, 2003, p. 34).

    Ao encerrarmos essa parte conceitual, convm relembrar que o estudo no

    pretende esgotar o tema, mas to somente aprofundar o conhecimento existente no

    Brasil acerca da poltica externa russa, suas razes geopolticas, a influncia do

    Eurasianismo e os eventuais reflexos para a poltica de defesa do Brasil.

    A seguir comearemos a explanar sobre o pensamento geopoltico da Rssia,

    e como ele se formou ao longo de sua histria. Mais frente, no captulo seguinte

    ser demonstrado como esse pensamento geopoltico sofreu a influncia das diversas

    variantes do Eurasianismo, com destaque para a de Alexandr Dugin.

  • 31

    3 A GEOPOLTICA DA RSSIA

    O presente captulo pretende expor a situao geopoltica da Rssia, ou seja,

    qual o significado de seu espao e de sua localizao relativa no mundo atual,

    baseado em fatos histricos, geogrficos e culturais. Partindo do status atual da

    Federao Russa ser mostrado como certos imperativos geopolticos foram

    gradualmente ser formando para o pas que ocupa a vastido das estepes entre a

    Europa e a sia.

    Com esse entendimento consolidado, pretende-se facilitar um melhor

    entendimento do porqu de certos posicionamentos da Poltica Externa russa na

    atualidade, a serem expostos no Captulo 4.

    Ainda em 1993, o ento presidente da Rssia, Boris Yeltsin, determinou que

    o antigo braso imperial da dinastia Romanov e, consequentemente, da Rssia

    Imperial, fosse reinstalado como smbolo do Estado Russo. O braso, que em seu

    bojo, contm uma guia de duas cabeas, em sua verso mais difundida, significa que

    o Estado russo atribui igual importncia, tanto a sua parte europeia quanto pela poro

    asitica (RSSIA, 2014b).

    Segundo Stites, o braso com a guia bicfala (imagem 06) foi adotado pela

    Rssia, mais ou menos, prximo tomada de Constantinopla (atual Istambul) pelos

    turcos otomanos em 1453. Com isso, o simbolismo de sua adoo pelos moscovitas

    significava que a religio crist ortodoxa migrava

    da segunda Roma para a terceira Roma, que

    seria Moscou, no centro da Eursia (ISAKOVA,

    2005, p.22; STITES, 2005).

    Para Chapman, cada pas produz suas

    prprias vises geopolticas. Estas seriam

    influenciadas por fatores histricos diversos, que

    incluiriam as realizaes econmicas, de

    inteligncia, de poltica externa e militares,

    prprias dos interesses de segurana e cultura

    nacionais, bem como das personalidades

    individuais de suas lideranas (CHAPMAN,

    2011).

    Imagem 06 - Braso de Armas da Rssia

    Fonte: servidor oficial da Rssia (RUSSIA,2014)

    D

  • 32

    Logo, a Geopoltica no uma cincia exata, mas pelo contrrio varia de

    acordo com o tempo e o espao em que seus conceitos so emitidos, sendo, portanto

    um saber to dinmico quanto subjetivo.

    Para compreendermos a Geopoltica da Rssia de hoje, portanto, deve-se

    buscar entender o efeito da Geografia nas aes do Estado russo, em suas vrias

    configuraes, ao longo de sua histria.

    De forma introdutria, antes de passarmos viso geopoltica, convm

    repassarmos, resumidamente, o que , e qual , a situao da Federao Russa

    atualmente, de modo a podermos entender seu desafio geopoltico e as presses a

    que pode estar submetida.

    3.1. A FEDERAO RUSSA HOJE

    Situada na poro norte da Eursia geogrfica, a Federao Russa, ou Rssia,

    um estado federal que abarca 83 entidades, com variada autonomia administrativa,

    sendo seu regime de governo atual o federalismo presidencial (RSSIA, 2014).

    Trata-se do pas com maior extenso territorial do mundo, apresentando rea

    total de 17.098.200 km. As fronteiras russas so as mais longas do mundo: a faixa

    lindeira oeste, faz divisa com os pases blticos, Belarus e a Ucrnia, na sua face

    europeia; j sua fronteira leste configurada pelo litoral dos Mares de Bering e de

    Ochotsk, que fazem parte do Oceano Pacfico setentrional. Ao norte, faz fronteira com

    o Oceano rtico e ao sul com diversos pases da sia Central (OFFICIAL RUSSIA,

    2014).

    Segundo Khanna, o territrio da Rssia pode ser decomposto em vrias

    regies, como por exemplo: a eslava, que ocupa a poro de territrio mais prxima

    Europa; a caucasiana, que engloba parte das montanhas do Cucaso; a ural-

    siberiana, que se situa no entorno e para alm dos montes Urais; e, por fim a asitica,

    que faz divisa com o Oceano Pacfico, o Japo, a pennsula coreana e a China. Para

    este autor, o territrio russo j pode, por si s, ser considerado a ilha mundial

    eurasiana (KHANNA, 2008).

    O pas, com cerca de 143 milhes de habitantes o oitavo mais populoso do

    mundo. Alm disso, a Rssia apresenta o sexto maior Produto Interno Bruto (PIB) do

    mundo, com cerca de US$16.700. O pas um dos maiores produtores mundiais de

  • 33

    gs, petrleo, carvo e metais preciosos, sendo por isso considerado uma potncia

    energtica (RSSIA, 2013).

    A imensido territorial russa abarca diversos climas do subpolar, no extremo

    norte, passando pelo de montanha, ao centro, e o temperado continental, a maior

    parte. O pas possui diversos rios, de grande extenso territorial que cortam seu

    territrio, em geral de sul para norte, como por exemplo o Lena, o Yenisei, o Ob e o

    Amur, apresentando assim um vasto potencial hidroeltrico (RSSIA, 2013).

    A populao russa acha-se distribuda irregularmente pelo vasto territrio,

    com destaque demogrfico para a poro mais prxima Europa. As cidades mais

    populosas, em ordem decrescente, seriam: Moscou (cerca de 11 milhes de

    habitantes), So Petersburgo (cerca de 5 milhes), Novosibirsk (1,5 milho),

    Yecaterinburgo (1,3 milho) e Ninji Novgorod (1,2 milho). A populao russa

    apresenta composio majoritria dessa etnia, cerca de 80%, seguido de trtaros

    (3,9%), ucranianos (1,4%) e diversas outras etnias que totalizariam cerca de 13% do

    total populacional (RSSIA, 2013).

    Com o fim do comunismo sovitico (1989), e consequente dissoluo da

    Unio Sovitica (1991), a Rssia emergiu como herdeira do antigo imprio sovitico.

    Sob o governo de Boris Yeltsin (1991-1999), o pas sofreu uma transio abrupta de

    uma economia planificada para outra de mercado (TEIXEIRA, 2008). No primeiro

    governo da transio transpareceu intensa cooperao com os EUA e a OTAN

    (Ocidente). O grupo de Yeltsin, face sua pretenso a uma insero total da Rssia

    na esfera poltica e cultural do Ocidente, sob uma viso de mundo mais kantiana,

    reconhecida como idealista-internacionalista (ZAPOLSKIS, 2007).

    A partir de 1998, aps os problemas iniciais na Guerra da Chechnia (1994-

    1996), a crise econmica russa - que j vinha se desenhando desde o incio da dcada

    e as crescentes divergncias com os EUA e os aliados ocidentais, levou ao poder o

    partido Rssia Unida12 ou Yedinaya Rossia, liderado por Vladimir Putin.

    Tal partido j trazia em seu bojo elementos programticos e membros

    comprometidos com o eurasianismo (GREBENNIKOVA, 2010). Vladimir Putin, foi

    eleito em 2012, novamente, para o cargo de presidente da Federao Russa. Putin,

    12 Para Markov O partido Rssia Unida (RU) um instrumento poltico parte. O RU no funciona como um partido propriamente dito. Na verdade trata-se de um movimento poltico de votao em favor de Vladimir Putin nas eleies no presidenciais e de votao em favor das decises presidenciais e governamentais em parlamentos dos diversos nveis (MARKOV, 2008, p34)

  • 34

    que, como visto, j exercera a funo por dois mandatos consecutivos, entre 2000 e

    2008, tendo sido sucedido por um aliado seu: Dmitri Medvedev, da mesma agremiao,

    e que a exemplo dele, agora o primeiro-ministro do pas (MAZAT e SERRANO, 2012).

    Segundo Markov, uma vez no governo, Putin passou a realizar um governo

    que priorizou o fortalecimento da autoridade central na Rssia, como resposta

    relativa imagem de anarquia que o pas passava para o mundo. Como exemplo

    dessas aes de centralizao de poder podemos citar: a renovao do esforo militar

    na Chechnia para esmagar o separatismo islmico; a eliminao de privilgios das

    oligarquias formadas na dcada de 1990; a reestatizao parcial da produo de

    petrleo e gs russa; a cassao da grande autonomia dos governos regionais, o que

    incluiu a nomeao de governadores pelo poder central. Em suma, seu governo

    restabeleceu a autoridade central que sempre caracterizou o governo russo (ERSEN,

    2005, p. 145; MARKOV, 2008, p.33).

    Alm do fortalecimento do Estado internamente, para atender aos anseios

    geopolticos russos, o atual governo passou a garantir a soberania externa do pas.

    Inicialmente, com os rendimentos auferidos com a venda de petrleo, gs e outros

    abundantes recursos naturais do pas: saldou a maior parte da dvida pblica

    contrada pela Rssia e suas entidades componentes, criou uma considervel

    Reserva Cambial, alm de um Fundo de Estabilizao financeira (MARKOV, 2008,

    p34).

    Posteriormente, os governos Putin e Medvedev deram grande nfase ao

    fortalecimento das Foras Armadas Russas, as quais, desde o colapso da Unio

    Sovitica, achavam-se desorganizadas, desestruturadas e mal equipadas. Segundo

    Bystrova, a partir de 2006, o Estado russo passou a investir pesadamente nas Foras

    Armadas, tanto que, a exemplo do perodo sovitico, foi recriada o rgo

    coordenao central do complexo industrial ou Comisso Industrial-Militar

    ganhando novamente grande poder de deciso (BYSTROVA, 2011, p 17).

    A reorganizao industrial russa, especialmente a retomada de fortes

    investimentos em seu complexo industrial-militar tambm se justifica pela venda de

    armamentos.Est uma vantagem comparativa russa muito usada para obteno de

    divisas internacionais, sendo a China o portento do leste apesar de eventuais

    discordncias um grande comprador de armamento russo (MANKOFF, 2012, p.19)

  • 35

    A seguir, tentaremos mostrar por que os russos, atualmente, contrariando os

    melhores prognsticos ocidentais quanto a conduta da Rssia ps-sovitica, vem

    gradualmente se afastando do Ocidente.

    3.2. UMA ANLISE DA GEOPOLTICA RUSSA

    O britnico Halford Mackinder, em sua obra magna de 1904, afirma que ao

    longo da histria recente, o espao ocupado pela Rssia na Eursia sempre foi

    dividido entre uma rea de plancies gramneas (estepes), ao sul, e outra, ao norte,

    mais restritiva ao movimento humano, pela densa presena da vasta floresta de

    conferas. Tal realidade geogrfica resultou em efeitos polticos duradouros para os

    habitantes tanto da Europa quanto do resto da Euro-sia (MACKINDER, 1904).

    Para Mackinder, as plancies gramneas ao sul forneceram a rota de invaso

    para sucessivas invases asiticas, que formataram a cultura europeia desde a

    Antiguidade clssica at o sculo XVI. Em contraste com o desenvolvimento europeu

    que as invases asiticas, inadvertidamente, incentivaram, para a Rssia tais

    invases significaram ficar sob o jugo mongol por alguns sculos. Tal fato gerou um

    afastamento russo da Europa e um relativo atraso poltico, econmico e cultural, que

    repercute at o presente (MACKINDER, 1904).

    Para Kaplan, antes da Federao Russa atual foram as seguintes entidades

    estatais a se fazerem presentes na Eursia: a Rssia Kieviana (sculos XII a XIV), a

    Rssia Medieval (sculos XV e XVI), o Imprio Russo (sculos XVIII a XIX) e a Unio

    Sovitica (sculo XX). Todas em maior ou menor grau, em algum ponto de suas

    histrias sofreram algum tipo de ameaa de fora estrangeira, que na maioria das

    vezes gerou graves efeitos para seu governo e populao (KAPLAN, 2012).

    O ncleo central de quase todas as configuraes de Estado russo orbitou no

    entorno da cidade de Moscou. Este aglomerado urbano, desde a baixa Idade Mdia

    (ou seja, a partir do ano 1000) foi estabelecido em posio central s nascentes de

    diversos rios alinhados com a futura expanso russa, e em meio proteo relativa

    das florestas e charcos boreais j citados por Mackinder.

    Tal localizao estratgica, contudo, dificultava, mas no impedia que algum

    conquistador tentasse capturar a cidadela moscovita, por uma das duas rotas

    histricas de invaso: por oeste, com uma variante escandinava e outra europeia, e

    pelo leste, esta pelas estepes da sia Central (vide imagem 7).

  • 36

  • 37

    Embora nunca utilizada historicamente para invadir o que seria hoje a Rssia,

    havia uma terceira via de acesso, pelo sul, que conectava a Eursia Central (o

    Heartland) com o chamado Oriente Mdio, atravs das Montanhas do Cucaso.

    Por sinal, modernamente, baseado nas ameaas a sua segurana levantadas

    por Katz, a Rssia, por meio de declaraes de autoridades governamentais,

    acadmicos e especialistas, teme exatamente as mesmas ameaas da Rssia

    Medieval, agora modernizadas, provenientes: da aliana ocidental (no oeste), do

    mundo muulmano (no sul) e da China (de leste) (KATZ, 2007).

    Aps a catstrofe poltica, e cultural, que foi a invaso mongol (sculo XIII), j

    na poca de Ivan IV (o terrvel), Moscou se recobrou, tornando-se o bastio central de

    onde partiram ordens, tropas e suprimentos para alargar o territrio russo na direo

    de fronteiras menos vulnerveis, inicialmente para o norte e noroeste, mas

    posteriormente para sul, leste e oeste. Segundo Isakova, entre a Batalha de Kulikovo

    (vitria smbolo dos russos sobre os mongis, em 1380) ao final da 1 Guerra Mundial,

    a Rssia esteve em guerra por 334 anos. Nesse perodo, seu territrio se expandiu

    cerca de 400 vezes (ISAKOVA, 2005).

    Dessa histria conturbada, nota-se a grande preocupao das elites russas,

    do domnio mongol at hoje, em sempre exercer presso sobre as reas que

    fornecessem segurana geopoltica para seu ncleo central, vulnervel a invases

    estrangeiras. Dentre tais reas crticas podemos citar a plancie germnica, as

    Montanhas do Cucaso, os sops da Cordilheira do Himalaia, a Monglia exterior os

    rios da Manchria e o Oceano Pacfico, j no extremo leste (KAPLAN, 2012).

    Segundo Isakova, os acadmicos russos consideram o czar Ivan IV, o terrvel,

    o primeiro praticante da Geopoltica moderna, ao menos para a Rssia. Esse

    governante definiu as linhas mestras da viso geopoltica russa, que, mutatis mutandi,

    so perseguidas at hoje, a saber: a) a importncia de controlar o espao pertencente

    a seus antigos inimigos medievais (ou seja, o que hoje os russos chamam de exterior

    prximo, ou seja, as antigas repblicas soviticas) e b) a necessidade de possuir

    territrios com acesso regular a portos de guas quentes (ISAKOVA, 2005).

    Estes imperativos geopolticos simplificados, destacados por Isakova no

    trecho acima, so importantes pois estaro contidos, como veremos, no discurso tanto

    do pensamento geopoltico sovitico quanto no atualmente desenvolvido pelo

  • 38

    Eurasianismo. O captulo 5, especificamente, delinear os principais contornos dessa

    escola geopoltica recente.

    Voltado situao geopoltica russa, outro ponto de vista que, diante dessa

    situao geogrfica crtica, ou seja: como histrica rota de invases e a crnica

    vulnerabilidade de seu ncleo central (sediado no entorno de Moscou) a Rssia

    sempre teve seu destino poltico inseguro. Este sempre ficou merc de invasores

    que ora vinham do leste, e menor escala do oeste e eventualmente do sul. Ainda

    segundo Friedman, para lidar com tais vulnerabilidades, e atingir suas prioridades

    geopolticas, a Rssia se expandiu em trs fases (FRIEDMAN, 2008).

    Na primeira, a Rssia se expandiu, no na direo dos corredores de invaso

    para estabelecer pontos de bloqueio, mas para longe deles a fim de estabelecer, na

    falta de poder ofensivo, um reduto sobretudo mais defensvel (FRIEDMAN, 2008,

    p.03, traduo nossa). Tal manobra geoestratgica da Rssia, a colocou no rumo das

    grandes vastides geladas das plancies rticas, mas tambm da imensido do

    territrio que circunda os Montes Urais e mais alm.

    Numa segunda fase, muito mais agressiva e arriscada, Moscou passou a

    atacar o territrio dos antigos conquistadores, no cessando a ofensiva at que suas

    tropas e colonizadores atingissem os Urais a leste, e o Mar Cspio e as Montanhas

    do Cucaso, a sul (FRIEDMAN, 2008, p.04, traduo nossa). A anexao forada de

    centenas de milhares de quilmetros quadrados de estepe caracterizou, pela primeira

    vez, uma das principais estratgias geopolticas russas: o territrio tampo.

    A terceira onda de expanso bloqueou a rota de invaso de oeste, mas

    prosseguiu empurrando as fronteiras russas para sul. Tal expanso se deu na poca

    de Pedro, o Grande e Catarina, dois imperadores russos que ficaram famosos, pela

    aproximao com os demais pases europeus. Nessa fase foram incorporados a

    Ucrnia, o sop do Cucaso e os pases blticos, incluindo os arredores da atual

    cidade de So Petersburgo.

    Com esse crescimento territorial do sculo XVIII, a Rssia Imperial se

    aproximou das fronteiras de futuros rivais histricos, como a Polnia, o Imprio

    Otomano e a Sucia; no sentido leste, dominando os vastos, e ricos territrios da

    Sibria e territrios, at ento inspitos, no Extremo Oriente da sia. A sul, alm de

    dominar a regio do Cucaso, as foras russas buscaram fronteiras defensveis, que

    em geral coincidiram com os desertos da sia Central e as montanhas do Pamir

    (prolongamento do Himalaia).

  • 39

    Essa expanso inexorvel atingiu seu auge no sculo XIX. Por essa poca,

    as rivalidades fronteirias entre os limites dos Imprios Britnico e Russo, na sia

    Central, mais especificamente nas fronteiras setentrionais das antigas possesses

    britnicas das ndias, gerou a cunhagem do famoso termo Great Games, ou Grande

    Jogo. Segundo Kaplan, o que motivou essa expanso inexorvel da Rssia,

    especialmente para leste foi insegurana: insegurana de uma potncia terrestre que

    tem que se manter atacando e explorando em todas as direes ou ser ela mesmo

    aniquilada (KAPLAN, 2012).

    Para Kerr, a ascenso do Japo e a vitria deste sobre a Rssia Imperial, em

    1905, foi o fim do sonho da hegemonia incontestada russa na sia. Tal fato histrico

    pode ter gerado a percepo de que a manuteno dos vastos territrios alm dos

    montes Urais, longe de significar poder e glria, livre de riscos, era uma ameaa

    (KERR, 1995).

    Essa percepo de vulnerabilidade geopoltica a leste, nos dias de hoje,

    mesmo com o fim tanto da Rssia Imperial quanto da Unio Sovitica, no

    desapareceu. Pelo contrrio, permanece, sendo que os insulares japoneses, foram

    substitudos, ou reforados, em seu desafio, pelas massas demogrficas chinesas.

    Sobre isso, ou seja, sobre a presso demogrfica que os chineses estariam

    exercendo sobre o anecmeno russo na Sibria e no Extremo Oriente, Khanna postula

    que:

    (...) Nowhere on Earth, does a depopulating state so provocatively border on an overpopulated one as do Russia and China. Russians are voting with their feet, migrating West in steady waves. Meanwhile, north of Beijing, the Great Wall is crumbling and roughly six hundred thousand ilegal migrants are pouring northward into Russias depopulated Far East - a number almost identical to Russias anual population decline. Only seven million Russians remain in the Far East, while Chinas notheastern provinces alone have a population of over a hundred million (KHANNA, 2008, p.72)13

    Atualmente, no que tange a sua geopoltica prtica, a Rssia se v s voltas

    com trs problemas, segundo Khanna: o xodo populacional de russos da Sibria, no

    13 (...) Em nenhum lugar da Terra, um Estado despovoado faz fronteira com um superpopuloso da maneira que Rssia e China fazem. Os russos esto dando no p, migrando para Oeste em ondas intensas. Enquanto isso, ao norte de Pequim, a Grande Muralha est desmoronando e cerca de 600.000 migrantes ilegais esto se despejando no rumo do despovoado Extremo Oriente da Rssia um nmero quase idntico diminuio populacional russa. Somente 7 milhes de russos permanecem no Extremo Oriente, enquanto as provncias setentrionais da China, sozinhas, tm uma populao de mais do que cem milhes. (KHANA, 2008, p.72, Traduo nossa)

  • 40

    rumo da Rssia Europeia; a grande presso demogrfica chinesa sobre as fronteiras

    russas, justamente na sua poro asitica e a presso separatista de territrios

    muulmanos, nas proximidades do Cucaso (KHANNA, 2008).

    Para Trenin, corroborando Khanna, e numa viso de que a Federao Russa

    deveria realmente integrar para no entregar a sua Amaznia Branca para os

    chineses, a Rssia faria bem em pensar em Vladivostok (capital do territrio russo do

    Extremo Oriente) como a sua capital do sculo XXI. um porto martimo que respira

    amplitude. Para Karaganov, por sua vez, se a Rssia deveria ter trs capitais: So

    Petersburgo, como capital cultural; Moscou como poltica e militar e Vladivostok, como

    capital econmica (KARAGANOV, 2012; TRENIN, 2013).

    Para Friedman, a questo populacional tambm debilita a geopoltica russa,

    uma vez que deixa uma grande quantidade de reas, ricas em recursos minerais, sem

    quem os beneficie. Outro ponto destacado pelo especialista norte-americano diz

    respeito relativamente pequena populao, face posio geogrfica do grande

    pas, refletindo em sua produo agrcola (FRIEDMAN, 2008).

    que a localizao da Rssia em latitudes muito altas, ou seja, muito ao norte,

    faz com que a estao das colheitas agrcolas seja muito curta. Alm de limitar o

    tamanho das colheitas, o clima dificulta o transporte eficiente da colheita,

    principalmente de gros, entre as lavouras e os grandes centros populacionais, onde

    os alimentos so essenciais para a estabilidade do Estado.

    De uma maneira geral, na Rssia Imperial os conceitos em voga falavam de

    um Pan-Eslavismo, dentro do pensamento dos Romanov acerca de aproximao

    com o Ocidente. Para Isakova, os decanos desse perodo foram homens como

    Soloviev, Shapov e Checherin, cuja proposta geopoltica era bem mais profunda do

    que a dos clssicos ocidentais. deles o pensamento de que a vastido russa, a

    escassa populao face a mesma e as condies climticas adversas condicionariam

    o governo russo a ser atavicamente autoritrio (ISAKOVA, 2005).

    J na Unio Sovitica, ou seja, no que tange ao pensamento geopoltico no

    perodo sovitico (1922 a 1991), os conceitos geopolticos, inicialmente, focaram no

    Internacionalismo, ou Continentalismo Socialista. Tal pensamento utpico, pensado

    originariamente pelo revolucionrio sovitico Lev Trotski foi reformulado,

    posteriormente por Iosif Stalin, como um refinamento mais pragmtico para atender

    aos desgnios geopolticos da Unio Sovitica durante a Guerra Fria.

  • 41

    dessa poca, o auge da Guerra Fria, que se destaca o pensamento

    geopoltico do Almirante Sergei Gorshkov, sobre a expanso do poder martimo

    sovitico para conter o domnio dos EUA sobre o oceano-mundo. Para Chapman, a

    Doutrina Gorshkov previa a busca pela paridade naval com a marinha dos EUA, para

    disputar com ela a hegemonia global. Para tanto, numa releitura pr-poder terrestre

    da teoria do poder naval de Mahan, o almirante sovitico previa intensa construo

    naval e a localizao de bases navais e pontos de apoio logsticos em diversas reas

    do globo. Ele foi o grande responsvel pela construo da marinha de alto-mar e pelo

    poder nuclear naval da Unio Sovitica, capacidades militares estas que foram

    herdadas pela Rssia (GREGOR, 1989; CHAPMAN, 2011).

    Do legado da antiga Doutrina Gorshkov, ou seja, do uso irrestrito dos mares e

    oceanos pela Rssia, um outro ponto que permanece vvido na geopoltica russa diz

    respeito ao Oceano Polar rtico, ou seja, o flanco norte do Heartland de Mackinder.

    Segundo Voronkov, recentemente, a descoberta de vastas reservas de

    hidrocarbonetos no fundo daquela massa dgua (ou seja, reservas off-shore na

    plataforma continental, como na Amaznia Azul brasileira) altera a importncia

    geopoltica daquela rea do rtico (VORONKOV, 2013).

    Afora a questo da explorao de hidrocarbonetos no rtico, a Rssia tem

    outras consideraes nessa questo da Geopoltica Energtica. Para Santos, as

    maiores preocupaes da Rssia (nesse quesito) dizem respeito ao controle das rotas

    de exportao dos recursos energticos (SANTOS, 2004). Como se consolidou como

    uma potncia energtica no fim da dcada de 1990, a Rssia presta muita ateno

    mirade de oleodutos e gasodutos que nascem, ou passam por seu territrio, com

    destaque, ainda para as quantidades de hidrocarboneto que passam pelos

    estratgicos dutos (ALVES, 2012).

    Vale notar que a diplomacia energtica russa j foi usada para pressionar,

    tanto a Unio Europeia, quanto pases de seu Exterior Prximo, como por exemplo

    a Ucrnia, a Belarus e o Azerbaijo, a se alinharem aos desejos russos.

    O resultado de sculos de desafio permanente pela sua segurana gerou a

    alternncia de correntes polticas variante: ora favorveis a uma Rssia europeizada,

    ora favorveis a um retorno russo s tradies da Eursia. Vrios acadmicos

    opinaram sobre essa disputa no interior do Estado russo ao longo da histria.

    Para Isakova, as escolas geopolticas que podem ser identificadas na cena

    poltica russa, ao longo da histria so: Ocidentalismo, Eurasianismo, Neo-

  • 42

    Eurasianismo e o Pragmatismo poltico. Nessa viso, o Neo-Eurasianismo seria uma

    das escolas de pensamento geopoltico que tentam dar prumo poltica externa russa

    atual, sendo que a viso pragmtica seria a traduo para a realidade da viso terica

    eurasianista (ISAKOVA, 2005). Os dois ltimos sero o que abordaremos com maior

    nfase neste estudo.

    Para Urnov, o sculo XIX significou o amadurecimento de quatro percepes

    geopolticas pelos intelectuais e governantes da Rssia: o Ocidentalismo, o

    Isolacionismo, o Isolacionismo antiocidental e o no isolacionismo. O espectro de

    colaborao ia de uma colaborao total com os pases a oeste (Ocidentalismo),

    passando por um isolacionismo que podia ser ora neutro, ora hostil aos pases

    europeus e aos EUA (Isolacionismo e Isolacionismo antiocidental) ou ainda a total

    abertura do pas s oportunidades de todos os lados (no isolacionismo) (URNOV,

    2006).

    Para Dodds, no caso russo pode-se notar, ao longo do tempo, ao menos trs

    variaes: em primeiro lugar h a noo de que a Rssia uma parte da Europa e

    que o pas precisa se unir aos modelos de desenvolvimento ocidentais, conhecida

    como Ocidentalismo; em segundo lugar a ideia de que a Rssia uma rea geogrfica

    especfica (Eursia) com sua forma particular de Estado e Sociedade, cerne do

    pensamento Eurasianismo; em terceiro lugar, o conceito, mais moderado, de que a

    Rssia seria um ponte entre Europa e sia. Essa questo do lugar da Rssia no

    mundo, j objeto de discusso, desde do sculo XIX (DODDS, 2009).

    Para Santos, atualmente o que se pode discernir na cena russa somente a

    bipartio entre o grupo a favor do Ocidente e o grupo eurasiano. O primeiro grupo

    pensa que os valores culturais do Ocidente, tais como a democracia, o pluralismo e a

    valorizao do indivduo so universais, e portanto aplicveis Rssia. J o segundo,

    os eurasianos, j cultuam valores mais tradicionais para o russo mdio, tais como a

    noo de Rodina (Ptria), de um certo autoritarismo e de valores coletivos. Para esses,

    a Rssia no se insere, nem na cultura ocidental, nem na oriental, mas to somente

    numa cultura prpria, dita eurasiana (SANTOS, 2004).

    Conforme notado por Isakova, a geopoltica russa transcenderia aes ligadas

    ao Estado russo e o estudo do ambiente externo que o cerca. Na verdade, a viso

    russa sobre a geopoltica vai mais alm, abarcando questes como o tipo de regime,

    bem como o relacionamento deste com seus cidados (ISAKOVA, 2005, p.10).

  • 43

    Tal conduta autocrtica, tpica da cultura estratgia russa, no entender da

    maioria da intelectualidade russa, e especialmente, para os eurasianos, seria um

    preo aceitvel a pagar pela manuteno de uma cultura russa superior. Alm disso,

    segundo Soloviev, os russos, face a seu carter nacional, acostumado a enfrentar e

    vencer um clima severo, no teriam dificuldades para viver sob uma organizao

    poltica autoritria (ISAKOVA, 2005, p.11).

    Geopoliticamente falando, at mesmo para um observador ocidental, as

    medidas polticas reconhecidamente de fora - tomadas por Vladimir Putin soam

    justificadas. Isto, porque da anlise da conjuntura russa da dcada de 1990, via-se

    claramente a necessidade de reorganizar o Estado russo, para qualquer posterior

    ao externa. A incluso um retorno ao desejado patamar atingido pela superpotncia

    sovitica.

    Embora seja difcil alinhar o pensamento geopoltico russo diretamente ao

    ocidental sobre o tema, as aes prticas da geopoltica russa permitem vislumbrar

    uma dinmica da perspectiva realista na sua poltica externa. Isso quer dizer que a

    Rssia, ao menos neste incio de sculo, vem agindo por meio de aes que buscam

    to somente a consecuo dos seus interesses, ou objetivos, nacionais permanentes.

    Na parte seguinte vamos dar relevo ao pensamento estratgico do Ocidente

    sobre a Eursia como forma de entendermos a viso de mundo dos EUA e da OTAN

    sobre a Eursia. A ideia permitir uma viso ampla sobre as estratgias conflitantes

    que ser completada com o pensamento eurasiano sobre o tema nos captulos 4 e 5.

    3.3. A GEOESTRATGIA OCIDENTAL PARA A EURSIA

    Nesta parte, o estudo pretende voltar-se para as aes geo-estratgicas dos

    EUA e dos pases da OTAN sobre reas da Eursia, de tipos variados, a que os

    eurasianos costumam chamar de Atlantismo. Tais aes listadas por Akgl (2005)

    como recorrentes, desde o imediato final da Unio Sovitica, vem sendo vistas pelos

    eurasianos como uma flagrante afronta dos chamados atlnticos contra o solo

    sagrado da Rodina (me ptria).

    Para Dugin e os eurasianos, o Atlantismo seria um termo geopoltico que

    significaria: a) do ponto de vista histrico e geogrfico: a civilizao situada no setor

    ocidental do globo terrestre; b) do ponto de vista estratgico-militar: os pases

    membros da OTAN, especialmente os EUA; c) do ponto de vista cultura: uma rede de

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    informaes unificada criada pelos imprios miditicos ocidentais; d) do ponto de vista

    psicossocial: o sistema de mercado, tido para ser absoluto, negando todas as

    diferentes formas de organizao da vida econmica. Os agentes do Atlantismo so

    os construtores da chamada nova ordem mundial um sistema mundial sem

    precedentes que beneficia uma minoria absoluta da populao planetria, o chamado

    bilho de ouro (DUGIN, 2010)

    Para Mead, corroborando ainda que parcialmente, essa viso de Dugin, a

    agenda ocidental a ser disseminada para todo o mundo abarcaria, entre outros pontos:

    a liberalizao comercial, a no-proliferao nuclear, os direitos humanos, a

    prevalncia do Estado de Direito e a Mudana Climtica (MEAD, 2014). Essa teria que

    ser necessariamente a agenda diplomtica a ser objetivada abertamente pelos pases

    do Ocidente em busca da Nova Ordem Mundial.

    provvel que em complemento a essa agenda aberta, os ocidentais

    certamente ajam com uma agenda mais reservada, visando objetivos mais especficos.

    Em seu estudo sobre a viso das elites russas sobre o Ir, Shlapentoch comenta sobre

    a viso eurasiana do que seria a poltica dos EUA para a Rssia/Eursia:

    (...) the United States would not stop at marginalization and destruction of the USSR, but proceed till Russia fell apart. The attempt to destroy Russia/Eurasia is not driven not by economic interest but by the desire to homogenize the world according to the American model. Americanization of Eurasia/Russia would mean the complete destruction of its civilizational core. U.S. confrontation was Russias inevitable destiny, but it could not fight alone and needed an ally. (SHLAPENTOCH, 2009, p.17)14

    Essa viso ameaadora dos EUA e seus aliados em relao Rssia ser um

    dos pinculos da ideologia eurasiana, como ser visto nos captulos seguintes. Tal

    viso evidentemente procede da disputa geopoltica travada durante a Guerra Fria,

    mas possui fortes componentes histricos, filosficos e culturais.

    Na prtica, a estratgia ocidental para a Eursia, e que vem justificando o

    gradual endurecimento da posio e das reaes geoestratgicas russas podem ser

    exemplificadas pelos seguintes casos mais consagrados: as Crises da Gergia (2002

    14 Os EUA no se detero com o isolamento e destruio da Unio Sovitica, mas procedero at que a Rssia se fragmente. A tentativa de destruir a Rssia/Eursia no guiada por interesses econmicos mas o desejo de homogeneizar o mundo de acordo com o modelo americano. A americanizao da Eursia/Rssia significaria a destruio completa de seu ncleo civilizacional. A confrontao com os EUA o destino inevitvel da Rssia, mas ela no poderia lutar sozinha e vai precisar de um aliado (SHLAPENTOCH, 2009, p.17, traduo nossa).

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    e 2008) e as Crises da Ucrnia (em 2004 e 2014), que de certo modo comprovam

    o avano ocidental sobre o antigo espao sovitico. certo que houveram outros

    pontos de conflito, mas a gravidade e a consequente repercusso internacional

    desses dois atos exemplificam a seriedade da questo para os russos.

    Para Petersen, a estratgia ideal da OTAN sempre foi conseguir impedir o

    condomnio russo chins de deter a hegemonia na sia Central, atendendo assim o

    pressuposto de Mackinder. Face inevitabilidade de aes concretas para preencher

    o vazio de poder na sia Central ps-sovitica, a deciso teria que ser a expanso

    das instituies ocidentais para esse corao da Eursia (PE